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NOTAS DE INVESTIGAÇÃO XIII —DIOGO PIRES, ÉVORA E O ALGARVE No Verão de 1980, passei uma semana em Dubrovnik, a antiga Ragusa, na pista de Diogo Pires (1), um dos mais famosos poetas novilatinos europeus do século XVI, que nessa cidade da actual Jugos- lávia, ou lá perto, faleceu em 1607. Nascera em Évora, noventa anos antes, em 5 de Abril de 1517, segundo ele próprio informa. As saudades de Portugal, sobretudo da cidade onde viu a luz, são uma constante da sua poesia e não ocorrem apenas no De Exílio Suo, elegia de 98 versos dactílicos que traduzi com os alunos, e comentei, nas aulas da cadeira de Latim Renascentista. No poema De Exílio Suo, escreve a respeito da cidade natal : 15 At procul, et longo terror um dissita tractu Est Ebora: heu puero cognita terra mihil Salue terra mei natalis cônscia, salue Non oculis posthac terra uidenda méis. Tróia decern, totidemque Mêmes absumpserat error: 20 Vix Ithacum spes est posse redire ducem. Ille redit tamen, et ueteres agnoscit amicos; Penelope fruitur iam seniore uiro. Me fortuna tenax terris dum iactat, et undis, Ennumerat bis sex Elis Olympiaãas; 25 Et cum temporibus crescunt me damna ferendo: Et quis erit, cui. non dulcius ante mori? (1) Sobre Diogo Pires, ver o artigo que publiquei em Verbo: Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, vol. 15, pp. 183-184; e ainda, «Luís Pires e não Diogo Pires», Humanitas XXIX-XXX, Coimbra, 1977-78, pp. 230-231; id., Estudos sobre o século XVI, Paris, Gulbenkian, 1980.

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NOTAS DE INVESTIGAÇÃO

XIII —DIOGO PIRES, ÉVORA E O ALGARVE

No Verão de 1980, passei uma semana em Dubrovnik, a antiga Ragusa, na pista de Diogo Pires (1), um dos mais famosos poetas novilatinos europeus do século XVI, que nessa cidade da actual Jugos­lávia, ou lá perto, faleceu em 1607. Nascera em Évora, noventa anos antes, em 5 de Abril de 1517, segundo ele próprio informa.

As saudades de Portugal, sobretudo da cidade onde viu a luz, são uma constante da sua poesia e não ocorrem apenas no De Exílio Suo, elegia de 98 versos dactílicos que traduzi com os alunos, e comentei, nas aulas da cadeira de Latim Renascentista.

No poema De Exílio Suo, escreve a respeito da cidade natal :

15 At procul, et longo terror um dissita tractu Est Ebora: heu puer o cognita terra mihil

Salue terra mei natalis cônscia, salue Non oculis posthac terra uidenda méis.

Tróia decern, totidemque Mêmes absumpserat error: 20 Vix Ithacum spes est posse redire ducem.

Ille redit tamen, et ueteres agnoscit amicos; Penelope fruitur iam seniore uiro.

Me fortuna tenax terris dum iactat, et undis, Ennumerat bis sex Elis Olympiaãas;

25 Et cum temporibus crescunt me damna ferendo: Et quis erit, cui. non dulcius ante mori?

(1) Sobre Diogo Pires, ver o artigo que publiquei em Verbo: Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, vol. 15, pp. 183-184; e ainda, «Luís Pires e não Diogo Pires», Humanitas XXIX-XXX, Coimbra, 1977-78, pp. 230-231; id., Estudos sobre o século XVI, Paris, Gulbenkian, 1980.

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«Mas longe daqui, e separada por uma longa extensão de terras, está Évora: oh, terra que eu conheci em criança! Salve, terra confidente do meu nascimento, salve, terra que os meus olhos, depois, não mais haviam de ver!

Tróia levou-lhe dez invernos e outros tantos a viagem errante. Mal tinha esperança o rei itacense de poder voltar. Mas voltou, apesar de tudo, e reconheceu os velhos amigos. Penélope goza de um marido mais idoso já.

