malba tahan mil histórias sem fim vol.i

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Malba Tahan Autor de O HOMEM QUE CALCULAVA '1lb1 'Jtístór~ ;. @ EDIÇÃQ:)

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Malba TahanAutor de O HOMEM QUE CALCULAVA

'1lb1'Jtístór~;.@ EDIÇÃQ:)

~...

CIP-Brasil. CatalogaçAo-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros. RJ

Tahan. Malba. 1895-1974.T136m Mil histórias sem fim: contos16. 00. orientais / Malba Tahan; prefácio por

Humbeno de Campos; tradução e notasdo Prof. Breno de Alencar Bianco. -16~00. - Rio de Janeiro: Record. 1991

I. Ficção brasileira I. Bianco. Brenode Alencar I. Titulo

CDD - 869.93585-0729

Ccpyright @ 1985by Nair de MeDoe Souza

Ilustração e Capa: MÁRIO PACHECOTradução e notas do Prof. Breno de Alencar Bianco

Direitos exclusivos desta edição reservados pelaDISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A.

Rua Argentina 171- 20921 Rio de Janeiro, RJ - Tel.: 580-3668

Impresso no Brasil

PEDIDOS PELO REEMBOLSOPOSTALCaixa Postal 23.052 - Rio de Janeiro, RJ - 20922

As Mil HistóriasSem Fim

HUMBERTO DE CAMPOS

Os povos, como os individuos, têm na in-fância predileções pelas histórias imaginosase movimentadas. Por isso mesmo, essa pre-dileção constitui o alicerce de todas as litera-turas. Homero é a pedra angular da literaturagrega. As literaturas modernas assentam, to-das, em poemas épicos e ingênuos de fundomedieval. Enquanto, porém, no Ocidente, es-se gênero literário assinala apenas um pontode partida, um povo, as gentes de lingua eraça árabe, levantaram com ele o mais altoe vistoso dos seus monumentos. Debaldepoetas como EI-Antari e Ibn-Fared; historia-dores como Tabari e Abul-Feda; geógrafoscomo Ibn-Djobeir e Bekri; eruditos como Ka-liI e Ibn-Doraid meditaram, estudaram e es-creveram, produzindo poemas e tratados delargo fôlego, expressão de um alto mérito in-telectual; o que ficou, espantando o mundo

e vencendo os séculos pela opulência da ima-ginação e pela harmonia da feitura, foi umaobra anônima, uma coletânea folclórica de ri-queza incomparável, captada diretamente namemória laboriosa do povo. O Homero desta"Odisséia" tem o nome que Ulisses deu a Po-lifemo na sua fuma das vizinhanças do Etna.Chama-se "Ninguém".

Poder-se-ia,talvez,atribuir esse fato a umfenômeno de ordem politica, à paralisação, ouinterrupção, da evolução do povo árabe emhora matutina da sua história após a Héjira.Preenchendo o intervalo da civilização entrea queda do mundo romano e a Renascença,mas começando tarde e terminando cedo, ogênio árabe descrevia - poder-se-Ia dizer -a mesma trajetória que haviam realizado o gê-nio grego e o gênio latino, e realizariam maistarde os povos ocidentais, quando o desmo-ronamento do seu Império o deteve em ple-na ascensão. A verdade, porém, é que a obraque ele deixou corresponde, integralmente,às aspirações da alma nacional.

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A caracteristica principal da alma asiáticaestá, em verdade, na sua capacidade de re-núncia à realidade. na sua tendência perma-nente para o sonho, no predominio, em su-ma, da imaginação. Enenhum povo no Orien-te. exceção do chinês, que vai até a elimina-ção da personalidade, é mais meditativo queo árabe. Isso, mais do que as circustânciashistóricas, contribuiu para que ele fizesse doconto fantástico a sua fórmula literária prefe-rida. E como os contos são leves, e as via-gens eram longas, adotaram eles as históriasinfindáveis como as travessias surpreenden-tes como o deserto, as narrativas, compon-do assim coletâneas opulentas, equivalentespela novidade e frescura das criações, àsgrandes obras da literatura do Ocidente.

Não obstante o esforço tenaz de Mustafá-Kemal, na Turquia, e de alguns prepostos eu-ropeus, simuladamente nacionalistas, queexercem a ditadura nos paises de gênio ou delingua árabe, para isolar da velha Asia tradi-cional a região que vai da fronteira oriental daPérsia aos Dardanelos e ao canal de Suez, onarrador de histórias sobrevive, e é ainda umadas manifestações mais resistentes e carac-teristicas de uma civilização amável que seprocura destruir. Antes da revolução que vemsublevando a Asia e que subdividiu o antigoimpério otomano, não havia aldeia que nãopossuisse o seu contador de lendas, que cor-respondia aos nossos cantadores sertanejos,com a diferença, apenas, de ter aquele umcampo mais vasto, consubstanciado numatradição mais rica, de gosto mais puro. Cida-des havia em que essesrapsodos se reuniam,

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formando associações de classe, nas quaiseram contratados para festas e estabeleci-mentos de diversões. Cairo, Damasco, Ismir-na, Constantinopla possuiam corporaçõesdessegênero, dirigidas por um deles, de maiorautoridade, o qual tinha o titulo de xeque-el-medah, que significa "chefe dos contadoresde histórias". É um espetáculo curioso - es-crevia Hammer, há oitenta anos - é um es-petáculo curioso acompanhar as impressõesque as histórias produzem na alma ardente eapaixonada dos árabes... Conforme a palavracredenciada do narrador, os ouvintes se agi-tam ou se acalmam. A cólera violenta suce-dem os sentimentos mais ternos; os risos es-tridentes são seguidos, não raro, de prantose lamentações.. Se o herói de um conto éameaçado de perigo iminente, os ouvintes ex-clamam em coro:"La, Ia, Ia, estagfer Allahl"("Não, não, não, Deus não consentirál")Quando um bandido dissimulado ou um ami-go desleal prepara uma das suas ciladas, sur-gem logo, de todos os lados, as imprecações:"Que Cheitã (o Demônio) castigue o traidorl"Se o herói do conto é um bravo e tomba emcombate, seguem-se as expressões com quesão homenageados os mortos: "Que Deus oreceba na Sua misericórdial Que Deus o te-nha em pazl" Ese o narrador fala de uma mu-lher formosa, cfauditório exalta-se, como sea tivesse diante dos olhos: "Glória a Deus quecriou a Mulherl Exaltado seja o Altissimo quecriou a Beleza e a Mulherl"

Já no século XX, Mardrus, francês deConstantinopla, que se criara entre árabes,externava essa mesma impressão: "Todo ar-

tista que viajou o Oriente", escreveu este, noseu estilo das Mil e uma Noites, "todo artistaque viajou o Oriente e tomou lugar nos ban-cos calados dos adoráveis cafés populares dasverdadeiras cidades muçulmanas e árabes: no.velho Cairo, de ruas cheias de sombras e per-manentemente frescas, em Damasco, em Sa-na do lêmen, em Bagdá ou Mascate; todoaquele que dormiu na esteira imaculada dobeduíno da Palmira, ou partiu o pão e sabo-reou o sal fraternalmente na solidão gloriosado deserto, com Ibn-Rachid, o suntuoso, ti-po inconfundível do árabe autêntico ou, ain-da, se deteve a estudar uma palestra de sim-plicidade antiga do puro descendente do Pro-feta, o xerife Hussein-AIi-ben-Aun, emir deMeca, pôde notar, com certeza, a expressão.das pitorescas fisionomias reunidas. Um sen-timento único domina toda a assistência; umahilaridade louca. Ela flameja com vitais esta-lidos ante as descrições do narrador públicoque no centro do café ou da praça gesticula,move-se, passeia ou brinca, para dar maiorexpressão à narrativa no meio dos especta-dores risonhos... E apodera-se de vós outrosa geral embriaguez suscitada pelas palavrasou pelos sons imitativos, e vos sentis comose fôsseis navegantes aéreos na frescura danoite..." E Mardrus concluiu: "O árabe não

é mais do que um instintivo apurado, esqui-sito. Ama a linha pura e a adivinha com a suaimaginação, quando irreal. E sonha..."

O árabe vive, assim, a vida da sua imagi-nação. Para ele, os heróis das suas narrati-vas são reais e palpáveis. E essa facilidade emconfundir a realidade com a concepção dos

sentidos é que explica o surto prodigioso doislamismo no dia em que um homem, apro-veitando o poder sincrético dessas imagina-ções ardentes, as pôs em ação para levar a .efeito uma formidável obra religiosa e política.

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As histórias em séries, isto é, os contos queterminam com a "deixa" para outro e que for-mam, assim, uma interessante cadeia de nar-rativas variadas e unidas, constituem o maisrico e duradouro patrimônio das literaturasorientais. As Mil e uma Noites, que se intitu-Iam no original Kitab elf leila wa leila, não sãomais do que uma vaga de um oceano largo,a folha de uma árvore que os ventos da Ará-bia lançaram às terras do Ocidente. Investi-gações feitas no século XIX deixaram evidenteque essa coletânea, revelada à Europa, inicial-mente, em 1708, por Antoine Galland, secun-dado, em diversas épocas, por Petit de LeCroix Caussin de Perseval, Edouard Gaultiere Mardrus, na França; por Payne, Burton eLane, na Inglaterra; e por Habiche, Fleischere Zotemberg, na Alemanha, não é mais doque um pequeno ramalhete de histórias tra-zidas pelas caravanas árabes da China, da In-dia e da Pérsia, no século X, e que foi al/olu-mado com as criações da imaginação nativae com os episódios históricos desfigurados eenfeitados pelo tempo. Muitas dessas histó-rias provieram, todavia, já de outras coleções,assim como outras coleções se abasteceram,mais tarde, nas Kitab elf leila wa leiIa.

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A liberdade de compilações e o acolhimen-to que tinham os povos em todo o Oriente,especialmente entre os povos de língua e ori-gem arábica, eram motivos para multiplicaçãoe desenvolvimento dessas coletAneas. Na opi-nião de Massudi, que viveu no século XI e foium dos escritores mais viajados do seu tem-po, as Mil e uma Noites foram tiradas das He-zar Afsaneh (Mil Histórias). Esta última obra,segundo se afere de uma referência que a elafaz Ferduzzi no prefácio do Schanameh (Li-vro dos Reis), é atribuída a um poeta persa,Rasti, que teria vivido na segunda metade doséculo X. Massudi tem realmente razão.Scherazade e Dinazade estão com os seus no-mes persas nas Hezar Afsaneh. Mas a Pérsiajá as recebeu da índia, segundo concluiuHuart. A convicção a que se chega é, pois,a da origem indiana das Mil e uma Noites eo seu enriquecimento gradual, na Pérsia e naArábia. É sabido que, ainda no século XVIII,os árabes incorporavam contos novos, de as-sunto contemporâneo, à sua famosa coletâ-nea. As circunstâncias de serem encontradas

narrativas iguais em obras do mesmo gêneropublicadas um século antes não demonstra-vam senão a origem comum dessas mesmashistórias, e que os colecionadores se haviamabastecido na mesma fonte, que é a imagi-nação ou a memória do povo.

Obedecem a esse mesmo espírito forman-do conjuntos de histórias seriadas, o "Tuti-nameh" ("Contos de um Papagaio"), o "Dsa-Kaumara- Tcharita" ("Trinta e Dois Contos deTrono"), os "Contos de Nang-tantrai" e as"Fábulas de Kalliba e Dinna", coligidas umas

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na India, outras na Pérsia, mas tendo, todas,repercussão na Arábia. Convém citar, entre-tanto, mais particularmente, as "Fábulas deBidpai", "Pandchatantra" e as "Fábulas deLocman", em que se acham algumas que sDosimples modalidades de contos das Mil e umaNoites. Outras dessas fábulas já se encontramem Esopo e serão encontradas, mais tarde,em La Fontaine. .

Merecem referência, ainda, o "Katha-Sacrit-Sagara" ("Oceano Infindável dos Con-tos") e a coleção mais conhecida por "MiI eum Dias" ("Hearick-Rouz"). A primeira des-tas obras data, segundo se supõe, da primei-ra metade do século XI, entre os anos de 1059e 1071. O autor dessa compilação, o brâma-ne Samodeva, confessa que a fez para dis-trair a avó de Acha-Dina, rei da Caxemira.Servida de coração piedoso, mansa de ma-neiras, amiga dos brâmanes, devota de Sivae dedicada esposa, essa veneranda senhoraprecisava de distrações honestas e tranqüilas.Daí o trabalho que ele, Samodeva, realizounaquele longínquo século XI, e que chegouvitoriosamente ao nosso. Os "Mil e um Dias"datam, porém, do século XVIII. São atribuí-dos a um dervixe de Ispahan. A divisão a quehoje obedece é, no entanto, obra de ociden-tais. Há, ainda, a assinalar a "Hipopadexa"("Instrução Útil"), coleção de fábulas, após-tolos e contos morais da índia, que se acre-dita organizada no século XII, mas que já é,por seu turno, uma imitação ou, antes, umresumo do "Pantchatantra" de Bidpai. O"Pantchatantra é, aliás, o mais opulento ma-nancial de fábulas e apólogos da antiguida-

de, /I ou 111século da nossa era, sendo quealguns desses apólogos - acentua GeorgesFrilley - serviram de modelo aos fabulistasde todos os tempos e de todos os países.

As Mil e uma Noites foram literariamenteconhecidas no Ocidente, dissemo-Io, já no pri-meiro decênio do século XVIII. Mas a sua in-

fluência, ou a das coleções do seu gênero, jáse havia feito sentir muito antes. Que são, naverdade, o "Decameron", de Boccacio, as"Trecento Novel/e", de Franco Sacchetti, o"Peccorone", de Giovanni Fiorentino, e o"Heptameron", de Margarida de Navarra, se-não contos concatenados, como os das co-letAneas do Oriente? A Itália, com os seus na-vegantes genoveses e venezianos, foi a pri-meira, naturalmente, a conhecer na Europaesse tesouro da imaginação asiática. Pode-se;ainda, encontrar aquela influência em épocasmais recentes em Hurtado de Mendoza, emLesage e mesmo em Dickens e em alguns es-critores ingleses que lhe foram contemporA-neos. Estes, como se sabe, costumavam in-tercalar nos seus romances pequenos contosdecorativos mais ou menos ligados ao assuntocentral, conforme se vê, por exemplo, no"Pickwick". Quanto às imitqções, ou melhor,às mistificações, estas proliferam, conformeo gosto e os costumes do tempo. EnquantoBarthelémy inventava a "Viagem do JovemAnacharsis na Grécia" (1797), Macphersoncaluniava Ossian com os "Contos Gaélicos"(1760) e o abade Desfontaines contrafaziaSwift, escrevendo o "Novo Guliver" (1741),Guilette publicava os "MiI e um Quartos deHora", contos tártaros; as "Aventuras Mara-

vilhosas do Mandarim Fum-Hoan", contoschineses; e "As Sultanas de Guzarat", con-tos mongóis, aproveitando para isso os assun-tos das "Noites Alegres", de Straparola deCaravage, novelista italiano do século XV. Da-tam, também, da mesma época, os "NovosContos Orientais", de Cylus, e "As Aventu-ras àe Abdalah, Filho de Hanif", do abadeBignon.

O gênero literário que fez a glória das le-tras árabes, e que foi o melhor instrumentoda divulgação do gênio da raça, é, assim, umaárvore que tem o seu tronco no Oriente, mascujas folhas são lançadas, hoje, a todos osventos da terra.

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Ao Sr. Malba Tahan - cujo nome é, atual-mente, um dos mais vulgarizados e discuti-dos das nossas letras, e cujos contos, espa-lhados por todo o Brasil e admirados em to-do ele, são transcritos literalmente em todaa imprensa de língua portuguesa e traduzi-dos em outras deste continente e da Europa- cabe a glória de haver sido, entre nós e,creio mesmo, na América do Sul, o primeiroescritor de gênio árabe. A sua obra, iniciadaem 1925, com a publicação dos Contos, con-quistou, de pronto, a mais vasta popularida-de. Céu de Alá, Amor de Beduíno e Lendasdo Deserto completaram a sua personalida-de de prosador oriental, definindo-a eincorporando-a, com relevo notável, ao que

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se podia cnamar a "Legião Estrangeira" dosnarradores árabes espalhados hoje pelomundo.

A formação oriental do espfrito geografica-mente brasileiro do Sr. Malba Tahanpodia serobjeto, evidentemente, de uma pesquisa deFreud. Trata-se, civilmente, de um homemque nasceu no Brasil, de um engenheiro como seu titulo cientffico brilhantemente conquis-tado em nossa Escola Politécnica, membro deantiga e ilustre famflia brasileira. Entretanto,o Sr. Malba Tahan tem uma figura de árabe;surgiu para as letras tendo no pensamento osdesertos, as tamareiras, as tendas estreme-cendo ao vento, sacudidas pelas tempestadesde areia. E quando abandona as terras bár-baras e familiares do seu sonho, é paraconsagrar-se na vida prática ao estudo e aoensino das matemáticas, que constituem, co-mo se sabe, uma ciência árabe, ou, pelo me-nos, que o árabe tomou como sua. Quantosséculos terão dormido no sangue deste legf-timo descendente de portugueses os hormô-nios da sua longfnqua procedência semita?Porque só agora, ao fim de tantas gerações bra-sileiras do mesmo ramo lusitano, surgiu, pa-ra a atividade da inteligência, este mouro queos árabes deixaram na península Ibérica, e quede repente acorda como a princesa adorme-cida no bosque, ou como aquele monge queescutava o pássaro encantado, com as mes-mas tendências de espfrito, como se tivessechegado ontem de Basra ou de Bagdá?

A esseárabe do Brasil estava destinada, to-davia, a realização de um dos maiores em-preendimentos das literaturas orientais por-

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ventura tentados fora do Oriente. É propósi-to seu dotar as nossas letras brasileiras e, aomesmo tempo, as letras árabes, com uma co-letânea no gênero das "Mil Histórias", e queterá a denominação de Mil Histórias sem Fim.Serão contos de inspiração oriental, ligadosentre si, mas constituindo, como naquelasgrandes coleções do Oriente, narrações iso-ladas pelo assunto. Serão, diria um árabe, co-mo um soberbo colar de mil pérolas, mas usa-das cada uma separadamente. Serão, final-mente, uma grande jóia formada por um mi-Iheiro de jóias miúdas.

Essepensamento contém o programa pa-ra toda uma vida, inicia-se agora o autor, coma polimorfia do seu talento, e o gosto, e a al-tura, e a febre de espfrito, e o entusiasmo fes-tivo, e a imaginação viva, com os atributos,em suma, que se requerem para empresa tãopesada e tão longa. Levá-Ia-á ele a termo?Não esmorecerá em caminho? Descerá esteperegrino do seu camelo antes de divisar nohorizonte os santos minaretes de Meca?

Ninguém pergunta à caravana qual será oseu roteiro no areal. O deserto, como o ocea-no, tem rumo mas não tem estradas. E eu,vendo partir este bedufno atrevido e cheio defé, e sabendo que já não estarei vivo quandoele voltar, mas certo de que fará vitoriosamen-te a travessia - eu, pondo as mãos trêmulassobre a sua cabeça turbilhonante de sonho,limito-me a como um xeque quase cego quejá não vê o fogo diante da própria tenda dar-lhe a voz de partida, lançando-lhe a bênçãopatriarcal em nome da nossa tribo:

- Alá te conduza, filho do deserto! Equeas fontes dos oásis dêem água límpida paraa tua sede e, à tua chegada, abram no alto,

para o teu repouso, um verde teto de folhae estendam, no chão, para o teu sono, umfresco tapete de sombras.

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OLAva BILAC

Numa vida anterior, fui um "xeque" macilentoE pobre... Eu galopava, o albornoz solto ao vento.Na soalheira candente; e, herói da vida obscura,Possuia tudo: o espaço, um cavalo e a bravura~

Entre o deserto hostil e o ingrato firmamento,Sem abrigo, sem paz no coração violento.Eu namorava, em minha altiva desventura,As areias na terra e as estrelas na altura.

As vezes, triste e só, cheio do meu desgosto,Eu castigava a mão contra o meu próprio rosto,E contra a minha sombra erguia a lança em riste...

Mas o simum do orgulho esfumava o meu peito;E eu galopava, livre, e voava, satisfeitoDa força de ser só, da glória de ser tristel

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Em nome de Alá, Clemente e Misericordioso

Na página seguinte (se Alá quiser!) vão ter ini-cio as prodigiosas lendas que constituem o li-vro das MIL HISTÓRIAS SEM FIM...

Recordai, irmão dos árabes! antes de seriniciada a leitura da primeira linha, recorda i,inspirado pela vossa cativante generosidade,os versos famosos do poeta:

A pérola, que é uma das coisasmaispreciosas deste mundo, nada perdeem seu valor por causa da condiçãovil do pescador.

E mais:

Tudo, exceto Deus, é perecivel eefêmero; a verdadeira perfeição sóexiste em Deus!

Lembrai-vos,portanto,meuamigo,que eunada sou, nada tenho, nada posso e nadapretendo.

Allah badick, ya sidil (Alávos conduza,senhor!)

MALBA TAHAN

Bagdá, 5 da Lua de Moharrã de 1309.

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1~ Narrativa

História singular de dois reisamigos e das tris-tes conseqüências de uma aposta extravagan-te entre eles firmada.

Das MIL HISTORIASSEM FIM... é esta aprimeiral

Lida a primeira restam, apenas, novecentase noventa e nove...

Estavaescrito que o generoso Soleiman, reide Bássora, e o grande Ismail, rei de Kabul,seriam amigos inseparáveis apesar da diver-sidade completa de gênio e caráter que os de-veria desunir.

Soleiman, apelidado pelos árabesAI-Adl (oJusto), era um dos monarcas mais bondosose tolerantes que hão reinado. Preocupava-seexclusivamente em socorrer os infelizes e dis-tribuir justiça entre os seus súditos. Incapazde praticar violência ou ato de tirania, o reiSoleiman chegava muitas vezes a adoecerquando, pela força das circunstâncias, eraobrigado a assinar uma sentença de morte.

Exatamente o contrário era o rei Ismail, quesempre se mostrava impiedoso e perverso.Sua preocupação constante era inventar cas-tigos, perseguir os humildes e guerrear as tri-bos fracas e inofensivas. O rei Ismail (Alá secompadeça dele!) jamais praticou um ato declemência ou generosidade I

Não impedia o antagonismo de gênios que

esses dois monarcas se ligassem pelos laçosda mais pura amizade. Freqüentemente o reiIsmail deixava o seu palácio de Kabul e vinhacom grande caravana, através da Pérsia, emvisita ao seu amigo dileto Soleiman, ao ladode quem se deixava ficar muitos meses esque-cido de seu povo e de seu trono.

Um dia achavam-seos dois em amistosapalestraquando o rei Soleiman - que nãoperdia oportunidade para exaltar as boas qua-lidades de seu povo - contou ao rei Ismailque os árabes eram muito imaginosos paraengendrar histórias. Qualquer pessoa - domais sórdido mendigo ao mais rico vizir - sa-bia narrar lendas e contos maravilhosos queprendiam a atenção dos espíritos mais aves-sos a este gênero de devaneio.

- Não acredito - contraveio o rei Ismai!.- Há de perdoar, mas não creio que os seussúditos possuam imaginação tão fecunda ebrilhante!

Pois eu insisto no que afirmo - retor-

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nou o rei Soleiman. - E se quiseremumaprova do que assevero, nada mais simples: davaranda deste palácio chamarás um homemqualquer que passe ao alcance do teu apelo.Veremos se ele, seja quem for, não será ca-paz de narrar-vos uma história interessante,digna de ser ouvida pelos mais altos cultos eexigentesl

- Aceito a proposta - acudiu, em tomsombrio, o soberano de Kabul. - Exijo, po-rém, uma condição: se o súdito chamado nãosouber contar-nos uma história ou uma ane-dota qualquer, será degolado, aqui mesmo,em presença de todos nós.

Depois de meditar um momento, respon-deu o bondoso rei Soleiman:

- Concordo plenamente com a exigência.Quero porém uma compensação: se a pessoaaqui trazida deliciar-nos com uma narrativa in-teressante e atraente, receberápor tua ordem,do tesouro de Kabul, uma recompensa dedois mil sequins de ouro!

- Declaro que aceito a aposta não obstan-te a condição - assentiu o rei Ismail. - Seo árabe, o que é pouco provável, distrair-noscom uma história digna de ser ouvida por umapessoa nobre e culta, receberá de mim o va-lioso prêmio que acabas de estipularl Palavrade rei. - Eacrescentou enérgico: - Não dis-pensarei, entretanto, a punição tremenda sealguém nela incorrer, confessando-se incapazde narrar a história pedida I

Os nobres que se achavam no salão, infor-mados da singular aposta dos dois soberanos,ficaram grandemente interessados em ver-lheo desfecho.

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A fim de que fosse feita a escolha do heróianônimo que desempenharia, no caso, o pa-pel mais importante, os dois monarcasaproximaram-se da larga varanda do palácioe começaram a observar os populares que ca-minhavam pelas ruas despreocupadamente.

A atenção do rei Ismail foi despertada porum árabe que se dirigia apressado, de,cabe-ça baixa, em direção do Eufrates.

- Quero ouvir aquele que ali vai! - de-clarou o rei Ismail. - Que o tragam já à nos-sa presença.

Transmitida a ordem a um dos oficiais dopalácio, o transeunte foi imediatamente leva-do ao palácio real e conduzido à presença dossoberanos.

O desconhecido que por infelicidade atraíraa atenção do 'perverso rei de Kabul era ummuçulmano' de vinte anos talvez. A fisiono-mia serena, o olhar suave e terno refletiam ni-tidamente o homem bom e leal. Vestia-se comapurado gosto e a maneira delicada e respei-tosa como saudou os soberanos e os nobresmaometanos denotava pessoa de fino tratoe, certamente, de elevada posição social.

- Jovem muçulmanol - começou o reiSoleiman. - Pedi que viesses à minha pre-sença porque preciso do teu precioso auxi-

1 - Muçulmano - nome derivado de mauslim,"aquele que se resigna à vontade de Deus". Os muçul-manos são os que seguem a religião de Islã, fundada porMafoma em 672. O islamismo apresenta cerca de 240 mi-lhões de adeptos, isto é, 14% da população total do glo-bo. Islã, forma derivada do verbo as lamas, significa con-fiar cegamente, resignar-se. O substantivo Islã designaigualmente o conjunto de paises muçulmanos.

lio para vencer uma aposta, aliás simples, queacabo de fazer com o meu amigo, aqui pre-sente, Ismail, rei de Kabul. Vais ser submeti-do a uma prova, e tamanha é a certeza de quete sairás dela com garbo, que não tive dúvi-das em aceitar a proposta do meu antagonis-ta. As condições impostas são estas: se con-tares aqui, diante de todos nós, uma históriainteressante e atraente, receberás dois mil se-quins de ouro; se a tua narrativa não for denosso agrado nada receberás e voltarás co-mo vieste; se, finalmente, por uma fatalida-de, e nisso eu não acredito, não souberescontar-nos história alguma, serás, por ordemdo rei Ismail, degolado imediatamente.

Fez-se no grande salão do palácio de Bás-sora profundo silêncio. Reis e nobres tinhamos olhares voltados para o jovem que pareciaencarar a situação com calma e coragem.

- Vamos - ordenou em tom amistoso orei Soleiman. - Podes começar a tua narra-tiva. Estamos ansiosos por ouvir a encanta-dora história que nos vais narrar para conquis-ta do prêmio e vitória de minha aposta.

- Rei generosol - respondeu o moço. -Que Alá vos conserve feliz até o fim dos sé-culos. Peço-vos perdão, mas não posso aten-der ao vossopedidol - E, diantedo pasmogeral dos ouvintes, acrescentou: - sinto-meforçado a confessar que não me lembro dehistória alguma digna de ser narrada a tão se-leto auditório.

O rei Soleiman ao ouvir a inesperada res-posta pôs-se pálido de espanto. O bondosomonarca não podia esperar num jovem, queparecia educado e culto, tão completa ausên-

cia de um bem comum aos árabes de qual-quer classe social.

O rei Ismail sorriu satisfeito diante da infe-licidade do moço.

- Pensamelhor,meurapaz- aconselhouo rei Soleiman. - Não te constranja o fala-res diante dos que aqui estão. Nem te queromal e desejo que te saiasbem desta prova quenada tem de penosa para um filho do Islã. Senão te lembras de uma história conta-nos umcaso qualquer ocorrido com algum amigo teu,um incidente digno de nota, ou mesmo umaanedota, por mais breve Queseja, para te de-sembaraçares do aperto em que, sem querer,te pus.

