tahan, malba - o gato do cheique e outras lendas [livro]

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O gato do cheique e outras lendas

Malba Tahan

O Gato do Cheique e outras lendas

Ediouro Publicaes S.A.

Textos extrados do livro

Contos e Lendas Orientais,

Notas em Dez Anos de Kest: Naumim Aizen

ISBN 85-00-00240-9

Digitalizado, revisado e formatado por SusanaCap

www.portaldetonando.com.br/forumnovo/

ndice:

2A Vida Mais Bem Vivida

9Os Pastis de Alcassim

13O Gato do Cheique

16O Sbio da Efelogia

20O Leo Irritado

25O Livro do Destino

28Aprende a Escrever na Areia...

31Dez Anos de Kest

38O Problema dos 35 Camelos

41A Cincia da Vida

47O Santo Ladro

51As Quatro Esposas do Cheique

57O Herdeiro Legtimo

A Vida Mais Bem Vivida

Todas as vezes que o Emir Motavakel-Billah dava audincia pblica em seu luxuoso divan, acontecia algo de singular, isto , ocorria um episdio qualquer surpreendente, digno de ser escrito e conservado nos anais do Califado.

E isso, afirmavam os funcionrios do palcio, sucedia sempre. Era certo, era fatal. Maktub!

Quando o soberano, naquele ano, depois do ltimo dia da Lua de Ramad , marcou a chamada Sesso da Plena Justia, uma onda de curiosidade agitou os nobres e auxiliares da corte:

Que iria acontecer? Que novo caso surgiria, de improviso, entre os nmades, cheiques, mercadores e caravaneiros?

E ficaram todos na expectativa: Aguardemos o que est para acontecer diziam. A vida uma sucesso de surpresas preparadas pelo Destino. Fugir ao Destino impossvel. Maktub!Ora, naquele dia, exatamente, tudo correu com natural e decepcionante naturalidade. O Califa, seguindo a rotina enervante, ouviu as queixas (eram sempre as mesmas), atendeu aos solicitantes, socorreu vrias pessoas que precisavam de auxlio urgente e determinou que fossem sanados certas irregularidades e abusos do servio pblico. J ia, afinal, o soberano rabe encerrar a sua fecunda e benemrita audincia e proferir o clssico InchAllah! (Assim quis Allah) quando o preclaro e prestigioso Welid ben Obeid, o vizir secretrio, preveniu-o, respeitoso: Deveis, ainda, Rei!, ouvir o que deseja aquele desconhecido. Tenho a impresso de que se trata de um simples pescador que vive do outro lado do rio.

E apontou para um homem, de cara chupada, que se achava um pouco afastado, com uma cesta na mo, recostado a uma coluna. Trajava uma modesta abaya azulada. Sim, sim assentiu com veemncia o Califa, anediando a barba. Vamos ouvi-lo. Ouahyat ennbi! Que pretender ele, nesta sesso?

A um sinal do vizir, o solicitante aproximou-se do Rei, proferiu a saudao clssica (salam aleikoum!) e disse, a seguir, com fervoroso respeito: Chamo-me Kalil, ou melhor, Kalil Iamam. Sou pescador e venho da aldeia de Suan, onde vivo com minha esposa e trs filhos. A minha vinda hoje, a este divan, tem, apenas, um objetivo: moveu-me o desejo de oferecer pequeno e desvalioso presente ao nosso glorioso Emir! (Que Allah vos cubra de benefcios!).

E, depois de proferir tais palavras, o pescador colocou aos ps do Rei a cesta que trouxera com peixes. Mas (coisa curiosa!) a tal cesta no estava cheia. Longe disso. Tinha peixes s at metade.

Ora, sempre que um pescador de Damasco, de Bagdad ou de qualquer outro recanto do Isl, oferece uma cesta de peixes ao Rei, esta cesta deve estar repleta, a transbordar de pescados. Assim determina a velha praxe; assim reza a tradio; assim que correto.

Sem se mostrar ofendido com a desateno do ofertante, o Califa Motavakel-Billah olhou, com simpatia, para a cesta meio vazia; olhou, a seguir, tambm, com muita simpatia, para o pescador que se achava de p, em atitude respeitosa, braos cruzados. Os seus trajes eram modestos, mas no se sentia nem desmazelo nem misria; ostentava, em contraste com a abaya azulada, um turbante cinzento desbotado, tracejado de pequenos remendos; tinha o rosto escanhoado denegrido pelo Sol; os olhos escuros, cor de tmara; testa larga; em idade deveria estar rondando a casa dos quarenta e sete ou quarenta e oito anos bem vividos.Depois de ligeira pausa, o Rei tirou de pequena bolsa (das trs que trazia presas ao cinto) e entregou-a ao pescador, dizendo com voz pausada e em tom paternal:

Acabo de receber de ti, meu bom e atencioso amigo, uma cesta meio cheia; e em troca, para retribuir a essa gentileza, a essa expressiva fineza de tua parte, ofereo-te esta bolsa meio vazia!

O pescador, de relance, percebeu a inteno, o propsito astucioso do Rei; a bolsa continha moedas, mas essas moedas mal atingiam a metade da bolsa.

E o valioso Califa, preocupado em parecer original (a corte estava reunida e assistia audincia), repetiu com certa ironia, acentuando bem as palavras: Ests vendo, pescador Iamam!, recebi de ti esta bela cesta meio cheia; e, em troca, ofereo-te esta modesta bolsa meio vazia!

Por Allah! volveu o pescador, com um sorriso ladino, quase instantneo. Pelos sete mritos do Profeta! H um engano, Emir!, de vossa parte. Eu, sim, que vos ofereci uma cesta meio vazia; e recebo de vossas mos, em troca, esta valiosa bolsa meio cheia.

E acrescentou com nfase, vibrando a um sbito calor de emoo:

A verdade deve ser dita e reconhecida, Rei! Aquele que d, d sempre a cesta meio vazia; aquele que recebe, recebe, sempre a bolsa meio cheia. Que valem sete ou oito peixes? Uma lembrana... e nada mais. A ddiva, porm, de um Rei generoso e justo no um simples presente, um elogio!

Aquelas palavras, proferidas com tanto desembarao e clareza, pelo pescador do turbante desbotado, surpreendeu o Califa dos rabes. Disse, ento, Motavakel, dirigindo-se a seus vizires e secretrios, num irreprimvel espanto:

Ualahi na telabi! Esto vendo? Este bom e modesto pescador tem a alma de filsofo! um verdadeiro filsofo!

Sorriu o pescador e replicou com certa afoiteza:

Perdo, Emir dos Crentes!, muito natural que um pescador seja filsofo, pois sei de muitos filsofos que so pescadores.

Houve um momento de silncio no largo divan do Rei. Vizires, cheiques e secretrios, homens do estudo e do saber, surpreendiam-se com as rplicas oportunas e judiciosas do modestssimo pescador de Suan.

Filsofos pescadores? estranhou o Califa Ouallah!E, voltando-se para o seu digno vizir Welid ben Obeid, que era um sbio, um verdadeiro ulem, interpelou-o com assombro, incrdulo:

E tu, esclarecido vizir!, que conheces os Livros da Sabedoria, os escritos dos alfaquis, os comentrios do Profeta, tira-me desta dvida: Julgas que esse pescador proferiu a verdade? H filsofos que so pescadores? No ser isso uma fantasia desatada?

Welid ben Obeid, o sbio (que Allah o tenha entre os eleitos), inclinou-se diante do Rei e assim falou (as suas palavras denunciavam certa emoo): A julgar por mim, Prncipe dos Crentes!, esse bom e honrado pescador disse a verdade. A pura verdade. Quando me sinto fatigado de ler e de ouvir os filsofos, de analisar, letra a letra, os ensinamentos dos Inspirados, as sentenas dos doutores, os hadis do Profeta, tomo de minha rede, dos meus apetrechos de pesca, e vou, com meu filho mais moo, at o rio fazer um pouco de pescaria. Procuro repouso, para o meu conturbado esprito, tornando-me pescador. A pesca , para mim, tranqilidade e paz. Esqueo, por momentos, os problemas torturantes da alma, as inquietaes da Dvida, e ponho-me a pescar. uma delcia pescar. A vida passa e o pescador, absorto em sua faina, no sente o passar tristonho da vida! Em cada minuto de espera vive, o incansvel e paciente pescador, um ano de intensas emoes. A vida mais vivida, Rei do Tempo!, no a vida do filsofo, a vida do pescador.

O eloqente Welid ben Obeid, mestre entre os mestres, aclarou, com solene exaltao:

Posso, pois, assegurar-vos, Emir!, que esse pescador disse a mais pura verdade. H, realmente, pelos quatro cantos do mundo, filsofos que so pescadores. Volveu, ento, o Califa:

As tuas palavras, meu caro vizir, so como brincos preciosos de ouro puro para os meus ouvidos. Admito, agora, que esse pescador tenha dito a verdade. Aceito que um filsofo possa ser pescador. Sim, aceito e acredito. O que me parece estranho e inaceitvel que um pescador seja filsofo!

Peo humildemente perdo, Emir! acudiu por sua vez o pescador, com certa desenvoltura Mas nada h, nem pode haver, de estranho no fato de um pescador ser filsofo. Muitas e muitas vezes, quando me sinto cansado de pescar, o corpo dolorido pela faina, largo a minha pesada rede, as minhas linhas, a caixa com iscas, e vou at Mesquita Otman ouvir as lies dos ulems que ensinam Filosofia e debatem os graves problemas do Ser e do No-Ser. Procuro repousar para a fadiga do meu corpo, tornando-me filsofo. A Filosofia , para mim, tranqilidade e paz. Esqueo, por um momento, os problemas e tropeos de minha vida de pobre, e ponho-me a filosofar. uma delcia filosofar! A vida passa e o filsofo, enlevado em suas abstraes, no sente o passar inexorvel da vida. Sinto aqui discordar do sbio analista Welid ben Obeid! A vida mais bem vivida, mais sentida, a meu ver, no a vida serena do pescador, mas a vida intensa do filsofo! Iallah! exclamou o Califa, esfregando as mos, num petulante ar de inteligncia. Pela sombra da Caaba! realmente curioso o que acabo de ouvir. O filsofo Welid ben Obeid, o sbio, descansa de seus estudos, pescando; o diligente pescador Kalil descansa de sua faina de pescador, estudando os altos problemas filosficos!

E o Rei dos rabes, depois de ligeira pausa, rematou com a mais afetuosa simplicidade:

J ouvi contar que Jesus, filho de Maria, quando quis escolher os seus primeiros discpulos foi procur-los, no entre os filsofos, mas sim entre os pescadores. Que Allah, o glorificado, proteja os pescadores e esclarea os filsofos!

