mÃes doadoras o que leva uma mãe a entregar seu filho para
TRANSCRIPT
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO - PRG
CURSO DE PSICOLOGIA / HABILITAÇÃO PSICÓLOGO TRABALHO FINAL DE CURSO
MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para adoção?
GABRIELA LOPES COSTA
ORIENTADORA
Drª. ALESSANDRA DA ROCHA ARRAIS
BANCA EXAMINADORA Drª. ALESSANDRA DA ROCHA ARRAIS – tel: 99877346 / 32446947
MSC. IVÂNIA GHESTI – tel:99771177
Brasília, novembro / 2006.
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO - PRG
CURSO DE PSICOLOGIA / HABILITAÇÃO PSICÓLOGO TRABALHO FINAL DE CURSO
MÃES DOADORAS
O que leva uma mãe a entregar seu filho para adoção?
GABRIELA LOPES COSTA
ORIENTADORA
Drª. ALESSANDRA DA ROCHA ARRAIS
Brasília, novembro / 2006.
Trabalho apresentado ao Curso de Psicologia da Universidade Católica de Brasília como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Psicólogo.
PARECER REFERENTE AO TRABALHO: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para adoção?
Percebo, como professora e pesquisadora, a grande carência de estudos nesta linha que buscam acessar a subjetividade e o sentido para os fenômenos humanos, sobretudo no que tange às condições adversas nas quais a adoção ocorre no nosso país, e ao sofrimento das mães doadoras que passam por esta situação. Muito interessante foi observar a apropriada aplicação dos pressupostos da epistemologia qualitativa, tão complexa e tão desafiadora em sua tarefa interpretativista por parte do pesquisador, que a aluna de graduação soube conduzir de forma primorosa com bastante atenção aos indicadores, e consequentemente com uma adequada construção dos núcleos de sentido, sobre um tema socialmente rejeitado como a doação de um filho. Abordou de forma clara e didática com profundidade interpretativa, raramente encontrada entre trabalhos de conclusão de cursos de graduação.
Outro ponto que mereceu destaque, em minha avaliação foi a análise da vivência das mães no que se refere à construção social que ainda permanece difundida a idealização do matrimônio e da maternidade na educação feminina, atrelando a felicidade e realização da mulher à execução do papel de mãe e esposa.
Avalio muito positivamente a exploração das partes que considero mais ricas: a
profundidade de campo, a diversidade metodológica utilizada e o compromisso ético com
as participantes da pesquisa. Destaco ainda a coragem da pesquisadora em dar voz às
mães/genitoras, colaborando inclusive para a elaboração de seu sofrimento e para a
relativização da imagem social que as mesmas recebem.
Com isso, acredito que o presente trabalho apresenta grande alcance de
reflexão e de promissora intervenção, inspirando psicólogos, sobretudo nas áreas da
psicologia da saúde e da psicologia jurídica, merecendo portanto concorrer ao Prêmio
Silvia Lane.
Profª Alessandra da Rocha Arrais
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA – UCB CURSO DE PSICOLOGIA DISCIPLINA: TFC APRECIADORA: PROF.ª DRA. ALESSANDRA DA ROCHA ARRAIS
RESUMO COSTA, Gabriela Lopes. Mães Doadoras: o que leva uma mãe a entregar seu filho para adoção? Trabalho de Final de Curso (Graduação em Psicologia). Universidade Católica de Brasília: Brasília, 2006. Esta pesquisa é o resultado de um estudo qualitativo, baseado na Epistemologia Qualitativa (GONZÁLEZ REY, 2005), cujo principal objetivo foi compreender o sentido subjetivo da doação para as mães que já entregaram um filho para adoção, assim como conhecer a concepção da mãe doadora para os profissionais que trabalham com essas mulheres. A pesquisa de campo definiu como sujeitos duas mães-doadoras e quatro profissionais da Seção de Adoção da VIJ/DF - Vara da Infância e da Juventude do Distrito Federal. Foram utilizados como recursos instrumentais para a construção das informações com as mães doadoras: entrevista aberta direcionada por sua história de vida e as questões relacionadas à gestação e à entrega do filho para adoção, o instrumento de completamento de frases e oito pranchas do TAT – Teste de Apercepção Temática utilizadas como disparadores temáticos. Os indicadores elaborados por meio da análise construtivo-interpretativa levaram a construção de núcleos de sentido para essas mães acerca da doação: para a primeira mãe-participante - De abandono em abandono: “Eu não tive o apoio de ninguém”, Privação X Sobrevivência: “É difícil... a arte de sofrer” e Doação: Ato de abandono ou de amor?; e para a segunda mãe-participante - Doação X Aborto: “Eu prefiro... ter entregue à adoção do que ter abortado”, Minha mãe: meu porto (in)seguro e Ambivalência materna: “lamento... por ter feito a entrega da minha filha”. Com os profissionais foram realizadas entrevistas individuais semi-estruturadas direcionadas pelo trabalho desenvolvido, na VIJ/DF, com as mães que procuram o serviço com a intenção de realizar a entrega de seu filho para adoção, com o intuito de conhecer a percepção desses profissionais a respeito das mães doadoras. Tais profissionais reconhecem as limitações do trabalho realizado com essas mulheres, não realizando um acompanhamento contínuo com elas nem priorizando os motivos subjetivos da entrega. Ao realizarmos uma breve retrospectiva histórica, percebemos que o discurso acerca do fenômeno da maternidade se mantém recente no que diz respeito ao amor e a doação incondicional das mães aos seus filhos. Dessa forma, ser mãe não tem sido uma tarefa nada fácil, e muito menos recusar-se a sê-lo, por isso consideramos imprescindível abandonar a idéia de que a mãe que entrega seu filho em adoção o faz, por não amá-lo, ou que só pense em si mesma num ato egoísta e cruel. As construções feitas neste estudo nos levaram a perceber que a entrega pode sim caracterizar-se como um ato de amor e grande preocupação com o bem-estar e o futuro da criança, e que essas mulheres o fazem abrindo mão de uma representação social avassaladora: a maternidade. Renunciam ao sonho de criarem seus filhos por se reconhecerem sem condições, sejam internas ou externas, de fazê-lo. Palavras-chave: AMOR MATERNO, AMBIVALÊNCIA MATERNA, DOAÇÃO.
SUMÁRIO
I – APROXIMAÇÃO DO TEMA 3
II – INTRODUÇÃO 5
III – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 7
3.1 Maternidade: Representação Social 7
3.1.1 O Mito do Amor Perfeito 10
3.1.2 Da Perfeição à Ambivalência Materna 12
3.2 Representação do Abandono 15
3.3 Mães Doadoras: Mulheres ou Monstros? 18
3.3.1 O Luto da Mãe que Entrega o Filho em Adoção 20
3.3.2 A Doação pode ser um Ato de Amor? 21
3.3.3 Onde estão os Pais? 22
IV – OBJETIVOS 26
4.1 Geral 26
4.2 Específicos 26
V – MÉTODO 27
5.1 A Escolha metodológica: Epistemologia Qualitativa 27
5.2 Os Participantes da Pesquisa 29
5.3 Recursos Instrumentais Utilizados 29
5.4 Procedimento de Construção das Informações 30
5.5 Procedimento de Análise das Informações 32
VI – APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS CASOS 34
6.1 Construções a partir das informações de Bianca 34
6.1.1 Núcleos de sentido subjetivo construídos para Bianca 38
6.2 Construções a partir das informações de Isis 44
6.2.1 Núcleos de sentido subjetivo construídos para Isis 49
6.3 Entrevistas com os Profissionais da Seção de Adoção da VIJ/DF 57
6.3.1 O Trabalho Existe?! 60
VII – CONSIDERAÇÕES FINAIS 63
VIII – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 65
I – APROXIMAÇÃO DO TEMA DE PESQUISA
Enfim o trabalho final de curso! Chega ao fim mais uma jornada acadêmica: a
graduação em Psicologia. Foi com a Psicologia que me identifiquei e me apaixonei, pois
sempre tive o interesse de conhecer melhor, compreender e ajudar o ser humano, seja em
situações de adversidade ou em conflitos interiores.
Dessa forma a escolha do tema, que concretiza a realização do meu sonho, não
poderia ser feita como normalmente são feitas as escolhas para os temas dos primeiros
trabalhos acadêmicos: por afinidades entre as pessoas do grupo, por sorteio, por exclusão
de temas, ou mesmo ficar com os que sobraram, deveria ser um tema com o qual eu me
identificasse, um estudo que eu tivesse prazer de realizá-lo. Então qual seria?
Muitos sãos os temas de interesse, mas foi pela maternidade que optei direcionar o
meu estudo. Foi quando me sensibilizei com várias reportagens que li e assisti nos jornais,
como a do dia 25/12/20031, a qual relatava que uma empregada doméstica havia encontrado
um bebê abandonado dentro de uma caixa de papelão, ou como a do bebê que fora jogado
na Lagoa da Pampulha em BH por sua mãe, 07/02/20062, e atualmente com a novela da
rede Globo “Páginas da Vida”, de Manuel Carlos, que retratava o desejo de uma avó em
doar a neta com Síndrome de Down, após a morte de sua filha, e por isso fora tratada como
um monstro (capítulos apresentados nos dias 11 e 12/08/06).
Essas reportagens, entre outras, as quais relatavam a quantidade de crianças que
eram abandonadas, jogadas nos rios, deixadas em orfanatos, me fizeram enfim encontrar
meu objetivo neste estudo: compreender a subjetividade de mulheres que, por diferentes
motivos, não ficaram com seus filhos, não conseguiram ser suas mães. Contudo seria
necessário delimitar meu tema, foi quando escolhi falar sobre mulheres que, ao não
conseguirem ser mães de seus filhos, os entregaram para adoção e não os abandonaram em
lagos ou latas de lixo, o que me faz questionar: entregar um filho em adoção significa
abandoná-lo? Tal tema também me instiga a pensar na subjetividade feminina, na
imposição social do papel da maternidade na vida de uma mulher, e, acima de tudo, o amor
incondicional por seus filhos.
1 Encontrada no site <http://jornalnacional.globo.com/Jornalismo/JN/0,,AA780709-3586,00.html>. 2 Encontrada no site <http://jornalnacional.globo.com/Jornalismo/JN/0,,AA1127537-3586,00.html>.
Muitos são os estudos que mostram o sofrimento pelo qual algumas mulheres
passam durante a gestação e os primeiros meses de seus filhos, por não apresentarem
características de uma boa mãe. Então, por que marginalizar sem buscar compreender
algumas mulheres que não conseguem ser mães, que diante de uma gestação decidiram, por
diversos motivos, sejam sociais, financeiros ou subjetivos, que a melhor solução seria a
doação de seus filhos?
Assim escolher esse tema foi aceitar o desafio de compreender algo que a sociedade
recrimina, e prestar uma escuta isenta de preconceitos para tentar alcançar as questões
subjetivas que perpassam a decisão da entrega.
II – INTRODUÇÃO
A incidência de mulheres que abandonam seus filhos tem aumentado
consideravelmente e gerado um grande incômodo na sociedade, tanto que este tema tornou-
se alvo de reportagens e inspiração para telenovelas. Tais mulheres são consideradas como
desumanas, loucas, e são completamente excluídas da sociedade, não lhes sendo
proporcionada nenhuma rede de apoio ou espaço para que sejam ouvidas, compreendidas
ou orientadas.
Sabemos que a gravidez representa um momento marcante para a mulher, pois se
trata de um período no qual ocorrem grandes transformações, não só organicamente, mas
também em seu psiquismo e papel sócio-familiar. Há também a possibilidade de tais
modificações gerarem um grande estresse psicológico, podendo acarretar alguns transtornos
que afetem a relação da mãe com seu bebê, como por exemplo, a depressão pós-parto
(ARRAIS, 2005).
Sendo a maternidade um período cheio de transformações, sua representação social
contribui fortemente para as implicações subjetivas dessa fase na vida da mulher, a qual
impõe a presença do amor e da aceitação incondicional dos filhos. Essa representação
idealizada da maternidade não concebe que as mães possuam sentimentos ambivalentes em
relação aos seus filhos, que não sintam amor por eles e que não os queiram.
As mulheres que não se vêem neste padrão de “boa mãe”, muitas vezes, se isolam
por seus sentimentos não serem socialmente aceitos e, assim, não podem verbalizar suas
angústias em relação à maternidade. Diante disso, algumas mulheres não encontram
alternativas para o que sentem em relação aos seus filhos senão se separar deles. Essa
separação é vista como algo inconcebível, pois como uma mãe, cujo amor é incondicional,
não faz de tudo para ficar e cuidar de seu filho, custe o que custar?
Com isso, percebemos a necessidade de ampliar os estudos referentes a essas mães
que entregaram seus filhos para adoção e as implicações subjetivas dessa entrega, para que
assim se possa subsidiar o tratamento e acompanhamento dessas mulheres, lhes oferecendo
um espaço de escuta isento de preconceitos e recriminações. Muitos estudos são realizados
a respeito da adoção, sob a perspectiva dos pais adotantes e dos filhos adotados, no entanto,
existe uma escassez de literatura e pesquisas referentes à mãe doadora e aos motivos da
doação. Essa carência de estudos seria resultado da discriminação em relação a essas
mulheres?
Ao invés de continuarmos com uma visão esteriotipada dessas mulheres podemos
buscar compreender as razões que as levaram a doar o filho, pois da mesma forma que a
adoção de uma criança é considerada como um ato de amor, a doação também não poderia
ser vista dessa forma? Vários podem ser os motivos que perpassam a decisão da entrega, e
se não os escutarmos corremos o risco de julgar essas mulheres, pois será que podemos
responsabilizá-las de forma isolada por essa decisão? Ou ela foi tomada pela influência
direta ou indireta, seja por opiniões ou atitudes, de outras pessoas?
Sendo assim, este estudo tem o intuito de buscar compreender a subjetividade
dessas mães que decidiram pela doação, a fim de que possam ser criadas estratégias de
apoio a essas mães, ou até mesmo intervenções preventivas do abandono.
III – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
3.1 Maternidade: Representação Sócio-cultural
Ao realizarmos uma breve retrospectiva histórica, percebemos que o discurso acerca
do fenômeno da maternidade se mantém o mesmo no que diz respeito à expectativa de
amor e doação incondicional das mães para com seus filhos. Badinter (1985) faz essa
retrospectiva, na qual ressaltamos a relação da valorização da criança e da
responsabilização da mãe com seus cuidados, pois foi dessa forma que a mulher começou a
ter importância na sociedade: assumindo o papel de cuidadora insubstituível de seus filhos.
“Sede boas mães, e sereis felizes e respeitadas. Tornai-vos indispensáveis na família, e
obtereis o direito de cidadania” (BADINTER, 1985, p.147).
De acordo com Badinter (1985), uma seqüência de contextos históricos levou o
Estado a interessar-se progressivamente pelas crianças, passando a concebê-las como seres
humanos que eram suas riquezas. Assim desencadearam-se algumas providências
necessárias para a saúde da criança, tais como: o surgimento da medicina preventiva, uma
política de conscientização em prol do aleitamento materno em detrimento das amas-de-
leite, dentre outras. Com isso a criança passou a carecer de cuidados inestimáveis, os quais
foram atribuídos a suas mães. Como pontua Costa (2004, p.38): “a criança passou a ser
insubstituível, como parte integrante das mães”.
Desse modo Badinter (1985) evidencia que, em decorrência do novo posto ocupado
pela criança na família, exigiu-se uma mudança de mentalidade das mães e da sua imagem
perante a sociedade, o que resultou na construção do mito do amor materno, estabelecendo-
se assim o pensamento no qual a maternidade seria o único caminho possível para o
desfecho da constituição da feminilidade.
Fica claro que tal pensamento surge de acordo com as necessidades vigentes, como
uma imposição às mulheres de amarem seus filhos, sendo boas mães para alcançarem a
felicidade. Isso nos faz questionar se o cumprimento (inconsciente) desse papel era
realizado a partir do amor incondicional e posteriormente para a aceitação social, ou seria o
contrário? Isso explicaria o fato da maternidade não suprir os desejos da mulher atual, por
existirem outras formas de realização e reconhecimento social? Seria, portanto, tão
imaculado esse amor? Então, onde está o por quê da exclusão e condenação daquelas
mulheres que conseguem assumir socialmente que não querem ficar com seus filhos?
Bacca (2005) apresenta os diversos discursos da maternidade, apontados por
diferentes autores, observados na Idade Média. Essa autora afirma que este período é
marcado pela força da Igreja, que rege as relações familiares, estabelecendo o casamento
como um sacramento, e que devido à conservação da riqueza da família, a mulher assume o
papel de passividade em relação ao marido, sendo que as relações sexuais são permitidas
apenas com o objetivo de procriar, não sendo permitido à mulher vivenciar o prazer.
A autora continua esclarecendo que durante o regime patriarcal, filhos, escravos e
esposas são considerados propriedade do poder exercido pelo homem da casa, devendo a
ele submissão e respeito. Assim, Badinter (1985 apud BACCA, 2005) afirma que a mulher
era quase considerada como filha do marido, não tendo autonomia alguma em relação à
organização familiar. Ao referir-se ao papel da mulher nesse período Bacca (2005) cita
Tubert (1996, p.60):
[...] sua fraqueza e sua sensibilidade a afastam de toda e qualquer vida pública e profissional, de toda instrução superior. A mulher é feita para permanecer no interior do lar, onde terá uma vida protegida, dependente, dominada. Presa no sexo, não terá outra perspectiva além do matrimônio e da maternidade (TUBERT, 1996, p.60 apud BACCA, 2005, p.14).
Bacca (2005) também se refere às publicações de alguns romances e obras, no final
do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, nas quais o ideal da maternidade
obrigatória, devota e dedicada, cultivado pela família burguesa, marcou presença, com o
intuito de promover o estigma da maternagem que até os dias atuais persegue a todas as
mulheres. Novamente percebemos a imposição desse ideal de amor propagado não pelas
próprias mulheres, detentoras dessa “virtude”, mas por uma imposição social.
A partir das considerações supracitadas, percebemos a definição da maternidade
como fato natural, na qual a mulher tendo a capacidade de ter filhos deve amá-los e educá-
los naturalmente. Aparece, portanto, mais uma forma de impor à mulher a maternidade: o
instinto materno. Assim, relacionar o conceito de mulher ao de fêmea, de acordo com
Beauvoir (1959 apud COSTA, 2004), nos leva a redirecionar o conceito da subjetivação do
feminino à maternidade, pois descreve que, segundo a biologia, o corpo feminino é
marcado pelo fenômeno da reprodução, visto que há uma grande discrepância entre os
papéis conferidos ao homem e a mulher, e conseqüentemente o envolvimento e a
responsabilização que cada um tem em relação à procriação.
Para essa autora é muito relevante a influência da configuração do corpo feminino
para esse processo de construção da identidade subjetiva da mulher, uma vez que seu corpo
é marcado pela reprodução, assim esse discurso biológico compromete a autonomia
feminina por igualar a mulher à fêmea.
Entretanto, Costa (2004) afirma que a associação entre os conceitos de mulher e de
mãe não é determinada pela natureza e sim pelas construções históricas. Arrais (2005)
corrobora esta idéia ao considerar fundamental uma diferenciação entre a capacidade
reprodutiva da mulher e a maternidade. Pois procriar é um potencial biológico natural,
contudo assumir a criança e tornar-se mãe é um fenômeno que se constitui social e
culturalmente, sendo impregnado pelos ideais e ideologias predominantes nos diversos
períodos históricos.