- Attal Allah unnak ia maulayl (Que Aláprolonguea tua vida, ó rei!) - respondeuorapaz. - Peço-vos humildemente perdão, óemirl Eu não sei de caso algum ocorrido comamigo meu, nem conheço a mais simples ebanal anedota I

- Narra-nos, então, um episódio qualquerde tua vidal - volveu o rei Soleiman aflitoe já temeroso da sorte do pobre muçulmano.

- Rei afortunadol - retorquiuo jovem,com serenidade e segurança. - Não me vemà mente,no momento,episódioalgumdami-nha vidal

- Nãovalea penainsistir,ó Soleimanl-interveio friamente o rei Ismail. - Chama lo-go o teu carrasco. Perdeste, positivamente,a aposta. - E, num riso cheio de perversida-de, acrescentou: - Bem te dizia, vaidosoamigo, que teus súditos não têm as idéias ea imaginação que supunhasl Por tua culpa vai

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este "jovem silencioso" entregar o pescoçoao alfanje do nosso Massuf.

- Nem tudo está perdido - retorquiu orei Soleiman. - Vou fazer a última tentativa.

E, voltando-se para o jovem que se conser-vava de pé em atitude respeitosa, tranqüiloe indiferente, assim falou:

- Meu filhol Não quero absolutamenteque por um mau capricho do rei de Kabul so-fras o castigo de mortel Ficarei penalizadíssi-mo se for obrigado a cumprir o juramento quefizl Em desespero de causa faço um últimoapelo à tua imaginação: conta-nos um casoou um episódio qualquer, inventado ou não,possível ou inverossímill- Ejulgando,talvez,que seu apelo não fosse bem compreendidopelo jovem, ajuntou: - Se. por qualquer mo-tivo, não quiseres fazer a tua narrativa em pro-sa, poderás, sem o menor receio, usar a lin-guagem admirável dos poetas - o versol Da-rás, se inspiração tiveres, forma poética a umadas lendas ou tradições populares de nossopaís. Duplo será o nosso prazer em ouvir-te.Não há, realmente, um árabe inteligente quenão se arrebate e não se comova ao se deli-ciar com um conto aprimorado pelas irresis-tíveis seduções da poesia. Se estás triste, es-quece, por um momento, as tuas tristezas.Escuta o conselho do poeta:

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As tristezas desta vidaEu as deixo e abandono:De dia, por muita lida;De noite, por muito sono/2

Muito agradeço a vossa bondade e o in-teresse generoso que mostrats pela minha hu-milde pessoal É, entretanto, com profundamágoa, que me vejo mais uma vez obrigadoa declarar que estou completamente deslem-brado de qualquer caso ou do mais vago epi-sódio verídico ou fantástico. Cabe-me muitobem o apelido que há pouco o rei Ismaillem-brou para mim. Sou, infelizmente, o "JovemSilencioso" .

Compreendendo o rei Soleiman que o mo-ço - ao contrário do que era de se esperar- obstinava-se em não fazer narrativa algu-ma, muito a contragosto fez com que um dosulemás3da corte lavrasse, segundo determi-nava a lei, a sentença de morte.

Foi chamado, então, o gigantesco Massuf,carrasco de Bássora, que raras vezes exerciao seu execrando ofício.

2 - Estatrova é de BastosTigre.

3 - Ulemá- vocábuloderivadodoárabeUIamá,plu-ralde Alem. Significasábio, douto, erudito.(B.A. B.I

2~ Narrativa

Continuação da história dos dois reis amigose do "Jovem Silencioso" que não sabia contarepisódio algum de sua vida. Como surgiu umsábio rabi e o caso misterioso que depoisocorreu.

Das MIL HISTORIASSEM FIM... é esta asegundal

Lida a segunda restam, apenas, novecentase noventa e oito...

Chegado o carrasco, iniciaram-se os prepa-rativos para a execução.

Um dos juizes mais ilustres de Basra leu emvoz alta a sentença do rei Soleiman,justificando-a com algumas citações do livrode Alá.' Foi ela ouvida por todos os religio-so silêncio.

O ajudante do carrasco começou, em se-guida, a tirar as vestes do condenado, que de-veria ficar vestido com um pequeno calção.

Descobriu o algoz que o desditoso jovemtrazia ao pescoço, presa por uma corrente deouro, uma pequena medalha quadrangular.Massuf arrancou-a e foi entregá-Ia ao rei, queverificou tratar-se de uma curiosa peça com

1 - Livrode Alá - denominaçãodada ao Alcorão,livro sagrado dos muçulmanos, composto de 114 capí-tulos, ou suratas, divididos em versículos. Segundo acrença dos árabes, foi revelado por Deus a Mafoma porintermédio do arcanjo Gabriel. (B. A. B.I

a forma de um losangoem que se percebiacomplicada inscrição em caractereshebraicos.

- Jovem e desditoso muçulmanol - ex-clamoupesarosoo reide Bássora. - Apesardos esforços que fiz em teu favor, foste con-denado. Poucos momentos te restam de vi-da. Dentro de alguns minutos comparecerásdiante d'Aquele que é o Juiz Supremo de to-dos nós! Quero pedir-te o último favor: Dize-me, ao menos, qual é a origem desta meda-lha e o que significa a inscrição que ela nosmostra.

- Rei! - volveuo moço com altivez. -Não posso infelizmente atender ao vosso pe-dido! O mesmo motivo que me impediu hápouco de contar uma história ao rei Ismail,impede-me agora de esclarecer a origem des-sa medalha!

- Qual é esse motivo? - perguntouo reiSoleiman.

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- Umjuramento, 6 rei! - respondeu ocondenado.

- Por Alá - exclamou o soberano deBássora.- É extraordinário esse caso! Nãohesitaste em morrer unicamente por causa deum juramento? - E, voltando-se para o seugrão-vizir, o rei Soleiman ordenou, sem hesi-tar: - Determino que seja adiada, por algu-mas horas, a execução desse condenado! De-sejo esclarecer o mistério desta medalha e arazão do juramento que esse jovem não quisviolar nem mesmo para salvar a própria vidaI

EI-Mothano, grão-vizirdo rei Soleiman, erahomem dotado de agudeza de espírito, gran-de cultura, e tinha, além disso, invejávelpres-tígío em Bássora.

Consultado pelo rei sobre o caso da meda-lha, aconselhou ele ao monarca ouvisse, an-tes de tudo, a opiníão de um velho rabin02chamado Simão Benaia Benterandim, mora-dor no bairro judeu.

Ordenou o rei Soleiman que o israelita fos-se intimado a comparecer imediatamente asua presença.

Momentos depois, acompanhado de umdos oficiais da corte, dava entrada no grandesalão o sábio rabino que o reide Bássora, comtão grande urgência, queria ouvir.

Rabi Simão, uma das figuras mais conhe-cidas e estimadas em Bássora, era um homemque bem merecia o respeito, a amizade e oacato de um povo inteiro.

2 - Doutor israelita: o que explica a lei sobre os he-breus. (B. A. B.I

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Respeitavam-no os grandes pela sua mo-déstia, os maus pela integridade de seu cará-ter, os pobres pela bondade de seu coração.Os seus conselhos eram alíviopara os atribu-lados, incentivo para os fracos, temor para osrebeldes. A sua palavra, onde quer que soas-se, determinava o silêncio de todas as vozes,a atenção de todos os ouvidos.

Escaveirado, todo acurvado, o andar incer-to, os trajes modestos, ele era, sem o Que-rer, um dos vultos de grande prestígio nacidade.

A luz de seu espírito, os mais intrincadosproblemas tinham imediata e precisa solução.Decifrador emérito dos enigmas da vida, erao homem dos grandes momentos, das gran-des angústias.

Ao chegar ao palácio já encontrou repletoo salão de audiências. Todos queriam ouvire ver o homem de quem dependia a sorte dodesafortunado árabe.

- Sei, ó rabil - começouo reiSoleiman- que és um homem honesto e sábio! Seitambém que és um justo e que teus lábios,em caso algum, se abriram para deixar pas-sar uma mentiraIA verdade deve ser dita mui-to embora ela encerre elogio feito a uminfiel.3

O douto judeu inclinou-se respeitoso, co-mo se quisesse agradecer os elogios que ogrande soberano lhe fazia publicamente.

3 - Para o rei Ismail o rabi Simão era um infiel. Osmuçulmanos dividem os infiéisem três grupos principais:judeus, cristãos e idólatras. (B. A. B.I

Descobriu o algoz que o desditoso jovem trazia ao pescoço, presa por uma corrente de ouro, umapequenamedalhaquadrangular.Massufarrancou-ae foi entregá-Iaaorei.. . (Pãg.21)

Depois de breve pausa, o monarcaprosseguiu:

- Peço-te, ó ilustre filho de Israell,4queme respondas sempre a verdade a todas asperguntas que eu agora te vou fazer!

- Juro por Abraão que só direi a verda-de! - respondeu o rabi, estendendo, solene,a mão.

O reide Basra apontando, então, para o jo-vem condenado, perguntou ao judeu:

- Conheces este rapaz?Não o conheço, ó rei! - respondeuo

rabi.Já o viste casualmente em algum lugar?Também não, ó rei! E posso garantir a

Vossa Majestade que este jovem não é ami-go, nem é ligado por laço de parentesco apessoa alguma de minha famílial

Voltando-se em seguida para o condena-do, o rei perguntou-lhe:

- Conheces este venerável e sábio rabi?- Devo dizer a Vossa Majestade - res-

pondeu o interpelado - que não o conheço,e é a primeiravez que vejo este ilustre ancião.

Terminado este rápido interrogatório, o reicontou ao rabi Simão tudo o que ocorrera,momentos antes, naquele salão, desde aaposta singular feita com o rei de Kabul, atéa descoberta da originalmedalha hebraica queo condenado trazia, como se fosse um talis-mã, presa por uma forte corrente de ouro.

- Émeu desejo, ó rabi! - continuouo rei

4 - Israel - palavra hebraica que significa"forte con-tra Deus". Sobrenome que, segundo a Bíblia, foí dadoa Jacó depois de sua luta com um anjo. (B. A. B.I

- que me traduzas a inscrição que esta me-dalha contém, pois acredito que a essa legen-da judaica se prenda o silêncio que levou es-te jovem a ser condenado à morte.

O judeu tomou a medalha que lhe foi apre-sentada e mal havia observado uma das ins-crições, transfigurou-se como se o assaltas-se incontida emoção. Tremiam-lhe as mãose o rosto cobriu-se de mortal palidez. E foicom voz balbuciante - que denunciava gran-de angústia - que ele falou:

- Reimagnânimo e justo! Posso adiantar,desde já, que um dos casos mais extraordi-nários de que teve notícia o mundo acaba deocorrer diante dos vossos olhosl - No im-ponente salão, o silêncio deixava ouvir a res-piração ofegante e penosa do velho rabi, queassim continuou: - Por esta pequena meda-lha consegui descobrir que este jovem se cha-ma Imedin Tahir Ben-Zalã, é natural de Da-masco e aqui se acha há poucos dias. E seVossa Majestade permitir que eu diga ao jo-vem Imedin algumas palavras em segredo,ele, livre de todo e qualquer juramento, con-tará aqui mesmo, diante de todos, uma his-tória tão espantosa que causará aos nobresmuçulmanos a mais forte admiração e o maiorassombro.

- Consinto! - exclamou o rei Soleiman,que mal podia dominar a curiosidade.

O rabi aproximou-se, então, do jovem Ben-Zalã e disse-lhe, em segredo, algumas pala-vras ao ouvido.

Os muçulmanos que se achavam no ricosa-lão do paláciode Soleiman presenciaram, nes-se momento, uma cena curiosaecomovente.

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Ao ouvir a misteriosa revelação do judeu ocondenado caiu de joelhos e, cobrindo o ros-to com as mãos, começou a chorar copiosa-mente.

- Por Alá! - exclamou o rei Ismail intri-gadíssimo com o que via. - Não posso com-preender esse mistériol Exijoque Imedin e es-te judeu dêem imediatamente uma explicaçãocompleta deste casol

Ergueu-se Imedin, e mal dominando a in-tensa emoção de que se achava possuído as-sim falou:

- Alá vos conserve, ó rei! Estou agoracompletamente desligado do juramento quehá pouco me prendia ao silêncio, e posso,portanto, contar-vos uma das muitas e belis-simas lendas que aprendi nas longas viagensque empreendi pelo mundo!- Ouvirei mais tarde - atalhou o rei Is-mail - todas as lendas maravilhosas que mequiseres narrar; as lendas formam, bem o sei,o maior tesouro da nossa literatura. Agora,entretanto, faço o maior empenho em ouviruma explicação completa deste misterioso ca-so da medalha, a razão desse juramento des-cabido que fizeste, e a significação que tive-

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ram, afinal, as palavras ditas, em segredo, pe-lo rabi. Desejo, enfim, ó joveml, ouvir umanarrativa minuciosa da tua vida e de tuasaventuras pelo mundo.

- Escuto-vos e obedeço-vos - respon-deu Imedin. - Vou contar-vos a história daminha vida e vereis como se explicam perfei-tamente todos os fatos, de certo modo in-compreensíveis, que há pouco aqui ocorre-ram. Sou forçado, porém, a confessar que aminha vida se acha envolvida numa tramainextricável de mil histórias sem fim...

O rei Ismail, que tudo ouvira e observaracom a maior atenção, aproximou-se igual-mente do jovem Imedin e disse-lhe:

- Confesso-te, meu amigo, que me con-sidero desde já inteiramente vencido na ou-sada aposta que fiz, há pouco, com o rei So-leiman. Pagarei com satisfação o prêmio pro-metido. A curiosidade é, porém, muito forteem meu espírito. Espero, portanto, ouvir o re-lato das aventuras que te forçaram a proferiro tal juramento que se tornou inviolável atédiante da ameaça de morte!

E para atender ao pedido do rei, ImedinBen-Zalã iniciou o seguinte relato:

3~ Narrativa

Imedin Tahir Ben-Zalã conta sua vida e suasaventur.as. Por que foi ele à casa do xeque Ab-der Ali Madyã e as pessoas que lá encontrou.O que disse o xeque a um velhote que ofereciaum escravo e as peripécias que depois seseguiram.

Das MIL HISTÚRIASSEMFIM...é esta a terceira!Lida a terceira restam, apenas, novecentas

e noventa e sete...

Meu nome é Imedin Tahir Ben-Zalã e sounatural de Damasco.

MUito cedo tive a infelicidadede perdermeu pai, e achei-me, com minha mãe e meusirmãos, em completo desamparo. Um bommercador, que morava nas vizinhanças denossa casa, tomou-me sob sua proteção. Gra-ças ao inestimável auxílio dessegeneroso pro-tetor, obtive meios que me permitiram estu-dar com os mestres e adquirir, assim, os va-riados conhecimentos que hoje possuo e deque me tenho valido nos transes mais dificeisda vida.

Há cerca de dois anos, mais ou menos, amarcha serena de minha existência foi pertur-bada por um acontecimento imprevisto. Sa-

"Iomão Moiard, assim se chamava o meu paiadotivo, obrigado a partir para Jerusalém, em

virtude de um chamado urgente, deixou oshaveres que possuía, inclusive uma pequenacaixa na qual se guardavam mil sequins de ou-ro. Recomendou-me que zelassecom o maiordesvelo pelos seus bens e riquezas, pois s6ao fim de um ano talvez, liquidados os seusnegócios na Palestina, poderia regressar des-sa longa jornada ao país dos israelitas.

Jurei que tudo faria para corresponder àhonrosa confiança que ele em mim deposita-ra; e, na manhã seguinte, depois da primeiraprece,' tive a tristeza de vê-Io partir comgrande caravana de mercadores judeus.

O velho Salomão deixara, para as minhasdespesas, quantia razoável com a qual eu po-

1 - As preces obrigatórias para os muçulmanos sãoem número de cinco. A primeira ao nascer do dia; a se-gunda ao meio-dia; a terceira às quatro horas da tarde,mais ou menos; a quarta ao pôr-do-sol, e a última à noi-te. A prece deve ser precedida de ablução (ghucil. IB.A. B.I

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deriaviver,sem privações,durante um ano.Resolvi, entretanto, auxiliar minha mãe, co-mo sempre fizera - a fim de atenuar-lhe apenúria em que vivia - deliberei obter umemprego que me permitisse, embora com sa-crifício,aumentar-lhe os recursos pecuniários.

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Naquele tempo viviaem Damasco um opu-lento mercador chamado Abder Ali Madyã,cujo nome brilhava à luz do prestígio que osmuçulmanos atribuem aos que têm ouro emabundância, oásis e caravana. Informado deque o xeque2 procurava um secretário,apresentei-me em sua nobilissima residência,à hora marcada, esperançoso de obter o van-tajoso emprego.

Recebeu-me à porta um escravo baixote,vestido à moda síria, e, tendo declarado a ra-zão da minha presença, fui conduzido até umbelo salão onde deparei várias outras pessoasque aguardavam a audiência do xeque. En-tre os presentes, reconheci os incorrigíveisAnnaf e Mohammed, "o gago", escribas depoucas luzes, que se tornaram famosos en-tre os damascenos em razão da falta de dis-crição e honestidade com que desempenha-vam as tarefas mais sérias de que seencarregavam.

2 - Xeque - termo de acatamento que se aplica emgeral aos sábios. religiosos e pessoas respeitáveis pelaidade ou pelos costumes. A denominação xeque é dadaigualmenteao chefe de tribo ou agrupamento muçulmano.

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A fantasia popular não exagerava ao atri-buir ao poderoso Abder Madyã uma opulên-cia quase lendária. A sua deslumbrante mo-radia, cuja construção obedecera ao plano deum escravo cristão, ostentava o luxo e a ri-queza de um serralho imperial; havia por to-da parte valiosas alcatifas, e no salão poligo-nal em que nos achávamos, as paredes inter-nas eram cobertas por figuras geométricas co-loridas, entrelaçadas em harmoniosas combi-nações. Menos deslumbravam os adornos epedra rias do que a arte e o fino gosto comque tudo ali era arranjado.

Quando o xeque surgiu, como um prínci-pe das Mil e uma Noites, acompanhado deseus íntimos e auxiliares, levantamo-nos res-peitosamente e fizemos o salã.3 Com um li-geiro aceno, o fidalgo agradeceu-nos asaudação.

Um velhote nervoso, de olhos embaciados,que se pusera a um canto, depois de curvar-se várias vezes desmanchando-se em repeti-dos salamaleques, aproximou-se do xeque eentregou-lhe um documento que trazia em ro-lo, preso por uma fita azulada.

O xeque tomou o pergaminho, desenrolou-o lentamente, e sobre os vagos caracteres alitraçados correu displicente o olhar.

Valá!4 - exclamou irritado devolvendo aovelhote o documento. - Não me convém asua proposta. Acho-a irracional. Seria um ab-

3 - Salã - quer dizer paz. Ea expressão de que seservem os árabes em suas saudações. (B. A. B.I

4 - VaIá!(por Deus!) - exclamação muito usada pe-los muçulmanos.(B. A. B.I

surdo que eu comprasse um escravo, por umpreço elevado, sem adquirir nessa transaçãoa pele desse escravo I Que disparatel Onde jáse viu semelhante despautério?

- XequedosxequesI - acudiu pressuro-so o velhinho, estorcendo os dedos. - Trata-se, como já vos disse mais de uma vez, deum caso excepcional. A pele do escravo aque me refiro não lhe pertence. Posso con-tar-vos...

- PelasbarbasdeMafomal - atalhou co-lérico o xeque. - Não me interessa saber co-mo se chegou a essa situação inverossímil eanti-humana; não me animo, tampouco, a ou-vir a história desse escravo martirizado pelaservidão! Já estou farto de casos excepcio-nais! Qualquer mendigo da estrada, em tro~ca de um osso, é capaz de contar vinte casosexcepcionais! Os homens de imaginação ba-ratearam o impossível. Só os fatos sobeja-mente vulgares e rotineiros é que a mim meparecem realmente excepcionais I

E, isso dizendo, voltou-se para um dos ho-mens que se achavam perfilados, aguardan-do ordens, e murmurou secamente:

- Levadaqui este importunolAcompanhei, ainda, com o olhar, o velho-

te nervoso que se retirava aos trancos, leva-do pelo braço hercúleo de um guarda. Suafigura pareceu-me cheia de mistério. Que es-tranho caso seria aquele do escravo que nãoera dono da própria pele? Algum dia - pen-sei - mesmo que seja para tanto obrigadoa contar todos os pêlos de um camelo, hei dedescobrir o paradeiro desse singular muçul-mano para dele ouvir aquele "caso excepcio-

nal" a que o xeque não dera a menorimportância.5

11I

Tendo saído o velhote de roupa cinzenta,ficaram, apenas, aguardando a decisão do xe-que, os que pretendiam o lugar de secretá-rio. Éramosem número de quatro: eu, os doisescribas desonestos (aos quais já me referi)e um tipo pálido, alto como uma girafa e mui-to magro, que não cessava de sacudir a ca-beça para baixo e para cima, como se quises-se, por antecipação, concordar com algumacoisa que ia ouvir de alguém.

- Sou avesso à prática da injustiça - co-meçou o xeque - e não quero, pois, errar naescolha de meu novo secretário. Conformecostumo proceder em tais casos, vousubmetê-Ios a uma pequena prova, que serásimples e sumária. Aquele que se sair commais brilho e revelar maior habilidade será pormim escolhido. Ali, sobre aquela mesa, estáo material necessário. Cada um dos candida-tos poderá escrever a seu bel-prazer o quemuito bem entender, contanto que revele in-teligência e cultural

Ao perigoso Annaf, que se achava na fren-te, cabia, no caso, a iniciativa. Aproximou-se da mesa, tomou do cálamo e de uma fo-

5 - A prodigiosa história desse escravo, e do velho-te que o queria vender, aparecerá em outra parte destaobra e vai constituir a 273~ narrativa IB. A. B.I

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lha em branco, e, depois de sentar-se sobreuma almofada, escreveu várias linhas, pon-do nessa operação os cuidados de umcalígrafo.

- leia I - ordenou o xeque.O escriba, que usava habitualmente do ci-

nismo como recurso seguro de êxito, leu comvoz clara, numa cadência irritante, as linhasque traçara.

Glorificado seja Alá, o Altissimol Nopais do IslãSnão há homem maisgeneroso, mais belo, mais sábio emais valenre do que o grande xe-que Madyã! O nome desse genialmuçulmano...

- Não me agradam - interrompeucomazedume o xeque - os elogios derramadoscomo os que ai escreveste. Abomino os ba-juladores. A tua gabação, envilecida pela sa-bujice, cai sobre mim como a baba de um ca-melo. Vai-te daqui e não me procures mais.lembra-te de que eu sei fazer com que os im-pertinentes amarguem o arrependimento dasimportunações com que me irritamI

Regozijei-me intimamente com tal decisão.Foi o caviloso escriba agarrado, num abrir efechar de olhos, e arrastado para fora do sa-lão pela férrea musculatura de dois guaidas

6 - oIslã, de modo geral, significa"conjunto de pal-ses que adotam a religião de Matoma". Atualmente es-ses palses são: Turquia, Arábia Saudita, Irã, Ateganis-tao, lraque, lêmen, Marrocos, etc.

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autômatos. Percebi que houve, a seguir, umtumulto, acompanhado de ruidos surdos, nocorredor; veio-me a espirito a suspeita de queele teria sido impiedosamente espancado pe-los numerosos servos. O regozijo, que a prin-cipio sentira, transformou-se, por causa da-quele sucesso, na mais grave apreensão.

Mohammed, "o gago", foi o segundo aapresentar a prova exigida. Tendo escritoduas ou três linhas demonstrativas de sua ca-pacidade, entregou-as ao xeque julgador,

Mal relanceara sobre elas os seus olhos es-pertos, enfureceu-se perigosamente o ricoMadyã.- Miserável, filho de miseráveisl - gritouenviperado. -' Detesto, já o disse, a sabujicedos cinicos tanto quanto execro os tipos gros-seiros e mal-educadosl Isto que escreveste éuma estúpida infâmiaI Por Alál Vai-te, antesque eu perca por completo a calma.

O temido senhor não teve necessidade derepetir a ordem. Um agigantado cameleiroagarrou pelas costas o grosseiro candidato e,com um empurrão violentíssimo,atirou-o parafora da sala, sem cuidar da desastrosa posi-ção que lhe remataria a queda. Ouvi nova-mente ruidos surdos e prolongados no corre-dor; desta vez, entretanto, não tive dúvidassobre o tremendo espancamento com que osservos castigavam o segundo pretendente.

A má sorte de Annaf e Mohammed nãoperturbou a calma e a serenidade do tal ho-mem pálido, magro, que sacudia a cabeça,Com penalizante humildade, sem désligar doslábios um lastimável sorriso, que traduzia amais profunda resignação, aproximou-se do

xeque em cujas mãos depositou uma peque-na folha, na qual rabiscara alguns versos denotável poeta árabe.

- Imbecil que ésl - exclamou o xeque,depois de ler a prova e tomado de vivo ran-cor. - A tua ignorância é revoltante! Nos ver-sos de MontenébbF que aqui escreveste, hátrês acentos trocados e duas sílabas erradaslÉ incrível que um árabe tenha a ousadia deestropiar, assim, o mais admirável poema doIslãl - Ea transbordar de empáfia, ajuntou:- seí de cor os cinco mil versos de Antar, ascanções de Nobiha, de Tarafa e Zobe. Já licem vezes as obras dos antigos e modernosescritores árabes. Não posso admitir, portan-to, que um imbecil, por ignorância, estropietorpemente as jóias mais caras do grandeMontenébbil

7 - Montenébbi, poeta árabe de grande renome, nas-ceu em Kufa no ano de 905. Passou a sua infância naSfria e, durante vários anos, viveu entre beduinos do de-serto. Muito moço ainda agitou a pequena cidade de Se-mawat, nas margens do Eufrates, fazendo-se passar co-mo inspirado profeta que aparecia, no mundo, com a mis-são sublime de fundar uma nova crença religiosa. Fezcrera seus amigos e correligionários que recebia inspiraçãode anjos e espíritos ocultos e pretendeu elaborar um se-gundo Alcorão, que serviria de código religioso e moralpara a seita revolucionária que pretendia implantar na Ará-bia e espalhar por todos os recantos do mundo. Foi pre-so pelas tropas Ikhechiditas de Homs, e só obteve liber-dade depois de ter declarado que as suas idéias religio-sas eram falsas e que a verdade estava contida unica-mente no Islã. O apelido Montenébbi significa "aqueleque pretendeu ser profeta". Escreveu poemas admirá-veis, até hoje lidos com entusiasmo pelos árabes. Foi,em seu tempo, o poeta mais popular da Arábia. Era ad-mirado pelos caravaneiros e temido pelos príncipes. IB.A. B.I

E vi penalizadíssimo ser aplicado ao tercei-ro infeliz o mesmo tratamento brutal dispen-sado aos dois primeiros: seguiram-se, comodas outras vezes, barulhentos distúrbios nofatídico e temeroso corredor.

Voltou-se, a seguir, o xeque para os ami-gos que o rodeavam e proclamou com irritan-te prosápia:

- Viram a audácia deste chacal insolenteque fiz expulsar agora de minha casa? Tevea petulância de me oferecer, como coisa sua,fruto de sua acanhada inteligência, um punha-do de lindos versos que o imortal Montenéb-bi escreveu, em Chiraz, para obter a simpatiae proteção do poderoso Adod-ed-Daula. O in-feliz plagiário não se lembrou de olhar paraos seus pés antes de submeter a julgamentoa sua desastrosa prova.

E o enfatuado xeque apontou para o gran-de e rico tapete azul-claro, adornado com le-gendas admiráveis, que cobria a parte centraldo aposento. Destacavam-se, no centro dotal tapete, versos admiráveis de Montenébbi:

Quis apossar-me do tempomas o Tempo, imaginário,não se deixou alcançar.Procurei a eternidade,pensando que, na Ciência,tudo pudesse encontrar.Mas voltei de mãos vazias,lamentando os dias meus,estudei e, logo, a Dúvidaveio afastar-me de Deus...8

8 - Estes versos são do livro Pássaro de Jade, dapoetisa brasileira Sônia Regina.

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- Que tapeçaria magnífica! - comentoucom voz amolentada um tipo gorducho, derosto redondo, que parecia íntimo do xeque.- Éde estranhar que o velhote não tenha re-parado nela, depois de ter permanecido nes-ta sala, à nossa espera, durante tanto tempo.

