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Gramado – RS De 30 de setembro a 2 de outubro de 2014 MAGIA DIGITAL NA FLORESTA MÍSTICA: por dentro do simbolismo das Aparelhagens do estado do Pará SOARES, João Roberto dos Santos Universidade Federal do Maranhão [email protected] Resumo: Uma revolução. Um movimento cultural. Uma nova vertente capitalista. Uma implosão da arte. Subversão Tecnológica. São muitas as definições dadas à cultura Tecnobrega no estado do Pará e às aparelhagens, artefatos máximos do culto à tecnologia ao som do ritmo marginalizado. Dentro dos entendimentos sobre o pensamento contemporâneo: hipermoderno de Gilles Lipovetsky e Charles Sebastien (2004) e do pós-moderno de Néstor Canclini (2013), somados às ideias de Jean Baudrillard (2012), este estudo se debruça sobre a inexplorada construção popular de artefatos de alta tecnologia e especificidade projetual que são as Aparelhagens. Aqui, são analisadas sob a ótica do Design dito acadêmico, mas com amplitude, permitindo um debate com o objetivo de verificar não somente a aparelhagem como produto do design vernacular, mas também uma discussão sobre a própria atividade profissional e seus impactos no contexto sociocultural em que está imerso. Palavras-chave: aparelhagens, cultura, design vernacular. Abstract: A revolution. A cultural movement. A new capitalist aspect. An implosion of the art. Technological Subversion. Are many definitions given to culture Tecnobrega in the state of Pará, Brazil, and the aparelhagens, artifacts of the cult of technology at the sound of the rhythm sidelined. Within the understandings about the contemporary thought: hypermodern of Gilles Lipovetsky and Charles Sebastien (2004) and of the postmodern of Néstor Canclini (2013), added to the ideas of Jean Baudrillard (2012), this paper looks at the unexplored high popular artifacts construction technology and design. Here are analyzed from the perspective of Design said, but with academic range, allowing a debate in order to verify not only the aparelhagem as a product of vernacular design, but also a discussion on the own professional activity and their impact on the socio-cultural context in which it is immersed. Key words: aparelhagem, culture, popular design.

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Gramado – RS

De 30 de setembro a 2 de outubro de 2014

MAGIA DIGITAL NA FLORESTA MÍSTICA: por dentro do simbolismo das Aparelhagens do estado do Pará

SOARES, João Roberto dos Santos Universidade Federal do Maranhão

[email protected]

Resumo: Uma revolução. Um movimento cultural. Uma nova vertente capitalista. Uma implosão da arte. Subversão Tecnológica. São muitas as definições dadas à cultura Tecnobrega no estado do Pará e às aparelhagens, artefatos máximos do culto à tecnologia ao som do ritmo marginalizado. Dentro dos entendimentos sobre o pensamento contemporâneo: hipermoderno de Gilles Lipovetsky e Charles Sebastien (2004) e do pós-moderno de Néstor Canclini (2013), somados às ideias de Jean Baudrillard (2012), este estudo se debruça sobre a inexplorada construção popular de artefatos de alta tecnologia e especificidade projetual que são as Aparelhagens. Aqui, são analisadas sob a ótica do Design dito acadêmico, mas com amplitude, permitindo um debate com o objetivo de verificar não somente a aparelhagem como produto do design vernacular, mas também uma discussão sobre a própria atividade profissional e seus impactos no contexto sociocultural em que está imerso.

Palavras-chave: aparelhagens, cultura, design vernacular.

Abstract: A revolution. A cultural movement. A new capitalist aspect. An implosion of the art. Technological Subversion. Are many definitions given to culture Tecnobrega in the state of Pará, Brazil, and the aparelhagens, artifacts of the cult of technology at the sound of the rhythm sidelined. Within the understandings about the contemporary thought: hypermodern of Gilles Lipovetsky and Charles Sebastien (2004) and of the postmodern of Néstor Canclini (2013), added to the ideas of Jean Baudrillard (2012), this paper looks at the unexplored high popular artifacts construction technology and design. Here are analyzed from the perspective of Design said, but with academic range, allowing a debate in order to verify not only the aparelhagem as a product of vernacular design, but also a discussion on the own professional activity and their impact on the socio-cultural context in which it is immersed. Key words: aparelhagem, culture, popular design.

