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REVISTA DE MANGUINHOS | AGOSTO DE 2016 56 FIO DA HISTÓRIA Receita antiga Estudo analisa representação da mulher em revistas do início do século 20

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Page 1: FIO DA HISTÓRIA Receita antiga · 2017. 2. 15. · mulher que contrastava fortemente com o ideal prescrito por higienistas e euge-nistas. Em uma delas, a personagem visita um banqueiro

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FIO DA HISTÓRIA

Receita antigaEstudo analisa representação da mulher em revistas do início do século 20

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AGlauber Gonçalves

mulher modelo: aque-la que consegue equi-librar vida profissional,casamento e f i lhoscom destreza e, de

quebra, ainda reserva tempo parapraticar esportes. Essa descrição bempoderia se referir ao arquétipo damulher moderna construído nas pá-ginas de dezenas de revistas cujascapas trazem modelos exibindo seuscorpos e rostos perfeitos, graças, emparte, a um cuidadoso retoque viaPhotoshop. A receita acima, porém,é antiga – já era prescrita muito an-tes da invenção dos programas deedição de imagens. O trecho se re-fere ao modo como uma publicaçãode grande circulação no Rio de Ja-neiro retratava a mulher ideal naprimeira metade do século passado.

A constatação é feita com baseem dissertação de mestrado defen-dida por Priscila Cupello no Progra-ma de Pós-Graduação em Históriadas Ciências e da Saúde da Casa deOswaldo Cruz (COC/Fiocruz). No tra-balho, intitulado A mulher (a)normal:representações do feminino em peri-ódicos científicos e revistas leigas degrande circulação na cidade do Riode Janeiro (1925-1933), ela contra-pôs a representação da mulher con-siderada “normal” em publicaçõesmédicas com o retrato feminino vei-culado em revistas voltadas ao públi-co em geral nas primeiras décadasdo século 20.

Naquele período, representantesde diversos campos do conhecimen-to se empenhavam na elaboração deum projeto para fazer do Brasil umpaís moderno. Os eugenistas e os hi-gienistas não eram uma exceção.Para sua pesquisa, Priscila analisourevistas científicas que revelavam avisão de futuro que esse grupo tinhapara a nação: o Boletim de Eugenia(1929-1933) e os Arquivos Brasileirosde Higiene Mental (1925-1947), esseúltimo publicado pela Liga Brasileirade Higiene Mental.

Fundada em 1923, a entidade ti-nha inicialmente o objetivo de melho-rar a assistência aos doentes mentaispor meio da renovação dos quadrosprofissionais dos hospícios. Com o pas-sar do tempo, passou a promover a pre-venção das doenças psiquiátricas. Aotomar para a si um papel ativo no pro-jeto de modernização do país, os higi-

enistas mentais defendiam um proces-so de normalização da população, pormeio da criação de rotinas de hábitossaudáveis e específicos para os homense as mulheres – essas concebidas comoamorosas, frágeis, bondosas e capazesde apagar a si mesmas em prol dosdesejos dos filhos e do marido. Os dou-tores iam além: queriam interferir nas

Capas da revista A Maçã, um dos dois títulos analisados na dissertação de mestrado

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uniões matrimoniais, por meio da le-galização do exame pré-nupcial e daesterilização dos “degenerados” paragarantir a saúde e a sanidade das ge-rações futuras.

A análise de Priscila mostra queas revistas de grande circulação nãose mostraram muito permeáveis a es-sas ideias. Entre os dois títulos analisa-dos, Revista Feminina e A Maçã, a pri-meira foi a que mais se apropriou dodiscurso médico. “Há nessa revista umavalorização muito grande das crianças,que vão ser os adultos de amanhã.Então as mães precisam dar-lhes umaboa educação dentro de casa”, expli-ca Priscila. O psiquiatra e eugenistaJúlio Porto-Carrero, que frequentemen-te publicava artigos sobre essa temáti-ca nos Arquivos Brasileiros, era taxati-vo sobre o papel da mulher: defendiaque a “esposa-mãe” era o “tipo com-pleto de mulher normal”.

Apesar de sua proximidade como discurso médico em alguns temas, aRevista Feminina defendia bandeiraspróprias – algumas, inclusive, rechaça-das pela comunidade científica. Volta-da para as famílias da elite daquelaépoca, a publicação se dizia modernae apoiava a emancipação feminina.Porém, com limites. Deixar a casa paratrabalhar era visto como algo positivo.No entanto, a lista de atividades queuma mulher poderia desempenhar era

limitada àquelas vistas como uma ex-pansão de suas tarefas no lar, entre asquais professora e enfermeira.

A outra revista leiga analisadapor Priscila tinha um perfil diferente.O tom mais escrachado de A Maçãera evidente já nas capas. Em umadas edições, uma ilustração mostra-va uma jovem mulher sendo carre-gada em uma espécie de riquixá porum senhor bem vestido, abaixo daqual se lia o seguinte: O marido ide-al. Fundada pelo jornalista Humber-to de Campos, membro da Acade-mia Brasileira de Letras (ABL), apublicação falava com um públicojovem de classe média. A revista cri-ticava o modo de vida burguês e ca-pitalista daquele momento, conde-nando a valorização excessiva dodinheiro. “As mulheres eram vistascomo vaidosas, ambiciosas, que só secasavam por interesse. O homem eraretratado como o velho burguês, o ca-pitalista”, afirma a pesquisadora.

Diversas das crônicas traziam umamulher que contrastava fortemente como ideal prescrito por higienistas e euge-nistas. Em uma delas, a personagemvisita um banqueiro para pedir um em-prego para o marido, que estava de-sempregado. A crônica termina com oautor afirmando que, dias depois, quempassasse na porta da residência do ca-pitalista podia ouvir os barulhos suaves

de beijos que vinham lá de dentro. De-fensores da monogamia, eugenistas ehigienistas sustentavam que o divórcioera capaz de suscitar “degeneraçãonervosa e mental”, como se lê em umdos textos dos Arquivos Brasileiros.

Outros textos e até anúncios de AMaçã deixam evidente a presença dadupla moral sexual na revista. Em umadas edições, uma peça publicitária ofe-recia um remédio para os homens queadquiriram doenças venéreas antes domatrimônio. O objetivo estava claro:não contaminar as suas noivas, que,conforme se esperava, deveriam secasar virgens. “Sanguinol: eis a razãopor que milhares de senhoras sofrem[de doenças venéreas] sem saber a queatribuir a causa”, dizia o anúncio.

Priscila conclui que o campo mé-dico não conseguiu impor à sociedadeem geral a sua concepção de “mulhernormal”. No universo da psiquiatria, asmulheres eram catalogadas como ali-enadas quando apresentavam compor-tamentos considerados atípicos para asnormas morais da sociedade carioca deentão. No entanto, a leitura das revis-tas generalistas mostra que, no espa-ço social mais amplo, esse campo doconhecimento não foi soberano e tevede compartilhar com outros saberes,inclusive políticos, populares e religio-sos, a autoridade sobre o que era anormalidade feminina.

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