- Isso acontece com os indivíduos vulga-res, meu caro Rhaif - acudiu com vivacida-de o xeque. - Olham, mas não vêem; ou-vem, mas não escutam; falam, mas não di-zem nada; correm, mas não se afastam. Co-nheci, em Homs, um aguadeiro tão distraídoque de uma feita, ao sair da mesquita, esque-ceu as babuchas e enrolou os pés no turban-te! Ao chegar a casa, a esposa espantou-see disse: "Que loucura é essa, meu marido?Olha o que fizeste com o teu turbantel" Res-pondeu o aguadeiro olhando para os pés: "Foidistração minha! Pensei que tomara, por en-gano, as calças do velho cádi!"

A citação daquele caso - que me parecíauma frioleirasem sentido e sem cabimento -

32

fez rirgostosa mente o gordo Rhaif. Todos osoutros xeques desmancharam-se, também,em estrepitosas risadas. Sentia-se que a in-tenção dos presentes era lisonjear e agradaro dono daquele palácio, o opulento xequeMadyã.

Que chiste poderia alguém descobrir na-quela desenxabida anedota do aguad~iro?

A minha atitude discreta e serena desper-tou a atenção do xeque.

Fitou-me muito a sério e, fazendo transpa-recer certa ironia em suas palavras, disse-mecom voz pausada:

- Chegou, agora, a tua vez, meu jovemamigo! Que no insucesso e no lamentávelfra-casso de teus antecessores possas descobrirmeio mais seguro de .alcançar a vitória. Quei-ra Alá que a tua prova seja satisfatória, poisos cameleiros que me servem já estão, comcerteza, fatigados de castigar atrevidos e ig-norantes audaciosos! Pela sagradamesquitade Mecal Vamosà provaI

4~ Narrativa

Continuação das aventuras de Imedin. O ca-so da palavra caucasiana que filólogo de gran-de fama traduziu e explicou.

Das MIL HISTORIAS SEM FIM... é esta a quartalLida a quarta restam, apenas, novecentas e

noventa e seis...

Vendo chegada a minha vez, invadiu-me in-vencível terror, como se houvesse surgido pe-la frente um fantasma de apavorante aspec-to. Que deveria escrever para agradar ao in-contentável xeque? Elogios? Nunca.Lembrava-me ainda do quanto penara o pri-meiro escriba. Insultos e grosserias? Muitomenos. Trechos literáriosou poesias? Seriauma imprudência de louco. Um engano nu-ma frase, um descuido num verso, seria, pa-ra mim, desgraça completa.

Quis Alá que uma feliz inspiração me ilu-minasse o atribulado espírito. Tomei de umafolha de papel e nela escrevi uma única pala-vra: Mazalichel

- Ma-za-li-chel - leu o xeque, vagarosa-mente, separando com cuidado as sílabas. -Que quer dizer "mazaliche"?

Senti, naquele transe perigoso, que a mi-nha salvação, no caso, dependia, exclusiva-mente, de um pouco de audácia. A palavra"mazaliche" tinha sido inventada, no momen-to, por mim; nada significava, não tinha sen-tido algum. Resolvido, porém, a levar até ofim a aventura iniciada de modo tão favorá-vel, respondi com absoluta segurança:

- A palavra "mazaliche", ó xeque gene-roso!, não é árabe, nem persa. É um vocábu-lo descoberto, faz muitos séculos, por um fi-lólogo que estudou os vários dialetos faladospelos povos caucasianos. "Mazaliche" signi-fica o que quiser!...

- Como assim? - interpelou-menova-mente o xeque. - Qualé a tradução certae exata para essa palavra?

- Oquequiserl- reafirmeitranqüilo.-Nãovejo,senhor,comoexplicar,de outromodo, a significação de uma palavra para nós

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quase intraduzfvel. O sábio filólogo que viveuno Cáucaso...

- Basta - atalhou vivamente o xeque. -Dispenso-te as explicações lingüísticas. Alembrança que tiveste, ao condensar a tuaprova numa única palavra, foi realmente ori-ginal. Revelaste inteligência viva, cultura ra-zoável e também muita presença de espírito.Creio que és digno de exercer as funções desecretário de um homem notável como eul

Julguei, depois de ter ouvido tais elogiosdo imodesto xeque, passado inteiramente operigo e definida, de modo favorável, a situa-ção. Com grande surpresa, porém, o caso to-mou, de repente, feição complicada e trágica.

Depois de pequeno silêncio, o xeque assimfalou:

- Ser-me-á fácil verifícar se disseste ounão a verdade em relação a essa palavra,"mazaliche". Tenho aqui, em minha casa, co-mo hóspede, há muito tempo, um filólogoeruditíssimo chamado Mostacini Thalabi, queconhece profundamente os mais complicadosidiomas do mundo. Vejamos se esse sábioconcorda com a tradução que apresentastepara a palavra caucasiana. Fica certo, porém,ó jovem, de uma coisa: se a tua prova, coma originalidade que parece ter, encerrar umapilhéria, não sairás daqui com uma só coste-Ia em perfeito estadol

Edepois de proferir tão grave ameaça, queme deixou estarrecido e tonto de pavor, o xe-que chamou um escravo e disse-lhe:

- Que venha à minha presença o doutoe eloqüente filólogo Mostacini Thalabil

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Rápido como uma flecha o escravo desa-pareceu em busca do sábio.

"Estou perdido", pensei. "O filólogo vaidescobrir a minha audaciosa mistificação.Queira Alá valer-me nesta dependura."

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Momentos depois surge no salão, em com-panhia de um escravo, um homem de meia-idade, barbas castanhas, olhar muito vivo,rosto largo, a testa alta e mal disfarçada porum turbante farto e desajeitado, com umagrande barra verde. Era o recém-chegado ofamoso filólogo"Mostacini Thalabi, hóspededo palácio.

Depois de saudar delicadamente a todos ospresentes, dirigiu-se ao senhor de Madyã edisse-lhe:

- Alá sobre ti, ó xequel Que desejas deteu humilde servo?

Respondeu o xeque:- Mais uma vez, meu bom amigo, vou

apelar para os teus profundos conhecimen-tos lingüísticos. Sei que os idiomas, vivos oumortos, não possuem segredos que resistamà argúcia de teu espírito. Pois bem. Quero queme digas o que significa esta palavra e a lín-gua ou dialeto a que pertence.

E o rico mercador passou para as mãos dofilólogo a folha em que eu escrevera o igno-rado vocábulo - Mazaliche.

Um sentimento de pavor invadiu-me o es-píritoe como que me petrificou.A máscara

da palidez pesou-me sobre o rosto. Murmu-rei resignado: "Maktub/1 Alá é grandel Sejafeita a vontade de Alá."

O sábio leu atentamente a palavra a que eureduzira a minha prova. Passou a mão direitapela barba, alisando-a, displicente. Meditoualgunsinstantescomo se procurasse coorde-nar idéias que pareciam quase esquecidas. Edisse afinal:

- A palavra aqui escrita compõe-se dedois radicais distinhos: mas ou maz, e alicheou oiliche,da raizde um verbo oili a que seliga o sufixo che, indicativo de futuro. Maza-liche é encontradiço num dialeto falado na re-gião do Cáucaso. A palavra é, pois,caucasianal

Quem poderia avaliara intensidade do meuespanto ao ouvir aquela declaração?

Feita pequena pausa, o fil610gocontinuou:- Vou dar agora a significação da palavra

"mazaliche". A primeiraparte, constituída pe-lo radical mas, significa "aquilo que", "coi-sa"; a segunda, aliche, é um verbo: "querer","pretender", "desejar", "preferir no futuro".A melhor tradução para mazaliche será, pois:"0 que quiser."

- Jovem - declarou então o xeque. -A tua prova acaba de ser confirmada pela vozautorizada do nosso grande fil610go.Nomeio-te meu secretário e de hoje em diante viverásneste palácioI

Recebi a seguir, de quase todas as pessoasque nos rodeavam, provas de afeto e simpa-

1 - Maktubl Estavaescritol

tia. Cochichou-me um sujeitinho magro, quepiscava continuamente os olhos:

- Foste de muita sorte. Com habilidade al-cançarás aqui riquezas incalculáveisl

Compreendi que o sábio MOGtacini,movi-do por um sentimento de incomparável bon-dade, deliberara salvar-me daquela emergên-cia inventando para a palavra "mazaliche" acomplicada etimologia que causara tanta ad-miração ao xeque.

"Serei grato a esse homem", pensei. "Aele devo exclusivamente a vitória na prova.Quem o informara, porém, da significaçãoque eu havia momentos antes atribuído ao vo-cábulo 'mazaliche'?" .

Naquele mesmo dia - ao cair da noite -fui aos aposentos do fil610goa fim deagradecer-lhe o precioso auxílio que meprestara.

O erúdito Mostacini recebeu-me com indis-farçável alegria.

A sala que lhe fora destinada no palácio eralarga e espaçosa. Pelo chão viam-se atiradas,ao acaso, ricas almofadas de seda.

- Já sei, meu amigo - disse-me o fil610-go - vieste aqui agradecer-me a solução en-genhosa que dei hoje para o teu caso. O es-cravo que veio chamar-me é meu amigo e aele devo inúmeros favores. Este escravocontou-me tudo o que se passara e solicitouo meu auxílio em teu favor. Prometi-lhe quetudo faria para salvar-te. Quando entrei, pois,no salão, já sabia o que devia responder aoxeque em relação à palavra que havias, porcerto, inventado. Do contrário estarias irreme-diavelmente perdido.

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Eesse escravo - perguntei - quem é?Por que veio ele em meu auxílio?

Respondeu-me Mostacini:- Neste palácio vivem dezenas de indiví-

duos sem caráter e sem dignidade que explo-ram a vaidade doentia do xeque. A hipocri-sia, a inveja e a perfídia se familiarizaramemtodos os cantos desta casa, e o vaidoso xe-que é a toda hora rodeado por cortesãos in-dígnos, que tudo sacrificam pelo amor à co-biça. A única criatura sincera e leal que aquiconheço é esse escravo. Chama-se Meruã. Éfilho de um aguadeiro de Damasco e conhe-ceu teu pai durante uma viagem que fez aoCairo. Meruã é cristão e afirmou-me que seacha no dever de proteger-te. Se quiseres ou-vir dele a narrativa de uma aventura estranhaocorrida no Egito ficarás conhecendo, de tuavida, um segredo tão estranho que talvez mo-difique por completo o curso de tuaexistência.

Tomado da mais viva curiosidade pelo ca-so, apertei o bom filólogo com um chuveirode perguntas, ao que ele retorquiu sem seimpacientar:

- Nada quero adiantar-te. Amanhã mui-to cedo mandarei chamar Meruã. E dele pró-prio ouvirás a mais espantosa narrativa dequantas correm no mundo. - Eacrescentou:- Vou agora para o salão. O eloqüentexeque-el-medah2 acaba de chegar. Queresouvir as narrativas desta noite?

2 - Chefe dos contadores de histórias. Veja explica-ção no prefácio.IB. A. B.)

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Agradeci ao bondoso ulemá o convite;sentia-me fatigado. Preferia ficar ali, na tran-qüílidade daquele belo aposento, recostadonas ricas almofadas; não me interessavam,naquele momento, as histórias fabulosascheias de aventuras trágicas e emocionantes.

Retirou-seo sábio, deixando-me sozinho namaior ansiedade.

Que relação poderia existir entre mim e omisterioso escravo? Que estranha aventura te-ria ocorrido no Egito com meu pai?

A meu lado achava-se um manuscrito queo filólogo ali deixara. Olhei sôfrego para aobra. Na primeira página li assombrado:

Não há no mundo ninguém sem algu-ma tribulação ou angústia, seja eleemir, rei ou cslifa.

E mais:

Prepara-te para sofrer muitas adversi-dades e vários desgostos nesta mise-rável vida; porque assim te sucederáonde quer que estiveres, e assim acha-rás, em verdade, onde quer que teesconderes.

Quem teria escrito aquelas impressionan-tes palavras? Que sentido teriam elas no en-redo de minha vida?

o sábio leu atentamente a palavra. Passou a mão direita pela barba alisando-a, displicente. Meditoualguns instantes como se procurasse coordenar as idéias que pareciam quase esquecidas. (Pág.35)

Intrigado como caso, tomeido curiosoma-nuscrito e consegui, sem dificuldade, ler umahistória que me deixou encantado e me fez

esquecer os pensamentos confusos que meagitavam.3

Eis a história que li:

3 - o jovem Imedin, que tem as suas aventuras aquiinterrompidas, vai reaparecer na 240~, 241 ~ e 242~ nar-rativas. Encontramos, então, o complemento e a expli-cação da 2~ narrativa. Convém ler, a tal respeito, a notafinal. (B. A. B.)

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5~ Narrativa

História de um rei da India que tinha três mi-nistros e do caso espantoso que ocorreu porcausa de uma bela estátua. O que disse ao reio terceiro vizir para livrar-se do perigo que oameaçava.

Das MIL HISTORIAS SEM FIM... é esta a quintal

Lida a quinta restam, apenas, novecentas enoventa e cinco...

Houve outrora, no pais de Panjgur, na In-dia, um rei que tinha três ministros.

Querendo um dia verificar o grau de estj.ma e consideração em que era tido pelos seustrês dignos auxiliares,ordenou o monarca fos-se colocada no meio do grande parque do pa-lácio real uma estátua' dele próprio e, escon-dido em discreto recanto, pôs-se à espera pa-ra observar o que fariam os ministros quan-do vissem inesperadamente aquele novomonumento.

O primeiro a chegar foi o ministro da Justi-ça. Ao defrontar com a estátua do rei no meiodo arvoredo, parou muito sério, os braços cru-zados sobre o peito, em atitude respeitosa,e examinou miudamente a obra de arte sem

1 - A religião maometana proibe a representaçilo deanimais, o uso de imagens e de figuras humanas. Na In-dia.. porém,muitospaisesestI!ointeiramenteforedo Is-lI!. IB. A. B.I

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proferir uma única palavra, nem deixandotransparecer a impressão que lhe causara oinopinado encontro.

Mal se retirara o primeiro ministro quandochegou o seu colega encarregado das Finan-ças e do Tesouro do país.

O digno tesoureiro do rei Malabã - assimse chamava o soberano de Panjgur - ao vera nova estátua cobriu o rosto com as mãose entrou a chorar desesperadamente como segrande desgosto o oprimisse.

Ao rei, que tudo observara, causou isto nãopequena admiração.

- Por que tería o primeiro ministro ficadotão sério ao ver a estátua, ao passo que parao segundo o defrontar com ela fora motivode pranto desfeito?

Momentos depois chegou o terceiro minis-tro. Eraesse vizirencarregado unicamente deestudar as questões relativasàs Forças Arma-das e aos recursos militares do país.

o titular da Guerra, ao deparar-se-Ihe a im-ponente figura do vaidoso monarca, entroua rircom estrepitosas gargalhadas e de tal mo-do o dominaram os ataques de riso que che-gou a cair de costas junto ao pedestal do ré-gio monumento.

O rei Malabã, que além de orgulhoso eramuito desconfiado - dois defeitos gravíssi-mos para um chefe de Estado - ficou intri-gadíssimo com a diversidade singular das im-pressões que sua imagem causara aos trêsdígnos ministros de Panjgur.

A rígida gravidade do primeiro, as lágrimasdo segundo e o louco gargalhar do terceiroeram enigmas que a régia sagacidade não po-dia decifrar, o que sobremodo o afligia.

Incapaz de refrear a curiosidade que o es-tranho caso lhe despertara, partiu o rei Mala-bã para o palácio e, tão depressa ali chega-do, mandou viessem à sua presença os trêsministros.

Contou-Ihes o rei, sem nada ocultar, tudoo que observara e disse-Ihes que queria sa-ber o motivo por que ficara o primeiro minis-tro tão sério, ao passo que o segundo chora-ra com abundância de lágrimas e o terceirorira a ponto de perder os sentidos.

O ministroda Justiça, compreendendo quedevia ser o primeiro a falar, assim começou,dépois de saudar respeitosamente o rei:

- Deveissaber, ó rei magnânimo!, que aover aquela belíssimaestátua, para mim até en-tão desconhecida, lembrei-me de vós e dosgrandes benefícios que tendes prestado aopovo, aos meus amigos, aos meus parentese a mim em particular. Resolvi, pois, dirigir

a Alá, o Altíssimo, uma prece, pela vossa sali-de, prosperidade e bem-estar! Fiquei, comovistes, muito sério, ó rei generoso!, porqueestava contrito em orações.

- Meu bom amigol - exclamou o rei,abraçando-o. - Compreendo agora o quan-to és sincero e dedicado! Jamais deixarei deretribuir a grande-amizade que tens por mim.

E, voltando-se para o segundo ministro,disse-lhe: -

- Não cQmpreendo, porém, 6 vizir-tesoureiro!, por que motivo a estátua pôde sercausa do teu grande desespero.

Assim interpelado, o ministrodas Finanças,depois de prestar ao rei Malabã a sua home-nagem humilde e-respeitosa, começou:

- Cumpre-me dizer-vos, 6 rei do tempol,que ao ver aquela-bela estátua notei que aliestava a vossa majestosa figura posta nobronze pelo gênio incomparávelde famoso ar-tista. Este monumento-é de bronze, pensei,e assim durará eternamente, ao passo que onosso bondoso rei, na sua triste condição demortal, não poderá sobreviver à própria ef(-gie. Dia virá em que Hã-Ru, o Anjo da Mor-te,2 na sua eterna faina, arrebatará a almapreciosa do nossq estremecido rei! E essespensamentos cruéis, sem que eu pudesse im-pedir, apoderaram-se de mim e tal tristeza metrouxeram ao coração que, dando livrecursoàs lágrimas, chorei :desesperadamentel

- Grande amigo I - atalhou o soberano

2 - H5-Ru - Na mitologia hindu figuram nada me-nos de 17 deuses. Um deles. S;va. é-o principio destruI-dore tem como auxiliarHã-Ru, o mensageiroda Morte.

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hindu comovido. - Jamais me esquecerei daprova sincera de amizade que acabo de rece-ber de ti!

E depois de abraçar afetuosamente o mi-nistro da Fazenda, o rei Malabã voltou-se pa-ra o terceiro vizir e censurou-o com enérgicorancor:

- Nas tuas gargalhadas, porém, ó vizir!,próprias de um insensato, não vi mais do queum insulto e um escárnio à minha pessoalNãocompreendocomopoderás explicar a tuaatitude descabida e irreverente! Cabe-te a vezde falarl Dize-me onde foste buscar em mi-nha estátua, perfeita e impecável, motivos pa-ra tamanha hilaridade.

Ao ouvir palavras tais empalideceu o minis-tro da Guerra, sentindo que a falsa interpre-tação do rei punha a sua vida em grandeperigo.

Sem perder, porém, a calma tão necessá-ria em tais situações, o digno vizir do rei Ma-labã aproximou-se do trono e, depois de bei-jar humildemente a terra entre as mãos, as-sim falou:

- Rei generoso! Esteja o vosso nome soba proteçl!o dos deusesl Não sei mentir. Voucontar-vos a verdade, embora com sacrifícioda minha vida, revelando-vos o motivo porque tanto ri ao topar com essa estátual - E,diante do silêncio que se fizera, o terceiro vi-zir começou: - Ao atravessar o parque dopalácio, deparou-se-me um belíssimo monu-mento de bronze que representavaa figura do,glorioso sultl!o de Panjgur. Vendo a estátualembrei-me, naquele instante, de uma histó-ria muito curiosa intitulada "0 Beduíno As-

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tucioso", que ouvi contar, há dez anos, nointerior da Arábia! Foi a lembrança dessa his-tória que me fez rir daquela maneira!

- Que história é essa? - indagou o reiMalabã, tomado da mais viva curiosidade.

- É uma das lendas mais chistosas queconheço - explicou o vizir. - Ouvi-a de umvelho árabe quando atravessava o deserto deDahnal

"Há, nesse deserto, uma gigantesca mon-tanha de pedra lisa e acinzentada, que os ára-bes denominaram "A Sofredora", já muitasvezes contornada pelas caravanas e varridapelo simum. Ao norte dessa montanha agres-te encontra-se pequeno e acolhedor oásis,com muita sombra e água fresca, onde flo-rescem precisamente trezentas e trinta e trêstamareiras. Dizem os caravaneiros que cadauma dessas trezentas e trinta e três tamarei-ras (com exceção de uma, e uma só) tem aexistência ligada a uma lenda. Não há erro,pois, em afirmar que o número de lendas, nes-seoásis,é igual ao número de tamareiras me-nos uma! A lenda da décima terceira tama-reira é aquela que tem por título "0 BeduínoAstucioso". Houve mesmo um sábio mate-mático que calculou...

- Não me interessam os cálculos das tre-zentas e tantas tamareiras - interrompeu,com impaciência, o monarca. - Quero ou-vir, sem mais delongas, a singular aventurado beduíno astucioso com todos os episódios,versos ou fantasias que estiverem com elarelacionados.

O rei, já meio agastado, exigia a narrativa.Era preciso obedecer ao senhor de Panjgur.

o digno vlzirconcentrou-se durante brevesinstantes. Parecia coordenar as idéias e recor-dar os fatos que estivessem dispersos entre

as brumas do passado. Decorridos, finalmen-te, alguns minutos, iniciou, com voz pausa-da, o seguinte relato:

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6~ Narrativa

História de um rei do Kafiristã que fez erguertrês estátuas e de um beduino astucioso que fi-cou desesperado. Que fez o beduino para des-pertar viva curiosidade no esplrito do rei.

Das MIL HISTÚRIASSEM FIM... é esta a sexta!

Lida a sexta restam, apenas, novecentas enoventa e quatro...

Deveis saber, ó irmão dos árabesl, que exis-tiu outrora, para além das montanhas de Ka-bul, um país muito rico e populoso chamadoKafiristã.

O Kafiristã era, nesse tempo, governadopor um soberano íntegro e sábio cujo nomea História registrou e perpetuou em páginasmagníficas, para maior glória dos povos doIslã. Deveis saber também - pois bem pou-cos são aqueles que o ignoram - que essemonarca famoso, a que nos referimos, foi Ro-malid Ben-Zallar Khã.

Dando ouvidos aos conselhos de um vizirInsidioso e bajulador, o rei Romalid (Alá o te-nha em sua glória!) mandou erguer na gran-de praça da capital três belíssimas estátuas.'

1 - A religião maometana proibe a representação deanimais, o uso de imagens e de figuras humanas. Na Asia,porém, muitos paises estão inteiramente fora do Islã. IB.A. B.I

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A primeira era de bronze, a segunda de pratae a terceira - não obstante ser a maior - era

toda de ouro. Todas representavam o rei ematitude de combate, a erguer ameaçador umgrande alfanje recurvado.

Um dia, o vaidoso Romalid repousava des-cuidoso na varanda de marfim de seu palá-cio, quando notou que um velho beduíno, po-bremente vestido, se aproximava do lugar emque se achavam os três monumentos. Ao vera estátua de bronze, o árabe do deserto er-gueu os braços para o céu e exclamou:

- Que Alá, o Exaltado, conserve o nossorei! - Ao defrontar, logo depois,a estátuade prata, o beduínoriu alegrementee disseemvozbemalta: - QueAlá, o Altíssimo,abençoe o nosso rei! - Ao topar, porém,com o rútilo e áureo monumento, o beduínoatirou-se ao chão, como um louco, entrou agritar, desesperado:- QueAlá, o Clemen-te, salve o nosso reiI

O sultão, que tudo observara, mandou que

trouxessem o aventureiro desconhecido aoseu palácio e em presença dos vizires maisilustres da corte, interrogou-o sobre a signifi-cação dos votos que proferira e das atitudesdiversas e inesperadas que havia assumidodiante de cada uma das estátuas.

O velho beduíno, homem inteligente e as-tucioso, interpelado pelo poderoso senhor doKafiristã, inclinou-se respeitoso e exclamou.

- AI/ah alá tiac in manlei! (Que Deus con-serve a vossa vida, ó rei!) Devo dizer, primei-ramente, que o meu nome é Salã Motafa.Pertenço a um grupo de nômades do deser-to que hoje, para breve repouso, acamparamjunto às portas desta cidade. Há dez anos quenão vinha ao Kafiristãe não conhecia os trêsnovos monumentos ora erguidos ali no meioda praça. Ao ver a estátua de bronze com-preendi que ela representava o nosso rei Ro-malid Ben-Zallar Khã, sultão magnânimo eafortunado. Prestei,pois, como humilde sú-dito que sou, minhas homenagens à figura im-ponente e respeitável do soberano, rei e se-nhor deste rico país. Pensei: "Se não houves-se um rei, justo e forte, para governar e diri-gir o povo, este andaria na terra como, empleno oceano, o batel sem piloto."

"Ao avistar, logo depois, a estátua feita deprata pensei: 'Se o rei mandou fazer uma es-tátua tão cara é porque tem as arcas do te-souro a transbordar de dinheiro. Há, portan-to, notável e completa prosperidade no país!'E este raciocínio trouxe-me ao espírito gran-de alegria, que externei, com a maior sinceri-dade, ao exclamar: 'Que Alá, o Altíssimo,abençoe o nosso rei e por muitos anos o con-

serve!' 'O que é muito puro de sangue, de lin-guagem e de conduta, o que é poderoso,. re-to e consumado político, é digno de reinar naterra .'

"Ao verificar, porém, que a terceira está-tua era de ouro maciço, fiqueiassombrado 'Orei enlouqueceu', pensei. 'Onde já se viu, emque terra e em que lugar, um soberano des-perdiçar tanto dinheiro numa estátua de ou-ro quando há tanto benefícioa fazer-se e tantanecessidade a remediar-se?! Pobre e desven-turado rei! Está completamente dominado pe-lo delíriodas grandezas!' Eesta triste conclu-são afligiu-me de tal modo que de mim se as-senhoreou grande e incontida aflição. Atirei-me desesperado ao chão, e implorei a prote-ção de Deus: 'Que Alá, o Clemente, salve onosso rei!' "

Achou o sultão muita graça na original ex-plicação dada pelo inteligente forasteiro eperguntou-lhe:

- Acreditas, então, ó beduíno tão bem-dotado!, que eu poderia ficar louco sem queos meus súditos o percebessem?

- Acredito, sim, ó rei dos reis - afirmouo beduíno. - Não conheceis o caso ocorri-do com o rei Talif?

- Não é possível, mesmo a um rei, conhe-cer os casos que se deram com todos os reis.Possivelmente, ignoro o que ocorreu com es-se meu digno antecessor.

- Pois é a história mais espantosa dequantas tenho ouvido - respondeu o beduí-no. - Trata-se de um rei que verificou teracontecido, consigo mesmo, uma anomaliarealmente fantástica; durante nove anos, ape-

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sar de completamente louco, governava tran-qüilamente um dos países mais prósperos emais ricos do mundo I E houve ainda, no ca-so, uma particularidade notável. No dia emque o rei Talif achou que seria prudente en-louquecer ficou inteiramente curado da de-mência que o aniquilava!

- Por Alál - exclamouo sultão. - Serápossível que um rei demente possa governarcom acerto um grande país? Conta-nos, ó Fi-lho do Deserto!, conta-nos esta história queme parece curiosa!

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- Escuto-vos e obedeço-vos - respon-deu o nômade, beijando humilde a terra en-tre as mãos. - Conto com a vossa generosi-dade. O coração do bom, embora agastado,não muda. Não é posslvel aquecer a água dooceano com a luz de uma vela!

E na sua voz forte e cadenciada, como oandar de uma caravana, o astucioso beduínoinicioua seguinte narrativa:

7'! Narrativa

História de um povo triste e de um rei quese viu ameaçado por uma terrível profecia. Nes-te capítulo vamos encontrar um reique só crioujuízo no dia em que resolveu enlouquecer.

Das MIL HISTÓRIASSEM FIM... é esta a sétimal

Lida a sétima restam, apenas, novecentas enoventa e três.

Conta-se que existiu outrora, na India, en-tre o Indo e o Ganges, um país tão grande queuma caravana, para atravessá-Io de um extre-mo ao outro, era obrigada a repousar seten-ta e sete vezes.

Era esse país governado por um rei, cha-mado Talif, filho de Camil, Camilfilho de Lu-din, Ludin filho de Maol, o Forte.

Certo dia, o rei Talif chamou o seu grão-vizir Natuc e disse-lhe:

- Tenho notado, meu bom amigo, que osmeus súditos, desde o mais humilde remen-dão ao mais opulento e prestigioso emir, dehá algum tempo a esta parte, andam todostristes e abatidos. Desejo vivamente saberqual é a causa dessa epidemia de tristeza eabatimento que oprime meu povo!

