a travessia do albatroz - visionvox€¦ · passara a madrugada moendo nozes para fazer aquela...

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  • Estelivroéumromancebaseadonahistóriarealdeumjovemiranianoeseumelhor amigo. Contrariando normas rígidas, Kurosh Majidi (nome >ictício)apaixona-se por Zibã, uma não muçulmana. Na direção oposta, seu amigoBehruzabraçaoradicalismoxiita.Candidatoamártir,estádispostoamorrerem nome de Alá, ainda que para isso tenha que sacri>icar a amizade deinfância. Convertido em militante radical, Behruz engaja-se no exército deKhomeini. Amante da liberdade, Kurosh evita as frentes de combate. Vê osamigos serem seduzidos pelo fanatismo, enquanto ele se distancia da fé.Quandoahistória assumeproporções trágicas,Kuroshdecideque chegouahora de partir. Começa então sua epopéia, ponto central do livro. Kuroshaventura-se rumo à fronteira com a Turquia e acaba preso e torturado.Retorna à cidade natal, mas não desiste. Como um albatroz, a grande avemigratória,elereúneforças,superaomedoeatravessaacordilheiracobertadeneveeinfestadadelobosfamintos.

  • ParteIAcaminhodoParaíso

  • IMeu amigo de infância explodiu. Não deliberadamente como um

    homem-bombaqueatadinamitesnacintura.Morreuestraçalhadoaopisaremminas terrestres. Junto comele, umpelotãodequinze soldados vooupelosares.Muitoserammeninosdepoucomaisde12anos.Ospedaçosdoscorpos espalharam-se pelo campo, tornando quase impossível suaidentificação.

    Anotíciachegarademanhãcedo,logoapósasprimeirasprecesdodia que, há algum tempo, tenho negligenciado. A rádio nos acordouchamando para as orações e falou dos novos mártires a caminho doParaíso.

    “Sobre eles haverá trajes de fina seda, verdes e de brocado. Eestarão enfeitados com braceletes de prata. E seu Senhor dar-lhes-á debeberpuríssimabebida”.

    Nãocitounomes,maslogoviriammecontar.- Kurosh... - meu pai chamou. – Acabaram de divulgar uma lista...

    SoubequeBehruz...-enãoprecisouterminarafrase.Ele era assim. Nos momentos graves perdia o autocontrole e

    gaguejavafeitocriança,tremendodacabeçaaospés.Atrásdele,quedesdepequeno eu apelidara de Agho Jun, “senhor querido”, estava o rostodescoberto da minha mãe. A angústia era tamanha que nem se dera aotrabalho de colocar o chador. Procurava em mim traços de desespero,escondendoaslágrimasderramadasantespormedodoquepelaperdadealguémque,porlongosanos,foraquaseumfilhoparaela.

    Nosseuscabelosprecocementeembranquecidosviopavordeque

  • eu fosse um dia convocado pelo exército para, dali a meses, quem sabesemanas,regressardentrodeumcaixão.Atéagoraeuconseguiradriblaravigilânciadoserviçomilitar,evitandoorecrutamentocompulsório.Masatéquando? Todos os dias a televisão mostrava fotografias dos que nãovoltaram.Dosquemorriamnaguerraouentãoexecutadospelospelotõesdefuzilamento,seconsideradosinimigosdoregime.Amortetinhaviradorotina.

    -Issoiaacabaracontecendo–eudissecomavozestranhamentefriapara a dimensão daquela tragédia. Eu ainda não supunha como elaimpactariaomeufuturodeformatãoradical.

    –QueoProfetanosajude!–exclamouminhamãe.-Khodadeveriacolocarbomsensonacabeçadosdirigentes.-Agho

    Junacrescentou,usandoapalavrairanianaparadesignarAlá.-Porquenãomandamrebanhosdeovelhascomobuchadecanhão?–indagou,revoltadocom os métodos suicidas do exército, cujos comandantes incitavam ainfantariaaentrardepeitoabertoepassosfirmesnoscamposminados.

    Fixeiavistaemumobjetoqualquersemsaberoqueresponder.Jáestavatãoacostumadoàquiloquenãosentiaquasenada.Apreensão,raiva,nemarevoltadeAghoJun,visívelnobigodequetremialigeiramentesobreo lábio superior. Só um vazio que me embrulhava o estômago como seestivesse acordando de uma anestesia. Por isso recusei o pão doce comgergelimpreparadoparaocafédamanhã.

