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ESTUDANTES LUSÓFONOS ,»„ Natal na serra a pensar em África Estudam na Universidade da Beira Interior e estão a muitos milhares de quilómetros de casa. Passaram o Natal sozinhos. Da Covilhã a Angola ou a Timor vai um oceano de saudade

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ESTUDANTES LUSÓFONOS ™ ,»„

Natal na serraa pensar em ÁfricaEstudam na Universidade da Beira Interior e estão a muitosmilhares de quilómetros de casa. Passaram o Natal sozinhos.Da Covilhã a Angola ou a Timor vai um oceano de saudade

No frio da Serra, mora asaudade de um Natal ao sol¦ Angola, Timor, Moçambique e Cabo Verde marcam presença no Natal português. Não empeso, mas à medida do possível. Alunos da ÜBI passam quadra natalícia na Covilhã, longe de casa

COVILHÃ ? TIMORENSE E AFRICANOS PASSAM QUADRA FESTIVA LONGE DO AMBIENTE DAS SUAS CULTURAS

Sara Figueiredo

O QUE é o Natal? Para muitos,uma época em que há troca de pre-sentes, família reunida, comida e

doces tradicionais dispostos numamesa redonda. Para outros, o Na-tal não é nada disso. É um dia quese comemora dependendo da cul-tura, da disponibilidade financei-ra e do quão longe se está da famí-lia. Desta vez, o longe fica em lu-gares situados em África e naOceânia.

Avelina Béu tem 25 anos. Hátrês que veio do coração de Ango-la, Luanda, para a Covilhã. O ob-

jectivo era, e é, o de fazer a licen-ciatura no curso de Gestão da Uni-versidade da Beira Interior (UBI).Admite que não veio nem por fal-ta de condições económicas nem

por impossibilidade de estudar emAngola. Foi por decisão e opçãoda família. "É que no meu país a

oferta de trabalho é maior paraquem estuda fora, então preferi-mos arriscar", refere.

Três anos fora de casa são, paraAvelina, sinónimo de três anossem um Natal em família, longedo ambiente africano. Este anonão poderia ter sido de forma di-ferente. Como diz a estudante de

Gestão, "é preferível guardar os1200 euros de viagem para pas-sar um Verão inteiro em Angola,do que gastá-lo em duas semanasde Natal. Ir a casa, nesta altura, fi-caria muito dispendioso para osmeus pais já que são eles que su-

portam todas as minhas despesasuniversitárias". Esmorecida, con-ta, que perante a impossibilidadede viajar e passar o Natal no acon-chego da família há saudades quese acumulam e o choro que, às ve-zes, se solta no vazio do quarto da

residência universitária ondemora. Mas como diz, num súbito

rasgo de alegria, "estes são mo-mentos que passam rápido! Soueu que sou demasiado mimosa",ri. Em Portugal, Avelina encon-trou pessoas com quem se identi-fica. Amigos, nomeadamente denacionalidade africana. Foi comeles que passou a noite de consoa-da. "Fizemos uma contribuiçãopara os gastos da comida. Depoisescolhemos a casa de um de nós

para preparar o jantar", explica.Jenildo Almeida tem 33 anos.

Há dez que veio de Timor-Lestepara Portugal, alimentado pelosonho do estudo. Num sotaque ti-morense, tenta simplificar o quelhe parece difícil de expressar."Após a independência de Timor,Portugal estipulou um acordocom o governo timorense. Enviarjovens do país para estudar em

Portugal fazia parte dele". Em2002, abertas as vagas, Jenildonão perdeu a oportunidade, ins-creveu-se e rumou para o interiorde Portugal. Para a Covilhã ondeestuda Economia. Apesar do es-tatuto de língua oficial em Timor,o português tem sido, desde quechegou, o maior obstáculo. Uma

situação que associa ao facto de "

o governo indonésio ter proibidoa língua portuguesa durante 24anos em Timor". À semelhançade Avelina, Jenildo vai a casa ape-nas no Verão, na altura das fériasescolares. Uma viagem, de ida e

volta, custar-lhe-ia, neste momen-to, cerca de 3500 euros e, comorefere, o sustento vem-lhe da bol-sa universitária "que não dá paratudo".