A mim, enquanto uma fortuna implacável arrasta por terras e mares, conta Elide já duas vezes seis Olimpíadas. E com o tempo crescem os danos que sofro ! Haverá alguém a quem não seja mais doce morrer?»

Estava, portanto, há sessenta anos fora de Portugal, ou talvez mais exactamente da Península Ibérica, pois creio que foi de Salamanca que fugiu em 1535, por imposição de seu pai. Aliás, no De Exílio Suo, por convicção ou por cálculo, o seu ressentimento é contra os chamados Reis Católicos, especialmente Fernando de Aragão, que, para mais, lhe surge na figura de traidor, sendo como era o aragonês de sangue judaico. Ódio também um pouco estranho este contra o rei Fernando, morto em. 1516, um ano antes do nascimento do poeta! Os motivos profundos deste rancor terão de ser ainda averiguados.

Por contraste, é um pouco surpreendente que D. João III lhe mereça repetidos elogios, como este:

Ioannes III

Rex, quo nemo magis populum dilexit, et in quem Non potuit populi crescere maior amor.

«D. João III

Rei que ao povo mais amou que nenhum outro, e por quem não pôde o amor do povo crescer mais.»

A este dístico juntou o poeta a seguinte informação, em prosa : Sub hoc rege iussu patris, adolescens uixdum xiix. annum egressus, id quod non sine lachrymis scribo. Et patriae fines, & dulcia rura reliqui. an. 1535. Ou em versão portuguesa: «No seu reinado, por ordem de meu pai,

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com dezoito anos feitos há pouco, coisa que não sem lágrimas escrevo : Limites da pátria e doces campos deixei, no ano de 1535.» {Cato Minor, Veneza, 1596).

Mas não é só neste poema, publicado em 1596, que Évora se encon­tra. A sua terra está por toda a parte, nos versos de lacobus Flauius Eborensis ou Didacus Pyrrhus Lusitanus (2).

Eis um dístico numa secção de Vrbium Nomina do mesmo Cato Minor, onde em dois versos faz o elogio de várias cidades da Península Ibérica :

Ebora

Haec Ebora est, uates ornat quam Flauius urbem, Et quam plus oculis diligit ille suis.

«Évora

Esta é Évora, a cidade de que o poeta Flávio é ornamento e que ele mais ama que aos seus olhos».

E num epigrama autobiográfico, nova referência:

At qua militiae princeps Viriatus Iberae Non semel effusis hostibus emicuit

Est Ebora, o sanctum homen mihi. Vidit auorum Têmpora, natalem uidit et illa meum.

«Mas por onde brilhou Viriato, como chefe da milícia ibérica, dispersando mais de uma vez os inimigos, fica Évora, ó nome sagrado para mim! Viu ela os tempos de meus avós, viu ela também o meu nascimento.»

Os testemunhos de Évora podiam ser multiplicados. Lisboa, Coimbra e Santarém são igualmente lembradas. E o seu amor a

(2) Os dois nomes são equivalentes: lacobus = Didacus, Flauius = Pyrrhus (<7CVQQóç, «vermelho»). Cf. A. Costa Ramalho, Estudos sobre a Época do Renas­cimento, Coimbra, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 1969, p. 188.

238 NOTAS DE INVESTIGAÇÃO

Portugal era tão grande, e tão frequentemente apregoado, que alguma vez terá irritado os ragusanos com quem, aliás, parece ter vivido em boas relações, mesmo com as autoridades católicas, a quem há nos seus versos numerosas referências laudatórias, ocasionalmente correspondidas.

Todavia, num epigrama que copiei de um manuscrito em Dubrovnik, alguém que conheceu Diogo Pires e se cansou de o ouvir louvar as grandezas da pátria de origem, faz-lhe críticas, aliás pouco inspiradas, num epigrama de que extraio quatro versos:

In Pyrrhum Lusitanum Aretalogum Epigr.

