manifestos curau i/ii/iii de vicente franz cecim

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  • 8/22/2019 Manifestos Curau I/II/III de Vicente Franz Cecim

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    M A N I F E S T O S C U R A U

    VICENTE FRANZ CECIM

    1975/2010: 35 ANOS DE KINEMANDARA1979/2010: 31 ANOS DE VIAGEM A ANDARA1981/2010: 27 ANOS DE MANIFESTO CURAU

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    MANIFESTOS CURAU/PARTE I: PALAVRAS DE ABERTURA

    Dom Fugaz

    EnquantoFlagrados em delito contra a Noite/ManifestoCurau, oManifesto I, de 1983, foi uma Palavra para Todos, oque falou aps ele vinte anos depois:No Corao da

    Luz/Segundo Manifesto Curau, ou no uma Voz que sedirige, com menos ingenuidade, objetivamente ctico-estico-Sneca apenas s Geraes Futuras. Nesse sentido, houve, emrelao ao que o anterior propunha, uma reduo deexpectativas ou um des-iludir-se como libertao das falsasesperanas: - Como creio que as Mutaes das Conscinciasse daro lenta e impura mente mescladas aos vcios mentaisacumulados nas geraes passadas, tendi a inclinar minhaesperana para um Dom da Vida: aFugacidade dos Homens edas Coisas. E louvar que nada, em baixo, se mantenha oMesmo - sim, Herclito - embora tudo, no alto, permanea oUno - sim, Parmnides. Pois parece um Bem e uma Graa queos homens, enquanto Entes da Vida Visvel, a manifesta,sejam Efmeros e as coisas mutveis, e que os frutos antigosdesmoronem e se desfaam, mas semeando Sementes. Eis,esto : - Se essas Sementes vierem contaminadas porAquilo,oculto, que levou o Fruto decadncia, esto estaremos

    perdidos. Sonho esta Utopia, noforadentro da VidAndara: -Sonho que, Se, florescerem duas geraes inteiramente inter-

    rompidas com o passado, nascidas - que Milagre, ser deespanto -sem antecedentes - isso limparia, lavando equeimando, a Vida humana de seus Vcios pblicos e

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    privados. E assim entendo que metforas comoDilvio &Apocalipse so, especificamente, essa Fugacidade que possavir nos libertar das cadeias. No duplo sentido, de elos e

    prises.

    VFC.Belm, Amaznia, Brasil,Junho/2009.

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    MANIFESTOS CURAU/PARTE II: FLAGRADOS EM DELITO

    Flagrados em delito contra a noite/ManifestoCurau

    Vicente Franz Cecim

    O menino ouvia.

    - O medo s veio para aqueles que tinham as suas velhasrazes para ter medo, e esses passaram a ter medo ento doCurau. Eles tm medo de tudo, dizia Jacinto. O meninoouvia.

    Quando a ave veio, aquele medo andava pelas ruas com

    passos que nunca levaro a uma terra sagrada, menino, diziaJacinto.

    E o menino ouvia.

    Os jardins e a noite, 1981/Terceiro livro visvel de Andara

    Vtimas de uma sociedadeviolentamente gerada pelos maisevidentes padres de colonizao,nossas chances de mud-la comeamna visualizao da face oculta dequem nos fez isso.

    Este um esforo que precisavoltar bem atrs, e que dever seespalhar, interrogativamente, emvrias direes, para obter xito.

    Historicamente, a Histriavista com um outro olho, no essa de aprioris infalveis, mas uma denavegaes frequentemente sem lemee em rumo incerto,

    historicamente, a falncia doOcidente culto institudo, aristotlico ecartesiano, pragmtico enfim, temsido uma crena estpida, contagiosae exportada para os quatro cantosmagros do mundo, num dos quais nosinclumos, embora devamos estar

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    solidariamente em todos eles: umacrena que afirma que s os diasdespertos existem, sendo todo o resto

    fantasma, isto : a parte dos sonhos.A se instala o reduto central

    da opresso, desse Ocidente auto-suficiente e, em decorrncia,rancoroso, reduto que as nossasconfrontaes libertrias com ocolonialismo devem atacar cada vezmais.