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1. INTRODUÇÃO

Para entendermos o artefato aparelhagem, é preciso primeiramente esclarecer o contexto de origem, fazendo uma pequena introdução do movimento Tecnobrega. A importância maior desse contexto está no novo modelo de negócios adotado para movimentar um mercado que passa a ser não somente musical, mas fundamentalmente cultural (LEMOS & CASTRO, 2008).

O tecnobrega tem se estabelecido recentemente como uma nova forma de cultura e fala popular (GABBAY, 2007) devido ao seu modo de produção independente e sua estrutura de mercado diferenciada (LEMOS & CASTRO, 2008). Estas características surgem em consequência de um movimento historicamente marginalizado na cena musical, o que o levou a criar um mercado paralelo ao modelo da indústria fonográfica formal, baseado na flexibilização dos direitos de propriedade autoral, divulgação e fomento.

Para Soares (2012): “o Tecnobrega é uma expressão cultural amazônica contemporânea que ratifica a dialética entre a estética e o consumo” e consiste principalmente em um movimento de resistência, onde os artefatos eletrônicos tornaram-se símbolos de sua produção cultural, e ao mesmo tempo, de legitimação do movimento no panorama oficial da música.

Nas décadas de 70 e 80 do século 20, o movimento brega original recebeu grande atenção das gravadoras, gerando um mercado voltado para a música popular. Porém esse movimento perdeu espaço a partir da década de 90, com o fortalecimento de novos ritmos populares como a axé music e o sertanejo, perdendo também os investimentos e a estrutura de produção recebida anteriormente (COSTA, 2004).

Após ficar à margem da indústria fonográfica por um longo período, criaram-se várias vertentes do movimento brega de forma independente de gravadoras, entre elas o tecnobrega. O tecnobrega surge no início dos anos 2000, mais especificamente em julho de 2002, da fusão da música eletrônica com o brega tradicional (LEMOS & CASTRO, 2008), caracterizado por agregar pulso veloz, recursos da technomusic e manipulação de ritmos/timbres utilizando softwares baixados da internet (AMARAL, 2006). Na definição de Hermano Vianna (2003), o tecnobrega é o “Kraftwerk de palafita”.

Tem como peculiaridade a negação da cadeia produtiva “oficial” da indústria cultural, optando por seguir em paralelo numa estrutura própria que se auto alimenta buscando no universo pop os elementos que cristalizarão sua existência e manutenção. Para se legitimar enquanto gênero musical, o tecnobrega torna-se ambivalente: por um lado reproduz fórmulas já testadas pela indústria da música que tornam o produto do tecnobrega consumível numa economia descolada da economia oficial (VIANNA, 2003); bem como, investe na inovação estilística e nas recentes redes de produção e distribuição culturais próprias, amparadas pelos avanços tecnológicos e pela livre circulação de mercadorias.

Não é possível pensar este movimento sem considerar o fluxo das mercadorias culturais globalizadas, a velocidade da apropriação de produtos e bens simbólicos, e os processos de hibridização e circularidade que marcam os artefatos culturais

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hipermodernos (BAUDRILLARD, 2012; CANCLINI, 2013; LIPOVETSKY & SEBASTIEN, 2004).

Dentro do contexto engendrado por esse movimento, o grande agente catalisador dos circuitos de fruição do tecnobrega são as festas de aparelhagem. Elas acionam uma organicidade entre sujeito, espaço e música que, em alguma medida, também pode ser observado sob a ótica da ritualização de comportamentos e crenças que traduz a experiência da cultura rave (SÁ, 2003).

O design naturalmente especializado1 e específico das aparelhagens demonstra uma construção fundamentada no conhecimento popular e empírico, onde o impacto das novas tecnologias incorporadas ao espetáculo multimídia provoca uma mudança significativa na relação com o espectador, exigindo uma constante renovação formal e conceitual.

Esse espetáculo cultural popular e de massa, a partir das semioses estabelecidas naquele contexto, conclama seus participantes para unirem-se em torno da aparelhagem, e com isso declara simbolicamente que a tecnologia é a sua arma de resistência contra a marginalização: seja ela social, econômica, cultural ou (caracterizando uma subversão) tecnológica.

