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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO - PRG CURSO DE PSICOLOGIA / HABILITAÇÃO PSICÓLOGO TRABALHO FINAL DE CURSO MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para adoção? GABRIELA LOPES COSTA ORIENTADORA Drª. ALESSANDRA DA ROCHA ARRAIS BANCA EXAMINADORA Drª. ALESSANDRA DA ROCHA ARRAIS – tel: 99877346 / 32446947 MSC. IVÂNIA GHESTI – tel:99771177 Brasília, novembro / 2006.

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Page 1: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO - PRG

CURSO DE PSICOLOGIA / HABILITAÇÃO PSICÓLOGO TRABALHO FINAL DE CURSO

MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para adoção?

GABRIELA LOPES COSTA

ORIENTADORA

Drª. ALESSANDRA DA ROCHA ARRAIS

BANCA EXAMINADORA Drª. ALESSANDRA DA ROCHA ARRAIS – tel: 99877346 / 32446947

MSC. IVÂNIA GHESTI – tel:99771177

Brasília, novembro / 2006.

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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO - PRG

CURSO DE PSICOLOGIA / HABILITAÇÃO PSICÓLOGO TRABALHO FINAL DE CURSO

MÃES DOADORAS

O que leva uma mãe a entregar seu filho para adoção?

GABRIELA LOPES COSTA

ORIENTADORA

Drª. ALESSANDRA DA ROCHA ARRAIS

Brasília, novembro / 2006.

Trabalho apresentado ao Curso de Psicologia da Universidade Católica de Brasília como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Psicólogo.

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PARECER REFERENTE AO TRABALHO: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para adoção?

Percebo, como professora e pesquisadora, a grande carência de estudos nesta linha que buscam acessar a subjetividade e o sentido para os fenômenos humanos, sobretudo no que tange às condições adversas nas quais a adoção ocorre no nosso país, e ao sofrimento das mães doadoras que passam por esta situação. Muito interessante foi observar a apropriada aplicação dos pressupostos da epistemologia qualitativa, tão complexa e tão desafiadora em sua tarefa interpretativista por parte do pesquisador, que a aluna de graduação soube conduzir de forma primorosa com bastante atenção aos indicadores, e consequentemente com uma adequada construção dos núcleos de sentido, sobre um tema socialmente rejeitado como a doação de um filho. Abordou de forma clara e didática com profundidade interpretativa, raramente encontrada entre trabalhos de conclusão de cursos de graduação.

Outro ponto que mereceu destaque, em minha avaliação foi a análise da vivência das mães no que se refere à construção social que ainda permanece difundida a idealização do matrimônio e da maternidade na educação feminina, atrelando a felicidade e realização da mulher à execução do papel de mãe e esposa.

Avalio muito positivamente a exploração das partes que considero mais ricas: a

profundidade de campo, a diversidade metodológica utilizada e o compromisso ético com

as participantes da pesquisa. Destaco ainda a coragem da pesquisadora em dar voz às

mães/genitoras, colaborando inclusive para a elaboração de seu sofrimento e para a

relativização da imagem social que as mesmas recebem.

Com isso, acredito que o presente trabalho apresenta grande alcance de

reflexão e de promissora intervenção, inspirando psicólogos, sobretudo nas áreas da

psicologia da saúde e da psicologia jurídica, merecendo portanto concorrer ao Prêmio

Silvia Lane.

Profª Alessandra da Rocha Arrais

UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA – UCB CURSO DE PSICOLOGIA DISCIPLINA: TFC APRECIADORA: PROF.ª DRA. ALESSANDRA DA ROCHA ARRAIS

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RESUMO COSTA, Gabriela Lopes. Mães Doadoras: o que leva uma mãe a entregar seu filho para adoção? Trabalho de Final de Curso (Graduação em Psicologia). Universidade Católica de Brasília: Brasília, 2006. Esta pesquisa é o resultado de um estudo qualitativo, baseado na Epistemologia Qualitativa (GONZÁLEZ REY, 2005), cujo principal objetivo foi compreender o sentido subjetivo da doação para as mães que já entregaram um filho para adoção, assim como conhecer a concepção da mãe doadora para os profissionais que trabalham com essas mulheres. A pesquisa de campo definiu como sujeitos duas mães-doadoras e quatro profissionais da Seção de Adoção da VIJ/DF - Vara da Infância e da Juventude do Distrito Federal. Foram utilizados como recursos instrumentais para a construção das informações com as mães doadoras: entrevista aberta direcionada por sua história de vida e as questões relacionadas à gestação e à entrega do filho para adoção, o instrumento de completamento de frases e oito pranchas do TAT – Teste de Apercepção Temática utilizadas como disparadores temáticos. Os indicadores elaborados por meio da análise construtivo-interpretativa levaram a construção de núcleos de sentido para essas mães acerca da doação: para a primeira mãe-participante - De abandono em abandono: “Eu não tive o apoio de ninguém”, Privação X Sobrevivência: “É difícil... a arte de sofrer” e Doação: Ato de abandono ou de amor?; e para a segunda mãe-participante - Doação X Aborto: “Eu prefiro... ter entregue à adoção do que ter abortado”, Minha mãe: meu porto (in)seguro e Ambivalência materna: “lamento... por ter feito a entrega da minha filha”. Com os profissionais foram realizadas entrevistas individuais semi-estruturadas direcionadas pelo trabalho desenvolvido, na VIJ/DF, com as mães que procuram o serviço com a intenção de realizar a entrega de seu filho para adoção, com o intuito de conhecer a percepção desses profissionais a respeito das mães doadoras. Tais profissionais reconhecem as limitações do trabalho realizado com essas mulheres, não realizando um acompanhamento contínuo com elas nem priorizando os motivos subjetivos da entrega. Ao realizarmos uma breve retrospectiva histórica, percebemos que o discurso acerca do fenômeno da maternidade se mantém recente no que diz respeito ao amor e a doação incondicional das mães aos seus filhos. Dessa forma, ser mãe não tem sido uma tarefa nada fácil, e muito menos recusar-se a sê-lo, por isso consideramos imprescindível abandonar a idéia de que a mãe que entrega seu filho em adoção o faz, por não amá-lo, ou que só pense em si mesma num ato egoísta e cruel. As construções feitas neste estudo nos levaram a perceber que a entrega pode sim caracterizar-se como um ato de amor e grande preocupação com o bem-estar e o futuro da criança, e que essas mulheres o fazem abrindo mão de uma representação social avassaladora: a maternidade. Renunciam ao sonho de criarem seus filhos por se reconhecerem sem condições, sejam internas ou externas, de fazê-lo. Palavras-chave: AMOR MATERNO, AMBIVALÊNCIA MATERNA, DOAÇÃO.

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SUMÁRIO

I – APROXIMAÇÃO DO TEMA 3

II – INTRODUÇÃO 5

III – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 7

3.1 Maternidade: Representação Social 7

3.1.1 O Mito do Amor Perfeito 10

3.1.2 Da Perfeição à Ambivalência Materna 12

3.2 Representação do Abandono 15

3.3 Mães Doadoras: Mulheres ou Monstros? 18

3.3.1 O Luto da Mãe que Entrega o Filho em Adoção 20

3.3.2 A Doação pode ser um Ato de Amor? 21

3.3.3 Onde estão os Pais? 22

IV – OBJETIVOS 26

4.1 Geral 26

4.2 Específicos 26

V – MÉTODO 27

5.1 A Escolha metodológica: Epistemologia Qualitativa 27

5.2 Os Participantes da Pesquisa 29

5.3 Recursos Instrumentais Utilizados 29

5.4 Procedimento de Construção das Informações 30

5.5 Procedimento de Análise das Informações 32

VI – APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS CASOS 34

6.1 Construções a partir das informações de Bianca 34

6.1.1 Núcleos de sentido subjetivo construídos para Bianca 38

6.2 Construções a partir das informações de Isis 44

6.2.1 Núcleos de sentido subjetivo construídos para Isis 49

6.3 Entrevistas com os Profissionais da Seção de Adoção da VIJ/DF 57

6.3.1 O Trabalho Existe?! 60

VII – CONSIDERAÇÕES FINAIS 63

VIII – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 65

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I – APROXIMAÇÃO DO TEMA DE PESQUISA

Enfim o trabalho final de curso! Chega ao fim mais uma jornada acadêmica: a

graduação em Psicologia. Foi com a Psicologia que me identifiquei e me apaixonei, pois

sempre tive o interesse de conhecer melhor, compreender e ajudar o ser humano, seja em

situações de adversidade ou em conflitos interiores.

Dessa forma a escolha do tema, que concretiza a realização do meu sonho, não

poderia ser feita como normalmente são feitas as escolhas para os temas dos primeiros

trabalhos acadêmicos: por afinidades entre as pessoas do grupo, por sorteio, por exclusão

de temas, ou mesmo ficar com os que sobraram, deveria ser um tema com o qual eu me

identificasse, um estudo que eu tivesse prazer de realizá-lo. Então qual seria?

Muitos sãos os temas de interesse, mas foi pela maternidade que optei direcionar o

meu estudo. Foi quando me sensibilizei com várias reportagens que li e assisti nos jornais,

como a do dia 25/12/20031, a qual relatava que uma empregada doméstica havia encontrado

um bebê abandonado dentro de uma caixa de papelão, ou como a do bebê que fora jogado

na Lagoa da Pampulha em BH por sua mãe, 07/02/20062, e atualmente com a novela da

rede Globo “Páginas da Vida”, de Manuel Carlos, que retratava o desejo de uma avó em

doar a neta com Síndrome de Down, após a morte de sua filha, e por isso fora tratada como

um monstro (capítulos apresentados nos dias 11 e 12/08/06).

Essas reportagens, entre outras, as quais relatavam a quantidade de crianças que

eram abandonadas, jogadas nos rios, deixadas em orfanatos, me fizeram enfim encontrar

meu objetivo neste estudo: compreender a subjetividade de mulheres que, por diferentes

motivos, não ficaram com seus filhos, não conseguiram ser suas mães. Contudo seria

necessário delimitar meu tema, foi quando escolhi falar sobre mulheres que, ao não

conseguirem ser mães de seus filhos, os entregaram para adoção e não os abandonaram em

lagos ou latas de lixo, o que me faz questionar: entregar um filho em adoção significa

abandoná-lo? Tal tema também me instiga a pensar na subjetividade feminina, na

imposição social do papel da maternidade na vida de uma mulher, e, acima de tudo, o amor

incondicional por seus filhos.

1 Encontrada no site <http://jornalnacional.globo.com/Jornalismo/JN/0,,AA780709-3586,00.html>. 2 Encontrada no site <http://jornalnacional.globo.com/Jornalismo/JN/0,,AA1127537-3586,00.html>.

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Muitos são os estudos que mostram o sofrimento pelo qual algumas mulheres

passam durante a gestação e os primeiros meses de seus filhos, por não apresentarem

características de uma boa mãe. Então, por que marginalizar sem buscar compreender

algumas mulheres que não conseguem ser mães, que diante de uma gestação decidiram, por

diversos motivos, sejam sociais, financeiros ou subjetivos, que a melhor solução seria a

doação de seus filhos?

Assim escolher esse tema foi aceitar o desafio de compreender algo que a sociedade

recrimina, e prestar uma escuta isenta de preconceitos para tentar alcançar as questões

subjetivas que perpassam a decisão da entrega.

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II – INTRODUÇÃO

A incidência de mulheres que abandonam seus filhos tem aumentado

consideravelmente e gerado um grande incômodo na sociedade, tanto que este tema tornou-

se alvo de reportagens e inspiração para telenovelas. Tais mulheres são consideradas como

desumanas, loucas, e são completamente excluídas da sociedade, não lhes sendo

proporcionada nenhuma rede de apoio ou espaço para que sejam ouvidas, compreendidas

ou orientadas.

Sabemos que a gravidez representa um momento marcante para a mulher, pois se

trata de um período no qual ocorrem grandes transformações, não só organicamente, mas

também em seu psiquismo e papel sócio-familiar. Há também a possibilidade de tais

modificações gerarem um grande estresse psicológico, podendo acarretar alguns transtornos

que afetem a relação da mãe com seu bebê, como por exemplo, a depressão pós-parto

(ARRAIS, 2005).

Sendo a maternidade um período cheio de transformações, sua representação social

contribui fortemente para as implicações subjetivas dessa fase na vida da mulher, a qual

impõe a presença do amor e da aceitação incondicional dos filhos. Essa representação

idealizada da maternidade não concebe que as mães possuam sentimentos ambivalentes em

relação aos seus filhos, que não sintam amor por eles e que não os queiram.

As mulheres que não se vêem neste padrão de “boa mãe”, muitas vezes, se isolam

por seus sentimentos não serem socialmente aceitos e, assim, não podem verbalizar suas

angústias em relação à maternidade. Diante disso, algumas mulheres não encontram

alternativas para o que sentem em relação aos seus filhos senão se separar deles. Essa

separação é vista como algo inconcebível, pois como uma mãe, cujo amor é incondicional,

não faz de tudo para ficar e cuidar de seu filho, custe o que custar?

Com isso, percebemos a necessidade de ampliar os estudos referentes a essas mães

que entregaram seus filhos para adoção e as implicações subjetivas dessa entrega, para que

assim se possa subsidiar o tratamento e acompanhamento dessas mulheres, lhes oferecendo

um espaço de escuta isento de preconceitos e recriminações. Muitos estudos são realizados

a respeito da adoção, sob a perspectiva dos pais adotantes e dos filhos adotados, no entanto,

existe uma escassez de literatura e pesquisas referentes à mãe doadora e aos motivos da

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doação. Essa carência de estudos seria resultado da discriminação em relação a essas

mulheres?

Ao invés de continuarmos com uma visão esteriotipada dessas mulheres podemos

buscar compreender as razões que as levaram a doar o filho, pois da mesma forma que a

adoção de uma criança é considerada como um ato de amor, a doação também não poderia

ser vista dessa forma? Vários podem ser os motivos que perpassam a decisão da entrega, e

se não os escutarmos corremos o risco de julgar essas mulheres, pois será que podemos

responsabilizá-las de forma isolada por essa decisão? Ou ela foi tomada pela influência

direta ou indireta, seja por opiniões ou atitudes, de outras pessoas?

Sendo assim, este estudo tem o intuito de buscar compreender a subjetividade

dessas mães que decidiram pela doação, a fim de que possam ser criadas estratégias de

apoio a essas mães, ou até mesmo intervenções preventivas do abandono.

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III – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

3.1 Maternidade: Representação Sócio-cultural

Ao realizarmos uma breve retrospectiva histórica, percebemos que o discurso acerca

do fenômeno da maternidade se mantém o mesmo no que diz respeito à expectativa de

amor e doação incondicional das mães para com seus filhos. Badinter (1985) faz essa

retrospectiva, na qual ressaltamos a relação da valorização da criança e da

responsabilização da mãe com seus cuidados, pois foi dessa forma que a mulher começou a

ter importância na sociedade: assumindo o papel de cuidadora insubstituível de seus filhos.

“Sede boas mães, e sereis felizes e respeitadas. Tornai-vos indispensáveis na família, e

obtereis o direito de cidadania” (BADINTER, 1985, p.147).

De acordo com Badinter (1985), uma seqüência de contextos históricos levou o

Estado a interessar-se progressivamente pelas crianças, passando a concebê-las como seres

humanos que eram suas riquezas. Assim desencadearam-se algumas providências

necessárias para a saúde da criança, tais como: o surgimento da medicina preventiva, uma

política de conscientização em prol do aleitamento materno em detrimento das amas-de-

leite, dentre outras. Com isso a criança passou a carecer de cuidados inestimáveis, os quais

foram atribuídos a suas mães. Como pontua Costa (2004, p.38): “a criança passou a ser

insubstituível, como parte integrante das mães”.

Desse modo Badinter (1985) evidencia que, em decorrência do novo posto ocupado

pela criança na família, exigiu-se uma mudança de mentalidade das mães e da sua imagem

perante a sociedade, o que resultou na construção do mito do amor materno, estabelecendo-

se assim o pensamento no qual a maternidade seria o único caminho possível para o

desfecho da constituição da feminilidade.

Fica claro que tal pensamento surge de acordo com as necessidades vigentes, como

uma imposição às mulheres de amarem seus filhos, sendo boas mães para alcançarem a

felicidade. Isso nos faz questionar se o cumprimento (inconsciente) desse papel era

realizado a partir do amor incondicional e posteriormente para a aceitação social, ou seria o

contrário? Isso explicaria o fato da maternidade não suprir os desejos da mulher atual, por

existirem outras formas de realização e reconhecimento social? Seria, portanto, tão

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imaculado esse amor? Então, onde está o por quê da exclusão e condenação daquelas

mulheres que conseguem assumir socialmente que não querem ficar com seus filhos?

Bacca (2005) apresenta os diversos discursos da maternidade, apontados por

diferentes autores, observados na Idade Média. Essa autora afirma que este período é

marcado pela força da Igreja, que rege as relações familiares, estabelecendo o casamento

como um sacramento, e que devido à conservação da riqueza da família, a mulher assume o

papel de passividade em relação ao marido, sendo que as relações sexuais são permitidas

apenas com o objetivo de procriar, não sendo permitido à mulher vivenciar o prazer.

A autora continua esclarecendo que durante o regime patriarcal, filhos, escravos e

esposas são considerados propriedade do poder exercido pelo homem da casa, devendo a

ele submissão e respeito. Assim, Badinter (1985 apud BACCA, 2005) afirma que a mulher

era quase considerada como filha do marido, não tendo autonomia alguma em relação à

organização familiar. Ao referir-se ao papel da mulher nesse período Bacca (2005) cita

Tubert (1996, p.60):

[...] sua fraqueza e sua sensibilidade a afastam de toda e qualquer vida pública e profissional, de toda instrução superior. A mulher é feita para permanecer no interior do lar, onde terá uma vida protegida, dependente, dominada. Presa no sexo, não terá outra perspectiva além do matrimônio e da maternidade (TUBERT, 1996, p.60 apud BACCA, 2005, p.14).

Bacca (2005) também se refere às publicações de alguns romances e obras, no final

do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, nas quais o ideal da maternidade

obrigatória, devota e dedicada, cultivado pela família burguesa, marcou presença, com o

intuito de promover o estigma da maternagem que até os dias atuais persegue a todas as

mulheres. Novamente percebemos a imposição desse ideal de amor propagado não pelas

próprias mulheres, detentoras dessa “virtude”, mas por uma imposição social.

A partir das considerações supracitadas, percebemos a definição da maternidade

como fato natural, na qual a mulher tendo a capacidade de ter filhos deve amá-los e educá-

los naturalmente. Aparece, portanto, mais uma forma de impor à mulher a maternidade: o

instinto materno. Assim, relacionar o conceito de mulher ao de fêmea, de acordo com

Beauvoir (1959 apud COSTA, 2004), nos leva a redirecionar o conceito da subjetivação do

feminino à maternidade, pois descreve que, segundo a biologia, o corpo feminino é

marcado pelo fenômeno da reprodução, visto que há uma grande discrepância entre os

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papéis conferidos ao homem e a mulher, e conseqüentemente o envolvimento e a

responsabilização que cada um tem em relação à procriação.