No seu décimo Natal comemo-rado em Portugal, Jenildo cum-pre, mais uma vez, o melhor da

tradição timorense. No dia da

consoada, juntou-se a mais três

amigos, por coincidência, timo-renses. Entre eles, compraram co-mida e jantaram, não o bacalhau,a couve ou o bolo-rei, mas "aqui-lo que a capacidade financeirapossibilitou" como já era habitualem Lospalos, a terra-natal, ondeos alimentos variavam de Natalpara Natal. "Umas vezes arroz,outras mandioca. Umas vezes car-ne de vaca e de porco, outras ve-zes peixe e búfalo", descreve.Também não houve prendas nemárvore de Natal. Nas palavras de

Jenildo, o Natal em Timor é " sim-

ples. Compreendemos que a pre-sença e a união são os valoresmais importantes". Depois do jan-tar na barriga, a prioridade do ti-morense é, todos os anos, a missado galo. Este Natal não foi excep-ção. O ritual religioso é um açor-

do que, de ano para ano, se man-tém entre os quatro jovens. O in-tuito é o de os aproximar da tradi-ção timorense e do lugar de ori-gem. O que Jenildo estranha, e

questiona continuamente, é "oporquê de em Portugal a missa do

galo só ser frequentada por gentemais velha". Não percebe e voltaa perguntar. "Porquê?". Não es-

pera resposta. Pensativo, diz ape-nas, quase em silêncio: "Em Los-palos acontece ao contrário. Os

jovens têm fé".Pouco mais velho que Jenildo

é Armando Semo. É de Moçam-bique. Tem 34 anos, casado hádez e com três filhos. Está emPortugal há menos de um ano.Veio para o primeiro ano de mes-trado continuar o que começou nalicenciatura: aprofundar os estu-dos de Ciências Biomédicas. Arecente mudança do moçambica-no para Portugal foi possível, e

aconteceu nesta fase da vida, pordois motivos: "Primeiro, porqueconsegui um financiamento doInstituto Português de Apoio aoDesenvolvimento que beneficiapessoas que começam a estudarantes dos 35 anos. Segundo, por-que em Moçambique a área deCiências Biomédicas, Biologiaou Biotecnologia está só agora a

dar os primeiros passos".Sacrifício e oportunidade são

palavras que se aliam no discur-so de Armando. Não se arrepen-de de ter vindo. Só não pensouque a distância em relação à famí-lia custasse tanto. "Eu não tinhaideia do que é ficar longe. O queestou a sentir é, de facto, muitoduro", afirma. Por fim, e num fiode fala tremido, mostra-se cren-te, ao dizer que Deus o "vai aju-dar neste momento de fraqueza".Este ano, o Natal foi-lhe mais tris-te. Habituado à presença da famí-lia e "das minhas crianças", comoas chama, Armando teve no dia24 e 25, à noite e ao jantar, a com-panhia da família de um amigocovilhanense. "Convidaram-mepara uma refeição mais acompa-nhada", diz. Caso contrário, a re-feição teria sido uma mais solitá-

ria, na residência universitáriaque o acolherá durante os doisanos de mestrado.

De Moçambique veio tambémAntónio Mutumane e de CaboVerde, Ernesto Cardoso de 23 e21 anos, respectivamente. Estãohá três anos em Portugal, perten-cem ao mesmo curso na ÜBI,Ciências Políticas e Relações In-ternacionais, e têm aquilo que se

chama de amizade vincada. São

inseparáveis até no rumo da his-tória. Unidos pelas dificuldadesda família que não lhes pode pro-porcionar uma vida de estudo,António e Ernesto viram em Por-tugal a possibilidade de realizar osonho de criança: "estudar parafazer parte da vida política do nos-so país e da África em geral", dizAntónio com uma expressão sor-ridente, reveladora de optimismo.

Nem António nem Ernesto te-riam tido a oportunidade de ace-der ao ensino superior se tivessemficado em Moçambique e CaboVerde. Como explica António, "láa vida é muito complicada". E cá,não é? Pergunta-se. E eis que ele

responde. "Não. Aqui o nosso so-nho não tem limite". Num acenarde cabeça, Ernesto concorda como amigo e ainda refere que, numconjunto de 12 irmãos, foi o úni-co a conseguir enveredar pelos ca-minhos do ensino superior. "FoiDeus que me abençoou com umabolsa do governo Cabo Verdia-no", diz, revelando um estado de

emoção que alterou o timbre davoz.