Vizires e escribas da corte comentavam:

J era de esperar! No final da audincia real, eis que ocorre o imprevisvel: Um pescador humilde e pobre vira filsofo; um filsofo, rico, prestigioso, sbio de renome, gro-vizir do Rei, vira pescador.

Maktub! (estava escrito!) Mas, afinal, a semente da dvida estava lanada entre os sbios e doutores bagdalis:

Quem tem a vida mais bem vivida? O pobre Iamam, o pescador, ou o rico Welid ben Obeid, o filsofo?

Dizia o douto Sibawaihi, o analista:

A vida mais bem vivida ter aquele que viver na Paz, no Dever e no Amor, isto , aquele que viver na Verdade de Deus!

Uassalam!

Os Pastis de Alcassim

O velho Abdo Alcassim, pasteleiro em Kufa, homem generoso e bom, chamou um dia seu filho Elias e disse-lhe, apontando para uma cesta repleta de deliciosos pastis: Aqui tens, nesta cesta, to bem arrumada, trinta e dois pastis de leite e canela. Esto saborosos. Seriam dignos da esposa do Sulto. Leva-os ao nosso honrado cadi Ragi Zattar, que to amvel e correto tem sido para mim.

Escuto e obedeo, meu pai respondeu o jovem.

E partiu, no mesmo instante, para a casa do prestigioso magistrado, levando o apetitoso presente.

Em meio do caminho, ao passar pela mesquita, o rapaz parou, colocou a cesta no cho, olhou demoradamente para os pastis e disse de si para consigo: Logo que entregar estes trinta e dois belssimos pastis de leite e canela ao honrado cadi Ragi Zattar, ele, de acordo com a velha e delicada praxe, far questo absoluta de me dar a metade. Sim, isso mesmo, a metade. Ora, qual a metade de trinta e dois? Qualquer mestre-escola diria logo: a metade de trinta e dois dezesseis! certo, portanto, que, destes trinta e dois pastis, dezesseis sero forosa-mente meus. No h mal, portanto, que os coma agora mesmo.

E, tendo raciocinado deste modo, comeu dezesseis dos pastis, deixando os outros no fundo da cesta.Depois de caminhar mais algum tempo, o jovem parou novamente, colocou a cesta sobre um pedao de muro em runas e assim refletiu:

Levo agora dezesseis magnficos pastis de leite e canela, feitos por meu pai, ao honrado cadi Zattar (que Allah, o Muito Alto, o cubra de incontveis benefcios!). Logo que fizer a entrega da cesta, serei, por ele prprio, obrigado a aceitar a metade do contedo. O cadi, sendo um homem de bem, no deixar de cumprir com essa velha praxe. E qual a metade de dezesseis? Ora, a metade de dezesseis (qualquer burriqueiro do deserto no o ignora) oito! Logo, destes dezesseis belos pastis, oito sero forosamente meus. No vejo inconveniente em com-los desde j.E, firmado nessa maneira de raciocinar, devorou, o insacivel Elias, mais oito dos pastis destinados ao cadi.

Logo adiante, graas a um raciocnio aritmeticamente idntico aos anteriores, e sempre firmado na velha e delicada praxe, achou-se o peralvilho com o direito de comer mais quatro pastis. E assim, de cada vez, comia metade dos pastis que haviam ficado na cesta.

Quando chegou casa do justo cadi Ragi Zattar, o magnfico presente do velho paste-leiro Alcassim estava reduzido a meio pastel.

Que isso? perguntou o cadi, intrigado, ao receber a cesta, no fundo da qual aparecia um pedao de pastel.

um presente de meu pai! respondeu o pndego com a maior naturalidade. um presente do velho pasteleiro Abdo Alcassim ao seu amigo, o honrado cadi Ragi Zattar.

E contou, com a maior desfaatez e sem-cerimnia, o raciocnio que vrias vezes fizera para satisfazer sua gula nos pastis destinados ao cadi.

Ao ouvir o minucioso relato da faanha, observou com serenidade o juiz de Kufa:

Por Allah, meu jovem amigo! Sempre fui otimista na vida. Graas a tua maneira de proceder, inspirada na velha e delicada praxe, ainda ganhei meio pastel e vou sabore-lo. Certo estou de que se fosse outro o mensageiro desse presente (que em boa hora me enviou o bondoso Alcassim) nem uma simples migalha chegaria s minhas mos.

E j ia o cadi provar o meio pastel restante, quando o jovem protestou com um risinho petulante:

Perdo, honrado cadi! Pelo nome do Profeta! Desse meio pastel, que ficou na cesta, segundo a velha e delicada praxe, eu tenho pleno direito metade. No assim?

Iallah! concordou, prontamente, o juiz A tua observao muito justa. Que distrao a minha! Devo seguir, ainda desta vez, a velha e delicada praxe. Dentro das regras da perfeita fidalguia tens, realmente, direito metade desta msera metade!

E, dividindo ao meio o pequeno quinho que recebera, entregou uma das partes ao velhaco, comendo a parte restante.

Depois de saborear, em silncio, aquela minscula metade da metade, o cadi assim falou com voz muito sria:

Esse caso dos trinta e dois pastis, meu amigo, vai ter um desfecho muito triste.

Muito triste? Como assim?

fcil explicar volveu o cadi, num tom vitorioso. Teu pai, o velho Alcassim, deve ser severamente castigado. Castigado pela leviandade que praticou enviando, ao juiz de Kufa, um presente por um portador que no merecia confiana. Zombou da autoridade e, por esse crime, deve ser punido. Punido severamente!

O honrado cadi vai castigar meu pai? perguntou o birbante com ares de abstrao palerma.

Sim confirmou com serenidade o cadi, elevando intencionalmente a voz. Vou castig-lo, como j disse. E castig-lo com trinta e duas chibatadas.

E, depois de ligeira pausa, desfechou num gesto largo, secamente:

E sers tu mesmo, meu caro Elias, o portador destas trinta e duas chibatadas. Ora, claro, evidente, que podemos repetir, para as trinta e duas chibatadas (que envio a teu pai), o mesmo e perfeito raciocnio que fizeste (como portador) para os trinta e dois pastis de leite e canela que teu pai a mim me enviou... E, sendo assim (de acordo com a velha e delicada praxe), ters direito a trinta e uma chibatadas e meia! E no fim, ters, ainda, a metade da metade! No assim? Mas como, na Aritmtica das Punies, no possvel calcular meia chibatada, vais receber, no lombo, agora mesmo, as trinta e duas chibatadas que eu resolvi, por plena justia, enviar, por teu intermdio, a teu pai!E o honrado cadi, no mesmo instante, chamou dois guardas (dos mais violentos que estavam a seu servio) e mandou aplicar uma surra impiedosa, de trinta e duas chibatadas, no filho do pasteleiro.Bem diz o provrbio que os bedunos repetem todos os dias:

O castigo de Deus est mais perto do pecador do que as plpebras esto dos olhos. Uassalam!O Gato do Cheique

Entre as lendas mais caractersticas do velho Egito, uma existe que merece ser contada sete vezes.

Vivia na cidade do Cairo um cheique de grande cultura chamado Calil El Modabighi, cujo nome aparecia sublinhado pela simpatia e pelo respeito que os muulmanos soem emprestar aos sbios que so generosos e modestos. Era um homem verdadeiramente feliz; a vida para ele corria sempre suave, em meio de invejvel conforto e ritmada por uma prosperidade que crescia na ordem natural das coisas, dia para dia.

O bom cheique vivia isolado; possua, porm, um gato preto pelo qual tinha particular predileo.

Uma noite, tendo despertado casualmente, ouviu o sbio um rudo estranho, junto porta de sua casa, e viu, com infinita surpresa, o gato levantar-se, abrir cautelosamente a larga janela e perguntar:

Quem bate?

Algum, que estava fora, no meio da escurido da rua, respondeu, com voz sucumbida: Venho em busca do teu auxlio, poderoso djin! Abre a porta.

Retorquiu o gato:

Proferiram o nome de Deus, junto fechadura, e eu sou fraco para vencer esse encanto!

Atira-me, ento, um pedao de po pela janela implorou o misterioso pedinte. D-me, ao menos, um pouco dgua.

Proferiram o nome de Deus junto do jarro, e eu sou fraco para vencer esse encanto! declarou ainda o gato.

E ajuntou:

Na casa ao lado moram infiis que no pronunciam nunca o nome de Deus. Entra por minha ordem na sala do vizinho e tira de l o que quiseres.

E, isso dizendo, voltou para o leito, meteu-se entre as cobertas e ps-se a dormir sossegado.Compreendeu o cheique, com maior assombro, que o gato preto era um djin, isto , um gnio dotado de poder sobrenatural, capaz de praticar feitos mgicos e prodigiosos, como fazem os espritos bons que povoam o espao.No dia seguinte o honrado ancio, depois de acariciar longamente o seu gato, disse-lhe, carinhoso:

Meu bom companheiro, gatinho do corao! Bem sabes quanto tenho sido teu amigo! Quero possuir um palcio...

Esquivou-se o gato das mos de seu dono e saltou para o peitoril da janela. E, naquele mesmo tom com que noite falara ao estranho visitante, disse:

Cheique! A tua amizade, outrora to preciosa, de hoje para o futuro perdeu, infelizmente, para mim, todo o valor! Descobriste o segredo de minha existncia; j sabes o que sou! Passaste, pois, a ser meu amigo por interesse!

E, tendo proferido tais palavras, pulou para a rua, fugindo de casa e nunca mais voltou.

Desse dia em diante, a vida do velho cheique desandou por completo; e antes, talvez, que as guas lutulentas do Nilo invadissem pela segunda vez as terras era ele apontado como um dos homens mais infelizes do Cairo.

Perdera, por causa de sua louca ambio, o nico amigo e protetor.Na verdade, a mais slida e perfeita amizade no resiste ao veneno sutil do interesse.

O Sbio da Efelogia

Durante a ltima excurso que fiz a Marrocos, encontrei um dos tipos mais curiosos que tenho visto em minha vida.

Conheci-o, casualmente, no velho hotel de Yazid El-Kedim, em Marrquexe. Era um homem alto, magro, de barbas pretas e olhos escuros; vestia sempre pesadssimo casaco de astrac com esquisita gola de peles que lhe chegava at s orelhas. Falava pouco; quando conversava casualmente com os outros hspedes, no fazia, em caso algum, a menor referncia sua vida ou ao seu passado. Deixava, porm, de vez em quando, escapar observaes eruditas, denotadoras de grande, extraordinrio saber.

Alm do nome Vladimir Kolievich pouco se conhecia dele. Entre os viajantes que se achavam em El-Kedim constava que o misterioso cavalheiro era um antigo notvel professor da Universidade de Riga, que vivia foragido por ter tomado parte numa revoluo contra o governo da Letnia.

Uma noite estvamos, como de costume, reunidos na sala de jantar quando uma jovem escritora russa, Snia Baliakine, que se entretinha com a leitura de um romance, me perguntou: Sabe o senhor onde fica o rio Falgu?