Para essa autora é muito relevante a influência da configuração do corpo feminino

para esse processo de construção da identidade subjetiva da mulher, uma vez que seu corpo

é marcado pela reprodução, assim esse discurso biológico compromete a autonomia

feminina por igualar a mulher à fêmea.

Entretanto, Costa (2004) afirma que a associação entre os conceitos de mulher e de

mãe não é determinada pela natureza e sim pelas construções históricas. Arrais (2005)

corrobora esta idéia ao considerar fundamental uma diferenciação entre a capacidade

reprodutiva da mulher e a maternidade. Pois procriar é um potencial biológico natural,

contudo assumir a criança e tornar-se mãe é um fenômeno que se constitui social e

culturalmente, sendo impregnado pelos ideais e ideologias predominantes nos diversos

períodos históricos.

Constatamos que existem várias formas de se compreender a significação feminina,

contudo não podemos analisá-las separadamente para não reduzir ou simplificar a

complexidade e magnitude do que significa ser mulher, e do que significa ser mãe, sendo

importante estender a compreensão da maternidade como fenômeno cultural e não somente

natural ou biológico.

Recorremos a algumas palavras do antigo representante da Igreja Católica para

concluir sobre as conseqüências da representação social da maternidade, o qual afirma:

[...] somos herdeiros de uma história com imensos condicionalismos que, em todos os tempos e latitudes, tornaram difícil o caminho da mulher, ignorada na sua dignidade, deturpada nas suas prerrogativas, não raro marginalizada e, até mesmo, reduzida à escravidão. Isto a impediu de ser profundamente ela mesma, e empobreceu a humanidade inteira de autênticas riquezas espirituais (...) Relativamente a esta grande, imensa tradição feminina, a humanidade tem uma dívida incalculável. Quantas mulheres foram e continuam ainda a ser valorizadas mais pelo aspecto físico que pela competência, pela profissionalidade, pelas obras da inteligência, pela riqueza da sua sensibilidade e, em última análise, pela própria dignidade do seu ser! (PAPA JOÃO PAULO II, 19953).

3 Carta do Papa João Paulo II às mulheres. Vaticano, 29 de Junho de 1995, solenidade dos Apóstolos S. Pedro e S. Paulo.

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Acrescentamos que ser mulher significa social, cultural e historicamente, ser mãe.

Assim sendo, algumas características intrínsecas a feminilidade se confundem com as

características necessárias a uma “boa mãe”, tais como dedicação, abnegação, docilidade

(ROCHA-COUTINHO, 1994 apud TRINDADE e ENUMO, 2002).

Além disso, para Trindade e Enumo (2002) historicamente a maternidade vem

sendo construída como o único caminho da mulher para se chegar a sua plenitude. Um

caminho de sofrimento voluntário e indispensável torna-se um prazer idealizado e

romantizado que ilumina a desesperança, os caminhos obscuros, as vidas sem brilho.

Knibierhlre e Fouquet (1980 apud MOTTA, 2005) corroboram essa idéia ao afirmarem que

toda cultura tradicional ainda transmite que a maternidade é a realização indispensável da

feminilidade, na qual somente se torna uma mulher de verdade após se ter um filho, ou seja,

ser mãe.

Assim não podemos desconsiderar a importância do social nesta representação da

maternidade. Como pontua Serrurier (1993 apud ARRAIS, 2005), o quadro sociológico é

responsável, em grande parte, pelas dificuldades que as mulheres experimentam para serem

boas mães, pois além de precisarem ser mães para realizarem-se enquanto mulheres,

precisam ser sempre boas e amar incondicionalmente.

3.1.1 O Mito do Amor Perfeito

Percebemos que o ideal de maternidade foi construído ao longo dos tempos,

marcado pela obrigatoriedade do amor natural e exclusivo (ARRAIS, 2005). Assim, a

formação deste ideal desconsiderou as limitações da mulher, levando-a ao ideal de

perfeição e, conseqüentemente, à construção do mito do amor perfeito: a boa mãe, o amor

materno puro e imaculado.

Segundo Badinter (1985) foi conferido à mãe um amor forçado, sendo estabelecido

um papel muito importante, para ela, em relação aos filhos. Esse papel, “missão terrível”,

não restringiu o trabalho da mãe aos cuidados físicos da criança até que essa estivesse fora

de perigo, mas ampliou essa responsabilidade incluindo a educação, uma parte importante

em seu desenvolvimento intelectual, competindo-lhe também, a formação de um bom

cristão, cidadão e homem, levando-o a ocupar o melhor lugar possível na sociedade.

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Com isso, Badinter (1985) assinala que a mulher não poderia mais evitar esse papel

imposto socialmente, pois teria como pena a condenação moral, sendo assim explicado o

desprezo pelas mulheres que não tinham filhos e a condenação daquelas que não os

queriam, o que aliás se perpetua até nossos dias. Igualmente, presa em seu papel de mãe, a

mulher era excluída por não saber ou não realizar esse papel com a maior perfeição, pois

essa nobre tarefa era bastante exaltada.

A autora conclui que o instinto materno é realmente um mito, pois existe uma

grande variabilidade de comportamentos e sentimentos, por diversos fatores, sejam

culturais ou pessoais, relacionados a ambições ou frustrações. Afirma que esse sentimento

pode ou não existir; ser e desaparecer, mostrando-se frágil ou forte, assim como o desejo de

ficar ou não com seu filho. Ela ainda ressalta que tudo depende da história da mãe e das

construções históricas da maternidade, não existindo uma conduta universal e necessária à

mãe, pois para ela o amor materno não é intrínseco às mulheres, mas sim adicional.

Serrurier (1993) aponta que desde o princípio, em nossa literatura encontramos essa

grande devoção na qual sempre fomos embalados pelos louvores infinitos às mães. Essa

devoção se perpetuou e continua ainda hoje, confirmada pela sociedade devido a essa

herança na construção da representação social da maternidade.

Esse mito do amor materno, perfeito, nos leva a uma contradição: pois ao mesmo

tempo em que “mães” são consideradas perfeitas, puras e imaculadas, mulheres também

são investidas de defeitos e imperfeições. Serrurier (1993) cita algumas palavras de André

Halimi, as quais bem expressam tal contradição:

De onde vem esse milagre? O que acontece com a superficialidade, a futilidade, o orgulho, a dissimulação, todos esses defeitos que os homens atribuem generosamente às mulheres, e dos quais a mãe é singularmente preservada? Negados, apagados, eles não têm nenhuma influência sobre aquela que deu a vida, e que, dando a vida, torna-se sagrada (p.62).

Assim, são atribuídos todos esses defeitos e muitos outros, àquelas mulheres que

não conseguem entregar-se a essa profunda doação, principalmente àquelas que expressam

socialmente sua falta de condições de ficar com seus filhos, e assim os entregam para outras

“mães” cuidarem: àquelas que seriam as “mães suficientemente boas” segundo Winicott

(2000 apud ARRAIS, 2005).

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De acordo com Serrurier (1993) a transmissão, de geração em geração, do mito da

mãe sagrada explica-se por se tornar eficaz para os costumes familiares e a distribuição de

papéis, pois “o mito é criativo, no sentido que permite o funcionamento do grupo apesar

das contradições entre seus membros”, e ainda “algo do pensamento mítico é essencial à

fundação de um sistema” (p.63).

Nesse sentido a autora trata do sistema familiar, no qual o mito da boa mãe é

indispensável para sua sobrevivência, sendo as “mães desnaturadas” aberrações da

natureza. Serrurier (1993) completa apontando o comportamento de homens e mulheres que

se escondem inconscientemente em beneficio de uma ilusão reconfortante, mesmo que

tenham sofrido com uma mãe medíocre: “toda mãe é uma mãe boa” (p.63).

E assim as mulheres são criadas sendo condicionadas, desde o nascimento, a cores,

brinquedos, comportamentos, pensamentos e atitudes femininas, todas ligadas à

maternidade. Aprendem que uma mulher deve ser capaz de enormes sacrifícios, e detentora

de impecáveis qualidades, dignas de uma “mãe” em tempo integral. Desse modo, esse ideal

de mãe perfeita, construída num rígido padrão com uma imagem romanceada da

maternidade, não tolera a discussão de sentimentos ambivalentes, tão presentes nas mães

(ARRAIS, 2005).

3.1.2 Da Perfeição à Ambivalência Materna

Vimos que o ideal de maternidade construído socialmente, define mãe como sendo

algo perfeito, intocável, uma pessoa a quem devemos nossas vidas e eterna gratidão.

Serrurier (1993, p.62) cita uma frase de Ernest Legouvé que define perfeitamente essa

representação social da maternidade: “a mãe é aqui embaixo o único Deus sem ateus”.

Dessa forma, não somente diante dessas construções sócio-culturais que

determinam como uma mãe deve ser e agir, mas diante das condições materiais, sociais e

psicológicas, muitas mulheres se sentem desamparadas e excluídas ao se depararem com

uma outra realidade: a ambivalência de sentimentos diante da maternidade. Essa cultura em

que vivemos, de acordo com Parker (1997), dificulta ao praticamente proibir a discussão e

análise que revelariam a influência oculta que a ambivalência materna pode dar ao

exercício da maternidade.

Laplanche e Pontalis (2001, p.17) definem ambivalência como sendo a “presença

simultânea, na relação com um mesmo objeto, de tendências, de atitudes e de sentimentos

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opostos, fundamentalmente o amor e o ódio”. Para Parker (1997) essa ambivalência é uma

experiência compartilhada de diversas formas por várias mães, sendo insuportável para a

sociedade aceitar o fato de que uma mãe possa odiar e amar seus filhos ao mesmo tempo.

Essa autora traz a etimologia dessa palavra, significando assim a existência de dois valores

iguais, ou seja, a vivência de sentimentos contraditórios, manifestações simultaneamente

opostas numa mesma situação, como por exemplo, o desejo de uma mãe em ficar e não

ficar com seu filho.

Parker (1997) traz esse exemplo ao falar dos sentimentos de ambivalência existentes

em uma futura mãe, pois coexistem sentimentos de desejo e repulsa, o de querer e não

querer um filho. Entretanto, como afirma a autora, somente o sentimento positivo pode ser

confessado, a escolha consciente de ter o filho, pois a escolha inconsciente, de não

permanecer com ele, é inaceitável.

Todavia ao excluirmos essas mulheres que apresentam e confessam tal

ambivalência, estamos afirmando que sentimentos ambivalentes não existem na

maternidade, pois se elas são excluídas por apresentá-los e assumi-los socialmente, por

exemplo, quando doam seus filhos, não são excluídas aquelas que apresentam tais

sentimentos, mas não os externam, reforçando assim o mito do amor materno.

Contudo o estudo realizado por Piccinini et al. (2004), relata que a literatura aponta

a existência de repercussões tanto positivas quanto negativas na presença das expectativas

das mães em relação à maternidade. Afirmam que as expectativas são consideradas

negativas quando não há espaço para o bebê assumir sua própria identidade, isto é, quando

a mãe não consegue aceitar a singularidade de seu filho e abandonar sua carga maciça de

projeções.

Neste estudo, referem-se à existência de alguns casos de gestantes que não

conseguem investir no bebê nem esperar nada dele, por medo que a realidade não satisfaça

seus desejos, e de outras que atribuem ao bebê somente expectativas de insucesso e de

morte, o que geralmente se revela não através de verbalizações e sim de sensações,

pensamentos e intensas preocupações. Dessa forma percebemos que a maternidade não é

assim tão natural para as mulheres, mas está impregnada de expectativas e angústias.

Parker (1997) também cita uma outra visão apresentada por Melanie Klein para

falar na ambivalência materna, o que significa experimentar novamente os sentimentos

Page 17: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

vivenciados pela mulher durante sua própria infância em relação a sua mãe. Afirma que os

desejos de morte que alimentava inconscientemente em relação à mãe são agora

vivenciados em relação ao filho, que ocupa o lugar de sua mãe, simbolicamente.

Essa autora completa afirmando que do ponto de vista psicanalítico, quando se

oferece reparação aos filhos, quem funciona como verdadeiro receptor dos impulsos de

reparação é sua própria mãe. Portanto, a maternidade não está somente carregada por sua

construção histórica e social, mas também pela história vivenciada pelas mulheres, antigas

filhas, mães atuais. Desse modo, concluímos que as experiências como filhas interferem

diretamente nas suas representações como mães.

Segundo Serrurier (1993) algumas mulheres sentem-se, com freqüência, culpadas

em relação as suas mães, por não terem sido boas filhas, assim em sua própria maternidade

esse sentimento é cristalizado. A autora completa que esse pensamento totalmente

irracional, de recriminação inconsciente, é o que origina uma “mãe má”. Mas é para com

seus filhos que as mães se sentem mais culpadas: devido a sua ambivalência de

sentimentos.

Parker (1997) apresenta uma nova contradição no âmbito do ideal materno, pois ao

mesmo tempo em que se considera como meta o exercício pleno da maternidade, também

existe a busca por um sentimento de unidade, vista como um sintoma de incapacidade de

separação por parte da mãe. Assim, essa unidade propriamente dita é idealizada tanto

quanto difamada: advertida pela superproteção e recriminada pela rejeição. Desse modo a

autora se questiona como as mães conseguem conciliar as contradições culturais e suas

próprias fantasias e desejos face à maternidade. Esses seriam indícios de uma imperfeição,

não saber como ser mãe? Isso reforça a não existência de um modelo, de um amor materno

único, vivenciado da mesma forma por todas as mulheres, mas sim a existência de uma

subjetividade, de uma mulher ímpar, com desejos e aspirações singulares.

Assim sendo, Parker (1997) afirma que vivenciar a ambivalência materna se torna

algo dificilmente aceito e conseqüentemente complicado de acreditar, apesar de muitas

pessoas reconhecerem sua inevitabilidade. Acreditar que sentimentos de ódio,

ressentimento e hostilidade fazem parte dos sentimentos que uma mãe pode ter em relação

ao seu filho, gera muitas dúvidas tanto aos seus próprios olhos como aos dos outros.

Page 18: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

Ao falarmos do olhar do outro, Parker (1997) afirma que as mães se observam na

maneira de agir como “mãe” na tentativa de encontrar diferenças e semelhanças, não sendo

uma simples comparação invejosa, mas para confirmarem seus acertos, numa busca de

reassegurarem-se reciprocamente, pois nossa cultura permite uma grande flexibilidade

diante de várias outras atividades, exceto na maternidade. Talvez também por isso seja tão

difícil assumir sentimentos ambivalentes em relação à maternidade.

Assim sendo, concluímos que ser mãe não tem sido uma tarefa nada fácil, como

pontua Serrurier (1993), no entanto muito menos simples ainda, é recusar-se a sê-lo.

Page 19: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

3.2 Representação do Abandono

Considerando esta representação idealizada da maternidade, cabe apontar a suposta

incoerência: como uma mãe pode abandonar seu filho e/ou entregá-lo para adoção? Essa é a

pergunta que a sociedade se faz, perplexa diante de tantos casos apresentados pela mídia de

crianças abandonadas e pela quantidade de crianças em instituições de abrigo esperando

para serem adotadas, além da quantidade de adoções que são feitas sem conhecimento da

Justiça, a chamada “adoção à brasileira”. Essa pergunta reflete a condenação desta atitude

que muitas mães tomam: a doação.

Segundo Rodrigues (2001), ao analisarmos os relatos míticos, contos, lendas, a

Bíblia Sagrada, encontramos diversos casos de abandono de crianças, que ao serem

praticados, geralmente, eram feitos visando o bem das crianças, e este ato aparece como

sendo a única possibilidade de vida para elas.

Essa autora faz uma análise histórica na qual podemos perceber que apesar do

abandono de crianças ter passado a ser condenado, continuou sendo praticado e tolerado

durante muito tempo, pois em 1638 foi criada, por São Vicente de Paula, a primeira casa

para o acolhimento de crianças abandonadas, e na Idade Média foi criada a “roda dos

expostos” ou “roda dos enjeitados” em algumas instituições, para que fossem acolhidas as

crianças abandonadas sem que o autor fosse identificado, o que, para Rodrigues (2001),

resultou num paradoxo, pois nessa época se propunha a redução do infanticídio, o que com

esse mecanismo foi possível, mas ao mesmo tempo o abandono de crianças foi favorecido.

Motta (2005) faz um breve histórico do abandono no Brasil, e começa com os

apontamentos feitos por Gonçalves (1987 apud MOTTA, 2005), o qual relata que, durante

o Império, alguns termos pejorativos eram usados pela sociedade brasileira ao referir-se a

criança abandonada, tais como “exposto” e “enjeitado”. De acordo com Venâncio (1997

apud MOTTA, 2005) o abandono de crianças provinha de relacionamentos reprimidos e a

necessidade de mantê-los a todo custo, fazendo com que os filhos, chamados de filhos

bastardos, frutos deste amor proibido fossem abandonados pelas ruas, sendo responsáveis

pela crescente quantidade de abandonos “selvagens”.

De acordo com Motta (2005) as “rodas dos expostos” foram estabelecidas aqui no

Brasil nas cidades de Salvador, Recife e Rio de Janeiro no período colonial, nas quais eram

abandonados os filhos ilegítimos, pois como as regras advinham da família colonial de

Page 20: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

moral cristã, a procriação fora do casamento era alvo de recriminação, estando sujeita a

sanções religiosas e sociais. Segundo Venâncio (1997 apud MOTTA, 2005, p.55) “a roda

tinha por finalidade não constranger pessoa alguma, nem quem levava a criança, nem quem

a recolhia”.

Atualmente, a prática de abandono de crianças ainda continua sendo realizada,

agora de outras maneiras, seja as abandonando em ruas, hospitais, ou as entregando para

adoção. No entanto, nos perguntamos: toda doação de uma criança caracteriza um

abandono e desamor por parte de suas mães? De acordo com Motta (2005) este termo

abandono traz uma conotação preconceituosa, compartilhada socialmente, de uma mãe que

desiste intencionalmente de cuidar de seu filho. Entretanto, a autora considera que a

definição jurídica ampliada conceitua melhor o que seria o abandono, pois não restringe ao

fato de uma criança que é concretamente separada de seus pais, mas inclui aquelas que,

estando sob seus cuidados, são maltratadas, e seus direitos mais essenciais como seres

humanos não são atendidos.

Freud, Solnit e Goldstein (1991 apud RODRIGUES, 2001) ressaltam que o

abandono pode ser uma forma de proporcionar ao filho uma família que o queira e seja

capaz de suprir suas necessidades físicas e afetivas, o que muitas vezes seus pais biológicos

reconhecem que não seriam capazes de fazê-lo, pois o abandono é algo muito maior do que

a entrega de um filho para adoção. Mas estaria a intencionalidade dos conflitos, das

ambivalências, sendo soberana na sua concretização? Segundo Rodrigues (1993 apud

MOTTA, 2005, p.40) abandono “[...] inclui o descaso intencional pela sua criação,

educação e moralidade”.