Essas relações podem também estar ligadas a aspectos do design e a seus reflexos emocionais durante a performance da aparelhagem. Pretende-se aqui, explorar as relações construídas entre o espectador/usuário e o artefato tecnológico multimídia na contemporaneidade, tomando como exemplo as aparelhagens do estado do Pará. Serão utilizados os saberes do design vinculados à emoção e à significação, como a semiótica. Bem como aqueles que lidam diretamente com a metodologia e o projeto, assim como as teorias da Antropologia, o entendimento das Ciências Sociais e mesmo das Artes, demonstrando a existência de um possível novo campo de pesquisa e atuação profissional que relaciona o artefato projetado com seus desdobramentos sociais. E ainda, esclarecendo também, os muito particulares processos construtivos destes artefatos, localizando-os no universo cultural do tecnobrega e aproximando-os dos conhecimentos em Design, com a finalidade de absorver novos entendimentos sobre o impacto do próprio design sobre as relações socioculturais.

2. O PENSAMENTO HIPERMODERNO E SEUS REFLEXOS NO TECNOBREGA

Com a hipermodernidade (LIPOVETSKY & SEBASTIEN, 2004) surge uma cultura imagética impulsionada pela reprodutibilidade técnica (BENJAMIN, 2012) que altera a paisagem urbana, o cotidiano e o sensorium dos homens metropolitanos. Uma série de consequências resulta da característica industrial. A criação é submetida à técnica e à burocracia, “predominando a organização racional do produto sobre a invenção” (MORIN, 2011, p.25). A partir de então o imaginário passa a ser “mobiliado” pelas

1 Para fabricar um artefato que execute uma função tão específica, é preciso igualmente desenvolver um projeto específico. Do ponto de vista do design, é possível fazer uma analogia do processo de projeto das aparelhagens com o projeto de um foguete, conforme Boufleur (2006:22): “Nem artesanal, nem industrial seria o termo precisamente adequado para definir a produção de um artefato, como por exemplo, um foguete espacial – o qual não é produzido em série, mas onde se empregam os mais elevados conhecimentos [...] e conceitos de tecnologia”.

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imagens e pelos produtos simbólicos derivados da cultura imagética produzida em escala industrial.

Esta produção de estéticas e de significados acontece dentro de constantes conflitos que representam um jogo de limites e pressões; são continuidades e rupturas de um processo histórico marcado pela disputa hegemônica: situações conflituosas do dia-a-dia, que podem tanto trazer continuidades de tradições que ganham novo sentido no presente (como é o caso do brega por si só) ou, no limite, desaguar em rupturas introduzidas pela emergência de novas forças e redes de significações sociais, como é o caso do tecnobrega. Essas lutas hegemônicas, portanto, trazem novas formas e conteúdos aos produtos culturais, inclusive ao próprio tecnobrega e ao design.

Esse processo onde as uniões culturais provocam o surgimento de objetos que já não se atrelam diretamente a nenhuma das culturas é nomeado hibridização (CANCLINI, 2013). Os objetos híbridos surgem para atender necessidades específicas de um indivíduo, de um grupo ou comunidade, e por isso também funciona como elemento de socialização, fato que é fundamental para a existência da aparelhagem.

Sob a ótica pós-moderna2 ou hipermoderna, o tecnobrega aproxima-se do kitsch, o que faz com que seu principal artefato, a aparelhagem, também dele esteja próxima. O kitsch3 é uma provocação hipermoderna, uma vez que reúne de forma aleatória os temas da arte clássica, modernista e/ou popular, deixando para trás a ideia de coesão e continuidade, para depois reapresentá-los (os temas) “das maneiras mais obtusas, figurativas e sentimentais, para grande deleite de seus consumidores sem instrução, e para grande pesar dos críticos” (OLALQUIAGA, 1998: 44). Jean Baudrillard generaliza o âmbito do kitsch quando diz que:

O Kitsch pode encontrar-se em todo o lado, tanto no pormenor de determinado objeto como no plano de um grande conjunto, tanto na flor artificial como na fotonovela. Será melhor defini-lo como ‘pseudo-objeto’, isto é, como simulação, cópia, objeto factício e estereótipo; como pobreza de significação real e sobreabundância de signos, de referências alegóricas, de conotações discordantes, como exaltação do pormenor e saturação através das minúcias. (BAUDRILLARD, 2009:115)

No kitsch, o tecnobrega encontraria a redenção para sua estética de “mau gosto” – é a espontaneidade do prazer que liberta o kitsch da ideia do belo ou do feio, fornecendo ao sujeito o acesso à extravagância, entregando-se ao desfrute hedonístico de sua fruição. O kitsch habita o universo cultural contemporâneo e introduz novas formas de produção e percepção estéticas, desestabilizando a hegemonia cultural tradicional.