- Rei magnânimo e justo - respondeu ojudicioso Natuc - que o Distribuidor' vosconceda todas as graças que mereceisl Souforçado a dizer-vos a verdade, embora tenhacerteza de que ela vai causar-vos grande des-gostol O povo anda triste e abatido porquedentro de poucos dias deverá ser festejado emtodo o reino o trigésimo quinto aniversário devossa existência!

- Pelo manto do Profeta! - exclamouorei Talif. - Que absurdo é este? Não vejo querelação possa existir entre o meu aniversárioe a melancolia dessa gente!

- Bem sei que ignorais ainda - explicouo grão-vizir - que esse dia tão ansiosamen-te esperado, do vosso aniversário natalício,será para o reino o mais calamitoso do século!

1 - Um dos muitos nomes com que os muçulmanosse referem a Alá.

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- Calamitoso? Positivamente, ou tens ojuízo fora da cabeça, ou terás, em breve, acabeça fora do corpo. Já vai a tua audáciaalém do que eu poderia tolerar.

- Espero, 6 rei magnânimo, me perdoeisa licença das expressões ao contar-vos a ra-zão delas.

Eo dedicado Natuc narrou ao soberano daIndia o seguinte:

- Uma semana depois do vosso nasci-mento, mandou o saudoso rei Camil, sobreele a bênção de Alá!, chamar o famoso Ben-Farrac, o sábio astr610go de maior prestígiodo mundo, e pediu-lhe que lesse nas estrelasvisíveis e nos astros invisíveisdo firmamentoo futuro de Talif, o novo príncipe do Islã. Ogrande Ben-Farrac, sobre ele a miseric6rdiade Alá, depois de consultar os vôos dos pás-saros, as constelações e a marcha dos plane-tas mais propícios, declarou que o filhode Ca-mil subiria ao trono aos vinte e um anos deidade, e durante quatorze outros governaria,com agrado de todos, o novo reino herdado.de seu pai. No dia, porém, em que comple-tasse trinta e cinco anos, o reiTalif seria aco-metido de um ataque de loucura! Se ao atin-gir essa idade fatal, escrita no céu pelos as-tros luminosos, não apresentasse o rei sinto-mas de demência, uma grande e indescritívelcalamidade, que não pouparia nem mesmo aspalmeiras do deserto, devastaria o país de nor-te a sul! Eaté agora, 6 reido tempol, não hou-ve uma s6 previsão de Ben-Ferrac que fossetida por falsa ou errada. O povo tem assisti-do já a realização completa de várias delasl

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E, depois de pequena pausa, o grão-vizircontinuou:

- Eisaí, glorioso senhor, a causa da tris-!teza de vossos dedicados súditos. No pr6xi-mo dia do vosso aniversário seremos vítimasde uma desgraça: ou a loucura apagará parasempre a luz de vossa inteligência, ou umacalamidade, que ainda não teve igual na his-tória, devastará o país de norte a sull

O bondoso rei Talif, ao ter conhecimentodesse triste augúrio que pesava ameaçadora-mente sobre seu futuro, ficou tomado da maisprofunda tristeza e sentiu invadir-lhe o cora-ção piedoso uma onda de amargura.- Bem triste é a minha sinal - lamentouo rei depois de longo e penoso silêncio. -Certo estou, 6 vizir!, de que não poderei fu-gir aos decretos irrevogáveisdo destino. Ape-Io, meu amigo, para o teu esclarecido espíri-to e longa experiêncial Não haveria um meiode atenuar-se a grande desgraça que pairapresentemente sobre o meu povo e sobre mimmesmo?

- Só vejo um meio - respondeu sem he-sitar o grão-vizir - e nele venho pensando hámuito tempo. Segundo a previsão formuladapelo astrólogo, se ficardes louco no dia dovosso aniversário, o país não mais terá a te-mer futuras calamidades. Assim sendo, no diado vosso natalicio, logo pela manhã, fingireis,por vários atos absurdos, que o destino vosprivou da luz da razão. Não deveis, porém,com a simulada loucura, deixar que desapa-reça, ou mesma diminua, a confiança que opovo deposita em vós. Para isto, penso queos vossosatos de falsademênciadeverãoser

de molde que não tragam qualquer perigo oua menor perturbação à vida dos vossos súdi-tos. O povo depressa poderá verificar que orei, apesar de louco, continua a exercer o go-verno do país com justiça e tolerância. Épre-ferível, poderão dizer todos, um rei demen-te, piedoso e justo, a um soberano de espíri-to lúcido, mas perverso e vingativo I E, assim,avidadetodosnóscontinuará,comoaté ago-ra tem sido, calma, tranqüila e felizl

- Grande e talentoso amigo! - exclamouo rei Talif, movido por sincero entusiasmo -como admiro a tua sagacidade,como apre-cio a tua dedicação! É, na verdade, uma so-lução admirável para o meu caso; fazendo-mepassar por louco farei com que se realizea ter-rível previsão do maldito astrólogo, e restitui-rei a calma e o sossego ao meu povol

Edesta sorte, tendo assentado com o grão-vizir os planos para a curiosa farsa que deviarepresentar - fingindo-selouco -, ordenouo rei Talif que o seu trigésimo quinto aniver-sário fosse condignamente festejado em to-das as cidades e aldeias do reino.

Chegado que foi o dia, todos os vizires, no-bres e ricos mercadores foram, conforme otradicional costume, levar as felicitações e osvotos de prosperidade ao régio aniversariante.

Ordenou o rei Talif fossem os seus ilustreshomenageantes conduzidos à sala do tronoe recebeu-os de pé, tendo numa das mãosuma caveirae à cintura longa corrente de ferroa cuja extremidade vinha presa uma figura,feita de barro, que representava um gênio in-fernal de horripilante aspecto.

Os ricos, nobres e vizires, ao verem a es-

tranha e descabida atitl:lde do rei Talif, con-cluíram logo que o soberano da India haviaenlouquecido. Aqueles que ainda tinham dú-vida sobre o desequilíbrio mental do rei de-pressa se convenceram da dolorosa verdade,quando o ouviram declarar que estava resol-vido a caçar elefantes no fundo do terceiromar da ChinaI

E quando um dos honrados vizires ponde-rou sobre as dificuldades de tal empresa, orei pôs-se a enunciar frases sem nexo.

- Qual peso é excessivo aos esforçados?Que é diante ao perseverante? Que pafs é es-tranho aos homens da ciência? Quem é ini-migo dos afáveis?

- Está louco o reil - murmuraram todos.- De dois males o menor. Estamos livres dacalamidade que devia devastar o pafsde nor-te a sull

E o povo festejou nesse dia, com demons-trações de grande alegria, o trigésimo quin-to aniversário do rei Talif, apelidado o Lou-co.

Desde logo, porém, compreenderam todosque a branda loucura do rei Talif em nada pre-judicava a marcha natural dos múltiplos ne-gócios do governo. Na verdade, os atos pro-vindos da demência do monarca eram inofen-sivos. Ora decretava o casamento de uma pal-meira com um coqueiro, ou assinava uma leiridícula pela qual tomava posse de uma parteda Lua, ou de uma nuvem pardacenta do céu.

Quis Alá, o Exaltado, que o inteligente pIa-no concebido pelo talentoso grão-vizir Natucdesse o melhor resultado. O país continuoua prosperar e o povo da India vivia tranqüilo

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e feliz, embora tivesse no trono um rei priva-do da luz da razão.

11

Um dia, afinal, inspirado talvez pelo Demô-nio (Alápersiga o Maligno!),resolveu o reiTa-lif sair do seu palácio, disfarçado em merca-dor, a fim de ouvir o que diziam a seu respei-to os homens do povo.

Bem oculto por hábil disfarce, entrou numgrande khiP onde se reuniam, à noite, via-jantes, peregrinos e aventureiros, vindos detodos os cantos. Um cameleiro, que se acha-va a seu lado, murmurou com voz pesarosa:

- Pobre do nosso rei Talifl Depois do seuúltimo aniversário ainda não recuperou a ra-zãol Ainda hoje praticou nova insensatez!Concedeu o titulo de emir ao rio Gangesl

- Meus amigos - replicouum velhodevenerável aspecto, que fumava silencioso aum canto. - Creiobem que o povo deste paisanda treslendo! Estamos diante de um dos ca-sos mais singulares que tenho observado emminha vida. Julgam todos que o rei Talif en-louqueceu no dia em que completou trinta ecinco anos, mas exatamente o contrário su-cedeul Foinesse dia, precisamente, que o so-berano recuperou o juizol

- Comoassim? - perguntaramos mais

2 - Kh! - lugar onde se reúnem viajantes emercadores.

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curiosos. - Não é possivel! Como explicar osdisparates e as ridículas decisões do rei?

- Já observei - continuou o ancião -que os últimos atos praticados pelo rei sãoinofensivos e servem apenas para divertir opovo. Antes, porém, de seu último aniversá-rio, o rei Talif só procedia como louco ditan-do leis que eram profundamente prejudiciaisaos interesses e ao bem-estar do paísl

E, ante a admiração de todos, o velho hin-du continuou:

- Não se lembram daquela estrada que orei, há dois anos, mandou abrir, pelas mon-tanhas de Chenab? Foi isto um ato de incon-cebívelloucura, visto como a tal estrada, quetantos sacrifícios nos custou, lá está abando-nada sem utilidade nem valor algum. Eaque-le grande castelo mandado erguer no meio dolago de Magdalane? Foi outro ato de insâniado nosso soberano. Na primeira cheia do la-go as águas invadiram impetuosamente a ilhae derrubaram todas as obras-de-arte que jáestavam quase concluídasl

O bom monarca, que tudo ouvia, pálido deespanto, sentia-se obrigado a reconhecer queas palavras do desconhecido eram a expres-são da verdade. A estrada e o famoso caste-lo tinham sido, realmente, erros lamentáveisde sua administração.

- E não foi só - acrescentou ainda o ve-lho. - Há cerca de três anos o rei Talif man-dou demitir o governador de Bhavapal, ho-mem honesto e digno, para pôr no lugar umnobre protegido, que fora sempre um sujeitodesonesto e mau. Só um rei insensato é queprocede assiml E mais ainda. De outra feita

o rei Talif, a pretexto de aumentar o saláriodos servidores do reino...

Não quis o rei Talif continuar a ouvir a aná-lise imparcial que o velho hindu fazia de to-dos os erros que ele praticara. Sem proferiruma só palavra, levantou-se e saiu vagarosa-mente do khã.

"É singular e espantoso", pensava ele, en-quanto vagava a esmo por vielas desertas emal iluminadas. "É espantoso e singular o quesucedeu comigo! Creio bem que sou fraco pa-ra governar o meu povo. Eno tempo em quejulgava ter perfeito juizo pratiquei tantas lou-curas, o que não terei feito agora que resolvipassar por demente?"

Absorto em profunda meditação, voltavao reipara o palácio quando, ao atravessar umapraça, encontrou um árabe que chorava de-sesperado sentado junto a uma fonte.

- Que tens, meu amigo? - perguntou-lheo monarca. - Qual é a causa de tua grandetristeza?

O desconhecido, sem reconhecer na pes-soa que o interrogava o poderoso rei da ín-dia, respondeu:

- Sou um infeliz, ó muçulmano! Há per-to de um ano que procuro falar ao rei Talif enão consigo chegar à sala do trono nos diasde audiência pública.

- Eque queres dizer ao nosso bom sobe-rano? - insistiu curioso o rei hindu.

Respondeu o desconhecido:- Quero transmitir-lhe uma impol1ante

mensagem que recebi há tempos de meu sau-doso pai, o astrólogo Ben-Farracl

E, como o rei quedasse pouco menos que

atônito ao ouvir o nome do fatídico astrólo-go, o árabe continuou:

- Pouco antes de morrer, meu paichamou-me e disse: "Meu filho, vou contar-te uma história singular intitulada: 'O Rei In-sensato'. Peço-te que repitas fielmente essahistória ao rei Talif, quando o nosso monar-ca festejar o trigésimo quinto aniversário. Se,por qualquer motivo, não atenderes a estemeu pedido, que tem unicamente por fim sal-var o rei, serás mais infelizdo que o mais des-prezível dos mamelucosl"3 Eis a causa domeu desespero; não vejo um meio de chegarà presença do rei Talif, filho de Camil, e re-ceio que a maldição paterna venha a pesar s0-bre miml

Ao ouvir tais palavras, não mais se conte-ve o rei Talif. Arrancando, no mesmo instan-te, as grandes barbas postiças e a negra ca-beleira que lhe alteravam completamente a fi-sionomia, apresentou-se ao filho do astrólo-go no seu verdadeiro aspecto, e gritou-lheenérgico e ameaçador:

- Fica sabendo, ó infelizl, que eu sou Ta-lif, o rei. Exijoque me contes imediatamenteessa história que para transmitir-me ouviste,há tantos anos, de teu pai, o astrólogoBen-Farrac!

O árabe, ao reconhecer naquele simples emodesto mercador a pessoa sagrada e respei-tável do rei, ajoelhou-se humilde, beijou a ter-ra entre as mãos e assim falou:

3 - Mameluco ou mameluj, escravo. O plural seriamamelik.

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- É bem possivel, ó Rei do Tempol, queo simples conhecimento da narrativa a que mereferi seja suficiente para causar graves e pro-fundas alterações em vossa vida. Desse mo-mento em diante, porém, os nossos destinosestão ligados por laços inquebráveis. Tal é asentença ditada pela sabedoria do astrólogoBen-Farrac, meu saudoso pai. Sereis, ó glo-rioso Talifl, responsável pela minha vida e,mais ainda, responsável também pela vida demeus filhos e de meus amigos mais caros.

- Afirmo, sob juramento - declarou, lo-go, o rei - que nada farei de mal contra ti,nem contra qualquer amigo ou parente teul- Agradeço-vos a inestimável garantiaque as vossas palavras traduzem - retorquiuo filho do astrólogo. - Vejo-me,entretanto,forçado a exigir outro penhor e outra segu-rança de vossa parte.

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- Quesegurançaé essa1- indagouner-voso o monarca aproximando-sede seu jo-vem interlocutor.

- O avisoque me cumprefazer - expli-cou o enviado - é o seguinte: não deveis,sob pretexto algum, interromper a narrativaque, dentro de breves instantes, vou iniciar.Graves e desastrosas seriam as conseqüên-cias de um gesto de impaciência ou protestode vossa parte.

- Juro, pelas cinzas de meus antepassa-dos - retorquiu gravemente o monarca -que ouvirei a tua narrativa em absolutosilêncioI

- Diante dessa promessa, proferida comânimo sincero.e leal, o filho do astrólogo ini-ciou a seguinte narrativa:

Arrancando as grandes barbas postiças ea negra cabeleira que lhe alteravam a fisionomia, apresentou-se ao filho do astrólogo, e gritou-lhe enérgico e ameaçador: - FicaS8bendo, 6 infeliz/, que sou Talif,o rei. (Pág.51)

8~ Narrativa

História surpreendente do infeliz Balchuf, quedeixou o trono, a título de experiência, nas mãosde um príncipe louco.

Das MIL HISTORIASSEMFIM... é esta a oitava I

Lida a oitava restam, apenas, novecentas enoventa e duas...

No pais de Astrabad vivia outrora um reiperversoe mauchamadoBalchuf. .

Não tendo filhos, era seu herdeiro um so-brinho - o principe Kabadiã - moço desa-juizado e turbulento que vivia a cometer todasorte de loucuras e estroinices. Raro era o diaem que o futuro rei não praticava uma proe-za qualquer.

O rei Balchuf, longe de procurar corrigir-lhea indole arrebatada e travessa, distraia-se comsuas extravagâncias e ria-se quando ouviacontar alguma nova tropelia daquele a quemjá chamavam o "Principe Louco".

O povo de Astrabad antevia bem triste osdias que o aguardavam. Entregue a um mo-narca impiedoso e sangüinário, o pais entra-ria fatalmente em completa decadência. Osestrangeiros já fugiam de Astrabad com re-ceio das perseguições, e o comércioarrastava-se onerado e sem ânimo, cobertode impostos exorbitantes.

Um grupo de patriotas, compreendendoque aquele estado de coisas levaria todos àruina, resolveu conspirar contra o rei, procla-mar a República e entregar ao mais digno adireção do Estado.

Houve, porém, entre os oposicionistas ummiserável delator que se apressou em levar aoconhecimento do rei o plano deliberado pe-los conspiradores.

Enfureceu-se o soberano ao ter noticias deque alguns ricos súditos pretendiam subver-ter a ordem legal do pais, e resolveu castigarimplacavelmente os chefes daquele movimen-to republicano. Mandou degolar alguns, eli-minando os mais influentes, desterrou outros,prendeu os suspeitos e confiscou os bens detodos os adeptos da revolução.

Estavitória não lhe restituiu, porém, a tran-qüilidade que perdera. O fantasma da revoltacontinuava a povoar-lhe a mente, como umsonho mau.

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"Uma tentativa destas", pensava, "deixaterríveis germes nos corações dos desconten-tes e dos vencidos. Se eu não tomar uma pro-vidência enérgica, cedo terei de dominar ou-tra rebelião. Eencontrarei, porventura, quemme avise a tempo?"

Preocupado com tais pensamentos, resol-veu o rei Balchuf mostrar ao seu povo que elenão era tão ruim como os seus adversários fa-ziam crer.

"Para isto", refletiu maldoso, "vou afastar-me durante um ano do governo e deixar meusobrinho no trono. Tais loucuras há de ele pra-ticar, tão freqüentes serão os seus atos de ti-rania que quando eu voltar o povo respirarámenos oprimido e verá em mim um sobera-no ponderado e justo."

Ora, o rei Balchuf fora informado de queo Príncipe Louco dissera várias vezes a seusamigos e companheiros que quando subisseao poder praticaria, de início, três façanhasespantosas: uma represa das águas do rioGurgã; a construção de um castelo subterrâ-neo; e a abolição do véu para as mulheres.

E, antegozando a dura lição que infligiaaopaís inteiro, esfregava as mãos de contente:

"0 primeiro ato de meu tresloucado sobri-nho levará o país às portas da miséria; o se-gundo à ruína completa; e o terceiro à revo-lução religiosa e à guerra civill"

E resolvido a põr em execução, sem maisdelongas, o plano diabólico, o rei Balchuf as-sinou um decreto em virtude do qual seu so-brinho Kabadiã o substituiria no governo pe-lo espaço de um ano. Ele - o rei - iria, du-

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rante esse tempo, fazer uma visita ao seu ve-lho amigo lezide 11,sultão do Hajar.

Foi com verdadeiro pavor que o povo deAstrabad recebeu a nova da viagem do rei ea conseqüente ocupação temporária do tro-no pelo Príncipe Louco.

Partiu o rei Balchuf resolvido a regressardentro do prazo marcado. Preso, entretanto,por uma grave e prolongada enfermidade nolongínquo país de Hajar, não põde voltar se-não quatro anos depois.

Chegado a Astrabad, depois de tão longaausência, notou que os seus domínios haviamprogredido extraordinariamente. Um vizirquepor ordem do governo veio esperá-Io na fron-teira disse-lhe, sem mais preâmbulos:

- Penso que Vossa Majestade não devetentar reassumiro trono, poiso povo pode-ria revoltar-see massacrá-Io.

- Comoassim?- exclamouo rei. - Se-rá possívelque meussúditosprefiramser go-vernados pelo PríncipeLouco a ter-me notrono?

- Peço humildemente perdão a VossaMajestade - recalcitrou o vizir. - Devo as-severar, porém, que Vossa Majestadeestácompletamente equivocado.O príncipe Ka-badiã está governando admiravelmente opaís. Até hoje,não havíamosencontrado umchefe de Estado de mais ampla visão esabedoriaI

- É incrívell - protestouo rei.- Ea re-presa do rio Gurgã? Eo palácio subterrâneo?Ea célebre abolição do véu feminino? Não te-ria o príncipe praticado nenhuma dessas tãoprometidasloucuras.

o vizirexplicou, então, ao rei Balchuf quetudo isso e muito mais havia feito o príncipe.A represa do rio Gurgã fora de conseqüên-cias magníficas, pois as águas espalharam-sepelas terras vizinhas, fertilizando-as etornando-as mui aperfeiçoadas à agricultura,que logo se desenvolveu; o palácio subterrâ-neo, depois de construido, tornou-se grandeatrativo, e milhares de forasteiros visitaram acapital unicamente para admirar essa novamaravilha, o que para o comércio de Astra-bad fora manancial de grandes lucros, e parao país fonte de gerais prosperidades. A abo-lição do véu feminino fora outra medida dealcance admirável. As raparigas passaram aandar com o rosto descoberto: abandonarama ociosidade dos haréns e puderam trabalharlivremente não só nos bazares como nas pe-quenas indústrias. Uma vez condenado o véu,teve o prlncipe ocasião de observar que suasjovens patrícias eram bellssimase resolveu ca-sar-se. Escolheupara esposa uma menina, for-mosa e inteligente,filhade um grande sábio. Anova princesa exerceu tão boa influênciasobreo gênio de seu jovem esposo que o transfor-mou radicalmente. Aconselhado pela fiele de-dicada companheira, o príncipeescolheu bonsministros, esforçados auxiliares, e, bem guia-do e melhor secundado, soube modificar bas-tante o seu gênio irrequieto e impulsivo. Atéentão não assinara uma única sentença demorte, nem mandara confiscar os bens de ne-nhum cidadão.

Ao ouvir tão assombrosas revelações, o reiBalchuf ficou pasmado e percebeu que haviaperdido para sempre o direitoao trono; jamais

poderia ele contar com o apoio de suas tro-pas ou com a antiga submissão de seu povo.

- Insensato fui eu - confessou ele ao vi-zir. - Insensato, pois não soube governar omeu povo como ele mereciaI Insensato em es-colher maus ministros e péssimos conselhei-rosl Louco era eu quando premiava os vis de-latores e perseguia os bons patriotasl

- Agora é tarde para arrependimentos, órei - retorquiu com impaciência o vizir. -Volte Vossa Majestade para o pais de Hajare procure acabar lá sossegado os seus dias,que o povo de minha terra não poderásuportá-Io maisl

E, tendo pronunciado tão ásperas palavras,o vizirafastou-se com a sua aparatosa comi-tiva, deixando o infelizrei abandonado na es-trada, como se fosse um camelo moribundo.

Sentindo-se perdido e sem forças para re-conquistar o trono de seus avós, sentou-seo rei Balchuf, tomado de indizíveltristeza, nu-ma pedra à margem da estrada, e pôs-se ameditar nos espantosos erros de seu passa-do e na dolorosa expectativa que lhe ofere-cia o futuro.

- Amorte- exclamou- é parao ven-cido o caminho mais seguro da reabilitaçãoe do descanso. Devo, pois, morrerl

Um xeque desconhecido que passava nomomento pela estrada, acompanhado de seusservos, ao ouvir as palavras de desespero dorei Balchuf, parou o camelo em que ia e as-sim falou:

- O desassisado viandantel Por que tepões, para ai, como um louco, a falar em mor-rer quando, graças a Deus, há na vida remá-

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dio para todos os males? Vem comigo, poisestou certo de que acharei solução para o teucasoI

Vamos olhar, apenas, o lado belo e puroDas coisas que circundam este mundo,Deixando à margem, voluntariamente,Idéias más que vivem no inconscienteComo rainhas nefastas do escuro.'

- Continua, meu amigo, a tua jornada -redarguiusecamente o rei. - O abismoquese acha diante de mimé intransponivell O pro-blema do meu destino é inexplicável; os ver-sos não me trazem alivio; os conselhos e ad-vertências são, agora, para mim inúteis; osauxilios materiais nada poderão adiantar. Sóa morte será capaz de tirar-me da negra si-tuação em que me encontro.

- Estás enganado - contraveio o desco-nhecido. - Não sei ainda qual é a angústiaque pesa sobre teus ombros: ignoro quais sãoos males que afligem a tua existência.Asseguro-te, porém, que já estive em situa-ção muito pior do que a tua e que logrei sal-vação precisamente no momento em que de-

1 - Versos do livroAngl1stia dos Séculos, de Adroal-do BarbosaLima.

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cidira morrer. É preciso que a esperança existasempre em nosso coração. Bem disse opoeta:

Esperança, ventura da desgraça,trecho puro do céu sorrindo às almas,na floresta de angústias e incertezas.2

"E por que não crês, ó irmão dos árabesl,na esperança? Serve a esperança de lenitivopara as dores mais torturantes e de bálsamopara as tristezas."

S6 a leve esperança, em toda a vida,disfarça a pena de viver, mais nada:nem é mais a existência resumida,que uma grande esperança malogradal!

O xeque do deserto, vendo que o rei conti-nuava taciturno e infeliz, disse-lhe:

- Ouve a história de minha vida e verásse eu tenho ou não razão para confiar no fu-turo e exaltar a esperança.

E narrou a seguinte e singular história:

2 - Versos de Anlbal Te6filo.

3 - Do soneto "Velho Tema", de V/cente deCarvalho.

9~ Narrativa

História singular de um turbante cinzento ea estranha aventura de um enforcado. O encon-tro inesperado que teve o herói do conto comuma jovem que chorava no meio de uma gran-de floresta.

Das MIL HISTÓRIASSEMFIM... é esta a nona ILida a nona restam, apenas, novecentas e no-

venta e uma.

Meu nome é Sind Mathusa. Poucos ho-mens têm havido, na India, mais ricos do quemeu pai e não sei de um só que o excedesseem inteligência, bondade e prudência.

Sentindo-se, certa vez, assaltado de graveenfermidade, e na certeza de que os dias quelhe restavam na vida podiam ser contados pe-los dedos da mão, meu pai chamou-me parajunto de seu leito e disse-me:

- Escuta, 6 jovem desmioladol Atentabem no que te vou dizer. És pela lei o herdei-ro único de todos os bens que possuo. Como ouro que te vou deixar poderias viver rega-ladamente, como um rajá, durante duzentosanos, se a tanto quisessem os deuses prolon-gar a tua louca e inútil existência. Como sei,porém, que és fraco para resistir aos vlcios,e forte em seguir os maus exemplos, tenhoa triste certeza de que muito mal empregarása riqueza que vai em breve cair-te nas mãos.

Quero, assim, fazer-te agora um pedido:se for atendido morrerei tranqüilo e não leva-rei para a vida futura o tormento de umaangústia.

- Dizei-me, meu pai - respondi - qualé o teu desejo. Quero ser mais repelente doque um chacal se deixar de cumprir a tuavontade!

- Meu filho, quero arrancar de ti um ju-ramento. Vês aquele turbante cinzento que aliestá? Vais jurar pela imaculada pureza dos ído-los e pelas asas de Vichnu' que se algum diate sentires desonrado procurarás imediata-mente a reabilitação que a morte concede aosinfelizes, enforcando-te naquele turbante!

Fiz, sem hesitar, a vontade ao enfermo. Ju-

1 - Umadasmuitas formas que os hindus atribuemàs divindades. Vichnu é representado por dez formas di-ferentes. (B. A. B.I

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rei pelos ídolos e pelos complicados deusesda India que se me visse, no futuro, ferido pe-la mácula da desonra, procuraria a morte aoenforcar-me no turbante cor de cinza.

Passados dois ou três dias, meu pai, fe-chando os olhos para a vida, integrou-se noNirvana. Vi-me, de um momento para o ou-tro, senhor de inúmeras propriedades, dasquais auferia uma renda que chegava a cau-sar inveja e insônia ao orgulhoso xá da nossaprovíncia. Passeia ostentar uma vida de luxoe dissipações; rodeavam-me, dia e noite, fal-sos amigos e bajuladores da pior casta queme induziam a praticar toda a sorte de levian-dades e loucuras.

Uma noite, tendo reunido em minha casa,como habitualmente o fazia, em grande fes-ta, vários e divertidos companheiros da nos-sa laia, um deles chamado Ishame, que ad-quiria considerável riqueza vendendo came-los e elefantes, convidou-me para uma parti-da de jogo de dados. A princípio a sorte mefoi favorável; cheguei a ganhar num golpe omeu peso em marfim. Cedo, porém, perse-guido por uma triste fatalidade, entrei a per-der e os meus prejuízos excederam de maisde cem vezes o lucro inicial. Com a esperan-ça de recuperar o dinheiro perdido redobreias paradas. Perdi novamente. Na progressi-va loucura do jogo, já alucinado, arrisquei nosazares da sorte as minhas jóias, escravos epropriedades. Mais uma vez perdi, e ao nas-cer do sol sobre o Ganges nada mais me res-tava da herança de meu pai. Na certeza deque poderia contar com a generosidade e au-xílio daqueles que me rodeavam, fiz, com a

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garantia da minha palavra, uma grande dívi-da de honra, ao perder a última partida. Pro-curei um jovem brâmane, filho de opulenta fa-mília e que sempre vivera a meu lado, no tem-po da fartura, e pedi-lhe que me emprestas-se algum dinheiro.