    As fbulas do Ocidente cultoso, assim, quando existem,

    frequentemente documentos de umterror.O terror de permitir que os

    sonhos humanos penetrem no realpara fecund-lo de desejos nos limitesdo impossvel, seduzindo todasensatez domada, estabelecida,libertando o real da racionalidademanaca. Essa senhora respeitvel e,

    no entanto, infame.

    ( 1)

    Mas ns, aqui, entre peixes,sonhos e homens, nesta Amaznia emtranse permanente, sabemos, oudeveramos saber, que preciso tocaro corao de Aquiles do real, ali ondeele sensvel e impaciente espera de

    um acontecimento total que otransfigure.Onde se oculta, e como se

    dissimula, o medo ocidental?

    Sua recusa sistemtica dadimenso imaginria humana?

    Afinal, e claramente, ummecanismo de civilizao em

    processo de autodefesa to suicida

    como criminoso, como qualquer outroverificvel em individualidadesretorcidas pelo esgotamento de umaexistncia sem revitalizaes

    permanentes?Marx dizia que, na Histria,

    os acontecimentos se repetem comofarsas. O Ocidente culto a repetio

    de uma repetio, a farsa de umafarsa.Esse medo, vulnervel a um

    olhar sem vus, revela-se: trata-se,quando observado sem reservas nemadmirao inocente, de umaengrenagem que, atualmente, e cadavez mais, de repetio em repetiohistrica, gira ao contrrio: se antes

    permitiu iluses reconfortantes, hoje,ela despedaa o prprio ocidental efaz dele sua vtima mais imediata, noesqueamos isso carente como serdado ao mundo social apesar de umacivilizao de bem-estar materialecomo projeto de sernuncatotalmente alienvel na destinao

    secreta que o pe, no ritual dasontologias indiferentes sdeformaes da Histria, e apesar dasconsolaes religiosas do Ocidente,desabrigado num cemitrio de ossadasmorais, estticas, polticas estas,tambm um fmur rodo at afronteira das cerimnias sociais j semsentido.

    O medo do Ocidente culto omedo do Ocidente s revolues. Dequalquer espcie. Poticas ou

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    polticas, ou aliana dessas duasformas de luta.

    O medo do Ocidente sfbulas do imaginrio rebelde a maisevidente declarao de desprezo desse

    Ocidente pela realidade.Porque, na verdade, esse

    Ocidente nega o real, sob o libi derecusar o sonho em nome de umarealidade que, de fato, vazia einexistente, porque mero artifcioengenhoso engendrador de uma formade dominao que se quer estvel e

    permanente, certeza e reafirmao damanuteno perptua de um poder.O medo ocidental culto o

    medo dos imperialismos da Razo, esua base econmica e totemicamentemoral, s possibilidades histricas eestticas da frica, da sia, doOriente Mdio e da Amrica Latina.

    Tambm no temos o direito

    de esquecer que com esse medo queas autoridades desse Ocidente cultosubmetem o indivduo ocidentalannimo: latente aliado do TerceiroMundo para uma insurreio emescala planetria.

    Esse medo o manifestotemor, de impulses assassinas os

    massacres do imperialismo esto emtoda parte, inclusive na expanso deum novo imperialismo europeu deesquerdade um organismo arcaicoante a emergncia de novasvitalidades sobre o planeta.

    O equvoco das lutasantiimperialistas circunscritas

    confrontao poltica e econmica ,tem sido, ignorar que o projeto de

    permanncia do imperialismoocidental, projeto liderado pelos

    imperialismos europeu e norte-americano, inclui estratgias maisvastas e invisveis, que utilizam acultura - a Cultura, exprime melhor - etodas as suas ramificaes,

    previamente envenenadas com umcurare entorpecedor das culturas doTerceiro Mundo, tolhendo na nascentesua afluncia e sua chance de umaao nativa libertadora.