Assim, como ressalta Venâncio (1997 apud MOTTA, 2005), não podemos explicar

o abandono de crianças analisando um só motivo, pois são vários os fatores que

influenciam na decisão pela entrega de um filho. Motta (2005) enfatiza a importância de

analisarmos o fenômeno do abandono compreendendo a magnitude do universo feminino,

considerando toda construção histórica da maternidade, a “inserindo em seus contextos, e

referindo às particularidades próprias a cada situação econômico-sociocultural e

psicológica” (p.57).

Em relação à adoção, Czapski e Elias (1988) concordam com a definição de Clóvis

Beviláqua, que a define como um ato pelo qual alguém aceita um estranho na qualidade de

Page 21: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

filho. Ressaltam que deve ser feita por escritura pública e registrada no Registro Civil das

Pessoas Naturais, exigência do Código Civil, pois consiste num ato solene. Para Gomes

(1983, p.345 apud CZAPSKI e ELIAS, 1988, p.29) o principal efeito da adoção é “atribuir

ao adotado a condição de filho legítimo do adotante”. Santos (1998) aponta tal implicação

na legislação: “art. 41 - A adoção atribui a condição de filho ao adotante, com os mesmos

direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com os pais e

parentes, salvo os impedimentos matrimoniais” (p.78). Contudo, Chaves (1995) ressalta

que a adoção é o estabelecimento de um vínculo fictício de paternidade, obedecidos os

requisitos da Lei, sem total desligamento do adotado da sua família de sangue.

A partir da definição de Chaves (1995), nos questionamos a respeito da eficácia da

adoção fechada, adotada em nosso país, que consiste no segredo em relação às realidades

da adoção, sendo que os registros são lacrados e “subentendem uma ruptura total no contato

entre a criança e seus pais biológicos” (MOTTA, 2005, p.76). Tal política de adoção

confirma o preconceito em relação às mães biológicas e sua total exclusão do processo de

adoção após a concretização da entrega, o que pode agravar os sofrimentos vivenciados por

elas. Motta (2005) afirma que a participação ativa das mães doadoras na escolha da família

adotante, com a permissão para que saibam com quem seus filhos estão e recebam notícias

de seu desenvolvendo, contribui para uma melhor significação da entrega e as tornam mais

capazes para lidar com os sofrimentos gerados pela doação, “sem mencionar os inúmeros

benefícios que o adotivo adquire da prática de uma política de adoção mais aberta”

(MOTTA, 2005, p.258).

Concordamos com Motta (2005) ao ressaltar a necessidade de um trabalho prévio

com as mães doadoras, permitindo-lhes a antecipação da perda e da vivência da dor, o que

certamente interferirá na elaboração da entrega. Santos (1998) cita um artigo da legislação a

respeito da adoção, em relação às mães, que diz: “art. 8 §1º - a gestante será encaminhada

aos diferentes níveis de atendimento, segundo critérios médicos específicos, obedecendo-se

aos princípios de regionalização e hierarquização do Sistema” (p.71). Estaria incluso,

nesses “diferentes níveis de atendimento”, o suporte psicológico para que se possa acessar a

subjetividade e assim ajudá-la em relação a sua decisão pela entrega?

Page 22: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

3.3 Mães Doadoras: Mulheres ou Monstros?

Conforme visto anteriormente, a representação da maternidade foi construída

socialmente com a obrigatoriedade da presença do amor natural e incondicional. Todavia,

assim como qualquer outro, o sentimento materno é subjetivo, construído a partir de uma

história, de uma cultura. Como afirma Badinter (1985), o sentimento de amor para com um

filho pode existir ou não, depende da vivência histórica, cultural e subjetiva de sua mãe.

Tal construção social deste amor faz com que mulheres que não o sintam sejam

totalmente excluídas, e seus sentimentos considerados completamente absurdos. São

avaliadas como pessoas indignas, desprovidas de qualquer virtude feminina, sendo essa

mulher considerada “meio monstro, meio criminosa, tal mulher é o que poderíamos chamar

de erro da natureza” (BADINTER, 1985, p.275).

Esta visão esteriotipada da sociedade faz com que mulheres que entregaram seus

filhos para adoção, raramente pelas vias legais, se escondam por medo, por vergonha, e

assim as razões que as levaram a tomar essa atitude ficam obscuras. Dessa forma,

Rodrigues (2001) afirma que mantendo obscuros os motivos que as levaram a tal decisão,

os sentimentos durante todo o processo da entrega, dificulta-se a intervenção com essas

mães, até mesmo para que se resulte em outras soluções ao invés do abandono, assim como

a elaboração de medidas preventivas.

Concordamos ser de extrema importância escutar e analisar não só os motivos

explicitados pelas mães, mas principalmente àqueles que estão implícitos pelas mulheres

que apresentam a intenção de entregar seu filho em adoção para que assim possa ser, não

somente confirmado esse desejo, como também possamos compreender melhor seus

motivos e assim criar estratégias de intervenção. Contudo, não podemos avaliar o contexto

da entrega sem acessar a subjetividade dessas mulheres, e assim, quais as razões implícitas

e subjetivas de sua decisão.

Perguntamos-nos se em suas histórias o abandono não esteve presente, se não

foram abandonadas primeiro? Talvez essas mulheres, consideradas como monstros,

sofreram várias formas de abandono em suas vidas: em primeiro lugar por seus pais, pois

podem proceder de uma família monoparental na qual não pôde obter nenhum tipo de

apoio; por seus parceiros que não quiseram assumir a responsabilidade da paternidade,

estando eles presentes ou não fisicamente; e por fim pela sociedade, que julga e condena

Page 23: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

essa intenção da doação, sem oferecer formas de escuta e apoio eficientes e livres de

julgamentos.

Motta (2005) corrobora essa idéia ao questionar: “como situar em relação à crítica

feroz aquelas jovens solteiras pressionadas pela família, abandonadas pelo parceiro, sem

emprego e às vezes sem lugar para morar?” (p.60). Assim a autora julga indispensável, um

exame e elaboração do histórico de perdas dessas mães, pois auxiliando melhor essas

mulheres a superarem seus problemas se tornaria mais fácil tornar-se apta a criar seus

filhos, ou realizar sua entrega dentro de condições mais adequadas, saudáveis e legais,

evitando traumas, arrependimentos e contestações das doações no futuro.

Essa autora aponta que a incompreensão para com essas mulheres se deve à

conservação do ideal social de ser mãe, pois àquelas que não se enquadram nesse ideal são

atribuídas anormalidades: seja entregando seus filhos para adoção, sendo consideradas

como desnaturadas; seja ficando com eles sem condições, sendo consideradas

irresponsáveis.

Sobretudo, quando voltamos à idéia da maternidade como única forma de

subjetivação do feminino, compreendemos o porquê da falta de maternidade ser tratada

como uma falha na própria identidade da mulher, como ressalta Motta (2005), pois quando

a mulher não se torna mãe é questionada em sua feminilidade. Essa autora volta aos

possíveis elementos que influenciaram a doação: o estado psicológico e emocional, as

condições econômicas, a ausência de apoio familiar, social e governamental. Assim, não

poderíamos desconsiderar tais fatores e simplesmente julgar a mãe doadora como um

monstro, mas sim relativizar a entrega dando um novo olhar: seria este um ato de amor?

Daher, Laloni e Baptista (1999) realizaram um estudo com parturientes que

desejavam doar seus bebês. Afirmam que a doação pode parecer para essas mães como a

solução mais rápida e eficaz para solucionar os problemas gerados pelo nascimento da

criança. Enfatizam que essa decisão muitas vezes não é exclusiva da mãe, mas reponde às

pressões sociais e familiares.

Neste mesmo estudo, Sidmam (1995 apud DAHER, LALONI E BAPTISTA, 1999)

considera que comumente essas mulheres são influenciadas por diferentes fatores, dos quais

ressalta os fatores pessoais, sociais, familiares e financeiros. Berthoud (1995 apud DAHER,

LALONI E BAPTISTA, 1999) afirma que durante esse período é necessário um suporte

Page 24: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

por parte da equipe de saúde, inclusive do psicólogo hospitalar, para que sejam prevenidas

experiências negativas e com isso a mãe desenvolva alguma repulsa por este momento da

gravidez e do parto, ou mesmo por seu filho.

A discriminação sofrida por essas mulheres que “abandonam” seus filhos faz com

que não sejam ouvidas não lhes sendo permitido qualquer forma de sofrimento diante da

entrega, e se sofrem não merecem ser acolhidas, pois praticaram um ato inconcebível.

Contudo, esse processo, para as mães, pode se assemelhar à morte, como denomina Kovács

(1996) “a morte em vida”. Sendo assim passam por todo o processo de luto, que muitas

vezes não é completamente elaborado, e assim sofrem por não aceitar essa perda, como

visto anteriormente, muitas vezes imposta indo de encontro a sua vontade.

3.3.1 O Luto da Mãe que Entrega o Filho em Adoção

De acordo com Kovács (1996), a separação entre duas pessoas que se amam,

desperta sentimentos semelhantes aos causados pela morte, pois para ela a separação é

realmente uma perda entre vivos, ressaltando a necessidade de matar o outro dentro de si,

mesmo que não haja uma morte concreta.

A autora aponta a ambivalência de sentimentos que abarcam o amor, sendo que na

separação ela afirma que estas polaridades, amor/ódio, atração/repulsa, são exacerbadas.

Observa que apesar desta experiência ser universal, pois todos passam por situações de

separação e perda, é vivenciada de forma peculiar. Dessa forma, não pode ser

compreendida globalmente, visto que se trata de uma experiência ímpar, que depende

diretamente da história e da subjetividade de cada indivíduo.

Assim, não podemos generalizar, como feito com a representação social da

maternidade por meio do mito do amor materno, a mulher que entrega seu filho em adoção,

pois da mesma forma que vários fatores perpassam sua decisão, várias são as formas de

elaborar a doação.

Contudo, podemos afirmar a existência da dor, mesmo que seja numa mãe

individualista que entregou seu filho para ‘livrar-se de um problema’, pois como afirma

Caruso (1986 apud MOTTA, 2005) a separação é uma ferida em si mesmo, no próprio ser,

caracterizando-se como uma dor narcísica, abstraindo assim, que a entrega deixa marcas

nas mães em quaisquer que sejam os motivos da doação.

Page 25: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

Segundo Jones (1993 apud MOTTA, 2005), algumas dessas mulheres possuem a

necessidade de passar por esse processo de luto que envolve a perda, algumas focadas na

separação diante da entrega do filho, outras abrangendo a significação da perda do papel de

mãe, a auto-estima, concluindo que qualquer que seja o foco essa necessidade de lamentar

alguma perda se faz presente.

Dessa forma, o luto, segundo Rano (1984 apud MOTTA, 2005), é:

[...] um processo composto de reações psicológicas, físicas e sociais a uma perda e se caracteriza como um processo holístico que é necessário, normal e universal, relevando-se como uma resposta inerente ao ser humano. Depois de sofrer uma perda, durante certo período de tempo a pessoa enlutada fica angustiada e incapaz de funcionar da mesma forma que antes de sua ocorrência. A recuperação, por sua vez, ocorre quando a pessoa enlutada faz novos planos para sua vida e alcança um novo e independente nível de funcionamento (p.83).

Assim, Motta (2005) aponta a necessidade de auxiliar cuidadosamente essas

mulheres que expressam o desejo pela entrega, pois após o nascimento da criança, como

afirma Roles (1989 apud MOTTA, 2005), ao mesmo tempo em que há um reconhecimento

de mudanças referentes ao seu corpo após o parto, após a entrega elas prosseguem na

tentativa de agir como se não tivessem tido um filho.

No entanto, muitas vezes não conseguem fingir que nada aconteceu, aparecendo

assim sintomas de tristeza, pânico, medo, raiva, desespero, culpa e vergonha, pois, segundo

o autor, o surgimento de sentimentos tão intensos não é necessariamente justificado por um

só acontecimento. Não permitir a expressão de tais sentimentos pode agravar os riscos e

sintomas apresentados, podendo evoluir para sinais mais expressivos como “pesadelos,

fobias, perturbações do sono, ataques de pânico, depressão, alcoolismo ou uso de drogas,

ou somatizações com enorme dispêndio de energia física e psíquica para mascarar as

emoções” (ROLES, 1989 apud MOTTA, 2005, p.93).

3.3.2 A Doação pode ser um Ato de Amor?

Quando retomamos as explanações feitas anteriormente acerca do abandono de

crianças, pensamos se caberia conceber a entrega também como um ato de amor, pois na

maioria das vezes as mães abandonaram seus filhos por acreditarem ser a única forma de

garantir-lhes a sobrevivência, sendo assim a única forma de exprimir seu amor.

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Acreditamos que tais mulheres, que hoje entregam seus filhos para adoção, possuem

vários motivos que perpassam sua decisão pela entrega, sejam sociais, econômicos,

emocionais ou psicológicos, o que nos leva a dar uma nova visão a sua decisão pela

entrega. Dessa forma, poderíamos pensar que essas mães estariam entregando seus filhos

em adoção para garantir-lhes o direito a uma vida saudável, podendo assim ser considerado

como um ato de amor?

Segundo Motta (2005) afirmar que as mães que entregaram seus filhos, por não

poderem ficar com eles devido a vários motivos, o tenham feito por simplesmente não

apresentar nenhum amor, seria um equívoco. Não podemos dizer, baseados no mito do

amor materno, que essas mulheres não amam seus filhos, simplesmente por não terem

ficado com eles. Podemos sim compreender essa entrega com uma escuta qualificada e

livre de recriminações para então compreender os motivos subjetivos das mães doadoras.

Dessa forma essa autora ressalta a importância da substituição do termo abandono,

pois esse termo revela uma postura completamente impregnada de preconceitos e paradoxal

em relação à mãe que “desiste” de cuidar de seu filho. Para Motta (2005) esse termo

estigmatiza e, além disso, somado ao segredo que permeia este ato, abrem espaço para

fantasias em relação a tal atitude. A criança se sente abandonada, rejeitada, não querida.

Afinal, as mães doadoras tentam garantir que seus filhos tenham um lar, uma família que

tenha mais condições que ela, em todos os sentidos que esta palavra possa expressar,

demonstrando a sua preocupação e amor pelos filhos doados. Caso contrário elas poderiam

simplesmente abandoná-los a ermo, em ruas, latas de lixos, lagoas ou mesmo os

abortariam, sem lhes dar a menor chance de sobrevivência.

A proposta é substituir o termo abandono pelo termo “entrega”, que já se encontra

instituído na adoção. Assim, essa modificação tem o intuito de pesquisar e encontrar as

diversas motivações, incluindo o âmbito psicológico, que possam estar influenciando a

entrega de um filho em adoção (MOTTA, 2005). Este, aliás, é o nosso intuito na presente

pesquisa.

3.3.3 Onde estão os pais?

Como visto anteriormente, há uma grande diferença entre os papéis conferidos ao

homem e a mulher, assim como o envolvimento e a responsabilização que cada um tem em

Page 27: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

relação aos filhos, sendo muito maior para as mulheres devido a fatores naturais, sociais,

históricos, culturais e psicológicos. Entretanto, Serrurier (1993) aponta algumas limitações

da mulher diante da maternidade. Ao assegurar que a “mãe” não é um personagem

andrógeno e onipotente, afirma-se que é somente uma mulher, necessitando assim de um

sexo complementar, o homem.

Segundo Arrais (2005) o nascimento de um filho propicia uma reconstrução

subjetiva não só da mulher, mas também do homem, dos familiares e do meio que os

cercam, desestabilizando algumas atividades e conceitos que anteriormente pareciam

estáveis. Contudo essa exigência para mudança de postura e atitudes recai na vida das

mulheres, sob uma forma de cobrança de renúncia, responsabilidade, abdicação, amor

incondicional e disponibilidade total aos filhos. É principalmente na vida delas que uma

revolução se instala após o nascimento do filho, sendo que o mesmo movimento não se

observa na vida da imensa maioria dos homens, nem na mesma intensidade, nem na mesma

quantidade.

Serrurier (1993) coloca que o mito da ‘boa mãe’ influencia na isenção da

responsabilidade paterna, pois supervaloriza a mãe, como se toda mulher quisesse ou

pudesse ser uma ‘boa mãe’, tendo relevância para os costumes familiares e a distribuição

dos papéis, pois se guia pela crença de que “se é a fisiologia da mulher que lhe permite

procriar, é ela, portanto, que pode melhor maternar” (MOTTA, 2005, p.65).

Ao analisarmos o percurso histórico feito por Badinter (1985), desde meados do

século XVII, até os dias atuais, percebemos os papéis assumidos pelo pai no âmbito

familiar. Essa autora relata o declínio da figura paterna como autoridade conseqüente da

ascensão do Estado, que por volta do início do século XVIII, o reduziu, apenas, a um

membro familiar responsável por fecundar a fêmea e proteger os filhos, enquanto estes

precisarem.

Dessa forma, o pai assumiu o papel de mero transmissor da filiação nominal,

conferindo-lhe também ser a representação da lei, sendo assim no inconsciente da criança

um pai simbólico. Badinter (1985) aponta que, atualmente, aparece a reivindicação paterna

de assumir o papel ativo na criação do filho.

Contudo, apesar de Badinter (1985) apontar essa reivindicação pela paternidade e

existirem muitos casais experimentando novos arranjos familiares, Arrais (2005) relata que

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ainda se observa que a velha divisão de papéis insiste em se manter. Essa autora afirma que

pelo pai trabalhar fora se sente no direito de não participar ativamente da educação das

crianças; e a mãe, mesmo que trabalhe fora e contribua para o sustento da família, ainda

resiste em abandonar o que fez durante tanto tempo – responsabilizar-se “sozinha” pelos

cuidados para com a sua prole.

De acordo com Arrais (2005), no século XX, sob a influência da psicanálise,

também se reforçou essa responsabilização da mãe pelos cuidados com seus filhos, ao

constatar que a figura materna é essencial para seu desenvolvimento e para a construção da

personalidade, sendo que essa cobrança não recaiu de igual maneira sobre o pai.

Pesquisadores psicanalistas argumentam que, uma vez cuidados, todos, sejam homens ou

mulheres, possuem uma base relacional para cuidar de uma criança, por conseguirem

regredir a sua relação com sua própria mãe, e se esta teve uma boa qualidade. Apesar disso,

salienta Chodorow (1990 apud ARRAIS, 2005), as mulheres continuam a serem

responsabilizadas pelos cuidados com os filhos, e não os homens. Arrais (2005) se

questiona “o que acontece com as capacidades potenciais dos homens de cuidar de uma

criança?” (p.138).

Para Margaret Mead (1971 apud RODRIGUES, 2001), a paternidade é uma

invenção social, pois o homem não traz em sua herança genética qualquer forma de conduta

paterna. Assim, como não foram habituados a exercer a paternidade, não foram

acostumados a brincar de bonecas, trocar fraldas, os homens precisam aprender a querer

sustentar outros, a responsabilizarem-se por tais cuidados. Para essa autora a sociedade tem

uma tarefa primordial: “manter os homens trabalhando em conjunto, de alguma forma onde

executem a cooperação” (RODRIGUES, 2001, p.24).

