luiz carlos sá visite meu blog: … que a gente não tem mais privacidade, que a grana que está...

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112 www.backstage.com.br Vida de Artista Luiz Carlos Sá [email protected] VISITE MEU BLOG: LUIZCARLOSSA.BLOGSPOT.COM Grana e Fama Grana e Fama H á uns tempos, um amigo que andava no auge da fama e da exposição televisiva se queixava para mim: – Cara, não posso nem mais ir a um supermercado que todo mundo já vem para cima querendo foto, autógrafo... Mi- nha mulher fica irada com isso. Diz que a gente não tem mais privacidade, que a grana que está entrando não com- pensa e coisa e tal... Como eu sabia das dificuldades que ele passara até chegar onde estava e como a mulher dele sempre reclamara do fato de ter a carga financeira do casal majoritariamente nas costas dela, fiquei a ponto de dizer que então o problema não era com ele, mas sim com ela... Entretanto, em vez de pôr mais lenha na fogueira, preferi, como bom amigo do casal, tentar ajudar: – Isso é assim mesmo. Nesse caso, na minha opinião, é melhor o excesso do que a falta. O que você acha de pedir o supermercado pela internet? Ele olhou para mim como se tivesse sido atingido por um raio: – Mas aí... – ?... Continuamos a caminhar, agora em silêncio, pela beira do Leblon, ofuscados por aquele incrível poente carioca de horário de verão que chega logo antes que os Dois gulosos Irmãos engulam o último dourado do fim da tarde. E ele só me respondeu quando já chegávamos a Ipanema, noite quase posta: – Sabe o que é? Ela pode não gostar... Parou, pôs as mãos na cabeça e olhou bem nos meus olhos: – Mas eu adoro! Caímos na gargalhada e – como bons cariocas – fomos to- mar uns geladíssimos para esquecer o “problema”. Na verdade não conheço nenhum colega de profissão que desgoste do conjunto grana & fama. Mas como cai bem negar esse fato, muitos deles se queixam da falta de privaci- dade, do assédio dos fãs, do dever de atendê-los depois de um show cansativo e da necessidade de perder preciosos minutos de vida dando entrevistas muitas vezes repeti- tivas a uma mídia exigente e não raro louca para detonar aquela imagem construída à custa de muito suor. Porém, es- ses muitos se esquecem de um fato muito simples: a vida de artista, apesar de não ser fácil, é na realidade a realização de um sonho e a concretização de um privilégio: o sonho que todos (ou a maioria de nós) têm de sobressair em uma mul- tidão anônima e o privilégio de sustentar-se fazendo o que se ama fazer. Como nada na vida é grátis, isso também tem um preço, que eu, particularmente, acho barato. No caso desse meu amigo, pude logo descobrir o agravante do assédio que ele sofria. Depois de uns tantos chopes, perguntei: – Escuta uma coisa: como é que você vai para esse super- mercado? – Como é que eu vou como? – É, como é que você se veste, como é que você chega lá... – Ué... Vou normal... – Normal? – É, mas você sabe como é... Com esse negócio de rolar na telinha o tempo todo, a gente taca logo uns óculos escuros. – Esses aí? – Apontei o par que ele deixara agora sobre a testa, no lusco-fusco do boteco. – Não, uns grandões que eu tenho... Claro. Os grandões que ele tinha. Aqueles de artista. – E tua mulher? – Bom, ela você sabe como é... Vai toda produzida. Diz que tem que manter a imagem. Ela acha que se sair toda breguinha, doméstica, alguém pode me reconhecer e co- mentar: “Ih, a mulher do fulano é qualquer nota...”. Ela morre de vergonha só de pensar nisso. – Pombas, cara. Você sai com aqueles óculos de artista. Tua mulher sai vestida que nem uma perua para fazer o super. Como é que você quer que ninguém encha o saco de vocês? Só pode. Meu amigo bebericou o chope, pensativo: – É... De repente é por aí. – Claro que é por aí. Por que você acha que a gente vem caminhando desde o Leblon até aqui em pleno verão, com o Rio cheio de turista, sem que ninguém tenha sequer olhado para você e dado um gritinho? – É... Pode crer... Qualquer um de nós que desfrute de mais de quinze minutos de fama tem três caminhos para seguir: pensar que finge que

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Grana e FamaGrana e FamaH á uns tempos, um amigo que andava no auge da fama e