O qu? rio Falgu?

Ao cabo de alguns momentos de baldada pesquisa, nos caminhos da memria, fui obrigado a confessar a minha ignorncia, lamentvel nesse ponto, nunca tinha ouvido falar em semelhante rio, apesar de ter feito um curso completo e distinto na Universidade de Moscou.

Com surpresa de todos, o misterioso Vladimir Kolievich, que fumava em silncio a um canto, veio esclarecer a dvida da encantadora excursionista russa.

O rio Falgu fica nas proximidades da cidade de Gaya na ndia. Para os budistas o Falgu um rio sagrado, pois foi junto a ele que Buda, fundador da grande religio, recebeu a inspirao de Deus!

E, diante da admirao geral dos hspedes, aquele cavalheiro, habitualmente taciturno e concentrado, continuou:

muito curioso o rio Falgu. O seu leito apresenta-se coberto de areia; parece eternamente seco, rido, como um deserto. O viajante que dele se aproxima no v nem ouve o menor rumor do lquido. Cavando-se, porm, alguns palmos na areia, encontra-se um lenol de gua pura e lmpida.

E, com simplicidade e clareza peculiares aos grandes sbios, passou a contar-nos coisas curiosas, no s da ndia, como de vrias outras partes do mundo: falou-nos, por exemplo, minuciosamente, das filazenes, espcie de cadeiras em que se assentam, quando viajam, os habitantes de Madagscar.

Que grande talento! Que invejvel cultura cientfica! segredou, a meu lado, um missionrio catlico, sinceramente admirado.

A formosa Snia afirmou que encontrara referncia ao rio Falgu exatamente no livro que estava lendo, uma obra de Otvio Feuillet.

Ah! Feuillet, o clebre romancista francs! atalhou ainda o erudito cavalheiro do astrac Otvio Feuillet nasceu em 1821 e morreu em 1890. As suas obras, de um romantismo um pouco exagerado, so notveis pela finura das observaes e pela conciso e brilho do estilo!

E, durante algum tempo, prendeu a ateno de todos, discorrendo sobre Otvio Feuillet, sobre a Frana e sobre os escritores franceses. Ao referir-se aos romances realistas, citou as obras de Gustavo Flaubert: Salamb, Madame Bovary, Educao Sentimental... No se limita a conhecer s a Geografia acrescentou, a meia voz, o velho missionrio. Sabe tambm literatura a fundo!

Realmente. A preciso com que o erudito Vladimir citava datas e nomes e a segurana com que expunha os diversos assuntos no deixavam dvida alguma sobre a extenso de seu considervel saber.

Nesse momento, comea uma forte ventania. As janelas e portas batem com violncia. Alguns excursionistas, que se achavam na sala, mostraram-se assustados.

No tenham medo acudiu, bondoso, o extraordinrio Kolievich. No h motivo para temores e receios. Faye, o grande astrnomo, que estudou a teoria dos ciclones...

E depois de discorrer longamente sobre a obra de Faye passou a falar, com grande loquacidade, dos ciclones, avalanchas, erupes e de todos os flagelos da natureza.Senti-me seriamente intrigado. Quem seria, afinal, aquele homem to sbio, de rara e copiosa erudio, que se deixava ficar modesto, incgnito, como simples aventureiro, numa velha e montona cidade marroquina?

No dia seguinte, ao regressar da fatigante excurso aos jardins de El-Menara, encontrei-o casualmente, sozinho, no ptio da linda mesquita de Kasb. No me contive e fui ter com ele.

O senhor maravilhou-nos ontem com o seu saber confessei respeitoso. No podamos imaginar, com franqueza, que fosse um homem de to grande cultura. Na sua Academia, com certeza...

Qual, meu amigo! obtemperou ele, amvel, batendo-me no ombro No me considere um sbio, um acadmico ou um professor. Eu pouco sei ou melhor eu nada sei. No reparou nas palavras de que tratei? Falgu, filazenes, Feuillet, Frana, Flaubert, Faye, flagelo. Comeam todas pela letra F! Eu s sei falar sobre palavras que comeam pela letra F!

Fiquei ainda mais admirado. Qual seria a razo de to curiosa extravagncia no saber?

Eu lhe explico acudiu com bom humor o estranho viajante. Sou natural de Petrogrado, e vivo do comrcio do fumo. Estive, porm, por motivos polticos, durante dez anos nas prises da Sibria. O condenado que me havia precedido, na cela, em que me puseram, deixou-me como herana, os restos de uma velha enciclopdia francesa. Eu conhecia pouco esse idioma, e como no tivesse em que me ocupar li e reli, centenas de vezes, as pginas que possua. Eram todas da letra F. Desde ento fiquei sabendo muita coisa, tudo, porm, sem sair da letra F: f, fabagela, fabela, fabiana, fabordo.

Achei curiosa aquela concluso da original histria do inteligente Kolievich o negociante de fumo.

Ele era precisamente o contrrio do famoso e venerado rio Falgu, da ndia. Parecia possuir uma corrente enorme, profunda e tumultuosa de saber; entretanto, sua erudio, que nos causara tanto assombro, no ia alm dos vrios captulos decorados da letra F de uma velha enciclopdia.

Era, inquestionavelmente, o homem que mais conhecia a cincia que ele mesmo denominara Efelogia!

O Leo Irritado

Certa manh o Rei Leo, depois de uma noite agitada por maus sonhos e terrveis pesadelos, acordou irritado.

Os animais, tomados de pnico, reuniram-se na grande floresta.

Que fazer? O Rei Leo est de mau humor, enfurecido! Como levar a tranqilidade e a calma ao esprito do poderoso e invencvel soberano?

Tenho uma idia comeou o prudente Camelo, dirigindo-se aos outros animais. O Rei Leo gosta muito de ouvir contar lendas e histrias maravilhosas. Se um de ns for sua presena e lhe relatar um caso original e interessante, estou certo de que ele se acalmar e a bondade lhe h de voltar ao corao.

Quem, entretanto, ter a audcia de aproximar-se do Rei Leo? acudiu tristonho o Elefante Qual de vocs conhece alguma histria digna de ser ouvida por Sua Majestade?

Nada mais fcil retorquiu a Raposa, com trejeitos de orgulhosa. Coragem no me falta, nem me h de faltar nunca! E se o curar-se o Rei depende apenas do relato de uma histria, -me faclimo aplicar-lhe o remdio. Conheo trezentas histrias, lendas e fbulas interessantssimas que aprendi no decurso de longas viagens empreendidas pelo mundo. Uma dessas histrias h de, por fora, agradar ao nosso impvido soberano e dissipar a agitao que maus sonhos lhe trouxeram.

Muito bem! Muito bem! conclamaram alegres os outros animais Est resolvido o caso! Vamos ao palcio do Rei Leo!

Puseram-se todos a caminho, pavoneando-se, frente da numerosa comitiva, a esperta Raposa, que sabia trezentas histrias!

No meio da jornada, porm, a Raposa parou repentinamente e assustada, a tremer, exclamou dirigindo-se aos companheiros:

Meus queridos amigos, grande infortnio acaba de ferir-me!

Que foi? Que aconteceu? indagaram todos aflitos.

Das trezentas histrias que eu to bem sabia esqueceu-me agora o fio de cem!

No te aflijas por isto afirmaram os outros animais. Duzentas histrias so suficientes. Uma delas h de, por fora, agradar ao Rei e dissipar de seu esprito a agitao que maus sonhos lhe trouxeram.

E o cortejo novamente se ps em marcha pela larga e verdejante estrada que conduzia ao palcio do soberano da floresta.

Momentos depois, quando j se ouviam nitidamente os urros atordoadores do Leo, a Raposa parou novamente e, ainda mais assustada, voltou-se para os que a acompanhavam dizendo-lhes com voz transformada:

Amigos! Nova e terrvel desgraa me vem surpreender!

Que foi que te aconteceu, amiga Raposa? acudiram pressurosos e em coro os companheiros.

Das duzentas histrias que eu sabia na ponta da lngua balbuciou chorosa de cem no me lembro mais!

No vai nisso grande mal, boa amiga redargiram os animais j duvidosos da segurana de to apregoada memria. Cem histrias do de sobra! A metade desse nmero bastaria, por certo, ao prprio Sulto! Em cem casos de peripcias atraentes uma h de agradar ao Rei Leo e dissipar de seu esprito e agitao que maus sonhos lhe trouxeram.E, isto dizendo, puseram-se novamente a caminho, levando por diante a Raposa, que parecia triste e abatida com o seu apoquenta-dor esquecimento.

Quando o cortejo que engrossara consideravelmente com a adeso de muitos outros animais chegava diante do palcio do Leo, a Raposa teve um desmaio e rolou desamparada pelo cho.

Reanimada, porm, pelos desvelos dos companheiros, reabriu os olhos e com voz sucumbida confessou tremente:

Que desgraa, meus amigos! No sei como ocultar-lhes que j no me lembro das cem ltimas histrias de que ainda h pouco me recordava to bem!

A infanda revelao da Raposa causou entre os animais presentes verdadeira desolao. Que fariam eles? Como remediar a situao? J sabiam todos pelos urros mais fortes e mais freqentes do Rei Leo que Sua Majestade, exaltado e impaciente, se achava na sala do trono espera do anunciado emissrio que vinha trazer-lhe calma ao esprito agitado. Quem seria capaz, naquela grave emergncia, de substituir a Raposa, atacada de to forte acesso de amnsia?

O Chacal, prudente e sensato, sabedor do que acontecera Raposa, reuniu os chefes do bando e disse-lhes:

Meus camaradas! Sou, como bem sabeis, um animal rude e inculto! Tenho vivido sempre em soturnas grutas, isolado do mundo e dos poderosos. Aprendi, porm, com um velho mestre que tive nos primeiros anos de minha vida, uma histria muito original, de que jamais me esquecerei. Estou certo de que, ao ouvir essa histria, o nosso glorioso Rei Leo ver restitudas a calma e a tranqilidade ao seu esprito conturbado.

Vai, Chacal! exclamaram os animais Quem sabe se no conseguirs com tua bela narrativa salvar-nos da fria vingativa do Rei Leo!

Animado pelos amigos e companheiros, o Chacal galgou resoluto as longas escadarias do rico palcio que abrigava o exaltado soberano.

A grande praa estava repleta. A populao inteira da floresta aguardava ansiosamente o desfecho da arriscada tentativa. Esperavam todos, a cada instante, ouvir os uivos de dor que o pobre Chacal expediria quando estivesse sendo esmagado pelas garras impiedosas do Leo.

Decorridos, porm, alguns momentos de angustiosa expectativa, viram todos, perplexos, abrirem-se as portas do rgio palcio e surgir, na larga varanda, o Rei Leo, calmo e satisfeito, a saudar risonho, com amveis meneios de sua lustrosa juba, os sditos reunidos a seus ps.