- Meu caro Sind - disse-me o brâmaneconduzindo-se para o interior de sua rica vi-venda - chegas em péssima ocasião. Fuiobrigado a enviar ontem, para resgatar umadívida de meu pai, cerca de duas mil rupiaspara Benares. Encontro-me inteiramente des-prevenido. Lamento, portanto, não poder ser-vir a um amigo tão querido.

Olhei para as pratarias que se amontoavampor todos os recantos de sua casa. Havia nar-guilés riqulssimos e bandejas com inscriçõesque deviam valer alguns milhares.

- Nada disso é nosso - acudiu logo obrâmane, apontando para os adornos e en-feites. - É desejo de meu pai casar minhasírmãs com homens de boa casta, e para atrairos pretendentes alugou toda essa prata e es-ses tapetes bordados a ouro. Todos acredi-tam, desse modo, que somos ricos e que vi-vemos na fartura e na opulência.

Irritado com o cinismo daquele falso ami-go, disse-lhe com calculada frieza:

- Bem sabes que sou descendente de no-bres e que meus avós pertenciam à mais altalinhagem da índia. Declaro, pois, que para fu-gir da situação em que me encontro, estoudisposto a casar com uma jovem fina e edu-cada. Peço, pois, a tua irmã mais moça emcasamento.

Sorriu o brâmane:

- Pedes em casamento uma jovem quenão conheces e que talvez não te aceite paraesposo. Em nossa famíliaos casamentos nãosão ditados pelos interesses pessoais; a mu-lher deve ser ouvida e suas inclinações pes-soais levadas em linha de conta. Se desejaspagar dívidas de jogo com o dote de minhairmã mais moça, sinto dizer-te que estás equi-vocado, jamais aceitaria, como cunhado, umhomem que se arruinou em conseqüência deuma vida desregrada e pecaminosa!

E, conduzindo-me até a porta de seu palá-cio, empurrou-me delicadamente para a rua.

Apesar desse péssimo acolhimento, nãodesanimei. Fui ter à casa em que morava ummercador chamado Meting, que era assíduofreqüentador de minha mesa. De mim haviaMeting recebido inúmeros obséquios e fine-zas, e muito dinheiro para ele eu perdera nojogo.

- Que desejas de mim? - perguntou-me.Disse-lheque precisava de pequeno auxílio.- Julgas que eu sou algum imbecilda tua

espécie? - respondeu-me.- Demimnãote-rás nem um thalunif de cobre!

Desesperado, vendo-me repudiado por to-dos, e sem recursos para pagar o imenso dé-bito que contraíra, abandonei o palácio e fuiter a um grande bosque nas vizinhanças dacidade. Era meu intento cumprir o juramentoque formulara junto ao leito de meu pai.

Escolhi, portanto, entre muitas, uma belís-sima árvore. Subi pelo nodoso tronco, sentei-

2 - Thalung- moedade Infimovalor.

me em um dos galhos mais altos, desenroleio longo e belo turbante cor de cinza, amarreiuma das suas extremidades em outro galhoque estava a meu alcance e fiz na outra ex-tremidade um laço seguro em torno do pes-coço. Todos esses preparativos trágicosexecutei-os com a maior calma, sentindo, em-bora, o coração apresso pela mais imensatristeza.

Já ia deixar cair o corpo no espaço, quan-do, ao reforçar o laço fatal que me estrangu-laria, notei que havia na ponta do turbante,por dentro, qualquer coisa de muito resisten-te. Que seria? Na esperança louca de encon-trar ali qualquer coisa que me pudesse salvarrasguei o turbante. Embora pareça incrível,senhor, devo contar: de dentro dele retireiuma carta de meu pai redigida nos seguintestermos:

Estás desligado do teu juramento. Vaià casa de Kashiã, o tecelão, e pede-lhe a caixa de areia. Quem se salva porum milagre da desonra e da morte de-ve evitar o erro e procurar o caminhoreto da vida.

Ébrio de alegria saltei da árvore e quase acorrer fui ter à choupana onde moravao po-bre Kashiã, apelidado "0 tecelão"; recebi dasmãos desse pobre homem a lembrança quemeu pai ali deixara para me ser entregue.

Ao abrir a misteriosa caixa quase desmaiei,tão grande foi o meu assombro. Estava repletade brilhantes,pérolase rubis - alguns dos

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quais valiam mais que as coroas dos prfnci-pes hindus.

Possuidor de tão grande riqueza, não sou-be dominar a tensão de que fui presa e cho-rei. lembrei-me de meu bom pai, sempre ge-neroso e prudente, que ao prever a minhadesgraça usara daquele artiflcio para salvar-me. Era evidente que eu só poderia obter acaixa com auxilioda carta, e a existência destas6 chegaria ao meu conhecimento se o tur-bante fosse por mim próprio desmanchado.

Como louco que se salva de um abismo aofundo do qual se atirara, assim me vi naquelemomento. Depois de lançar aos pés do velhoKashiã um punhado de preciosas gemas, to-mei a caixa e encaminhei-me para a cidade.Era minha intenção pagar todas as minhas di-vidas e readquirir as minhas antigas proprie-dades. Quis, porém, a fatalidade que tal nãoacontecesse.

Ao atravessar um pequeno e sombrio bos-que nas margens do Elir, encontrei sentadasob uma grande árvore uma jovem de deslum-brante formosura. Os seus olhos azuis tinhamum pouco do céu da India com os reflexosmais verdes do mar de Omã. As faces eramcomo as da terceira deusa do templo de Yha-mãoOs lábios da linda criatura tinham um en-canto a que talvez não pudesse resistir o fa-quir mais puro e mais santo da terra. Com es-sas comparações não exagero a beleza da

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desconhecida; ao contrário, fico muito aquémda verdade.

A jovem chorava. Os seus soluços vibravamem ondas de indizfvelangústia.

- Que tens, ó jovem? - perguntei-lheca-rinhoso, aproximando-me dela. - Qual é omotivo do teu pranto? Se para o teu mal háremédio, dentro dos recursos humanos, cer-to estou de que saberei livrar-te de qualquerdesgostoI

Isso eu dizia tendo sob um dos braços apreciosa caixa, cheia de cintilantes pedras queme dariam ouro, fama e poderio.

Sem interromper o seu copioso pranto, ajovem olhou com surpresa para mim, segu-rou com os lábios o belo manto de seda quelhe cafa sobre os ombros, e, puxando-o parao lado, deixou a descoberto o colo e os bra-ços mais alvos, ambos, do que as penas dasgarças sagradas de Hamadã.

Recuei horrorizado. A infeliztinha as duasmãos cortadas junto aos pulsosl

- Ó desditosa criatura I - exclamei, a al-ma oprimidapelamaiorangústia. - Qual foio bárbaro autor de tamanha crueldade?Conta-me a causa de tua desgraça, e fica cer-ta de que poderás armar o meu braço como 6dio que a vingança te souber inspirar.

A desditosa jovem, entre soluços, narrou-me o seguinte:

- .-

Sem interromper o seu pranto, a jovem segurou com os lábios o belo manto de seda que lhe carasobre os ombros, deixando a descoberto o colo e os braços. Recuei horrorizado. A infeliz tinha asduas mãos cortadas junto aos pulsos. (Pág.62)

10~ Narrativa

História da tilha mais moça do rei Ikamor ape-lidada "Noiva de Matoma".

Das MILHISTÓRIASSEMFIM... é esta a décima!Lida a décima restam, apenas, novecentas e

noventa.. .

Das três filhas do rei Ikamor era eu a maismoça e devo dizer - sem pecar contra a mo-déstia - que minhas irmãs não levavam so-bre mim vantagem alguma no tocante a gra-ças e encantos pessoais.

Monótonos e suavemente decorreram osprimeiros anos de minha existência. Semgrandes alegrias - é verdade - mas tambémsem tristezas que abatem e afligem. Vivia fe-chada no rico e imenso serralho' real deCandahar, verdadeira fortaleza, onde meu pai,rei do Afeganistão, conservava não só a mime minhas irmãs, como também suas esposas,

1 - Serralho - palácio. Uma das partes do serralhoé o harém; é constituído pelas salas e quartos destina-dos às mulheres.

em absoluta reclusão, conformeo tradicionalcostume do país.

Para o nosso serviço poderíamos dispor devárias e dedicadas escravas, muito embora osnossos passos fossem dia e noite vigiados porum grupo de guardas, vingativos e intrigan-tes, que à menor suspeita nos levavam ao ter-rível Abdalis - o chefe - sujeito impiedosoque tinha autorização para punir-nos e atéinfligir-nos castigos corporais!

Abdalis (infame criatura!) era a personifica-ção da perversidade; quando a sombra de suaagigantada figura aparecia no longo corredor,as mulheres de Candahar ficavam pálidas, emsilêncio, e encolhiam-se sobre as almofadas,trêmulas de pavor.

Precisamente no dia em que eu completa-va dezesseis anos, meu pai viu-se obrigadoa iniciar uma guerra de vida e morte contrao famoso xá Zemã, o Vingativo, que se diziapretendente ao trono de Ikamor.

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Paraque uma derrota em tal campanha nãotrouxesse como conseqüência a ruina e a de-vastação do pais, meu pai, que de poucos re-cursos militares podia dispor nessa época,achou que seria prudente e indispensável fa-zer uma aliança com o rei Barasky, soberanode Beluchistão.

Esse odiento monarca forçou-o a assinarum tratado no qual fez incluir algumas exigên-cias vexatórias para os afegãos. Entre essas,uma havia menos absurda do que insultuo-sa: era eu obrigada a aceitar como esposo oindigno aliado do meu paisl

Seja Alá testemunha da verdade do quevou dizer. Não conhecia o tal rei Barasky; ou-vira, porém, de uma velha escrava persa, vá-rios e minuciosos informes que me levarama cOr.lcluirque ele devia ser, como o ignóbilAbdalis, velho, feissimo, excessivamente gor-do e mau.

Como aceitar um noivo cuja simples evo-cação a minha alma repelia horrorizada?

Implorei chorosa a proteção e o auxilio dovelho Kattack, o astrólogo, único homem quetinha permissão para entrar (quando acompa-nhado por um guarda) no harém deCandahar.

O bondoso Kattack disse-me:- Ó minha infeliz princesa! Bem negro é

o vosso destinol Deixai-me ler nos astros avossa sorte, sem o que nada poderei fazer.

Tais palavras encheram-me de esperançaso coração. Eu bem sabia que o meu venerá-vel amigo era eximio em ler no céu os misté-rios que os astros escrevem à noite com a luzque colhem durante o dia do infinito.

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Dias depois meu pai procurou-me. Vinhaagitado, nervoso, impaciente, e parecia queem seu espirito se digladiavam as mais desen-contradas preocupações.

- Minha filha - disse-me, afagando-mecarinhoso o rosto. - Sinto dizer-te que o ca-samento com o rei Barasky é impossivell Osábio Kattack acaba de ler no céu graves re-velações a teu respeito I

- Dize, meu pai - implorei. - Que novadesgraça paira sobre mim?

- Desgraça? Longe de nós tal palavraI Oteu futuro sorri a salvo de qualquer infortú-nio. Bem sabes que, segundo uma velha len-da árabe, de cem em cem anos o profeta Ma-foma (com Elea oração e a paz) desce à ter-ra a fim de escolher uma noiva entre as jo-vens mais formosas. Aquela que tem a felici-dade de agradar ao Profeta é incluida no nú-mero das mulheres perfeitas2e só poderá ca-sar com um homem qualquer se ao fim de trêsanos e onze dias o Profeta (a paz sobre Ele\)não vier buscá-Ia.

- Ó meu pai - balbucieidesolada.-Custa-me acreditar que seja verdadeira tão es-pantosa revelação celeste. Como poderia eu,feia e pouco gentil, despertar a atenção doProfeta de Alá?

A tais palavras, tão despidas de sincerida-de, retorquiu meu pai:

- No que respeita aos teus dotes fisicos,faltas pecaminosamente à verdade. A tua des-lumbrante formosura é reconhecida e procla-

2 - As mulheres"perfeitas" são em número de cin-co e todas aparecem citadas no Alcorão.

mada pelas filhas de meu tio.3 Devo-te, po-rém, um aviso para o qual o prudente Kattackme chamou especialmente a atenção. Se du-rante o prazo de três anos e onze dias, poruma fraqueza de tua parte, traíres o voto defidelidade ao Profeta, sofrerás um castigo ter-rível: terás amputadas ambas as mãosl

- Tranqüiliza-te, meu pai - respondi. -Eleita do Profeta; ser-Ihe-ei fiel não duranteesse ridículo prazo de três anos e onze dias,mas durante meio século!

E terminei por declarar, com uma seguran-ça que até a mim própria causou espanto:

- Se o Profeta não me vier buscar, fica-rei solteira toda a vida!

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A situação especial de ser noiva do Profe-ta facultava-me regalias excepcionais no ser-ralho. Era-me permitido subir sozinha ao ter-raço, não só pela manhã, como a qualquerhora do dia ou da noite; e, acompanhada deuma escrava, tinha a liberdade de passearpe-los jardins de Candahar, depois da últimaprece.

As outras mulheres do harém deitavam so-bre mim olhares terríveis a que a inveja em-prestava colorações estranhas.

Devo dizer, com sinceridade, que nunca de-

3 - Maneira pela qual os árabes tratam as esposas.

ra crédito a essa lenda do noivado com Ma-foma. Desconfiei desdEflogo - e mais tardecertifiquei-me da exatidão de tal desconfian-ça - que não passava o caso de um originalartifício de que o ardiloso Kattack lançara mãopara livrar-me do rei Barasky.

O bom astrólogo não tardou em fazer-me,a respeito, completas confidências:

- Minha linda princesa - disse-meumanoite, quando cavaqueávamos a sós no jar-dim - bem sabeis que abusei da boa fé dovosso pai, o rei Ikamor, fazendo-o acreditarnessasabsurdas núpcias com o Profeta. Mas,se assim procedi, mereço perdão, dado o fimnobre que tinha em vista: queria livrar-vos dasgarras de um homem devasso e cruel! Pas-sado, porém, o prazo de três anos e onze dias,a guerra estará terminada e o rei Ikamor, lí-vre das exigências desse aliado indesejável,poderá repelir qualquer proposta menos dig-na que vise à tua mão.

E, assim conversando, chegamos juntos aum poço onde nadavam muitos peixesvermelhos.

- Que lindos peixes! - exclamei.- Já conheceis, ó princesa! - perguntou-

me o astrólogo - a formosa lenda que expli-ca a origem dos peixes vermelhos?

Respondi-lhe que não e que muito folgariaem ouvi-Ia.

O sábio Kattack contou-me então oseguinte:

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11~ Narrativa

Lenda dos peixes vermelhos - contada, nosjardins de Candahar, pelo astrólogo do rei à"Noiva de Matoma".

Das MIL HISTORIAS SEM AM... é esta a décima

primeiraILida a décima primeira restam, apenas, no-

vecentas e oitenta e nove...

Alguém já vos disse, princesa, que o famo-so rio Eufrates - cujas águas são mais vaga-rosas do que as caravanas do deserto - ba-nha durante o seu longo e sinuoso curso a pe-quenina aldeia de Hit - hoje quase em rui-nas - outrora residência favorita dos princi-pes do Islã. .

Já vos contaram, também, senhora, quenessa aldeia de Hitvivia um humilde casal depescadores árabes. Eram tão pobres ql.lemalganhavam num dia a tâmara e o pão com quese alimentavam no dia seguinte.

Não me recordo, senhora, do que escreve-ram a respeito os sábios e poetas muçulma-nos desse tempo; não ignorais, porém, comcerteza, que os pescadores de Hit - que fi-guram nesta lenda - tinham uma filha cujo

. nomedeveisguardar para semprena memó-ria: chamava-se Radiá. Essa encantadora cria-tura reunia as três feições que faziam a glóriade Fátima, a filha de Mafoma: a beleza que

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deslumbra; a bondade que atrai; e a simpatiaque vence e domina os coraçõesl Atentai, se-nhora, que Radiá era tão boa e de alma tãosimples que muitas vezes quando via o paiaproximar-se do rio, levando a pesada rede,atirava à água várias pedras com o fim de afu-gentar para bem longe os peixes imprudentes.

- Omenina- murmurava bondoso o pa-ciente pescador - se fizeres fugir todos ospeixes eu nada mais poderei pescarl

Conta-se, ainda, que um dia Radiá, ao re-gressar de um passeio, encontrou casualmen-te vazia a mlsera cabana em que morava: opai tinha ido comprar tâmaras e mel num oá-sis próximo, e a mãe fora ao rio encher umcântaro de água.

Notou Radiá que o fogo estava aceso e quehaviam sido deixados, a fritar, numa panelade barro, alguns peixes apanhados ao nascerdo dia.

- Pobrespeixinhosl- murmurou aflita a

boa menina. - Que tortura estarão elesso-frendol Vou tentar salvá-Ios ainda!

Earrebatando a panela que fumegava, cor-reu para o rio e despejou nas ondas do gran-de Eufrates os peixes com que ia ser prepa-rada, naquele dia, a ceia dos pescadores, suaprópria ceial

Alá, como deveis saber, é infinitamente jus-to e clemente. Qualquer ato bom e puro temde Deus uma recompensa dez vezes maior -assim nos ensina o Alcorão, na sua eterna eincriada sabedoria.

Eis, portanto, senhora, o que aconteceu:por um milagre do Onipotente, os peixes, jáavermelhados pelo fogo, foram novamenterestituidos à vida e safram a nadar, perfeitos,no seio profundo das águas.

Desses peixinhos, ó formosa sultanal, quea linda menina de Hit atirou ao rio - e queconservaram, pela vontade de Alá, a cor queo fogo Ihes imprimira - nasceram os curio-sos peixes vermelhos, enlevo dos ricosaquários. .

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12~ Narrativa

Continuação da história da filha mais moçado rei Ikamor, apelidada "Noiva de Mafoma".Como as esposas do rei planejaram a morte dohomem que as vigiavam e o que depoissucedeu.

Das MILHISTORIASSEMFIM... é esta a décimasegundal

Lida a décima segunda restam, apenas, no-vecentas e oitenta e oito...

Umanoite, o velho Kattackveio ter comi-go e disse-me em voz baixa, com infinitacautela:

- Estou informado,princesa, de que asesposas do rei Ikamor conspiram contra a vi-da de Abdalis, o guarda, que será envenena-do amanhã ou depois. Não posso prever asconseqüências desse crime; certo estou, en-tretanto, de que as criminosas têm tambémintenções perversas a vosso respeito.

Aquela grave denúncia caía sobre mim co-mo o simum do deserto sobre o viajante des-prevenido. Tão grande foi o meu espanto quefíquei muda, estarrecida, diante do astrólogo.

- Para completa segurança, princesa, vourevelar-vos um segredo. Há uma passagemsubterrânea secreta que liga Candahar à gru-ta de Telix.Vou ensinar-vos esse caminho, decuja existência nem mesmo o rei tem conhe-

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cimento, para que possais fugir daqui em ca-so de perigoI

Não eram infundadas as suspeitas do ve-lho Kattack. Passados dois ou três diasachava-me, ao cair da noite, em meu aposen-to, quando ouvi vozes e gritos desencontra-dos. Um guarda, chamado Zeieb, dominan-do a gritaria, vociferava:

- Abdalis morreu! Mulheres, ao hamãf1Aquela ordem, vinda de um homem de cu-

jos maus sentimentos não se podia duvidar,obrigou-me a tomar uma resolução extrema,fugir o mais depressa possível.

Procurei, sem perda de tempo, alcançar osubterrâneo secreto e por ele caminhei cora-josamente, no meio da mais completaescuridão.

1 - Hamã- sala de banhos.

Momentos depois achei-me em liberdadeno meio de um dos grandes parques que cir-cundavam Candahar. .

A princípio embriagou-me a liberdade; ce-do, porém, encarando com serenidade a si-tuação, compreendi que jamais correra tantoperigo como naquele momento, perdida, so-zinha, no meio daquele bosque tenebroso.

Quando meditava sobre uma resolução atomar em tal emergência, ouvi vozes de ho-mens que se aproximavam. Um deles traziana mão uma lanterna. Escondi-me rapidamen-te atrás de uma grande árvore e, confiante nodestino, aguardei os acontecimentos.

A luz da lanterna permitiu-me que reconhe-cesse um dos caminhantes noturnos. Era oastrólogo Kattack, meu velho amigo e confi-dente. O outro era um jovem de fisionomiaatraente, mas que parecia abatido por umagrande tristeza.

A dois passos do lugar que me servia deesconderijo, os dois pararam.

O sábio Kattack disse então ao moço, queeu soube, mais tarde, ser seu filho:

- Breve estarás casado com aquela quetodos julgam noiva de Mafoma. Só consegui-rás, porém, recursos para o teu casamento seobtiveres a vitória no grande concurso de poe-sias promovido pelo rei Barasky.

- Como poderei vencer todos os poetasda corte? - objetou o moço com voz tristee cheia de desânimo.

- É muito simples, meu filho - tornou oastrólogo. - Logo. que chegares diante dotrono, dirás ao vaidoso Barasky os versos fa-

mosos com que Ibraim Ben-Sofian, o poeta,derrotou o célebre rei Senedin, do Laristã.

Depois de uma ligeira pausa, o astrólogoprosseguiu com tranqüila segurança:

- Não deves, meu filho, temer o futuronem afligir o coração com as torturas da in-certeza. Lembra-te do que disse um poeta:

Só quem um dia desolado virSeu ideal mais puro derrubado.Só quem a ventura já sentiu,Sentiu-a sem jamais ter blasfemado;Quem conheceu a dor, algumas vezes,E o desespero e o sofrimento mudo;Só quem fugiu da vida muitos meses,

E afastou-se da vida e assim de tudo,...e quem, depois, voltou de novo I vida,purificado em sua própria dorl- só esse pode, de alma comovida,amar a vida com imenso amorP

Certo estou de que os versos de Ben-Sofian garantirãoa tua vitória no concurso.

O jovem indagoucom viva curiosidade:- Que versos são esses, meu pai?Respondeu o prudente astrólogo:- Paraque possascompreenderos ver-

sos mais assombrosos do mundo, é precisoque conheças as origens deles. Vou contar-te um dos casos mais surpreendentes da nos-sa História.

2 - Versosde Luis Otávio. em "Saudade... MuitaSaudadel..."

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E tem sempre presente, em teu pensa-mento, para teu conforto, as admiráveispalavras:

Esperança tDo tingidade me enganar não se cansa...

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Ai, porém, de minha vida.Se não houvesse Esperança... 3

E, a seguir, o honrado ulemá narrou a sin-gular história que ouvi emocionada e curiosa:

3 - Luis Otávio, ob. cito

13~ Narrativa

História de um rei, e de um poeta que gosta-va da filha do rei. De que estratagema usavao monarca para desiludir os pretendentes à mãode sua filha. Como conseguiu o poeta vencera teimosia do pai de sua amada.

Das MIL HISTÓRIASSEM FIM... é esta a décimaterceiral

Lida a décima terceira restam, apenas, no-vecentas e oitenta e sete...

Em laristã, na Pérsia, reinava, há muitosséculos, um monarca famoso e rico chama-do Senedin.

Esse rei (Alá se compadeça dele!) era do-tado de uma memória tão perfeita que repe-tia, sem discrepância da menor palavra, opensamento, em prosa ou verso, que ouvis-se uma só vez. Essa prodigiosa faculdade dosoberano os súditos de laristã ignoravamcompletamente.

O rei Senedin tinha um escravo, chamadoMalik,igualmente possuidor de invulgartalen-to. Esse escravo era capaz de repetir, sem he-sitar, a frase, o verso ou o pensamento queouvisse duas vezes.

Além desse escravo, o poderoso senhor dolaristã tinha também uma escrava não me-

nos inteligente. leila - assimse chamavaela- podia repetir, facilmente, a página em pro-sa ou em verso que tivesse ouvido três vezes.

Quis a vontade de Alá (seja o Seu nomeexaltado!) que o rei Senedin tivesse uma fi-lha de peregrina formosura. Segundo os poe-tas e escritores do tempo, a princesa do la-ristã era mais sedutora do que a quarta luaque brilha no mês do Ramadã.'

Embora vivesse fechada no harém do pa-lácio real, entre escravos que a vigiavam, afama da encantadora Roxana se espalhou pe-lo país, atravessou os desertos, transpôs asfronteiras e foi ter aos reinos vizinhos.

Vários príncipes e xeques poderosos vierama laristã pedir a formosa princesa emcasamento.

1 - Ramadã - mês da quaresma muçulmana. Du-rante esse mês (28 dias) o jejum é obrigatório desde asprimeiras horas do dia até o cair da noite.

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o rei Senedin era pai extremoso; tinha pe-la filha enternecido afeto, e não queria, por-tanto, separar-se dela, o que fatalmente acon-teceria se a jovem e encantadora criatura ca-sasse com um príncipe estrangeiro da Arábia,da Síria ou da China.

Negar, porém, sistematicamente a todos osnumerosos pretendentes era um proceder quenão convinha à boa políticadiplomática do La-ristã Na verdade, alguns apaixonados de Ro-xana eram abastados e poderosos, e faziam-se acompanhar de cortejos tão pomposos etão bem armados, que menos pareciam ca-ravanas do que exércitos I

A vista de tão respeitáveis e valorosos pre-tendentes - que uma recusa formal poderiaferir ou melindrar- declarouo rei Senedinque só daria a sua filha em casamento àque-le que fosse capaz de recitar, diante dele, umapoesia inédita, desconhecida e original!

Curiosíssimo foi esse certame que agitoudurante muito tempo a população inteira dovelho país do Islã.

Apresentou-se, em primeiro lugar, o famo-so AI-TaminiBen-Mansul, príncipe de Tlem-cen, moço de grande talento, que podia per-filar entre os mais eruditos de seu tempo.

O príncipe AI-Taminirecitou, diante do rei,uma bela e inspirada poesia intitulada "A Es-trela", que havia feito em louvor da princesa:

Vi uma estrela tão alta,Vi uma estrela tão fria!Vi uma estrela luzindoNa minha vidavazia.

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Era uma estrela tão fria!Era uma estrela tão alta.Era uma estrela sozinhaLuzindo no fim do dia.

Por que de sua distânciaPara a minha companhiaNão baixava aquela estrela?Por que tão alto luzia?

Eu ouvi-a na sombra fundaResponder-me que assim faziaPara dar uma esperançaMais triste ao fim do meu dia.2

Ouviu Orei, com grande atenção, a poesiainteira. Mal, porém, o príncipe AI-Taminiha-via recitado o último verso, o inteligente mo-narca observou num tom em que a naturali-dade aparecia sob a máscara da ironia:

- É realmente bela e bem-feita essa poe-sia, 6 príncipeI Infelizmente,porém, nada temde original! Conheço-a, já há muito tempo esou até capaz de repeti-Ia de cor!

Eo rei repetiu pausadamente, sem hesitar,a poesia inteira, sem enganar-se numa sílaba.

O príncipe, que não podia disfarçar a suaimensa surpresa, observou respeitoso:

- Podeis crer, Vossa Majestade, que háforçosamente, nesse caso, um engano qual-quer. Tenho absoluta certeza de que essapoesia é inédita e original. Escrevi-a faz doisou três dias apenas! Juro que digo a verda-

2 - De Manuel Bandeira, Poesias Completas (pâg.167).

de, pelamemóriade Mafoma,o santo profe-ta de Deusl

- EIhâ morrl3- exclamouo rei. - Hácoincidências que perturbam e desorientamos mais prevenidosl Muitas vezes uma poe-sia que julgamos nova e completamente ori-ginal já foi escrita, cem anos antes de Mafo-ma, por Tarafa ou Antar! Quer ter agora mes-mo, ó príncipe!, uma prova do que afirmo?Vou chamar um escravo do palácio que tal-vez já conheça, também, essa poesia.

- Malik!O escravo que tudo ouvira, escondido cau-

telosamente atrás de um reposteiro, surgiu,inclinou-se respeitosamente diante do rei, bei-jando a terra entre as mãos.