Também se faz necessário averiguar a posição do cônjuge, pois não obstante o

parceiro compartilhar ou não as tarefas práticas de cuidar das crianças, a atitude que ele

mantém diante da maternidade de uma mulher a afeta intensamente (PARKER, 1997). Com

isso as mulheres, movidas pelo nosso modelo socialmente compartilhado, acreditam que

compensa aceitar a falta de disposição do companheiro para dividir os cuidados com os

filhos, deixando de se queixar ao marido para evitar uma discussão, e assim correr o risco

de serem abandonadas. Acreditam que não devem incomodar seus maridos com suas

tristezas, nem com as inúmeras demandas de seus filhos para manterem seus casamentos.

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Há um terrível medo de “comprar” conflitos, afinal, mulheres “mal-comportadas” não só

terão que assumir sozinhas a responsabilidade de seus atos, como também podem ser mal-

amadas, malquistas e por fim, abandonadas.

Arrais (2005) evidencia que a maternidade é permeada pelo modelo de mãe

tradicional, romanceado, e pelas cobranças inerentes a ele, bem como pelo modelo clássico

de pai, exclusivamente provedor. Essa autora ressalta a importância de se repensar nesses

modelos inatos e exclusivos, abrindo espaço para pensá-los enquanto algo que se constrói a

partir da história da mulher, do homem e da relação mãe-pai-bebê.

Castells (1999 apud ARRAIS, 2005) adverte que essa demanda pela relativização

do ideal materno e pela inclusão do pai se transformou numa necessidade proeminente: o

mundo pós-patriarcal demanda por personalidades mais flexíveis. Defende que as novas

gerações devem ser socializadas fora do padrão tradicional da família patriarcal e expostas,

já na infância, a novos papéis exercidos pelos adultos. Assim, tanto meninas como meninos

vão observando a necessidade de renegociação do “contrato” da família moderna, o qual

implica em compartilhar o trabalho doméstico, parceria econômica e sexual e, acima de

tudo, responsabilidade pelos filhos totalmente compartilhada.

Não obstante, nos perguntamos: onde estão os pais, que diante da notícia de uma

gravidez não planejada, não oferecem o apoio necessário para as futuras mães de seus

filhos, deixando de assumir sua paternidade e a oportunidade de expressar o amor paterno?

Afinal, não é só a mãe quem doa o filho, o pai também o faz. Ou melhor, com base na

discussão levantada no tópico anterior, poderíamos entender que a mãe entrega e o pai

abandona o filho, no momento em que rejeita a sua gestação e abandona a sua mãe.

Page 30: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

IV – OBJETIVOS

4.1 Objetivo Geral

Compreender o sentido subjetivo da doação para as mães que já entregaram um

filho para adoção, assim como conhecer a concepção da mãe doadora para os profissionais

que trabalham com essas mulheres.

4.2 Objetivos Específicos

Compreender a vivência subjetiva dessas mães e as implicações da entrega;

Compreender o sentido subjetivo da doação;

Conhecer a concepção da mãe doadora para os profissionais da Seção de Adoção da

Vara da Infância e da Juventude do Distrito Federal que trabalham com esta

clientela;

Conhecer a percepção desses profissionais sobre o trabalho desenvolvido pela

equipe psicossocial nos casos de doação;

Contribuir para criação de estratégias de apoio para as mães que desejam entregar

seus filhos para adoção.

Page 31: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

V – MÉTODO

5.1 A Escolha Metodológica: Epistemologia Qualitativa

A presente pesquisa se caracteriza por ser um estudo qualitativo, orientado pela

Epistemologia Qualitativa desenvolvida por González Rey (2005). Tal metodologia foi

escolhida por nos permitir entrar em contato com a subjetividade dos participantes da

pesquisa, e nos encorajar a estudar o não dito, aquilo que está subjetivamente escondido e

conscientemente rejeitado. Portanto, esta metodologia mostra-se bastante apropriada para

tratar de um tema cercado de tabus e rejeitado socialmente como uma mãe que entrega seu

filho para adoção.

A Epistemologia Qualitativa desenvolvida por González Rey (2005) defende o

caráter construtivo-interpretativo do conhecimento, tratando-o como uma produção, uma

construção humana, e não uma simples aceitação da realidade que é apresentada, pois como

afirma Atlan (1993, p.66 apud GONZÁLEZ REY, 2005, p.6) “a realidade é algo a

interpretar, ela é feita daquilo que chamamos ‘interpretando’”.

Nessa proposta de pesquisa qualitativa valoriza-se a importância do pesquisador e

suas considerações a respeito da realidade encontrada em sua pesquisa. Com isso o

pesquisador deve estar preparado teoricamente a respeito de sua pesquisa e consciente das

implicações pessoais que essa possa produzir, ou seja, valoriza-se a reflexão dos

pesquisadores diante da subjetividade dos sujeitos da pesquisa e da própria subjetividade.

A subjetividade tem como sua unidade constitutiva essencial os sentidos subjetivos,

que representam uma unidade integradora de diferentes elementos que, em sua junção, o

definem. Assim González Rey (2005) define a subjetividade como um sistema complexo,

não sendo algo simplesmente internalizado, mas construído por meio da cultura e orientado

a partir das relações vivenciadas pelo indivíduo, não permitindo que seja explicada ou

esgotada por uma destas dimensões. Para Demo (2001, p. 24, apud ARRAIS, 2005) “a

realidade que temos em mente é aquela reconstruída por nós. O mundo que nos tem como

sujeito é um mundo reconstruído também subjetivamente”.

Para tanto, González Rey (2005) vê o conceito de sentido subjetivo como central na

definição de subjetividade, pois o desenvolvimento acontece através de unidades de sentido

capazes de implicar aspectos psicológicos diferentes, correspondendo a momentos

Page 32: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

concretos da vida do sujeito, não aparecendo intencionalmente nas expressões do sujeito,

mas indiretamente, nas manifestações gerais do sujeito em seus diversos tipos de expressão.

Portanto, a produção de sentidos subjetivos são processos que estão além da

representação consciente do sujeito, ou seja, vão além dos significados atribuídos pelos

sujeitos às suas ações e vivências, mas constituem-se numa integração de emoções,

significados e processos simbólicos em geral e de emoções, nas quais um elemento não está

determinado pelos outros, embora estejam relacionados entre si. Representam complexas

combinações de emoções e processos simbólicos que estão associados a diferentes esferas e

momentos da vida do sujeito e que podem estar envolvidos em configurações subjetivas

distintas (ARRAIS, 2005).

Outra característica importante desta metodologia de pesquisa, ressaltada por

González Rey (2005), é a legitimação do singular como instância de produção do

conhecimento científico, ou seja, uma única resposta tem valor e peso, característica essa

que está diretamente relacionada ao caráter construtivo-interpretativo do conhecimento.

Segundo esse autor, a legitimação da singularidade deve passar pelo caráter teórico

da pesquisa, e “o teórico se expressa em um caminho que tem, em seu centro, a atividade

pensante e construtiva do pesquisador” (GONZÁLEZ REY, 2005, p.11), ou seja, esta

valorização do singular está permeada pelo modelo teórico que o pesquisador desenvolve

no curso de sua pesquisa.

González Rey (2005), ao valorizar a subjetividade considerando o pesquisador

como principal instrumento da pesquisa, questiona a busca pela objetividade da ciência em

detrimento da subjetividade na construção do conhecimento, permeada pela concepção

positivista que impõe uma metodologia que possua dados quantificáveis por meio da mera

aplicação de instrumentos validados.

Com isso o autor enfatiza que na pesquisa qualitativa não se pode manter essa

posição instrumentalista, mas desenvolver uma posição reflexiva, considerando a

subjetividade e a singularidade dos participantes da pesquisa, assim como do pesquisador,

pois este é o responsável pela legitimação das informações construídas. Desse modo, os

instrumentos escolhidos para a pesquisa devem possibilitar uma maior expressão da

subjetividade do sujeito, para que o pesquisador tenha subsídios suficientes para interpretar

tais representações.

Page 33: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

Assim, o estudo do sentido subjetivo da doação nos permite compreender a história

das mães pelo modo com que se organizam os sentidos subjetivos em suas diferentes

configurações diante da entrega de seus filhos para a adoção e o significado da entrega.

5.2 Os Participantes da Pesquisa

Foram convidadas a participar desta pesquisa duas mulheres que já entregaram seus

filhos para adoção, a fim de que possamos melhor entender o sentido subjetivo da doação e

suas implicações. Uma apresentação completa das mães-participantes será apresentada na

seção de apresentação e discussão dos casos.

Também foram convidados profissionais que trabalham na Seção de Adoção da

Vara da Infância e da Juventude do DF - VIJ/DF, para conhecer a concepção desses

profissionais em relação às mães doadoras. Os profissionais entrevistados foram indicados

pelo supervisor da Seção de Adoção, sendo uma assistente social, uma pedagoga e dois

psicólogos.

5.3 Recursos Instrumentais Utilizados

Para as entrevistas com as mães foram escolhidos instrumentos que permitissem o

maior acesso a suas vivências, os quais pudessem possibilitar ao máximo a expressão da

subjetividade de cada mãe-participante, para melhor compreensão do sentido subjetivo da

doação para as mães que entregaram seus filhos para adoção e as implicações dessa

entrega:

Entrevista aberta com as mães doadoras, focalizada por sua história de vida e as

questões relacionadas à gestação e a entrega do filho para adoção;

Completamento de Frases (Apêndice A), trata-se de um instrumento que consiste na

apresentação de frases escritas incompletas para que o sujeito possa completar a

partir daquilo que primeiramente emergir em sua mente ao ler a frase em questão.

Foram elaboradas quarenta e seis frases incompletas com os mais variados temas,

incluindo doação e adoção, assim como o filho que foi doado;

Pranchas do TAT (Anexo A), não sendo utilizado como teste de personalidade, e

sim como disparadores temáticos. Foram escolhidas oito pranchas com o intuito de

que as participantes escolhessem as que quisessem e, a partir das escolhidas,

Page 34: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

montassem uma história, não sendo obrigatório a utilização de todas as pranchas. As

pranchas foram escolhidas a partir das figuras que pudessem estar relacionadas com

sua história e doação, conflitos conjugais, parentais, aspectos transgeracionais,

dentre outros. Foram escolhidas as pranchas (MURRAY, 1995):

3MF – uma jovem de pé com a cabeça abaixada e o rosto coberto com a

mão direita, o braço esquerdo está esticado para frente segurando-se a uma

porta;

4 – uma mulher está agarrando os ombros de um homem cujo corpo e cuja

face estão virados como se ele estivesse tentando escapar dela;

7MF – uma mulher mais velha sentada num sofá junto de uma menina,

lendo ou falando com ela. A menina, que segura uma boneca no colo, e olha

em outra direção;

8MF – uma mulher está descansando, segurando o queixo e olhando no

vazio;

9MF – uma jovem com uma revista e uma bolsa na mão olha, por trás de

uma árvore, outra jovem num vestido de festa, que corre na beira de uma

praia;

12F – o retrato de uma jovem senhora e ao fundo uma velha estranha está

com um xale na cabeça e fazendo careta;

14 – a silhueta de um homem (ou de uma mulher) numa janela clara, com

o resto do quarto totalmente negro;

16 – prancha em branco.

Também foi utilizado um instrumento que permitisse conhecer a concepção dos

profissionais a respeito das mães doadoras:

Entrevista semi-estruturada (Apêndice B) com os profissionais da Seção de Adoção,

direcionada pelo trabalho desenvolvido na VIJ/DF com as mães que procuram o

Serviço com a intenção de realizar a entrega de seu filho para adoção;

5.4 Procedimento de Construção das Informações

Duas mulheres foram convidadas a participar desta pesquisa, sendo que foi muito

difícil conseguir chegar até as mães-participantes. O contato com a primeira participante foi

Page 35: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

feito por intermédio de uma amiga da pesquisadora, pois é empregada doméstica, trabalha

em sua casa e havia contado sua história da doação de seus filhos. O primeiro contato foi

feito via telefone, para que fossem esclarecidos os objetivos da pesquisa, sanadas possíveis

dúvidas e marcadas as entrevistas com datas e horários pré-estabelecidos.

O primeiro encontro foi realizado na casa onde mora e trabalha como empregada,

por opção da participante e consentimento de sua patroa. Durante este encontro inicial

foram esclarecidos novamente os objetivos da pesquisa e entregue o Termo de

Consentimento Livre e Esclarecido (Apêndice C), para que com sua assinatura autorizasse

a utilização das informações obtidas no estudo e a gravação em áudio, observando as

questões éticas, e explicando-lhe que sua participação no estudo é voluntária. Duas vias

deste Termo foram assinadas pela orientadora da pesquisa, pela pesquisadora e a

participante, para que uma cópia ficasse com a pesquisadora e outra com a participante.

Iniciou-se o desenvolvimento da entrevista aberta que visou identificar a

participante, conhecer sua história, a história da gravidez e da entrega de seu filho para

adoção, assim como seus sentimentos atuais e pensamentos para o futuro. Neste mesmo

encontro lhe foi entregue o Completamento de Frases, para que ela respondesse e num

segundo encontro, também com data e horário pré-estabelecidos, pudéssemos conversar

sobre esse instrumento.

No segundo encontro também foi realizada uma entrevista aberta guiada pelo

Completamento de Frases na qual a participante pôde comentar suas respostas, e dizer

como foi para ela responder a esse instrumento. Depois foi marcado um terceiro encontro,

no qual lhe foram apresentadas as pranchas do TAT para que ela pudesse escolher as que

quisesse e a partir delas montasse uma história. Depois de montada a história do TAT, foi

feita uma entrevista de devolutiva para a participante com as impressões da pesquisadora,

assim como um encaminhamento para um atendimento psicoterápico.

Foi feito um contato com a Seção de Adoção da Vara da Infância e da Juventude do

DF - VIJ/DF, que serviu como intermediador para o contato com a segunda mãe-

participante desta pesquisa. Por meio da VIJ/DF foi-nos fornecido seu telefone, em total

comprometimento de sigilo e com seu consentimento. Essa participante foi escolhida por

ter chamado a atenção da equipe psicossocial da Seção de Adoção, pois ela procurou se

informar a respeito dos processos legais da adoção e os procurou quando ainda estava

Page 36: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

grávida, o que não é muito comum de ocorrer. Assim, foram marcadas as entrevistas

também com datas e horários pré-estabelecidos. Os encontros ocorreram da mesma maneira

que foram feitos com a primeira participante, no entanto os locais das entrevistas foram

públicos. Com a segunda participante, por interesse dela, foram combinados encontros

periódicos, transformando-se num espaço terapêutico por um cuidado ético.

Esse contato com a VIJ/DF foi realizado por meio de um ofício (Apêndice D), para

que fosse autorizada a pesquisa processual e de dados inerentes à Seção de Adoção, por

meio de entrevistas realizadas com os profissionais que trabalham diretamente com as mães

que apresentam a intenção da entrega de seus filhos para adoção. Os profissionais foram

indicados pelo supervisor da Seção de Adoção, sendo as datas e os horários previamente

marcados. Quatro profissionais foram entrevistados individualmente, dois psicólogos, uma

assistente social e uma pedagoga, sendo realizadas duas entrevistas por dia com média de

trinta minutos cada.

Todas as entrevistas realizadas foram gravadas em um aparelho MP3 e transferidas

para o computador da pesquisadora e transcritas literalmente, com o objetivo de resguardar

as falas dos participantes e seus sentidos subjetivos.

5.5 Procedimento de Análise das Informações

O procedimento utilizado para análise das informações levantadas, com o intuito de

melhor compreender a subjetividade das participantes, de acordo com a Epistemologia

Qualitativa de González Rey, tem caráter construtivo-interpretativo. Assim a análise se

constituiu numa escuta, e leitura, atenta das entrevistas realizadas, sendo integradas as

informações provenientes dos instrumentos utilizados. A partir desta integração foram

feitas as apresentações dos casos para que assim fossem identificados, a partir da

interpretação subjetiva das informações, os indicadores sobre as motivações implícitas,

relativas à subjetividade das participantes, em relação à entrega de seus filhos para adoção.

Esses indicadores consistem em elementos relacionados àquilo que mobiliza o

sujeito acerca do tema estudado, sendo expressos por via indireta e implícita. Tais

indicadores nascem do diálogo interpretativo, parecendo inicialmente uma especulação

feita por parte do pesquisador. Contudo, para que não assuma este papel, o indicador deve

Page 37: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

ser reafirmado durante os vários momentos da pesquisa, considerando todas as

informações, incluindo as provenientes dos momentos informais (ARRAIS, 2005).

Segundo esta autora, são os indicadores que permitem a construção do

conhecimento, sendo que apenas um indicador não tem valor como elemento isolado, mas

como parte de um processo em que funciona a estreita inter-relação com outros indicadores.

Eles permitem ainda explicar ou dar sentido ao problema estudado, sendo que explica o que

não é possível observar explicitamente, permitindo posteriormente uma descrição.

A partir da análise dos indicadores foram construídos os núcleos de sentido que,

segundo González Rey (2005), referem-se a estas categorias ou hipóteses construídas com

base nos indicadores, os quais estão articulados com os pontos que mobilizam o sujeito e

não com aquilo que é mais freqüente ou semelhante.

Turato (2003) destaca que o pesquisador atua como um bricoler, ou seja, constrói

sua teoria a partir de fragmentos, pedaços. Chauí (1995 apud TURATO, 2003) define

pesquisador como aquele que produz um objeto novo a partir de pedaços e fragmentos de

outros objetos, reunindo tudo o que encontra e julga importante para compor seu novo

objeto. Portando, faz-se necessário esclarecer que nem o indicador, nem os núcleos de

sentido, têm um caráter definitivo, são apenas peças interpretativas que se integram a um

sistema de interpretação.

Para análise das entrevistas com os profissionais não foi utilizada a Epistemologia

Qualitativa (GONZÁLEZ REY, 2005). A metodologia se consistiu no agrupamento das

respostas para conhecer a concepção como um todo dos referidos profissionais, sendo

realizada uma análise dos relatos.

Page 38: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

VI – APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS CASOS

Participaram desta pesquisa duas mulheres que já entregaram seus filhos para

adoção, sendo chamadas no estudo de Bianca e Isis, nomes fictícios escolhidos por elas,

com o intuito de preservar a identidade das mães-participantes da pesquisa.

6.1 – Construções a partir das informações de Bianca

Identificação e História Familiar: Bianca tem 29 anos, é solteira, não concluiu o

ensino fundamental, é natural da Bahia e trabalha como empregada doméstica. Mora na

casa aonde trabalha, no entorno de Brasília. Ela teve três filhos, uma menina e dois

meninos, e entregou dois filhos para adoção: o do meio há cinco anos, e o caçula há quatro

meses.

Bianca é a caçula de uma família de cinco filhos. Tem mais dois irmãos por parte de

mãe, mas aparenta não considerá-los muito: “minha mãe teve mais dois filhos por lá”.