    Assim que esse Ocidente,tendo tudo a perder, nem vivo no real,nem mais vivo ainda na incorporao

    de um real total pela incorporao doalm-fronteiras do onrico humano,quer, insiste em se propor

    como modelo alienador, das culturasoprimidas.

    Freud continua sendo para oOcidente culto uma ferida aberta noseu inconsciente, perigosa, e que oOcidente precisa cicatrizar, esquecer,

    e a converso de suas descobertas emestratgias teraputicas a maisexplcita constatao da manifestaodo medo ocidental diante doimaginrio.

    Ser compreendendo que, dooutro lado do Atlntico e mais acimados Trpicos, se encena uma farsa,

    essa, que regies de fome e de visescomo a Amaznia tero direito, umdia, fatalmente, a um solo prprio e convivncia com suas razes.

    O real est em toda parte,sim,

    mas sob o domnio do medoele se transforma em fantasia e fuga

    ao real.S a fbula insurrecta

    cravada na vida resgatar esttica ehistoricamente a Amaznia dessa

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    miragem: o padro colonizadorimposto a ela.

    E, tambm, da falsaexistncia que tem sido a nossa atento.

    Mas onde est esse subsoloreal, o autntico cho que servir de

    base a essa independncia histrica eesttica, assim exigida com nfase?

    Enquanto ignorarmos isso,esse solo frtil, nem nfase nemCultura nos levaro um passo adiante.

    E inevitvel que, para

    saber, ser preciso um sacrifciocultural: o sacrifcio dessa cultura aque nos habituaram e nos habituamos,ser preciso romper tabus, negar-se avelhos cultos.

    Quantos de ns se dispem atanto?

    H tribos na Amaznia queafirmam:

    A vida uma iluso, s ossonhos tm realidade.

    No.No se trata de mais uma

    alienao, mera crena.Antes, preciso ver nisso a

    presena de uma conscincia que jviu.

    E viu o qu? simples: ao tomar o realexpresso como o Real, o homem seamesquinha e trai seu projeto de serinerente: ao suspeitardesse realmanifesto em torno de ns, todas as

    possibilidades de modific-lo seescancaram. Esse real nossa volta ,na Amaznia, socialmente, a

    transplantao da realidade forjadapela cultura do dominador, herana aque nos foram.

    Algum j disse: - Do fundode uma priso, um homem pode

    fechar os olhos e destruir o mundo. disso, enfim, que se trata.

    Desse poder. E ns o temos, mas ele

    dorme entorpecido o nosso sonho deregio sem voz, sem identidade, semalma porque fomos desalmados peloinvasor.

    Ante a constatao inevitvelda nossa carncia material em resistira esse colonizador com armasidnticas s dele, porque somos,

    irmos, muito pobres, e ante aconstatao de que isso seria repetirseus erros e reafirm-los como valorquando o nosso projeto umareinveno cultural, umarevalorizao da vida ante essasconstataes, e a par de um esforo deindependncia poltica e econmica,no temos o direito de negar-nos a

    nossa arma mais eficaz,imediatamente: oImaginrio, esse

    poder de que os nossos dominadoresseculares, exaustos de sonhar, vmabrindo mo.

    A Amaznia umairrealidade, ento? Uma utopia? Umfantasma geogrfico habitado por

    fantasmas humanos? ?Tambm. Da perspectiva danossa opresso, isto trgico; mas da

    perspectiva da nossa realidade, a esto comeo da nossa liberdade. E noapenas em relao ao colonizador,mas tambm em relao prpriavida, para ns, potencialmente, umdado ldico.

    E no entanto, aqui se morre,se nasce em ondas, h a fome emestado crnico, homens doentes nosolham nos olhos s vezes com paixo,

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    outras vezes com dio. Tudo igual vida como ela , vista por fora.