- Dize-me,ó Malik!,se não conheces, poracaso, uma ode formosa e popular, cheia deimagens, na qual um poeta beduíno cantauma estrela que luzia no fim do dia?

- Conheço muito bem essa belíssima ode,ó rei dos reisl

O escravo, que já tinha ouvido a poesiaduas vezes, repetiu-lhe todos os versos, comabsoluta segurança:

Vi uma estrela tão alta.Vi uma estrela tão fria!Vi uma estrela luzindoNa minha vida vazia....................................................................................................................................................

3 - Expressão citada sob a forma de provérbio: "Averdade é amarga'"

Em seguida o rei mandou que viesse a suapresença a escrava Leila, que se conservaratambém escondida em discreto recanto dosalão.

A esperta rapariga, que três vezes ouviraa poesia do apaixonado príncipe, sendo ir\ter-rogada, repetiu por seu turno todos os ver-sos do príncipe, do princípio ao fim, com fi-delidade impecável:

Vi uma estrela tão alta,Vi uma estrela tão frialVi uma estrela luzindoNa minha vida vazia.....................................................................................................................................

Diante de provas tão seguras e evidentesretirou-se humilhado o rico AI-Tamini Ben-Mansul, príncipe de Tlemcen.

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Muitos outros pretendentes - xeques, vi-zires, cádis e poetas - foram ter à presençado rei Senedin, mas todos, graças aos recur-sos e estratagemas do monarca, voltavam de-siludidos e convencidos de que os versos quehaviam escrito eram velhos, velhíssimos e an-davam na boca de soberanos e vassalosl Eram- afirmava sempre o rei - anteriores a Ma-formal (Com Ele a oração e a glória.)

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Entre os incontáveis apaixonados da formo-sa Roxana, havia, porém, na Pérsia um joveme talentoso poeta chamado Ibrahim Ben-Sofian.

Não podia ele admitir que o rei Senedin co-nhecesse de cor todos os versos que os inú-meros pretendentes escreviam.

"Há ai algum misterioso estratagema",pensava ele excogitando o caso.

A desconfiança sugere muitas vezes ao ho-mem idéias e recursos imprevistos; é comoa luz do sol, que empresta às nuvens colora-ções que elas não possuem.

Bem dizem os árabes: "Aquele que descon-fia vale sete vezes mais do que qualquer ou-tro."

Resolvido, portanto, a deslindar o segredo,o poeta Ibrahim escreveu uma longa poesiaintitulada "A Lenda do Vaso Partido", empre-gando, porém, as palavras mais complicadase mais difíceis do idioma persa. Gastou nes-sa paciente tarefa muitos meses.

Terminado o trabalho, o talentoso poetaapresentou-se à prova diante de Senedin, se-nhor do Laristã.

Em dia marcado, na presença de vizires enobres, o rei Senedin recebeu o poeta Ibra-him Ben-Sofian.

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o monarca tinha a convicção de que ven-ceria o novo pretendente empregando o mes-mo modo e o mesmo artifício com que sou-bera iludir todos os outros.

Ibrahim leu com vagar os versos tremen-dos e complicados que compusera com vo-cábulos quase desconhecidos. Não havia me-mória capaz de conservar por um momentosequer as palavras esdrúxulas que o poetaproferia.

O rei, ao perceber o recurso singular de quelançara mão o poeta, sentiu que sua privile-giada memória fora, afinal, vencida; não quis,entretanto, confessar-se derrotado.

- Ouvi com agrado os teus versos - de-clarou com visível constrangimento. - De-vo dizer que não os conheço. São certamen-te originais.E como a minhapalavrafoi da-da, casarás com a minha filha. Desejo, entre-tanto, fazer-te um pedido. Quero conhecer" ALenda do Vaso Partido", tantas vezes citadaem tua poesia.

- Escuto-vos e obedeço-vos - respon-deu o poeta. - Para mim nada mais simplesdo que narrar essa belíssimahistória.

E assimcomeçou:

14~ Narrativa

Singular episódio ocorrido em Bagdá. Estra-nho proceder de um xeque que adquire um jar-ro riquíssimo para espatifá-Ia logo em seguida.

Das MIL HISTÓRIASSEMFIM... é esta a décimaquarta!

Lida a décima quarta restam, apenas, nove-centas e oitenta e seis...

Da janela de minha casa, em Bagdá, ob-servava uma tarde o vaivém dos aventureirose beduínos, quando a minha atenção foi des-pertada por um fato que me pareceu estra-nho e muito singular.

Um homem, ricamente trajado, aproximou-se de um velho mercador que oferecia à ven-da, sob largo toldo, uma bela coleção de jar-ros de diversas formas. Depois de escolher,com um empenho que me pareceu exagera-do, a peça que mais lhe interessava, o des-conhecido pagou ao vendedor, sem hesitar,o preço exigido. Isso feito, encaminhou-se pa-ra o meio da rua e levantando, com ambasas mãos, o jarro atirou-o com toda força con-tra uma pedra, espatifando-o.

- É um louco! - murmurei. E, como nãosei resistir à atração que sobre mim exerce oímã da curiosidade, fui sem demora juntar-meao grupo dos que faziam roda ao desatinadocomprador.

o homem, entretanto, sem se preocuparcom os árabes e cameleiros que bem de per-to o observavam, abaixou-se e começou aajuntar vagarosamente os cacos, como se lhemovesse a intenção de reconstituir o que elemesmo destruíra inexplicavelmente.

Xeques e caravaneiros que cruzavam a rua,vendo o caminho impedido pelo ajuntamen-to, gritavam do alto dos maharis:'

- Passagem! Eia! Por Alá! Passagem IAo cabo de algum tempo tornou-se enor-

me a confusão; os mais exaltados, proferin-do insultos e blasfêmias de toda espécie, ten-tavam maldosamente atropelar e pisar comseus camelos os curiosos parados em gruposno meio da rua.

Temendo que aquele incidente degeneras-se num conflito mais sério, deliberei intervir.

1 - Mahari - Camelode sela. (B.A. B.)

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Aproximei-medo desconhecido,tomei-ope-lo braço e disse-lhe:

- Quero levar-vos, meu amigo, até a mi-nha casa! Tenho em meu poder diversos jar-ros persas e chineses com desenhosadmiráveis.

Sem se mostrar surpreendido ou contraria-do pelo intempestivo convite, o jovemacompanhou-me sereno, sob o olhar atônitoda multidãoI

Ficamos sós. Ofereci-lhe, com demonstra-ções de alta cerimônia, tâmaras e água, masele nada aceitou. Quis apenas provar o pãoe o sal da hospitalidade.

Teria, afinal, o meu estranho hóspede per-dido o uso da razão?

- Onde estão os teus jarros chineses? -perguntou-me, percorrendo insistente, como olhar, todos os cantos da sala.

- Peço perdão, ó xequel - respondi -,faltei há pouco à verdade quando vos dissepossuir jarros da China e da Pérsia. Queria,apenas, inventar um pretexto para arrancar-vos do meio daqueles exaltados muçulmanos!Sedal matghechoc ôlloh fê-vechoc!2 Bemvejo que sois estrangeiro e desconheceis, porcerto, o gênio arrebatado e violento do povodesta terra. Rara é a semana em que não as-sistimos, pelas praças e ruas, distúrbios e cor-rerias. Às vezes, por causa de ninharias e fri-volidades, homens são assassinados e ricaslojas saqueadas em poucos instantes.' Osguardas não dominam os ímpetos sangüiná-

2 - É preferivel agora n1l0enganar, e dizer-te logoa verdade!

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rios da população. Se houvesse, há pouco,um conflito com os caravaneiros turcos, avossa vida estaria em grave perigo!

Riu o desconhecido ao ouvir a minhaexplicação.

- Uallahf3- exclamou. - Julgavas, en-tão, que eu fosse um fraco, um demente? Éinteressante! Vou contar-te a minha históriae o motivo que me levou a quebrar um jarrono meio da rua.

Antes, porém, de dar início à prometidanarrativa,o jovem maníacosentou-se sobreuma almofada (que cuidadosamente ajeitara),colocou diante de si, sobre o tapete, dois frag-mentos do jarro que ele, pouco antes, esti-lhaçara em plena rua e pôs-se a observá-Ioscom a atenção de um obstinado.

Pareceu-me que seria mais delicado ou tal-vez mais cauteloso não perturbar o meu hós-pede. Acomodei-me, sem-cerimônia, diantedele, acendi o meu delicioso narguilé eentreguei-me à tarefa de reparar e estudar asestranhas atitudes do lunático quebrador devasos.

Teria, no máximo, trinta e um ou trinta edois anos; seus olhos eram azulados; sua bar-ba clara tinha reflexos cor de ouro vivo. Os-tentava, com natural elegância, um aparato-so turbante de seda amarela no qual cintilavauma pequena pedra verde-escura.

De repente, a fisionomia do jovem tornou-se radiante, como se surpreendente inspira-ção a iluminasse. Ergueu o rosto e disse-merisonho:

3 - Uallahou Ualá- Por Deus! IB. A. B.I

- Afinal, o sultão perdoou o segundo con-denado e este, sem querer, salvou ocompanheiro!

Aquela frase, para mim, não tinha sentido.Parecia disparate.

- Que sultão é esse, 6 jovem? -interpelei-o com exagerada complacência, nacerteza de que falava a um infeliz demente.

- lamentável distração a minha! - excla-mou com vivacidade. - Acreditei que fosses

capaz de adivinhar os meus pensamentos eseguir o rumo da história que estive, aquisentado, a arquitetar! Conforme prometi, voucontar-te o enredo de minha vida, e esclare-cer os episódios que me forçaram a esfacelaro jarro diante da tenda de um mercador. Etu-do compreenderás.

E na linguagem límpidae correta de um ho-mem educado e culto, contou-me o seguinte:

79

15~ Narrativa

História de um "Contador de Histórias". Co-mo um jovem, sentindo-se atrapalhado, põe emprática os ensinamentos contidos num provér-bio hindul

Das MILHlsrORIAsSEMFIM...é esta a décimaquintal

Lida a décima quinta restam, apenas, nove-centas e oitenta e cinco...

Rafi An-Hari é Omeu nome. Meu pai, queera um hábil negociante, fazia de quando emvez uma viagem a Sirendib,' aonde ia embusca de especiarias que ele revendia comapreciáveis lucros aos seus agentes de Basra.

Quis, porém, o destino que meu pai viessea morrer em conseqüência de um naufrágio,desaparecendo com todas as riquezas e di-nheiro que transportava. Ficou a nossa faml-lia em completo desamparo. Forçado pelasnecessidades da vida a procurar trabalho,empreguei-me como escriba em casa de umxeque muito rico chamado Ibraim Hata. Umanoite, conversando casualmente com o meupatrão, disse-lhe que sabia contar váriashistórias.

- Se é verdade o que acabas de revelar- ajuntou o xeque - vou dar-te, em minha

1 - Antigonome de Ceilão.

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casa, o emprego de contador de histórias.Passarás a ganhar o triplo de teu atualordenadol

Aquela decisão do meu generoso amocausou-me não pequena alegria. Passei aexercer no palácio de Ibraim Hata um cargoinvejável:contador de histórias. Todas as noi-tes, invariavelmente, o xeque Ibraim reuniaem sua casa vários parentes e amigos; e eu,na presença dos ilustres convidados, conta-va uma lenda ou uma fábula qualquer. Emge-ral, finda a narrativa, os ouvintes mais entu-siasmados felicitavam-me com palavras de es-timulo e davam-me ainda peças de ouro. Viviassim, regaladamente, durante meses se-meando na imaginação dos que me ouviamtodos os sonhos e fantasias dos contosárabes.

Hoje, finalmente, pela manhã, fui avisadode que haviam chegado do Egito vários ami-gos do xeque, mercadores ricos e prestigio-

sos, que seriam incluídos entre os meus nu-merosos ouvintes para o conto da noite.

Em outra ocasião tal acontecimento seriapara mim motivo de júbilo; agora, porém, veiocausar-me um grande pavor, deixando-me ocoração esmagado por uma angústia sem li-mites. E a razão é simples: tendo desfiado,sem cessar, até a minha última pérola, o co-lar das minhas histórias e fábulas, nada maisrestava do meu tesouro! Como inventar, demomento, um conto interessante e maravilho-so capaz de agradar aos meu nobres e exi-gentes ouvintes?

Preocupado com a grave responsabilidadeque pesava sobre meus ombros, deixei pelamanhã o palácio de meu amo e deliberei ca-minhar ao acaso, pelas ruas da cidade, poistinha a esperança de encontrar alguém queme pudesse tirar do embaraço em que meachava. Procurei nos cafés os contadores pro-fissionais de maior fama e consultei-os sobreas melhores narrativas que conheciam; ape-sar da recompensa que eu prometia, não con-segui ouvir de nenhum deles história que fos-se nova para mim; citavam-me algumas - éverdade - mas todas elas já tinham sido pormim mesmo narradas ao xeque.

O desânimo - acompanhado de uma in-quietação perturbadora - já começava a es-magar as fibras restantes de minha energia,quando me veio, não sei por que, à lembran-ça, um antigo provérbio hindu: "Um jarroquebrado alguma coisa recorda." "Quem sa-be", pensei, agarrando-me ainda uma vez àesperança, "quem sabe se um jarro partidonão me fará lembrar uma história há muito es-

quecida no meu passado pela caravana indo-lente da memória?"

Conta-se (Alá, porém, é mais sábio!} queo famoso poeta Moslini ben el Valid foi, cer-ta vez, vitima de grave atentado. Fizeram cairsobre ele, atirado do alto de um terraço, gran-de e pesadíssimo jarro. Veio o jarro espatifar-se aos pés do poeta e uma das estilhas, sal-tando impelida pela violência do choque, foiferir de leve o rosto de Moslini. O jarro, fabri-cado por um oleiro de Medina, trazia em le-tras douradas, sobre fundo azul, a seguinteinscrição:

"0 que se adquiriu pela força só sepode conservar pela doçura."

O fragmento que feriu Moslini era, preci-samente, aquele que continha a palavra"doçura".

Aconselharam ao poeta que levasse o ca-so ao conhecimento do juiz. A culpada (forauma jovem ciumenta a autora do atentado)devia ser punida. Recusou-se, porém, Mosli-ni, a apresentar queixa ou acusação, dizen-do: "Não posso pedir castigo ou punição pa-ra uma pessoa que me feriu com tanta 'do-çura'. "

Confirmava-se, mais uma vez, o provérbio:"Um vaso quebrado alguma coisa recorda."

Movido por essa idéia, adquiri um jarro, de-pois de meticulosa escolha e pondo em exe-cução o plano delineado, limitei-me a reduzi.10a estilhas no meio da rua.

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- E o processo deu resultado? - pergun-tei, interessado. - Veioà vossa memória, de-pois do sacrifício, alguma história interessan-te, digna de ser contada a um auditórioseleto?

A minha ingenuidade fez rir novamente ointeligente Rafi An-Hari.

- VaIá! - exclamou, batendo-me no om-bro. - O tal jarro, depois de partido, fez-me

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recordar um conto, muito original,que poderádivertir os viajantes ilustres e agradar ao bome generoso xeque Ibraim. E sabes, meu ami-go, que história é essa?

- Interessa-me conhecê-Ia - respondi. -Deve ser muito original.

Vendo-me dominado pela curiosidade, o in-teligente RafiAn-Hari contou-me o seguinte:

'.

16~ Narrativa

Históriade dois infelizescondenados que sãosalvos de modo imprevisto, no momento emque iam morrer. Por causa da sentença de umsultão encontramos, com surpresa, um famo-so narrador de histórias.

Das MIL HISTORIASSEM FIM... é esta a décimasexta!

Lida a décima sexta restam, apenas, nove-centas e oitenta e quatro...

Conta-se - Alá, porém, é mais sábio1-que o sultão AliMachem, senhor de Khoras-sã, por um capricho extravagante, foi certavez, acompanhado de seu grão-vizir, emirese conselheiros, assistir à execução de dois in-felizes beduínos da tribo de Lenab.

Em dado momento, quando o carrasco, jáprestes a desempenhar a sua torva, punha ter-mo aos últimos preparativos, o condenadoque devia ser justiçado em segundo lugaradiantou-se alguns passos, aproximou-se dorei, e disse-lhe, depois de saudá-Iahumildemente:

- Deus vos cubra de incalculáveis bene-fícios, ó rei! Bem sei que poucos momentosme re!;tam de vida. Já vejo Azrail, o Anjo da

1 - O muçulmanoortodoxo não faz outra citação(por mais 'Simples que seja) sem ajuntar a fórmula tradi-cional "Alá, porém, é mais sábio" (do que este que es-tou agora citando).

Morte, aproximar-sedemim. Desejo,contu-do, merecerdevossainexcedívelbondadeumúltimo favorl

- Fala, beduíno - ordenou o rei. - Dizeo que pretendes de mim. Jamais desatendo,quando possível, ao derradeiro pedido de umcondenado I

- Reimagnânimol- respondeuo árabe.- O meu desejo vale menos do que uma tâ-mara depois de um banquete do califa. Gos-taria de ser executado antes de meu compa-nheiro e não depois dele, como parece vaidar-sei

Não foi pequena a surpresa do monarca aoouvir tão inesperada solicitação.

- Não tenho dúvida algumaem atenderao teu pedido - retorquiu o rei. - Acho-o,porém, bastantecuriosoe não encontro, depronto, motivo capaz de justificá-Iosatisfatoriamente.

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Sem deixartransparecer a menor cavilação,o condenado assim explicou:

- A razão é simples, ó sultãol Esse ho-mem, que devia preceder-me no suplicio, éum hábil contador de histórias e profundo co-nhecedor das lendas mais famosas do Islã. Émeu intento, portanto, precedendo-o na mor-te, proporcionar a um árabe tão culto algunsminutos mais de vidal

O rei Machem - dizem os cem historiado-res de seu tempo - era um soberano bon-doso e justo. Ao ouvir a declaração do con-denado sentiu que lhe competia, no mesmoinstante, lavraruma sentença digna do suces-so; e movido por tão humanitários sentimen-tos exclamou:

- Ualál .Se assim é, ó muçulmano, estãoambos perdoadosl Por ser um grande narra-dor de lendas, o teu amigo jamais sofrerá cas-tigo de morte; e tu também fizeste jus ao per-dão pela forma admirável com que acabas dedemonstrar a tua generosidade.

O maldoso grão-vizir Kacem Riduam(Cheitã2o castigueI) que até então se con-servara em silêncio, dirigindo-seao soberano,observou irônico:

- Permiti, ó reil, ao vosso humilde servouma observação ditada pela longa experiên-cia que tenho da vida e dos homens. Será,afinal, verdadeira a declaração desse imper-tinente beduíno? Não estaremos diante deuma mistificação habilmente tramada por umcondenado astucioso que pretende, apenas,

2 - Cheitã - Demônio.

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fugir, pelo oásis da vossa clemência, ao jus-to castigo de que se fez merecedor?

- A tua suspeita não é de todo descabi-da! - replicou o rei.' - A hipótese que for-mulaste, meu caro vizir, pode correspondera uma triste verdade, e é necessário que nãoexista o menor sulco de dúvida na areia clarado meu espírito. Vou, pois, exigir que o be-duíno narrador de lendas dê, aqui mesmo,diante de todos nós, uma prova de seus ta-lentos e habilidades.

E,dirigindo-seao primeirodos condenados,disse-lhe o soberano:

- Se não é falso o que a teu respeito ale-gou, há pouco, o teu bondoso amigo, conta-nos, ó filho do deserto, a mais formosa daslendas que conheces! A prova da tua eloqüên-cia deverá ser forte e segura como a carava-na de um emir vencedor.

Interpelado peio sultão, o beduíno, depoisde beijar três vezes a terra entre as mãos, as-sim falou:

- Conheço, ó rei venturoso e digno!, se-te mil e uma lendas, algumas das quais sãotão belas que fazem lembrar os maravilhosos.poemas do célebre Montenébbi. 3 Que Deuso tenha em sua paz! Vou contar-vos, porém,para começar, a última de todas essas mara-vilhosas histórias, que é, a meu ver, a maisrica em ensinamentos e verdade! Queira Aláque ela apague a dúvida do vosso espíritocom a mesma facilidade com que o simum faz

3 - Veja nota à pág. 31.

desaparecer no deserto os rastros dascaravanas!

E, depois de pequeno silêncio, o árabe ini-ciou a seguinte narrativa:

85

17~ Narrativa

História de um rei que tinha cara muito en-

graçada. Que fez o rei para evitar que a sua pre-sença causasse hilaridade.

Das MIL HlsrORIAs SEMFIM... é esta a décimasétimaI

Lida a décima sétima restam, apenas, nove-centas e oitenta e três...

Existiu outrora, no lêmen, um rei chama-do Ibedin Daimã, que se tornou famoso pelaoriginalidade espantosa de seus traços físio-nômicos. Ea fama justificava-se, pois, em ver-dade, esse rei tinha uma cara extraordinaria-mente burlesca. Ninguém podia ficar sério eimperturbável quando observava a máscarachistosa e apalhaçada do rei.

Nas horas de audiência solene, quando opoderoso monarca se apresentava empertiga-do em seu trono de marfim e pedrarias, os no-bres e cortesãos riam estrepitosamente. Nãohavia conter-se.

Um dia, afinal, irritado com aquela hilari-dade que tanto o humilhava, o soberano ára-be resolveu consultar o seu inteligente e ha-bilidoso grão-vizir. Que fazer para pôr termo,de uma vez para sempre, àquelas gargalha-das escandalosasque molestavam o prestigioda coroa e o alto renome do pais?

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- Nada mais simples - respondeu oprimeiro-ministro. - Penso que deveis baixarum decreto determinando que, portas aden-tro do palácio real, quem quer que seja s6 te-rá o direito de rir uma única vez. Severo cas-tigo será imposto àquele que tiver a ousadiade transgredir a vossa determinação.

Concordou prontamente o rei com o alvi-tre, que achou excelente, e, no dia seguinte,com surpresa de todos, a inesperada decisãoposta em letras garrafais percorreu a cidadetoda, ao som de estridentes clarins.

Nos termos do tal decreto, as pessoas quese achassemem presença do rei Ibedin s6 po-deriam rir uma vez; aquela que tivesse a pe-tulância ou a insolência de dar segunda mos-tra de riso seria enforcada.

Houve, nessa mesma semana, uma gran-de reunião no palácio. Os nobres mostravam-se constrangidos e assustados. Traziam al-

guns sapatos apertadíssimos,que os faziamsofrer horrivelmente; muitos outros coloca-ram sob a roupa, contra o corpo, farpas e es-pinhos que, ao menor movimento, feriam etorturavam as carnes; outros, ainda, levavamà boca, de quando em vez, sementes amar-gas de sabordetestável.Tudo issofaziampa-ra evitar o desejo louco de rir, quando se Ihesdeparasse a cara irresistível do rei.

Em meio da audiência, quando o monarcaouvia atento um poeta que declamava um ins-pirado poema, eis que a risada viva e argenti-na de um dos presentes vem perturbar repen-tinamente o silêncio e a gravidade da reunião.

Fora autor daquela intempestiva risada ovelho e judicioso Damenil, primeiro-procurador do reino, homem ilustre e de gran-de prestígio na corte.

E, logo depois, sem dar atenção ao espan-to dos que o rodeavam, o digno procurador

. riu ainda mais forte e mais gostosamente.Passados alguns instantes, como se esti-

vesse tomado de súbita alucinação, o respei-tável Damenil, pela terceira vez, feriu a sole-nidade da ocasião, com uma longa e estrepi-tosa gargalhada.

O rei Ibedin, surpreendido com a atitude in-sólita e desrespeitosa do velho funcionário,ergueu-se furioso e exclamou:

- Não ignoras, por certo, 6 procuradorl,os termos do último decreto por mim assina-do! A tua irreverente conduta nesta assem-bléia obriga-me a incluir o teu nome entre osque se acham privados da luz da razão. Exijoque justifiques, de modo claro e preciso, astuas insultuosas gargalhadas. Se não o fize-

res de maneira cabal e satisfatória, farei lavrar,neste mesmo instante, a tua sentença demortel

Diante dafluela grave ameaça, o ilustre an-cião mostrou-se impassivel. A imagem do al-fanje do carrasco, prestes a desferir o golpe,não chegava a perturbar a serenidade de suaveneranda figura. Aproximou-se respeitosodo rei e assim falou:

- A primeira vez eu ri, 6 magnânimo se-nhor!, porque a lei me permite rir uma vez.Coube-me rir pela segunda vez por ser pro-curador da corte. Realmente. De acordo comas funções que exerço, posso falar, cantar ourir em nome do rei, pois tenho plena autori-zação para assim proceder. A terceira vez, fi-nalmente, eu ri porque me lembrei, de repen-te, de uma história que me foi contada, hádois meses, por à sombra das tamareiras.

- Que históriaé essa? - indagou' o rei,tomado de viva curiosidade. - Deve ser in-teressantissima, pois, ao recordá-Ia, um ho-mem é capaz de rir,arriscando a própria vida!

Respondeu o procurador:- Éuma lenda tão engraçada que faria rir

até uma raposa morta! Intitula-se "História deUma Ovelha Mal-Assombrada".

- Conta-nos, ó irmão dos árabes! - ex-clamou o monarca - essa prodigiosa "His-tória de Uma Ovelha Mal-Assombrada"l

- Sinto-me forçado a dizer, ó rei - ex-plicou o vizir - que a minha narrativa iriapôrem perigo de vida todos os nobres e xequesaqui presentes. Assim sendo, só poderei aten-der ao vosso honroso pedido se for previa-

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mente revogadaa lei que proibe as risadasneste paláciol

O rei Ibedin, diante da justa ponderação deseu digno procurador, revogou, no mesmoinstante, o decreto que limitava as expansõesde alegria a fim de permitir que o sábio nar-rasse a hilariante "História de Uma OvelhaMal-Assombrada" .

No momento em que o ilustre procuradorDamenil ia dar inicio ao conto, o grão-viziraproximou-se respeitoso do trono e disse:

- Rei do Tempo! Os homens que se inte-ressampelos problemas da educação afirmamque as histórias que instruem são preferíveisàs que divertem. Convém ouvirmos pois, pre-viamente, pela palavra eloqüente do judicio-

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so Damenil, um conto que encerre ensina-mentos e verdades; a seguir, então, com oespírito bem esclarecido, poderão todos ou-vir o humorístico episódio que faz rir até umaraposa morta.

- É muito justa a vossa ponderação -concordou o rei.

E voltando-se para o procuradoracrescentou:

- Conte-nos, ó prudente ulemá!, uma his-tória simples, que traga novos raios de luz aosnossos olhos e uma parcela de conforto aosnossos corações.

- Escuto-vos e obedeço-vos - respon-deu o preclaro Damenil.

E narrou o seguinte:

18~ Narrativa

História de um rei que detestava os ociosos.Na qual esse rei encontra três forasteiros, sen-do o primeiro um persa que exercia curiosa eestranha profissão.

Das MIL HISTÓRIASSEMFIM... é esta a décimaoitava!

Lida a décima oitava restam, apenas, nove-centas e oitenta e duas...

Imensa região situada ao norte da África foioutrora governada por um sultão notável cha-mado Abul Inane.

Essegloriosomonarcatinha a nobrepreo-cupação de combater a ociosidade e não ad-mitia, dentro de suas fronteiras, homem al-gum que vivesse alheio ao trabalho ou quenão dedicasse suas atividades a alguma obrade indiscutível serventia.

Grande, portanto, foi a surpresa do reiquando ao regressar, certa vez, de uma ex-cursão ao oásis de Beni-Hezã avistou três ho-mens que repousavam sob uma árvore.

A dúvida sobre o caso não podia existir.Tratava-se de vadios que fugiam das fadigasdo emprego para andar à gandaia, e dormi-tar negligentes à sombra das tamareiras.

Abullnane fez parar a sua comitiva e de-terminou que os três mandriões da estradaviessem à sua presença.

- Malandros! - exclamoufurioso o rei.- Não deveis ignorar, por certo, que a ocio-sidade neste pais é um crime. Os meus vizi-res têm ordem de obter para todos os deso-cupados um emprego ou um oficio compatí-vel com a capacidade de cada um. Quero serinformado da situação de cada um de vós,pois do contrário sereis castigadosimpiedosamente.