Quando tinha aproximadamente dois anos seus pais se separaram, pois sua mãe decidiu sair

de casa, deixando os filhos. Assim, ela foi morar na casa de sua tia, que anos mais tarde

faleceu em um acidente doméstico. Ela relatou que viu sua tia sair do banho e ir, toda

molhada, passar roupa e o instante seguinte cai e falece, ela diz não saber a causa da morte

de sua tia. Depois desse acidente, que a marcou profundamente, por ter presenciado o fato,

ela foi embora com o pai morar com seus avós paternos. Seu pai ficou muito abalado com a

separação, decidiu ir morar sozinho e passou a beber freqüentemente, sendo que teve

algumas complicações orgânicas devido ao uso abusivo do álcool e por isso faleceu.Com o

tempo Bianca passou a trabalhar na casa dos avós como se fosse a empregada da casa.

Aos dezesseis anos teve um longo relacionamento, no qual, por não se prevenir,

acabou engravidando, seria mãe de uma menina. Seu namorado não aceitou muito bem a

gravidez e acabaram terminando o relacionamento. Teve sua filha na casa de seus avós,

mas após alguns anos, devido a um convite, decidiu vir para Brasília morar com outra tia,

que a chamou para ajudá-la a cuidar das filhas. Deste modo, ela trabalhava e cuidava de

suas primas em troca da moradia oferecida por sua tia. Não recebia nenhum outro tipo de

pagamento, sendo que depois de alguns anos decidiu trabalhar para conseguir seu sustento.

Foi quando saiu da casa de sua tia e começou a trabalhar como empregada doméstica.

Page 39: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

Vemos uma história marcada por separações, perdas e abandonos. Estaria Bianca

atualizando sua história de abandono, por meio dos filhos que doou?

História da gravidez e da doação do primeiro filho que entregou: Bianca iniciou

um relacionamento, o qual durou aproximadamente dois anos, e aos vinte e cinco anos

engravidou de seu segundo filho, um menino. Quando seu parceiro ficou sabendo da

gravidez, não quis assumir alegando que o filho não era dele e iniciou um outro

relacionamento com uma amiga de Bianca, que também engravidou e também acabou

sendo abandonada. Depois disso ele sumiu e nunca procurou saber notícias dela ou de seu

filho: “o pai nem queria assumir”.

Após a rejeição de seu namorado, Bianca procurou sua tia para saber se poderia

morar com ela, devido à gravidez, mas essa negou. Na história montada a partir das

pranchas do TAT, Bianca também relatou que seus tios falaram para que ela cuidasse de

seu filho, mas ao pedir a ajuda e um lugar para ficar, eles recusaram: “eles não me

quiseram”. Foi quando conseguiu que sua patroa a acolhesse em sua casa, aonde trabalhou

até o nascimento do bebê. Após o nascimento, ela se viu em condições muito precárias,

pois não produziu muito leite e seu filho não dormia direito por causa da fome que sentia.

Relatou que sua patroa, apesar de tê-la acolhido com seu filho, não a ajudava em nada, via

que estavam passando fome e não fazia nada por eles: “ela parecia minha mãe, mas na

hora de ajudar mesmo, não ajudava”.

Bianca relatou que a decisão pela doação de seu filho surgiu quando uma amiga de

sua patroa viu a situação em que ela e seus filhos se encontravam e diante disso se ofereceu

para adotá-lo. No dia em que estava desesperada pelo choro de seu filho, pois sabia que era

fome, fez duas mamadeiras de chá para ele, mas mesmo assim sentiu que sua fome não

havia passado. Foi quando decidiu aceitar o pedido dessa mulher: “eu dei mesmo por causa

da minha dificuldade, porque não queria ver meu filho passando fome”.

Quando realmente decidiu pela doação, fez sua única exigência: “poder ver meu

filho quando eu quisesse”, e a mulher que o adotou aceitou. Tal exigência não seria uma

demonstração de amor? Após a entrega de seu filho foi ao cartório formalizar a adoção,

ocasião em que foi avisada que uma nova certidão de nascimento de seu filho seria emitida,

agora com o nome dos novos pais.

Page 40: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

História da gravidez e da doação do segundo filho que entregou: Após dois anos,

Bianca se envolveu em outro relacionamento, que também durou aproximadamente dois

anos. Disse que se prevenia, tomando anticoncepcional, mas que acabou se descuidando e

engravidou de seu terceiro filho, outro menino.

Quando contou ao seu parceiro da gravidez, ele aceitou e disse que cuidaria dela e

do filho, entretanto ela descobriu que ele tinha uma amante e decidiu deixá-lo. Com o

passar do tempo, ela ligou para ele, contudo ele viajou e sumiu. Não atendia aos

telefonemas dela e não ligava: “simplesmente sumiu”. Resolveu contar ao seu patrão e

pedir seu apoio, pois como ela já cuidava das filhas dele conseguiria cuidar também de seu

filho, “seria apenas mais um bebê”, mas seu patrão não permitiu.

No seu quarto mês de gestação, uma conhecida dela pediu o bebê para cuidar, já que

ela estava bastante preocupada, sem uma boa condição financeira e nem mesmo um lugar

para ficar. Ela aceitou desde que pudesse morar com eles nos primeiros meses após o parto

e pudesse manter contato com seu filho. “Eu conversava muito com ele dentro da minha

barriga, explicava tudo pra ele, o porquê de estar fazendo aquilo”.

Depois do nascimento de seu filho, ela e o casal que o adotariam foram a VIJ/DF

para que ela pudesse passar a guarda provisória do filho para essa amiga, e assim foi feito.

Em menos de um mês, Bianca havia saído da casa dessa amiga-adotante, pois estava se

sentindo incomodada com aquela situação, sentia como se estivesse sobrando.

Bianca foi trabalhar em outra casa na qual mora ainda hoje. Na história montada por

ela, por meio do TAT, contou que nesta casa sentiu-se apoiada, acolhida por sua patroa

quando não tinha para onde ir, onde morar, pois em nenhuma das outras casas nas quais

trabalhou a quiseram de volta: “ela me deu apoio na hora em que eu mais precisei”.

Filhos Doados: Ao falar de seus filhos, sempre se refere a eles com muito amor e

preocupação, como por exemplo, no completamento de frases: “quando penso no filho que

doei... meu coração”, disse que não se arrepende do que fez porque não pensou nela: “não

dá pra pensar em mim, tive que pensar neles, no bem deles”. Em relação ao futuro dos

filhos que entregou para adoção, a partir do completamento de frases, pareceu-nos que a

entrega foi uma forma de proteger e oferecer aos filhos um futuro melhor: “o futuro dos

filhos que doei... muito melhor para eles”. Como uma de suas exigências quando entregou

os filhos foi poder ter contato com eles, sempre que pode vai visitá-los nos finais de

Page 41: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

semana, mas decidiu que irá diminuir as visitas, pois não quer atrapalhar a vida dos filhos.

Ao contar sobre como o primeiro filho que ela entregou a chama ela se emociona: “antes

ele me chamava de mãe-2 Bianca, agora é só Bianca”. O primeiro filho que entregou, hoje

tem cinco anos e o segundo quatro meses.

Atualmente sua primeira filha ainda mora com a tia, que recebe para cuidar dela,

mas essa situação a tem incomodado bastante. Sente que a relação com sua filha está

enfraquecendo, pois em algumas situações não a chama mais de mãe somente pelo nome.

Parece-nos que a entrega de seus filhos ainda a deixa bastante abalada,

principalmente do segundo filho, pois é muito recente. Relata não estar arrependida por

achar que foi o melhor para seus filhos, porque não tinha condições de proporcionar-lhes

uma vida melhor. “Agora é pensar em não fazer de novo, porque dói o coração da gente

sabe, mas saber que eles estão bem não dói muito não, dói de saudade mesmo”. E sua

intenção agora é “recomeçar uma nova história”.

História montada a partir das pranchas do TAT – Bianca demonstrou muita

dificuldade para contar uma história a partir das pranchas do TAT, não sabia como iniciaria

a história: “Nossa! Você quer fazer um quebra cabeça comigo hoje. E agora?”. Essa

dificuldade nos parece ser em relação a sua própria história, pensar em como tudo

aconteceu e nos motivos subjetivos que a levaram a tal decisão foi algo que Bianca ainda

não havia feito, isso também se explica pelo fato da história contada ser e não ser sua, ou

seja, ela começou contando a história de uma personagem, mas em vários momentos a

confundia (e nos confundia) com sua própria história e se referia à personagem como sendo

ela mesma, contando uma história de doação, abandono e privação. A ordem das pranchas

foi: 7MF, 3MF, 14, 9MF, 8MF, 12F e 16, ela não utilizou a prancha 4, montou essa ordem

na medida em que ia contando a história (descrições das pranchas p.29 e anexos).

Algumas pranchas nos chamaram a atenção: 7MF – ela iniciou com esta prancha

dizendo que era uma menina com um bebê no colo, e sua mãe ao lado. A menina não sabia

o que fazer e decidiu “dar” seu filho. A partir desse início, ao dizer que era “uma menina

com sua mãe ao lado”, poderíamos inferir que foi por sua mãe que ela primeiramente se

sentiu abandonada e sem apoio?

Continuou a história contando sobre um arrependimento inicial, mas depois

superado porque a personagem (ela) não possuía condições de continuar com os filhos.

Page 42: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

Chorou, foi para a escuridão. O que nos remete à representação simbólica da solidão em

que se encontrou, tomou essa decisão por não ter o apoio de ninguém, por estar só. Por isso,

como contado a partir da prancha 9MF, ela saiu procurando alguém que pudesse ajudá-la,

mas não encontrou. Nessa parte ela completou dizendo que também foi procurar ocupar a

mente, um emprego, exatamente o que ela foi fazer. Contou que ficou bastante pensativa, e

voltou para a personagem, “ela estava pensando no filho dela, que era por amor que ela

estava agindo” (prancha 8MF). Não nos resta dúvidas que se ela tivesse encontrado o apoio

necessário para ficar com seus filhos, pelos companheiros, parentes ou patrões, não os teria

dado, e como ela mesma disse: “era por amor que ela estava agindo”.

As considerações que ela fez a partir da prancha 12F também nos chamaram muito

a atenção, pois ela disse que foi aonde encontrou um apoio. Referiu-se à velha atrás da

moça, como sendo sua patroa e disse “ela me deu apoio na hora que eu mais precisei”.

Estaria Bianca se sentindo apoiada por ter conseguido um lugar para ficar, mas ao mesmo

tempo magoada por não ter podido levar com ela os filhos? Será que ela estava realmente

se sentindo apoiada? Ou qualquer forma de apoio para ela é suficiente devido às privações

e carências que passou?

A última prancha utilizada foi por nós incluída (prancha 16). Ao questionarmos o

que representaria para ela a inclusão de tal prancha ao final de sua história, sem pensar ela

respondeu: “um recomeço. Recomeçar uma nova história”. Um outro detalhe também nos

diz muito: a não utilização da prancha 4, pois não utilizá-la nos permite inferir a rejeição

que ela sente em relação a seus parceiros, por sentir-se abandonada não permite que

participem de “sua” história, como eles mesmos não quiseram.

6.1.1 – Núcleos de sentido subjetivo construídos para Bianca

A partir dos encontros realizados com Bianca, durante a técnica do completamento

de frases e do TAT, pudemos encontrar vários indicadores que nos permitiram construir

alguns núcleos de sentido subjetivos para ela:

De abandono em abandono: “Eu não tive o apoio de ninguém”.

Este nos parece ser o núcleo de sentido que mais expressa o que mobiliza Bianca, e

nos faz pensar sobre sua opção pela entrega para adoção. Pois, apesar de não ter

Page 43: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

consciência disso, sua história foi repleta de abandonos e, assim, pensamos que se repete

sua história de abandono. Logo no início de sua vida, Bianca passou pela separação de seus

pais, e como foi sua mãe que os deixou, ela sofreu muito sua perda, não somente a presença

física, mas também sua referência como mãe, sentindo-se abandonada por ela, como

pudemos observar no completamento de frases: “minha mãe... uma mulher a qual pude

chamar de mãe”. E, após esta perda, não teve nenhuma presença significativa que pudesse

substituir a figura de sua mãe, pois foi morar com uma tia que logo faleceu, e depois com

os avós. Bianca não se encontrou mais com sua mãe, somente no enterro de seu pai que,

“ela veio e mal viu os filhos”. Quando fala de sua mãe expressa certa mágoa, por sentir-se

de fato abandonada por ela, “eu não a perdôo não”.

A morte de seu pai foi outra perda bastante significativa para ela, pois foi dele que

recebeu amor e cuidado, sendo uma pessoa muito importante para ela, como apareceu no

completamento de frases: “meu pai... uma das coisas mais belas da vida”. Mas sua morte

também teve uma representação de abandono para ela, pois antes de passar a consumir

cronicamente o álcool, ele a deixou, junto com os irmãos, na casa dos avós para ir morar

sozinho, e começou a se embriagar por causa de sua esposa, a mulher que os abandonou.

Mas ao falar dele, não expressa nenhum rancor como em relação a sua mãe, “foi minha

mãe que foi embora, não o meu pai”. Bianca cresceu na casa dos avós, e “meio que

trabalhava como empregada da casa”, o que unido à ausência de seus pais, reforçou sua

carência afetiva, o que pôde ser confirmado futuramente em sua vida, pois passou a investir

em relacionamentos pouco seletivos que somente a trouxeram sofrimentos.

Bianca engravidou cedo e aos dezesseis anos teve sua primeira filha. Envolveu-se

em mais dois relacionamentos, que duraram aproximadamente dois anos, dos quais

engravidou e teve mais dois filhos. Nesses três relacionamentos, Bianca não encontrou

nenhum apoio, e foi abandonada em todos eles, pelo mesmo motivo: uma gravidez não

planejada. Essa repetição de abandonos em sua vida reforça nossa suspeita em relação a sua

baixa auto-estima, carência e imaturidade emocional, por se permitir envolver-se em

relacionamentos destrutivos, nos quais não conseguiu nenhum apoio, somente

discriminação e abandono, como apareceu na história do TAT, “meu namorado me

abandonou... é um caso complicado”. Bianca ao montar sua história rejeitou a prancha de

número 4, cujo desenho é de um homem e uma mulher juntos, sendo que ele não olha para

Page 44: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

ela, e ela o segura pelos ombros. Ao não usar esta prancha Bianca nos permite inferir seu

sentimento de rejeição por seus parceiros, pelos quais foi abandonada, sendo que para ela

nos parece muito difícil assumir tais rejeições, principalmente por ter sido também, por não

ter o apoio deles que decidiu pela doação de seus filhos. O que nos remete ao

completamento de frases: “o que me faz sofrer... descobrir a verdade”, a verdade de que

foi abandonada, e trocada por outras mulheres?

Bianca também não pôde contar com o apoio de sua família, pois quando precisou

ser acolhida e pediu ajuda a sua tia, essa recusou. Na história do TAT, ela relata que seus

tios disseram para que ela ficasse com seu filho, mas não ofereceram nenhum tipo de ajuda,

somente a discriminaram e a abandonaram. Para Bianca, como surgiu no completamento de

frases, “minha família... meus irmãos”, sua família se restringe aos irmãos, talvez por se

ver abandonada pelos outros familiares, que não a ajudaram quando precisou. O que nos faz

questionar que, se ela tivesse conseguido pedir ajuda aos irmãos, sua história seria

diferente? Se ela tivesse conhecimento do serviço prestado pelo Estado, pela figura da Vara

da Infância e da Juventude, especificamente pela Seção de Adoção, e tivesse se beneficiado

dele, sua história seria diferente? “Se eu pudesse... procurava ajuda dos meus irmãos”.

Bianca foi mais uma vez abandonada: pelo Estado, por não se fazer conhecer, ou mesmo

por não oferecer uma maior rede social de apoio e de acesso a direitos dela e das crianças.

Esse assunto nos remete a um outro abandono sofrido por Bianca: em seus

empregos, por seus patrões. Quando engravidou de seu segundo filho, foi acolhida por sua

patroa, mas essa não a ajudava muito apesar de conviver diariamente com seu sofrimento: a

fome de seu filho. “Ela parecia minha mãe, mas na hora de ajudar mesmo, não ajudava”,

frase que também nos mostra seu ressentimento em relação a sua mãe. Após a doação, foi

demitida e começou a trabalhar em outra casa. Novamente ficou grávida, mas seu patrão

não aceitou e a demitiu, procurou emprego nas outras casas nas quais já havia trabalhado,

mas ninguém quis acolhê-la. Somente lhe deram emprego quando não estava mais grávida

e nem com filho, pois apesar de não ter entregue sua primeira filha para adoção, teve que

pagar sua tia para cuidar dela, para poder manter seu emprego. Em que medida ela

consegue, diante das condições com que pode contar, ser efetivamente mãe dessa filha?

Várias formas de abandono perpassaram a vida de Bianca, o que a fez sempre se

sentir sozinha, abandonada. “Não gosto... de me sentir sozinha”.

Page 45: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

Privação X Sobrevivência: “É difícil... a arte de sofrer”.

Bianca passou por várias privações, não somente afetivas como financeiras, pois

desde quando morava com seus avós já trabalhava, e sem remuneração. Podemos relacionar

essa privação a uma forma de exploração, trabalhava em troca de moradia e alimento. Ao

ser convidada para morar com sua tia, aqui em Brasília, a história não foi diferente, cuidava

de suas filhas e não recebia nenhuma remuneração para esse serviço. Trabalhava

novamente em troca de alimento e moradia.

Nos empregos que possuía, ela sofria algumas privações e explorações. Um de seus

sofrimentos foi a insensibilidade de sua patroa em relação ao sofrimento de seu filho diante

da fome, devido a escassez de leite que produzia e a sua dificuldade financeira. Esse

também foi um dos principais motivos que a levaram a entregar seu filho para uma pessoa

que tivesse mais condições, principalmente de alimentá-lo, “não queria ver meu filho

passando fome”. Ela vê em seu novo e atual emprego uma oportunidade de crescimento, de

melhorar de vida, pois agora pôde retomar os estudos e recomeçar: “meu trabalho... aquela

oportunidade”.

O futuro de seus filhos foi uma de suas preocupações quando pensou na entrega, o

que nos permite inferir que ela não queria que sua história se repetisse em seus filhos, um

história de privação e dificuldades, “eu não me arrependo do que fiz, eu fiz pensando neles,

no bem deles, eu sei que eles estão bem, eu estou vendo”. Talvez isso fez com que ela

decidisse, já na gravidez, pela doação de seu terceiro filho, por não querer vê-lo passando

fome como o segundo.

Ao apresentar no completamento de frases “é difícil... a arte de viver”, e “a vida...

saber viver”, nos permite pensar que sua vida foi cheia de sofrimentos, mas apesar de tudo,

ela tenta sobreviver. “Eu não tenho onde morar, mas eu penso em me casar, ter minha

casinha e morar com a minha baixinha”, “meu futuro... um futuro melhor”. Permite-nos

afirmar que além das privações financeiras sofridas por ela, algo que muito lhe marcou em

sua vida, foram as privações afetivas, os afetos que não teve, o cuidado, o apoio.

Page 46: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

Doação: Ato de abandono ou de amor?

Ficou-nos claro, depois de todos os encontros e as técnicas realizadas com Bianca,

que sua atitude de entregar seus filhos para adoção foi uma forma de preservá-los de todas

as experiências ruins pelas quais passou, os abandonos, as privações, os sofrimentos.

Podemos então pensar na doação como sendo um ato de abandono ou de amor?