Lusíadas Patriam dictis mendacious Pyrrhus Dum lauâat, Superos et Phlegetonta mouet.

ludice sub tali Romas Oiisippo trecentas Moenïbus immensis cïaudere sola potest.

«Epigrama contra o charlatão do português Pires

Quando Pires louva os portugueses, a pátria, com os seus elogios mentirosos, remove céus e inferno. (...) Em sua opi­nião, Lisboa sozinha é capaz de encerrar nas muralhas imensas a Romas trezentas.»

Para terminar esta nota, mencionemos a referência ao Algarve que se encontra numa carta escrita de Ferrara a Paolo Giovio, em Fevereiro de 1547, a que já fiz referência nos meus Estudos sobre a Época do Renascimento, p. 202:

Sunt et in Lusitânia loca ad mare posita, quae ab insigni amoe-nitate Arabica, noce Algarbia uocamus, perinde atque Graeci uoluptuosa illa Thessaliae loca Tempe dicunt.

ou em vernáculo:

«Há também em Portugal uma região junto ao mar que pela extraordinária amenidade chamamos, com uma palavra árabe, Algarve, assim como os gregos dão o nome de Tempe àqueles deliciosos lugares da Tessália».

NOTAS DE INVESTIGAÇÃO 239

Se bem que a etimologia pareça não estar certa, é este o primeiro elogio turístico que conheço, a respeito do Algarve.

Diogo Pires, aliás, deve ter conservado nos olhos a paisagem algarvia, pois foi escolher para passar os últimos anos da sua vida um cenário natural de rara beleza, que lembra o algarvio, nas costas do Adriático, e uma cidade monumental e histórica, Ragusa ou Dubrovnik, que muito recorda a Évora distante de que sempre viveu saudoso.

AMéRICO DA COSTA RAMALHO

XIV —DIOGO PIRES SOBRE A MORTE DE D. JOÃO II

No Flauii Iacobi Eborensis Cato Minor siue Disticha M or ali a ad Ludimagistros Olysipponenses (...) Venetiis, MDXCVI, apud Felicem Valgrisium, vem, entre uma série de dezoito epigramas dedicados aos reis de Portugal, um consagrado a D. João II, e acompanhado de uma explicação, na p. 76:

loannes II

Clarus loannes, et bello, et pace furentes Arte socrus (eheu) pocula dira bibit.

«SCHOLIVM

Decessit potionatus a Beatrice soem, cuius generum filiumque proditionis reos, securi percusserat».

O latim do epigrama contém uma «gralha» de um «e» por um «i» na palavra final do hexâmetro, que deve ser furentis. A tradução será, portanto :

«João II

João, ilustre na guerra e na paz, por artes da sogra enfu­recida (oh!), ingere a fatal bebida».

240 NOTAS DE INVESTIGAÇÃO

«ESCÓLIO

Morreu envenenado por sua sogra Beatriz, cujos genro e filho, réus de traição, ele mandara decapitar».

A explicação não é inteiramente exacta, pois securi percusserat só pode aplicar-se com precisão ao duque de Bragança, D. Fernando, o genro da Infanta D. Beatriz. O filho, D. Diogo, duque de Viseu, foi, como é sabido, apunhalado pelo próprio rei. Mas é preciso não esquecer que os poemas do Cato Minor, embora incluídos num livro dedicado aos «mestres-escolas de Lisboa», foram escritos com o pensa­mento nos amigos estrangeiros de Diogo Pires e, portanto, para eles uma informação genérica chegava, tanto mais que o autor se apresenta como poeta e não como historiem.

Quanto à hipótese do veneno, ela não é nova. E Diogo Pires que viveu muitos anos em Itália, e em contacto com italianos mesmo em Ragusa ou Dubrovnik, que era então uma cidade de fortes tradições italianas, deve ter adquirido o espírito dos seus amigos. Ora ninguém mais inclinado a acreditar em mortes por veneno do que os italianos do século XVI.