Nesse sentido, a estética kitsch do tecnobrega, ao funcionar como cimento de alianças provisórias baseadas no desfrute do corpo e no estímulo sensorial, é capaz de escapar das homologias estruturais e celebrar o prazer de sua estética selvagem (MOLES, 2001).

2 Nestor Canclini expõe claramente a sua concepção do termo em Culturas Híbridas: “concebemos a pós-modernidade não como uma etapa ou tendência que substituiria o mundo moderno, mas como uma maneira de problematizar os vínculos equívocos que ele armou com as tradições que quis excluir ou superar para constituir-se” (CANCLINI, 2013:28). 3 Para entender melhor o kitsch, suas diferentes classificações e sua relação com a hipermodernidade, ver: GILLO, Dorfles. El Kitsch. Barcelona: Editora Lúmen, 1973. MOLES, Abraham. Kitsch: a arte da felicidade. Coleção Debates. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.

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Expressões culturais periféricas como o tecnobrega podem ser apreendidas como kitsch pelo que carregam de insubordinação semiótica, pela celebração que fazem aos valores da sociedade de consumo e encenação do status quo, e principalmente, pelo prazer do seu desfrute estético.

Por outro lado, a formulação empírica de um processo produtivo específico, demonstra a existência de conhecimentos compartilhados de forma tão aberta e livre quanto a própria estrutura do movimento tecnobrega. O que nos faz perceber o quanto este movimento depende do contexto hipermoderno.

2.1 A Aparelhagem como artefato simbólico

Diz-se Indústria do Tecnobrega no sentido de sua alta capacidade de produção seriada e fornecimento rápido de produtos distintos que vão além da música propriamente. Porém, esses elementos estão inseridos em uma cultura que é resultado da mistura entre o erudito e o popular, a periferia e o centro, o local e o global. Essa interação entre eixos resulta em uma forma de hibridismo cultural que para Burke deve ser visto como “resultado de encontros múltiplos que adicionam novos elementos à mistura e reforçam os antigos elementos” (BURKE, 2003, p. 31). A aparelhagem de som constitui o elemento catalisador da indústria do tecnobrega e segundo Costa:

A definição mais simples de aparelhagem é a que considera a sua função: um equipamento de som autônomo que faz a sonorização de diversas festas. A unidade de controle é o ponto central da aparelhagem, hoje produzida no feitio de uma “nave espacial”, um “disco voador” que simula decolagem no ponto alto das festas. Em geral, o equipamento é composto por uma mesa de som, equalizadores, televisões, computadores (para a programação das músicas), letreiros eletrônicos e/ou letreiros fixos, iluminação de discoteca para a área próxima à unidade e iluminação interna de diversos pontos do equipamento em várias cores. Num sentido amplo, as aparelhagens são empresas familiares que envolvem diversos funcionários específicos e equipamentos subsidiários. (COSTA, 2006, p. 95)

As aparelhagens funcionam também como signos, adquirindo não somente funções sociais, mas também estéticas, simbólicas, emotivas e comunicativas a partir de sua estrutura. Forma-se assim, uma cultura material onde esses artefatos se encaixam em sistemas simbólicos e ideológicos de um grupo ou comunidade que estabelece regras de trabalho e códigos específicos para cada situação. Conforme Lima resume:

Um complexo de práticas e relações sócio significativas, construídas, desenvolvidas e reproduzidas cotidianamente por mecanismos e recursos estético-performáticos que se direcionam e se condensam numa ordem festiva específica, a partir da relação que se estabelece entre público e aparelhagens. Como motor e consequência desta relação e experiência verdadeiramente estética, têm-se a dimensão pública que lhe é inerente. (LIMA, 2006, p.78)

A partir do século 20, cultura e consumo estabeleceram uma ligação sem precedentes na história, haja vista que o consumo tornou-se a maneira pela qual a sociedade passou a assimilar sua própria cultura. Mais do que a mensagem de um sistema, transformou-se no próprio sistema, de modo que os significados assumidos

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pelos produtos não se revelam isoladamente, mas na relação de uns com os outros (BAUDRILLARD, 2012). Em nenhum outro período os significados dados aos produtos se multiplicaram com tanta rapidez e sistematização, ultrapassando as características funcionais, como naquele momento.