da exposição televisiva se queixava para mim:– Cara, não posso nem mais ir a um supermercado que todomundo já vem para cima querendo foto, autógrafo... Mi-nha mulher fica irada com isso. Diz que a gente não temmais privacidade, que a grana que está entrando não com-pensa e coisa e tal...Como eu sabia das dificuldades que ele passara até chegaronde estava e como a mulher dele sempre reclamara do fato deter a carga financeira do casal majoritariamente nas costasdela, fiquei a ponto de dizer que então o problema não era comele, mas sim com ela... Entretanto, em vez de pôr mais lenhana fogueira, preferi, como bom amigo do casal, tentar ajudar:– Isso é assim mesmo. Nesse caso, na minha opinião, émelhor o excesso do que a falta. O que você acha de pedir osupermercado pela internet?Ele olhou para mim como se tivesse sido atingido por um raio:– Mas aí...– ?...Continuamos a caminhar, agora em silêncio, pela beira doLeblon, ofuscados por aquele incrível poente carioca dehorário de verão que chega logo antes que os Dois gulososIrmãos engulam o último dourado do fim da tarde. E ele sóme respondeu quando já chegávamos a Ipanema, noitequase posta:– Sabe o que é? Ela pode não gostar...Parou, pôs as mãos na cabeça e olhou bem nos meus olhos:– Mas eu adoro!Caímos na gargalhada e – como bons cariocas – fomos to-mar uns geladíssimos para esquecer o “problema”.Na verdade não conheço nenhum colega de profissão quedesgoste do conjunto grana & fama. Mas como cai bemnegar esse fato, muitos deles se queixam da falta de privaci-dade, do assédio dos fãs, do dever de atendê-los depois deum show cansativo e da necessidade de perder preciososminutos de vida dando entrevistas muitas vezes repeti-tivas a uma mídia exigente e não raro louca para detonaraquela imagem construída à custa de muito suor. Porém, es-ses muitos se esquecem de um fato muito simples: a vida de

artista, apesar de não ser fácil, é na realidade a realização deum sonho e a concretização de um privilégio: o sonho quetodos (ou a maioria de nós) têm de sobressair em uma mul-tidão anônima e o privilégio de sustentar-se fazendo o quese ama fazer. Como nada na vida é grátis, isso também temum preço, que eu, particularmente, acho barato. No casodesse meu amigo, pude logo descobrir o agravante do assédioque ele sofria. Depois de uns tantos chopes, perguntei:– Escuta uma coisa: como é que você vai para esse super-mercado?– Como é que eu vou como?– É, como é que você se veste, como é que você chega lá...– Ué... Vou normal...– Normal?– É, mas você sabe como é... Com esse negócio de rolar natelinha o tempo todo, a gente taca logo uns óculos escuros.– Esses aí? – Apontei o par que ele deixara agora sobre atesta, no lusco-fusco do boteco.– Não, uns grandões que eu tenho...Claro. Os grandões que ele tinha. Aqueles de artista.– E tua mulher?– Bom, ela você sabe como é... Vai toda produzida. Diz quetem que manter a imagem. Ela acha que se sair todabreguinha, doméstica, alguém pode me reconhecer e co-mentar: “Ih, a mulher do fulano é qualquer nota...”. Elamorre de vergonha só de pensar nisso.– Pombas, cara. Você sai com aqueles óculos de artista. Tuamulher sai vestida que nem uma perua para fazer o super.Como é que você quer que ninguém encha o saco de vocês?Só pode.Meu amigo bebericou o chope, pensativo:– É... De repente é por aí.– Claro que é por aí. Por que você acha que a gente vemcaminhando desde o Leblon até aqui em pleno verão, como Rio cheio de turista, sem que ninguém tenha sequerolhado para você e dado um gritinho?– É... Pode crer...Qualquer um de nós que desfrute de mais de quinze minutosde fama tem três caminhos para seguir: pensar que finge que

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não é, adorar confirmar o que é ou tentar não ser o que é. Noprimeiro caso você acha que aqueles enormes óculos escuros,acompanhados de jeans e camiseta da Daslu vão te transfor-mar em uma pessoa comum. No segundo, você sai na rua ves-tido de artista: os mesmos grandes óculos escuros, só que agoraacompanhados de roupas chamativas, largos sorrisos (até paraquem ignora qual seja o seu importante papel na Humanidade)e uma farta entourage: amigos, aproveitadores comuns, moto-ristas, fonoaudiólogas, gerenciadores de imagem, publicitáriosde todas as especialidades, psicoterapeutas e quetais. Haja cabe-ça empreendedora para segurar essa neura moderna. O proble-ma é sobrar tempo para ensaiar, tocar, compor e voltar a ser ar-tista na concepção da palavra. No terceiro caso você simples-mente vai ao supermercado e esquece que é artista. Aí, a auradesaparece e você faz as compras em paz.Cansei de descer a Timóteo da Costa, no alto Leblon, ecruzar com Chico Buarque – um fã da aeróbica – subindoa ladeira. Até onde eu vi, ninguém encheu o saco doChico nessas caminhadas dele, e o Chico é o Chico, não équalquer Zé Mané. Mas o Chico não faz cara de artista.

Tanto ele se esqueceu de quem era que acabou sendo víti-ma dos paparazzi naquele famoso banho de mar noLeblon. E me levou a pensar em um outro extremo: osque nem imaginam o que sejam.Semanas depois reencontrei meu amigo. Como ele me pa-recia meio aborrecido, perguntei a ele como iam as coisas.– Segui teu conselho. Larguei os óculos grandes, compreiumas camisetas e umas bermudas na Hering e falei para aminha mulher parar de se pintar para ir ao super.– E aí?– E aí... E aí que nem mais a moça da caixa pergunta quemeu sou. Ir ao supermercado virou um tédio.E em um misto de desespero e autocrítica, ele ergueu asmãos para o céu:– Tem alguma coisa pior que ser qualquer um no supermercado?!Caímos de novo na gargalhada e fomos renovar nossa rela-tiva indiferença ao mundo da grana & fama no botecomais próximo, sabendo – é claro! – que quem tem fama temgrana e quem tem grana tem fama, salvo prova em contrá-rio. Mas se as exceções confirmam as regras...