Um dos desconhecidos, sentindo-se amea-çado por essaspalavras, aproximou-se respei-toso do grande monarca e assim falou:

- Rei do Tempo! Seja Alá o vossoguiae o vosso amparol Há mais de vinte dias che-gamos do Egito e, logo que pisamos em vos-sos dominios, procuramos trabalho dentro denossas profissões. Depois de muitas tentati-vas inúteis, fomos pedir o precioso auxilio dogrão-vizir. Esse ilustre magistrado declarou,entretanto, que não poderia obter emprego

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algum que nos servisse, e ofereceu-nos recur-sos para abandonar o país.

- Não é possível! - contrariouAbullna-ne. - Esta terra precisa de homens e seriaum crime repelir o auxíliodos bons muçulma-nos. Houve, com certeza, engano ou descui-do do meu grão-vizir. São infinitas as formasde atividade em meu reino. Asseguro-vos, sobpalavra, que serei capaz de obter emprego pa-ra qualquer homem de ação. Desejo conhe-cer, apenas, as vossas respectivas profissões.

Interrogado desse modo pelo glorioso sul-tão, Merenida, o primeiro dos acusados, as-sim falou:

- ReilVenho da cidade de Ispahã, na Pér-sia, e exercia lá uma profissão denominadaafifah-segadah-kheyt, expressão que signifi-ca, mais ou menos, "aquele que abre cami-nho no meio da multidão". Cabe-me dizerquena longínqua Ispahã há, semanalmente, gran-des feiras; a cidade é invadida por milharesde forasteiros; as ruas ficam apinhadas e otrânsito torna-se quase impossível. É muitocomum que uma pessoa precise, de repente,deslocar-se, a toda pressa, de um lugar paraoutro. Solicita, nesse caso, o auxílio de umafifah-segadah-kheyt, que se encarrega, me-diante modesta remuneração, de abrir cami-nho no meio da multidão. Não é das mais sim-ples a profissão de afifah. O indivíduoque de-seja exercê-Ia precisa possuir certas qualida-des. Ser resistente, para afastar os importu-nos; ser corajoso, para enfrentar os atrevidos;ser prudente, para evitar os agrupamentos pe-rigosos; ter domínio sobre os camelos, parase aproximar sem receio desses animais; co-

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nhecer as pragas mais violentas que figuramem todos os dialetos, para não ofender osexaltados. Um afifah que pretenda ser eficien-te em sua profissão precisa ter sempre nopensamento a grande verdade, Med reglek alkad-lehafak.1 Ora, um dia encontrava-me àporta da mesquita, em Ispahã, quando demim se aproximou um desconhecido. Pare-cia um persa nobre. Trazia na mão uma cai-xa escura de dois palmos de comprimentomais ou menos.

" 'Queres levar', disse-me, sem maispreâmbulos, 'esta caixa ao palácio do xequeAI-Fakars? Receberás, pelo serviço, cinco di-nares'. 'Aceito', respondi. Tomei da caixa,sobracei-a cuidadosamente e parti a correr emdireção à residência do xeque. As ruas esta-vam repletas. De súbito um beduíno estou-vado deu-me um esbarrão violento. A caixacaiu-me do braço e, batendo com violêncianuma pedra, abriu-se. Vi, então, uma cenaque me causou assombro. De dentro da cai-xa saltaram quinze ou vinte rãs que se espa-lharam pela rua. Os populares que se acha-vam perto atiraram contra mim:

" 'Feiticeiro! Feiticeiro!', gritavam os maisexaltados, 'Mata! Mata!' Com receio de sertrucidado pelos fanáticos, tratei de fugir dali,proeza que pratiquei em poucos instantes gra-ças à habilidade com que sei me deslocar nomeio dos ajuntamentos. As tais rãs, comomais tarde vim a saber, valiam um tesouro:tinham sido trazidas da Ilhade Chipre. No dia

t - Provérbio árabe: "Acomoda teus pés conformeo tamanho do teu cobertor."

Um bedu(no estouvado deu-me um esbarrão violento. A caixa caiu-me do braço e, batendo comviolência numa pedra, abriu-se. Vi, então, uma cena que me causou assombro. De dentro da caixasaltaram quinze ou vinte rãs que se espalharam pela rua. (Pág.90)

seguinte soube que o xeque AI-Fakars, ho-mem vingativo e perverso, não se conforman-do com a perda das rãs, andava à minha pro-cura. Fugi da Ispahã e, depois de jornadearpor vários países, vimter aqui. Vejo-me, ago-ra, em dificuldades, pois em Túnis, a vossabela capital, não há multidões e os meus ser-viços tornaram-se desnecessários."

- É singular! - concordouo rei. - Nãopoderia imaginar que houvesse no mundoprofissão tão estranha.

- Mais estranha ainda, 6 rei! - acrescen-tou o afifah -, é a profissão exercida pelonosso c.ompanheiro hindu.

- Por Alá - bradou o sultão. - Que pro-fissão é essa que de tão esquisita chega a ven-cer a tua em estranheza.

O segundo aventureiro, depois de um hu-milde saJã, contou o seguinte:

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19:- Narrativa

História de um empalhador de elefantes queembriagava pavões para combater as serpentes.

Das MILHISTORIASSEMFIM... é esta a décimanonal

Udaa décimanonarestam,apenas,novecen-tas e oitenta e uma...

Sou natural da India. Trabalhei, durante to-da minha vida, nas terras do rajá Naradej, go-vernador da provincia de Rã-Napal. Esse prin-cipe conservara em suas matas mais de qui-nhentos elefantes sagrados. Quando aconte-cia morrer um desses elefantes, o principe Na-radej determinava que o corpo do monstruo-so paquiderme fosse cuidadosamente embal-samado. Cabia-me, então, executar com ha-bilidade essa piedosa tarefa. A minha profis-são é, portanto, muito simples e nobre: "em-palhador de elefantes sagrados". Eu moravanuma casa pequena e modesta, construida nomeio da mata sombria em que viviam os ele-fantes. Aquelas terras eram infestadas de pe-rigosas serpentes; rara a semana em que nãose perdia um homem picado por uma delas.Aquele flagelo parecia irremediávelpois a nos-sa religião não permite matar um animal sejaeste embora uma peçonhenta cobra. Que fiz

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então? Sem que o rajá soubesse, iniciei umagrande criação de pavões; para evitar que ospavões se afastassem dos arredores da casa,usei de um estratagema muito curioso. A par-tir dos primeiros dias habituei os pavões aouso do ópio que é, como todos sabem, umentorpecente perigoso.

Todas as tardes cada pavão recebia, em mi-nha casa, diante da porta que abria para o ter-reiro, uma certa dose de ópio e ali ficava, du-rante a noite, num sono de embriaguez. Pelamanhã, os pavões partiam pela mata em bus-ca de seu manjar predileto - as serpentes.Quando um pavão encontra uma cobra, en-tra logo em luta. Os botes e assaltos do ofi-dia são inúteis; a plumagem forte e espessaque reveste o corpo do pavão não permite queessa ave possa ser mordida pela serpente. Opavão, depois de se divertir durante algunsminutoscomsua vitima,mata-acomduas ou

três violentas bicadas, transformando-a, a se-guir, numaapetitosa iguaria. Com auxílio 'dospavões "viciados" eu fui pouco a pouco ex-terminando as serpentes que viviam nos ar-redores de minha casa. Um dia, porém, o ra-já foi informado de que eu embriagava os pa-vões, dando-Ihes ópio todasas tardes. °meuprocedimento foi tido como "infame", poiscontrariava todos os preceitos religiosos dopovo. Por esse motivo fui despedido do em-prego e expulso das terras. Depois de muitoperegrinar pelo mundo, cheguei a este paísonde esperava arrumar colocação. Sinto-me,todavia, embaraçado, pois julgo que dificil-mente encontrarei aqui elefantes sagradosque exijam as minhas habilidades deempalhador.

- Nãorestadúvida- concordouo rei -a vossa singular especialidade não encontrafacilmente aplicação dentro das fronteiras demeu país. Farei, todavia, o possível paraauxiliar-vos.

Disse então o hiRdu:- Se a minha profissão é original, rara e

estranha, mais rara, estranha e original é aprofissão exercida por este camarada.

Eapontou para o terceiro forasteiro, que semantivera de pé, em atitude respeitosa, a pou-cos passos de distância.

- PorAlá! - bradouo rei. - Pelosagra-do templo de Meca! Será possível que exis-ta, em algum recanto do mundo, profissãomais esquisita do que aquela que exerce umempalhador de elefantes sagrados?

E, dirigindo-se ao estrangeiro, disse-lhe:- Aproxima-te, meu amigol Quero saber

qual é a profissão maravilhosamente rara queexercias em tua terra, e por que vieste pararagora em nosso país!°terceiro viajante, interpelado pelo sultão,assim falou:

- Crime seria iludir-vos com fantasias en-ganadoras ou com exageros mentirosos. Aprofissão que exerço e na qual, digo-o ferin-do, embora, a minha natural modéstia, soude excepcionaleficiência,não é certamentedas mais raras. Tenho encontrado, ao percor-reros caminhosde Alá, homens que exercematividades muitomaisestranhas.EmHeif, nosul da Arábia, conheci um ancião que amea-Ihavabens invejáveis domesticando lagartixase proporcionando, com esses animaizinhossobre grandes bandejas de prata, espetácu-los que muito distraíam os curiosos. Assistipor exemplo, um luta simulada entre duas la-gartixas que me deixou encantado. Esse má-gico das lagartixas chamava-se EI-Magdisi eera tão avarento que passou a adotar o apeli-do de Mag para economizar tinta nas assina-turas do nome. Em Damasco, na Síria, fiz boaamizade com um calculista cujo ganha-pãoconsistia em fazer cálculos inúteis que não de-viam na verdade interessar a pessoa alguma.Quantas escamas tem um certo peixe? Quan-tos passos, em média,uma pessoa dá por dia?Qual é o número cujo quadrado é formado pordez algarismos e todos desiguais: 0, 1, 2, 3,4, 5, 6, 7, 8, 9? Quantas vezes a letra alef apa-rece na 1~ surata do Alcorão? Havia cente-nas de outros problemas sem a menor signi-ficação, que o calculista vendia por bom pre-ço aos damascenos mais ilustrados.

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- Todas essas considerações - interrom-peu delicadamenteo sultão - parecem-medignas de atenção dos estudiosos. No mo-mento, porém, não me interessame não dis-ponho, infelizmente,de temposuficientepa-ra ouvi-Ias.

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"Quero que me descrevas a profissao queexerces, e que teu companheiro reputa origi-nal e surpreendente."

O terceiro viajante, interpelado desse mo-do pelo sultão, narrou o seguinte:

20~ Narrativa

História de um homem que afinava cigarras.Um conselho simples que esse homem recebeude um mendigo de Medina.

Das MIL HISTÓRIASSEMFIM... é esta a vigé-simal

Lida a vigésima restam, apenas, novecentase oitenta...

Poderia parecer, 6 reil, a um espfrito me-nos atilado, que eu pertencesse ao númeroinfindável dos indolentes e preguiçosos. Talsuspeita traduziria uma dolorosa injustiça.Sou de indole ativa: adoro o trabalho e exer-ço uma profissão utilfssima. Nasci em Meka-Ia, ao sul da Arábia. Existe, nesse pais, umgrande número de cigarras. Habituado a ou-vir o canto dessescuriosos habitantes das sei-vas, aprendi a imitá-Ios com grande perfeição.

Verifiquei, entretanto, que algumas cigar-ras cantam mal, são roucas e desafinadas; pu-de observar ainda que era possível corrigircertos defeitos fazendo com que as cigarrasouvissem melodias perfeitas no tom justo ecerto. Informado da minha habilidade, o go-vernador de Mekala encarregou-me, mediantebom ordenado, dessa delicada tarefa: afinaras cigarras. O meu emprego era dos maisúteis no pafs, pois em Mekala o canto das ci-

garras constituia um dos grandes divertimen-tos do povo.

Há dois anos, porém, as cigarras de Meka-Ia foram dizimadas por uma praga e desapa-receram. Perdi o emprego e resolvi emigrar.Parti de Mekala com uma numerosa carava-na de peregrinos que iam em busca de Me-ca, a Cidade Santa.

Chegamos ao Madinat'En Nabi' depois deuma longa e fatigante jornada.

Um dia, ao deixar a mesquita do Profeta,andrajoso mendigo estendeu-me a mão im-plorando um óbolo. Dei-lhe um dinar.

Disse-me o infeliz ancião:- É esta a terceira vez, estrangeirol, que

recebode ti um dinar de cobre. Comovejoque és bom e caridoso,vou dar-te um con-selho útil, por certo, aos individuosque, co-

1 - A cidadedo Profeta - Medina.

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mo tu, praticam o atO sublime da esmola: Nãodeves dar, ao pobre que habitualmente en-contras em teu caminho, uma esmola certa,igual à que lhe deste na vésperal Há nisto,afirmo, um grande perigol Procura auxiliá-Iocom quantia maior ou menor. Nunca, porém,com quantia idêntica à anteriorl

- Singular é o teu conselho, meu amigo- repliquei. - Que perigo poderia advir auma pessoa do simples fato de dar, todos osdias, a mesma esmola a um mendigoconhecido?

- Por Alá, muçulmanol - retorquiu omendigo. - Será possível que ainda não te-nha chegado ao teu conhecimento a trágicaaventura ocorrida com um escriba de Kabul,chamado Ali Durrani, que tinha o péssimocostume de dar ao mesmo pobre uma esmo-Ia certa e invariável?

- Que caso foi esse?- Quero que o ouças da pessoa mais au-

torizada para narrá-lol - Eacrescentoucomum gesto misterioso: - Vem comigol

Conduziu-me por um corredor lateral, atéum dos pátios internos da mesquita. Havia aliuma porta, estreita e resistente, na qual o meusingular companheiro bateu com impaciênciavárias vezes. Abriu-se, afinal, ligeiramente, aporta e ouvi por uma fresta uma voz roucae meio agressiva indagar:

- Que trazes tu?Respondeu meu companheiro:- Trago três fios de sol e duas aranhas da

ChinaISurpreendeu-me aquela resposta. As pala-

vras do mendicante envolviam um estranho

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mistério. E realmente, vi surgir por detrás datal porta um venerável xeque, ricamente tra-jado. As suas barbas longas e já grisalhascaíam-lhe sobre o peito. Ostentava uma es-pécie de manto todo debruado com fios deouro e, na cabeça, trazia um turbante à mo-da dos hindus, rematado, à direita, por umgrande laço vermelho-claro.

Ao pôr em mim os olhos, o estranho xe-que exclamou, com profunda emoção.

- LouvadosejaAlá, o Sapientíssimol Atéque enfim posso abraçar o meu jovem e ami-go, o mais famoso dos músicos, o afinadorde cigarras!

E sem que eu pudesse fazer o menor gestopara detê-Io, abraçou-me pelo ombro, comefusão de incontida alegria.

Aquele encontro deixara-me estarrecido. Oancião conhecia-me; não ignorava a antigaprofissão que eu exercera em Mekala. Quepretendia o caprichoso destino ao levar-me aseu encontro?

- Não me tome por um mágico, nem porum djim - disse o ancião com bom humor.- Conheço-te porque estive durante algunsmeses em Mekala, e assisti, mais de uma vez,ao coro das cigarras que tu dirigias no par-que do rei. Sei que és habilidoso. Precisas demim?

Nesse momento, o mendigo, que ali metrouxera, acudiu, interessado:

- Xeque dos xequesl Esse jovem, carido-so e simples, deseja ouvir o relato da aventu-ra ocorrida com o bom escriba Ali Durrani, deKabul.

- Comgrandeprazerpossonarrá-Io- re-

plicou o xeque. - É uma das histórias maissingulares do velho Afeganistão.

E, com serenidade e graça, narrou-me oseguinte:

99

21 ~ Narrativa

Singular aventura do escriba Ali Durrani. Ocaso do troco recusado.

Das MIL HISTORIASSEMFIM... é esta a vigési-ma primeira I

Lida a vigésima primeira restam, apenas, no-vecentas e setenta e nove...

Conta-se que um dia, ao aproximar-se AliDurrani, o bom e honrado escriba, da céle-bre mesquita de Ullah, em Kabul, um mendi-go lhe veio ao encontro e disse-lhe:

- Houve ontem, 6 xequel, um engano devossa parte. Recebi, de vossas mãos, umdamasinl de ouro, ao invés do dinar de co-bre que é vosso costume dar-me diariamen-te. Aqui está, pois, o troco de 99 dinares quevos pertence I

- Não, meu velho - replicou delicada-mente o escriba. - Tenho certezade que nãome enganei. Não te dei, como julgas, uma pe-ça de ouro; as minhas modestas posses não

1 - Moedapersa.

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permitem, nem mesmo por engano, seme-lhante generosidade I Dei-te apenas, como ofaço diariamente, um mísero dinar de cobrei

O mendigo, não se conformando com talrecusa, por várias vezes insistiu em fazer comque o escriba recebesse o troco que lhe de-veria ser restituido. Ali Durrani, conservando-se no firme prop6sito de não aceitar o dinhei-ro, disse:

- Se por um milagre saiu das minhasmãos para astuas um damasin de ouro, é por-que estava escrito que tal aconteceria. Guar-da, pois, contigo essesdinares. São teus. Ja-mais recebi troco das esmolas com que auxi-lio os infelizes I

Ao ouvir tais palavras, enfureceu-se o men-digo. E erguendo seu pesado bastão entrou

a agredir inopinadamente o bom escriba,gritando:

- Miserável! Por tua causa estou impos-sibilitado de sair hoje da miséria em que sem-pre tenho vivido!

Vários transeuntes correram em socorro deAli Durrani, e livraram-no de ser gravementeferido pelo exaltado mendicante, que foi pre-so e levado à presença do emir Allanbasard,por esse tempo o primeiro-juiz de Kabul!

O sábio magistrado, ao ter conhecimentodas estranhas circunstâncias que precederama agressão, ficou tomado do mais vivo espan-to e interpelou severamente o agressor:

- Ó chacal, filho de chacal! Não vejo ex-

plicação alguma para o teu louco proceder.Se Alá, o Único, não te privou, como creio,da luz da razão, conta-nos a verdade, pois docontrário irás acabar sob o alfanje docarrasco!

- Emir poderoso! - exclamou o mendi-go. - Vou contar-vos a minha singular his-tória. Vereis, pela minha narrativa, que o meuproceder, embora as aparências o revistamcom cores negras da ingratidão, é perfeita-mente justificável perante as fraquezashumanas!

E, depois de ajoelhar-se humildemente aospés do emir, o velho mendicante assimcomeçou:

101

22~ Narrativa

o terceiro-vizir faz a um mendigo uma indig-na proposta. Vamos encontrar um velho tece-lão que advoga uma causa perdida.

Das MIL HISTORIASSEMFIM... é esta a vigési-ma segundal

Lida a vigésima segunda restam, apenas, no-vecentas e setenta e oito...

Hoje, antes da prece, achava-me, como decostume, junto à porta da mesquita de Ullah,valendo-me da caridade dos bons muçulma-nos, quando de mim se acercou um xeque ri-camente trajado, que eu soube depois ser Opoderoso Kabib Karmala, terceiro-vizir donosso rei.

Esse nobre maometano, depois depresentear-me delicadamente com uma bol-sa cheia de ouro, disse-me, em tomconfidencial:

- O nosso querido soberano, que Alásempre o proteja!, tem ouvido as mais elogio-sas referências à inquebrantável honestidadede um escriba chamado Ali Durrani. É inten-ção do rei nomear esse homem para o cargode tesoureiro da corte. Tal escolha, porém,não me agrada nem pode convir aos outrosvizires. Sei igualmente que o escriba tem ocostume de vir todos os dias a esta mesqui-

102

ta, e nunca deixa de socorrer com um dinarde cobre a todos os mendigos que encontra.Conto, pois, com o teu auxílio para desmen-tir a fama de probidade de que goza AliDurrani.

- Que devo fazer para auxiliá-Io, 6 xequegeneroso? - perguntei.

- Ésimples - continuou o prestigioso vi-zir. - Logo que o escriba apareça, irás ao en-contro dele e procurarás convencê-Io de queontem, sem querer, ele te deu, por engano,um damasin de ouro, e que, portanto, tem di-reito ao troco de 99 dinares. Se conseguiresfazer com que o escriba, quebrando os seusprincípios de honestidade, guarde indevida-mente o troco, receberás de mim, como re-compensa, duas mil peças de ourol

S6 Alá, o Incomparável, poderia avaliar aintensa alegria que de mim se apoderou aoouvir tal proposta. Eu estava convencido de

que o escriba, por mais honesto que fosse,não deixaria de aceitar um simples troco de99 dinares. E já me acreditava possuidor dorico pecúlio que o vizirme oferecera, quandoesbarrei na recusa inabalável do escriba. Fi-quei por isso exaltado e, perdendo a calmae a serenidade tão necessárias, não pude con-ter um acesso de furor e tentei maltratar o ho-mem bondoso e honesto que tantas vezes seapiedara ao trazer-me o seu óbolo generoso.

Ao ouvir a narrativa do mendigo, disse-lheo juiz:

- Não encontro como justificar o teu in-fame proceder. É duplo o teu crime: procu-raste iludir um benfeitor e tentaste induzi-Ioà prática de uma ação indigna. Vou, pois,castigar-te como mereces. Quero, porém, ou-vir antes as testemunhas que contigo foramtrazidas até aquil

Um velho tecelão, que fora o primeiroa so-correr o escriba, aproximando-se do íntegrojuiz, disse-lhe respeitoso:

- Peço-vos, humildemente, perdão, óernirl Penso, porém, que não deveis lavrarsentença contra esse infelizmendigoI Eletemtoda razão! Só o escriba é que é culpadol Re-cusando o troco, ele tinha em vista uma gran-de recompensa!

- Por quê? - indagou surpreso o juiz.- Porventuranão conheceis- continuou

o tecelão - o caso ocorrido com um jovemde Bagdá que recusou aceitar uma caravanacarregada de ouro e pedra rias?

- Que caso foi esse? - perguntou o juiz.- Vou contá-Io - respondeu o tecelão.E narrou o seguinte:

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23:' Narrativa

Um jovem de Bagdá recusa uma caravanacarregada de preciosas mercadorias. Um rajá in-tervém no caso.

Das MIL HISTÚRIASSEMFIM... é esta a vigési-ma terceira I

Lida a vigésima terceira restam, apenas, no-vecentas e setenta e sete...

Em Bagdá vivia, outrora, um jovem muçul-mano chamado Ibraim Ibn-Tabir, que passa-va os dias descuidado em festas e banquetesa gastar, sem pensar no futuro, a prodigiosaherança que lhe deixara o pai.

Cedo viu-se o nosso herói reduzido a pe-núria extrema. No dia em que fora obrigadoa separar-se de seu derradeiro dinar, prove-niente da venda do último escravo, ocorreu-lhe apelar para o auxílio dos alegres compa-nheiros que haviam compartilhado de sua me-sa e de seu ouro, quando aquela era farta eeste abundante. Não houve, porém, um sóque se compadecesse da situação aflitiva dodesajuizado mancebo.

Compreendendo que nada poderia obter deseus falsos e ingratos amigos, e resolvido aenfrentar corajosamente as vicissitudes da po-

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breza, regressava Ibraim a casa quando, aochegar à rua em que morava, notou ali ummovimento anormal. Vencendo, a custo, amassa de curiosos, deparou ele uma grandecaravana que parecia vir de longe, com seusguias condutores e cameleiros!

O chamir - chefe da caravana - dirigiu-se ao jovem e disse-lhe:

- Acabo de ser informado de que soisIbraim, filho do rico Tabir Messoudi. É vos-sa, portanto, esta caravana que acabo de tra-zer de Bássora, através do deserto.

Convencido de que o chamir estava enga-nado, Ibraim,que era honestoe incapaz deapoderar-se de qualquer coisa que não lhepertencesse, respondeu:

- Estás enganado, 6 amigo! Esta carava-na não me pertence! Houve, com certeza, al-gum equívoco na indicação de quem ta con-fiou, para que a leves a seu destino.

- .Recusas, então, 6 jovem? - indagou ochamir. - Recusas esta caravana tão rica,pois vem carregada de preciosas mercadorias?

- Recusol - replicou com segurançaIbraim.

Essa resposta do jovem causou aos homensda caravana uma impressão indescritível. Gri-taram todos alegremente. Allahl Alá KerimlAlguns arrancaram os turbantes e rasgavamas vestes entre risos estrepitosos; o própriochamir chegou a rolar pelo chão, a rir comoum faquir demente.

Ibraim, surpreendido por tão inesperadamanifestação de regozijo, agarrou ocaravaneiro-chefe pelo braço e gritou-lhe,enérgico:

- Que significam essas risadas e chaco-tas? Por que ficaram todos tão contentes coma minha recusa? Exijo que me expliquem omistério desse casol

Diante de tal intimação, o chamir resolveuesclarecer o sucesso:

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"Deveis saber, 6 jovem tão bem-dotado,que o vosso pai tinha em Bássora um sócioriquíssimochamado Ahmed Bakhari,que pos-suía, além de muitas terras e rebanhos, palá-cios, camelos, escravos e jóias de grandevalor.

"Sentindo-se, um dia, gravemente enfer-mo e certo de que o Anjo da Morte não tar-daria a vir arrebatá-Io deste mundo, o gene-roso Bakhari chamou-me para junto de seu

leito, pois era o seu empregado de maior con-fiança, e disse-me:

- Dentro de poucos dias deverei compa-recer perante Alá, o Altíssimo. Não quero, en-tretanto, deixar este mundo sem pagar as dí-vidasque contraí. Logo que eu morrer,leva-rás, em meu nome, a Bagdá, uma caravanade 30 camelos carregados de estofos, tape-tes e jóias. Essa caravana deverá ser entre-gue ao meu velho amigo e sócio Tabir Mes-soudi, em pagamento de uma quantia que hátempos me emprestou. Sei que Messoudi ériquíssimo e de um espírito de generosidadesem igual. Ébem provável, portanto, que elenão queira aceitar, como aliás já tem feito, opagamento do dinheiro que lhe devo. No ca-so de ser recusada, a caravana deverá ser re-partida eqüitativamente entre os homens quea conduzirem.

"Jurei, pelo Livro Sagrado, que obedece-ria cegamente às instruções de meu amo e nodia seguinte ao seu enterro despedi-me dasquatro viúvas, e pus-me a caminho para estacidade.

"Logo que aqui chegamos, soubemos queo velho Tabir Messoudi já havia falecido, ten-do deixado um filho único chamado Ibraim.Esse jovem, acrescentaram ainda os nossosinformantes, está reduzido à maior pobreza,por ter esbanjado em milfestins os bens su-perabundantes que lhe deixara o pai.

"Fiz sentir aos meus honestos caravanei-ros de jornada que nada poderíamos esperar,a não ser uma modesta paga dos nossos tra-balhos, pois era bem certo que um rapaz po-bre não iria recusar uma caravana tão valiosa.

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Depois de pequena pausa, o velho chamircontinuou:

- Eisai explicado o motivo único da gran-de alegria que se apoderou dos cameleirosquando ouviram de vossos lábiosa recusa for-mal em aceitar a bela caravana que trouxe-mos de Basra. A vossa inesperada recusa foiouvida por várias testemunhas, inclusive pe-lo representante do nosso cádi, que vai pro-ceder, neste mesmo instante, à partilha da ca-ravanal Mesmo depois de pago o cádi, estacaravana é suficiente para enriquecer a todosnósl

Nesse momento, o secretário do cádiaproximou-se de Ibraim e disse-lhe.

- É tarde para arrependimentos, meu fi-Ihol Ouviperfeitamente a tua declaração. Se-gundo a ordem do rico Bakhari, a caravanaque recusaste vai ser repartida pelos dedica-dos caravaneiros que a trouxeram de Basraaté aquil

- Tivea riquezanas mãos e perdi-ai -exclamou Ibraim,cheio de mágoa - Maktubl(Estava escrito!) Louvado seja Alá que duasvezes me fez mais pobre do que um escravo I

Mal havia o jovem pronunciado tais pala-vras, sentiu que lhe tocavam no ombro.

Voltou-se rápido e viu diante dele um ho-mem alto, de cor bronzeada, ricamente tra-

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jado, que ostentava na cinturaum longopu-nhal indianoe na cabeça um turbante de se-da amarela,onde cintilavaumgrandebrilhan-te azulado.

- Jovem - começou o desconhecidopondo carinhosamente a mão sobre o ombrode Lbraim.- Acabo de observar com a maioradmiração a tua maneira digna e honesta deproceder. Recusaste uma caravana inteira,carregada de ricas alcatifas, porque estavasconvencido de que ela não te pertencia, e, co-mo bom muçulmano, aceitaste sem revolta osdecretos do Onipotente.