    Juntamente com amobilizao de uma operao poltica,ento, precioso pr em movimento

    tambm uma operao mgica.Esta: para alm do real que

    me dado pelo mundo,e, sobretudo, se esse real est

    deformado pelas marcas de umadominao alheia a mim,

    resta-me o recurso de umjogo.

    E nesse jogo descubro e merepito, at o ltimo alento:A Histria, a minha

    histria, s ter realidade quando eume apossar dela pelo meu imaginriode homem e regio.

    Foi isso o que o colonizadoresqueceu, e por isso ele fez de suahistria uma Histria lenta, mas

    fatalmente, contra a sua prpria vida.Tudo isso vemos, e no

    vemos, no temos visto, como umespetculo exposto nossaconscincia: o drama de um naufrgio.O naufrgio do modelo da civilizaoocidental.

    Repetiremos sua encenao?

    Nesta geografia, no s osrios, mas tambm as idias, osdesejos, os projetos de vir a ser,tramam labirintos.

    Nada a conter. No nospeam a coerncia e o linear.

    A regio barroca. Barroca,aberta e canibal: um dia caber fazer

    esta, a ltima afirmao, com maispropriedade.

    Se, como no zencitao decanibalismo cultural, desde j me

    dizem que o corvo da Histria negro, me cabe amazonicamentelibertar-me na proposio de um outrocorvo, mesmo que isso sejaaparentemente uma loucura,

    o absurdo,e dizer: - O corvo no

    negro.A comeam as chances do

    meu corvo no ser negro. O corvo daHistria, o meu corvo de ser.

    Minha revoluo se faz deinverses que me libertam do dado, do

    imposto, do plausvel. No sou, noquero ser plausvel, grita essa regioque tambm j viu, mas esqueceu, foiforada a esquecer.

    Fincado no corao de suasdialticas racionalistas, o Ocidente,que preferiu eleger para sua tradio aGrcia ps-pr-socrticos, a Grcialgica, ignora esse jogo.

    - Estamos na iluso, tambmdiria um Herclito mura.

    E essa herana libertria deum filsofo jnico algico precisoexercitar sempre o canibal cultural que

    preciso ser, diz a regio recusadapelo medo ocidental, nos serve,porque com ela, tambm, aprendemos

    a negar a realidade da fatalidadehistrica de subnutridos que oOcidente e sua dominao nosimpem.

    Acima foi dito:A minhaHistria amaznica s ter realidadequando o meu imaginrio amaznico

    se apossar dela.

    O meu imaginrio de homeme regio.

    O que significa isso?

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    O que seriam homem eregio em coito cultural, sendo juntos?

    Temos as manifestaes deuma arte popular entre ns.Frequentemente folclorizada

    alienao interna da regio,alimentada pelo colonizador, frequen-tador de um circopacfico que eleaplaude para que se mantenha assim no entanto, creio, da que viro asnossas mais decisivas oportunidadesde escapar aos rigores e ao vcio deuma esttica imposta a ns.

    Os nossos criadores cultos,repetindo um padro do Ocidentecolonizador, tm se apropriado dessaarte popular para apresent-la sob aforma de um regionalismoinexpressivo, superficial.

    preciso denunciar essaoperao, e insistir em criar meios

    para que essa arte se expresse por si,

    para que ela no seja expropriada.A outra alternativa, a de que

    homens de cultura busquem a culturapopular e a manifestem em suaprpria arte, s pode ser um dadorevolucionrio quando vier sob essaforma, conforme foi declarada porGlauber Rocha na televiso: - Sou um

    brbaro e as minhas razes so asculturas populares do TerceiroMundo.

    Aqui, procuro um nomenuma regio similarmente deprimida easfixiada como a Amaznia. Umnome exemplar. E uma regio real einventada igualmente exemplar.

    Falo do Serto de Joo

    Guimares Rosa.No apenas como literatura,

    mas como espelho vlido para todasas nossas linguagens: plsticas,

    sonoras ou aquelas do silncio danossa perplexidade regional,amaznica.