Também, na bela elegia De Exílio Suo, onde ataca duramente os reis Fernando e Isabel de Castela e Aragão, acusa D. Fernando de ter mandado envenenar Filipe de Áustria, seu genro. No verso 62, num pentâmetro dactílico, como aquele em que usa a expressão pocula dira a respeito de D. João II, aparece também esta referida ao marido de Joana-a-Louca :

Et bibit accitus pocula dira gener.

A posição de pocula dira é a mesma, no começo do segundo hemistíquio. A este verso juntou Diogo Pires, em nota, o escólio: «Philippus horum gener Burgis in Hispânia potionatus, ut creditar, moritur».

Note-se, de passagem, que as suspeitas de morte por envenenamento do genro que o rei Fernando mandara chamar (accitus), corriam nos meios diplomáticos do tempo, como informa o especialista de história da diplomacia do século XVI, Garrett Mattingly, no seu livro Catherine

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of Aragon (ed. Vintage, New York, 1960), pp. 82-83: «An Italian sugges­ted that he had 'eaten something', but Italian diplomats notoriously thought the worst of everyone» (p. 83).

A. C. R.

XV —DIOGO BERNARDES E CAMÕES

Neste mesmo volume de Hwnanitas, de páginas 141 a 146, pro­curei mostrar que na «Carta XXXII. A João Rodrigues de Sá de Mene­ses, da jornada que fez Pêro d'Alcaçova Carneiro a Castela, por mandado de El-Rei Dom Sebastião», da autoria de Diogo Bernardes, se encon­tram parodiados alguns passos de Os Lusíadas, sobretudo a estân­cia 63 do canto IX, no episódio da Ilha dos Amores.

Já depois de impressa e distribuída a separata, o que aconteceu em Novembro de 1980, durante a III.a Reunião Internacional de Camo-nistas, em Coimbra, notei outro eco, que me passara despercebido anteriormente, na mesma estância 63 do canto IX. Assim, no verso 3, escreveu Camões:

Responde-lhe do ramo Filomela

E Bernardes parodiou :

Seu canto Filomela ali derrama.

A interpretação jocosa de Bernardes, derrama por do ramo, parece-me evidente.

Também o Prof. Roger Bismut, em carta de concordância que me escreveu, sobre o artigo, datada de 18 de Novembro de 1980, chama a minha atenção para o facto de os versos de Bernardes

Que vem a converter homens em rãs E tornam a fazer homens de formigas

serem um eco das estâncias dos Lusíadas II, 23 e 27, hipótese que me parece altamente provável.

A. C. R.

242 NOTAS DE INVESTIGAÇÃO

XVI —NISE NERINE EM LUS., II, 20, 5

Num estudo valioso, com o título de «Nomes de Ninfas em Camões», publicado em Biblos LVI, Coimbra, 1980, pp. 315-325, a Prof, Doutora Maria Helena da Rocha Pereira procura demonstrar que em Lusíadas II, 20, 5 deve suprimir-se a vírgula entre «Nise» e «Nerine» e restituir-se uma perdida copulativa «e» que originariamente ligaria as duas formas verbais do verso. Deste modo, onde hoje se lê:

Salta Nise, Nerine se arremessa

passaria a ler-se:

Salta Nise Nerine < e > se arremessa.

Embora não concorde que se toque no texto tradicional, mesmo numa edição crítica, acho que esta hipótese tem muitas probabilidades de estar certa e merece figurar no aparato crítico de uma futura edição. E acrescento mais algumas razões às que a Prof. Rocha Pereira dá no seu artigo da Biblos.

Consultando os dicionários latinos correntes, como Gaffiot e Lewis and Short, s.v. Nerine, ambos dão à palavra o significado de «Filha de Nereu, Nereida» e citam o mesmo exemplo, Nerine Galatea, em VIRG. Ecl. vii, 37, também mencionado pela Prof. Rocha Pereira.