Constatamos que existem várias formas de se compreender a significação feminina,
contudo não podemos analisá-las separadamente para não reduzir ou simplificar a
complexidade e magnitude do que significa ser mulher, e do que significa ser mãe, sendo
importante estender a compreensão da maternidade como fenômeno cultural e não somente
natural ou biológico.
Recorremos a algumas palavras do antigo representante da Igreja Católica para
concluir sobre as conseqüências da representação social da maternidade, o qual afirma:
[...] somos herdeiros de uma história com imensos condicionalismos que, em todos os tempos e latitudes, tornaram difícil o caminho da mulher, ignorada na sua dignidade, deturpada nas suas prerrogativas, não raro marginalizada e, até mesmo, reduzida à escravidão. Isto a impediu de ser profundamente ela mesma, e empobreceu a humanidade inteira de autênticas riquezas espirituais (...) Relativamente a esta grande, imensa tradição feminina, a humanidade tem uma dívida incalculável. Quantas mulheres foram e continuam ainda a ser valorizadas mais pelo aspecto físico que pela competência, pela profissionalidade, pelas obras da inteligência, pela riqueza da sua sensibilidade e, em última análise, pela própria dignidade do seu ser! (PAPA JOÃO PAULO II, 19953).
3 Carta do Papa João Paulo II às mulheres. Vaticano, 29 de Junho de 1995, solenidade dos Apóstolos S. Pedro e S. Paulo.
Acrescentamos que ser mulher significa social, cultural e historicamente, ser mãe.
Assim sendo, algumas características intrínsecas a feminilidade se confundem com as
características necessárias a uma “boa mãe”, tais como dedicação, abnegação, docilidade
(ROCHA-COUTINHO, 1994 apud TRINDADE e ENUMO, 2002).
Além disso, para Trindade e Enumo (2002) historicamente a maternidade vem
sendo construída como o único caminho da mulher para se chegar a sua plenitude. Um
caminho de sofrimento voluntário e indispensável torna-se um prazer idealizado e
romantizado que ilumina a desesperança, os caminhos obscuros, as vidas sem brilho.
Knibierhlre e Fouquet (1980 apud MOTTA, 2005) corroboram essa idéia ao afirmarem que
toda cultura tradicional ainda transmite que a maternidade é a realização indispensável da
feminilidade, na qual somente se torna uma mulher de verdade após se ter um filho, ou seja,
ser mãe.
Assim não podemos desconsiderar a importância do social nesta representação da
maternidade. Como pontua Serrurier (1993 apud ARRAIS, 2005), o quadro sociológico é
responsável, em grande parte, pelas dificuldades que as mulheres experimentam para serem
boas mães, pois além de precisarem ser mães para realizarem-se enquanto mulheres,
precisam ser sempre boas e amar incondicionalmente.
3.1.1 O Mito do Amor Perfeito
Percebemos que o ideal de maternidade foi construído ao longo dos tempos,
marcado pela obrigatoriedade do amor natural e exclusivo (ARRAIS, 2005). Assim, a
formação deste ideal desconsiderou as limitações da mulher, levando-a ao ideal de
perfeição e, conseqüentemente, à construção do mito do amor perfeito: a boa mãe, o amor
materno puro e imaculado.
Segundo Badinter (1985) foi conferido à mãe um amor forçado, sendo estabelecido
um papel muito importante, para ela, em relação aos filhos. Esse papel, “missão terrível”,
não restringiu o trabalho da mãe aos cuidados físicos da criança até que essa estivesse fora
de perigo, mas ampliou essa responsabilidade incluindo a educação, uma parte importante
em seu desenvolvimento intelectual, competindo-lhe também, a formação de um bom
cristão, cidadão e homem, levando-o a ocupar o melhor lugar possível na sociedade.
Com isso, Badinter (1985) assinala que a mulher não poderia mais evitar esse papel
imposto socialmente, pois teria como pena a condenação moral, sendo assim explicado o
desprezo pelas mulheres que não tinham filhos e a condenação daquelas que não os
queriam, o que aliás se perpetua até nossos dias. Igualmente, presa em seu papel de mãe, a
mulher era excluída por não saber ou não realizar esse papel com a maior perfeição, pois
essa nobre tarefa era bastante exaltada.
A autora conclui que o instinto materno é realmente um mito, pois existe uma
grande variabilidade de comportamentos e sentimentos, por diversos fatores, sejam
culturais ou pessoais, relacionados a ambições ou frustrações. Afirma que esse sentimento
pode ou não existir; ser e desaparecer, mostrando-se frágil ou forte, assim como o desejo de
ficar ou não com seu filho. Ela ainda ressalta que tudo depende da história da mãe e das
construções históricas da maternidade, não existindo uma conduta universal e necessária à
mãe, pois para ela o amor materno não é intrínseco às mulheres, mas sim adicional.
Serrurier (1993) aponta que desde o princípio, em nossa literatura encontramos essa
grande devoção na qual sempre fomos embalados pelos louvores infinitos às mães. Essa
devoção se perpetuou e continua ainda hoje, confirmada pela sociedade devido a essa
herança na construção da representação social da maternidade.
Esse mito do amor materno, perfeito, nos leva a uma contradição: pois ao mesmo
tempo em que “mães” são consideradas perfeitas, puras e imaculadas, mulheres também
são investidas de defeitos e imperfeições. Serrurier (1993) cita algumas palavras de André
Halimi, as quais bem expressam tal contradição:
De onde vem esse milagre? O que acontece com a superficialidade, a futilidade, o orgulho, a dissimulação, todos esses defeitos que os homens atribuem generosamente às mulheres, e dos quais a mãe é singularmente preservada? Negados, apagados, eles não têm nenhuma influência sobre aquela que deu a vida, e que, dando a vida, torna-se sagrada (p.62).
Assim, são atribuídos todos esses defeitos e muitos outros, àquelas mulheres que
não conseguem entregar-se a essa profunda doação, principalmente àquelas que expressam
socialmente sua falta de condições de ficar com seus filhos, e assim os entregam para outras
“mães” cuidarem: àquelas que seriam as “mães suficientemente boas” segundo Winicott
(2000 apud ARRAIS, 2005).
De acordo com Serrurier (1993) a transmissão, de geração em geração, do mito da
mãe sagrada explica-se por se tornar eficaz para os costumes familiares e a distribuição de
papéis, pois “o mito é criativo, no sentido que permite o funcionamento do grupo apesar
das contradições entre seus membros”, e ainda “algo do pensamento mítico é essencial à
fundação de um sistema” (p.63).
Nesse sentido a autora trata do sistema familiar, no qual o mito da boa mãe é
indispensável para sua sobrevivência, sendo as “mães desnaturadas” aberrações da
natureza. Serrurier (1993) completa apontando o comportamento de homens e mulheres que
se escondem inconscientemente em beneficio de uma ilusão reconfortante, mesmo que
tenham sofrido com uma mãe medíocre: “toda mãe é uma mãe boa” (p.63).
E assim as mulheres são criadas sendo condicionadas, desde o nascimento, a cores,
brinquedos, comportamentos, pensamentos e atitudes femininas, todas ligadas à
maternidade. Aprendem que uma mulher deve ser capaz de enormes sacrifícios, e detentora
de impecáveis qualidades, dignas de uma “mãe” em tempo integral. Desse modo, esse ideal
de mãe perfeita, construída num rígido padrão com uma imagem romanceada da
maternidade, não tolera a discussão de sentimentos ambivalentes, tão presentes nas mães
(ARRAIS, 2005).
3.1.2 Da Perfeição à Ambivalência Materna
Vimos que o ideal de maternidade construído socialmente, define mãe como sendo
algo perfeito, intocável, uma pessoa a quem devemos nossas vidas e eterna gratidão.
Serrurier (1993, p.62) cita uma frase de Ernest Legouvé que define perfeitamente essa
representação social da maternidade: “a mãe é aqui embaixo o único Deus sem ateus”.
Dessa forma, não somente diante dessas construções sócio-culturais que
determinam como uma mãe deve ser e agir, mas diante das condições materiais, sociais e
psicológicas, muitas mulheres se sentem desamparadas e excluídas ao se depararem com
uma outra realidade: a ambivalência de sentimentos diante da maternidade. Essa cultura em
que vivemos, de acordo com Parker (1997), dificulta ao praticamente proibir a discussão e
análise que revelariam a influência oculta que a ambivalência materna pode dar ao
exercício da maternidade.
Laplanche e Pontalis (2001, p.17) definem ambivalência como sendo a “presença
simultânea, na relação com um mesmo objeto, de tendências, de atitudes e de sentimentos
opostos, fundamentalmente o amor e o ódio”. Para Parker (1997) essa ambivalência é uma
experiência compartilhada de diversas formas por várias mães, sendo insuportável para a
sociedade aceitar o fato de que uma mãe possa odiar e amar seus filhos ao mesmo tempo.
Essa autora traz a etimologia dessa palavra, significando assim a existência de dois valores
iguais, ou seja, a vivência de sentimentos contraditórios, manifestações simultaneamente
opostas numa mesma situação, como por exemplo, o desejo de uma mãe em ficar e não
ficar com seu filho.
Parker (1997) traz esse exemplo ao falar dos sentimentos de ambivalência existentes
em uma futura mãe, pois coexistem sentimentos de desejo e repulsa, o de querer e não
querer um filho. Entretanto, como afirma a autora, somente o sentimento positivo pode ser
confessado, a escolha consciente de ter o filho, pois a escolha inconsciente, de não
permanecer com ele, é inaceitável.
Todavia ao excluirmos essas mulheres que apresentam e confessam tal
ambivalência, estamos afirmando que sentimentos ambivalentes não existem na
maternidade, pois se elas são excluídas por apresentá-los e assumi-los socialmente, por
exemplo, quando doam seus filhos, não são excluídas aquelas que apresentam tais
sentimentos, mas não os externam, reforçando assim o mito do amor materno.
Contudo o estudo realizado por Piccinini et al. (2004), relata que a literatura aponta
a existência de repercussões tanto positivas quanto negativas na presença das expectativas
das mães em relação à maternidade. Afirmam que as expectativas são consideradas
negativas quando não há espaço para o bebê assumir sua própria identidade, isto é, quando
a mãe não consegue aceitar a singularidade de seu filho e abandonar sua carga maciça de
projeções.
Neste estudo, referem-se à existência de alguns casos de gestantes que não
conseguem investir no bebê nem esperar nada dele, por medo que a realidade não satisfaça
seus desejos, e de outras que atribuem ao bebê somente expectativas de insucesso e de
morte, o que geralmente se revela não através de verbalizações e sim de sensações,
pensamentos e intensas preocupações. Dessa forma percebemos que a maternidade não é
assim tão natural para as mulheres, mas está impregnada de expectativas e angústias.
Parker (1997) também cita uma outra visão apresentada por Melanie Klein para
falar na ambivalência materna, o que significa experimentar novamente os sentimentos
vivenciados pela mulher durante sua própria infância em relação a sua mãe. Afirma que os
desejos de morte que alimentava inconscientemente em relação à mãe são agora
vivenciados em relação ao filho, que ocupa o lugar de sua mãe, simbolicamente.
Essa autora completa afirmando que do ponto de vista psicanalítico, quando se
oferece reparação aos filhos, quem funciona como verdadeiro receptor dos impulsos de
reparação é sua própria mãe. Portanto, a maternidade não está somente carregada por sua
construção histórica e social, mas também pela história vivenciada pelas mulheres, antigas
filhas, mães atuais. Desse modo, concluímos que as experiências como filhas interferem
diretamente nas suas representações como mães.
Segundo Serrurier (1993) algumas mulheres sentem-se, com freqüência, culpadas
em relação as suas mães, por não terem sido boas filhas, assim em sua própria maternidade
esse sentimento é cristalizado. A autora completa que esse pensamento totalmente
irracional, de recriminação inconsciente, é o que origina uma “mãe má”. Mas é para com
seus filhos que as mães se sentem mais culpadas: devido a sua ambivalência de
sentimentos.
Parker (1997) apresenta uma nova contradição no âmbito do ideal materno, pois ao
mesmo tempo em que se considera como meta o exercício pleno da maternidade, também
existe a busca por um sentimento de unidade, vista como um sintoma de incapacidade de
separação por parte da mãe. Assim, essa unidade propriamente dita é idealizada tanto
quanto difamada: advertida pela superproteção e recriminada pela rejeição. Desse modo a
autora se questiona como as mães conseguem conciliar as contradições culturais e suas
próprias fantasias e desejos face à maternidade. Esses seriam indícios de uma imperfeição,
não saber como ser mãe? Isso reforça a não existência de um modelo, de um amor materno
único, vivenciado da mesma forma por todas as mulheres, mas sim a existência de uma
subjetividade, de uma mulher ímpar, com desejos e aspirações singulares.
Assim sendo, Parker (1997) afirma que vivenciar a ambivalência materna se torna
algo dificilmente aceito e conseqüentemente complicado de acreditar, apesar de muitas
pessoas reconhecerem sua inevitabilidade. Acreditar que sentimentos de ódio,
ressentimento e hostilidade fazem parte dos sentimentos que uma mãe pode ter em relação
ao seu filho, gera muitas dúvidas tanto aos seus próprios olhos como aos dos outros.
Ao falarmos do olhar do outro, Parker (1997) afirma que as mães se observam na
maneira de agir como “mãe” na tentativa de encontrar diferenças e semelhanças, não sendo
uma simples comparação invejosa, mas para confirmarem seus acertos, numa busca de
reassegurarem-se reciprocamente, pois nossa cultura permite uma grande flexibilidade
diante de várias outras atividades, exceto na maternidade. Talvez também por isso seja tão
difícil assumir sentimentos ambivalentes em relação à maternidade.
Assim sendo, concluímos que ser mãe não tem sido uma tarefa nada fácil, como
pontua Serrurier (1993), no entanto muito menos simples ainda, é recusar-se a sê-lo.
3.2 Representação do Abandono
Considerando esta representação idealizada da maternidade, cabe apontar a suposta
incoerência: como uma mãe pode abandonar seu filho e/ou entregá-lo para adoção? Essa é a
pergunta que a sociedade se faz, perplexa diante de tantos casos apresentados pela mídia de
crianças abandonadas e pela quantidade de crianças em instituições de abrigo esperando
para serem adotadas, além da quantidade de adoções que são feitas sem conhecimento da
Justiça, a chamada “adoção à brasileira”. Essa pergunta reflete a condenação desta atitude
que muitas mães tomam: a doação.
Segundo Rodrigues (2001), ao analisarmos os relatos míticos, contos, lendas, a
Bíblia Sagrada, encontramos diversos casos de abandono de crianças, que ao serem
praticados, geralmente, eram feitos visando o bem das crianças, e este ato aparece como
sendo a única possibilidade de vida para elas.
Essa autora faz uma análise histórica na qual podemos perceber que apesar do
abandono de crianças ter passado a ser condenado, continuou sendo praticado e tolerado
durante muito tempo, pois em 1638 foi criada, por São Vicente de Paula, a primeira casa
para o acolhimento de crianças abandonadas, e na Idade Média foi criada a “roda dos
expostos” ou “roda dos enjeitados” em algumas instituições, para que fossem acolhidas as
crianças abandonadas sem que o autor fosse identificado, o que, para Rodrigues (2001),
resultou num paradoxo, pois nessa época se propunha a redução do infanticídio, o que com
esse mecanismo foi possível, mas ao mesmo tempo o abandono de crianças foi favorecido.
Motta (2005) faz um breve histórico do abandono no Brasil, e começa com os
apontamentos feitos por Gonçalves (1987 apud MOTTA, 2005), o qual relata que, durante
o Império, alguns termos pejorativos eram usados pela sociedade brasileira ao referir-se a
criança abandonada, tais como “exposto” e “enjeitado”. De acordo com Venâncio (1997
apud MOTTA, 2005) o abandono de crianças provinha de relacionamentos reprimidos e a
necessidade de mantê-los a todo custo, fazendo com que os filhos, chamados de filhos
bastardos, frutos deste amor proibido fossem abandonados pelas ruas, sendo responsáveis
pela crescente quantidade de abandonos “selvagens”.
De acordo com Motta (2005) as “rodas dos expostos” foram estabelecidas aqui no
Brasil nas cidades de Salvador, Recife e Rio de Janeiro no período colonial, nas quais eram
abandonados os filhos ilegítimos, pois como as regras advinham da família colonial de
moral cristã, a procriação fora do casamento era alvo de recriminação, estando sujeita a
sanções religiosas e sociais. Segundo Venâncio (1997 apud MOTTA, 2005, p.55) “a roda
tinha por finalidade não constranger pessoa alguma, nem quem levava a criança, nem quem
a recolhia”.
Atualmente, a prática de abandono de crianças ainda continua sendo realizada,
agora de outras maneiras, seja as abandonando em ruas, hospitais, ou as entregando para
adoção. No entanto, nos perguntamos: toda doação de uma criança caracteriza um
abandono e desamor por parte de suas mães? De acordo com Motta (2005) este termo
abandono traz uma conotação preconceituosa, compartilhada socialmente, de uma mãe que
desiste intencionalmente de cuidar de seu filho. Entretanto, a autora considera que a
definição jurídica ampliada conceitua melhor o que seria o abandono, pois não restringe ao
fato de uma criança que é concretamente separada de seus pais, mas inclui aquelas que,
estando sob seus cuidados, são maltratadas, e seus direitos mais essenciais como seres
humanos não são atendidos.
Freud, Solnit e Goldstein (1991 apud RODRIGUES, 2001) ressaltam que o
abandono pode ser uma forma de proporcionar ao filho uma família que o queira e seja
capaz de suprir suas necessidades físicas e afetivas, o que muitas vezes seus pais biológicos
reconhecem que não seriam capazes de fazê-lo, pois o abandono é algo muito maior do que
a entrega de um filho para adoção. Mas estaria a intencionalidade dos conflitos, das
ambivalências, sendo soberana na sua concretização? Segundo Rodrigues (1993 apud
MOTTA, 2005, p.40) abandono “[...] inclui o descaso intencional pela sua criação,
educação e moralidade”.
Assim, como ressalta Venâncio (1997 apud MOTTA, 2005), não podemos explicar
o abandono de crianças analisando um só motivo, pois são vários os fatores que
influenciam na decisão pela entrega de um filho. Motta (2005) enfatiza a importância de
analisarmos o fenômeno do abandono compreendendo a magnitude do universo feminino,
considerando toda construção histórica da maternidade, a “inserindo em seus contextos, e
referindo às particularidades próprias a cada situação econômico-sociocultural e
psicológica” (p.57).
Em relação à adoção, Czapski e Elias (1988) concordam com a definição de Clóvis
Beviláqua, que a define como um ato pelo qual alguém aceita um estranho na qualidade de
filho. Ressaltam que deve ser feita por escritura pública e registrada no Registro Civil das
Pessoas Naturais, exigência do Código Civil, pois consiste num ato solene. Para Gomes
(1983, p.345 apud CZAPSKI e ELIAS, 1988, p.29) o principal efeito da adoção é “atribuir
ao adotado a condição de filho legítimo do adotante”. Santos (1998) aponta tal implicação
na legislação: “art. 41 - A adoção atribui a condição de filho ao adotante, com os mesmos
direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com os pais e
parentes, salvo os impedimentos matrimoniais” (p.78). Contudo, Chaves (1995) ressalta
que a adoção é o estabelecimento de um vínculo fictício de paternidade, obedecidos os
requisitos da Lei, sem total desligamento do adotado da sua família de sangue.
