madre jacinta e a fundação do convento de santa teresa

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Madre Jacinta e a fundação do convento de Santa Teresa Em 15 de outubro de 1715, festa de santa Teresa, nasceu no Rio de Janeiro a fundadora do Convento de Santa Teresa. Eram seus pais José Rodrigues Aires e Dona Maria de Lemos Pereira, pessoas nobres e abastadas. Morrendo o pai, a mãe contraiu segundas núpcias com o comissário-geral de Artilharia André Gonçalves dos Santos, também viúvo, que levava consigo três filhos do primeiro matrimônio. Foi em 7 de outubro de 1730. Só se conserva o nome do mais velho, José Gonçalves, futuro biógrafo e cooperador da madre Jacinta. Esta, logo à primeira vez que o recebeu em casa, tomou-o nos braços dizendo: "Este é meu: quero cuidar dele." Tornou-se o "filho de sua escolha". (Crônicas do Convento, cujo sabor antigo procuramos conservar ao resumir as narrativas da fundação.) Desde pequenina, desejava Jacinta a vida do claustro. Em seu padrasto encontrou apoio, e finalmente conseguiu licença da mãe - que sempre se opusera à sua vocação - para ir a Lisboa realizar seus desejos, por não haver então convento de freiras no Rio de Janeiro. O próprio André Gonçalves requereu a licença, e el rei D. João V a concedeu para Jacinta e sua irmã Francisca embarcarem numa frota que ia rumo de Lisboa, a fim de aí escolherem convento a seu gosto. Naquele tempo era necessário permissão régia. Nas vésperas da partida, em conseqüência de queda, deslocou Jacinta um quadril e ficou de cama por muitos meses, sem poder executar seu intento. Confessava-se nessa época a um capuchinho, frei Jacinto de Foligno, que viera em 1738 para o Rio, chefiando a primeira leva de missionários italianos, estabelecidos provisoriamente na Ermida do Desterro. Já convalescente, descendo um dia de caminho para casa, com Francisca e José Gonçalves, pôs- se Jacinta a considerar a chácara da Bica, em Matacavalos (hoje rua do Riachuelo). À tarde, foi visitá-la. Era lindo o lugar: ermo, coberto de arvoredos, sem trato, parecia convidá-la a iniciar ali a vida de oração e retiro com que sonhara desde pequenina. Umas casas de taipa, arruinadas, sem portas, com paredes a cair; uma fonte, um pé de manjericão e nada mais. Num relance formou seu plano: começaria naqueles casebres abandonados. Ao retirar-se, colheu uns raminhos de manjericão e plantou-os junto à fonte. Tratou logo de comprar a chácara, mas o negócio só se concluiu em princípio de março de 1742. Caiu a Páscoa nesse ano em 25 de março. Na terça-feira 27, Jacinta, acompanhada apenas de uma escrava e de seu filho dileto, José Gonçalves, partiu de madrugada, sem se despedir dos seus. Tomou a imagem do Menino Deus e meteu-a no seio. Foi à Ermida do Desterro, confessou-se, assistiu à missa, comungou e depois encerrou-se no retiro da chácara.

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Madre Jacinta e a Fundação do Convento de Santa Teresa.

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Madre Jacinta e a fundação do convento de

Santa Teresa

Em 15 de outubro de 1715, festa de santa Teresa, nasceu no Rio de Janeiro a

fundadora do Convento de Santa Teresa. Eram seus pais José Rodrigues Aires

e Dona Maria de Lemos Pereira, pessoas nobres e abastadas. Morrendo o pai,

a mãe contraiu segundas núpcias com o comissário-geral de Artilharia André

Gonçalves dos Santos, também viúvo, que levava consigo três filhos do

primeiro matrimônio. Foi em 7 de outubro de 1730. Só se conserva o nome do

mais velho, José Gonçalves, futuro biógrafo e cooperador da madre Jacinta.

Esta, logo à primeira vez que o recebeu em casa, tomou-o nos braços dizendo:

"Este é meu: quero cuidar dele." Tornou-se o "filho de sua escolha". (Crônicas

do Convento, cujo sabor antigo procuramos conservar ao resumir as narrativas

da fundação.)

Desde pequenina, desejava Jacinta a vida do claustro. Em seu padrasto

encontrou apoio, e finalmente conseguiu licença da mãe - que sempre se

opusera à sua vocação - para ir a Lisboa realizar seus desejos, por não haver

então convento de freiras no Rio de Janeiro. O próprio André Gonçalves

requereu a licença, e el rei D. João V a concedeu para Jacinta e sua irmã

Francisca embarcarem numa frota que ia rumo de Lisboa, a fim de aí

escolherem convento a seu gosto. Naquele tempo era necessário permissão

régia. Nas vésperas da partida, em conseqüência de queda, deslocou Jacinta

um quadril e ficou de cama por muitos meses, sem poder executar seu intento.

Confessava-se nessa época a um capuchinho, frei Jacinto de Foligno, que

viera em 1738 para o Rio, chefiando a primeira leva de missionários italianos,

estabelecidos provisoriamente na Ermida do Desterro. Já convalescente,

descendo um dia de caminho para casa, com Francisca e José Gonçalves, pôs-

se Jacinta a considerar a chácara da Bica, em Matacavalos (hoje rua do

Riachuelo). À tarde, foi visitá-la. Era lindo o lugar: ermo, coberto de

arvoredos, sem trato, parecia convidá-la a iniciar ali a vida de oração e retiro

com que sonhara desde pequenina. Umas casas de taipa, arruinadas, sem

portas, com paredes a cair; uma fonte, um pé de manjericão e nada mais.