E para maior pasmo surgiu ao lado do temido Leo o abnegado Chacal, o peito escuro coberto de ricas medalhas e distintivos nobilirquicos, a cintura envolta pela faixa dourada de ministro e conselheiro do Reino.

Os animais no se mexiam, de assombrados. Ningum sabia explicar aquele espantoso mistrio. Que teria contado o Chacal de to extraordinrio ao Rei Leo? Que histria maravilhosa teria sido a que alterara to radicalmente o gnio do monarca e fizera com que o seu narrador se tornasse digno de to alta recompensa?

A curiosidade, mesmo entre os animais da floresta, um fator da maior importncia em todos os acontecimentos da vida.

O Camelo, que fora at ento um dos mais ntimos do Chacal, no podendo refrear a nsia que o espicaava, aproximou-se, discreto, do novo vizir do Rei e perguntou-lhe respeitosamente:

Ilustre ministro, dizei-me, peo-vos por favor, que histria contastes ao nosso glorioso soberano?

Amigo Camelo respondeu bondoso o Chacal o conto que narrei ao Leo nada tem, realmente, de extraordinrio. Aproximei-me do trono e contei-lhe, sem nada ocultar a pea que nos pregara a vaidosa Raposa! Sua Majestade achou-lhe muita graa e disse-me: sempre assim, meu caro Chacal! sempre assim! Longe de um rei violento e irritado todos se inspiram e apresentam idias geniais! O verdadeiro talento e a verdadeira coragem s se revelam, porm, na ocasio exata e precisa ao defrontarem o risco e a ameaa.

O Livro do Destino

Certa vez h muitos anos quando voltava de Bagdad, onde fora vender uma grande partida de peles e tapetes, encontrei num caravanar, perto de Damasco, um velho rabe de Hedjaz que me chamou, de certo modo, a ateno. Falava agitado com os mercadores e peregrinos, gesticulando e praguejando sem cessar; mascava constantemente uma mistura forte de fumo e haxixe e, quando ouvia de um dos companheiros uma censura qualquer, exclamava, apertando entre as mos o turbante esfarrapado:

Mak Allah! muulmanos! Eu j fui poderoso! Eu j tive o Destino nesta mo!

um pobre-diabo afirmavam alguns. No regula bem do miolo! Allah que o proteja!

Eu, porm, confesso, sentia irresistvel atrao pelo desconhecido de turbante esfarrapado. Procurei aproximar-me dele discretamente, falei-lhe vrias vezes com brandura e, ao fim de algumas horas, j lhe havia captado inteiramente a confiana.

Os caravaneiros me tomam por doido ele me disse uma noite quando cavaquevamos a ss. No querem acreditar que j tive nas mos o Destino da humanidade inteira. Sim, senhor: o Destino do gnero humano.

Esbugalhei os olhos, assombrado.

Aquela afirmao insistente de que havia sido senhor do Destino era caracterstica do seu pobre estado de demncia.

O desconhecido, porm, que parecia no perceber os meus sustos e desconfianas, continuou:

Segundo ensina o Coro o Livro de Allah a vida de todos ns est escrita Maktub! no grande Livro do Destino. Cada homem tem l sua pgina com tudo o que de bom ou de mau lhe vai acontecer. Todos os fatos que ocorrem na Terra, desde o cair de uma folha seca at a morte de um califa, esto escritos esto fatalmente escritos no Livro do Destino!

E, sem esperar que o interrogasse, prosseguiu meneando a cabea dolorosamente: Salvei das mos do cheique Abu Dolak, depois de uma razzia terrvel que esse impiedoso beduno fizera num acampamento da tribo dos Morebes, um velho feiticeiro que ia ser enforcado. Esse feiticeiro, em sinal de gratido, deu-me um talism rarssimo que possua uma pedra negra, pequenina, em forma de corao, encontrada, anos antes, dentro do tmulo de um santo muulmano. E essa pedra maravilhosa permitia a entrada livre na famosa gruta da Fatalidade, onde se acha pela vontade de Allah o Livro do Destino. Viajei longos anos at o alto das montanhas de Masirah, para alm do deserto de Dahna, a fim de alcanar a gruta encantada. Um djin gnio bondoso que estava de sentinela porta deixou-me entrar, avisando-me, porm, de que s poderia permanecer na gruta por espao de poucos minutos. Era minha inteno alterar o que estava escrito na pgina de minha vida e fazer de mim um homem rico e feliz. Bastava acrescentar com a pena que eu j levava: Ser um homem feliz, estimado por todos; ter muita sade e muito dinheiro! Lembrei-me, porm, dos meus inimigos. Poderia, naquele momento, fazer grande mal a todos eles. Movido pelos mais torpes sentimentos de dio e de vingana, abri a pgina de Ali Ben-Homed, o mercador. Li o que ia suceder, no desenrolar da vida, a esse meu rival e acrescentei embaixo, sem hesitar, num mpeto de rancor: Morrer pobre, sofrendo os maiores tormentos! Na pgina do cheique Zalfah el-Abari: Perder todos os haveres. Ficar cego e morrer de fome e sede no deserto! E, assim, sem piedade, ia ferindo e atassalhando todos os meus desafetos! E na tua vida? indaguei, mirando-o com surpresa Que fizeste, caravaneiro, na pgina que o Destino dedicara tua prpria existncia?

Ah, meu amigo! atalhou o desconhecido, contorcendo as mos, desesperado Nada fiz em meu favor. Preocupado em fazer mal aos outros, esqueci-me de fazer o bem a mim prprio. Semeei largamente o infortnio e a dor, e no colhi a menor parcela de felicidade. Quando me lembrei de mim, quando pensei em tornar feliz a minha vida, estava terminado o meu tempo. Sem que eu esperasse, me surgiu pela frente um effrit gnio feroz que me agarrou fortemente e, depois de arrancar-me das mos o talism, me atirou fora da gruta. Ca entre as pedras e, com a violncia do choque, perdi os sentidos. Quando recuperei a razo, me achei ferido e faminto, muito longe da gruta, junto a um osis do deserto de Om. Sem o talism precioso, nunca mais pude descobrir o caminho da gruta encantada das montanhas de Masirah!E concluiu, entre suspiros, com voz cada vez mais rouca e baixa:

Perdi a nica oportunidade, que tive, de ser rico, estimado e feliz!

Seria verdadeira essa estranha aventura?

At hoje ignoro. O certo que o triste caso do velho rabe de Hedjaz encerrava profundo ensinamento. Quantos homens h no mundo que, preocupados em levar o mal a seus semelhantes, se esquecem do bem que podem trazer a si prprios...

Aprende a Escrever na Areia...

Dois amigos, Mussa e Nagib, viajavam pelas longas estradas que recortam as tristes e sombrias montanhas da Prsia. Eram nobres e ricos e faziam-se acompanhar de servos, ajudantes e caravaneiros.Chegaram, certa manh, s margens de um grande rio barrento e impetuoso. Era preciso transpor a corrente ameaadora.

Ao saltar, porm, de uma pedra, Mussa foi infeliz e caiu no torvelinho espumejante das guas em revolta.

Teria ali perecido, arrastado para o abismo, se no fosse Nagib. Este, sem a menor hesitao, atirou-se correnteza e livrou da morte o seu companheiro de jornada.

Que fez Mussa?

Ordenou que o mais hbil de seus servos gravasse na face lisa de uma grande pedra, que ali se erguia, esta legenda admirvel:

Viandante:

Neste lugar, com risco da prpria vida,

Nagib salvou, heroicamente, seu amigo Mussa

Feito isto, prosseguiram, com suas caravanas, pelos intrminos caminhos de Allah.Cinco meses depois, em viagem de regresso, encontraram-se os dois amigos naquele mesmo local perigoso e trgico.E, como se sentissem fatigados, resolveram repousar sombra acolhedora do lajedo que ostentava a honrosa inscrio.

Sentados, pois na areia clara, puseram-se a conversar.

Eis que, por motivo ftil, surge, de repente, grave desavena entre os dois companheiros.

Discordaram. Discutiram. Nagib, exaltado, num mpeto de clera, esbofeteou, brutalmente, o amigo.

Que fez Mussa? Que farias tu, em seu lugar?

Mussa no revidou a ofensa. Ergueu-se e, tomando tranqilo o seu basto, escreveu na areia clara, ao p do negro rochedo:

Vandante:

Neste lugar, por motivo ftil,

Nagib injuriou, gravemente, seu amigo Mussa

Surpreendido com o estranho proceder, um dos ajudantes de Mussa observou respeitoso:

Senhor! Da primeira vez, para exaltar a abnegao de Nagib, mandasses gravar, para sempre, na pedra, o feito herico. E agora, que ele acaba de ofender-vos to gravemente, vs vos limitais a escrever, na areia incerta, o ato de covardia! A primeira legenda, cheique!, ficar para sempre. Todos os que transitarem por este stio dela tero notcia. Esta outra, porm, riscada no tapete de areia, antes do cair da tarde, ter desaparecido como um trao de espuma entre as ondas buliosas do mar.

Respondeu Mussa:

A razo simples. O benefcio que recebi de Nagib permanecer, para sempre, em meu corao. Mas a injria... essa negra injria... escrevo-a na areia, como um voto, para que, se depressa daqui se apagar e desaparecer, mais depressa, ainda, desaparea e se apague de minha lembrana!

* * *

Eis a sublime verdade, meu amigo! Aprende a gravar, na pedra, os favores que receberes, os benefcios que te fizerem, as palavras de carinho, simpatia e estmulo que ouvires.Aprende, porm, a escrever, na areia, as injrias, as ingratides, as perfdias e as ironias, que te ferirem pela estrada agreste da vida.

Aprende a gravar, assim, na pedra; aprende a escrever, assim, na areia... e sers feliz.Dez Anos de Kest

Interessante seria, meu amigo, comear este conto, maneira dos clssicos israelitas, citando cinco ou seis pensamentos admirveis, colhidos nas Pginas do Talmud. Como recordar-me, porm, dos trechos mais belos da Antologia Hebraica, quando fraca, incerta e claudicante a minha memria? Vem-me, apenas, lembrana um velho provrbio muito citado pelos judeus russos: Quando o homem feliz, um dia vale um ano.

A verdade contida nesse aforismo indiscutvel. E a histria, que a seguir vou narrar, poder servir para ilustrar a minha assero.

Vivia em Viena, h mais de meio sculo, um jovem chamado David Kirsch, filho de um malamed, homem prudente e sensato. David Kirsch adornava o seu esprito com uma qualidade bastante aprecivel: no ousava tomar resoluo alguma de certa relevncia sem se sentir esclarecido e orientado pelos conselhos dos mais velhos. Quando pensou em casar-se, ouviu de seu pai a seguinte recomendao:

Cabe-me dizer-te, meu filho, que devers evitar qualquer casamento, quando do casamento resultar aproximao, por parentesco, com um roiter-id.