    -Vocênãopode ficarsemcomernada–minhamãemepuxouemdireçãoàescada.

    Lá embaixo, na sala, estendera a toalha com o pote de chá e umagrande travessadegez. Estranhei, o doce de água de rosas e pistache sódava o ar da graça no Ano Novo. Mas desde que soubera do acidente,passara a madrugada moendo nozes para fazer aquela especialidadedeliciosa de Yazd, sua terra natal. Ela achava que desse jeito poderiaamenizaraminhador.Nasuacabeçatudoficavamaisfácildesuportarse

  • estivéssemosdebarrigacheia.Quantomaissofisticadooprato,maisefeitosurtia... Fora assimnos funerais daminha avó. Três dias e três noites decomidafarta.Eratantoque,nofinal,quaseíamosnosesquecendoderezar.

    Agoraoperfumedeflorde laranjeiraquesubiadobulemisturadoaoaromadogeztraziadevoltaimagensdeumpassadonãomuitodistante,e desde hoje para sempre perdido. Comer era a última coisa que euconseguiria fazer naquele momento. Afastei-me da maneira mais gentilpossívelnascircunstânciasevolteiparaoquarto.

    - Kurosh, espera um pouco! – ela pediu quase suplicando, vindoatrásdemim.

    Fecheiaportaemeestendinacama.Do ladode foraelaeminhasirmãsquetinhamsidoacordadaspelomovimentoinusitado,continuavamaconversar.Euouviafrasessoltaseentrecortadasdeexclamaçõesvindasládebaixo.

    -OspaisdeleestãopedindoajudaaosamigoseparentesparapoderenterrarofilhonopátiointernodaVakil.-AghoJuncontou.

    Ele se referia à mesquita próxima ao Bazar do Regente, ondemantinhamseunegócio.Seissonãofossepossível,iriamtentaradeNasiral-Molk ao sul da avenidaDastgheib.Namais importante de Shiraz, todadecoradaempastilhascommotivos floraisemtonsderosa,verdeeazul,seriaquererdemais.LádentroficavaomausoléuXáCheragh,oReidaLuz,reconhecível de longe pela cúpula em forma de bulbo com o minaretecoroadopelopequenotetodourado.Paramimaqueleeraumlugarmágico,por causa das miríades de espelhos minúsculos que recobriam seu tetocomoumcéuestrelado.AghoJunachavaabsurdo.Umprivilégiodaquelesiacustarumafortuna.

    -Seráquejánãosedãoporsatisfeitoscomashonrariasqueorapazvaireceber?

    Estraçalhado... Curioso pensar nesta palavra ligada ao nome deBehruz.Justoele,omaiscompenetradodenós,quetomaraasérioasharia,

  • aleiislâmicaimpostapelaRevoluçãoeseapresentaracomovoluntário!Avida é mesmo injusta, pensei comigo, embora soubesse que meu amigoescolheraaqueledesfecho.E,seaguerraemsijáeratãocruel,ogoverno,comseufanatismo,atornavaumaverdadeirainsanidade.

    Tenteirecordarafacedomeuamigo,masa figuradelesedesfazianoarcomoafumaçanahoradaexplosão.NumminutoBehruzeraumserpensante, comsonhos, ideais eumaboadosedevalentia.Nooutro tinhaviradoumamassadisforme,músculoseossosrecolhidosemumapequenacaixacobertadetecidospintadoscomtrechosdoAlcorão,levadasobreosombrosdoshomensdafamíliapelasruasdacidade.Setivessesobrevivido,teriaficadoaleijadocomoumcolegadeclassequevinohospitalquandofuivisitarumprimodoente.Entreinaalamasculinaprocurandoo leitodele,quando topei com algo que ficou gravado na minha memória. Fiqueidesconcertado ao ver alguém conhecido no meio daquela profusão demacas, gemidos e ataduras ensangüentadas. Hossein demonstrou igualsurpresaemmever.Apesardetudo,numpiscardeolhosconversávamoscomo se jamais tivéssemos nos separado desde o primário. Falamos dosvelhos professores, das meninas da escola vizinha, que esperávamos aotocardosinoparaacompanhá-lasdelonge,semservistosporninguém.