Num relance formou seu plano: começaria naqueles casebres abandonados.

Ao retirar-se, colheu uns raminhos de manjericão e plantou-os junto à fonte.

Tratou logo de comprar a chácara, mas o negócio só se concluiu em princípio

de março de 1742. Caiu a Páscoa nesse ano em 25 de março. Na terça-feira

27, Jacinta, acompanhada apenas de uma escrava e de seu filho dileto, José

Gonçalves, partiu de madrugada, sem se despedir dos seus. Tomou a imagem

do Menino Deus e meteu-a no seio. Foi à Ermida do Desterro, confessou-se,

assistiu à missa, comungou e depois encerrou-se no retiro da chácara.

Apenas entrou, foi seu primeiro cuidado procurar acomodação para a imagem.

Tudo encontrou arruinado, vazio. José Gonçalves, indo ao terreiro, trouxe dois

paus, fincou-os paralelamente pelas fendas de uma parede, estendeu por cima

o lenço e amarrou-o por baixo, de modo a formar uma superfície plana. Em

seguida, colheu dos manjericões, plantados em redor da fonte, e algumas

flores do mato, formando um arquinho ou nicho improvisado onde Jacinta,

com devoção, entronizou a santa imagem.

Depois Jacinta mandou José Gonçalves comprar fechaduras e pregos, e ele,

com ferramentas emprestadas por um escravo dos capuchinhos, colocou-as

nas duas principais portas. Na mesma tarde, foram visitá-la seu padrasto e seu

irmão Sebastião, e no dia seguinte, pela madrugada, chegou Francisca para

encerrar-se com sua irmã na chácara.

A capela do Menino-Deus

Determinou-se logo Jacinta a fazer na própria chácara uma capela ao seu

Menino Jesus. Mandou José Gonçalves vender uns brincos e com o dinheiro

comprar cal à Casa do Alcântara, e deu começo às obras. Rápida foi a

construção, sob a direção pessoal de Jacinta. À tardinha e nas noites de luar

trabalhavam os irmãos ativamente, carregando pedras. Jacinta as levava às

costas num saco, Francisca à cabeça e o prestimoso José, ajudado por alguns

escravos da família, as transportava num carrinho de mão.

Não tardou em chegar a notícia ao capitão-general Gomes Freire de Andrade,

por meio do jesuíta padre Luís Tavares, e logo quis concorrer para as obras da

capela. Em 31 de dezembro de 1743, foi benta, segundo o ritual romano, e no

primeiro dia do ano de 1744 celebrou aí a primeira missa frei Manuel de

Jesus, secretário do bispo D. João da Cruz, ambos carmelitas descalços. Ao

regressar de uma viagem que fizera a Minas, quis o bispo presenciar o que lhe

dizia frei Manuel de Jesus. Foi celebrar missa na capela, e estava como fora de

si ao ver tão grande pobreza e recolhimento.

Em 1741 D. João da Cruz tentou adiantar as obras do futuro Convento da

Ajuda, da Regra de Santa Clara, edificando-o mais perto do mar, e lançou a

primeira pedra em 14 de maio de 1742. Convidou Jacinta para a fundação,

mas ela já estava firme na sua vocação de seguir a Regra de Santa Teresa, o

que o prelado louvou, e cedeu.

Morte de Francisca

Tinha Jacinta vinte e seis anos de idade, e Francisca vinte e dois, quando se

retiraram à chácara da Bica. Viviam as duas naquela austera solidão,

observando a regra das carmelitas descalças. Estando Jacinta uma tarde fora

da porta da casa com Francisca, apanhou do terreiro umas pedrinhas e disse à

sua irmã que as semeasse porque havia de dar coentro. Francisca semeou as

pedras e passado o tempo costumado colheu um molho de coentros e levou-o

a Jacinta, que lhe perguntou se não tinha visto que eram pedras o que lhe dera.

Ao que ela respondeu que sim, mas creu, que se Deus quisesse, as pedras

dariam coentro. Assim o conta com ingenuidade a madre Inácia Catarina.

Em conseqüência talvez da vida de excessivo trabalho e das austeridades que

abraçara, Francisca foi atacada de tuberculose pulmonar. Antes de morrer,

teve a alegria de ver ordenados seu irmão Sebastião e José Gonçalves. Nos

grandes sofrimentos da última doença, guardava sempre o mesmo semblante

alegre e sereno. Disse-lhe o padre Nunes, seu confessor: "Minha filha, bem

pode gemer para se desafogar um pouco: não é imperfeição." E desde então

ela dizia algumas vezes, em voz sumida e quase imperceptível: "Ai, meu

Deus!" Na manhã de 13 de julho de 1748 expirou, tendo de idade cerca de

trinta anos.

Dela disse o padre Antônio Nunes: "Sua vida era de muita pureza de

consciência, de coração mui singelo, o espírito mui liberto e recatado, muito

alegre e muito mortificada, sem afetações, sem fingimentos, nem beatices

exteriores, muito sofredora, muito pacífica e muito humilde, sem apego, muito

pronta à voz da obediência sem a menor dificuldade, muito compadecida,

muito caritativa, muito dada à oração e com muita solidez nos exercícios dela,

sendo igualmente muito trabalhadora, ainda que padecia algumas queixas

temporais."

Notícia histórica do Convento de Santa Teresa. Rio de Janeiro, Edições Cartas

Marcos, s.d., pp.9-12.