E acrescentou com a prudncia que a longa experincia da vida s ensina aos homens:

Se algum dia, porm, por uma fatalidade, cares nas garras de um roiter-id, procura, sem demora, o auxlio de outro roiter-id!

Quis o jovem David, com grande empenho, conhecer, mais por curiosidade do que por outro motivo, a razo de ser daquele curioso conselho, mas o velho malamed recusou-se terminantemente a dar, sobre o caso, qualquer explicao, alegando que tinha, para assim proceder, motivos que de conscincia no poderia revelar.

Algumas semanas depois, o jovem David Kirsch foi procurado por um schatachhen, isto , por um agenciador de casamentos.

Trocadas as saudaes habituais Scholem Aleichem! Aleichem Scholem o schatachhen assim falou:

Como sei que pretendes resolver do melhor modo possvel o problema do teu futuro, com a escolha de uma companheira digna, quero informar-te de que obtive para o teu caso uma soluo admirvel. A noiva que tenho em vista formosa, de famlia honestssima e, alm do mais, muito culta e prendada.

E o dote? indagou David grandemente interessado.

Quanto ao dote explicou logo o schatachhen, com um sorriso que traduzia o orgulho de bom profissional est combinado que ser de mil coroas e ters ainda dez anos de kest!

Dez anos de kest?! repetiu David Mas isto espantoso, inacreditvel!

Sou forado a interromper a presente narrativa para dar ao leitor no-judeu, isto , ao meu amigo gi, um esclarecimento que me parece indispensvel.

O kest costume tradicional entre os judeus. O pai da noiva, alm do dote (que de uso tambm entre os cristos), concede ao genro, a ttulo de auxlio para iniciar a vida, a permisso de viver, durante algum tempo, em sua casa, sem fazer a menor despesa, quer com a alimentao, quer mesmo com o vesturio.

Esse perodo, durante o qual o pai da jovem toma a seu encargo a subsistncia completa dos recm-casados, denominado kest e, em geral, varia de um a trs anos.

Para um jovem egosta, sem nimo para a vida, pouco inclinado ao trabalho, a oferta de um kest prolongado constitui uma isca irresistvel. Era esse, precisamente, o caso de David Kirsch, indolente como um falso mendigo, amigo da boa vida e do feriado permanente.

Dez anos de kest?

Um judeu sensato no poderia hesitar. A cerimnia do noivado, com a clssica apresentao das famlias, foi marcada para alguns dias mais tarde.

Quando David Kirsch foi levado presena de sua noiva, ficou maravilhado: o schatachhen no o havia iludido pintando com as cores vivas do exagero os encantos da noiva prometida. A menina era uma judia realmente graciosa, e os dez anos de kest emprestavam-lhe ao olhar, ao sorriso e aos lbios todos os ms inconcebveis da beleza. Rebla, a filha do Rei de Gorner, no parecia mais encantadora aos olhos do grande Salomo!

Dolorosa foi, porm, a surpresa do noivo judeu, ao defrontar, pela primeira vez, com seu futuro sogro. Era o velho um tipo perfeito e inconfundvel de roiter-id!Naquele momento recordou-se David, com pavor, do conselho que a prudncia paterna lhe ditara: Evitar qualquer aproximao, pelo casamento, com um roiter-id! Mas, que fazer naquela dependura? A sua palavra estava dada; ademais, acima de qualquer compromisso, os dez anos de kest constituam um argumento irrespondvel diante do qual desapareciam todos os motivos que militavam contra o consrcio que se lhe afigurava to promissor.

Pouco tempo depois realizou-se o enlace nupcial e o jovem passou a viver, com sua adorada esposa, o seu perodo de kest em casa do rico roiter-id.

Esse judeu vermelho pensou David, desconfiado com o caso alguma pea prepara contra mim. Custa-me acreditar que ele mantenha a sua promessa dos dez anos de kest. Naturalmente aqui, em sua casa, terei um tratamento to vil e humilhante que nem mesmo um co seria capaz de aturar, e ao fim de dois ou trs meses, certo, serei forado pela situao a procurar outro pouso e trabalho. Alguma coisa desagradvel o meu sogro j planejou contra mim!Com grande espanto, entretanto, o jovem David verificou que o pai de sua esposa era de um feitio que desmentia por completo seus temores e desconfianas. O roiter-id mostrava-se delicado e afetuoso e dispensava ao seu novo genro um tratamento principesco: fazia multiplicar os pratos saborosos nas refeies, proporcionava-lhe passeios agradabilssimos, dava-lhe roupas finas e enchia-o de presentes valiosos. Meu pai no tinha razo meditava o jovem, refletindo sobre a vida regalada e invejvel que desfrutava em casa de seu sogro. Que outro marido poder ser mais feliz do que eu? Rivekel , a minha esposa, encantadora; por longo prazo, sem o menor trabalho ou contrariedade, terei, nesta casa, mesa sempre lauta, agasalho, carinho e considerao!

Ao cabo de alguns dias, o velho roiter-id chamou o indolente marido de sua filha e interpelou-o muito srio: Dize-me, David! s na verdade feliz na tua nova situao de homem casado e chefe de famlia?

Muito feliz, meu sogro confirmou o jovem. Sinto-me, aqui, incomparavelmente feliz!

Se assim tornou gravemente o judeu vermelho , o teu kest est terminado!

Terminado o meu kest? perguntou atnito o marido parasita Mas se eu estou casado h pouco mais de uma semana! Como pode ser isto?

Como pode ser? repetiu o sogro num tom muito srio Nada mais simples. Ests casado com minha filha h dez dias. Bem sabes que para um homem feliz, um dia vale um ano. Logo, de acordo com esse tradicional provrbio, ests casado h dez anos! Amanh, portanto, levars de minha casa tua esposa e irs para a tua residncia. Creio que devers, tambm, procurar um emprego, um meio qualquer de vida, pois de mim j recebeste o necessrio auxlio, o dote e o kest prometidos.

Diante da imposio do sogro, sentiu-se o nosso heri preso de grande furor. Quis apresentar argumentos que militavam em seu favor, mas o astucioso roiter-id manteve-se intransigente e no houve como lev-lo a reconsiderar a resoluo que havia tomado, insistindo em afirmar que nada fazia seno atender a verdade contida no provrbio Quando o homem feliz, um dia vale um ano.David Kirsch no se conformava com a idia de ser obrigado a trabalhar para viver; e a situao a que fora, de repente atirado, envenenou-lhe o esprito com todas as toxinas do rancor. Tinha sido, a seu ver, indigno o procedimento do pai de Rivekel. Prometera-lhe, sob palavra, dez anos de kest, e depois, por evidente m f, baseando-se num idiota brocardo judeu, reduzia o prazo a dez dias! Que tratante! Era um grande velhaco o roiter-id! Quando o interesse estava em jogo, sabia transformar um provrbio em lei social!

Meu pai tinha razo murmurou David. Pratiquei uma imprudncia muito sria, fazendo-me surdo aos conselhos daquele que, melhor do que eu, deve conhecer a vida e os filhos de Israel!

E, resolvido a no incidir mais uma vez no erro, o jovem, recordando-se da segunda parte do conselho paterno, foi, nesse mesmo dia, procurar um conhecido seu, chamado Elias Bloch, tambm judeu vermelho, e pediu-lhe que indicasse um meio que o permitisse sair da situao crtica em que se encontrava. O inteligente Elias Bloch atendeu com amabilidade o jovem David e, depois de ouvir o minucioso relato da burla do kest, respondeu pachorrentamente: No vejo dificuldade alguma em resolver o teu caso. Irs amanh casa de teu sogro, e, se seguires minhas instrues, sairs vencedor nesse litgio.

No dia seguinte, David Kirsch, tendo nas mos um exemplar do Torah que o Livro da Lei entre os hebreus foi ter rica vivenda do seu astucioso sogro.

Depois de saudar o velho roiter-id com certa reserva e cerimnia, como se as relaes entre ambos estivessem profundamente abaladas, assim falou:

Por motivo muito grave sou forado a vir agora sua presena. Vou divorciar-me!

Divrcio! Essa palavra para a famlia judaica representava uma calamidade s comparvel s maiores calamidades. Ests louco, rapaz! desdenhou o velho com um sorriso meio amarelo Bem sabes que o divrcio s pode ser obtido segundo a lei de Moiss. Que motivo poder ser aduzido para justificativa dessa ndoa infamante que pretendes lanar contra a minha famlia?

Tenho a Lei a meu favor reagiu com altivez o moo. Vivi, como o senhor mesmo declarou, em sua companhia, os dez anos de kest. Os doutores e rabis no ignoram que o Livro da Lei de Moiss o Torah diz com a maior clareza: Quando a mulher no concebe ao fim de dez anos, o marido pode requerer o divrcio. Ora, eu estou casado h dez anos e no tenho filhos; cabe-me, portanto, segundo a Lei, o direito de repudiar minha esposa!

Que brincadeira essa, meu filho? apaziguou o roiter-id, abraando amavelmente o genro Afastemos de ns as idias tristes, pois j no foi pequeno o susto com que abalaste meu corao de pai. Fizeste mal em tomar a srio o meu gracejo sobre o tal provrbio dos dias felizes, e, se assim , fica o dito pelo no-dito. Se eu prometi dez anos de kest, certo que poders viver todo esse tempo em minha casa!E concluiu, com orgulho, passando a mo lentamente pelos cabelos avermelhados: Jamais deixei, menino, como um bom judeu, de cumprir a palavra dada!

O Problema dos 35 Camelos

Poucas horas havia que viajvamos sem interrupo, quando nos ocorreu uma aventura digna de registro, na qual meu companheiro Beremis, com grande talento, ps em prtica as suas habilidades de exmio algebrista.

Encontramos, perto de um antigo caravanar meio abandonado, trs homens que discutiam acaloradamente ao p de um lote de camelos.

Por entre pragas e improprios gritavam possessos, furiosos:

No pode ser!

Isto um roubo!

No aceito!

O inteligente Beremis procurou informar-se do que se tratava.

Somos irmos esclareceu o mais velho e recebemos, como herana, esses 35 camelos. Segundo a vontade expressa de meu pai, devo receber a metade, o meu irmo Hamed Namir uma tera parte e ao Harim, o mais moo, deve tocar apenas a nona parte. No sabemos, porm, como dividir dessa forma os 35 camelos e a cada partilha proposta segue-se a recusa dos outros dois, pois a metade de 35 17 e meio. Como fazer a partilha se a tera parte e a nona parte tambm no so exatas? muito simples atalhou o homem que calculava. Encarrego-me de fazer, com justia, essa diviso, se permitirem que eu junte aos 35 camelos da herana, este belo animal que, em boa hora, aqui nos trouxe.