    Como nos expressarmos comessa retaguarda de regio que somos

    soterradamente,com essa retaguarda de

    oralidades, de lendas, de fbulas quehistoricamente tm melhor nosexpressado como regio e como sonhode regio, como seres humilhadoseconomicamente, politicamente,esteticamente, mas tambm como

    seres luminosos, de violenta riquezavital?Em sua outra geografia,

    como nenhum outro, Guimares Rosasoube fazer o encontro revelador doseu destino individual com o destinoda sua regio, e, mais ainda, soubetransformar esta regio numa metforade toda a vida. Nele, em todos os seus

    livros-salmos, livros-santos, livros-rituais de iniciao na existncia,falam mitologias pessoais. E falamtambm as mitologias da sua regio.

    Nele, Riobaldo um homem e oshomens, qualquer um de ns e todosns, e tambm Guimares Rosa.

    Nesse Guimares Rosa, o Serto um

    serto e mais do que aquela regiol, geograficamente fixada num pontoqualquer da costa do planeta.

    Esse tomar-se comoindivduo e ir mais alm, pararepresentar a comdia comovente dohomem na vida, a comdia comum atodos os homens, homem tornando-sehomens para at mesmo expressar me-

    lhor, de volta unidade, a condiohumana, o real em cada um de ns,

    e tambm esse tomar umaregio para express-la como uma

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    regio especfica e ir mais adiante,para fazer essa regio valer como umaalegoria do real inteiro, como tem sidovivido da China frica, na IdadeMdia, hoje ou durante os primeiros

    clares da inveno do fogo,essa operao, enfim, de

    mesclar destino individual e destinocoletivo, regio e mundo, realidade eimaginrio, em demanda do real total,nsno a realizaremos apropriando-nos regionalisticamente da Amaznia.E nem entregando-nos ao modelo de

    realidade imposto a ferro pelocolonizador.Ser, antes, entregando-nos

    embriagadamente nossa condio dehomens,

    digo: de inventores de umarealidade mais vasta,

    serfalando conforme aloucura que nos seduziu, como queria

    um insurrecto europeu que lutoucontra aRazo do imperialismo,Andr Breton,

    e ser, sobretudo, dando-segenerosamente vida, que ns arealizaremos.

    Mataro olho culto herdado

    das tradies da opresso ocidentalsobre ns.Abrir nesta noite regional um

    outro olho, nativo.Essas so as prticas

    urgentes. De uma perspectiva menoselementar, essa a nossa fome maisurgente.

    Contra o colonizador,

    nacional e estrangeiro, mas sem amisria da xenofobia rancorosa,

    e insistindo nos valores dainsolncia e da transgresso.

    Nosso nascimento comoregio depende de uma morte? Sim.Da nossa morte como miragem deregio.

    E, por isso, e para isso,

    ento,temos:Posio: contra o

    regionalismo e ao mesmo tempo poruma revoluo de regio, s o mito eo delrio podero alguma coisa.

    E todos os sentidosadvertidos contra os engodos de umaHistria feita contra ns, por

    dominadores contra dominados.Para realizarmos essaoperao, precisamos aprender a ouviras falas do inconsciente falante geral,que de toda a regio e de ningumem particularabaixo o emblemafixado contra a porta do imaginrioamaznico, aquele que diz:"Propriedade Privada".

    Nesse imaginrio, estaregio na verdade quem fala, e,atravs dela, falaremos todos ns.

    Bastar deixar que ele nosdiga algo. E escutar. Com muitahumildade. Muita radical exasperaotambm. E sonhando bastante osnossos sonhos, a todo instante. E

    deixando que esses sonhos, os indivi-duais, se misturem com os sonhos daregio. Porque, no fundo, s umacoisa sonha e nos sonha: a Vida.

    preciso dar-se,deliberadamente, a ela.