Já no início do século 21, o sistema de signos e símbolos vinculado aos objetos nunca foi tão forte e representativo dentro da ordem social e na coletividade (CANCLINI, 2013). Assim, traçando um paralelo com a estética do tecnobrega, é possível verificar que ela mantem estreita relação com os fenômenos hipermodernos de consumo e produção culturais a partir, principalmente, de seu caráter híbrido.

Os artefatos híbridos, como a aparelhagem, colaboram para a delimitação de um mundo que condiz com as expectativas e expressões éticas e estéticas da sociedade, que são processadas coletivamente, onde o indivíduo age como catalisador e reprodutor do fenômeno. Nesse contexto, as aparelhagens absorvem os elementos tecnológicos necessários ao seu funcionamento dentro de uma lógica que associa o kitsch, o mítico e o conceitual para originar uma estrutura física capaz de dar significado e função para o amontoado multimídia, que com a ação do DJ, ganha seu caráter ritualístico. Assim afirmam Lemos e Castro:

O “culto à tecnologia” é a forma mais evidente e material de inovação. A sacralização da imagem das aparelhagens e dos DJs é reforçada por eles mesmos, nas apresentações e nos rituais preparados para o grande show tecnológico que acontece nas festas. [...] A impressão que se tem numa festa em Belém é que esse mercado nunca existiria, não fosse essa adoração pela tecnologia e as grandes estruturas das aparelhagens (LEMOS & CASTRO, 2008, p.54)

Esses apontamentos constituem o cerne da cultura hipermoderna, onde os limites são fluídos e ao mesmo tempo integrados. Esta aparente necessidade de hidridização contemporânea torna os limites culturais vulneráveis à ideia dos seus próprios limites e abertos à possibilidade de interpenetração e combinação com outros limites (CANCLINI, 2013).

Tal situação reflete decisivamente sobre o modus operandi do Tecnobrega, induzindo o surgimento de uma indústria alternativa de produtos culturais consumíveis globalmente, mas produzidos com elementos locais. Encaixando-se assim, ao que aponta Ernst Fischer, incluindo no conceito de mercadoria os produtos culturais:

O homem, na sociedade industrial, acha-se exposto a numerosos e diversos estímulos e sensações. Seu senso estético não é uma tabua rasa: foi afetado por toda a massa das mercadorias que, uma vez produzidas, inundaram a sua vida desde a mais terna infância (FISCHER, 1987, p. 237).

E indo além: ao colocar a tecnologia em um altar ao mesmo tempo em que se obriga quase que por força de lei a inovar e a jamais incorrer no erro de se tornar obsoleto; bem como supervaloriza a máquina, o digital e o etéreo mundo do simbólico, o movimento Tecnobrega acaba nos remetendo por fim, ao questionamento de Baitello:

Diante da expansão dos limites do campo de conhecimento, diante de sua crescente complexidade, diante das tendências mágico-míticas regressivas de endeusamento da tecnologia pela tecnologia, diante da desistoricização da vida embutida na crença da obsolescência programada para as máquinas

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e para os seres vivos, que caminhos e que desafios se colocam para as investigações em ciências da informação, da comunicação e da cultura?

(BAITELLO, 2005, p. 78).