A partir da definição de Chaves (1995), nos questionamos a respeito da eficácia da
adoção fechada, adotada em nosso país, que consiste no segredo em relação às realidades
da adoção, sendo que os registros são lacrados e “subentendem uma ruptura total no contato
entre a criança e seus pais biológicos” (MOTTA, 2005, p.76). Tal política de adoção
confirma o preconceito em relação às mães biológicas e sua total exclusão do processo de
adoção após a concretização da entrega, o que pode agravar os sofrimentos vivenciados por
elas. Motta (2005) afirma que a participação ativa das mães doadoras na escolha da família
adotante, com a permissão para que saibam com quem seus filhos estão e recebam notícias
de seu desenvolvendo, contribui para uma melhor significação da entrega e as tornam mais
capazes para lidar com os sofrimentos gerados pela doação, “sem mencionar os inúmeros
benefícios que o adotivo adquire da prática de uma política de adoção mais aberta”
(MOTTA, 2005, p.258).
Concordamos com Motta (2005) ao ressaltar a necessidade de um trabalho prévio
com as mães doadoras, permitindo-lhes a antecipação da perda e da vivência da dor, o que
certamente interferirá na elaboração da entrega. Santos (1998) cita um artigo da legislação a
respeito da adoção, em relação às mães, que diz: “art. 8 §1º - a gestante será encaminhada
aos diferentes níveis de atendimento, segundo critérios médicos específicos, obedecendo-se
aos princípios de regionalização e hierarquização do Sistema” (p.71). Estaria incluso,
nesses “diferentes níveis de atendimento”, o suporte psicológico para que se possa acessar a
subjetividade e assim ajudá-la em relação a sua decisão pela entrega?
3.3 Mães Doadoras: Mulheres ou Monstros?
Conforme visto anteriormente, a representação da maternidade foi construída
socialmente com a obrigatoriedade da presença do amor natural e incondicional. Todavia,
assim como qualquer outro, o sentimento materno é subjetivo, construído a partir de uma
história, de uma cultura. Como afirma Badinter (1985), o sentimento de amor para com um
filho pode existir ou não, depende da vivência histórica, cultural e subjetiva de sua mãe.
Tal construção social deste amor faz com que mulheres que não o sintam sejam
totalmente excluídas, e seus sentimentos considerados completamente absurdos. São
avaliadas como pessoas indignas, desprovidas de qualquer virtude feminina, sendo essa
mulher considerada “meio monstro, meio criminosa, tal mulher é o que poderíamos chamar
de erro da natureza” (BADINTER, 1985, p.275).
Esta visão esteriotipada da sociedade faz com que mulheres que entregaram seus
filhos para adoção, raramente pelas vias legais, se escondam por medo, por vergonha, e
assim as razões que as levaram a tomar essa atitude ficam obscuras. Dessa forma,
Rodrigues (2001) afirma que mantendo obscuros os motivos que as levaram a tal decisão,
os sentimentos durante todo o processo da entrega, dificulta-se a intervenção com essas
mães, até mesmo para que se resulte em outras soluções ao invés do abandono, assim como
a elaboração de medidas preventivas.
Concordamos ser de extrema importância escutar e analisar não só os motivos
explicitados pelas mães, mas principalmente àqueles que estão implícitos pelas mulheres
que apresentam a intenção de entregar seu filho em adoção para que assim possa ser, não
somente confirmado esse desejo, como também possamos compreender melhor seus
motivos e assim criar estratégias de intervenção. Contudo, não podemos avaliar o contexto
da entrega sem acessar a subjetividade dessas mulheres, e assim, quais as razões implícitas
e subjetivas de sua decisão.
Perguntamos-nos se em suas histórias o abandono não esteve presente, se não
foram abandonadas primeiro? Talvez essas mulheres, consideradas como monstros,
sofreram várias formas de abandono em suas vidas: em primeiro lugar por seus pais, pois
podem proceder de uma família monoparental na qual não pôde obter nenhum tipo de
apoio; por seus parceiros que não quiseram assumir a responsabilidade da paternidade,
estando eles presentes ou não fisicamente; e por fim pela sociedade, que julga e condena
essa intenção da doação, sem oferecer formas de escuta e apoio eficientes e livres de
julgamentos.
Motta (2005) corrobora essa idéia ao questionar: “como situar em relação à crítica
feroz aquelas jovens solteiras pressionadas pela família, abandonadas pelo parceiro, sem
emprego e às vezes sem lugar para morar?” (p.60). Assim a autora julga indispensável, um
exame e elaboração do histórico de perdas dessas mães, pois auxiliando melhor essas
mulheres a superarem seus problemas se tornaria mais fácil tornar-se apta a criar seus
filhos, ou realizar sua entrega dentro de condições mais adequadas, saudáveis e legais,
evitando traumas, arrependimentos e contestações das doações no futuro.
Essa autora aponta que a incompreensão para com essas mulheres se deve à
conservação do ideal social de ser mãe, pois àquelas que não se enquadram nesse ideal são
atribuídas anormalidades: seja entregando seus filhos para adoção, sendo consideradas
como desnaturadas; seja ficando com eles sem condições, sendo consideradas
irresponsáveis.
Sobretudo, quando voltamos à idéia da maternidade como única forma de
subjetivação do feminino, compreendemos o porquê da falta de maternidade ser tratada
como uma falha na própria identidade da mulher, como ressalta Motta (2005), pois quando
a mulher não se torna mãe é questionada em sua feminilidade. Essa autora volta aos
possíveis elementos que influenciaram a doação: o estado psicológico e emocional, as
condições econômicas, a ausência de apoio familiar, social e governamental. Assim, não
poderíamos desconsiderar tais fatores e simplesmente julgar a mãe doadora como um
monstro, mas sim relativizar a entrega dando um novo olhar: seria este um ato de amor?
Daher, Laloni e Baptista (1999) realizaram um estudo com parturientes que
desejavam doar seus bebês. Afirmam que a doação pode parecer para essas mães como a
solução mais rápida e eficaz para solucionar os problemas gerados pelo nascimento da
criança. Enfatizam que essa decisão muitas vezes não é exclusiva da mãe, mas reponde às
pressões sociais e familiares.
Neste mesmo estudo, Sidmam (1995 apud DAHER, LALONI E BAPTISTA, 1999)
considera que comumente essas mulheres são influenciadas por diferentes fatores, dos quais
ressalta os fatores pessoais, sociais, familiares e financeiros. Berthoud (1995 apud DAHER,
LALONI E BAPTISTA, 1999) afirma que durante esse período é necessário um suporte
por parte da equipe de saúde, inclusive do psicólogo hospitalar, para que sejam prevenidas
experiências negativas e com isso a mãe desenvolva alguma repulsa por este momento da
gravidez e do parto, ou mesmo por seu filho.
A discriminação sofrida por essas mulheres que “abandonam” seus filhos faz com
que não sejam ouvidas não lhes sendo permitido qualquer forma de sofrimento diante da
entrega, e se sofrem não merecem ser acolhidas, pois praticaram um ato inconcebível.
Contudo, esse processo, para as mães, pode se assemelhar à morte, como denomina Kovács
(1996) “a morte em vida”. Sendo assim passam por todo o processo de luto, que muitas
vezes não é completamente elaborado, e assim sofrem por não aceitar essa perda, como
visto anteriormente, muitas vezes imposta indo de encontro a sua vontade.
3.3.1 O Luto da Mãe que Entrega o Filho em Adoção
De acordo com Kovács (1996), a separação entre duas pessoas que se amam,
desperta sentimentos semelhantes aos causados pela morte, pois para ela a separação é
realmente uma perda entre vivos, ressaltando a necessidade de matar o outro dentro de si,
mesmo que não haja uma morte concreta.
A autora aponta a ambivalência de sentimentos que abarcam o amor, sendo que na
separação ela afirma que estas polaridades, amor/ódio, atração/repulsa, são exacerbadas.
Observa que apesar desta experiência ser universal, pois todos passam por situações de
separação e perda, é vivenciada de forma peculiar. Dessa forma, não pode ser
compreendida globalmente, visto que se trata de uma experiência ímpar, que depende
diretamente da história e da subjetividade de cada indivíduo.
Assim, não podemos generalizar, como feito com a representação social da
maternidade por meio do mito do amor materno, a mulher que entrega seu filho em adoção,
pois da mesma forma que vários fatores perpassam sua decisão, várias são as formas de
elaborar a doação.
Contudo, podemos afirmar a existência da dor, mesmo que seja numa mãe
individualista que entregou seu filho para ‘livrar-se de um problema’, pois como afirma
Caruso (1986 apud MOTTA, 2005) a separação é uma ferida em si mesmo, no próprio ser,
caracterizando-se como uma dor narcísica, abstraindo assim, que a entrega deixa marcas
nas mães em quaisquer que sejam os motivos da doação.
Segundo Jones (1993 apud MOTTA, 2005), algumas dessas mulheres possuem a
necessidade de passar por esse processo de luto que envolve a perda, algumas focadas na
separação diante da entrega do filho, outras abrangendo a significação da perda do papel de
mãe, a auto-estima, concluindo que qualquer que seja o foco essa necessidade de lamentar
alguma perda se faz presente.
Dessa forma, o luto, segundo Rano (1984 apud MOTTA, 2005), é:
[...] um processo composto de reações psicológicas, físicas e sociais a uma perda e se caracteriza como um processo holístico que é necessário, normal e universal, relevando-se como uma resposta inerente ao ser humano. Depois de sofrer uma perda, durante certo período de tempo a pessoa enlutada fica angustiada e incapaz de funcionar da mesma forma que antes de sua ocorrência. A recuperação, por sua vez, ocorre quando a pessoa enlutada faz novos planos para sua vida e alcança um novo e independente nível de funcionamento (p.83).
Assim, Motta (2005) aponta a necessidade de auxiliar cuidadosamente essas
mulheres que expressam o desejo pela entrega, pois após o nascimento da criança, como
afirma Roles (1989 apud MOTTA, 2005), ao mesmo tempo em que há um reconhecimento
de mudanças referentes ao seu corpo após o parto, após a entrega elas prosseguem na
tentativa de agir como se não tivessem tido um filho.
No entanto, muitas vezes não conseguem fingir que nada aconteceu, aparecendo
assim sintomas de tristeza, pânico, medo, raiva, desespero, culpa e vergonha, pois, segundo
o autor, o surgimento de sentimentos tão intensos não é necessariamente justificado por um
só acontecimento. Não permitir a expressão de tais sentimentos pode agravar os riscos e
sintomas apresentados, podendo evoluir para sinais mais expressivos como “pesadelos,
fobias, perturbações do sono, ataques de pânico, depressão, alcoolismo ou uso de drogas,
ou somatizações com enorme dispêndio de energia física e psíquica para mascarar as
emoções” (ROLES, 1989 apud MOTTA, 2005, p.93).
3.3.2 A Doação pode ser um Ato de Amor?
Quando retomamos as explanações feitas anteriormente acerca do abandono de
crianças, pensamos se caberia conceber a entrega também como um ato de amor, pois na
maioria das vezes as mães abandonaram seus filhos por acreditarem ser a única forma de
garantir-lhes a sobrevivência, sendo assim a única forma de exprimir seu amor.
Acreditamos que tais mulheres, que hoje entregam seus filhos para adoção, possuem
vários motivos que perpassam sua decisão pela entrega, sejam sociais, econômicos,
emocionais ou psicológicos, o que nos leva a dar uma nova visão a sua decisão pela
entrega. Dessa forma, poderíamos pensar que essas mães estariam entregando seus filhos
em adoção para garantir-lhes o direito a uma vida saudável, podendo assim ser considerado
como um ato de amor?
Segundo Motta (2005) afirmar que as mães que entregaram seus filhos, por não
poderem ficar com eles devido a vários motivos, o tenham feito por simplesmente não
apresentar nenhum amor, seria um equívoco. Não podemos dizer, baseados no mito do
amor materno, que essas mulheres não amam seus filhos, simplesmente por não terem
ficado com eles. Podemos sim compreender essa entrega com uma escuta qualificada e
livre de recriminações para então compreender os motivos subjetivos das mães doadoras.
Dessa forma essa autora ressalta a importância da substituição do termo abandono,
pois esse termo revela uma postura completamente impregnada de preconceitos e paradoxal
em relação à mãe que “desiste” de cuidar de seu filho. Para Motta (2005) esse termo
estigmatiza e, além disso, somado ao segredo que permeia este ato, abrem espaço para
fantasias em relação a tal atitude. A criança se sente abandonada, rejeitada, não querida.
Afinal, as mães doadoras tentam garantir que seus filhos tenham um lar, uma família que
tenha mais condições que ela, em todos os sentidos que esta palavra possa expressar,
demonstrando a sua preocupação e amor pelos filhos doados. Caso contrário elas poderiam
simplesmente abandoná-los a ermo, em ruas, latas de lixos, lagoas ou mesmo os
abortariam, sem lhes dar a menor chance de sobrevivência.
A proposta é substituir o termo abandono pelo termo “entrega”, que já se encontra
instituído na adoção. Assim, essa modificação tem o intuito de pesquisar e encontrar as
diversas motivações, incluindo o âmbito psicológico, que possam estar influenciando a
entrega de um filho em adoção (MOTTA, 2005). Este, aliás, é o nosso intuito na presente
pesquisa.
3.3.3 Onde estão os pais?
Como visto anteriormente, há uma grande diferença entre os papéis conferidos ao
homem e a mulher, assim como o envolvimento e a responsabilização que cada um tem em
relação aos filhos, sendo muito maior para as mulheres devido a fatores naturais, sociais,
históricos, culturais e psicológicos. Entretanto, Serrurier (1993) aponta algumas limitações
da mulher diante da maternidade. Ao assegurar que a “mãe” não é um personagem
andrógeno e onipotente, afirma-se que é somente uma mulher, necessitando assim de um
sexo complementar, o homem.
Segundo Arrais (2005) o nascimento de um filho propicia uma reconstrução
subjetiva não só da mulher, mas também do homem, dos familiares e do meio que os
cercam, desestabilizando algumas atividades e conceitos que anteriormente pareciam
estáveis. Contudo essa exigência para mudança de postura e atitudes recai na vida das
mulheres, sob uma forma de cobrança de renúncia, responsabilidade, abdicação, amor
incondicional e disponibilidade total aos filhos. É principalmente na vida delas que uma
revolução se instala após o nascimento do filho, sendo que o mesmo movimento não se
observa na vida da imensa maioria dos homens, nem na mesma intensidade, nem na mesma
quantidade.
Serrurier (1993) coloca que o mito da ‘boa mãe’ influencia na isenção da
responsabilidade paterna, pois supervaloriza a mãe, como se toda mulher quisesse ou
pudesse ser uma ‘boa mãe’, tendo relevância para os costumes familiares e a distribuição
dos papéis, pois se guia pela crença de que “se é a fisiologia da mulher que lhe permite
procriar, é ela, portanto, que pode melhor maternar” (MOTTA, 2005, p.65).
Ao analisarmos o percurso histórico feito por Badinter (1985), desde meados do
século XVII, até os dias atuais, percebemos os papéis assumidos pelo pai no âmbito
familiar. Essa autora relata o declínio da figura paterna como autoridade conseqüente da
ascensão do Estado, que por volta do início do século XVIII, o reduziu, apenas, a um
membro familiar responsável por fecundar a fêmea e proteger os filhos, enquanto estes
precisarem.
Dessa forma, o pai assumiu o papel de mero transmissor da filiação nominal,
conferindo-lhe também ser a representação da lei, sendo assim no inconsciente da criança
um pai simbólico. Badinter (1985) aponta que, atualmente, aparece a reivindicação paterna
de assumir o papel ativo na criação do filho.
Contudo, apesar de Badinter (1985) apontar essa reivindicação pela paternidade e
existirem muitos casais experimentando novos arranjos familiares, Arrais (2005) relata que
ainda se observa que a velha divisão de papéis insiste em se manter. Essa autora afirma que
pelo pai trabalhar fora se sente no direito de não participar ativamente da educação das
crianças; e a mãe, mesmo que trabalhe fora e contribua para o sustento da família, ainda
resiste em abandonar o que fez durante tanto tempo – responsabilizar-se “sozinha” pelos
cuidados para com a sua prole.
De acordo com Arrais (2005), no século XX, sob a influência da psicanálise,
também se reforçou essa responsabilização da mãe pelos cuidados com seus filhos, ao
constatar que a figura materna é essencial para seu desenvolvimento e para a construção da
personalidade, sendo que essa cobrança não recaiu de igual maneira sobre o pai.
Pesquisadores psicanalistas argumentam que, uma vez cuidados, todos, sejam homens ou
mulheres, possuem uma base relacional para cuidar de uma criança, por conseguirem
regredir a sua relação com sua própria mãe, e se esta teve uma boa qualidade. Apesar disso,
salienta Chodorow (1990 apud ARRAIS, 2005), as mulheres continuam a serem
responsabilizadas pelos cuidados com os filhos, e não os homens. Arrais (2005) se
questiona “o que acontece com as capacidades potenciais dos homens de cuidar de uma
criança?” (p.138).
Para Margaret Mead (1971 apud RODRIGUES, 2001), a paternidade é uma
invenção social, pois o homem não traz em sua herança genética qualquer forma de conduta
paterna. Assim, como não foram habituados a exercer a paternidade, não foram
acostumados a brincar de bonecas, trocar fraldas, os homens precisam aprender a querer
sustentar outros, a responsabilizarem-se por tais cuidados. Para essa autora a sociedade tem
uma tarefa primordial: “manter os homens trabalhando em conjunto, de alguma forma onde
executem a cooperação” (RODRIGUES, 2001, p.24).
Também se faz necessário averiguar a posição do cônjuge, pois não obstante o
parceiro compartilhar ou não as tarefas práticas de cuidar das crianças, a atitude que ele
mantém diante da maternidade de uma mulher a afeta intensamente (PARKER, 1997). Com
isso as mulheres, movidas pelo nosso modelo socialmente compartilhado, acreditam que
compensa aceitar a falta de disposição do companheiro para dividir os cuidados com os
filhos, deixando de se queixar ao marido para evitar uma discussão, e assim correr o risco
de serem abandonadas. Acreditam que não devem incomodar seus maridos com suas
tristezas, nem com as inúmeras demandas de seus filhos para manterem seus casamentos.
Há um terrível medo de “comprar” conflitos, afinal, mulheres “mal-comportadas” não só
terão que assumir sozinhas a responsabilidade de seus atos, como também podem ser mal-
amadas, malquistas e por fim, abandonadas.
Arrais (2005) evidencia que a maternidade é permeada pelo modelo de mãe
tradicional, romanceado, e pelas cobranças inerentes a ele, bem como pelo modelo clássico
de pai, exclusivamente provedor. Essa autora ressalta a importância de se repensar nesses
modelos inatos e exclusivos, abrindo espaço para pensá-los enquanto algo que se constrói a
partir da história da mulher, do homem e da relação mãe-pai-bebê.