E como o jovem Ibraim fitasse nele osolhos, cheio de espanto, o estrangeirocontinuou:

- Chamo-me Walaemg Mahadeva, e sourajá da provincia de Mahabalipur, na IndialQueres, ó jovem, recuperar não só essa ca-ravana perdida como outras muitas que va-Iem milvezes mais? Escuta, então, a extraor-dinária história intitulada "A Bolsa Encanta-da", que vou contar. Verás como pôde ocor-rer com um pobre homem um caso milagro-so que o tornou, de um momento para ou-tro, mais rico do que um emir.

E o rajá contou ao jovem a história que sevai ouvir:

Alguns arrancaram os turbantes e rasgavam as vestes entre risos estrepitosos; o próprio chamlrchegouarolarpelochão,arircomoum faquirdemente.(Pág.105)

24~ Narrativa

História da "Bolsa Encantada" e das aven-turas que depois ocorreram.

Das Mil HISTÚRIASSEMFIM...é esta a vigési-ma quarta!

Lida a vigésima quarta restam, apenas, no-vecentas e setenta e seis...

Com a chegada de duas caravanas da Pér-sia, o movimento do suque de Basra naqueledia fora excepcionalmente intenso. Ao cair danoite, fatigado pelo trabalho brutal de muitashoras, o mísero Mustakin Karuf, o carrega-dor, recolheu-se, para dormir, à kuba' sórdi-da em que viviano fundo do pátio de uma ca-sa de cameleiros, no bairo de Tahhin.

Sentou-se na ponta de um tanghf feitode caixas velhas, cobertas com panos gros-seiros, e, enquanto mastigava uma tâmara se-ca, quase sem gosto, tirou de um pequenocesto as poucas moedas que havia recebido

1 - Casebre.2 - Espécie de leito.

pelo trabalho no mercado. Contou e recon-tou várias vezes o dinheiro. Verificou possuirdoze dinares de cobre e cinco moedas de pra-ta. Tudo isso, porém, valiamenos do que umadessas peças rutilantes de ouro com que osricos e ociosos xeques compram perfumes ejóias aos traficantes judeus.

- Como é triste a minha vida - murmu-rou, lastimando-se da sorte. - Bem adversofoi para mim o destinol Trabalho como umescravo sem parar até o cair da noite, e malganho num dia o que já devo pelo sustentoda véspera. Que pode valer, afinal, ao homemser justo, diligente e honrado, quando nãoconsegue vencer a fatalidade e sair da misé-ria em que se arrasta? Enquanto os mais feli-zes vivem na opulência, ostentando um luxoexagerado, outros, como se merecessemtalcastigo, sofrem a tortura da fome e os espan-tosos suplícios da pobreza I As boas obras te-

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rão um beneficio dez vezes malorl... São pro-messas vãs do Alcorão. Que faço senão pra-ticar as boas obras e os deveres impostos aosmuçulmanos sinceros? Jamais deixo de aten-der ao chamado do muezim para as cinco pre-ces do dia; auxilio os pobres: leio com fervoro Fatihah,3já beijei duas vezes a Santa Kaa-ba de Meca e ninguém melhor do que eu sa-be respeitar o jejum sagrado de Ramadãl Quetenho, afinal, lucrado com esses atos de ca-ridade e de fé? Nada. A pobreza, como umcamelo que descansa, deitou-se à porta des-ta kuba e a fome...

Nesse momento sentiu Mustakin que al-guém muito de leve, com as pontas dos de-dos, lhe tocara no ombro. Voltou-se râpidoe viu de pé, a seu lado, um ancião desconhe-cido que, pelo trajar bem-posto, parecia pes-soa de alto lustre e distinção. O estranho vi-sitante atravessou, com certeza, sem ser no-tado, o pátio deserto e entrou silencioso noquarto, pela porta lateral.

Ergueu-se o pobre Mustakin, surpreendidocom a presença daquele xeque de aspecto ve-nerável, que o fitava com um sorriso bondo-so e leal.

- Quem sois? - perguntou, com um es-panto que não sabia disfarçar. - Que dese-jais de mim? Por que conduziu Alé os vossospassos até a minha pobre kuba?

- Logo saberás - acudiu com severida-de o desconhecido. - Levadopor uma indi-cação errada, entrei, há pouco, neste pátio

3. t-rimeirocapitulodo AlcorDo.

8, sem querer, vim ter aqui à porta do teuquarto. Tão absorto estavas em contar o teupecCllioque não notaste a minha chegada.Ouvi, portanto, as palavras injustas de revol-ta que acabaste de proferir. Como pode umservo de Alá blasfemar dessa forma contra ascontingências da vida? Não sabes, então, 6infelizl, que Deus é justo e clemente? Cadaum de n6s tem o destino que merece. Diz oAlcorão, o Livro de Alá:

"As recompensas serão proporcionais aosméritos. Deus aprecia e julga todas as obrasl"

E diante do infinitoassombro de Mustakin,o \telho xeque continuou, solene:

- Escuta, 6 muçulmanol Pela vontade doAltfssimo estudei as ciências ocultas, a mis-teriosa astrologia e todos os segredos da al-quimia. Conheço as pedras mágicas, os filtrosmaravilhosos e as pedras cabalísticas com queobtemos o auxilio dos gênios que povoam omundo. Queres verificar se és, realmente, umhomem justo e sincero? Toma esta bolsa. Elapoderá proporcionar àquele que for bom e pu-ro uma riqueza incalculável.

Mustakin tomou nas mãos a bolsa que omisterioso personagem lhe oferecia. Era umabolsa escura, de couro liso, como as que usa-vam os arrogantes recebedores de impostos.

- Essa bolsa - esclareceu o mago - pa-rece vulgar e inútil, mas é maravilhosa e en-cantada. Toda vez que praticares um ato bome louvável, aparecerá dentro dela uma moe-da de ouro. Se a tua vida, como há pouco afir-maste, é um rosário de virtudes, poderás aofim de pouco tempo possuir uma riqueza queexcederá aos tesouros do sultãol Que Alá, o

Exaltado, não te abandone, ó Mustakinl Ala-hur akbarl

E depois de proferir tais palavras, o singu-lar visitante, envolto numa capa cinzenta quechegava ao chão, saiu da kuba, atravessoulentamente o pátio e desapareceu na ruaescura.

O pasmado Mustakin, que jamais conhece-ra os famosos cultores da magia, ficou imó-vel no meio da kuba, com a bolsa na mão,sem saber como julgar aquele estranhosucesso.

"Verificareiamanhã", pensou, "se esta his-tória de encantamento não passa de um sim-ples gracejo de um xeque extravagante."-

Súbito, porém, as mãos lhe tremeram; umaangústia indefinivel oprimiu-lhe o peito. Eleverificara, com indizívelassombro, que a bol-sa trazia. por fora, em letras douradas, o seunome "Mustakin Karuf" ~ acompanhado desinais cabalísticos indecifráveis. A dúvida de-sapareceu dando lugar à certeza. A bolsa eraencantada.

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Mal acabara de balbuciar a prece da ma-drugada, saiu Mustakin, depois de uma noi-te de vigllia, levando na cintura a bolsa comque fora presenteado pelo mago.

Formara o intuito de praticar um ato bome digno, a fim de obter pela virtude mágicada bolsa a sedutora moeda de ouro.

Ao aproximar-se da fonte de Hajar avistou

um mendigo, de horripilante aspecto, senta-do na laje da rua, ocupado em limpar comuma espécie de pente um cão magríssimo quese estendia a seus pés.

- Por Alá - murmurou Mustakin, com in-contida alegria. - Eisque se me depara umaocasião magnífica para praticar o preceito daesmolal

E, aproximando-se acintosamente do men-dicante, atirou-lhe todas as moedas que ha-via ganho, com tanto sacrificio, na véspera.

Não há palavras que possam descrever oespanto que se apoderou do andrajoso pedin-te ao receber uma esmola tão vultosa.

- Que Alá vos conserve, ó generoso ami-gol - exclamou,enquanto arrebanhavaso-fregamenteos dinaresespalhadospelaareia.- Que o Altíssimo derrame sobre o vosso lare sobre a vossa cabeça todos os favores docéul Seja a paz a vossa estrada...

Sem dar atenção ao discurso com que omendigo mal podia exprimir a gratidão, Mus-takin afastou-se, e discretamente abriu a bol-sa. Com dolorosa surpresa verificou que seconservava vazia. Onde estaria o dinar de ou-ro que ali deveria se encontrar?

"A moeda de oUronão apareceu", pensouMustakin, "e houve, bem o sei, razão para is-so. O ato que acabei de praticar não foi umato de perfeita caridade. Que fiz eu ao socor-rer o mendigo? Dei.lhe algumas moedas naesperança de obter, em-tfoca, quantia muitomaior. Alá é justo e sábio, e lê no pensamen-to a intenção de cada uml Quem dá dez coma esperança de receber cem não pratica a ca-ridadel"

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Preocupado com tais pensamentos cami-nhava Mustakin, quando avistou uma velhaque cruzava uma praça curvada ao peso deum enorme feixe de lenha. Era de causar pe-na o sacrifício que a infeliz fazial

"Vou auxiliaraquela anciã", planejou Mus-takin. "Tenho certeza de que irei, agora, pra-ticar um ato de elevada piedade."

Ofereceu-se à desconhecida para transpor-tar a pesada carga. E só deixou o feixe juntoà porta do casebre em que a velha morava,muito longe da cidade, perto do rio.

E mal completara a fatigante tarefa a queele próprio se impusera, abriu a bolsa para ad-mirar a prometida moeda de ouro. Nadaencontrou.

"E não devia ser de outra forma", pensouMustakin, procurando analisar o auxílio queacabava de prestar. "Que fiz eu, afinal? Aju-dei uma pobre velha, e essa ajuda não pas-sou de um esforço material que para mim na-da representa."

IV

Nesse instante, precisamente, ouviu Mus-takin gritos aflitivos que partiam do rio. Avis-tou, no meio da corrente, um menino que sedebatia desesperado, em grave perigo, pres-tes a perecer afogado. Um pensamento, mais

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rápido do que o simum, atravessou-lhe o es-pírito. Que oportunidade ótima se lhe ofere-cia para pôr em prática um ato de incontes-tável heroísmo e abnegação! Sem hesitar umsegundo, atirou-se ao rio, enfrentou o perigoe com grande esforço conseguiu trazer paraterra a mísera criança. Camponeses e curio-sos haviam se aproximado do local. Os paisdo menino, que fora arrancado à morte, gra-ças à coragem e ao heroísmo de Mustakinchoravam de satisfação. "Esse homem é umsanto!", afirmava a velha do feix:ede lenha.E de todas as bocas saíram, dirigidas ao ab-negado salvador, palavras sinceras de louvore gratidão. "Era um bravo, capaz de arriscara vida naquele trecho impetuoso da corren-te, onde o rio, em avalanche com arabescosde espumas,. escrevia ameaças de morte so-bre as ondas."

Ao ambicioso Mustakin eram, entretanto,indiferentes os elogios com que todos lheexaltavam o belo feito. Preocupava-o, comosempre, a preciosa moeda que devia estar arebrilhar no fundo da bolsa encantada. Umasó? Não. Muitas! A proeza do rio merecia umpunhado de ouro. Alá é generoso; a bonda-de de Alá não tem limites nem no impossível!

Afastou-se estouvadamente, como umébrio, das pessoas que o cercavam, repeliuos que o queriam seguir por curiosidade, e,longe dos olhares indiscretos, abriu a sedu-tora bolsa do velho feiticeiro.

Que dolorosa desilusão para seus olhos ávi-dos! A bolsa continuava como sempre vazia,vazia e inútil, inútilcomo um punhado de areiano meio do deserto!

- Já compreendi a verdade - murmurouo desolado Mustakin. - Louvado seja Aláque me abriu os olhos para a realidade da vi-dai Esta bolsa encantada jamais poderá ter dá-divas para mim. Não sei praticar o bem se-nao movido pelo interesse do ouro. E essapreocupação da paga que me deve tocar anu-la por completo o mérito de qualquer açãopiedosa que eu venha a praticar. O homemjusto pratica o bem sem olhar para a recom-

pensa. Aquele que tem bons sentimentos au-xiliaseus irmãos desinteressadamente. A má-cula da ambição jamais sairá de minha cons-ciência, e esta bolsa enquanto estiver comi-go permanecerá vazia.

Que fez, então, Mustakin?Tomou uma resolução extrema, capaz de

surpreender o mais impassfvelfaquir da India.Vou contar:

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25~ Narrativa

Continuação da história da "Bolsa Encanta-da". Na qual um mendigo compra a liberdadede vários escravos cristãos.

Das MIL HISTORIAS SEM FIM... é esta a vigési-

ma quintalLida a vigésima quinta restam, apenas, no-

vecentas e setenta e cinco...

Convencido, afinal, de que a bolsa possui-dora da mágica virtude da recompensa de na-da lhe poderia servir, resolveu Mustakindesfazer-se dela.

Para tanto, sem perda de tempo, tratou deescondê-Ia sob uma pedra e, antes que al-guém o observasse, afastou-se a passos rá-pidos. Achava-se a caminhar à toa junto auma das famosas portas de Basra. Um escra-vo cristão, a cantar descuidado, retirava águado fundo de um poço.

Depois de beber avidamente a linfa que oservo lhe despejara na concha da mão, ficouem silêncio, sem saber que resolução deve-ria tomar.

- Se tens fome- ousouo escravo,vendo-o indeciso - vem comigo. Não serádificilobter com algum de meus companhei-ros um pouco de alimento.

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- Meu amigo - retorquiu Mustakin-agradeço a tua bondosa lembrança, mas nãosinto disposição para comer.

E de repente, num gesto de louco, segu-rou o escravo pelo braço e disse-lhe, com vozsurda:

- Escutal Bem vejo que és bom e querorecompensar-te. Debaixo daquela pedra, jun-to da árvore, está uma bolsa encantada. Éprovável que não contenha dinheiro, e certa-mente está vazial Essa bolsa poderá propor-cionar a quem a possuir riquezas incalculá-veis. Guardarás, cristão, um utensilio que emminhas mãos nada poderá valerl

Efugiu, quase a correr pela estrada, comose um inimigo execrável o perseguisseimpiedoso.

No dia seguinte, pela manhã, preparava-seMustakin para deixar a kuba em busca de tra-

balho, quando o pátio de sua casa foi invadi-do por um grupo de homens armados.

Eram guardas e auxiliaresdo cádi Mah Has-san EI-Rabhul,que exercia o prestigioso car-go de governador de Bássora.

- Procura alguém?- Éa ti mesmo que procuramos, Musta-

kin - respondeu o chefe dos guardas. - Te-mos ordem urgente do cádi e vamos levar-teao palácio.

Menos assustado do que surpreso ficou oinfeliz Mustakin. Que nova desgraça seriaaquela?

- Estou inocente! - murmurava, cheiode angústia. - Nada fiz para merecer castigoI

O palácio do cádi achava-se repleto de jui-zes e de altos funcionários do governo. A no-ticia da prisão de Mustakin despertara gran-de interesse.

O governador de Bássora interrogou opreso.

- A acusação que pesa sobre teus om-bros, Mustakin - começou o cádi - é gra-ve, é talvez de provações; a kuba em que dor-mes é um verdadeiro antro. E, no entanto, ti-veste a coragem de oferecer ontem, a um es-cravo cristão, em troca de um pouco d'água,uma bolsa com cem dinares de ouro?

Mustakin, ao ouvir a inesperada declaraçãodo cádi,esbugalhouos olhosassombrado:

- Não se compreende - continuou o go-vernador - que um homem rude, pobre, an-drajoso, possa dar a um simples escravo umpresente que s6 os haveres de um califa atin-giriaml Bem sei que amanhã é um dia festivopara a cristandade. Os cristãos comemoram

o nascimento de Isa,' filho de Maria, sobreEle a oração e a glória! Não posso acreditarque um muçulmano passe a mais miserávelexistência, economizando um pecúlio desti-nado a proporcionar um Natal festivo aos es-cravos cristãos. Quero, portanto, saber quala origem desse ouro. Se ocultares a verda-de, ó Mustakin!, serás severamente castiga-do e não asseguro que mantenhas a cabeçaentre os ombros depois dessa punição.

Ao ouvir tão grave ameaça, Mustakin, numdepoimento sincero, narrou ao governador tu-do que lhe ocorrera desde o aparecimento domisterioso mago em sua casa até o seu en-contro com o escravo cristão, e o oferecimen-

. to que fez da bolsa vazia.- Ésingularessa história!- observouo

cádi. - A verdade é a seguinte: o escravocristão indo, por indicação tua, procurar a bol-sa encantada, achou-a, não vazia como pen-savas, mas repleta de moedas de ouro. Comesse dinheiro comprou a própria liberdade edeu também liberdade a muitos outros escra-vos cristãos!

E voltando-se para os ricos cortesões queo rodeavam, perguntou-Ihes:

- Quem seria capaz de explicar tão estra-nho sucesso?

Um xeque, presente à estranha narrativa,inclinou-se respeitoso diante do cádi, e assimfalou:

- Creio poder facilmente explicar-vos osuposto mistério da bolsa encantada, ó cádi!

1 - Éesse o nomeque os árabes dão a Jesus. (B.A. B.I

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Todos os olhares convergiam sobre o mu-çulmano que assim falara. Mustakin ficou pá-lido de espanto ao reconhecer no xeque o ma-go que lhe dera a bolsa encantada.

- Cádi! - gritou. - Essehomem é o sá-bio alquimista de que vos falei!

Um silêncio impressionante acompanhou ainesperada declaração de Mustakin.

Fitavam todos o nobre, o qual permaneciaimóvel, a cabeça inclinada sobre o peito, osbraços firmemente cruzados, numa atitudesevera.

- Falal - ordenou o cádi, dirigindo-se aomago. - Por que misterioso poder veio a bol-sa encantada chegar-te às mãos?

Interrogado dessaforma pelo digno magis-trado, o misterioso personagem, depois decorrer o olhar pelos que se achavam pre-sentes, assim falou com voz pausada e gra-ve:

- Chamo-me Abi-Osaibi e exerço a nobreprofissão de alquimista. Sei preparar remé-dios, filtros, xaropes e vinhos deliciosos. Mui-to moço. ainda deixei esta bela cidade e,associando-me a dois aventureiros atenien-ses, fui tentar a vida no Egito. Consegui, tra-balhando sem descansar, durante trinta anos,reunir apreciável pecúlio. O destino escreve-ra a palavra "riqueza" no livro de minha vi-da, assim quis Alá, louvado seja o Onipoten-te! Ao me sentir velho e fatigado, e possuin-do recursos que me permitiriam viver tranqüi-lamente o resto da vida, resolvi voltar a Bas-ra a fim de rever meus antigos companheirosde mocidade. Onde estariam eles?Muitos, de-

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certo, já teriam visto a face rebrilhante de Az-rail, o Anjo da Eterna Separação.2

"0 primeiro conhecido que encontrei foi omísero Mustakin. Reconheci-o logo apesar deenvelhecido e pobre. Acompanhei-o, sem queele o percebesse. Entrei na kuba sórdida emque ele vive, e bem oculto pude ouvir as pa-lavras de desesperoe revolta que proferiu. Aoaparecer, de repente, fiz-me passar por ummágico. Ofereci-lhe uma bolsa que trouxeracom a intenção de presenteá-Io. Inventei alenda da bolsa encantada e rejubilei-me ao no-tar que ele havia acreditado em mim. Aquelaaventura teria, certamente, desfecho curiosoe iria constituir enredo para uma nova histó-ria. Sempre apreciei preparar surpresas eagradáveis imprevistos para os meus amigos.No dia seguinte, que foi ontem, não perdiMustakin de vista. Segui-o, como uma som-bra, por toda parte. Apreciei todas as tenta-tivas feitas por ele para se assegurar do po-der mágico da bolsa. Não errei ao admitir queele acabaria por se desiludir, pois as prometi-das e ambicionadas moedas de ouro, por maisque ele fizesse, não apareciam, a brilhar, nabolsa que eu lhe dera. Ao vê-Io, afinal, ocul-tar a bolsa sob uma pedra resolvi, mais umavez, surpreendê-Io. 'Ele virá buscá-Ia dentroem breve', pensei. Fui, portanto, ao escon-derijo e coloquei discretamente, dentro dabolsa, cinqüenta dinares em ouro. Foi esse o

2 - Azrail é o Anjo da Morte. isto é. aquele cuja mis-são é conduzir a alma dos que deixam a vida terrena. Esó aos que morrem é permitida a glória de ver a face deAzrail. (B. A. B.I

dinheiroque o escravocristão,momentosde-pois, encontrou. E assim, ó cádi!, fica expli-cado o episódio da bolsa mágica e a origemdas moedas que tanto alvoroço causaramnesta cidade!

- Por Alá - exclamou, com entusiasmo,o chefe do tribunal. - O enigma que envol-viao caso da bolsa mágica está completamen-te elucidado. Os pontos obscurecidos pela dú-vida foram esclarecidos pela verdade dos de-poimentos. Resultou tudo de uma trama bemarquitetada, mas que teve um desfecho ines-perado para seu autor.

Evoltando-se para Mustakin, proferiu comênfase a seguinte sentença:

- Estás livre, ó irmão dos árabes! A graveacusação que pesava sobre ti desapareceu,sem deixar vestígios ou nódoas, depois dasdeclarações da principal testemunha. A tuapessoa não mais interessa à justiça. Podespartir!

- Perdão! - interveio respeitosamente odouto alquimista. - Penso que o Sr. Cádinão deve conceder a liberdade a Mustakin an-tes que este modesto carregador da feira re-ceba uma indenização pelos sustos que so-freu ao ser acusado e preso. A indenizaçãoserá paga por mim, pois em grande partecabe-me a culpa do sucesso. Duas recompen-

sas proporcionarei a Mustakin. Receberá umabolsa com duzentos dinares e ouvirá, de mim,o relato completo da trágica aventura da"mão cortada". Sei que ele se interessa poressa história, pois sua filha e sua esposa fo-ram sem querer envolvidas nesse terríveldrama.

E o rico alquimista entregou a Mustakinuma bolsa que continha duas centenas demoedas de ouro.

Com lágrimas nos olhos agradeceu Musta-kin aquele generoso auxílioe, com voz recor-tada pela emoção, implorou:

- Quero ouvir, agora, ó ilustre cádi!, odrama da "mão cortada". Ébem possivel quea narrativa desse episódio venha esclarecervários e dolorosos mistérios que envolvem oi-to ou nove famílias de alto prestígio!

- Deve ser muito singular essa história -observou, muito sério, o digno magistrado.- Ébem possível que ela esteja ligada a maisde um inquérito promovido por este tribunal.- E, voltando-se para o alquimista, ordenou:- Vais contar, ó egípcio, o drama da "mãocortada" . Tem a justiça o maior interesse emconhecer esse caso.

O estranho muçulmano inclinou-se respei-toso diante do juiz, e assim começou:

VER O SEGUNDO VOLUME

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Notas do Tradutor

o presente volume çontém apenas vinte e cin-co narrativas das Mil Histórias sem Fim...

Conservamos neste livro, para alguns nomespróprios, a ortografia primitiva na impossibilidadede adaptá-Ios convenientemente ao nosso idioma.

Sumário

As Mil HistóriasSem Fim... (prefáciode Humberto de Campos) 5

Avatar (Olavo Bilac) 13

1~ NARRATIVA - História singular de dois reis amigos e das tristes conseqüências de umaaposta extravagante entre eles firmada 17

2~ NARRATIVA - Continuação da história dos dois reis amigos e do "Jovem Silencioso" quenão sabiacontar episódioalgum de suavida. Comosurgiu um sábiorabi e o misteriosocaso que depois ocorreu. 21

3~ NARRATIVA - Imedin Tahir Ben-Zalanconta sua vida e suasaventuras 27

4~ NARRATIVA - Continuação das aventuras de Imedin. O caso da palavra caucasiana queum filólogo de grande fama traduziu e explicou 33

5~ NARRATIVA - História de um rei da India que tinha três ministros e do caso espantosoque ao rei contou o terceiro-vizir para livrar-se do perigo que o ameaçava 40

6~ NARRATIVA- História de um rei do Kafiristã que fez erguer três estátuas e de um beduinoastucioso que ficou desesperado. Que fez o beduino para despertar viva curiosidade noespirito do rei 44

7~ NARRATIVA - História de um povo triste e de um rei que se viu ameaçado por uma terrivelprofecia. Neste capitulo vamos encontrar um rei que só criou juizo no dia em que resolveuenlouquecer 47

8~ NARRATIVA - História surpreendente do infeliz Balchuf que deixou o trono, a titulo deexperiência, nas mãos de um principe louco 55

9~ NARRATIVA- Históriasingularde umturbantecinzentoe a estranhaaventurade umenfor-cado. O encontro inesperado que teve o herói do conto com uma jovem que choravano meio de uma grande floresta 59

10~ NARRATIVA - História da filha mais moça do rei Ikamor, apelidada "A Noivade Mafoma" 65

11~ NARRATIVA - lenda dos peixes vermelhos - contada, nos jardins de Candahar, peloastrólogo do rei, à "Noiva de Mafoma" 68

12~ NARRATIVA- Continuaçãoda históriada filhamaismoça do rei Ikamor,apelidada"ANoiva de Mafoma". Como as esposas do rei planejaram a morte do homem que as vi-giava e o que depois sucedeu 70

13~ NARRATIVA- Históriade um rei, e de um poeta que gostava da filha do rei 73

14~ NARRATIVA- Singularepisódioocorridoem Bagdã. Estranhoprocederde um xequeque adquire um jarro riquissimopara espatifã-Iologo em seguida 77

15~ NARRATIVA - História de um "Contador de Histórias". Como um jovem, sentindo-seatrapalhado, põe em prãticaos ensinamentoscontidos num provérbiohindul 80

16~ NARRATIVA- Históriade dois infelizescondenadosque são salvosde modo imprevisto,no momento em que irão morrer. Por causa da sentença de um sultão encontramos, comsurpresa, um famoso narrador de histórias 83

17~ NARRATIVA - História de um rei que tinha a cara muito engraçada. Que fez o rei paraevitar que a sua presença causasse hilaridade 86

18~ NARRATIVA - História de um rei que detestava os ociosos. Na qual esse rei encontratrês forasteiros,sendo o primeiroum persa que exerciacuriosae estranha profissão.. 89

19~NARRATIVA- Históriade um empalhador de elefantes que embriagava pavões para comba-ter as serpentes... 94

20~ NARRATIVA- História de um homem que afinava cigarras. Um conselho simples queesse homem recebeu de um mendigo de Medina 97

21~ NARRATIVA- Singularaventura do escriba AliDurranl.O caso do troco recusado... 100

22~ NARRATIVA- O terceiro-vizir faz a um mendigo uma indigna proposta. Vamos encontrarum velho tecelão que advoga uma causa perdida 102

23~ NARRATIVA - Um jovem de Bagdá rSl::usauma caravana carregada de preciosas merca-dorias. Um rajá intervém no caso 104

24~ NARRATIVA - História da "Bolsa Encantada" e das aventuras que depois ocorreram. 109

25~ NARRATIVA - Continuação da história da "Bolsa Encantada". Na qual um mendigo com-pra a liberdadede váriosescravoscristãos 114

Notas do Tradutor 119

Conheca toda a obra.encantadora de

Malba TahanPouca gente sabe que MalbaTahané pseudônimodo

engenheirocivilJúlio César Melloe Souza, que só conseguiuter suas históriaspublicadasdepois que passou a assinar com

nome árabe. Estudiosoda cultura islâmica,escolheu o nome deum oásis no lêmen e o juntou ao sobrenome de uma aluna

para compor o pseudônimo MalbaTahan. Geraçõesde leitorestêm-se encantado por suas históriase lendas inspiradasque

contribuírampara o interessedas pessoas, não só pela leituracomo também pela matemática. Júlio César dedicou-seao

magistérioe à literaturae teve a felizcapacidade de combinarmatemáticae ficção, como a sua obra-prima,O HOMEMQUECALCULAVA,aplaudidapelo consagrado MonteiroLobato,que

a colocou entre suas leiturasprediletas.

-- --'

Malba TahanUm escritor que encanta os leitóres.

o árabe vive a vida da sua imaginação. Para ele, osheróis das suas narrativas são reais e palpáveis.

Os contos orientais de MIL HISTÓRIAS SEM FIM

revelam a grande facilidade em confundir a realidadecom a ficção, criando inúmeros relatos imaginosos e for-midáveis, que Malba Tahan recolheu neste precioso li-vro, dividido em dois volumes.

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