3 DOS BALCÕES ANALÓGICOS AOS CASTELOS DIGITAIS

As festas de aparelhagem são, genericamente, uma modalidade de evento onde a aparelhagem é a atração, ao mesmo tempo em que é a própria estrutura. Em sua tese de doutorado intitulada Festa na Cidade: o circuito bregueiro de Belém (2006), Antônio Maurício Dias da Costa discutiu a presença de um modelo de lazer que desde o início do século 20 vem se consolidando em Belém, a partir da estruturação de um circuito festivo no qual as aparelhagens exercem papel fundamental na sua manutenção. Segundo a Associação das Aparelhagens do Pará, existem aproximadamente duas mil aparelhagens no Estado, que se diferenciam pelo mote das festas a que se propõem, pelo público que atraem e por suas dimensões, configurações e conceitos diversos, ou seja, seu design.

O design, portanto, é um recurso fundamental no sucesso das aparelhagens, ainda que não reconhecido propriamente como tal. Os equipamentos e demais recursos constituintes de uma superaparelhagem4 (Figura 1) são como boates itinerantes, com equipes técnicas, caminhões-baú, estúdio de áudio e vídeo, mesas de som, armações metálicas, palco com suporte hidráulico, sistemas de iluminação, monitores em tela plana, câmeras de vídeo, máquinas de fumaça (LIMA, 2008); entre outros materiais e recursos dependentes diretamente do conceito. Por outro lado, as aparelhagens menores incluem, além da presença necessária do DJ, apenas um par de amplificadores e alguns aparelhos como play deck ou toca-CD – estão geralmente presentes em festividades comunitárias, confraternizações profissionais, bares, bingos dançantes, aniversários e demais eventos de menor proporção.

Figura 1 – Clímax da Aparelhagem SuperPop

FONTE: Agência Olhares, 2012. Se fizermos uma análise evolutiva das últimas quatro décadas das

aparelhagens, verificaremos que uma série de elementos populares se amalgamou na mesma estrutura, originando o espetáculo tal qual é conhecido hoje: as “pistas de dança” das discotecas americanas e seus efeitos estroboscópios; a disco music; os DJ’s

4 Lemos e Castro (2008) classificaram as aparelhagens em três grandes grupos: as superaparelhagens, as de médio porte, e as de pequeno porte. Para chegar a essa classificação, analisaram uma série de fatores como a renda disponível para investimentos, número de funcionários, número de eventos mensais, infraestrutura logística, a existência de fã-clubes, e por fim, a própria estrutura formal disponibilizada.

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com suas performances sobre as pickup’s; a house music; as festas rave com suas diversas vertentes eletrônicas; o funk carioca e ainda, as ideias modernas de performance artística surgidas no século 20 tendo a celebridade como a nova realeza, a dança ritualística presente em centenas de culturas em todo o mundo, o grito de guerra e tudo que porventura já esteve (ou esteja) na “crista da onda” dos mais diferentes mercados culturais (LIMA, 2008).

Temos então um quadro composto por aspectos diretamente interligados: de início, a dimensão estrutural do evento festivo, marcada pela ordem da diferenciação suntuosa, sobretudo estética, plástica, dramática e performática (LIMA, 2008). Bem como, a autopromoção em circularidade, que favorece a manutenção do evento em longo prazo, e em curto prazo cria um clímax festivo. Por tudo isso, a ideia de “evolução” diz respeito tanto à sequente sofisticação e inovação tecnológica, sonora, estética e performática; quanto à utilização de diversas estratégias publicitárias pertinentes à projeção pública das festas, dos DJ’s e das aparelhagens.

3.1 O Sonoro transforma-se em Aparelhagem

Todas as aparelhagens desenvolvem estratégias e utilizam mecanismos que trazem constantes referências “tecnológicas”, “modernas” e “futuristas”; responsáveis pelo que haveria de “surpreendente” e “espetacular” nas festas. Fazem uso dessas estratégias e mecanismos para se articular e se movimentar frente ao público e à concorrência (LIMA, 2008). Essa atual obrigação inovadora, surge como um impulso inventivo cerca de cinco décadas antes, no surgimento dos sonoros.

Em Belém, os sonoros surgiram a partir da década de 40 e eram montados de forma artesanal sendo utilizados na sonorização de festas dançantes. Inicialmente, eram compostos de amplificadores de metal à válvula, toca-discos de 78 rotações, uma pequena caixa de som e projetor sonoro, conhecido como boca de ferro5. Essa protoaparelhagem era construída por pessoas com algum conhecimento em eletrônica e com algum grau ímpar de sensibilidade sonora, dado o empirismo dos métodos de tentativa e erro que caracterizavam os tímidos, mas altamente significativos, avanços estruturais.