Neste ponto, procurei intervir na questo: No posso consentir semelhante loucura! Como poderamos concluir a viagem, se ficssemos sem o camelo?

No te preocupes com o resultado, bagdali! replicou-me em voz baixa Beremis Sei muito bem o que estou fazendo. Cede-me o teu camelo e vers no fim a que concluso quero chegar.

Tal foi o tom de segurana com que ele falou que no tive dvida em entregar-lhe o meu belo jamal, que, imediatamente, foi reunido aos 35 ali presentes, para serem repartidos pelos trs herdeiros.

Vou, meus amigos disse ele, dirigindo-se aos trs irmos fazer a diviso justa e exata dos camelos que so agora, como vem, em nmero de 36.

E, voltando-se para o mais velho dos irmos, assim falou:

Deverias receber, meu amigo, a metade de 35, isto , 17 e meio. Recebers a metade de 36 e, portanto, 18. Nada tens a reclamar, pois claro que saste lucrando com esta diviso!

E, dirigindo-se ao segundo herdeiro, continuou:

E tu, Hamed Namir, deverias receber um tero de 35, isto , 11 e pouco. Vais receber um tero de 36, isto , 12. No poders protestar, pois tu tambm saste com visvel lucro na transao.

E disse, por fim, ao mais moo:

E tu, Harim Namir, segundo a vontade de teu pai, deverias receber uma nona parte de 35, isto , 3 e tanto. Vais receber uma nona parte de 36, isto , 4. O teu lucro foi igualmente notvel. S tens a agradecer-me pelo resultado!

E concluiu:

Pela vantajosa diviso feita entre os irmos Namir partilha em que todos trs saram lucrando couberam 18 camelos ao primeiro, 12 ao segundo e 4 ao terceiro, o que d um resultado (18 + 12 + 4) de 34 camelos. Dos 36 camelos, sobram, portanto, dois. Um pertence, como sabem, ao bagdali, meu amigo e companheiro, outro toca por direito a mim, por ter resolvido, a contento de todos, o complicado problema da herana!

Sois inteligente, estrangeiro! exclamou o mais velho dos trs irmos Aceitamos a vossa partilha na certeza de que foi feita com justia e eqidade!

E o astucioso Beremis o homem que calculava tomou logo posse de um dos mais belos jamales do grupo e disse-me entregando-me pela rdea o animal que me pertencia:

Poders agora, meu amigo, continuar a viagem no teu camelo manso e seguro! Tenho outro, especialmente para mim!

E continuamos nossa jornada para Bagdad.

A Cincia da Vida

Naquele ano um acontecimento inesquecvel perturbou a secular tranqilidade da pequena vila de Anadir.

Assinalemos o caso. O jovem e talentoso Namedin, filho do cheique Omar Iru, depois de longa ausncia, regressava ao seu torro natal, trazendo o diploma que lhe fora conferido pela famosa Universidade de Bagdad.

E o inteligente Namedin no perdera tempo na capital; segundo o dizer das pessoas cultas, era o nosso heri motivo de orgulho para a sua terra, e de glria para a sua famlia. Aprendera, durante seis anos, com sbios muulmanos, a cincia imensa que vem nos livros. Estudara, alm do mais, a Filosofia, a Matemtica cheia de frmulas, a Lgica com seus belos princpios, a Retrica, a Astronomia e vrios outros ramos fecundos do conhecimento humano.

O rico cheique Omar Iru, figura de relevo na cidade, proclamava com paternal vaidade aos amigos:

Meu filho, senhores, pela cultura in- comparvel que possui, capaz de discutir trinta dias com os ulems do Egito e da Palestina!

Ulem como todos sabem sinnimo de homem que se destaca pelo saber e pelo estudo. E pouco faltava para que Namedin, apesar de sua juventude, fosse consagrado pelos seus concidados com o honroso ttulo de ulem.

E em Anadir, afinal desde a mesquita at o ham no se comentava outra coisa. As lendas mais espantosas brotavam no meio das rodas que palestravam. Dizia um que Namedin conhecia os cento e trinta mil segredos do Coro; garantia outro que o jovem sabia de cor todas as pginas de Ibn Batuta, o socilogo; afirmava um terceiro que o mancebo resolvia equaes e fazia clculos com letras. E no havia, certo, muito exagero nessas indicaes. O recm-formado era douto entre os mais doutos.

Ao cair da tarde, em meio dos festejos, o cheique Omar Iru chamou o jovem bacharel e disse-lhe:

A tua fama, meu filho, deslumbra e assombra a nossa pequenina terra. preciso porm que, em prova pblica, possas justificar o alto conceito em que s tido pelos nossos conterrneos.

Que devo fazer, meu pai? perguntou ele.

Nada mais simples explicou o velho. Hoje, noite, depois da prece, haver uma reunio na mesquita. L estaro presentes os homens mais ricos de Anadir e tambm o nosso venervel mufti Abdel-Anurek Ben-Abdallah com seus conselheiros, cadis e secretrios. Fars, nessa ocasio, um eloqente discurso no qual demonstrars que s um conhecedor profundo da verdadeira Cincia da Vida. Com esse discurso devers impressionar principalmente o mufti, nosso ilustre chefe e judicioso amigo.

Assim farei, meu pai volveu com segurana o moo. Asseguro-te que o povo ficar deslumbrado com as minhas arrebatadoras palavras.

E, nessa mesma noite, realizou-se na mesquita a reunio solene. Ao templo compareceram os elementos mais representativos da sociedade muulmana: cheiques com seus turbantes de seda, ricos mercadores, escribas, doutores etc.O jovem Namedin, ao subir para a tribuna que lhe fora destinada, com um rpido olhar examinou o pblico que ia ouvi-lo. Avistou logo o velho mufti, imponente, com suas venerveis barbas derramadas sobre o peito.

Ditas as palavras do ritual: Em nome de Allah, Clemente e Misericordioso, o nosso heri iniciou um vibrante discurso de apresentao.Discorreu, a princpio, sobre os grandes movimentos sociais dos povos civilizados, impelidos pelas correntes irresistveis do modernismo. Pintou, com as cores vivas da eloqncia, o panorama da vida arrebatada pelos fatores mais complexos das tendncias sociais.

Por Allah! Que talento! murmuravam os ouvintes.

E, amigos continuava o jovem orador arrastado por um entusiasmo sempre crescente o mundo, queiram ou no queiram os espritos tacanhos, marcha para a frente levado por um ideal invencvel de aperfeioamento. E a nossa infeliz Anadir fica imvel, abandonada margem do progresso, como se fora uma cidade morta e esquecida. E quereis saber por qu? Eu vos direi a verdade. O governo desta terra est entregue ao velho mufti, homem decrpito, incapaz de compreender as tendncias modernas da sociedade. Como pode um esprito rotineiro inculto, arcaizante, admitir as transformaes impostas pelo progresso? Jamais h de prosperar uma cidade cujos destinos esto nas mos de um ancio sem a indispensvel energia e sem a necessria capacidade administrativa.

Essas palavras, que feriram o homem de maior prestgio na cidade, causaram aos muulmanos um escndalo nunca visto.

O mufti ouviu impassvel a parlenda do moo como se nada tivesse compreendido; fez, apenas, um ligeiro sinal com os olhos a um de seus auxiliares e este murmurou:

Logo, ao sair, veremos.

E quando Namedin, orgulhoso pela sensao causada, deixava a mesquita, foi de sbito agarrado por trs capangas e espancado impiedosamente.

A sova foi to violenta que o imprudente perdeu os sentidos e teve de ser carregado por alguns amigos para a casa de seus pais.

Muitos dias depois, quando j se achava convalescente dos ferimentos recebidos, falou ao pai e queixou-se do procedimento indigno do mufti que fora o mandatrio da brbara agresso.

Disse-lhe, ento, o velho cheique: O mufti assim procedeu, meu filho, por um motivo muito justo. Ele quis mostrar que, apesar do curso de seis anos que fizeste na Universidade, ainda ignoras, por completo, a Cincia da Vida. Vais, portanto, por minha ordem, voltar novamente para Bagdad e estudars mais um ano com os sbios filsofos. Veremos depois se findo esse novo prazo ters adquirido os conhecimentos indispensveis sobre a verdadeira Cincia da Vida.

* * *

Namedin, obrigado a obedecer resoluo paterna, voltou para Bagdad e durante vrios meses freqentou os cursos da Universidade.

Quando regressou outra vez ao seu torro natal foi festivamente recebido por seus antigos camaradas.

Houve, como da primeira vez, sob a presidncia do mufti, uma grande reunio na mesquita e o jovem Namedin foi convidado a proferir um discurso.

Ao tomar lugar na tribuna, o nosso heri avistou a figura imponente do mufti que, rodeado de seus ntimos, aguardava, como da outra vez, solene, a palavra do orador.

Namedin, em longos e eloqentes perodos, fez o elogio do povo-fiel de sua terra natal que ele qualificou de prspera e progressista. Falou, em seguida, da figura do mufti, esse ancio venervel, modelo de virtudes, cheique dos cheiques, amparo da justia, inspirado de Allah e mil outros elogios que deixaram o mufti sensibilizado e comovido.

E, com um brilho incomparvel, Namedin assim falava:

E devo dizer ainda, irmo dos rabes!, que o nosso glorioso mufti pelas suas excelsas virtudes, pela sua vida exemplar e digna, um verdadeiro santo! E qual a homenagem que os fiis muulmanos devem prestar aos grandes santos do Isl? Determina o Coro, o Livro de Deus: Conservai dos homens dignos os bons exemplos e venerai as suas relquias. Cumpre-nos, pois, como um dever sagrado, conservar do nosso santo mufti uma relquia qualquer. E das relquias dos santos as mais preciosas so constitudas pelos fios de barba. Que cada um dos fiis conserve do nosso virtuoso mufti um fio de suas venerveis barbas.E, depois de proferir tais palavras, o jovem Namedin desceu da tribuna, dirigiu-se ao mufti, inclinou-se respeitoso e com a ponta dos dedos arrancou delicadamente um fio das longas barbas do ancio.O mufti, lisonjeado em sua vaidade em face da extraordinria homenagem, agradeceu e abraou risonho o nosso heri.

O exemplo de Namedin foi logo seguido por vrias pessoas que se achavam perto. Ao fim de alguns minutos, verdadeira legio de fanticos atirava-se sobre o velho mufti que se sentia puxado pelas barbas e maltratado pelos seus devotados servos. Os fiis faziam empenho em obter uma relquia do santo.

Com o rosto a sangrar e as vestes em farrapos, conseguiu o mufti fugir dos exaltados muulmanos.E o inteligente Namedin rejubilava-se da lembrana que tivera.Estava vingado da sova tremenda que um ano antes recebera por ter sido sincero.