No completamento de frases, várias vezes ela se refere à entrega com uma grande

ambivalência: “lamento... ter dado os meus filhos”, ao mesmo tempo em que diz não se

arrepender por ter feito o que achava ser o melhor para eles; “quando penso no filho que

doei... meu coração”, e ao mesmo tempo “o futuro do filho que doei... muito melhor para

eles”. Podemos considerá-la como uma mãe desnaturada? Ou uma mãe que ama, mas

renuncia pensando no melhor para os filhos?

Seu conforto consiste na certeza de poder acompanhar de perto que seus filhos estão

sendo bem cuidados, alimentados e amados por suas novas mães, como apareceu na

história do TAT: “ela ta cuidando, dando amor, dando carinho, então... é a mãe dele”.

Essas palavras lhe saem com grande dificuldade, pois “sinto falta... dos meus filhos”,

“amo... os meus filhos”, “o tempo mais feliz... encontrar meus filhos”, é o que mais

aparece em suas respostas ao completamento de frases, reforçando nosso pensamento de

que a entrega foi realmente um ato de amor e uma alternativa resultante da total falta de

condições para o exercício da maternidade: “sou uma mãe... o verdadeiro amor”. Sua

exigência de poder ver os filhos também nos confirma sua preocupação e amor para com os

filhos, preocupação esta que sua mãe não teve.

Ainda assim, sabe-se que seu ato de amor implica em separar-se dos filhos, talvez

por isso que uma de suas maiores preocupações consiste no perdão dos filhos: “minhas

opções... haverá perdão para os meus erros”, “o passado... ainda resta uma esperança”,

pois acredita que quando eles estiverem maiores, irão procurá-la para saber os motivos que

a levaram a tomar tal atitude, e percebemos que tem uma esperança em que eles a perdoem

e voltem a viver com ela: “eu prefiro... merecer ser perdoada”.

No caso de Bianca, tivemos algumas dificuldades para construir nossas

interpretações, porque as duas primeiras entrevistas gravadas foram perdidas, o que

diminuiu a quantidade de informações referentes ao caso. Mas outra questão também foi

muito importante: sua própria falta, suas privações.

Page 47: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

A dificuldade de pensar em sua vida e história, as privações sofridas, principalmente

intelectuais, dificultaram sua capacidade de reflexão intelectual, o que pudemos observar

nas frases um pouco truncadas do completamento de frases, como por exemplo, “eu

secretamente... nestas palavras está a verdade”. O que apesar de dificultar não impediu

nossa interpretação, pois como no exemplo supracitado, percebemos que foi muito

importante para ela falar do que realmente sentiu em relação a entrega de seus filhos.

Essas privações, intelectuais, financeiras e afetivas influenciaram diretamente na

vida de Bianca e principalmente em sua decisão pela entrega. Projetou para vida dos filhos

todas as privações que passou, pois foi a única forma que ela conheceu em sua vida, e com

isso decidiu preservá-los de todas essas privações que sofreu, dando-os para alguém que

pudesse oferecer para eles aquilo que ela não poderia.

As privações não foram as únicas influências em sua vida, mas também, e

principalmente, os abandonos. Primeiramente por sua mãe, depois por seu pai, por sua tia,

pelos avós, pelos parceiros, pelos patrões, e esse abandono se repete em seus filhos. Seria

então um reflexo de todas as experiências que passou, de todos os abandonos?

Retomamos as colocações de Daher, Laloni e Baptista (1999) que afirmam que a

decisão pela doação parece ser o caminho mais rápido e eficaz, e que muitas vezes não é

exclusiva da mãe, mas responde às pressões sociais e familiares. O que percebemos na

história de Bianca é que, ao estar sozinha, sem o apoio de seus familiares, para garantir seu

emprego e principalmente para preservar os filhos de suas experiências negativas, foi que

os entregou para adoção.

Concluímos nossa discussão a respeito do caso de Bianca com uma indagação feita

por Motta (2005), como pontuamos anteriormente em nossa fundamentação teórica: “como

situar a crítica feroz àquelas jovens solteiras que pressionadas pela família, abandonadas

pelo parceiro, sem emprego, e às vezes sem lugar para morar?” (2005, p.60). Podemos

acrescentar que o amor perfeito imposto à maternidade é realmente um mito, por existirem

sentimentos ambivalentes na relação de uma mãe com seu filho. Porém o amor existe! Não

como foi socialmente idealizado, não como um mito mas, considerando a subjetividade de

cada indivíduo, o amor existe na medida e na diversidade que foi possível a cada sujeito.

Não podemos esperar que uma pessoa ofereça aquilo que não recebeu, o que acontece com

muitas mulheres que abandonam seus filhos, o fazem porque antes foram abandonadas.

Page 48: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

E as mães doadoras? Concordamos com Motta (2005) na substituição do termo

abandono por entrega, para substituir um termo completamente estigmatizado por um termo

que possibilite a inserção do amor em tal ato, não nos restando dúvidas que seja uma

atitude de amor, a melhor e única maneira que encontraram para preservar seus filhos, para

amá-los.

Page 49: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

6.2 – Construções a partir das informações de Isis

Identificação e História Familiar: Isis tem 25 anos, é solteira, natural de Brasília,

possui o ensino médio completo e trabalha como gerente de vendas em uma empresa

particular de grande porte. Mora sozinha numa casa alugada no entorno de Brasília. Isis

teve sua primeira filha e a entregou para adoção há cinco meses.

Ela e sua família, pai, mãe e irmão, sempre moraram no entorno de Brasília, mas

quando tinha por volta de um ano de idade, seu pai teve que voltar para sua cidade de

origem, por motivos desconhecidos por ela, e a chamou para acompanhá-lo, mas ela não

quis. Foi quando seus pais se separaram. No Completamento de Frases, em relação ao seu

pai, ela colocou que “meu pai... ele nos deixou, não nos procurou”. Relatou que não

conhece o pai nem por fotos, no entanto descobriu que sua mãe não lhes contou as vezes

em que ele os procurou, não permitindo que nenhum contato fosse feito. Assim, ela e seu

irmão mais velho foram criados por sua mãe. Seu irmão se casou e teve uma filha que hoje

tem seis anos, e sua mãe mora sozinha perto de sua casa.

Isis começou a trabalhar desde cedo, sendo que com dezoito anos trabalhou com

carteira assinada, e com vinte e dois anos decidiu ir morar sozinha. Em seu relato expõe que

não mantinha uma relação amigável com sua mãe e por isso tomou tal decisão: “eu achei

melhor ir morar sozinha, não vou viver do jeito que ela quer”, o que nos faz pensar que sua

mãe exercia uma grande influência em sua vida, querendo que ela agisse conforme suas

vontades. Entretanto, parece-nos que Isis possui um sentimento bastante ambivalente em

relação a sua mãe, pois ao mesmo tempo em que afirma não querer, volta a morar com ela

para ajudá-la assim que entregou sua filha para adoção.

Relata que sua mãe precisa de ajuda, mas não quer ser ajudada, “ela rejeita essa

ajuda de alguma forma”, mas se os filhos não oferecem tal ajuda “ela não joga na cara,

mas faz muitas indiretas”, porque acredita que por tê-los criado, eles têm a obrigação de

ajudá-la. Assim, ao mesmo tempo em que ela relata não concordar com tais cobranças, se

sente na obrigação de retribuir a mãe por tudo que ela já fez, pelo fato de ser sua filha.

Sua percepção de família é bastante conturbada, pois suas referências são: o

abandono do pai, a relação ambivalente e conflituosa com sua mãe, e a distância do irmão.

“Tem gente que diz que na família se pode tudo, não sei qual o conceito que eles têm de

família, que você pode dizer o defeito do outro, que é um ambiente mais íntimo, e não é

Page 50: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

assim. É ao contrário, eu acho. Tem coisas que são ditas só pra espetar o outro mesmo,

pra machucar”.

História da gravidez do filho que entregou: Isis mantinha um relacionamento há

aproximadamente três anos, com um rapaz de vinte e três anos. Relatou que sempre usou

anticoncepcional, no entanto devido a um tratamento de cisto nos ovários, parou de usar,

pois não podia engravidar. Após o término do tratamento, como havia parado de tomar o

anticoncepcional há um mês, acabou engravidando nesse período, apesar de relatar que

sempre se preveniu, “eu fiquei sem tomar o remédio, mas eu sempre me preveni, mas aí

alguma coisa aconteceu, ninguém tá livre, aí fiquei grávida”.

Relatou que a princípio não sabia que estava grávida, e se a empresa na qual

trabalha não a fosse demitir, devido a um fato que aconteceu com ela (um roubo em seu

caixa), só ficaria sabendo da gravidez quando sentisse alguma coisa. Antes de demitir os

funcionários, é rotina a empresa fazer o pedido de vários exames, inclusive o de gravidez,

pois se a mulher estiver grávida não pode ser demitida, foi quando tomou conhecimento da

intenção de demissão da empresa. Pediram que fizesse esses exames, e foi a partir de seus

resultados que descobriu que estava grávida, “aí pra mim também foi um susto, porque eu

não sabia, e eu vinha sempre me prevenindo”. Teve uma gravidez tranqüila, fez o pré-natal

corretamente, e relatou não ter sentido muitos enjôos, somente um desmaio no início da

gravidez.

Quando contou para sua mãe sobre a possibilidade de estar grávida, ela não aceitou

e queria que fosse feito um aborto, principalmente porque ela não gostava do pai da

criança, “mas eu não quis”. A notícia para seu namorado teve o mesmo impacto: a não

aceitação e proposta de aborto, e após isso ele viajou, não a procurou mais, “sumiu”.

História da doação: Isis decidiu pela doação quando estava com oito meses de

gravidez, e vários fatores influenciaram em sua decisão. Um dos fatores foi a intenção de

demissão da empresa na qual trabalhava, pois como iria sustentar sua filha sem seu

emprego e, principalmente, sem ter o apoio de seu namorado e nem de sua mãe?

Disse que a família de seu namorado não teria como ajudá-la, pois mesmo que eles

dissessem que a apoiariam, seu namorado estava desempregado, “numa fase de

desinteresse total por qualquer coisa”. Relatou que eles não se negaram a ajudar, mas que

achava que estavam esperando que ela fosse pedir alguma ajuda, mas ela não quis, pois já

Page 51: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

havia comunicado seu namorado dos acontecimentos e esperaria dele uma atitude, “ele

também tem que se conscientizar das responsabilidades dele”. Disse que não contou para

ele sobre sua decisão, porque já não tinha mais notícias dele, já não estavam juntos: “eu

conversei com ele no dia, mas não sei o que ele achou, se eu fiz de propósito, não sei o que

se passou na cabeça dele para ter falado para eu tirar e tudo. E aí como eu não encontrei

mais com ele, eu não sei o que ele pensa, se ele se arrependeu...”.

Parece-nos que a opinião de sua mãe teve um peso maior em sua decisão, pois

apesar de não ter feito o que ela queria, o aborto, vários indicadores nos fazem inferir que

sua decisão foi tomada pensando em sua mãe: “tem hora que eu sinto que fui covarde..., de

certa forma também eu não queria dar um desgosto pra minha mãe..., eu achei que ela ia

mudar o jeito dela, mas não foi bem assim que aconteceu, ela é uma pessoa muito fria”.

No complemento de frases apareceu que ela gostava de ter a consciência tranqüila, “de não

ter feito nada por imposição de ninguém”, o que nos fez relacionar com a vontade de sua

mãe que ela realizasse o aborto, pois ao mesmo tempo em que fazer a vontade da mãe

incomodaria sua consciência, não poderia desapontá-la, optando assim pela entrega para a

adoção: “eu teria me arrependido mais se eu tivesse abortado, seria diferente hoje”. Isso

reforça nossa idéia de que sua decisão foi muito influenciada pelo desejo de sua mãe, pois

no completamento de frases também aparece “lamento... por ter feito a entrega da minha

filha”.

Isis, quando decidiu pela entrega para adoção, fez como poucas mulheres que têm

essa intenção fazem, procurou saber sobre o serviço realizado pela Vara da Infância e da

Juventude, especificamente pela Seção de Adoção. Foi atendida por uma equipe

multidisciplinar que escuta essas mulheres com o intuito de confirmar o desejo da entrega.

Com isso teve um espaço de escuta e orientação em relação aos seus sentimentos e as

devidas providências que deveriam ser tomadas. Ressaltamos que para Isis esses

atendimentos foram essenciais, pois sentiu nesse Serviço uma forma de apoio, o qual ela

não teve nem pelo pai da criança nem por seus familiares, especialmente por sua mãe.

Após o nascimento de sua filha, os servidores que trabalham na Vara da Infância

foram ao hospital buscá-la e ela os acompanhou, levando a criança no colo, até a Vara da

Infância, onde foi novamente ouvida para confirmar o desejo pela doação e efetivar a

entrega de sua filha.

Page 52: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

Filha doada: Sua maior preocupação é em relação ao futuro da filha que doou e

gostaria de poder ter notícias suas, mas foi informada que isso não será possível, pelo

menos até que a criança manifeste esse interesse. No completamento de frases apareceu que

“quando penso no filho que doei... fiz pensando no melhor, mesmo que eu sofra”, o que

nos faz pensar que tal decisão causou bastante sofrimento para Isis, o que pôde ser

confirmado nos encontros que tivemos com ela.

Relatou que nos primeiros dias se arrependeu bastante, mas depois conforme as

coisas foram acontecendo, “acho que foi a melhor coisa que eu fiz... só Deus vai dizer, o

tempo, só o tempo vai poder falar”. Quando fala que foi a melhor coisa que fez, nos faz

pensar em uma outra fala sua, sobre o convívio que sua filha iria ter, “um ambiente de

disputa, o tempo todo de recriminação também”, o que nos parece que essa também era

uma de suas maiores preocupações: que sua filha pudesse ter o amor e carinho que ela não

teve, nem do pai por sua ausência, nem da mãe, e assim talvez não soubesse como passar

isso para sua filha: “eu vivi sem meu pai, e minha mãe criou a gente... ela não deu carinho,

essas coisas que faz parte para todo mundo”.

Nos primeiros encontros, Isis mostrou-se bastante deprimida, no completamento de

frases escreveu que “freqüentemente... sinto vontade de chorar”, o que nos parece estar

relacionado não somente a sua decisão pela adoção, mas também ao sentimento de

abandono, especialmente por sua mãe, e ao período de luto em que se encontrava, o que é

esperado, pois o estudo foi realizado há cinco meses após ela ter dado à luz e realizado a

entrega de sua filha.

Atualmente Isis foi transferida para outra filial da empresa aonde trabalhava e

mantém o cargo de gerente de vendas, mas aguarda ser chamada em um concurso público

no qual foi aprovada, com uma classificação relativamente boa. Voltou a morar sozinha,

mas pretende morar com sua mãe para poder ajudá-la melhor: “apesar de tudo que ela me

fez, tudo que eu não vou poder dar para minha filha em questão de ajuda, eu pretendo

ajudar ela agora”.

História montada a partir das pranchas do TAT – Isis primeiramente olhou

atentamente todas as pranchas e montou uma ordem. Depois iniciou sua própria história. A

ordem das pranchas foi: 16, 4, 14, 8MF, 12F, 3MF e 7MF, ela não utilizou a prancha 9MF

(descrições das pranchas p.29 e anexos).

Page 53: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

Logo ao iniciar sua história, a prancha escolhida nos chamou atenção: a prancha em

branco. Podemos usar sua própria fala para iniciar nossa explanação: “não é que não tenha

importância ou influência, porque branco significa nada, não é que não seja nada”,

podemos inferir a relevância desse acontecimento em sua vida, como se mostrou bastante

mobilizada e ambivalente em relação à doação. Ao prosseguir sua história relatou que foi

para seu namorado que contou primeiro sobre a gravidez, e sua atitude foi exatamente

como no desenho da prancha 4, indiferente, olhava para outro lado como se não lhe

dissesse respeito o que ela estava contando e simplesmente respondeu: “se vira, tira”. Em

seu relato percebemos que se ele a tivesse apoiado, ela teria ficado com a criança:

“financeiramente a gente ia passar por uns apertos, mas dava”, o que a fez sentir-se

“humilhada”, pois relatou que ele sempre dizia que queria ter filhos, “mas quando surgiu a

oportunidade ele não quis”. Ao ser questionada sobre seu namoro, contou que o mantinha

principalmente pelo relacionamento com a família dele, o que nos fez pensar que se sentia

acolhida por essa família, a qual ela não tinha, e dessa forma também se sentiu abandonada

por eles, sentindo-se muito só (prancha 14).

Continuou sua história com a prancha 8MF referindo-se à solidão, principalmente

no momento da decisão, foi quando procurou se informar a respeito do serviço da Seção de

Adoção da VIJ/DF. Percebemos a importância dessa procura em sua fala: “porque eu

queria alguém que já estivesse sendo acompanhado, que realmente a quisesse”, pois

mostra sua intenção de garantir uma família “saudável” para sua filha, diferente da sua, “foi

o que eu achei melhor”. Nesta mesma prancha perguntamos sobre a expressão no rosto da

mulher, o que ela respondeu ser de preocupação, tanto com a reação das pessoas diante de

sua atitude, quanto da reação de sua filha quando soubesse da verdade de sua história

(quando fala de sua filha chora bastante).

A prancha 12F foi a que mais nos chamou a atenção, pois retrata a relação com sua

mãe. Ela a identificou com a “velha estranha” da prancha, o que nos mostra uma

ambivalência de sentimentos em relação a ela, acreditamos que existam sentimentos fortes

de amor e ódio, pois ao mesmo tempo em que não consegue se separar de sua mãe,

expressa com convicção que gostaria de se afastar dela. Ao contar sua história, relatou

exatamente isso, sua vontade de se distanciar de sua mãe, pois percebe que ela sempre a

influencia a tomar a decisão errada, o que nos remete à decisão pela adoção. Isso nos faz

Page 54: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

questionar: se sua mãe não a tivesse influenciado, ela teria entregue sua filha para adoção?

Ao mesmo tempo, Isis se questiona se não está sendo cruel e injusta com sua mãe, o que

reforça nossa idéia da forte presença de ambivalência nessa relação.

Contou que quando falou com sua mãe sobre sua gravidez ela foi incisiva em sua

decisão: “aborte”, e como Isis decidiu não obedecê-la, sua mãe a boicotava de todas as

formas em relação a sua gestação: “ela brigava comigo quando eu me alimentava, porque

ela queria que eu perdesse”. Contudo em relação à decisão para nós sua fala mais marcante

foi: “fiquei preocupada com a rejeição que ela ia ter por mim depois”, pois foi uma

resposta a nossa pergunta sobre com o que ela se preocupava por não ter feito o que sua

mãe gostaria que ela tivesse feito. O que nos parece é que essa atitude foi muito

influenciada pela opinião de sua mãe. Ou só realizada devido à atitude de sua mãe? A

próxima prancha corrobora nossa idéia, pois suscita seu sentimento de arrependimento em

relação à entrega de sua filha: “a única certeza que eu ia ter era o carinho da minha filha”

(prancha 3MF).