Castells (1999 apud ARRAIS, 2005) adverte que essa demanda pela relativização
do ideal materno e pela inclusão do pai se transformou numa necessidade proeminente: o
mundo pós-patriarcal demanda por personalidades mais flexíveis. Defende que as novas
gerações devem ser socializadas fora do padrão tradicional da família patriarcal e expostas,
já na infância, a novos papéis exercidos pelos adultos. Assim, tanto meninas como meninos
vão observando a necessidade de renegociação do “contrato” da família moderna, o qual
implica em compartilhar o trabalho doméstico, parceria econômica e sexual e, acima de
tudo, responsabilidade pelos filhos totalmente compartilhada.
Não obstante, nos perguntamos: onde estão os pais, que diante da notícia de uma
gravidez não planejada, não oferecem o apoio necessário para as futuras mães de seus
filhos, deixando de assumir sua paternidade e a oportunidade de expressar o amor paterno?
Afinal, não é só a mãe quem doa o filho, o pai também o faz. Ou melhor, com base na
discussão levantada no tópico anterior, poderíamos entender que a mãe entrega e o pai
abandona o filho, no momento em que rejeita a sua gestação e abandona a sua mãe.
IV – OBJETIVOS
4.1 Objetivo Geral
Compreender o sentido subjetivo da doação para as mães que já entregaram um
filho para adoção, assim como conhecer a concepção da mãe doadora para os profissionais
que trabalham com essas mulheres.
4.2 Objetivos Específicos
Compreender a vivência subjetiva dessas mães e as implicações da entrega;
Compreender o sentido subjetivo da doação;
Conhecer a concepção da mãe doadora para os profissionais da Seção de Adoção da
Vara da Infância e da Juventude do Distrito Federal que trabalham com esta
clientela;
Conhecer a percepção desses profissionais sobre o trabalho desenvolvido pela
equipe psicossocial nos casos de doação;
Contribuir para criação de estratégias de apoio para as mães que desejam entregar
seus filhos para adoção.
V – MÉTODO
5.1 A Escolha Metodológica: Epistemologia Qualitativa
A presente pesquisa se caracteriza por ser um estudo qualitativo, orientado pela
Epistemologia Qualitativa desenvolvida por González Rey (2005). Tal metodologia foi
escolhida por nos permitir entrar em contato com a subjetividade dos participantes da
pesquisa, e nos encorajar a estudar o não dito, aquilo que está subjetivamente escondido e
conscientemente rejeitado. Portanto, esta metodologia mostra-se bastante apropriada para
tratar de um tema cercado de tabus e rejeitado socialmente como uma mãe que entrega seu
filho para adoção.
A Epistemologia Qualitativa desenvolvida por González Rey (2005) defende o
caráter construtivo-interpretativo do conhecimento, tratando-o como uma produção, uma
construção humana, e não uma simples aceitação da realidade que é apresentada, pois como
afirma Atlan (1993, p.66 apud GONZÁLEZ REY, 2005, p.6) “a realidade é algo a
interpretar, ela é feita daquilo que chamamos ‘interpretando’”.
Nessa proposta de pesquisa qualitativa valoriza-se a importância do pesquisador e
suas considerações a respeito da realidade encontrada em sua pesquisa. Com isso o
pesquisador deve estar preparado teoricamente a respeito de sua pesquisa e consciente das
implicações pessoais que essa possa produzir, ou seja, valoriza-se a reflexão dos
pesquisadores diante da subjetividade dos sujeitos da pesquisa e da própria subjetividade.
A subjetividade tem como sua unidade constitutiva essencial os sentidos subjetivos,
que representam uma unidade integradora de diferentes elementos que, em sua junção, o
definem. Assim González Rey (2005) define a subjetividade como um sistema complexo,
não sendo algo simplesmente internalizado, mas construído por meio da cultura e orientado
a partir das relações vivenciadas pelo indivíduo, não permitindo que seja explicada ou
esgotada por uma destas dimensões. Para Demo (2001, p. 24, apud ARRAIS, 2005) “a
realidade que temos em mente é aquela reconstruída por nós. O mundo que nos tem como
sujeito é um mundo reconstruído também subjetivamente”.
Para tanto, González Rey (2005) vê o conceito de sentido subjetivo como central na
definição de subjetividade, pois o desenvolvimento acontece através de unidades de sentido
capazes de implicar aspectos psicológicos diferentes, correspondendo a momentos
concretos da vida do sujeito, não aparecendo intencionalmente nas expressões do sujeito,
mas indiretamente, nas manifestações gerais do sujeito em seus diversos tipos de expressão.
Portanto, a produção de sentidos subjetivos são processos que estão além da
representação consciente do sujeito, ou seja, vão além dos significados atribuídos pelos
sujeitos às suas ações e vivências, mas constituem-se numa integração de emoções,
significados e processos simbólicos em geral e de emoções, nas quais um elemento não está
determinado pelos outros, embora estejam relacionados entre si. Representam complexas
combinações de emoções e processos simbólicos que estão associados a diferentes esferas e
momentos da vida do sujeito e que podem estar envolvidos em configurações subjetivas
distintas (ARRAIS, 2005).
Outra característica importante desta metodologia de pesquisa, ressaltada por
González Rey (2005), é a legitimação do singular como instância de produção do
conhecimento científico, ou seja, uma única resposta tem valor e peso, característica essa
que está diretamente relacionada ao caráter construtivo-interpretativo do conhecimento.
Segundo esse autor, a legitimação da singularidade deve passar pelo caráter teórico
da pesquisa, e “o teórico se expressa em um caminho que tem, em seu centro, a atividade
pensante e construtiva do pesquisador” (GONZÁLEZ REY, 2005, p.11), ou seja, esta
valorização do singular está permeada pelo modelo teórico que o pesquisador desenvolve
no curso de sua pesquisa.
González Rey (2005), ao valorizar a subjetividade considerando o pesquisador
como principal instrumento da pesquisa, questiona a busca pela objetividade da ciência em
detrimento da subjetividade na construção do conhecimento, permeada pela concepção
positivista que impõe uma metodologia que possua dados quantificáveis por meio da mera
aplicação de instrumentos validados.
Com isso o autor enfatiza que na pesquisa qualitativa não se pode manter essa
posição instrumentalista, mas desenvolver uma posição reflexiva, considerando a
subjetividade e a singularidade dos participantes da pesquisa, assim como do pesquisador,
pois este é o responsável pela legitimação das informações construídas. Desse modo, os
instrumentos escolhidos para a pesquisa devem possibilitar uma maior expressão da
subjetividade do sujeito, para que o pesquisador tenha subsídios suficientes para interpretar
tais representações.
Assim, o estudo do sentido subjetivo da doação nos permite compreender a história
das mães pelo modo com que se organizam os sentidos subjetivos em suas diferentes
configurações diante da entrega de seus filhos para a adoção e o significado da entrega.
5.2 Os Participantes da Pesquisa
Foram convidadas a participar desta pesquisa duas mulheres que já entregaram seus
filhos para adoção, a fim de que possamos melhor entender o sentido subjetivo da doação e
suas implicações. Uma apresentação completa das mães-participantes será apresentada na
seção de apresentação e discussão dos casos.
Também foram convidados profissionais que trabalham na Seção de Adoção da
Vara da Infância e da Juventude do DF - VIJ/DF, para conhecer a concepção desses
profissionais em relação às mães doadoras. Os profissionais entrevistados foram indicados
pelo supervisor da Seção de Adoção, sendo uma assistente social, uma pedagoga e dois
psicólogos.
5.3 Recursos Instrumentais Utilizados
Para as entrevistas com as mães foram escolhidos instrumentos que permitissem o
maior acesso a suas vivências, os quais pudessem possibilitar ao máximo a expressão da
subjetividade de cada mãe-participante, para melhor compreensão do sentido subjetivo da
doação para as mães que entregaram seus filhos para adoção e as implicações dessa
entrega:
Entrevista aberta com as mães doadoras, focalizada por sua história de vida e as
questões relacionadas à gestação e a entrega do filho para adoção;
Completamento de Frases (Apêndice A), trata-se de um instrumento que consiste na
apresentação de frases escritas incompletas para que o sujeito possa completar a
partir daquilo que primeiramente emergir em sua mente ao ler a frase em questão.
Foram elaboradas quarenta e seis frases incompletas com os mais variados temas,
incluindo doação e adoção, assim como o filho que foi doado;
Pranchas do TAT (Anexo A), não sendo utilizado como teste de personalidade, e
sim como disparadores temáticos. Foram escolhidas oito pranchas com o intuito de
que as participantes escolhessem as que quisessem e, a partir das escolhidas,
montassem uma história, não sendo obrigatório a utilização de todas as pranchas. As
pranchas foram escolhidas a partir das figuras que pudessem estar relacionadas com
sua história e doação, conflitos conjugais, parentais, aspectos transgeracionais,
dentre outros. Foram escolhidas as pranchas (MURRAY, 1995):
3MF – uma jovem de pé com a cabeça abaixada e o rosto coberto com a
mão direita, o braço esquerdo está esticado para frente segurando-se a uma
porta;
4 – uma mulher está agarrando os ombros de um homem cujo corpo e cuja
face estão virados como se ele estivesse tentando escapar dela;
7MF – uma mulher mais velha sentada num sofá junto de uma menina,
lendo ou falando com ela. A menina, que segura uma boneca no colo, e olha
em outra direção;
8MF – uma mulher está descansando, segurando o queixo e olhando no
vazio;
9MF – uma jovem com uma revista e uma bolsa na mão olha, por trás de
uma árvore, outra jovem num vestido de festa, que corre na beira de uma
praia;
12F – o retrato de uma jovem senhora e ao fundo uma velha estranha está
com um xale na cabeça e fazendo careta;
14 – a silhueta de um homem (ou de uma mulher) numa janela clara, com
o resto do quarto totalmente negro;
16 – prancha em branco.
Também foi utilizado um instrumento que permitisse conhecer a concepção dos
profissionais a respeito das mães doadoras:
Entrevista semi-estruturada (Apêndice B) com os profissionais da Seção de Adoção,
direcionada pelo trabalho desenvolvido na VIJ/DF com as mães que procuram o
Serviço com a intenção de realizar a entrega de seu filho para adoção;
5.4 Procedimento de Construção das Informações
Duas mulheres foram convidadas a participar desta pesquisa, sendo que foi muito
difícil conseguir chegar até as mães-participantes. O contato com a primeira participante foi
feito por intermédio de uma amiga da pesquisadora, pois é empregada doméstica, trabalha
em sua casa e havia contado sua história da doação de seus filhos. O primeiro contato foi
feito via telefone, para que fossem esclarecidos os objetivos da pesquisa, sanadas possíveis
dúvidas e marcadas as entrevistas com datas e horários pré-estabelecidos.
O primeiro encontro foi realizado na casa onde mora e trabalha como empregada,
por opção da participante e consentimento de sua patroa. Durante este encontro inicial
foram esclarecidos novamente os objetivos da pesquisa e entregue o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (Apêndice C), para que com sua assinatura autorizasse
a utilização das informações obtidas no estudo e a gravação em áudio, observando as
questões éticas, e explicando-lhe que sua participação no estudo é voluntária. Duas vias
deste Termo foram assinadas pela orientadora da pesquisa, pela pesquisadora e a
participante, para que uma cópia ficasse com a pesquisadora e outra com a participante.
Iniciou-se o desenvolvimento da entrevista aberta que visou identificar a
participante, conhecer sua história, a história da gravidez e da entrega de seu filho para
adoção, assim como seus sentimentos atuais e pensamentos para o futuro. Neste mesmo
encontro lhe foi entregue o Completamento de Frases, para que ela respondesse e num
segundo encontro, também com data e horário pré-estabelecidos, pudéssemos conversar
sobre esse instrumento.
No segundo encontro também foi realizada uma entrevista aberta guiada pelo
Completamento de Frases na qual a participante pôde comentar suas respostas, e dizer
como foi para ela responder a esse instrumento. Depois foi marcado um terceiro encontro,
no qual lhe foram apresentadas as pranchas do TAT para que ela pudesse escolher as que
quisesse e a partir delas montasse uma história. Depois de montada a história do TAT, foi
feita uma entrevista de devolutiva para a participante com as impressões da pesquisadora,
assim como um encaminhamento para um atendimento psicoterápico.
Foi feito um contato com a Seção de Adoção da Vara da Infância e da Juventude do
DF - VIJ/DF, que serviu como intermediador para o contato com a segunda mãe-
participante desta pesquisa. Por meio da VIJ/DF foi-nos fornecido seu telefone, em total
comprometimento de sigilo e com seu consentimento. Essa participante foi escolhida por
ter chamado a atenção da equipe psicossocial da Seção de Adoção, pois ela procurou se
informar a respeito dos processos legais da adoção e os procurou quando ainda estava
grávida, o que não é muito comum de ocorrer. Assim, foram marcadas as entrevistas
também com datas e horários pré-estabelecidos. Os encontros ocorreram da mesma maneira
que foram feitos com a primeira participante, no entanto os locais das entrevistas foram
públicos. Com a segunda participante, por interesse dela, foram combinados encontros
periódicos, transformando-se num espaço terapêutico por um cuidado ético.
Esse contato com a VIJ/DF foi realizado por meio de um ofício (Apêndice D), para
que fosse autorizada a pesquisa processual e de dados inerentes à Seção de Adoção, por
meio de entrevistas realizadas com os profissionais que trabalham diretamente com as mães
que apresentam a intenção da entrega de seus filhos para adoção. Os profissionais foram
indicados pelo supervisor da Seção de Adoção, sendo as datas e os horários previamente
marcados. Quatro profissionais foram entrevistados individualmente, dois psicólogos, uma
assistente social e uma pedagoga, sendo realizadas duas entrevistas por dia com média de
trinta minutos cada.
Todas as entrevistas realizadas foram gravadas em um aparelho MP3 e transferidas
para o computador da pesquisadora e transcritas literalmente, com o objetivo de resguardar
as falas dos participantes e seus sentidos subjetivos.
5.5 Procedimento de Análise das Informações
O procedimento utilizado para análise das informações levantadas, com o intuito de
melhor compreender a subjetividade das participantes, de acordo com a Epistemologia
Qualitativa de González Rey, tem caráter construtivo-interpretativo. Assim a análise se
constituiu numa escuta, e leitura, atenta das entrevistas realizadas, sendo integradas as
informações provenientes dos instrumentos utilizados. A partir desta integração foram
feitas as apresentações dos casos para que assim fossem identificados, a partir da
interpretação subjetiva das informações, os indicadores sobre as motivações implícitas,
relativas à subjetividade das participantes, em relação à entrega de seus filhos para adoção.
Esses indicadores consistem em elementos relacionados àquilo que mobiliza o
sujeito acerca do tema estudado, sendo expressos por via indireta e implícita. Tais
indicadores nascem do diálogo interpretativo, parecendo inicialmente uma especulação
feita por parte do pesquisador. Contudo, para que não assuma este papel, o indicador deve
ser reafirmado durante os vários momentos da pesquisa, considerando todas as
informações, incluindo as provenientes dos momentos informais (ARRAIS, 2005).
Segundo esta autora, são os indicadores que permitem a construção do
conhecimento, sendo que apenas um indicador não tem valor como elemento isolado, mas
como parte de um processo em que funciona a estreita inter-relação com outros indicadores.
Eles permitem ainda explicar ou dar sentido ao problema estudado, sendo que explica o que
não é possível observar explicitamente, permitindo posteriormente uma descrição.
A partir da análise dos indicadores foram construídos os núcleos de sentido que,
segundo González Rey (2005), referem-se a estas categorias ou hipóteses construídas com
base nos indicadores, os quais estão articulados com os pontos que mobilizam o sujeito e
não com aquilo que é mais freqüente ou semelhante.
Turato (2003) destaca que o pesquisador atua como um bricoler, ou seja, constrói
sua teoria a partir de fragmentos, pedaços. Chauí (1995 apud TURATO, 2003) define
pesquisador como aquele que produz um objeto novo a partir de pedaços e fragmentos de
outros objetos, reunindo tudo o que encontra e julga importante para compor seu novo
objeto. Portando, faz-se necessário esclarecer que nem o indicador, nem os núcleos de
sentido, têm um caráter definitivo, são apenas peças interpretativas que se integram a um
sistema de interpretação.
Para análise das entrevistas com os profissionais não foi utilizada a Epistemologia
Qualitativa (GONZÁLEZ REY, 2005). A metodologia se consistiu no agrupamento das
respostas para conhecer a concepção como um todo dos referidos profissionais, sendo
realizada uma análise dos relatos.
VI – APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS CASOS
Participaram desta pesquisa duas mulheres que já entregaram seus filhos para
adoção, sendo chamadas no estudo de Bianca e Isis, nomes fictícios escolhidos por elas,
com o intuito de preservar a identidade das mães-participantes da pesquisa.
6.1 – Construções a partir das informações de Bianca
Identificação e História Familiar: Bianca tem 29 anos, é solteira, não concluiu o
ensino fundamental, é natural da Bahia e trabalha como empregada doméstica. Mora na
casa aonde trabalha, no entorno de Brasília. Ela teve três filhos, uma menina e dois
meninos, e entregou dois filhos para adoção: o do meio há cinco anos, e o caçula há quatro
meses.
Bianca é a caçula de uma família de cinco filhos. Tem mais dois irmãos por parte de
mãe, mas aparenta não considerá-los muito: “minha mãe teve mais dois filhos por lá”.
Quando tinha aproximadamente dois anos seus pais se separaram, pois sua mãe decidiu sair
de casa, deixando os filhos. Assim, ela foi morar na casa de sua tia, que anos mais tarde
faleceu em um acidente doméstico. Ela relatou que viu sua tia sair do banho e ir, toda
molhada, passar roupa e o instante seguinte cai e falece, ela diz não saber a causa da morte
de sua tia. Depois desse acidente, que a marcou profundamente, por ter presenciado o fato,
ela foi embora com o pai morar com seus avós paternos. Seu pai ficou muito abalado com a
separação, decidiu ir morar sozinho e passou a beber freqüentemente, sendo que teve
algumas complicações orgânicas devido ao uso abusivo do álcool e por isso faleceu.Com o
tempo Bianca passou a trabalhar na casa dos avós como se fosse a empregada da casa.
Aos dezesseis anos teve um longo relacionamento, no qual, por não se prevenir,
acabou engravidando, seria mãe de uma menina. Seu namorado não aceitou muito bem a
gravidez e acabaram terminando o relacionamento. Teve sua filha na casa de seus avós,
mas após alguns anos, devido a um convite, decidiu vir para Brasília morar com outra tia,
que a chamou para ajudá-la a cuidar das filhas. Deste modo, ela trabalhava e cuidava de
suas primas em troca da moradia oferecida por sua tia. Não recebia nenhum outro tipo de
pagamento, sendo que depois de alguns anos decidiu trabalhar para conseguir seu sustento.
Foi quando saiu da casa de sua tia e começou a trabalhar como empregada doméstica.
Vemos uma história marcada por separações, perdas e abandonos. Estaria Bianca
atualizando sua história de abandono, por meio dos filhos que doou?