    E preciso insistir:Nossa Histria s ter

    realidade quando o nosso imaginrio

    a refizer, a nosso favor.

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    VFC.Belm, Amaznia, Brasil,Maro/1983

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    MANIFESTOS CURAU/PARTE III: NO CORAO DA LUZ

    No Corao da Luz/centelhas para um SegundoManifesto Curau, ou no

    Vicente Franz Cecim

    - Nossa Histria s ter realidadequando o nosso Imaginrio a refizer, a nosso favor

    Assim calava a sua Voz, retornando ao Silncio quesempre se segue a todas as ltimas palavras de tudo que se fala, seescreve, se pensa, tambm, o primeiroManifestoCurau/Flagrados em delito contra a noite lanado em Belm, no

    clamor dos debates suscitados pelo Congresso daSBPC/Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia, em1983.

    O que restou dele? A inveno de Andara, transfiguraoda Amaznia em regio-metfora da vida, seguiu o seu roteiro deviagem sem roteiro deriva pela vida, passo a passo, atravs decada um dos livros visveis de Andara, enquanto manifestaes do

    no-livro, o que no escrito: Viagem a Andara oO livroinvisvel.

    Se desdeA asa e a serpente, em 1979, foram os primeiroslivros de Andara que suscitaram as exigncias contidas no

    Manifesto Curau, e sua incontida manifestao pblica, a partirdo ano do seu lanamento, em 1983, os demais livros de Andarase dispuseram a realizar essas exigncias e a isso vm se doando,

    tem sido assim, at a publicao de Serdespanto, em 2001, emPortugal e s em 2006 no Brasil. AtK O escuro da semente,livro visvelque tambm apareceu primeiro em Portugal, em

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    2005, e at hoje aguarda olhos brasileiros que talvez nem seabram para ele. Mas em 2008 o mais novo Andara, o: Desnutrira pedra, novamente atravessou esta resistncia nacional.

    A essncia das exigncias que fiz a mim mesmo, antes defaz-las a outros, contidas no primeiroManifesto, continuaintocvel: trata-se, ainda, e disso se tratar sempre, da expansodo imaginrio amaznico. Tem sido ele, o Imaginrio da regio, aminha nica companhia na solitria aventura esttica e espiritualque a Viagem a Andara, esse percurso claro-escuro entre ascoisas que so e as coisas que no-so, que, tendo se iniciado a

    partir da hiptese Andara=Amaznia, chegou inverso dessahiptese originria, e atingiu o ponto, sem retorno, em que j sed, atualmente, a formulao: Amaznia=Andara. Pois durante aviagem, Andara cresceu, alm de si e alm de mim, e se expandiuem regio-metfora da vida ela toda, inteira, da terra ao cu, dasserpentes s asas mais vastas, para bem alm das coisas que aviso humana j no alcana, e apenas pr-sente, se

    territorializando como Lugar de Todos os Lugareso queequivalesse a dizer: se desterritorializando em Lugar de LugarNenhum - para alm da Via Lctea, inclusse outras galxias,outras hipteses de Ser, Andrmeda que pacientemente esperarmilhes de anos-luz para nos devorar, SupremaMutao imensa,que no caber nos limites dos nossos olhos exteriores -certamente, simest l em Silencioso como o Paraso. E quem

    sabe isso se dando por conta do alento onipresente e sutil que aela veio acrescentar o meu filho Franz, que, desde 1993, quandoum assassino impune o transformou em homem invisvel, seunome tendo sido incorporado ao meu nome, veio se tornar meusolitrio companheiro de viagem: ele L, eu ainda aqui, nesseaquizinho de nadaem que sobrevivemos ora sonhando de olhos fechados, ora

    sonhando de olhos abertos e escrevendo livros.Andara sendo um territrio que se doa ao imaginrioamaznico e a todos que dele quiserem se apossar, pois l-se em