Neste momento, o funcionamento do sonoro contava com dois atores fundamentais: o controlista e o locutor. O controlista era o profissional responsável pela execução coordenada dos controles de som, conforme sua sintonia e entrosamento com o locutor, e este último, em geral, seguia uma atuação herdada das rádios, interagindo com o público e com a própria programação das músicas.

O modelo adotado para viabilizar o sonoro como um empreendimento comercial foi herdado das rádios. A invenção dos rádios a válvula, na década de 1930, ajudou a baratear o custo da produção dos aparelhos receptores e contribuiu para ampliar o acesso do público ouvinte (COSTA, 2006; LIMA, 2008).

Nesse interim, a participação financeira dos patrocinadores na programação tornou o empreendimento um negócio rentável. Ao mesmo tempo, os grupos políticos

5 Boca de ferro: projetor sonoro que assemelha-se àqueles presentes nas antigas vitrolas (ALMEIDA; BARBOSA e CASTRO, 2012).

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da época passaram a tomar o rádio como um instrumento de projeção junto à sociedade. Assim, o sonoro absorve o mesmo mecanismo, mas em uma escala extremamente local.

A evolução dos sonoros ocorreu conforme sua própria fama acabava por propiciar um agendamento de eventos, com adequado pagamento, em eventos festivos em clubes. Associados aos sonoros, as bandas também já estavam presentes, realizando apresentações conjuntas que movimentavam a periferia da cidade.

Não há, ainda, uma classificação que delimite a fronteira distintiva entre o sonoro e a aparelhagem. Porém, existe uma característica que pode ser claramente observada e confirmada por dados e registros históricos: o sonoro pode ser associado diretamente ao sistema analógico de transmissão, reprodução e armazenamento do som. Ao passo que as aparelhagens construíram-se a partir do sistema digital, até mesmo pela mudança no paradigma da produção musical: do físico ao virtual.

Figura 2 – Aparelhagem Príncipe Negro, em ano desconhecido, mas ainda no sistema sonoro-

controlistas, tipicamente analógico. FONTE: Tecnobrega.blogspot.com, 2013.

Algumas iniciativas têm sido feitas para resgatar o traçado histórico dos sonoros até as aparelhagens nos dias atuais. Um deles é o projeto Sonoro Paraense6, que tem trabalhado para resgatar e preservar a história dos sonoros, desde seu surgimento, passando pelos tempos áureos, e por fim, chegando aos momentos pré-aparelhagens. O projeto é encabeçado pelo Doutor em Etnomusicologia Darien Lamen e por Manuel Junior Almeida. Além da proposta de criar um museu das aparelhagens, existe um documentário sendo produzido, que tem colhido depoimentos, feito entrevistas e recolhido materiais distintos como forma de preservar a história criativa dos sonoros.

3.2 O ritual digital na periferia do mundo

A exploração estético-performática de um conceito só parece possível quando o sonoro transforma-se em aparelhagem, porque sua fundamentação no sistema digital de áudio permitiu a fusão do controlista e do locutor em um só ator: o DJ. O DJ deixa de usar a estrutura como proteção, situando-se agora à frente da estrutura.

6 Sonoro Paraense: http://www.sonoroparaense.com/

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Intrinsecamente, há uma nova concepção do espetáculo onde o homem, na figura do DJ, domina a tecnologia e faz dela e com ela, o que quiser.

A aparelhagem Tupinambá, por exemplo, apresenta-se com vários arcos e flechas produzidos em fibra, que emitem luzes de néon. A cabine da aparelhagem Rubi e a da Brasilândia são criadas com designs muito característicos. A primeira tem o formato de uma espaçonave, e se relaciona ao conceito de Nave do Som, que é o pseudônimo da aparelhagem Rubi. E a última assemelha-se a um calhambeque amarelo, invocando seu sobrenome: Calhambeque da Saudade, tendo sua estrutura armada cenograficamente no sentido de que tanto as suas feições quanto os recursos tecnológicos utilizados aludam ao “passado”. Todos estes elementos atuam junto a outros recursos estéticos e performáticos, como os gritos de guerra, as coreografias coletivas e as danças – tornando-se mecanismos de singularização das festas e aparelhagens, que acabam tendo um componente ritualístico.