História da gravidez e da doação do primeiro filho que entregou: Bianca iniciou
um relacionamento, o qual durou aproximadamente dois anos, e aos vinte e cinco anos
engravidou de seu segundo filho, um menino. Quando seu parceiro ficou sabendo da
gravidez, não quis assumir alegando que o filho não era dele e iniciou um outro
relacionamento com uma amiga de Bianca, que também engravidou e também acabou
sendo abandonada. Depois disso ele sumiu e nunca procurou saber notícias dela ou de seu
filho: “o pai nem queria assumir”.
Após a rejeição de seu namorado, Bianca procurou sua tia para saber se poderia
morar com ela, devido à gravidez, mas essa negou. Na história montada a partir das
pranchas do TAT, Bianca também relatou que seus tios falaram para que ela cuidasse de
seu filho, mas ao pedir a ajuda e um lugar para ficar, eles recusaram: “eles não me
quiseram”. Foi quando conseguiu que sua patroa a acolhesse em sua casa, aonde trabalhou
até o nascimento do bebê. Após o nascimento, ela se viu em condições muito precárias,
pois não produziu muito leite e seu filho não dormia direito por causa da fome que sentia.
Relatou que sua patroa, apesar de tê-la acolhido com seu filho, não a ajudava em nada, via
que estavam passando fome e não fazia nada por eles: “ela parecia minha mãe, mas na
hora de ajudar mesmo, não ajudava”.
Bianca relatou que a decisão pela doação de seu filho surgiu quando uma amiga de
sua patroa viu a situação em que ela e seus filhos se encontravam e diante disso se ofereceu
para adotá-lo. No dia em que estava desesperada pelo choro de seu filho, pois sabia que era
fome, fez duas mamadeiras de chá para ele, mas mesmo assim sentiu que sua fome não
havia passado. Foi quando decidiu aceitar o pedido dessa mulher: “eu dei mesmo por causa
da minha dificuldade, porque não queria ver meu filho passando fome”.
Quando realmente decidiu pela doação, fez sua única exigência: “poder ver meu
filho quando eu quisesse”, e a mulher que o adotou aceitou. Tal exigência não seria uma
demonstração de amor? Após a entrega de seu filho foi ao cartório formalizar a adoção,
ocasião em que foi avisada que uma nova certidão de nascimento de seu filho seria emitida,
agora com o nome dos novos pais.
História da gravidez e da doação do segundo filho que entregou: Após dois anos,
Bianca se envolveu em outro relacionamento, que também durou aproximadamente dois
anos. Disse que se prevenia, tomando anticoncepcional, mas que acabou se descuidando e
engravidou de seu terceiro filho, outro menino.
Quando contou ao seu parceiro da gravidez, ele aceitou e disse que cuidaria dela e
do filho, entretanto ela descobriu que ele tinha uma amante e decidiu deixá-lo. Com o
passar do tempo, ela ligou para ele, contudo ele viajou e sumiu. Não atendia aos
telefonemas dela e não ligava: “simplesmente sumiu”. Resolveu contar ao seu patrão e
pedir seu apoio, pois como ela já cuidava das filhas dele conseguiria cuidar também de seu
filho, “seria apenas mais um bebê”, mas seu patrão não permitiu.
No seu quarto mês de gestação, uma conhecida dela pediu o bebê para cuidar, já que
ela estava bastante preocupada, sem uma boa condição financeira e nem mesmo um lugar
para ficar. Ela aceitou desde que pudesse morar com eles nos primeiros meses após o parto
e pudesse manter contato com seu filho. “Eu conversava muito com ele dentro da minha
barriga, explicava tudo pra ele, o porquê de estar fazendo aquilo”.
Depois do nascimento de seu filho, ela e o casal que o adotariam foram a VIJ/DF
para que ela pudesse passar a guarda provisória do filho para essa amiga, e assim foi feito.
Em menos de um mês, Bianca havia saído da casa dessa amiga-adotante, pois estava se
sentindo incomodada com aquela situação, sentia como se estivesse sobrando.
Bianca foi trabalhar em outra casa na qual mora ainda hoje. Na história montada por
ela, por meio do TAT, contou que nesta casa sentiu-se apoiada, acolhida por sua patroa
quando não tinha para onde ir, onde morar, pois em nenhuma das outras casas nas quais
trabalhou a quiseram de volta: “ela me deu apoio na hora em que eu mais precisei”.
Filhos Doados: Ao falar de seus filhos, sempre se refere a eles com muito amor e
preocupação, como por exemplo, no completamento de frases: “quando penso no filho que
doei... meu coração”, disse que não se arrepende do que fez porque não pensou nela: “não
dá pra pensar em mim, tive que pensar neles, no bem deles”. Em relação ao futuro dos
filhos que entregou para adoção, a partir do completamento de frases, pareceu-nos que a
entrega foi uma forma de proteger e oferecer aos filhos um futuro melhor: “o futuro dos
filhos que doei... muito melhor para eles”. Como uma de suas exigências quando entregou
os filhos foi poder ter contato com eles, sempre que pode vai visitá-los nos finais de
semana, mas decidiu que irá diminuir as visitas, pois não quer atrapalhar a vida dos filhos.
Ao contar sobre como o primeiro filho que ela entregou a chama ela se emociona: “antes
ele me chamava de mãe-2 Bianca, agora é só Bianca”. O primeiro filho que entregou, hoje
tem cinco anos e o segundo quatro meses.
Atualmente sua primeira filha ainda mora com a tia, que recebe para cuidar dela,
mas essa situação a tem incomodado bastante. Sente que a relação com sua filha está
enfraquecendo, pois em algumas situações não a chama mais de mãe somente pelo nome.
Parece-nos que a entrega de seus filhos ainda a deixa bastante abalada,
principalmente do segundo filho, pois é muito recente. Relata não estar arrependida por
achar que foi o melhor para seus filhos, porque não tinha condições de proporcionar-lhes
uma vida melhor. “Agora é pensar em não fazer de novo, porque dói o coração da gente
sabe, mas saber que eles estão bem não dói muito não, dói de saudade mesmo”. E sua
intenção agora é “recomeçar uma nova história”.
História montada a partir das pranchas do TAT – Bianca demonstrou muita
dificuldade para contar uma história a partir das pranchas do TAT, não sabia como iniciaria
a história: “Nossa! Você quer fazer um quebra cabeça comigo hoje. E agora?”. Essa
dificuldade nos parece ser em relação a sua própria história, pensar em como tudo
aconteceu e nos motivos subjetivos que a levaram a tal decisão foi algo que Bianca ainda
não havia feito, isso também se explica pelo fato da história contada ser e não ser sua, ou
seja, ela começou contando a história de uma personagem, mas em vários momentos a
confundia (e nos confundia) com sua própria história e se referia à personagem como sendo
ela mesma, contando uma história de doação, abandono e privação. A ordem das pranchas
foi: 7MF, 3MF, 14, 9MF, 8MF, 12F e 16, ela não utilizou a prancha 4, montou essa ordem
na medida em que ia contando a história (descrições das pranchas p.29 e anexos).
Algumas pranchas nos chamaram a atenção: 7MF – ela iniciou com esta prancha
dizendo que era uma menina com um bebê no colo, e sua mãe ao lado. A menina não sabia
o que fazer e decidiu “dar” seu filho. A partir desse início, ao dizer que era “uma menina
com sua mãe ao lado”, poderíamos inferir que foi por sua mãe que ela primeiramente se
sentiu abandonada e sem apoio?
Continuou a história contando sobre um arrependimento inicial, mas depois
superado porque a personagem (ela) não possuía condições de continuar com os filhos.
Chorou, foi para a escuridão. O que nos remete à representação simbólica da solidão em
que se encontrou, tomou essa decisão por não ter o apoio de ninguém, por estar só. Por isso,
como contado a partir da prancha 9MF, ela saiu procurando alguém que pudesse ajudá-la,
mas não encontrou. Nessa parte ela completou dizendo que também foi procurar ocupar a
mente, um emprego, exatamente o que ela foi fazer. Contou que ficou bastante pensativa, e
voltou para a personagem, “ela estava pensando no filho dela, que era por amor que ela
estava agindo” (prancha 8MF). Não nos resta dúvidas que se ela tivesse encontrado o apoio
necessário para ficar com seus filhos, pelos companheiros, parentes ou patrões, não os teria
dado, e como ela mesma disse: “era por amor que ela estava agindo”.
As considerações que ela fez a partir da prancha 12F também nos chamaram muito
a atenção, pois ela disse que foi aonde encontrou um apoio. Referiu-se à velha atrás da
moça, como sendo sua patroa e disse “ela me deu apoio na hora que eu mais precisei”.
Estaria Bianca se sentindo apoiada por ter conseguido um lugar para ficar, mas ao mesmo
tempo magoada por não ter podido levar com ela os filhos? Será que ela estava realmente
se sentindo apoiada? Ou qualquer forma de apoio para ela é suficiente devido às privações
e carências que passou?
A última prancha utilizada foi por nós incluída (prancha 16). Ao questionarmos o
que representaria para ela a inclusão de tal prancha ao final de sua história, sem pensar ela
respondeu: “um recomeço. Recomeçar uma nova história”. Um outro detalhe também nos
diz muito: a não utilização da prancha 4, pois não utilizá-la nos permite inferir a rejeição
que ela sente em relação a seus parceiros, por sentir-se abandonada não permite que
participem de “sua” história, como eles mesmos não quiseram.
6.1.1 – Núcleos de sentido subjetivo construídos para Bianca
A partir dos encontros realizados com Bianca, durante a técnica do completamento
de frases e do TAT, pudemos encontrar vários indicadores que nos permitiram construir
alguns núcleos de sentido subjetivos para ela:
De abandono em abandono: “Eu não tive o apoio de ninguém”.
Este nos parece ser o núcleo de sentido que mais expressa o que mobiliza Bianca, e
nos faz pensar sobre sua opção pela entrega para adoção. Pois, apesar de não ter
consciência disso, sua história foi repleta de abandonos e, assim, pensamos que se repete
sua história de abandono. Logo no início de sua vida, Bianca passou pela separação de seus
pais, e como foi sua mãe que os deixou, ela sofreu muito sua perda, não somente a presença
física, mas também sua referência como mãe, sentindo-se abandonada por ela, como
pudemos observar no completamento de frases: “minha mãe... uma mulher a qual pude
chamar de mãe”. E, após esta perda, não teve nenhuma presença significativa que pudesse
substituir a figura de sua mãe, pois foi morar com uma tia que logo faleceu, e depois com
os avós. Bianca não se encontrou mais com sua mãe, somente no enterro de seu pai que,
“ela veio e mal viu os filhos”. Quando fala de sua mãe expressa certa mágoa, por sentir-se
de fato abandonada por ela, “eu não a perdôo não”.
A morte de seu pai foi outra perda bastante significativa para ela, pois foi dele que
recebeu amor e cuidado, sendo uma pessoa muito importante para ela, como apareceu no
completamento de frases: “meu pai... uma das coisas mais belas da vida”. Mas sua morte
também teve uma representação de abandono para ela, pois antes de passar a consumir
cronicamente o álcool, ele a deixou, junto com os irmãos, na casa dos avós para ir morar
sozinho, e começou a se embriagar por causa de sua esposa, a mulher que os abandonou.
Mas ao falar dele, não expressa nenhum rancor como em relação a sua mãe, “foi minha
mãe que foi embora, não o meu pai”. Bianca cresceu na casa dos avós, e “meio que
trabalhava como empregada da casa”, o que unido à ausência de seus pais, reforçou sua
carência afetiva, o que pôde ser confirmado futuramente em sua vida, pois passou a investir
em relacionamentos pouco seletivos que somente a trouxeram sofrimentos.
Bianca engravidou cedo e aos dezesseis anos teve sua primeira filha. Envolveu-se
em mais dois relacionamentos, que duraram aproximadamente dois anos, dos quais
engravidou e teve mais dois filhos. Nesses três relacionamentos, Bianca não encontrou
nenhum apoio, e foi abandonada em todos eles, pelo mesmo motivo: uma gravidez não
planejada. Essa repetição de abandonos em sua vida reforça nossa suspeita em relação a sua
baixa auto-estima, carência e imaturidade emocional, por se permitir envolver-se em
relacionamentos destrutivos, nos quais não conseguiu nenhum apoio, somente
discriminação e abandono, como apareceu na história do TAT, “meu namorado me
abandonou... é um caso complicado”. Bianca ao montar sua história rejeitou a prancha de
número 4, cujo desenho é de um homem e uma mulher juntos, sendo que ele não olha para
ela, e ela o segura pelos ombros. Ao não usar esta prancha Bianca nos permite inferir seu
sentimento de rejeição por seus parceiros, pelos quais foi abandonada, sendo que para ela
nos parece muito difícil assumir tais rejeições, principalmente por ter sido também, por não
ter o apoio deles que decidiu pela doação de seus filhos. O que nos remete ao
completamento de frases: “o que me faz sofrer... descobrir a verdade”, a verdade de que
foi abandonada, e trocada por outras mulheres?
Bianca também não pôde contar com o apoio de sua família, pois quando precisou
ser acolhida e pediu ajuda a sua tia, essa recusou. Na história do TAT, ela relata que seus
tios disseram para que ela ficasse com seu filho, mas não ofereceram nenhum tipo de ajuda,
somente a discriminaram e a abandonaram. Para Bianca, como surgiu no completamento de
frases, “minha família... meus irmãos”, sua família se restringe aos irmãos, talvez por se
ver abandonada pelos outros familiares, que não a ajudaram quando precisou. O que nos faz
questionar que, se ela tivesse conseguido pedir ajuda aos irmãos, sua história seria
diferente? Se ela tivesse conhecimento do serviço prestado pelo Estado, pela figura da Vara
da Infância e da Juventude, especificamente pela Seção de Adoção, e tivesse se beneficiado
dele, sua história seria diferente? “Se eu pudesse... procurava ajuda dos meus irmãos”.
Bianca foi mais uma vez abandonada: pelo Estado, por não se fazer conhecer, ou mesmo
por não oferecer uma maior rede social de apoio e de acesso a direitos dela e das crianças.
Esse assunto nos remete a um outro abandono sofrido por Bianca: em seus
empregos, por seus patrões. Quando engravidou de seu segundo filho, foi acolhida por sua
patroa, mas essa não a ajudava muito apesar de conviver diariamente com seu sofrimento: a
fome de seu filho. “Ela parecia minha mãe, mas na hora de ajudar mesmo, não ajudava”,
frase que também nos mostra seu ressentimento em relação a sua mãe. Após a doação, foi
demitida e começou a trabalhar em outra casa. Novamente ficou grávida, mas seu patrão
não aceitou e a demitiu, procurou emprego nas outras casas nas quais já havia trabalhado,
mas ninguém quis acolhê-la. Somente lhe deram emprego quando não estava mais grávida
e nem com filho, pois apesar de não ter entregue sua primeira filha para adoção, teve que
pagar sua tia para cuidar dela, para poder manter seu emprego. Em que medida ela
consegue, diante das condições com que pode contar, ser efetivamente mãe dessa filha?
Várias formas de abandono perpassaram a vida de Bianca, o que a fez sempre se
sentir sozinha, abandonada. “Não gosto... de me sentir sozinha”.
Privação X Sobrevivência: “É difícil... a arte de sofrer”.
Bianca passou por várias privações, não somente afetivas como financeiras, pois
desde quando morava com seus avós já trabalhava, e sem remuneração. Podemos relacionar
essa privação a uma forma de exploração, trabalhava em troca de moradia e alimento. Ao
ser convidada para morar com sua tia, aqui em Brasília, a história não foi diferente, cuidava
de suas filhas e não recebia nenhuma remuneração para esse serviço. Trabalhava
novamente em troca de alimento e moradia.
Nos empregos que possuía, ela sofria algumas privações e explorações. Um de seus
sofrimentos foi a insensibilidade de sua patroa em relação ao sofrimento de seu filho diante
da fome, devido a escassez de leite que produzia e a sua dificuldade financeira. Esse
também foi um dos principais motivos que a levaram a entregar seu filho para uma pessoa
que tivesse mais condições, principalmente de alimentá-lo, “não queria ver meu filho
passando fome”. Ela vê em seu novo e atual emprego uma oportunidade de crescimento, de
melhorar de vida, pois agora pôde retomar os estudos e recomeçar: “meu trabalho... aquela
oportunidade”.
O futuro de seus filhos foi uma de suas preocupações quando pensou na entrega, o
que nos permite inferir que ela não queria que sua história se repetisse em seus filhos, um
história de privação e dificuldades, “eu não me arrependo do que fiz, eu fiz pensando neles,
no bem deles, eu sei que eles estão bem, eu estou vendo”. Talvez isso fez com que ela
decidisse, já na gravidez, pela doação de seu terceiro filho, por não querer vê-lo passando
fome como o segundo.
Ao apresentar no completamento de frases “é difícil... a arte de viver”, e “a vida...
saber viver”, nos permite pensar que sua vida foi cheia de sofrimentos, mas apesar de tudo,
ela tenta sobreviver. “Eu não tenho onde morar, mas eu penso em me casar, ter minha
casinha e morar com a minha baixinha”, “meu futuro... um futuro melhor”. Permite-nos
afirmar que além das privações financeiras sofridas por ela, algo que muito lhe marcou em
sua vida, foram as privações afetivas, os afetos que não teve, o cuidado, o apoio.
Doação: Ato de abandono ou de amor?
Ficou-nos claro, depois de todos os encontros e as técnicas realizadas com Bianca,
que sua atitude de entregar seus filhos para adoção foi uma forma de preservá-los de todas
as experiências ruins pelas quais passou, os abandonos, as privações, os sofrimentos.
Podemos então pensar na doação como sendo um ato de abandono ou de amor?
No completamento de frases, várias vezes ela se refere à entrega com uma grande
ambivalência: “lamento... ter dado os meus filhos”, ao mesmo tempo em que diz não se
arrepender por ter feito o que achava ser o melhor para eles; “quando penso no filho que
doei... meu coração”, e ao mesmo tempo “o futuro do filho que doei... muito melhor para
eles”. Podemos considerá-la como uma mãe desnaturada? Ou uma mãe que ama, mas
renuncia pensando no melhor para os filhos?
Seu conforto consiste na certeza de poder acompanhar de perto que seus filhos estão
sendo bem cuidados, alimentados e amados por suas novas mães, como apareceu na
história do TAT: “ela ta cuidando, dando amor, dando carinho, então... é a mãe dele”.
Essas palavras lhe saem com grande dificuldade, pois “sinto falta... dos meus filhos”,
“amo... os meus filhos”, “o tempo mais feliz... encontrar meus filhos”, é o que mais
aparece em suas respostas ao completamento de frases, reforçando nosso pensamento de
que a entrega foi realmente um ato de amor e uma alternativa resultante da total falta de
condições para o exercício da maternidade: “sou uma mãe... o verdadeiro amor”. Sua
exigência de poder ver os filhos também nos confirma sua preocupação e amor para com os
filhos, preocupação esta que sua mãe não teve.
Ainda assim, sabe-se que seu ato de amor implica em separar-se dos filhos, talvez
por isso que uma de suas maiores preocupações consiste no perdão dos filhos: “minhas
opções... haverá perdão para os meus erros”, “o passado... ainda resta uma esperança”,
pois acredita que quando eles estiverem maiores, irão procurá-la para saber os motivos que
a levaram a tomar tal atitude, e percebemos que tem uma esperança em que eles a perdoem
e voltem a viver com ela: “eu prefiro... merecer ser perdoada”.