A prancha que utilizou para terminar sua história evidencia a ambivalência de

sentimentos que experimentou na sua maternidade, pois relatou que o olhar da menina

significava sua decisão pela entrega, ou seja, a distância entre ela e sua filha. Ao mesmo

tempo em que segurar o bebê no colo significava sua vontade: “eu queria estar com ela”.

Isis conclui dizendo que se pudesse contaria uma história muito diferente, mudaria desde a

influência que permitiu sua mãe exercer em sua vida, “eu faria muita coisa diferente”, o

que nos permite incluir a entrega de sua filha.

6.2.1 – Núcleos de sentido subjetivo construídos para Isis

No caso de Isis, também foram criados três núcleos de sentido subjetivo a partir dos

encontros realizados e das técnicas do Completamento de Frases e do TAT, que nos

permitiram vários indicadores que contribuíram para tais construções.

Doação X Aborto: “Eu prefiro... ter entregue à adoção do que ter abortado”.

Pudemos perceber que a notícia da gravidez teve um impacto muito forte na vida de

Isis: em seu trabalho, em seu relacionamento e em sua família. Em nenhum momento ela

teve alguma forma de apoio, estava prestes a perder seu emprego, sua mãe e namorado não

Page 55: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

se propuseram a ajudá-la, muito pelo contrário, indicaram a prática do aborto. “Me senti só.

Eu achei que minha família fosse me ajudar e tudo, mas nem quiseram saber do problema.

Eu praticamente não vou lá mais, na casa do meu irmão. Mas se for alguma coisa pro

benefício dele, ele me chama”. Seu relacionamento acabou, pois seu namorado também

propôs o aborto por não querer assumir esta responsabilidade com ela. Em todos os

momentos ela esteve sozinha, abandonada, e assim não conseguia ver perspectiva nenhuma

para a inserção e aceitação de sua filha em sua vida: “teve uns dias que passei mal e as

pessoas da minha família não quiseram me acolher, se eu que sou adulta doente não

quiseram me ajudar, imagine eu com uma criança, é bem mais difícil”. Em relação a sua

família, no completamento de frases Isis respondeu: “minha família... é cada um por si”.

No seu emprego, queriam demiti-la injustamente, e só não o fizeram porque

descobriram que estava grávida. O único impacto desta notícia para a empresa foi a

impossibilidade de demiti-la, pois em nenhum momento lhes ofereceram qualquer tipo de

ajuda. Ao contrário, duvidaram do exame feito por ela, desconfiando que ela tivesse pedido

a outra pessoa para fazê-lo: “eles me mandaram de novo, na empresa conveniada,

mandaram o médico me acompanhar pra saber se estavam tirando o sangue do meu braço

mesmo, pra ver se não era outra pessoa pra eu poder não perder o emprego, já que eu tava

sendo demitida. Na hora que o médico me acompanhou não passou nada na minha cabeça,

mas depois eu fiquei pensando, qual a necessidade? É uma coisa absurda”. Tirou sua

licença maternidade e retornou ao emprego, agora em outra filial, mais distante de sua casa,

e em nenhum momento lhe perguntaram se precisava de alguma ajuda: “as pessoas que

trabalham na empresa, pelo menos na área que eu trabalho, são muito... elas não vêem o

ser humano. Nas horas difíceis ninguém quis me ajudar, mas pra saber da minha vida pra

fofocar, todo mundo quer saber”.

A primeira pessoa para quem Isis contou sobre sua gravidez, foi para seu namorado,

contudo ele não aceitou, “simplesmente achou que não era com ele”, o que contribuiu para

que seus sentimentos em relação a ele fossem transformados: “eu gostava muito dele, mas

chegou um momento que passei a ter raiva”, pois como observamos no completamento de

frases: “o pai do meu filho... precisa aprender que a vida não é como ele pensa”. Essa

postura de seu namorado também destruiu as esperanças de Isis em constituir uma família

com ele, “sempre quis... estar com uma pessoa com quem pudesse formar uma família

Page 56: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

diferente da minha”, e de preservar seu relacionamento com a família de origem dele, pois

relatou que estava cultivando seu namoro para preservar seu relacionamento com eles,

“uma coisa é você nem ir à casa da pessoa, outra é ser praticamente da família”. Essa fala

nos permite concluir que este relacionamento significava muito mais que um namoro para

ela, mas uma família na qual pudesse sentir-se incluída, uma família que ela não tinha. Por

isso, o abandono sofrido por seu namorado também gerou o abandono da família dele.

Além disso, observamos que Isis sofreu outros abandonos em sua vida que

acreditamos que influenciaram diretamente em sua decisão em relação a sua filha.

Primeiramente, não teve uma referência de pai em sua vida, pois no seu primeiro ano de

idade ele foi embora e sua mãe inviabilizou o contato entre eles, sendo criada com seu

irmão por sua mãe. Com isso percebemos que sua mãe assumiu o papel mais importante em

sua vida, sendo que suas opiniões são de extrema importância, o que pode ser confirmado,

assim como a grande influência que exerce em sua vida. Ela não acha que a opinião de sua

mãe seja a melhor, mas sempre acata suas sugestões, “faço o que ela quer e acabo

quebrando a cara”, e quando não o faz acaba se sentindo culpada. Mesmo que do seu jeito

esteja certo, ela se interroga: “fico pensando que se eu tivesse feito do jeito que ela queria,

se não teria sido melhor ainda”.

Apesar de ter sido fisicamente abandonada por seu pai e por seu namorado, é o

abandono que sofreu por sua mãe que mais a incomoda. “Minha mãe é..., ela deixou bem

claro que não ia ajudar em nada, e eu creio que ela não iria mesmo, até pelo jeito que ela

tá agindo agora”. Sentia-se abandonada por sua mãe, pois não recebia carinho, ou qualquer

demonstração de afeto e, principalmente, quando se viu sozinha diante de sua gravidez, sem

o seu apoio. Isso nos ficou claro diante de sua resposta ao completamento de frases: “minha

mãe... deveria se amar e amar mais”.

Diante dos abandonos sofridos, e da única opção que lhe sugeriram, Isis se viu

diante da decisão pela adoção, pois “eu prefiro... ter entregue à adoção do que ter

abortado”, e também respondeu ao completamento de frases: “considero a vida... direito

de quem não pede pra vir ao mundo”, o que confirma que o aborto para ela seria algo

inaceitável, e a doação uma forma de preservar sua filha de tudo que ela passou, de “um

ambiente de disputa, o tempo todo de recriminação também”, assim como da solidão que

sentia, pois se separou de sua família, de seu namorado, de sua filha, e como apareceu no

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completamento de frases: “quando me separo de alguém... me sinto só”, pois

principalmente em sua decisão Isis estava sozinha.

O fato de estar sozinha foi a maior motivação para sua decisão, mas manter esse

desejo de não ficar com a criança não resolveu sua solidão. Teria Isis buscado a VIJ/DF

para ter companhia na decisão, para ter um encaminhamento para a filha? Para encontrar

uma família que ela não tinha?

Então, diante de tantos abandonos sofridos por ela, e por não ter conseguido achar

outra saída, foi que optou pela entrega para adoção. Como ela mesma expressou: “eu não

tinha condições de cuidar de mim, como é que eu ia cuidar de uma criança?”.

Minha mãe: meu porto (in)seguro.

Observamos que a relação de Isis com sua mãe é bastante ambivalente, pois ao

mesmo tempo em que a odeia e reprova suas atitudes, a respeita e a ama profundamente.

Isso nos ficou claro quando ela confundiu no completamento de frases a expressão: “sou

uma mãe” com “sua mãe”, o que nos pareceu uma grande necessidade de falar sobre sua

mãe, e não uma simples confusão: “ah, é sou uma mãe né? Pensei que era sua mãe, eu li

muito rápido. E diante de sua resposta “sou uma mãe... ela não leva em consideração o

sentimento dos outros”, ela completou: “é ela não leva, ela acha que..., sei lá, as coisas

pra ela são muito estranhas. No caso, eu sou uma mãe..., eu já acho que aí seria o inverso.

Que tem que ser amiga, porque tem gente que acha que não, que tem que criar e tudo, mas

são as pessoas que se criam. Porque eu acho que só dar o alimento, a casa, a roupa não é

criar, tem outras coisas importantes. Você conversar, esclarecer algumas coisas, porque a

vida não é só feita de moradia, comida e roupa, se fosse assim era mais fácil”. Esse relato

denuncia o que ela queria que sua mãe tivesse sido com ela e não foi, e mais uma vez seu

maior sofrimento gira em torno de sua mãe, e de sua ausência afetiva. Tal confusão também

poderia estar evidenciando uma crise de fundo vivenciada por Isis, que a deixava sem

confiança para exercer a maternidade: o medo de ser uma mãe como sua mãe?

Ao responder ao completamento de frases, “quando fiquei sabendo que estava

grávida... primeiro fiquei assustada, depois feliz e agora recuperando”, lhe foi questionado

o que tem sido mais difícil para ela e sua resposta foi: “não é que eu achei que minha mãe

fosse se comover com meu sofrimento, mas eu pensei que ela ia, sei lá... eu não fiz

Page 58: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

querendo que ela prestasse mais atenção em mim, mas eu achei que ia mudar alguma

coisa. Mas não mudou tanta coisa, e as coisas caminharam do mesmo jeito, até pior”. Tal

resposta nos permite questionar se sua tristeza era por ter entregue sua filha para adoção ou

por não ter reavido sua mãe, que nos parece nunca ter tido suficientemente. Também

podemos inferir que sua decisão pela doação foi uma forma de não desagradar sua mãe,

para que talvez assim seu relacionamento com ela mudasse, melhorasse.

Podemos supor assim, que sua mãe foi quem mais influenciou em sua decisão, pois

no completamento de frases respondeu: “não quero... que a opinião dos outros interfira

mais na minha vida”, e completou sua resposta: “Apenas da minha mãe. Errar todo mundo

erra, mas ela acha que eu tenho que seguir os passos dela, mas não é assim. Eu não sei o

que ela quer, eu não vou mais ficar escutando o que ela fala apesar de ser minha mãe e

tudo, eu acho que se as coisas com ela fossem melhores eu teria relacionamentos

melhores”. Com essa fala Isis reconhece questões anteriores: sua necessidade de se realizar

como mulher, como mãe.

Pareceu-nos também que Isis esperou, até o momento da entrega, o apoio de sua

mãe, que ela mudasse de idéia e a ajudasse a cuidar de sua filha: “eu pensei que minha mãe

ia mudar de idéia também, quando ela visse, mas ela não quis nem ver, eu achei... eu fiquei

assim até... porque geralmente as mães, por mais contraditórias que sejam, depois acabam

mudando de idéia, e ela... ela não mudou de idéia de jeito nenhum...”. Assim, também

percebemos que a entrega foi uma busca pela constante aprovação de sua mãe, e acreditou

que depois da doação, suas atitudes em relação a ela fossem mudar, “primeiro eu não sabia

como ela ia reagir, como minha mãe ia reagir, porque ela não aceitava né... eu achei assim

que ela ia..., sei lá, mudar o jeito dela, e não foi bem assim que aconteceu, ela é uma

pessoa muito fria”.

Apesar de não conseguir a aprovação e o apoio de sua mãe, as atitudes de Isis, nos

confirmam ainda mais seus sentimentos de ambivalência em relação à mãe: “eu não queria

ter muito contato com ela, depois que eu fizesse isso. Eu queria seguir minha vida diferente

do que era antes”, talvez porque de certa forma culpasse sua mãe por não estar com hoje

com sua filha, “no fundo a gente sabe qual a decisão que deve tomar, mas eu deixei me

sufocar por ela”, e como apresentou no completamento de frases: “odeio... as atitudes da

minha mãe”. Contudo, ao mesmo tempo em que odeia as atitudes de sua mãe, Isis não

Page 59: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

consegue se desvincular dela, “não gosto... de concordar com a minha mãe, por sentir no

dever”, e mesmo assim pretende “apesar de tudo que ela me fez... tudo que eu não vou

poder dar pra minha filha em questão de ajuda, eu pretendo agora ajudar ela, acho que

ela tá mais necessitada do que eu, não sei o que se passa com ela”. O que nos permite

inferir, mais uma vez, que Isis antes de ser mãe, precisa de uma mãe, e essa ajuda a que ela

se refere, nos parece não se restringir a uma ajuda financeira, mas principalmente, afetiva,

talvez numa tentativa de ter o amor, respeito, reconhecimento, apoio e cuidado de sua mãe,

os quais nunca achou que teve, pelo menos da forma que gostaria. Percebemos ser muito

difícil para ela assumir o papel de mãe, quando ainda se é tão filha, tão dependente da

própria mãe, de seu amor e aprovação.

“Fiquei preocupada com a rejeição que ela teria por mim depois, é como eu te

falei, ela não liga para os sentimentos de ninguém. Antes eu achava que era a pessoa que

eu podia confiar, mas agora não sei mais”.

Ambivalência materna: “lamento... por ter feito a entrega da minha filha”.

Na história montada por Isis, por meio do TAT, na última prancha que utilizou, a

7MF, relatou que não saberia como seria sua vida com uma filha, e no completamento de

frases completou que “meu filho... mudaria muito minha perspectiva de vida”. Na história

do TAT, essa prancha representou, por meio da boneca no colo da menina, sua vontade de

estar com sua filha, de tê-la em seus braços, e por meio de seu olhar distante, em outra

direção, a necessidade que teve de entregá-la para adoção: “ao mesmo tempo em que eu não

devia ficar com ela, eu queria”. Isso nos apresenta sua ambivalência de sentimentos em

relação a sua filha, a decisão pela entrega e a vontade de estar com ela, como pode ser

confirmado no completamento de frases: “o futuro do filho que doei... espero ser melhor do

que eu poderia oferecer”. Percebemos que ela ainda não consegue significar sua vida como

mãe, somente como filha, e que sua baixa auto-estima, pelos variados elementos de sua

história, influiu na entrega.

Isis, quando decidiu pela entrega à adoção, preocupou-se com vários fatores que

poderiam afetar sua filha: a falta de condições de mantê-la, pois não sabia se iria perder seu

emprego; o convívio que ela teria com sua família, pois ela relatou não ser muito bom

porque em sua família “é cada um por si”, e para proteger a filha de sua mãe, pois tinha

Page 60: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

medo que ela transferisse todo ódio que sentia pelo pai da criança para ela. Por esses

principais motivos, Isis confirmou sua intenção pela entrega, o que não foi feito de qualquer

forma, foi feito legalmente: “eu queria uma coisa certa, uma pessoa que já tivesse sendo

acompanhada, que realmente quisesse. Aí eu fui lá e procurei, achei melhor”. Isso poderia

significar a tentativa de garantir que sua filha fosse amada e cuidada como ela não sentiu ter

sido por sua mãe.

Ao mesmo tempo em que se preocupou em procurar, pela Justiça, o melhor futuro

para sua filha, pois assim de certa forma sua preocupação de “se eles vão ter o cuidado que

eu teria” (ou que queria para ela por parte de sua mãe?) também seria confirmada pela

Justiça. Uma de suas maiores preocupações consiste na reação de sua filha, “quando ela

souber, como ela vai agir?”, pois como apareceu no completamento de frases: “tenho

medo... da reação da minha filha quando souber a verdade”. Sua ambivalência materna

também pode ser confirmada em algumas frases do completamento, tais como: “o tempo

mais feliz... foi quando estava grávida e só percebi agora”, “é difícil... encarar a realidade

do que fiz, não tinha noção”. Fica evidente um arrependimento pela doação, afinal não

valeu a pena, pois seu sacrifício não foi reconhecido por sua mãe. Ela não passou a amá-la

mais!

Tal ambivalência permeou a vida de Isis, desde o momento da gravidez, que para

ela foi uma experiência “que quero passar outra vez”, até após sua decisão pela entrega,

pois sempre se questionava, implicitamente, se não seria melhor ter ficado com sua filha:

“se eu pudesse voltar no tempo, eu não deixaria minha mãe influenciar em nada, muitas

coisas seriam diferentes, contaria uma história não tão trágica, e sim mais fácil de ser

contada”. Agora uma de suas maiores preocupações, além da reação de sua filha é nunca

mais vê-la: “minha maior preocupação é... nunca mais ver minha filha”.

Seria possível afirmar que para Isis, sua decisão pela entrega foi a melhor opção?

Por um lado, ela expressou explicitamente tal conclusão, mas, com a mesma certeza,

podemos concluir que sua atitude a mobilizou e ainda a mobiliza bastante, como

confirmamos no completamento de frases: “freqüentemente... sinto vontade de chorar, e

“eu secretamente... escrevo sobre o que sinto e choro”.

“A vida... é misteriosa, nunca sabemos o que vai acontecer, não sabemos o que é

certo ou errado e temos que aproveitar enquanto a temos”.

Page 61: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

Fica claro que, como no caso de Bianca, a atitude de Isis também se caracteriza

como um ato de amor. Em ambos os casos, a questão da transgeracionalidade mostra-se

forte e decisiva, ou seja, a influência da mãe em suas vidas, o que se reflete na dificuldade

de assumir a maternidade.

Isis sentiu-se abandonada por sua mãe, pela sua falta de apoio, amor, compreensão e

carinho, sendo assim não poderia oferecer a sua filha o que não recebeu de sua mãe, e

reafirmamos: antes de ser mãe ela precisa de uma mãe. Como citamos anteriormente,

Parker (1997), a partir da visão de Melanie Klein, afirma que na maternidade a mulher

experimenta novamente os sentimentos vivenciados durante sua própria infância em relação

a sua mãe. Percebemos que ela tenta fazer de tudo para ter seu amor, até mesmo “dar” sua

filha. Porém, é em vão, pois sua mãe não consegue amá-la como ela gostaria. Isso não seria

uma forma de abandono, mesmo sem tê-la abandonado de fato? Como afirma Rodrigues

(1993 apud MOTTA, 2005, p.40) abandono “[...] inclui o descaso intencional pela sua

criação, educação e moralidade”.

Isis também foi abandonada por seu pai em sua infância, momento em que a

presença do pai é tão importante quanto a da mãe. E posteriormente por seu namorado, em

sua vida adulta, também num momento muito importante em sua vida e na vida de sua

filha. Dessa forma, não podemos ignorar tais abandonos ao olhar para a atitude de entregar

sua filha para adoção, pois ela (como Bianca) não poderia oferecer aquilo que não recebeu.

Sua história também nos permite afirmar que ela não abandonou sua filha, e sim a

entregou, pois se preocupou em todos os momentos em “garantir sua felicidade”. Desde o

momento em que decidiu pela adoção, uma de suas preocupações foi entregar sua filha para

uma família que realmente a quisesse, o que acreditou ser garantido por meio da VIJ/DF,

por isso procurou a Seção de Adoção para se informar dos processos e procedimentos

legais da adoção. Como confirmado por Freud, Solnit e Goldstein (1991 apud

RODRIGUES, 2001) a entrega pode ser uma forma de proporcionar ao filho uma família

que o queira e seja capaz de suprir suas necessidades físicas e afetivas, o que muitas vezes

seus pais biológicos reconhecem que não seriam capazes de fazê-lo. Isso não seria uma

forma de amor? Preservar a quem se ama, oferecendo-lhe o melhor, mesmo que o melhor

signifique separar-se dele? Não seria então essa entrega uma atitude de amor?