Nesta Écloga VII, o pastor Córidon, evocando imaginosamente os seus amores, pensa dar-lhes maior importância, escolhendo para sua amada a Nereida Galateia, uma divindade marinha. Natural­mente, a pompa seria menor, se Galateia fosse uma pastora vulgar, como aquela outra Galateia da Écloga I, modesta camponesa e ex-com-panheira de Títiro, possivelmente escrava como ele, a qual, com ser perdulária, nunca permitira ao amante juntar o pecúlio para comprar a liberdade:

Postquam nos Amaryllis habet, Galatea reliquit. 32 Namque, fatebor enim, dum me Galatea tenebat

Nec spes libertatis erat...

NOTAS DE INVESTIGAÇÃO 243

E é precisamente para distinguir as duas Galateias virgilianas, pondo em relevo a superioridade da Galateia marinha, que o patro­nímico Nerine lhe é atribuído.

No A d Illustrissimum Dominium Alvarum, ducis Bragantiae filium, sapientissimum Hispaniae praesidem EPITHALAMIUM do humanista Cataldo Parísio Sículo, num catálogo de mulheres cantadas pelos poetas, são enumeradas as duas Galateias, a rústica e a Nereida, esta-belecendo-se igualmente distinção entre ambas:

115 Insons Cydippe, Galateaque rústica, seu quant Nereidum genuit mater amara saio.

«A inocente Cidipe e a Galateia campestre ou a outra (Galateia) que a mãe das Nereidas gerou no mar salgado (3)».

Estas duas Galateias eram as mais conhecidas de Camões, porque ocorrem em Virgílio. Mas conhecem-se outras, pelo menos, mais duas.

Em relação a Nise, há a Nereida que a Prof. Rocha Pereira iden­tifica com Nisaee de VIRG., En. V, 825. Mas encontram-se também muitas Nises, que nada têm a ver com a filha de Nereu, entre as mulheres cantadas pelos poetas de Quinhentos. Em alguns casos, trata-se do anagrama de Inês.

Por isso, é natural que a Nereida seja identificada de modo latino e virgiliano, como Nise Nerine. E o ritmo da estância, confirmando a hipótese da Prof. Rocha Pereira, nada perde com isso:

Já na água erguendo vão com grande pressa Com as argênteas caudas branca escuma; Cloto co peito corta e atravessa Com mais furor o mar do que costuma;

(3) Amara é um qualificativo virgiliano de Doris, a mãe das Nereidas, chamada amara em Ed. X, 5. Aqui foi traduzido com hipálage.

Sobre o Epithalamium, dedicado ao casamento de D. Beatriz, filha de D. Álvaro de Bragança, com D. Jorge, mestre de Santiago e duque de Coimbra, filho de D. João II, ver A. Costa Ramalho, «Cataldo e o Cancioneiro Geral», Biblos LVI, Coimbra, 1980, pp. 307-314.

244 NOTAS DE INVESTIGAÇÃO

Salta Nise Nerine e se arremessa Por cima da água crespa em força suma; Abrem caminho as ondas encurvadas Do temor das Nereidas apressadas.

(Lus. II, 20)

Á. C. R.

XVII — U M SONETO DE ANCHIETA?

Na Miscelânea de Manuscritos n.° 1636, p. 340, da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, encontra-se um soneto em quatro línguas, atribuído a José de Anchieta. Chamou-me a atenção para o soneto a Dr.a Maria Luísa Lemos, distinta e dedicada bibliotecária da B.G.U.C.

Uma das línguas do soneto não costuma figurar entre as que Anchieta conhecia, a saber, o italiano, pois ao culto jesuíta só costuma ser atribuído o domínio dos seguintes idiomas: o castelhano, o latim, o português e o tupi dos nativos brasileiros. Mas o Padre Anchieta era dotado de excepcional facilidade para as línguas, constituindo motivo de admiração para os portugueses a perfeição, assombrosa num espanhol, com que falava o português.

Não custa a crer, por outro lado, que, descendente de bascos, alguma coisa soubesse da língua de seus antepassados e que, aluno distinto do Colégio das Artes de Coimbra, não tivesse deixado a escola sem umas tinturas de Grego Antigo. Com esta bagagem linguística, nomeadamente um perfeito domínio do latim e de duas línguas novila-tinas, o castelhano e o português, não é de surpreender que conhecesse também o italiano literário, então muito lido entre os cultos do tempo.