No caso de Bianca, tivemos algumas dificuldades para construir nossas
interpretações, porque as duas primeiras entrevistas gravadas foram perdidas, o que
diminuiu a quantidade de informações referentes ao caso. Mas outra questão também foi
muito importante: sua própria falta, suas privações.
A dificuldade de pensar em sua vida e história, as privações sofridas, principalmente
intelectuais, dificultaram sua capacidade de reflexão intelectual, o que pudemos observar
nas frases um pouco truncadas do completamento de frases, como por exemplo, “eu
secretamente... nestas palavras está a verdade”. O que apesar de dificultar não impediu
nossa interpretação, pois como no exemplo supracitado, percebemos que foi muito
importante para ela falar do que realmente sentiu em relação a entrega de seus filhos.
Essas privações, intelectuais, financeiras e afetivas influenciaram diretamente na
vida de Bianca e principalmente em sua decisão pela entrega. Projetou para vida dos filhos
todas as privações que passou, pois foi a única forma que ela conheceu em sua vida, e com
isso decidiu preservá-los de todas essas privações que sofreu, dando-os para alguém que
pudesse oferecer para eles aquilo que ela não poderia.
As privações não foram as únicas influências em sua vida, mas também, e
principalmente, os abandonos. Primeiramente por sua mãe, depois por seu pai, por sua tia,
pelos avós, pelos parceiros, pelos patrões, e esse abandono se repete em seus filhos. Seria
então um reflexo de todas as experiências que passou, de todos os abandonos?
Retomamos as colocações de Daher, Laloni e Baptista (1999) que afirmam que a
decisão pela doação parece ser o caminho mais rápido e eficaz, e que muitas vezes não é
exclusiva da mãe, mas responde às pressões sociais e familiares. O que percebemos na
história de Bianca é que, ao estar sozinha, sem o apoio de seus familiares, para garantir seu
emprego e principalmente para preservar os filhos de suas experiências negativas, foi que
os entregou para adoção.
Concluímos nossa discussão a respeito do caso de Bianca com uma indagação feita
por Motta (2005), como pontuamos anteriormente em nossa fundamentação teórica: “como
situar a crítica feroz àquelas jovens solteiras que pressionadas pela família, abandonadas
pelo parceiro, sem emprego, e às vezes sem lugar para morar?” (2005, p.60). Podemos
acrescentar que o amor perfeito imposto à maternidade é realmente um mito, por existirem
sentimentos ambivalentes na relação de uma mãe com seu filho. Porém o amor existe! Não
como foi socialmente idealizado, não como um mito mas, considerando a subjetividade de
cada indivíduo, o amor existe na medida e na diversidade que foi possível a cada sujeito.
Não podemos esperar que uma pessoa ofereça aquilo que não recebeu, o que acontece com
muitas mulheres que abandonam seus filhos, o fazem porque antes foram abandonadas.
E as mães doadoras? Concordamos com Motta (2005) na substituição do termo
abandono por entrega, para substituir um termo completamente estigmatizado por um termo
que possibilite a inserção do amor em tal ato, não nos restando dúvidas que seja uma
atitude de amor, a melhor e única maneira que encontraram para preservar seus filhos, para
amá-los.
6.2 – Construções a partir das informações de Isis
Identificação e História Familiar: Isis tem 25 anos, é solteira, natural de Brasília,
possui o ensino médio completo e trabalha como gerente de vendas em uma empresa
particular de grande porte. Mora sozinha numa casa alugada no entorno de Brasília. Isis
teve sua primeira filha e a entregou para adoção há cinco meses.
Ela e sua família, pai, mãe e irmão, sempre moraram no entorno de Brasília, mas
quando tinha por volta de um ano de idade, seu pai teve que voltar para sua cidade de
origem, por motivos desconhecidos por ela, e a chamou para acompanhá-lo, mas ela não
quis. Foi quando seus pais se separaram. No Completamento de Frases, em relação ao seu
pai, ela colocou que “meu pai... ele nos deixou, não nos procurou”. Relatou que não
conhece o pai nem por fotos, no entanto descobriu que sua mãe não lhes contou as vezes
em que ele os procurou, não permitindo que nenhum contato fosse feito. Assim, ela e seu
irmão mais velho foram criados por sua mãe. Seu irmão se casou e teve uma filha que hoje
tem seis anos, e sua mãe mora sozinha perto de sua casa.
Isis começou a trabalhar desde cedo, sendo que com dezoito anos trabalhou com
carteira assinada, e com vinte e dois anos decidiu ir morar sozinha. Em seu relato expõe que
não mantinha uma relação amigável com sua mãe e por isso tomou tal decisão: “eu achei
melhor ir morar sozinha, não vou viver do jeito que ela quer”, o que nos faz pensar que sua
mãe exercia uma grande influência em sua vida, querendo que ela agisse conforme suas
vontades. Entretanto, parece-nos que Isis possui um sentimento bastante ambivalente em
relação a sua mãe, pois ao mesmo tempo em que afirma não querer, volta a morar com ela
para ajudá-la assim que entregou sua filha para adoção.
Relata que sua mãe precisa de ajuda, mas não quer ser ajudada, “ela rejeita essa
ajuda de alguma forma”, mas se os filhos não oferecem tal ajuda “ela não joga na cara,
mas faz muitas indiretas”, porque acredita que por tê-los criado, eles têm a obrigação de
ajudá-la. Assim, ao mesmo tempo em que ela relata não concordar com tais cobranças, se
sente na obrigação de retribuir a mãe por tudo que ela já fez, pelo fato de ser sua filha.
Sua percepção de família é bastante conturbada, pois suas referências são: o
abandono do pai, a relação ambivalente e conflituosa com sua mãe, e a distância do irmão.
“Tem gente que diz que na família se pode tudo, não sei qual o conceito que eles têm de
família, que você pode dizer o defeito do outro, que é um ambiente mais íntimo, e não é
assim. É ao contrário, eu acho. Tem coisas que são ditas só pra espetar o outro mesmo,
pra machucar”.
História da gravidez do filho que entregou: Isis mantinha um relacionamento há
aproximadamente três anos, com um rapaz de vinte e três anos. Relatou que sempre usou
anticoncepcional, no entanto devido a um tratamento de cisto nos ovários, parou de usar,
pois não podia engravidar. Após o término do tratamento, como havia parado de tomar o
anticoncepcional há um mês, acabou engravidando nesse período, apesar de relatar que
sempre se preveniu, “eu fiquei sem tomar o remédio, mas eu sempre me preveni, mas aí
alguma coisa aconteceu, ninguém tá livre, aí fiquei grávida”.
Relatou que a princípio não sabia que estava grávida, e se a empresa na qual
trabalha não a fosse demitir, devido a um fato que aconteceu com ela (um roubo em seu
caixa), só ficaria sabendo da gravidez quando sentisse alguma coisa. Antes de demitir os
funcionários, é rotina a empresa fazer o pedido de vários exames, inclusive o de gravidez,
pois se a mulher estiver grávida não pode ser demitida, foi quando tomou conhecimento da
intenção de demissão da empresa. Pediram que fizesse esses exames, e foi a partir de seus
resultados que descobriu que estava grávida, “aí pra mim também foi um susto, porque eu
não sabia, e eu vinha sempre me prevenindo”. Teve uma gravidez tranqüila, fez o pré-natal
corretamente, e relatou não ter sentido muitos enjôos, somente um desmaio no início da
gravidez.
Quando contou para sua mãe sobre a possibilidade de estar grávida, ela não aceitou
e queria que fosse feito um aborto, principalmente porque ela não gostava do pai da
criança, “mas eu não quis”. A notícia para seu namorado teve o mesmo impacto: a não
aceitação e proposta de aborto, e após isso ele viajou, não a procurou mais, “sumiu”.
História da doação: Isis decidiu pela doação quando estava com oito meses de
gravidez, e vários fatores influenciaram em sua decisão. Um dos fatores foi a intenção de
demissão da empresa na qual trabalhava, pois como iria sustentar sua filha sem seu
emprego e, principalmente, sem ter o apoio de seu namorado e nem de sua mãe?
Disse que a família de seu namorado não teria como ajudá-la, pois mesmo que eles
dissessem que a apoiariam, seu namorado estava desempregado, “numa fase de
desinteresse total por qualquer coisa”. Relatou que eles não se negaram a ajudar, mas que
achava que estavam esperando que ela fosse pedir alguma ajuda, mas ela não quis, pois já
havia comunicado seu namorado dos acontecimentos e esperaria dele uma atitude, “ele
também tem que se conscientizar das responsabilidades dele”. Disse que não contou para
ele sobre sua decisão, porque já não tinha mais notícias dele, já não estavam juntos: “eu
conversei com ele no dia, mas não sei o que ele achou, se eu fiz de propósito, não sei o que
se passou na cabeça dele para ter falado para eu tirar e tudo. E aí como eu não encontrei
mais com ele, eu não sei o que ele pensa, se ele se arrependeu...”.
Parece-nos que a opinião de sua mãe teve um peso maior em sua decisão, pois
apesar de não ter feito o que ela queria, o aborto, vários indicadores nos fazem inferir que
sua decisão foi tomada pensando em sua mãe: “tem hora que eu sinto que fui covarde..., de
certa forma também eu não queria dar um desgosto pra minha mãe..., eu achei que ela ia
mudar o jeito dela, mas não foi bem assim que aconteceu, ela é uma pessoa muito fria”.
No complemento de frases apareceu que ela gostava de ter a consciência tranqüila, “de não
ter feito nada por imposição de ninguém”, o que nos fez relacionar com a vontade de sua
mãe que ela realizasse o aborto, pois ao mesmo tempo em que fazer a vontade da mãe
incomodaria sua consciência, não poderia desapontá-la, optando assim pela entrega para a
adoção: “eu teria me arrependido mais se eu tivesse abortado, seria diferente hoje”. Isso
reforça nossa idéia de que sua decisão foi muito influenciada pelo desejo de sua mãe, pois
no completamento de frases também aparece “lamento... por ter feito a entrega da minha
filha”.
Isis, quando decidiu pela entrega para adoção, fez como poucas mulheres que têm
essa intenção fazem, procurou saber sobre o serviço realizado pela Vara da Infância e da
Juventude, especificamente pela Seção de Adoção. Foi atendida por uma equipe
multidisciplinar que escuta essas mulheres com o intuito de confirmar o desejo da entrega.
Com isso teve um espaço de escuta e orientação em relação aos seus sentimentos e as
devidas providências que deveriam ser tomadas. Ressaltamos que para Isis esses
atendimentos foram essenciais, pois sentiu nesse Serviço uma forma de apoio, o qual ela
não teve nem pelo pai da criança nem por seus familiares, especialmente por sua mãe.
Após o nascimento de sua filha, os servidores que trabalham na Vara da Infância
foram ao hospital buscá-la e ela os acompanhou, levando a criança no colo, até a Vara da
Infância, onde foi novamente ouvida para confirmar o desejo pela doação e efetivar a
entrega de sua filha.
Filha doada: Sua maior preocupação é em relação ao futuro da filha que doou e
gostaria de poder ter notícias suas, mas foi informada que isso não será possível, pelo
menos até que a criança manifeste esse interesse. No completamento de frases apareceu que
“quando penso no filho que doei... fiz pensando no melhor, mesmo que eu sofra”, o que
nos faz pensar que tal decisão causou bastante sofrimento para Isis, o que pôde ser
confirmado nos encontros que tivemos com ela.
Relatou que nos primeiros dias se arrependeu bastante, mas depois conforme as
coisas foram acontecendo, “acho que foi a melhor coisa que eu fiz... só Deus vai dizer, o
tempo, só o tempo vai poder falar”. Quando fala que foi a melhor coisa que fez, nos faz
pensar em uma outra fala sua, sobre o convívio que sua filha iria ter, “um ambiente de
disputa, o tempo todo de recriminação também”, o que nos parece que essa também era
uma de suas maiores preocupações: que sua filha pudesse ter o amor e carinho que ela não
teve, nem do pai por sua ausência, nem da mãe, e assim talvez não soubesse como passar
isso para sua filha: “eu vivi sem meu pai, e minha mãe criou a gente... ela não deu carinho,
essas coisas que faz parte para todo mundo”.
Nos primeiros encontros, Isis mostrou-se bastante deprimida, no completamento de
frases escreveu que “freqüentemente... sinto vontade de chorar”, o que nos parece estar
relacionado não somente a sua decisão pela adoção, mas também ao sentimento de
abandono, especialmente por sua mãe, e ao período de luto em que se encontrava, o que é
esperado, pois o estudo foi realizado há cinco meses após ela ter dado à luz e realizado a
entrega de sua filha.
Atualmente Isis foi transferida para outra filial da empresa aonde trabalhava e
mantém o cargo de gerente de vendas, mas aguarda ser chamada em um concurso público
no qual foi aprovada, com uma classificação relativamente boa. Voltou a morar sozinha,
mas pretende morar com sua mãe para poder ajudá-la melhor: “apesar de tudo que ela me
fez, tudo que eu não vou poder dar para minha filha em questão de ajuda, eu pretendo
ajudar ela agora”.
História montada a partir das pranchas do TAT – Isis primeiramente olhou
atentamente todas as pranchas e montou uma ordem. Depois iniciou sua própria história. A
ordem das pranchas foi: 16, 4, 14, 8MF, 12F, 3MF e 7MF, ela não utilizou a prancha 9MF
(descrições das pranchas p.29 e anexos).
Logo ao iniciar sua história, a prancha escolhida nos chamou atenção: a prancha em
branco. Podemos usar sua própria fala para iniciar nossa explanação: “não é que não tenha
importância ou influência, porque branco significa nada, não é que não seja nada”,
podemos inferir a relevância desse acontecimento em sua vida, como se mostrou bastante
mobilizada e ambivalente em relação à doação. Ao prosseguir sua história relatou que foi
para seu namorado que contou primeiro sobre a gravidez, e sua atitude foi exatamente
como no desenho da prancha 4, indiferente, olhava para outro lado como se não lhe
dissesse respeito o que ela estava contando e simplesmente respondeu: “se vira, tira”. Em
seu relato percebemos que se ele a tivesse apoiado, ela teria ficado com a criança:
“financeiramente a gente ia passar por uns apertos, mas dava”, o que a fez sentir-se
“humilhada”, pois relatou que ele sempre dizia que queria ter filhos, “mas quando surgiu a
oportunidade ele não quis”. Ao ser questionada sobre seu namoro, contou que o mantinha
principalmente pelo relacionamento com a família dele, o que nos fez pensar que se sentia
acolhida por essa família, a qual ela não tinha, e dessa forma também se sentiu abandonada
por eles, sentindo-se muito só (prancha 14).
Continuou sua história com a prancha 8MF referindo-se à solidão, principalmente
no momento da decisão, foi quando procurou se informar a respeito do serviço da Seção de
Adoção da VIJ/DF. Percebemos a importância dessa procura em sua fala: “porque eu
queria alguém que já estivesse sendo acompanhado, que realmente a quisesse”, pois
mostra sua intenção de garantir uma família “saudável” para sua filha, diferente da sua, “foi
o que eu achei melhor”. Nesta mesma prancha perguntamos sobre a expressão no rosto da
mulher, o que ela respondeu ser de preocupação, tanto com a reação das pessoas diante de
sua atitude, quanto da reação de sua filha quando soubesse da verdade de sua história
(quando fala de sua filha chora bastante).
A prancha 12F foi a que mais nos chamou a atenção, pois retrata a relação com sua
mãe. Ela a identificou com a “velha estranha” da prancha, o que nos mostra uma
ambivalência de sentimentos em relação a ela, acreditamos que existam sentimentos fortes
de amor e ódio, pois ao mesmo tempo em que não consegue se separar de sua mãe,
expressa com convicção que gostaria de se afastar dela. Ao contar sua história, relatou
exatamente isso, sua vontade de se distanciar de sua mãe, pois percebe que ela sempre a
influencia a tomar a decisão errada, o que nos remete à decisão pela adoção. Isso nos faz
questionar: se sua mãe não a tivesse influenciado, ela teria entregue sua filha para adoção?
Ao mesmo tempo, Isis se questiona se não está sendo cruel e injusta com sua mãe, o que
reforça nossa idéia da forte presença de ambivalência nessa relação.
Contou que quando falou com sua mãe sobre sua gravidez ela foi incisiva em sua
decisão: “aborte”, e como Isis decidiu não obedecê-la, sua mãe a boicotava de todas as
formas em relação a sua gestação: “ela brigava comigo quando eu me alimentava, porque
ela queria que eu perdesse”. Contudo em relação à decisão para nós sua fala mais marcante
foi: “fiquei preocupada com a rejeição que ela ia ter por mim depois”, pois foi uma
resposta a nossa pergunta sobre com o que ela se preocupava por não ter feito o que sua
mãe gostaria que ela tivesse feito. O que nos parece é que essa atitude foi muito
influenciada pela opinião de sua mãe. Ou só realizada devido à atitude de sua mãe? A
próxima prancha corrobora nossa idéia, pois suscita seu sentimento de arrependimento em
relação à entrega de sua filha: “a única certeza que eu ia ter era o carinho da minha filha”
(prancha 3MF).
A prancha que utilizou para terminar sua história evidencia a ambivalência de
sentimentos que experimentou na sua maternidade, pois relatou que o olhar da menina
significava sua decisão pela entrega, ou seja, a distância entre ela e sua filha. Ao mesmo
tempo em que segurar o bebê no colo significava sua vontade: “eu queria estar com ela”.
Isis conclui dizendo que se pudesse contaria uma história muito diferente, mudaria desde a
influência que permitiu sua mãe exercer em sua vida, “eu faria muita coisa diferente”, o
que nos permite incluir a entrega de sua filha.
6.2.1 – Núcleos de sentido subjetivo construídos para Isis
No caso de Isis, também foram criados três núcleos de sentido subjetivo a partir dos
encontros realizados e das técnicas do Completamento de Frases e do TAT, que nos
permitiram vários indicadores que contribuíram para tais construções.
Doação X Aborto: “Eu prefiro... ter entregue à adoção do que ter abortado”.
Pudemos perceber que a notícia da gravidez teve um impacto muito forte na vida de
Isis: em seu trabalho, em seu relacionamento e em sua família. Em nenhum momento ela
teve alguma forma de apoio, estava prestes a perder seu emprego, sua mãe e namorado não
se propuseram a ajudá-la, muito pelo contrário, indicaram a prática do aborto. “Me senti só.
Eu achei que minha família fosse me ajudar e tudo, mas nem quiseram saber do problema.
Eu praticamente não vou lá mais, na casa do meu irmão. Mas se for alguma coisa pro
benefício dele, ele me chama”. Seu relacionamento acabou, pois seu namorado também
propôs o aborto por não querer assumir esta responsabilidade com ela. Em todos os
momentos ela esteve sozinha, abandonada, e assim não conseguia ver perspectiva nenhuma
para a inserção e aceitação de sua filha em sua vida: “teve uns dias que passei mal e as
pessoas da minha família não quiseram me acolher, se eu que sou adulta doente não
quiseram me ajudar, imagine eu com uma criança, é bem mais difícil”. Em relação a sua
família, no completamento de frases Isis respondeu: “minha família... é cada um por si”.