E, nessa noite, seu pai disse-lhe orgulhoso:

Agora sim, meu filho, j conheces perfeitamente a verdadeira Cincia da Vida.

O Santo LadroCerta vez, no interior da ndia, um ladro aproveitando-se da escurido da noite, tentou assaltar a casa de um rico senhor.

Sentindo-se percebido, fugiu para um bosque vizinho e ficou escondido sob uma rvore, de onde via, de quando em vez, avermelhados clares que surgiam nas trevas. Eram os criados do ricao que o procuravam, com grandes tochas, pesquisando todos os recantos do bosque.

Estou perdido pensou. Os malditos servos fatalmente viro encontrar-me aqui.

E, sem perda de tempo, resolveu arranjar um disfarce qualquer. Sujou o rosto de terra, rasgou as vestes e, ajoelhando-se no cho, fingia um santo faquir absorvido em profunda meditao.

Os seus perseguidores no reconheceram naquele humilde penitente o astucioso ladro que, pouco antes, havia tentado violar a residncia do rico patro.

E pressurosos levaram a notcia ao dono do palcio: No encontramos as pegadas do ladro, e o nico ser vivo que conseguimos descobrir foi um santo que orava sob uma rvore!

Um santo em minhas terras! bradou entusiasmado o proprietrio Que felicidade!

E foi, sem demora, acompanhado da esposa e filhos, levar frutas e doces ao falso anacoreta.

A notcia correu clebre pela cidade. Na manh seguinte, crentes, em multido, foram admirar o extraordinrio faquir que vivia no bosque sob uma rvore, com o rosto sujo de terra e as vestes em frangalhos. Deram-lhe muito dinheiro e valiosos presentes.

Ao ser informado da presena do santo, o Prncipe Nahor, que governava a regio, assaltado por sbita e devota curiosidade, ordenou que seus oficiais fossem ao bosque e obtivessem do venerando penitente permisso para conduzi-lo ao palcio.

E num carro dourado, frente de grande cortejo, o audacioso aventureiro foi levado suntuosa morada do Prncipe Nahor. Pelas ruas, quando o prstito passava, os homens ajoelhavam-se e beijavam fervorosos a terra entre as mos.

O prncipe recebeu o novo santo com o maior respeito e solenidade, beijando-lhe a ponta esfarrapada da tnica.

Santo faquir! exclamou S hoje chegou ao meu conhecimento a vossa vida exemplar e modesta de oraes e penitncias. Desejo que demonstres aos meus queridos sditos a grandeza de vosso poder milagroso. Assim que vos peo realizeis em minha presena, e na dos ilustres Brmanes, um milagre prodigioso que robustea ainda mais a nossa f e confiana!

Respondeu o falso anacoreta:

Prncipe! Bem sei que sois generoso e bom, mas s poderei realizar o milagre que acabais de ordenar se prometeres conservar-me sob vosso amparo e proteo! Receio que contra mim se assanhem os dios exaltados dos incrdulos!

Asseguro-vos, sob palavra atalhou o prncipe que estais sob a minha proteo e ningum ousar o menor movimento contra a vossa pessoa. Aquele que tentar contra vs qualquer ofensa ou vingana ser castigado impiedosamente. As vossas palavras declarou o ladro traduzem a maior garantia que um ser humano pode desejar.

E acrescentou:

Vou realizar diante de vossos olhos dois espantosos milagres que deslumbraro os crentes e deixaro humilhados os pecadores. E, com o maior cinismo, narrou ao prncipe as peripcias por que havia passado desde a sua tentativa de assalto casa do ricao at sua chegada ao palcio.

Eis, senhor concluiu os dois milagres que prometi.

Que milagres? retorquiu o prncipe, tomado de incontido rancor No vejo milagre algum, co miservel!

O primeiro milagre, prncipe generoso, foi o seguinte: com um punhado de areia e um pouco de cinza, transformei um ladro num venervel e virtuoso santo. Depois, narrando a verdade em vossa presena, fiz com que o venervel santo se transformasse, novamente, num ladro abjeto. Penso que essas extraordinrias metamorfoses que realizei foram altamente milagrosas!

Percebeu o arrebatado prncipe que se achava impossibilitado de castigar o inteligente ladro, pois havia empenhado a sua palavra, e o aventureiro nada poderia sofrer. Dirigindo-se ao respeitvel Sind Avastir, o mais sbio dos seus conselheiros, perguntou-lhe:

Qual a concluso moral, brmane!, que poderamos tirar dessa histria? No resultar dela algum ensinamento til para o meu povo?

O digno sacerdote hindu respondeu:

A aventura ocorrida com esse aventureiro que faz jus, alis, a uma boa recompensa, subministra-nos vrios pensamentos e ensinamentos morais. Penso, entretanto, que ser mais interessante deixar o pblico, por si mesmo, tirar do caso as concluses que achar mais acertadas.

E, nesse sentido, o prncipe lavrou uma sentena que se tornou clebre.

As Quatro Esposas do Cheique

Captulo I

At hoje os preclaros e judiciosos ulems, isto , os sbios doutores que estudam e analisam os mistrios dos Ritos e dos Smbolos, no descobriram a razo de ordem social ou moral pela qual o Coro o Livro de Allah fixou em quatro o nmero de esposas legtimas que um bom muulmano pode trazer para a sombra de seu lar e agasalhar sob o prestgio de seu nome.

Quatro esposas legtimas? Por que no cinco, sete, ou mesmo treze?

Como justificar a preferncia por este nmero quatro, que apesar de ser par e quadrado perfeito no mereceu, como sucedeu com o trs, a venerao dos pagos, nem foi, semelhana do sete, exaltado pelos astrlogos e cabalistas?

Estudem os filsofos e matemticos esse problema que se apresenta, at agora, como insolvel. A nossa inteno, neste momento, recordar, apenas, a histria de um rico cheique damasceno, chamado Omar Iacir-el-Avra, nome bastante sonoro que o leitor conseguir decorar com relativa facilidade.Narremos o caso.

Na velha cidade de Damasco, esse homem, rico e respeitado, era citado nos meios mais cultos pelas inmeras qualidades de carter e pela bondade com que agia em todas as circunstncias. Havia, entretanto, na vida do cheique Omar Iacir, uma singularidade: Embora fosse um crente sincero, no atendia a recomendao do Livro! Repelira a poligamia. Omar s tinha uma esposa!

Comentava-se em Damasco a situao anmala daquele homem, moo, rico, que vivia isolado pelo afeto de uma nica mulher. Era senhor e dono de um harm to vazio como o lar de um cristo.

As insinuaes maldosas, repetidas pelos cafs, pelos bazares, e murmuradas pelos ptios das mesquitas, chegaram, afinal, aos ouvidos do cheique.

Marido de uma s esposa!

Sentiu o bom Omar que havia qualquer coisa que sublinhava com a cor cinzenta do ridculo aquele prfido remoque. Deveria ele, semelhana de seus irmos, de seus amigos e patrcios, trazer para o recesso de seu lar, e para a sombra de seu carinho, mais duas ou trs lindas criaturas de Allah?

Os pensamentos agitados do cheique caminhavam pela estrada da dvida, levados por sinuosa caravana de incertezas, temores e escrpulos.

Que diria Astir, sua esposa querida, no dia em que ele, impelido por sentimentos materiais e grosseiros, dividisse por quatro um amor que s parecia ser divisvel pela prpria unidade?!

Essa unidade era a encantadora filha de seu tio, a esposa nica e dileta do corao. Vou consultar Eddin Valliah decidiu o cheique Omar Iacir.

Captulo II

Esse Eddin Valliah, que aparece, assim, de repente, sem ser apresentado ao nosso leitor, era figura admirada e elogiada na alta sociedade damascena e ligada, pelos laos matrimoniais a nada menos que quatro famlias ilustres e conceituadas.

A consulta justificava-se. Eddin Valliah era amigo ntimo do cheique.E, uma tarde, afinal, Omar Iacir deixou seu palcio e encaminhou-se, pelas ruas turbulentas de Damasco, para um caf rabe que ficava nas vizinhanas de Bab el-Feredj. Esse caf era ponto de reunio de ricos e ociosos damascenos.

Os vendedores de pistache gritavam:

Pistik djedid!

Uma florista esfarrapada, rosto macilento e escaveirado, puxou-o pelo brao, oferecendo-lhe um ramo de cravos: Cheique! Sallih hamatak! (Senhor! Isto amansa at uma sogra!).

Omar Iacir no dava ateno aos vendedores ambulantes. Caminhava apressado, desviando-se, cauteloso, dos mendigos andrajosos, dos caravaneiros (com seus odres de pele de cabra) e, dos turcos arrogantes, de turbante verde, que atravessavam a Praa do Serralho em caminho do hammam.Ao chegar ao caf, procurou, em tom confidencial, ouvir sobre as novas diretrizes de sua vida a opinio de seu amigo Eddin que aliava segura experincia a um bom senso pouco comum.Disse o cheique, vencendo o constrangimento que o invadia:

Quero que me respondas, sem nada ocultar, com a maior sinceridade, a uma pergunta sria e delicada. Essa pergunta a seguinte: vives, perfeitamente e inteiramente feliz, em companhia das tuas quatro esposas?

Retorquiu logo Eddin Valliah:

No ponho, meu amigo, a menor dvida em responder a essa pergunta. E, de incio, posso dizer-te o seguinte: difcil encontrar-se, em Damasco, ou em qualquer outro recanto do mundo, marido mais feliz do que eu!

O cheique fitou, deslumbrado, o seu interlocutor. E interpelou-o com veemncia, crendo antever a verdade:

E quais so as razes fundamentais dessa ventura incomparvel?

Eddin Valliah, lisonjeado pela delicada pergunta do amigo, sentiu que devia abrir, para aquele companheiro de vinte anos, o haik de suas confidncias.

Para explicar as coisas mais simples da vida declarou, garbosamente, o nobre Eddin preciso resumir. Toda clareza reside na sntese e a sntese exige tempo e meditao. No momento, porm, estou com muita pressa e no tenho tempo para resumir, como seria conveniente, a resposta que pretendo formular para atender ao teu pedido. Senta-te, pois, pede um pistache gelado e escuta com ateno o que eu vou dizer.