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    sua entrada uma inscrio inversa a do Inferno de Dante, que diz: vs que entrais, trazei toda a esperana, Andara, ento, sedispondo se entregar desde sempre ao uso comum, coisas curiosas

    passaram, ainda que muito rarefeitas, a acontecer: - Rafael Costa

    Costa me pediu um dia permisso para ambientar sua novelainfantil em Santa Maria do Gro essa tosca capital arcaizada deAndara que, em sua vocao de permanncia-em-runas, de siexclui a face banal efmera de Belm do Par. - Jorge Mun sedisps a por em prticas as exigncias do primeiroManifesto eesboadas nos primeiros livros de Andara e escreveu Onde, livrodelirante que lhe agradou dedicar a mim e, bem recentemente,

    eis Nicodemos Sena brincando nos limite do exagero de metransformar em personagem areo em seuA noite dos pssaros,onde declara se inspirarno iderio proposto emFlagrados emdelito contra a noite: - Nossa Histria s ter realidade quando onosso imaginrio a refizer, a nosso favor.

    Foram sinais, sinalizaes externas, mais de que?

    As exigncias doManifesto Curau no sendo somentepoticas, mas tambm polticas, pois trata-se de uma manifestopotico-poltico, tantos anos depois ainda somos flagrados emdelito contra as nossas noites e os nossos dias, ao constatarmos,hoje, que quase nada realizamos do que aquela Voz faz tantotempo nos pedia.

    O projeto acima citado, certamente utpicomas no

    sentido estrito em que essa palavra quer se significarLugarNenhum onde, por isso mesmo, cabem Todos os Lugares - de nosapossarmos decididamente da nossa Histria pelo nossoimaginrio de homem & regio, conscientes de que toda a nossafora s provir da, ainda est muito longe de se tornar realidade,

    e o que mais grave: parece at mesmose afastar cadavez mais de ns.

    Fogos mortos, mortais, cada vez mais se acendem naSagrada & Violada Floresta,

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    mas no iluminam suficientemente a Face Oculta da nossaconscincia regional.

    Diante disso, o que resta fazer?Insistir, persistir nas exigncias doprimeiro Manifesto

    Curau, tentar fazer com que a sua primitiva Voz ainda ressoeatravs desta centelha talvez propiciatria a umsegundo

    Manifesto Curau, ou no, e que ela encontre acolhida nos ouvidosdas novas geraes e se transfigure em prtica cotidiana do ato desonhar em estado de viglia.

    sobretudo a essas novas geraes, que hoje tm a idadeque meu filho Franz tinha quando ainda estava visivelmente entre

    ns, homens, que cabe soprar apaixonadamente o Real e fazerreacender o Fogo das Cinzas.A vocs cabe a misso, o passo insurrecto.Quantos ousaro?Ou do o passo em falso que a vida exige de ns, para

    alm ou aqum dos limites que uma civilizaoagonizante quer impor ao ser humano, ou s lhes restar fazer a

    triste opo de se tornarem herdeiros da nossa impotnciaregional.Parem um instante as agitaes vazias. Olhem ao redor,

    observem, olhem principalmente dentro de vocs mesmos.Se instalem, por alguns momentos, entre o vazio que se

    abria para ns em 1983, ano em que muitos de vocs nasceriam, eo vazio que perdura neste ano de 2009, quando oManifesto

    Curau se atira novamente ao mundogritando suas denncias,pregando a sua f.Se vocs pararem

    realmente para observar,

    no como habitualmente:o Cu da Terra,

    mas insolitamente: aTerra do Cu,

    (2)

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    vero que a Amaznia, apesar de seus torturadores & deseus filhos indiferentes, ainda o espao que, aqui embaixo,enquanto todos dormimos os nossos sonos alienados, reflete &dialoga com as estrelas

    e, mais atrs delas, com o Oculto Negror de Onde emanatoda a luz.

    Nos recusemos s Cinzas.Cintilemos.Tentemos, ainda uma vez, permanecer no lugar mgico em

    que a vida nos lanou.Ns ainda estamos pulsando no Corao da Luz.