No seu emprego, queriam demiti-la injustamente, e só não o fizeram porque
descobriram que estava grávida. O único impacto desta notícia para a empresa foi a
impossibilidade de demiti-la, pois em nenhum momento lhes ofereceram qualquer tipo de
ajuda. Ao contrário, duvidaram do exame feito por ela, desconfiando que ela tivesse pedido
a outra pessoa para fazê-lo: “eles me mandaram de novo, na empresa conveniada,
mandaram o médico me acompanhar pra saber se estavam tirando o sangue do meu braço
mesmo, pra ver se não era outra pessoa pra eu poder não perder o emprego, já que eu tava
sendo demitida. Na hora que o médico me acompanhou não passou nada na minha cabeça,
mas depois eu fiquei pensando, qual a necessidade? É uma coisa absurda”. Tirou sua
licença maternidade e retornou ao emprego, agora em outra filial, mais distante de sua casa,
e em nenhum momento lhe perguntaram se precisava de alguma ajuda: “as pessoas que
trabalham na empresa, pelo menos na área que eu trabalho, são muito... elas não vêem o
ser humano. Nas horas difíceis ninguém quis me ajudar, mas pra saber da minha vida pra
fofocar, todo mundo quer saber”.
A primeira pessoa para quem Isis contou sobre sua gravidez, foi para seu namorado,
contudo ele não aceitou, “simplesmente achou que não era com ele”, o que contribuiu para
que seus sentimentos em relação a ele fossem transformados: “eu gostava muito dele, mas
chegou um momento que passei a ter raiva”, pois como observamos no completamento de
frases: “o pai do meu filho... precisa aprender que a vida não é como ele pensa”. Essa
postura de seu namorado também destruiu as esperanças de Isis em constituir uma família
com ele, “sempre quis... estar com uma pessoa com quem pudesse formar uma família
diferente da minha”, e de preservar seu relacionamento com a família de origem dele, pois
relatou que estava cultivando seu namoro para preservar seu relacionamento com eles,
“uma coisa é você nem ir à casa da pessoa, outra é ser praticamente da família”. Essa fala
nos permite concluir que este relacionamento significava muito mais que um namoro para
ela, mas uma família na qual pudesse sentir-se incluída, uma família que ela não tinha. Por
isso, o abandono sofrido por seu namorado também gerou o abandono da família dele.
Além disso, observamos que Isis sofreu outros abandonos em sua vida que
acreditamos que influenciaram diretamente em sua decisão em relação a sua filha.
Primeiramente, não teve uma referência de pai em sua vida, pois no seu primeiro ano de
idade ele foi embora e sua mãe inviabilizou o contato entre eles, sendo criada com seu
irmão por sua mãe. Com isso percebemos que sua mãe assumiu o papel mais importante em
sua vida, sendo que suas opiniões são de extrema importância, o que pode ser confirmado,
assim como a grande influência que exerce em sua vida. Ela não acha que a opinião de sua
mãe seja a melhor, mas sempre acata suas sugestões, “faço o que ela quer e acabo
quebrando a cara”, e quando não o faz acaba se sentindo culpada. Mesmo que do seu jeito
esteja certo, ela se interroga: “fico pensando que se eu tivesse feito do jeito que ela queria,
se não teria sido melhor ainda”.
Apesar de ter sido fisicamente abandonada por seu pai e por seu namorado, é o
abandono que sofreu por sua mãe que mais a incomoda. “Minha mãe é..., ela deixou bem
claro que não ia ajudar em nada, e eu creio que ela não iria mesmo, até pelo jeito que ela
tá agindo agora”. Sentia-se abandonada por sua mãe, pois não recebia carinho, ou qualquer
demonstração de afeto e, principalmente, quando se viu sozinha diante de sua gravidez, sem
o seu apoio. Isso nos ficou claro diante de sua resposta ao completamento de frases: “minha
mãe... deveria se amar e amar mais”.
Diante dos abandonos sofridos, e da única opção que lhe sugeriram, Isis se viu
diante da decisão pela adoção, pois “eu prefiro... ter entregue à adoção do que ter
abortado”, e também respondeu ao completamento de frases: “considero a vida... direito
de quem não pede pra vir ao mundo”, o que confirma que o aborto para ela seria algo
inaceitável, e a doação uma forma de preservar sua filha de tudo que ela passou, de “um
ambiente de disputa, o tempo todo de recriminação também”, assim como da solidão que
sentia, pois se separou de sua família, de seu namorado, de sua filha, e como apareceu no
completamento de frases: “quando me separo de alguém... me sinto só”, pois
principalmente em sua decisão Isis estava sozinha.
O fato de estar sozinha foi a maior motivação para sua decisão, mas manter esse
desejo de não ficar com a criança não resolveu sua solidão. Teria Isis buscado a VIJ/DF
para ter companhia na decisão, para ter um encaminhamento para a filha? Para encontrar
uma família que ela não tinha?
Então, diante de tantos abandonos sofridos por ela, e por não ter conseguido achar
outra saída, foi que optou pela entrega para adoção. Como ela mesma expressou: “eu não
tinha condições de cuidar de mim, como é que eu ia cuidar de uma criança?”.
Minha mãe: meu porto (in)seguro.
Observamos que a relação de Isis com sua mãe é bastante ambivalente, pois ao
mesmo tempo em que a odeia e reprova suas atitudes, a respeita e a ama profundamente.
Isso nos ficou claro quando ela confundiu no completamento de frases a expressão: “sou
uma mãe” com “sua mãe”, o que nos pareceu uma grande necessidade de falar sobre sua
mãe, e não uma simples confusão: “ah, é sou uma mãe né? Pensei que era sua mãe, eu li
muito rápido. E diante de sua resposta “sou uma mãe... ela não leva em consideração o
sentimento dos outros”, ela completou: “é ela não leva, ela acha que..., sei lá, as coisas
pra ela são muito estranhas. No caso, eu sou uma mãe..., eu já acho que aí seria o inverso.
Que tem que ser amiga, porque tem gente que acha que não, que tem que criar e tudo, mas
são as pessoas que se criam. Porque eu acho que só dar o alimento, a casa, a roupa não é
criar, tem outras coisas importantes. Você conversar, esclarecer algumas coisas, porque a
vida não é só feita de moradia, comida e roupa, se fosse assim era mais fácil”. Esse relato
denuncia o que ela queria que sua mãe tivesse sido com ela e não foi, e mais uma vez seu
maior sofrimento gira em torno de sua mãe, e de sua ausência afetiva. Tal confusão também
poderia estar evidenciando uma crise de fundo vivenciada por Isis, que a deixava sem
confiança para exercer a maternidade: o medo de ser uma mãe como sua mãe?
Ao responder ao completamento de frases, “quando fiquei sabendo que estava
grávida... primeiro fiquei assustada, depois feliz e agora recuperando”, lhe foi questionado
o que tem sido mais difícil para ela e sua resposta foi: “não é que eu achei que minha mãe
fosse se comover com meu sofrimento, mas eu pensei que ela ia, sei lá... eu não fiz
querendo que ela prestasse mais atenção em mim, mas eu achei que ia mudar alguma
coisa. Mas não mudou tanta coisa, e as coisas caminharam do mesmo jeito, até pior”. Tal
resposta nos permite questionar se sua tristeza era por ter entregue sua filha para adoção ou
por não ter reavido sua mãe, que nos parece nunca ter tido suficientemente. Também
podemos inferir que sua decisão pela doação foi uma forma de não desagradar sua mãe,
para que talvez assim seu relacionamento com ela mudasse, melhorasse.
Podemos supor assim, que sua mãe foi quem mais influenciou em sua decisão, pois
no completamento de frases respondeu: “não quero... que a opinião dos outros interfira
mais na minha vida”, e completou sua resposta: “Apenas da minha mãe. Errar todo mundo
erra, mas ela acha que eu tenho que seguir os passos dela, mas não é assim. Eu não sei o
que ela quer, eu não vou mais ficar escutando o que ela fala apesar de ser minha mãe e
tudo, eu acho que se as coisas com ela fossem melhores eu teria relacionamentos
melhores”. Com essa fala Isis reconhece questões anteriores: sua necessidade de se realizar
como mulher, como mãe.
Pareceu-nos também que Isis esperou, até o momento da entrega, o apoio de sua
mãe, que ela mudasse de idéia e a ajudasse a cuidar de sua filha: “eu pensei que minha mãe
ia mudar de idéia também, quando ela visse, mas ela não quis nem ver, eu achei... eu fiquei
assim até... porque geralmente as mães, por mais contraditórias que sejam, depois acabam
mudando de idéia, e ela... ela não mudou de idéia de jeito nenhum...”. Assim, também
percebemos que a entrega foi uma busca pela constante aprovação de sua mãe, e acreditou
que depois da doação, suas atitudes em relação a ela fossem mudar, “primeiro eu não sabia
como ela ia reagir, como minha mãe ia reagir, porque ela não aceitava né... eu achei assim
que ela ia..., sei lá, mudar o jeito dela, e não foi bem assim que aconteceu, ela é uma
pessoa muito fria”.
Apesar de não conseguir a aprovação e o apoio de sua mãe, as atitudes de Isis, nos
confirmam ainda mais seus sentimentos de ambivalência em relação à mãe: “eu não queria
ter muito contato com ela, depois que eu fizesse isso. Eu queria seguir minha vida diferente
do que era antes”, talvez porque de certa forma culpasse sua mãe por não estar com hoje
com sua filha, “no fundo a gente sabe qual a decisão que deve tomar, mas eu deixei me
sufocar por ela”, e como apresentou no completamento de frases: “odeio... as atitudes da
minha mãe”. Contudo, ao mesmo tempo em que odeia as atitudes de sua mãe, Isis não
consegue se desvincular dela, “não gosto... de concordar com a minha mãe, por sentir no
dever”, e mesmo assim pretende “apesar de tudo que ela me fez... tudo que eu não vou
poder dar pra minha filha em questão de ajuda, eu pretendo agora ajudar ela, acho que
ela tá mais necessitada do que eu, não sei o que se passa com ela”. O que nos permite
inferir, mais uma vez, que Isis antes de ser mãe, precisa de uma mãe, e essa ajuda a que ela
se refere, nos parece não se restringir a uma ajuda financeira, mas principalmente, afetiva,
talvez numa tentativa de ter o amor, respeito, reconhecimento, apoio e cuidado de sua mãe,
os quais nunca achou que teve, pelo menos da forma que gostaria. Percebemos ser muito
difícil para ela assumir o papel de mãe, quando ainda se é tão filha, tão dependente da
própria mãe, de seu amor e aprovação.
“Fiquei preocupada com a rejeição que ela teria por mim depois, é como eu te
falei, ela não liga para os sentimentos de ninguém. Antes eu achava que era a pessoa que
eu podia confiar, mas agora não sei mais”.
Ambivalência materna: “lamento... por ter feito a entrega da minha filha”.
Na história montada por Isis, por meio do TAT, na última prancha que utilizou, a
7MF, relatou que não saberia como seria sua vida com uma filha, e no completamento de
frases completou que “meu filho... mudaria muito minha perspectiva de vida”. Na história
do TAT, essa prancha representou, por meio da boneca no colo da menina, sua vontade de
estar com sua filha, de tê-la em seus braços, e por meio de seu olhar distante, em outra
direção, a necessidade que teve de entregá-la para adoção: “ao mesmo tempo em que eu não
devia ficar com ela, eu queria”. Isso nos apresenta sua ambivalência de sentimentos em
relação a sua filha, a decisão pela entrega e a vontade de estar com ela, como pode ser
confirmado no completamento de frases: “o futuro do filho que doei... espero ser melhor do
que eu poderia oferecer”. Percebemos que ela ainda não consegue significar sua vida como
mãe, somente como filha, e que sua baixa auto-estima, pelos variados elementos de sua
história, influiu na entrega.
Isis, quando decidiu pela entrega à adoção, preocupou-se com vários fatores que
poderiam afetar sua filha: a falta de condições de mantê-la, pois não sabia se iria perder seu
emprego; o convívio que ela teria com sua família, pois ela relatou não ser muito bom
porque em sua família “é cada um por si”, e para proteger a filha de sua mãe, pois tinha
medo que ela transferisse todo ódio que sentia pelo pai da criança para ela. Por esses
principais motivos, Isis confirmou sua intenção pela entrega, o que não foi feito de qualquer
forma, foi feito legalmente: “eu queria uma coisa certa, uma pessoa que já tivesse sendo
acompanhada, que realmente quisesse. Aí eu fui lá e procurei, achei melhor”. Isso poderia
significar a tentativa de garantir que sua filha fosse amada e cuidada como ela não sentiu ter
sido por sua mãe.
Ao mesmo tempo em que se preocupou em procurar, pela Justiça, o melhor futuro
para sua filha, pois assim de certa forma sua preocupação de “se eles vão ter o cuidado que
eu teria” (ou que queria para ela por parte de sua mãe?) também seria confirmada pela
Justiça. Uma de suas maiores preocupações consiste na reação de sua filha, “quando ela
souber, como ela vai agir?”, pois como apareceu no completamento de frases: “tenho
medo... da reação da minha filha quando souber a verdade”. Sua ambivalência materna
também pode ser confirmada em algumas frases do completamento, tais como: “o tempo
mais feliz... foi quando estava grávida e só percebi agora”, “é difícil... encarar a realidade
do que fiz, não tinha noção”. Fica evidente um arrependimento pela doação, afinal não
valeu a pena, pois seu sacrifício não foi reconhecido por sua mãe. Ela não passou a amá-la
mais!
Tal ambivalência permeou a vida de Isis, desde o momento da gravidez, que para
ela foi uma experiência “que quero passar outra vez”, até após sua decisão pela entrega,
pois sempre se questionava, implicitamente, se não seria melhor ter ficado com sua filha:
“se eu pudesse voltar no tempo, eu não deixaria minha mãe influenciar em nada, muitas
coisas seriam diferentes, contaria uma história não tão trágica, e sim mais fácil de ser
contada”. Agora uma de suas maiores preocupações, além da reação de sua filha é nunca
mais vê-la: “minha maior preocupação é... nunca mais ver minha filha”.
Seria possível afirmar que para Isis, sua decisão pela entrega foi a melhor opção?
Por um lado, ela expressou explicitamente tal conclusão, mas, com a mesma certeza,
podemos concluir que sua atitude a mobilizou e ainda a mobiliza bastante, como
confirmamos no completamento de frases: “freqüentemente... sinto vontade de chorar, e
“eu secretamente... escrevo sobre o que sinto e choro”.
“A vida... é misteriosa, nunca sabemos o que vai acontecer, não sabemos o que é
certo ou errado e temos que aproveitar enquanto a temos”.
Fica claro que, como no caso de Bianca, a atitude de Isis também se caracteriza
como um ato de amor. Em ambos os casos, a questão da transgeracionalidade mostra-se
forte e decisiva, ou seja, a influência da mãe em suas vidas, o que se reflete na dificuldade
de assumir a maternidade.
Isis sentiu-se abandonada por sua mãe, pela sua falta de apoio, amor, compreensão e
carinho, sendo assim não poderia oferecer a sua filha o que não recebeu de sua mãe, e
reafirmamos: antes de ser mãe ela precisa de uma mãe. Como citamos anteriormente,
Parker (1997), a partir da visão de Melanie Klein, afirma que na maternidade a mulher
experimenta novamente os sentimentos vivenciados durante sua própria infância em relação
a sua mãe. Percebemos que ela tenta fazer de tudo para ter seu amor, até mesmo “dar” sua
filha. Porém, é em vão, pois sua mãe não consegue amá-la como ela gostaria. Isso não seria
uma forma de abandono, mesmo sem tê-la abandonado de fato? Como afirma Rodrigues
(1993 apud MOTTA, 2005, p.40) abandono “[...] inclui o descaso intencional pela sua
criação, educação e moralidade”.
Isis também foi abandonada por seu pai em sua infância, momento em que a
presença do pai é tão importante quanto a da mãe. E posteriormente por seu namorado, em
sua vida adulta, também num momento muito importante em sua vida e na vida de sua
filha. Dessa forma, não podemos ignorar tais abandonos ao olhar para a atitude de entregar
sua filha para adoção, pois ela (como Bianca) não poderia oferecer aquilo que não recebeu.
Sua história também nos permite afirmar que ela não abandonou sua filha, e sim a
entregou, pois se preocupou em todos os momentos em “garantir sua felicidade”. Desde o
momento em que decidiu pela adoção, uma de suas preocupações foi entregar sua filha para
uma família que realmente a quisesse, o que acreditou ser garantido por meio da VIJ/DF,
por isso procurou a Seção de Adoção para se informar dos processos e procedimentos
legais da adoção. Como confirmado por Freud, Solnit e Goldstein (1991 apud
RODRIGUES, 2001) a entrega pode ser uma forma de proporcionar ao filho uma família
que o queira e seja capaz de suprir suas necessidades físicas e afetivas, o que muitas vezes
seus pais biológicos reconhecem que não seriam capazes de fazê-lo. Isso não seria uma
forma de amor? Preservar a quem se ama, oferecendo-lhe o melhor, mesmo que o melhor
signifique separar-se dele? Não seria então essa entrega uma atitude de amor?
Para as duas mães-participantes foi indicado um tratamento psicoterápico, para que
elas pudessem repensar sobre suas vidas e tentassem resolver todas suas experiências de
abandono, carências e privações, e dessa forma pudessem se fortalecer e recomeçar uma
nova história, tentando diminuir a influência que essas vivências tiveram em suas vidas. Tal
indicação foi feita, assim como a disponibilidade para que nós realizássemos tal
acompanhamento, contudo ambas não quiseram e pelo mesmo motivo, a dificuldade de
conciliar os horários para o atendimento com os horários de seus empregos. Isso também se
relacionou à decisão de entregar em adoção: a dificuldade de ter tempo para se dedicar a
maternagem. Bianca apenas não entregou a filha que pôde deixar, sob pagamento, para uma
tia cuidar. Isis não possuía qualquer rede de apoio e mesmo com os programas de auxílio
do governo, não pode contar com nenhuma ajuda em relação a isso.
6.3 Entrevistas com os Profissionais da VIJ/DF
Muitas são as limitações dos trabalhos realizados com as mulheres que desejam
entregar seus filhos para adoção, dos quais podemos responsabilizar o Estado pela maioria,
por este parecer julgar desnecessário um olhar para as mães doadoras. Isso talvez seja uma
decorrência de não se acreditar que um trabalho realizado com elas poderia ter direta
influência no futuro das crianças. E se boicota assim as tentativas de fazê-lo, seja por um
número reduzido de servidores lotados para esse fim, seja por falta de verba suficiente para
realização dos trabalhos ou pela reprovação de projetos com essa demanda.
Ao analisarmos o trabalho da adoção desenvolvido no Distrito Federal, nos
baseamos em quatro entrevistas realizadas com profissionais que trabalham na equipe
psicossocial da Seção de Adoção da Vara da Infância e da Juventude do Distrito Federal –
VIJ/DF: dois psicólogos, uma pedagoga e uma assistente social.