Page 62: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

Para as duas mães-participantes foi indicado um tratamento psicoterápico, para que

elas pudessem repensar sobre suas vidas e tentassem resolver todas suas experiências de

abandono, carências e privações, e dessa forma pudessem se fortalecer e recomeçar uma

nova história, tentando diminuir a influência que essas vivências tiveram em suas vidas. Tal

indicação foi feita, assim como a disponibilidade para que nós realizássemos tal

acompanhamento, contudo ambas não quiseram e pelo mesmo motivo, a dificuldade de

conciliar os horários para o atendimento com os horários de seus empregos. Isso também se

relacionou à decisão de entregar em adoção: a dificuldade de ter tempo para se dedicar a

maternagem. Bianca apenas não entregou a filha que pôde deixar, sob pagamento, para uma

tia cuidar. Isis não possuía qualquer rede de apoio e mesmo com os programas de auxílio

do governo, não pode contar com nenhuma ajuda em relação a isso.

Page 63: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

6.3 Entrevistas com os Profissionais da VIJ/DF

Muitas são as limitações dos trabalhos realizados com as mulheres que desejam

entregar seus filhos para adoção, dos quais podemos responsabilizar o Estado pela maioria,

por este parecer julgar desnecessário um olhar para as mães doadoras. Isso talvez seja uma

decorrência de não se acreditar que um trabalho realizado com elas poderia ter direta

influência no futuro das crianças. E se boicota assim as tentativas de fazê-lo, seja por um

número reduzido de servidores lotados para esse fim, seja por falta de verba suficiente para

realização dos trabalhos ou pela reprovação de projetos com essa demanda.

Ao analisarmos o trabalho da adoção desenvolvido no Distrito Federal, nos

baseamos em quatro entrevistas realizadas com profissionais que trabalham na equipe

psicossocial da Seção de Adoção da Vara da Infância e da Juventude do Distrito Federal –

VIJ/DF: dois psicólogos, uma pedagoga e uma assistente social.

A princípio, percebemos o número reduzido de profissionais que lidam com essa

demanda, nove profissionais responsáveis por todo processo de adoção que passam pela

VIJ/DF, que atende todo DF: cerca de 2.500.000 habitantes. O trabalho dessa equipe

abrange: a habilitação de famílias interessadas pela adoção, incluindo uma série de

entrevistas entre as partes envolvidas, assim como visitas domiciliares; cadastramento de

crianças entregues para esse fim; atendimento a mulheres que entregam seus filhos, seja

espontaneamente ou por determinações judiciais; acompanhamento dos estágios de

convivência e realização de estudo psicossocial nos processos de adoção.

Para falar das dificuldades da equipe da Seção de Adoção, devemos compreender a

adoção formal e a informal. A adoção formal consiste na procura da genitora pelo serviço

da VIJ/DF, para que assim possa ser ouvida e orientada. Quando confirmado o desejo pela

adoção, excluindo qualquer possibilidade de permanência da criança na sua família natural,

ela e a criança são cadastradas e todo processo de adoção se inicia na Seção de Adoção. Do

mesmo modo, na adoção legal / formal, há a habilitação prévia dos adotantes, o que a

equipe e a literatura evidenciam como uma importante medida profilática, especialmente

quando se realiza um processo de preparação para adoção. Já a adoção informal, conhecida

como “adoção à brasileira”, consiste na entrega direta da genitora para os pais adotantes,

procurando a Justiça somente para homologar essa entrega, não passando assim pelo

serviço psicossocial da VIJ/DF.

Page 64: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

Assim sendo, uma das primeiras dificuldades apontadas por esses profissionais é a

adoção informal, que atrapalha direta e indiretamente o trabalho realizado na Seção de

Adoção. Essa adoção informal, permitida legalmente, tem um grande impacto porque o

perfil pelas crianças procuradas pelos pais adotantes é em sua maioria de crianças recém-

nascidas. Dessa forma, ao não cadastrarem as crianças na VIJ/DF, a fila de pais adotantes

continua estagnada, sendo que o trabalho passa a ser considerado moroso e burocrático.

Outro impacto é a impossibilidade de oferecer uma escuta qualificada para essas genitoras,

assim como verificar o significado dos motivos que as levaram a tal decisão. “A primeira

coisa que nós fazemos é ouvir essa mãe, a história da gravidez, se é uma decisão

amadurecida, qual a rede de apoio que ela tem, verificamos o vínculo familiar, e assim

nossa reação é verificar todas as hipóteses de permanência da criança na família natural.

Mantendo esse desejo, ela é cadastrada” (psicólogo).

Desse modo, as mulheres que são atendidas pela VIJ/DF são somente as que

procuram primeiramente a Justiça para realizar a entrega e assim os profissionais relatam

que seu trabalho “não é o incentivo puro e simples da entrega pela adoção, nós

procuramos, até seguindo uma diretriz do Estatuto da Criança e do Adolescente, trabalhar

a possibilidade de manter a criança no contexto de sua família natural” (pedagoga).

Podemos perceber um foco no bem-estar da criança, mas será que este espaço, além de

verificar a consistência da decisão, não poderia melhor permitir a expressão de suas

subjetividades?

Percebemos a valorização das famílias que se cadastram para adoção, em detrimento

daqueles que realizam a adoção informal: “nós valorizamos muito uma família que se

cadastra pelo interesse de adotar, abrindo suas vidas para uma investigação da Justiça

para averiguar a legitimidade dos interesses pela adoção, para que também seja verificada

a existência de um ambiente saudável para o acolhimento dessa criança” (psicólogo). A

valorização da mãe que procura primeiramente a Seção de Adoção para realizar a entrega

não foi mencionada.

O trabalho em relação às mães doadoras mostrou-se bastante inutilizado e limitado,

principalmente pela pouca procura das genitoras pelo serviço a elas oferecido: “ela é

ouvida em audiência porque a lei assim exige, mas depois ela é desligada do processo,

ninguém mais se importa com ela, por isso procuramos enfatizar que essa genitora procure

Page 65: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

a Justiça para que possamos incluí-la numa rede de proteção” (psicólogo). Verificamos

que após a entrega a genitora é excluída do acompanhamento judicial, tenha ela feito a

entrega legalmente ou não, mostrando mais uma vez a falta de preocupação com essas

mulheres por parte do governo.

Apesar das limitações, esses profissionais conseguem identificar os principais

motivos que as levaram à entrega: primeiramente por uma grande dificuldade

socioeconômica, e por existir a questão da transgeracionalidade: “elas abandonam por

quê? Porque em algum momento foram abandonadas!” (psicólogo). Apesar dessa

identificação, devido às dificuldades da equipe, e pela castração do governo, o contato com

essas mães é limitado e muitas vezes ineficaz. “Nós não temos nenhum contato maior com

elas e existem muitas que acabam se arrependendo, entrando com o pedido de contestação.

Sendo que aquela genitora antes aliada, agora é uma inimiga. Em tese não houve pressão,

mas sabemos que ela existe, apesar de ser muito difícil sua comprovação” (psicólogo).

Todavia, percebemos que, principalmente pela necessidade de cumprimento legal, o

trabalho realizado por esses profissionais visa o bem estar da criança e do adolescente.

Dessa forma, o trabalho voltado para as mães doadoras não inclui um acompanhamento

mais efetivo, seja na verificação mais incisiva de meios de apoio, seja no acompanhamento

após a entrega, sendo essa outra limitação, a falta de um projeto que vise acompanhar o

impacto da entrega para essas mães. “As pesquisas mostram que elas não elaboram bem,

repetem, engravidam novamente. Não existe um estudo longitudinal com essa genitora,

seria até mesmo interessante. A gente vê muita situação, que depois que ela muda a vida

dela, ela tenta resgatar a criança. As informações que nós temos é que as genitoras depois

tentam fazer o caminho inverso” (psicóloga).

Também percebemos que a subjetividade dessas mulheres não é desconsiderada,

mas também não possui um lugar de destaque em seu atendimento, talvez por falta de

tempo, escassez de profissionais, ou desvio de função. Como podemos perceber na fala da

assistente social: “um dos fatores que mais aparecem é a questão socioeconômica e a falta

de apoio familiar, do companheiro, claro que por trás disso daí tem mil outras coisas, aí é

já entra essa questão emocional, onde ela não tem esse suporte emocional, então uma

coisa aliada a outra gera a motivação para a entrega”. O fato é que os fatores implícitos e

subjetivos da entrega merecem um olhar mais apurado para que, talvez dessa forma, a

Page 66: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

quantidade de contestações por mães arrependidas diminua, sejam evitadas doações e a

procura pelo serviço aumente.

Para isso também é preciso um maior esclarecimento acerca do serviço prestado, do

que significa o abandono, a entrega, a adoção, para que assim as mulheres se sintam mais

seguras e menos recriminadas para realizarem com mais segurança a entrega de seus filhos

em adoção e menos interceptação dessas mulheres pelos adotantes informais.

6.3.1 O Trabalho Existe!?

A adoção se caracteriza como uma medida protetiva para as crianças abandonadas,

que de acordo com Rodrigues (2001) somente com o Estatuto da Criança e do Adolescente

– ECA, esse caráter da adoção se concretizou. Dessa forma, de acordo com os arts. 39/52

do ECA Rodrigues (2001) clarifica:

[...] na impossibilidade da criança ou do adolescente permanecer no seio de sua família de origem, tomando-se os cuidados para a compatibilização dos envolvidos com a natureza da medida, tornou-se possível a colocação desses menores em família substituta, sendo uma das modalidades a adoção; bem como, esta se torna uma medida irrevogável, cortando-se os vínculos com a família de origem, sendo, portanto, a criança e o adolescente os sujeitos de proteção integral (p. 29).

Assim sendo, percebemos o cuidado legal com as crianças entregues para adoção,

sendo-lhes asseguradas, legalmente, o bem estar físico e emocional. Contudo, percebemos a

necessidade da realização de um trabalho voltado para as mães doadoras, no sentido de não

somente verificar procedentes os motivos para entrega, mas para analisar subjetivamente as

questões que influenciam nessa decisão.

A escuta dessas mães a respeito de suas histórias e dos motivos que as levaram a

entregar seus filhos para adoção, além de servir para desmistificar a visão que a sociedade

tem a seu respeito, tem um papel fundamental no processo de adoção, pois permite

identificar alguns fatores que podem não ser suficientes para corroborar a entrega do filho,

e se detectados pelas mães esse ato pode ser evitado.

No entanto, essa escuta não pode estar impregnada de preconceitos, com o intuito de

convencer as mães a ficaram com seus filhos, pois isso pode ser uma violência para a mãe e

um desastre para seu filho.

Page 67: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

O trabalho realizado com essas mulheres não pode ser feito separadamente, mas

todos os órgãos e serviços sociais devem unir-se para melhor atender a essa demanda.

Daher, Laloni e Baptista (1999) pontuam a falta de programas hospitalares direcionados

especificamente para essa demanda, enfatizando a necessidade de suporte emocional por

parte da equipe de saúde, principalmente para aquelas que não possuam um apoio social e

familiar adequado, o que normalmente é o caso das mães doadoras. Podemos perceber a

relevância da atuação do profissional de Psicologia nessa equipe e, principalmente, que seja

feito um trabalho interdisciplinar, para que os fatores determinantes da entrega possam ser

escutados e compartilhados por essas mães, e assim sejam compreendidas e orientadas, ou

até mesmo sua intenção revertida diante do apoio oferecido.

Com isso reforçamos a importância da atuação do psicólogo hospitalar junto a essas

mulheres, pois ao identificar essa decisão pela entrega, o que acontece muito nos hospitais

(DAHER, LALONI e BAPTISTA, 1999), possa oferecer-lhe uma escuta qualificada dando

voz aos motivos implícitos e inconscientes, para que à luz de suas subjetividades possam

perceber o que realmente as levaram a tomar tal decisão. De acordo com Simonetti (2004),

o objetivo da Psicologia Hospitalar é a subjetividade, pois o psicólogo oferece sua escuta

para que o sujeito possa falar de si, de sua vida ou da morte, do que pensa, sente, teme,

deseja, do quiser. Ressalta que o interesse do psicólogo hospitalar é dar voz à subjetividade

do paciente, fazendo-se essencial nesse contexto para auxiliar os pacientes como ouvinte

privilegiado e não como um guia.

Gilberti (1996 apud MOTTA, 2005), ao falar da prática profissional em relação à

adoção, afirma que há uma grande limitação nas tarefas conferidas aos profissionais que

trabalham com essa demanda, seja na consecução de crianças ou no atendimento dos

adotantes. Mas ressaltamos sua ênfase no trabalho (não) realizado com as mães doadoras:

[...] há vários problemas que são negados, desconhecidos ou que se tornam invisíveis, especialmente aqueles que dizem respeito à existência de mulheres desamparadas, muitas adolescentes, que entregam seus filhos em adoção sem desejar fazê-lo, coagidas, por exemplo, pela extrema pobreza (GILBERTI, 1996 apud MOTTA, 2005, p.75).

Motta (2005) relata que a falta de um trabalho psicológico, médico e social mais

efetivo com essas mulheres acarreta num grande problema que abrange todas as pessoas

envolvidas no processo de adoção: a contestação da mãe. A autora assinala que não é

Page 68: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

incomum que a mãe peça seu filho de volta, após todo processo de adoção ser homologado

e os vínculos devidamente estabelecidos. Assim, o que poderia explicar essa afirmação

senão um trabalho limitado com essas mães?

Ressaltamos a importância da atuação do psicólogo jurídico, pois pode contribuir

para que o trabalho com as mães doadoras seja mais efetivo e, assim, por meio da

Psicologia, elas possam contar com um apoio e uma escuta qualificada, que não somente

tenha o intuito de informá-las a respeito dos processos e procedimentos legais da adoção,

como também possa acessar suas subjetividades, considerando todos os fatores que

influenciam em sua decisão. Assim como, possa garantir-lhes o direito de serem ouvidas e

não sejam excluídas do processo de adoção após a efetivação da entrega, mas sejam

acompanhadas, pois esta experiência terá repercussões psicoafetivas significativas na vida

dessas mulheres.

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VII – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chegando ao final desta pesquisa, consideramos imprescindível abandonar a idéia

de que a mãe que entrega seu filho em adoção o faz por não amá-lo, ou que só pense em si

mesma num ato egoísta e cruel. As construções feitas neste estudo nos levaram a perceber

que a entrega pode sim caracterizar-se como um ato de amor e grande preocupação com o

bem-estar e o futuro da criança, e que essas mulheres o fazem abrindo mão de uma

representação social avassaladora: a maternidade. Renunciam o sonho de criarem seus

filhos por se reconhecerem sem condições, sejam internas ou externas, de fazê-lo.

Para realização desta pesquisa utilizamos a Epistemologia Qualitativa desenvolvida

por González Rey (2005), que se mostrou bastante adequada, pois as características da

construção do conhecimento, de valorização da singularidade e da subjetividade do

pesquisador e do pesquisado, assim como o uso do caráter construtivo-interpretativo, foram

ferramentas imprescindíveis para o êxito da mesma.

Essa metodologia nos permitiu mergulhar no universo das mães doadoras e

compreendê-las sem o receio de uma neutralidade do pesquisador. Ao contrário, abriu

espaço para nossas interpretações e significações, confirmadas pelas participantes, a

respeito do sentido subjetivo da doação. Tal abertura nos permitiu um maior conforto para

interagir com as participantes e transformar o processo da pesquisa num espaço terapêutico,

de troca e aprendizado, evitando preconceitos e predisposto a novas representações.

Assim, a partir dos indicadores e dos núcleos de sentido construídos, pudemos

apreender que além dos motivos concretos e objetivos que influenciam na decisão pela

entrega, como a falta de condições socioeconômicas, a falta de apoio social, pesado pelo

preconceito e a ausência da responsabilidade paterna, existem configurações subjetivas

internas que perpassam essa decisão. Essas mulheres sofreram várias formas de abandono

durante suas vidas, seja por suas famílias, por seus parceiros ou pela sociedade, que as

fizeram internalizar nessa relação com suas histórias uma grande repetição do abandono,

não para seus filhos, mas para si mesmas. Os casos estudados no presente trabalho nos

permitiram entender que a entrega para adoção também representa uma forma de

preservação subjetiva, não só das privações financeiras, mas de toda vivência que essas

Page 70: MÃES DOADORAS O que leva uma mãe a entregar seu filho para

mulheres não querem que seus filhos experienciem, podendo também ser caracterizado

como um ato de amor, ainda que ambivalente.

É importante ressaltar a escassez de literatura referente à compreensão das mães que

entregaram seus filhos em adoção, o que se mostrou uma das dificuldades para construção

da fundamentação teórica, assim como para uma melhor proposta de intervenção em

relação a essas mulheres e de compreensão de toda sua subjetividade. Apesar de não ter

sido um de nossos objetivos, nossa pesquisa também teve um caráter terapêutico, na qual

essas mães puderam usar o momento da pesquisa para desabafar suas aflições, medos e

angústias concernentes à decisão da entrega e aos filhos que entregaram.

Por isso, é de extrema importância que outros estudos a serem realizados com as

mães doadoras possam escutá-las dando voz a sua subjetividade e ao seu sofrimento, além

de abranger sua rede social, familiar, suas fontes de apoio e, principalmente, a paternidade

(ir)responsável, para que além de relativizar a doação, desculpabilizando a mãe, pudessem

ser investigados efetivamente a contribuição e a responsabilidade do pai diante da entrega,

assim como um estudo que subsidiasse projetos de intervenções preventivas, ou seja, buscar

a compreensão do todo, do contexto que envolve a subjetividade das mães doadoras.

Enfatizo a importância de a Psicologia voltar seu olhar para essas mulheres e

oferecer sua escuta qualificada para auxiliá-las no momento de angústia, no qual são

abandonadas por todos. É imprescindível que novas propostas de intervenção preventivas

sejam realizadas em relação às mães doadoras quando apresentam a intenção da entrega de

seu filho para adoção, para que efetivamente essa a decisão seja confirmada, sendo feita

após um acompanhamento mais diferenciado, para que sejam avaliados não somente os

fatores explícitos e objetivos da decisão, mas principalmente a subjetividade dessas

mulheres.

Ao finalizar, gostaria de destacar a importância deste trabalho em minha vida, pois

constituiu não somente a conclusão da graduação ou minha formação profissional, mas,

sobretudo, um amadurecimento pessoal. Falar da maternidade é algo que me motiva

bastante, pelo interesse por esse tema, mas especialmente pelo desejo de vivenciá-la no

futuro. Assim, estudar a entrega de um filho para adoção, permeado pela ambivalência

materna e as dificuldades vivenciadas neste período, foi para mim um grande desafio,

porém muito satisfatório, não somente pela realização desta pesquisa, mas essencialmente

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pela possibilidade de contato com essas mães e, principalmente, por poder, com elas,

aprender novos sentidos subjetivos do amor materno.

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VIII – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARRAIS, A.R. As configurações subjetivas da depressão pós-parto: para além da padronização patologizante. Tese (Doutorado em Psicologia). Universidade de Brasília: Brasília, 2005.

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