António, ao contrário de Ernes-

to, não conseguiu nenhuma bolsado governo. Veio para Portugalatravés de uma organização, a Vi-são Mundial. "Sou activista e des-de criança que estou ligado à áreahumanitária em Moçambique",diz. "Sempre lutei contra a discri-

minação. Defendi sempre, e con-tinuo a defender, os interesses das

pessoas sem voz activa, ajudoquem é mais pobre do que eu,presto auxílio a crianças comSIDA e àquelas que não têm aces-so ao ensino primário", explica.Perante o historial de António, a

Visão Mundial seleccionou-o,juntamente com mais cinco jo-vens, e enviou-os para Portugal."Viemos três ou quatro meses à

experiência. Eu gostei tanto do

país que a dado momento penseipara mim: porque é que não pos-so arriscar e ficar para estudar?"Arriscou e ficou. Sem descontosde trabalho em Portugal, Antónionão tem direito a bolsa de estudo.

Depende da ajuda dos Serviços de

Acção Social da ÜBI, que em tro-ca de trabalho prestado numa dascantinas da universidade lhe ofe-rece as senhas alimentares. Outraajuda fundamental provém "daboa vontade das colegas de traba-lho que mensalmente contribuemcom dinheiro e roupa". Satisfeitoe ao mesmo tempo grato, Antónioafirma que "as amigas de cantina"lhe pagam quase tudo. Nestascondições, ir a Moçambique noNatal é um plano que se adia ano

após ano. Permanece, assim, a ge-nerosidade de uma das senhorascom quem trabalha e que convi-dou António, pelo segundo anoconsecutivo, para um Natal em fa-mília, nos dias 24 e 25 de Dezem-bro. A este respeito, António re-fere que guardará "para sempre a

experiência dos Natais em Portu-gal". É que em Moçambique, faceàs graves dificuldades financei-ras da família, não se lembra de

alguma vez o ter comemorado.Ernesto não teve a sorte do ami-

go. Nem mesmo a de Avelina, Je-nildo ou Armando. Não recebeuconvites nem planeou a noite deNatal. Amparou-o a residênciauniversitária onde vive. A falta de

condições económicas faz com

que encare "com naturalidade" o

facto de ainda não ter voltado aCabo Verde desde que chegou a

Portugal. Mais um pouco e os três

anos completam-se longe da vis-ta dos pais, dos 1 1 irmãos, dosavós e da madrinha. As pessoas,que quando reunidas na quadranatalícia, davam sentido à pala-vra Natal, "mesmo quando nãohavia dinheiro".

Experiências contadas, sauda-des apertadas e um Natal que ter-

minou longe do lar africano. E dotimorense também. A época fes-tiva vai para lá do meio e a per-gunta de fim de ano impõe-se. "E

planos para a passagem de ano?".Ernesto lança o olhar ao amigo eAntónio devolve-lhe um sorriso."Nada de especial", diz-se. "Va-mos estar, provavelmente numcafé a conversar". Jenildo tencio-na ir além da conversa no café."Quatro timorenses e um ou dois

copos num bar deve ser a opção".Avelina ouve falar em mudançadeanoe ..."Lisboa!", atira. "Seráem Lisboa com um conjunto de

amigos. Ficamos em casa de umdeles, de 29 de Dezembro a 2 de

Janeiro", diz. Continua: "Aindanão sabemos o que vamos fazer,mas como será em ambiente afri-cano...". Cala-se, cria suspenseedepois revela. "O africano sem-

pre improvisa qualquer coisa".Desfaz-se em gargalhadas. Numtom genuinamente alegre, Aveli-na realça a natureza do seu povoem meia dúzia de palavras. "Umjantar à grande, música e dança,muita dança! É claro, que festasem barulho não é festa para afri-cano",ri. "Mas", com o indicadorno ar, alerta com humor, "barulhoà medida do português. É queaqui, em Portugal, muito barulhoé crime", remata em pequenasgargalhadas. Este ano, Armandoprefere contrariar a natureza afri-cana. Vai optar pela via do sosse-

go. Na passagem de ano vai focar-se nas aulas, "mergulhar fundo noestudo. E quando estiver cansadovou dormir... eé assim". Suspiro.Silêncio...