A princípio, percebemos o número reduzido de profissionais que lidam com essa
demanda, nove profissionais responsáveis por todo processo de adoção que passam pela
VIJ/DF, que atende todo DF: cerca de 2.500.000 habitantes. O trabalho dessa equipe
abrange: a habilitação de famílias interessadas pela adoção, incluindo uma série de
entrevistas entre as partes envolvidas, assim como visitas domiciliares; cadastramento de
crianças entregues para esse fim; atendimento a mulheres que entregam seus filhos, seja
espontaneamente ou por determinações judiciais; acompanhamento dos estágios de
convivência e realização de estudo psicossocial nos processos de adoção.
Para falar das dificuldades da equipe da Seção de Adoção, devemos compreender a
adoção formal e a informal. A adoção formal consiste na procura da genitora pelo serviço
da VIJ/DF, para que assim possa ser ouvida e orientada. Quando confirmado o desejo pela
adoção, excluindo qualquer possibilidade de permanência da criança na sua família natural,
ela e a criança são cadastradas e todo processo de adoção se inicia na Seção de Adoção. Do
mesmo modo, na adoção legal / formal, há a habilitação prévia dos adotantes, o que a
equipe e a literatura evidenciam como uma importante medida profilática, especialmente
quando se realiza um processo de preparação para adoção. Já a adoção informal, conhecida
como “adoção à brasileira”, consiste na entrega direta da genitora para os pais adotantes,
procurando a Justiça somente para homologar essa entrega, não passando assim pelo
serviço psicossocial da VIJ/DF.
Assim sendo, uma das primeiras dificuldades apontadas por esses profissionais é a
adoção informal, que atrapalha direta e indiretamente o trabalho realizado na Seção de
Adoção. Essa adoção informal, permitida legalmente, tem um grande impacto porque o
perfil pelas crianças procuradas pelos pais adotantes é em sua maioria de crianças recém-
nascidas. Dessa forma, ao não cadastrarem as crianças na VIJ/DF, a fila de pais adotantes
continua estagnada, sendo que o trabalho passa a ser considerado moroso e burocrático.
Outro impacto é a impossibilidade de oferecer uma escuta qualificada para essas genitoras,
assim como verificar o significado dos motivos que as levaram a tal decisão. “A primeira
coisa que nós fazemos é ouvir essa mãe, a história da gravidez, se é uma decisão
amadurecida, qual a rede de apoio que ela tem, verificamos o vínculo familiar, e assim
nossa reação é verificar todas as hipóteses de permanência da criança na família natural.
Mantendo esse desejo, ela é cadastrada” (psicólogo).
Desse modo, as mulheres que são atendidas pela VIJ/DF são somente as que
procuram primeiramente a Justiça para realizar a entrega e assim os profissionais relatam
que seu trabalho “não é o incentivo puro e simples da entrega pela adoção, nós
procuramos, até seguindo uma diretriz do Estatuto da Criança e do Adolescente, trabalhar
a possibilidade de manter a criança no contexto de sua família natural” (pedagoga).
Podemos perceber um foco no bem-estar da criança, mas será que este espaço, além de
verificar a consistência da decisão, não poderia melhor permitir a expressão de suas
subjetividades?
Percebemos a valorização das famílias que se cadastram para adoção, em detrimento
daqueles que realizam a adoção informal: “nós valorizamos muito uma família que se
cadastra pelo interesse de adotar, abrindo suas vidas para uma investigação da Justiça
para averiguar a legitimidade dos interesses pela adoção, para que também seja verificada
a existência de um ambiente saudável para o acolhimento dessa criança” (psicólogo). A
valorização da mãe que procura primeiramente a Seção de Adoção para realizar a entrega
não foi mencionada.
O trabalho em relação às mães doadoras mostrou-se bastante inutilizado e limitado,
principalmente pela pouca procura das genitoras pelo serviço a elas oferecido: “ela é
ouvida em audiência porque a lei assim exige, mas depois ela é desligada do processo,
ninguém mais se importa com ela, por isso procuramos enfatizar que essa genitora procure
a Justiça para que possamos incluí-la numa rede de proteção” (psicólogo). Verificamos
que após a entrega a genitora é excluída do acompanhamento judicial, tenha ela feito a
entrega legalmente ou não, mostrando mais uma vez a falta de preocupação com essas
mulheres por parte do governo.
Apesar das limitações, esses profissionais conseguem identificar os principais
motivos que as levaram à entrega: primeiramente por uma grande dificuldade
socioeconômica, e por existir a questão da transgeracionalidade: “elas abandonam por
quê? Porque em algum momento foram abandonadas!” (psicólogo). Apesar dessa
identificação, devido às dificuldades da equipe, e pela castração do governo, o contato com
essas mães é limitado e muitas vezes ineficaz. “Nós não temos nenhum contato maior com
elas e existem muitas que acabam se arrependendo, entrando com o pedido de contestação.
Sendo que aquela genitora antes aliada, agora é uma inimiga. Em tese não houve pressão,
mas sabemos que ela existe, apesar de ser muito difícil sua comprovação” (psicólogo).
Todavia, percebemos que, principalmente pela necessidade de cumprimento legal, o
trabalho realizado por esses profissionais visa o bem estar da criança e do adolescente.
Dessa forma, o trabalho voltado para as mães doadoras não inclui um acompanhamento
mais efetivo, seja na verificação mais incisiva de meios de apoio, seja no acompanhamento
após a entrega, sendo essa outra limitação, a falta de um projeto que vise acompanhar o
impacto da entrega para essas mães. “As pesquisas mostram que elas não elaboram bem,
repetem, engravidam novamente. Não existe um estudo longitudinal com essa genitora,
seria até mesmo interessante. A gente vê muita situação, que depois que ela muda a vida
dela, ela tenta resgatar a criança. As informações que nós temos é que as genitoras depois
tentam fazer o caminho inverso” (psicóloga).
Também percebemos que a subjetividade dessas mulheres não é desconsiderada,
mas também não possui um lugar de destaque em seu atendimento, talvez por falta de
tempo, escassez de profissionais, ou desvio de função. Como podemos perceber na fala da
assistente social: “um dos fatores que mais aparecem é a questão socioeconômica e a falta
de apoio familiar, do companheiro, claro que por trás disso daí tem mil outras coisas, aí é
já entra essa questão emocional, onde ela não tem esse suporte emocional, então uma
coisa aliada a outra gera a motivação para a entrega”. O fato é que os fatores implícitos e
subjetivos da entrega merecem um olhar mais apurado para que, talvez dessa forma, a
quantidade de contestações por mães arrependidas diminua, sejam evitadas doações e a
procura pelo serviço aumente.
Para isso também é preciso um maior esclarecimento acerca do serviço prestado, do
que significa o abandono, a entrega, a adoção, para que assim as mulheres se sintam mais
seguras e menos recriminadas para realizarem com mais segurança a entrega de seus filhos
em adoção e menos interceptação dessas mulheres pelos adotantes informais.
6.3.1 O Trabalho Existe!?
A adoção se caracteriza como uma medida protetiva para as crianças abandonadas,
que de acordo com Rodrigues (2001) somente com o Estatuto da Criança e do Adolescente
– ECA, esse caráter da adoção se concretizou. Dessa forma, de acordo com os arts. 39/52
do ECA Rodrigues (2001) clarifica:
[...] na impossibilidade da criança ou do adolescente permanecer no seio de sua família de origem, tomando-se os cuidados para a compatibilização dos envolvidos com a natureza da medida, tornou-se possível a colocação desses menores em família substituta, sendo uma das modalidades a adoção; bem como, esta se torna uma medida irrevogável, cortando-se os vínculos com a família de origem, sendo, portanto, a criança e o adolescente os sujeitos de proteção integral (p. 29).
Assim sendo, percebemos o cuidado legal com as crianças entregues para adoção,
sendo-lhes asseguradas, legalmente, o bem estar físico e emocional. Contudo, percebemos a
necessidade da realização de um trabalho voltado para as mães doadoras, no sentido de não
somente verificar procedentes os motivos para entrega, mas para analisar subjetivamente as
questões que influenciam nessa decisão.
A escuta dessas mães a respeito de suas histórias e dos motivos que as levaram a
entregar seus filhos para adoção, além de servir para desmistificar a visão que a sociedade
tem a seu respeito, tem um papel fundamental no processo de adoção, pois permite
identificar alguns fatores que podem não ser suficientes para corroborar a entrega do filho,
e se detectados pelas mães esse ato pode ser evitado.
No entanto, essa escuta não pode estar impregnada de preconceitos, com o intuito de
convencer as mães a ficaram com seus filhos, pois isso pode ser uma violência para a mãe e
um desastre para seu filho.
O trabalho realizado com essas mulheres não pode ser feito separadamente, mas
todos os órgãos e serviços sociais devem unir-se para melhor atender a essa demanda.
Daher, Laloni e Baptista (1999) pontuam a falta de programas hospitalares direcionados
especificamente para essa demanda, enfatizando a necessidade de suporte emocional por
parte da equipe de saúde, principalmente para aquelas que não possuam um apoio social e
familiar adequado, o que normalmente é o caso das mães doadoras. Podemos perceber a
relevância da atuação do profissional de Psicologia nessa equipe e, principalmente, que seja
feito um trabalho interdisciplinar, para que os fatores determinantes da entrega possam ser
escutados e compartilhados por essas mães, e assim sejam compreendidas e orientadas, ou
até mesmo sua intenção revertida diante do apoio oferecido.
Com isso reforçamos a importância da atuação do psicólogo hospitalar junto a essas
mulheres, pois ao identificar essa decisão pela entrega, o que acontece muito nos hospitais
(DAHER, LALONI e BAPTISTA, 1999), possa oferecer-lhe uma escuta qualificada dando
voz aos motivos implícitos e inconscientes, para que à luz de suas subjetividades possam
perceber o que realmente as levaram a tomar tal decisão. De acordo com Simonetti (2004),
o objetivo da Psicologia Hospitalar é a subjetividade, pois o psicólogo oferece sua escuta
para que o sujeito possa falar de si, de sua vida ou da morte, do que pensa, sente, teme,
deseja, do quiser. Ressalta que o interesse do psicólogo hospitalar é dar voz à subjetividade
do paciente, fazendo-se essencial nesse contexto para auxiliar os pacientes como ouvinte
privilegiado e não como um guia.
Gilberti (1996 apud MOTTA, 2005), ao falar da prática profissional em relação à
adoção, afirma que há uma grande limitação nas tarefas conferidas aos profissionais que
trabalham com essa demanda, seja na consecução de crianças ou no atendimento dos
adotantes. Mas ressaltamos sua ênfase no trabalho (não) realizado com as mães doadoras:
[...] há vários problemas que são negados, desconhecidos ou que se tornam invisíveis, especialmente aqueles que dizem respeito à existência de mulheres desamparadas, muitas adolescentes, que entregam seus filhos em adoção sem desejar fazê-lo, coagidas, por exemplo, pela extrema pobreza (GILBERTI, 1996 apud MOTTA, 2005, p.75).
Motta (2005) relata que a falta de um trabalho psicológico, médico e social mais
efetivo com essas mulheres acarreta num grande problema que abrange todas as pessoas
envolvidas no processo de adoção: a contestação da mãe. A autora assinala que não é
incomum que a mãe peça seu filho de volta, após todo processo de adoção ser homologado
e os vínculos devidamente estabelecidos. Assim, o que poderia explicar essa afirmação
senão um trabalho limitado com essas mães?
Ressaltamos a importância da atuação do psicólogo jurídico, pois pode contribuir
para que o trabalho com as mães doadoras seja mais efetivo e, assim, por meio da
Psicologia, elas possam contar com um apoio e uma escuta qualificada, que não somente
tenha o intuito de informá-las a respeito dos processos e procedimentos legais da adoção,
como também possa acessar suas subjetividades, considerando todos os fatores que
influenciam em sua decisão. Assim como, possa garantir-lhes o direito de serem ouvidas e
não sejam excluídas do processo de adoção após a efetivação da entrega, mas sejam
acompanhadas, pois esta experiência terá repercussões psicoafetivas significativas na vida
dessas mulheres.
VII – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Chegando ao final desta pesquisa, consideramos imprescindível abandonar a idéia
de que a mãe que entrega seu filho em adoção o faz por não amá-lo, ou que só pense em si
mesma num ato egoísta e cruel. As construções feitas neste estudo nos levaram a perceber
que a entrega pode sim caracterizar-se como um ato de amor e grande preocupação com o
bem-estar e o futuro da criança, e que essas mulheres o fazem abrindo mão de uma
representação social avassaladora: a maternidade. Renunciam o sonho de criarem seus
filhos por se reconhecerem sem condições, sejam internas ou externas, de fazê-lo.
Para realização desta pesquisa utilizamos a Epistemologia Qualitativa desenvolvida
por González Rey (2005), que se mostrou bastante adequada, pois as características da
construção do conhecimento, de valorização da singularidade e da subjetividade do
pesquisador e do pesquisado, assim como o uso do caráter construtivo-interpretativo, foram
ferramentas imprescindíveis para o êxito da mesma.
Essa metodologia nos permitiu mergulhar no universo das mães doadoras e
compreendê-las sem o receio de uma neutralidade do pesquisador. Ao contrário, abriu
espaço para nossas interpretações e significações, confirmadas pelas participantes, a
respeito do sentido subjetivo da doação. Tal abertura nos permitiu um maior conforto para
interagir com as participantes e transformar o processo da pesquisa num espaço terapêutico,
de troca e aprendizado, evitando preconceitos e predisposto a novas representações.
Assim, a partir dos indicadores e dos núcleos de sentido construídos, pudemos
apreender que além dos motivos concretos e objetivos que influenciam na decisão pela
entrega, como a falta de condições socioeconômicas, a falta de apoio social, pesado pelo
preconceito e a ausência da responsabilidade paterna, existem configurações subjetivas
internas que perpassam essa decisão. Essas mulheres sofreram várias formas de abandono
durante suas vidas, seja por suas famílias, por seus parceiros ou pela sociedade, que as
fizeram internalizar nessa relação com suas histórias uma grande repetição do abandono,
não para seus filhos, mas para si mesmas. Os casos estudados no presente trabalho nos
permitiram entender que a entrega para adoção também representa uma forma de
preservação subjetiva, não só das privações financeiras, mas de toda vivência que essas
mulheres não querem que seus filhos experienciem, podendo também ser caracterizado
como um ato de amor, ainda que ambivalente.
É importante ressaltar a escassez de literatura referente à compreensão das mães que
entregaram seus filhos em adoção, o que se mostrou uma das dificuldades para construção
da fundamentação teórica, assim como para uma melhor proposta de intervenção em
relação a essas mulheres e de compreensão de toda sua subjetividade. Apesar de não ter
sido um de nossos objetivos, nossa pesquisa também teve um caráter terapêutico, na qual
essas mães puderam usar o momento da pesquisa para desabafar suas aflições, medos e
angústias concernentes à decisão da entrega e aos filhos que entregaram.
Por isso, é de extrema importância que outros estudos a serem realizados com as
mães doadoras possam escutá-las dando voz a sua subjetividade e ao seu sofrimento, além
de abranger sua rede social, familiar, suas fontes de apoio e, principalmente, a paternidade
(ir)responsável, para que além de relativizar a doação, desculpabilizando a mãe, pudessem
ser investigados efetivamente a contribuição e a responsabilidade do pai diante da entrega,
assim como um estudo que subsidiasse projetos de intervenções preventivas, ou seja, buscar
a compreensão do todo, do contexto que envolve a subjetividade das mães doadoras.
Enfatizo a importância de a Psicologia voltar seu olhar para essas mulheres e
oferecer sua escuta qualificada para auxiliá-las no momento de angústia, no qual são
abandonadas por todos. É imprescindível que novas propostas de intervenção preventivas
sejam realizadas em relação às mães doadoras quando apresentam a intenção da entrega de
seu filho para adoção, para que efetivamente essa a decisão seja confirmada, sendo feita
após um acompanhamento mais diferenciado, para que sejam avaliados não somente os
fatores explícitos e objetivos da decisão, mas principalmente a subjetividade dessas
mulheres.
Ao finalizar, gostaria de destacar a importância deste trabalho em minha vida, pois
constituiu não somente a conclusão da graduação ou minha formação profissional, mas,
sobretudo, um amadurecimento pessoal. Falar da maternidade é algo que me motiva
bastante, pelo interesse por esse tema, mas especialmente pelo desejo de vivenciá-la no
futuro. Assim, estudar a entrega de um filho para adoção, permeado pela ambivalência
materna e as dificuldades vivenciadas neste período, foi para mim um grande desafio,
porém muito satisfatório, não somente pela realização desta pesquisa, mas essencialmente
pela possibilidade de contato com essas mães e, principalmente, por poder, com elas,
aprender novos sentidos subjetivos do amor materno.
VIII – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARRAIS, A.R. As configurações subjetivas da depressão pós-parto: para além da padronização patologizante. Tese (Doutorado em Psicologia). Universidade de Brasília: Brasília, 2005.
BACCA, C. C. Desvelando o Manto Sagrado da Maternidade: a Rejeição como Possibilidade. Trabalho de Final de Curso (Graduação em Psicologia). Universidade Católica de Brasília, Brasília: 2005.
BADINTER, E. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
CHAVES, A. Adoção. Belo Horizonte: Del Rey, 1995. COSTA, R. Para além da Maternidade: outras formas de subjetivação do feminino. Dissertação (Mestrado em Psicologia). Universidade Católica de Brasília, Brasília: 2004. CZAPSKI, A. L. B; ELIAS, R. S. Manual prático da adoção. São Paulo: Saraiva, 1998. DAHER, A.S.; LALONI, D.T.; BAPTISTA, M.N. Protocolo hospitalar às mães em processo de doação do recém-nascido. Revista Estudos de Psicologia. Campinas, v.16, n.2, 1999. GONZÁLEZ REY, F. Pesquisa qualitativa e subjetividade: os processos de construção da informação. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005. LAPLANCHE, J e PONTALIS. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001. MOTTA, M. A. P. Mães Abandonadas: a entrega de um filho em adoção. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2005. MURRAY, H. A. Teste de Apercepção Temática: T.A.T. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1995.
PARKER, R. A mãe dividida: a experiência da ambivalência na maternidade. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997.
PICCININI, C. A. et al. Expectativas e sentimentos da gestante em relação ao seu bebê. Psic.: Teor. e Pesq. Brasília, v.20, n.3, 2004.
RODRIGUES, M. H. da S. Mãe Biológica e Doação de Criança: a institucionalização do abandono. 2001. Dissertação (Mestrado em Psicologia). Universidade Católica de Brasília: Brasília, 2001. SANTOS, O. Z. A. Da Adoção: Teoria, Legislação, Jurisprudência e Prática. São Paulo: Bestbook, 1998. SERRURIER, C. Elogio às Mães Más. São Paulo: Summus, 1993. SIMONETTI, A. Manual de Psicologia Hospitalar: o mapa da doença. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004. TRINDADE, Z. A.; ENUMO, S. R. F. Triste e Incompleta: Uma Visão Feminina da Mulher Infértil. Psicol. USP, São Paulo, v.13, n.2, 2002.
TURATO, E. R. Tratado da metodologia de pesquisa clínico-qualitativa: construção teórico-espistemológica, discussão comparada e aplicação nas áreas da saúde e humanas. Petrópolis: Vozes, 2003.