    VFCBelm, Amaznia, BrasilMaro/2003

    Viagem a Andara oO livro invisvel

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    NOTAS

    (1 ) O pssaro Curau sobrevoou Andara pela primeira vez no livro visvel Os jardins e a noite, de1981, dois anos antes do lanamento doManifesto Curau.

    (2) O que est solto e o que est preso, ou mercrio e enxofre sob a imagem de uma guia e de umsapo.D. Stolcius v. Stolcenberg, Viridarium chymicum, Frakfurt, 1624.

    O AUTOR & A OBRA

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    Vicente Franz Cecim nasceu na Amaznia, em Belm do Par,no Brasil.

    No caldeiro de uma escritura emabsoluta liberdade,

    a literatura como alquimia abole as fronteiras entre a prosa e apoesia, funde o natural e o sobrenatural, o profano ao sagrado, e se

    lana em intensa busca do sentido metafsico do ser e da vida.Em 1979, comA asa e a serpente, iniciou uma longa obra que at hoje

    continua criando: Viagem a Andara oO livro invisvel, em que

    transfigura a sua regio natural, a Amaznia,em Andara: uma regio-metfora da vida em que o sobrenatural emerge

    em epifania. onde ambienta todos os seus livros.Andara sendo a Amaznia vista com olhos

    mgicos, como j foi dito, tambm literatura fantstica, mas medidaque individualmente os livros visveis de Andara vo sendo escritos,deles surge o livro invisvel,que j literatura fantasma, segundo o

    autor, o no-livro, que no escrito: corpo de um corpo que se sonha.

    Em 1980, o segundo livro individual de Andara, Os animais daterra, recebeu o Prmio Revelao de Autor da Apca Associao

    Paulista de Crticos de Arte.Em 1981,A noite do Curau, primeira verso do terceiro livro de

    Andara, Os jardins e a noite, recebeu Meno Especial no PrmioPlural, no Mxico.

    Em 1988, Viagem a Andara, o livro invisvel(Editora Iluminuras, So Paulo) reunindo os 7 primeiros livros deAndara recebeu o Grande Prmio da Crtica da Apca.

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    Em 1995, Cecim publicou Silencioso como o Paraso(Iluminuras, So Paulo)reunindo mais 4 livros individuais de Andara.

    Em 2001, quando a inveno de Andaracompletou 22 anos, publicou Serdespanto (man Edies, Lisboa)

    com 2 novos livros de Andara, apontado pela crtica portuguesa comoum dos melhores livros do ano.Em 2004 relanou, em verses finais, transcriadas, os 7 primeiros livrosde Andara reunidos nos volumesA asa e a serpente e Terra da sombra

    e do no (Editora Cejup, Belm).Em novembro de 2005, publicou seu primeiro livro em Iconescritura,

    tambm em Portugal:K O escuro da semente(Ver o Verso, Maia).Em 2006, saiu a edio nacional de Serdespanto (Bertrand Brasil,

    Rio).Por ocasio da publicao dos seus primeiros livros, o autor declarou:Prefiro interrogar os limites

    e a existncia da prpria literatura. E insinuar, para alm daliteratura fantstica,

    o advento de uma literatura fantasma.E, em recente entrevista, disse: O natural

    sobrenatural, o sobrenatural natural. Foi o que o

    Andara me revelou. J no fao Literatura: fao Escritura.O passo mais recente de Cecim em Andara, atravs da carncia das

    palavras, que o levou a eleger a forma hbrida de escritura e imagemque denominouIconescritura,

    resultaram tambm os livros o: Desnutrir a pedra, lanado pelaTessitura em 2008, e o inditoBreve a febre da terra.

    Seu mais recente livro visvel Fonte dos que dormem, cantos/poemaseditado encartado no livro Do abismo s montanha, organizado pelo

    Museu Vale (Esprito Santo, 2010).