A duplicidade, o ardil, o querer-viver se exprimem por meio de uma multiplicidade de rituais, de situações, de gestuais, de experiências que delimitam um espaço de liberdade. Por notar demais a vida alienada, por querer demais uma existência perfeita ou autêntica, costuma-se esquecer, de maneira obstinada, que a quotidianidade se fundamenta em uma série de liberdades intersticiais e relativas. (MAFFESOLI, 2006, p. 54-55).

O ritual da aparelhagem se inicia com um design representativo do conceito e se desenvolve por articulações performáticas alusivas à composição estético-temática de cada aparelhagem. Durante a festa, acionam-se uma série de vinhetas e efeitos sonoros, luzes estroboscópicas, lasers, gelo-seco para produzir fumaça e telões com transmissão ao vivo da festa, tudo sob uma orientação de suntuosidade e solenidade na qual o DJ performatiza o seu próprio personagem, sempre ancorado na participação do público. Este, aglomera-se ainda mais à frente da cabine de controle, realizando, as coreografias indicadas pelo DJ (LIMA, 2008).

Figura 3 – Aparelhagem Tupinambá.

FONTE: aparelhagemsonora.blogspot.com, 2014.

Nesse sentido, o público é o componente que finaliza um ciclo através de uma esteticidade constituída como “vetor de agregação” (LIMA, 2008). Assim, a estética é um meio de experimentar, de sentir em comum, e é, também, um meio de reconhecer-se conforme finaliza Maffesoli:

A ordem estética evidencia então a significância das relações tácteis e do jogo das aparências, das formas e das imagens que só é possível porque

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inscreve-se “em uma cena ampla onde cada um é, ao mesmo tempo, ator e expectador”. A conduta interacional estabelecida pela dramaturgia e teatralidade assume posição privilegiada na trama social. A teatralidade instaura e reafirma a comunidade (MAFFESOLI, 2006, p.134).

CONCLUSÃO

Analisando a cultura de massa, criada pelo sistema industrial capitalista, Morin diagnosticou o prejuízo da cultura culta e da popular diante da cultura massiva. Além disso, ocorreria a homogeneização dos costumes, uma vez que a indústria cultural procurava atingir o maior público possível. A massa não responderia. Baudrillard, para falar do consumo na era moderna, afirma que desde sempre o consumo de bens é fruto de uma diferenciação, onde o valor de troca supera a simples necessidade (o valor de uso) fornecendo a possibilidade de distinção social e de uma ideologia a ela ligada. Na década de 90, Néstor García Canclini, analisando também o presente, disse que a cultura de massas não acabou com as culturas culta e popular, mas se integrou a elas criando culturas híbridas. Acreditando no consumidor dos produtos culturais, García Canclini sugere que o consumo seja ligado à cidadania para aplicar políticas culturais que valorizem a multiplicidade cultural, cada vez mais nítida.

Nesse contexto, a fragmentação da sociedade e da identidade contribuiu para a formação das culturas híbridas, formas novas de cultura que misturam elementos das culturas popular, culta e massiva. As aparelhagens, como reflexos da contemporaneidade, são artefatos culturais híbridos exploradores estético-performáticos do universo popular. Popular no sentido hipermoderno do termo: massificado pelas mídias, difundido mundialmente, conhecido e reconhecido no espectro social predominantemente urbano. A discussão aprofunda-se quando se identifica que fenômenos semelhantes acontecem em outros locais do planeta.

Diante deste cenário, eleva-se a responsabilidade do design sobre o futuro das relações humanas alicerçadas sobre as trocas simbólicas e cobertas pelas semioses e hermenêuticas particulares que surgem a todo o momento e de todos os lugares, em um cenário cada vez mais integrado, global e híbrido. Assim, aprofundar os estudos sobre a relação simbólica dos objetos e artefatos com seus usos e com grupos sociais, pode trazer um entendimento mais preciso para o momento em que a humanidade se encontra. Contribuindo para a construção de novas relações mediadas pelos designers, onde o real atendimento das necessidades humanas seja pensado sob uma ótica responsável e comprometida com o equilíbrio do inevitável consumo, das trocas e das relações humanas.

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