Captulo III

E depois de ligeira pausa, o simptico muulmano comeou:

Confesso que me sinto feliz com as quatro esposas que escolhi. Vou aludir a cada uma separadamente. Amine, a primeira, linda como o terceiro anjo que acompanhou Maom; seus olhos so claros, seus cabelos castanhos, como a polpa de uma tmara; seu sorriso como a aurora. Louvado seja Allah, que reuniu todos os encantos e perfeies sob as linhas da Formosura Sinto-me seduzido pelos encantos e pela graa de Amine, a mais perfeita Set-El-Hosn da Sria! Falarei, a seguir, de Leilah, que a segunda. inteligente e viva. graciosa e elegante. O seu talhe esbelto lembra a perfeio da letra alef. Sua palestra variada encantadora. L romances franceses e comenta livros de arte e de poesias. Canta com rara perfeio e sabe arrancar, das cordas de seu violino, melodias que comovem e arrebatam. E Roxana? Roxana, a terceira, no formosa como Amine e no tem o talento cativante de Leilah. , porm, delicada e meiga; cuida, com extraordinrio desvelo, dos filhos e dos arranjos da casa. Tem por mim uma grande e constante amizade. delicada, modesta e diligente. Sinto que no posso viver sem o amor de Roxana. No deixarei, finalmente, de referir-me a Norah, a quarta esposa (a primeira, alis, pela data do casamento). Norah tem sido, para mim, uma preciosa companheira. rica. Trouxe, para a economia de nossa casa, valioso peclio, que eu tenho procurado multiplicar com cautela e habilidade. Sente-se feliz a meu lado e procura ajudar-me e orientar-me com seus prudentes conselhos em todos os negcios. Seus parentes so opulentos, prestigiosos, e do auxlio deles, mais de uma vez, tenho me valido. A verdade deve ser dita: Sem o amparo de Norah, eu estaria arruinado!

E, depois de curta pausa, Eddin Valhah retomou pelo caminho de suas confidencias.

Eis a, meu amigo, as delicadas razes que formam a base da minha felicidade conjugai. Delicio-me com a beleza de Amine; encanto-me com o talento de Leilah; Roxana, a me extremosa, a serenidade da minha vida e vejo, em Norah, a garantia presente e a segurana de meu futuro. Estars, afinal, resolvido a seguir o meu exemplo?

Ainda no sei... hesitou o cheique. Tenho dvidas, muitas dvidas, sobre o caso. A vida tem faces sentimentais que me parecem obscuras.

Omar Iacir, ao proferir murchamente aquelas palavras vagas, incertas, no era sincero. E fugia mesmo verdade. A resoluo mxima de sua vida estava tomada. Voltar imediatamente para casa e pedir boa Astir perdoasse a leviandade que o impelira pensar em novos casamentos.

Seria uma loucura! Ao ouvir, no fundo do caf, as palavras do prudente amigo (quatro vezes casado), reconheceu que sua delicada Astir reunia todas as perfeies das quatro esposas que aureolavam a vida do marido feliz.

Era linda como Amine; em inteligncia, e mesmo cultura, estava bem acima de Leilah; muito mais meiga, por certo, que Roxana e mais rica do que a orgulhosa Norah. Para que iria ele buscar novos zelos e contrariedades se sua esposa valia, na verdade, no por uma, mas por quatro?

H, na vida dos homens, um terceiro segredo que at hoje os ulerns, isto , os sbios, no souberam decifrar.

Qual o gnio oculto e poderoso que leva o marido sentimental, apaixonado, a descobrir e a reconhecer, em sua esposa, os mltiplos predicados e encantos que adornam as esposas de seus amigos?

Por Allah! Que gnio ser esse, irmo dos rabes!, que inspira o bom marido e assegura a felicidade do lar?

A poligamia entre os muulmanos (Humberto Mesentier) Na surata IV (versculo 3) do Coro, encontra-se esta notvel determinao de Allah: Aquele que no receia ser injusto aos olhos dos rfos pode esposar duas, trs ou quatro esposas. A poligamia, como vemos, permitida ao crente do Isl. Convm no esquecer que, para o muulmano, as palavras do Coro exprimem os decretos de Allah Onipotente.

A poligamia, outrora aceita pelos rabes muulmanos, est hoje praticamente abolida. S se verifica entre os bedunos e em algumas cidades do interior.

O Herdeiro LegtimoUm israelita rico, que vivia em sua bela propriedade, para alm de Ascalon, muito longe de Jerusalm, tinha um filho nico, que mandou para a Cidade Santa a fim de se educar. Durante a ausncia do jovem, o pai adoeceu repentinamente. Vendo a morte aproximar-se, fez o seu testamento pelo qual instituiu como seu universal herdeiro a um escravo ascalonita, de sua confiana, com a clusula que a seu filho seria permitido escolher da rica propriedade uma coisa, e uma coisa s, que ele quisesse. Assim que o seu senhor e dono morreu, o escravo, exultando de alegria, por se sentir proprietrio das casas, terras e rebanhos, correu a Jerusalm para informar o filho do que se tinha passado, e mostrar-lhe o testamento. O jovem israelita ficou possudo do maior desgosto ao ouvir essa notcia inesperada, rasgou o fato, ps cinzas na cabea e chorou a morte do pai, que amava ternamente, e cuja memria ainda respeitava. Quando os primeiros arrebatamentos de sua dor tinham passado e os dias de luto acabaram, o jovem encarou seriamente a situao em que se encontrava. Nascido na opulncia e criado na expectativa de receber, pela morte do pai, as propriedades a que tinha direito, viu ou imaginou ver as suas esperanas perdidas e as suas perspectivas malogradas. Nesse estado de esprito, foi ter com o seu professor, um rabi afamado pela sua piedade e sabedoria, deu-lhe a conhecer a causa de sua aflio e f-lo ler o testamento; e na amargura do seu desgosto atreveu-se a desabafar os seus pensamentos que o pai, fazendo tal testamento, e dispondo to singularmente de seus bens, no tinha mostrado bom senso nem amizade pelo filho. No digas nada contra teu pai, meu jovem amigo declarou o piedoso rabi teu pai era ao mesmo tempo um homem dotado de grande sabedoria e a ti, especialmente, de uma dedicao sem limites. A prova mais evidente este admirvel testamento.

Este testamento! exclamou o jovem torcendo os lbios em expresso de amargura. Este deplorvel testamento! Convencido estou, rabi!, de que no falas agora com o discernimento de um homem esclarecido. Praticou meu pai uma injustia. No vejo sabedoria em conferir os seus bens a um escravo, nem amizade em despojar seu filho nico dos seus direitos legtimos, de acordo com o Torah. Teu pai nada disso fez! rebateu com segurana o Mestre Mas, como pai justo e afetuoso, garantiu-te, nos termos deste testamento a propriedade plena de tudo, casas, terras e rebanhos, se tiveres o bom senso de interpretar com acerto as clusulas testamentrias.

Como? Como? perguntou o jovem, com o maior espanto. Como isso? Cabe-me a propriedade integral? Na verdade, no compreendo!

Escuta, ento acudiu o rabi. Escuta, meu filho, e ters muito para admirar a prudncia de teu pai. E no corao do prudente repousa a sabedoria. Quando viu teu bondoso pai a morte aproximar-se, e certo de que teria de seguir o caminho que todos seguem mais cedo ou mais tarde, pensou de si para consigo: Hei de morrer; meu filho est longe demais para tomar posse imediata de minha propriedade; os meus escravos, assim que se certificarem de minha morte, saquearo a minha casa e, para evitar serem descobertos, ho de esconder a minha morte a meu querido filho e, assim, priv-lo at da triste consolao de chorar por mim. Para evitar que a propriedade sofresse dano prosseguiu o rabi teve teu saudoso pai uma idia genial. Deixou todos os bens a um escravo, que, decerto, teria o maior interesse em tomar conta de tudo e zelar pela segurana de todos os bens. Para evitar que o escravo, homem de sua confiana, conservasse, em sigilo, a morte do amo, estabeleceu a condio que poderias escolher qualquer coisa da propriedade. O escravo, pensou ele, para assegurar o seu, aparentemente legtimo direito, no deixaria de te informar, como de fato ele o fez, do que acontecera.

Mas, ento teimou o jovem, um pouco impaciente que proveito tirarei de tudo isso? Qual a vantagem que poder resultar para mim? O escravo ascalonita no me restituir, com certeza, a propriedade de que to injustamente fui despojado! Ficar, como determinou meu pai, dono das terras e dos rebanhos.

O judicioso rabi respondeu com serenidade:

Vejo que a Sabedoria reside apenas nos espritos amadurecidos pela idade. Sabes que tudo quanto um escravo possui pertence ao seu dono legtimo? E teu pai no te deu a faculdade de escolher, dos seus bens, isto , da herana, qualquer coisa que quisesses? O que te impede de escolher aquele prprio escravo ascalonita como parte que te pertence? E possuindo-o, ters, de acordo com a Lei, pleno direito propriedade toda. Sem dvida era esta a inteno de teu pai.

O jovem israelita, admirando a prudncia e a sabedoria do pai, tanto como a argcia e a cincia do seu Mestre, aprovou a idia. Nos termos do testamento, e na presena de um juiz, escolheu o escravo como sua parte e tomou posse imediata de toda a herana. Depois do que, concedeu liberdade ao escravo, que foi, alm disso, agraciado com rico presente.

E assim podemos ler entre os provrbios que figuram no Livro Santo:A Sabedoria vale mais do que as prolas e jia alguma a pode igualar.

E mais:

Quem acha a Sabedoria encontra a vida e alcana o favor do Senhor.****

Maktub - Estava escrito. Tinha que acontecer. Admite o fatalismo dos rabes que a nossa vida, com todas as suas peripcias, est escrita no Livro do Destino. Maktub o particpio passado do verbo Katb, escrever.

Ramad - Perodo da Quaresma entre os muulmanos.

Cheique - Chefe. Homem de prestgio.

Profeta - Refere-se a Mahomed, o fundador do Islamismo. Mahomed nasceu em 570 e faleceu em 632. pelos rabes chamado O Profeta.

Cadi - Juiz. Magistrado.

Talmud e Pentateuco so dois livros tradicionais para os judeus. O Talmud uma coleo de leis, tradies e costumes dividida em duas partes: o Michma e o Gemara.

Malamed - Professor.

Roiter-id - Judeu vermelho.

Gi - Apelido com que os judeus, em geral, designam um indivduo que no judeu.

Rivekel apelido carinhoso.

Torah - em sentido amplo lei, ensinamento. Em sentido mais restrito designa o Torah, o conjunto da lei, escrita e oral, isto , a Bblia, a Mischner e o Talmud. Em linguagem corrente pode designar apenas o Pentateuco que o Torah de Moiss.

Divrcio - interessante indagar como foi o problema do divrcio encarado pelos sbios israelitas que compuseram o Talmud. Vale a pena sublinhar, no famoso Livro da Lei, este pensamento admirvel: Quando uma esposa repudiada pelo marido, um estremecimento de horror agita a terra inteira.

Caravanar - Refgio construdo pelo governo e por pessoas piedosas beira do caminho, para servir de abrigo aos peregrinos. Espcies de rancho de grandes dimenses em que se acolhiam as caravanas.

Jamal - Uma das muitas denominaes que os rabes do ao camelo.

Ham - Casa de banhos.

Mufti Espcie de prefeito e juiz. O mufti era encarregado do governo de uma cidade.