Por outro lado, os sonetos em quatro línguas estavam então na moda, encontrando-se, por exemplo, entre as Poesias de André Falcão de Resende (4), um soneto a Madrid que começa Filia Babylonis, misera, iníqua, seguindo-se em cada quadra os restantes versos em italiano, espanhol e francês, e nos tercetos, em latim, italiano e espanhol.

(4) Cf. A. Costa Ramalho, Estudos sobre a Época do Renascimento, já cita­dos na n. 2.

NOTAS DE INVESTIGAÇÃO 245

Eis o soneto atribuído a Anchieta:

«A S. J. quãdo acrescentou ouinho aoflamengo q sintia m.t0 esta falta.

Em quatro línguas.

Soberano Joseph: dai nova vida Aquém quazi da vida dezespera Porq agloria qem vida mais uenera Sem o sumo da vide, auê perdida.

Prometed q la aurora bien uenida El vino aumentara del q quiziera, Antes mengua en sus anos y tuuiera La mengua de su uino mas crescida.

Piange yl Brytano, che gli manca yl uino, Santo Gioseffo, habigli compassione, Ritroue in te il gáudio, che dimanda.

Sy augeas uinû opera diuina Renouas vitam; cum dilectione, Tua admiranti opera admiranda.

á margem, encontra-se escrito: «O q fez este / soneto foi o P.e / Joseph de Anchieta».

O manuscrito é do século XVII.

A. C. R.

XVIII —GIL VICENTE E A COMEDIA

Em «Alguns aspectos do Cómico Vicentino», palestra feita em Nova Iorque em 1962, só impressa em Biblos XLI, em 1973, e reimpressa nos Estudos sobre o Século XVI, Fundação Calouste Gulbenkian, Paris, 1980, escrevi: «As reflexões melancólicas não estão fora do

246 NOTAS DE INVESTIGAÇÃO

domínio da comédia, mas têm. de ser aligeiradas com observações que provoquem o riso. É na «Divisa da Cidade de Coimbra» que se encon­tra uma formulação teórica, possivelmente para ser tomada a sério:

Já sabeis, senhores, que toda a Comédia começa em dolores; e inda que toque cousas lastimeiras, sabei que as farsas todas chocarreiras não são muito finas sem outros primores.

{Copilação, foi. CVII v.°)»

Num importante artigo, «O testemunho de Garcia de Resende sobre o teatro vicentino. Algumas reflexões», publicado neste mesmo volume XXXI-XXXJI de Humanitas, Jorge Alves Osório aproxima o passo da Copilaçam, acima transcrito em grafia actualizada, de reflexões semelhantes, mas anteriores, de Juan de Mena e Inigo López de Men-doza, incluídas por Federico Sanchez Escribano e Alberto Porqueras Mayo no seu livro, Preceptiva Dramática Espahola dei Renacimiento y el Barroco. Gredos, Madrid, 1965, pp. 53-54.

Gostaria de acrescentar uma breve achega. Esse juízo sobre a Comédia encontra-se já em Dante, na Epistola X a Can Grande delia Scala, na qual o florentino, ao explicar o título da sua Divina Comédia, assim se exprime sobre a «Comédia» em geral:

«Comoedia vero inchoat asperitatem alicuius rei, sed eius materia prospere terminatur, ut patet per Terentium in suis comoediis».

Paget Toynbee (5), o editor oxoniense das cartas latinas de Dante, apresenta como fonte desta noção de comédia, Uguccione da Pisa, aquele Hugucio da diatribe de Estêvão Cavaleiro contra Pastrana e os gramátios medievais, no «Prologus» da Virginis Marine Ars (6).

A. C. R.

(5) Dantis Alagherii Epistolae. The Letters of Dante.(...) Second Edition with a Bibliographical Appendix by C. G. Hardie. Oxford, at the Clarendon Press, 1966, p. 176.

(6) Cf. Américo da Costa Ramalho, Estudos sobre o Século XVI, pp. 129 e 364.