    -Lembra-sedeFaty?–eleperguntou.–Elaaindaestásolteira?Comoeunãomerecordariada irmãdeBehruz,pelaqualnósdois

    tínhamosumaqueda?Comoesquecerdoscabelosencaracoladosfaiscantessobosolqueumdiadesapareceramdentrodochador,acapaqueocorpointeiro?Apostávamosparaverquemiasecasarcomelaeretiraro lençoquepassara a esconderos cachos castanhos escuro.Hossein era omaiorcraquenohaft sang,masnuncame superouno tabuleirobrancoepreto.Elesemprederrubavadeprimeira,comaboladetênis,amaioriadassetepedrasempilhadasemformadepirâmide,queagentemontavanomeiodarua, mas não tinha raciocícnio rápido nem a concentração que o xadrezexigia.Por issoestávamossempreempatados,enuncachegamosabrigar

  • deverdade.Maistardenosperdemosdevista.Nessereencontroaoacasocombinamosdenosvermosassimqueelerecebessealta.

    Abraçamo-nosemocionadose sentio roçardas trêsmedalhasqueenfeitavamablusadeseupijama.Aomencionaroorgulhodeterumamigoheróideguerraeledeuumsorrisoforçadoquemaispareciaumacareta.Sóentão reparei o tormento que marcava suas feições irremediavelmentetristes. Recuei ao imaginar os horrores que deveria ter presenciado nocampo de batalha, as torturas atrozes a que eram submetidos oscapturadospelos inimigos, as feridas insuportáveis que latejamno fundodocoraçãoejamaiscicatrizamporcompleto.Vireiemdireçãoàsaídacomummistodealívioevergonhapornãotermealistadocomoamaioriadosmeus amigos. Antes de deixar a ala, lancei um último olhar ao meu ex-colega,quevoltaraorostoparaaparede.Percebiquelhefaltavamasduaspernas, amputadas bem na altura da virilha. Não era o único. Outrosrapazes, igualmente jovens, vítimas da brutalidade da invasão iraquianapotencializadapelonosso fanatismoreligioso, tinhamcabeçasenfaixadas,olhosremendados,mãosebraçosdemenosesofrimentodesobra.

    HosseineBehruz, frutosdeumageraçãodesperdiçada.Equantoamim, qual seria meu destino? Encontrar meu marjae taghlid, o guiareligioso,fontedeinspiraçãoesegui-loatéamorte?Ouesconder-meparasempre, numa terra sem perspectivas nem esperança? Cursar auniversidadetornara-sepurailusão.Elastinhamsidoreabertasdepoisdedois anos, mas havia filas intermináveis aguardando vagas reservadaspreferencialmente aos familiares dos mártires da revolução. O cerco sefechavaeasalternativasdiminuíam.Fuitomadodeumdesalentoprofundocomo jamais experimentara, umamistura de ódio, impotência e pena demimmesmo.Levanteiparacolocarumafitacassetenovelhoaparelhodesom.GireiobotãonovolumemáximoeosacordesdeumamúsicadeBobDylanecoarampelacasa

    -Cuidadocomosvizinhos!-eraavozdaminhamãe,quebatiacom

  • forçanaportatrancada.- Que se danem – respondi baixinho. - Pouco me importa se me

    denunciaremàsautoridades...–emedeixeilevarpelosomqueháanosnãoousava escutar. Conseguia reconhecer as frases cantadas em inglês,aprendera a língua na escola na era de Reza Pahlevi. Naquela época osEstadosUnidosnãoeramopiordosnossospesadelos.

    Nãoseiquantotempofiqueialilargado,noembalodascançõesquemetransportavamparamundostãolongínquoscomoaspáginasdoslivrosproibidos. Ainda guardava alguns volumes no fundo falso aberto noassoalho,debaixodotapetedebordasazuis.Comaconivênciadasminhasirmãs, escolhi alguns títulos para salvar da fogueira, quando mandaramqueimar tudo o que não fosse autorizado pelos censores religiosos. Elasgostavam de Proust e Tolstoi, mas eu preferia Charles Dickens e DomQuixote,deCervantes.TambémhaviaDostoievsky,queescreviadeumjeitotristedemaisparaomeugosto.Eracurioso...apesardefalarsobreaRússiade um tempo distante, ele parecia estar escrevendo sobre a nossa gente.Achoqueporissofoiproibidocomosdemais.

    Música, só as de teor religioso. Revistas e jornais, apenas ospermitidos.Televisão,nempensar.Asantenasforamparaolixo,captavamprogramasefilmesqueofendiamasrígidasnormasdoAlcorão.Khomeininão deixara dúvidas ao declarar que todo muçulmano era obrigado aobedecer cada linha do Livro Sagrado. As raras vozes dissonantes, quecontestavamosaiatolás,altosdignitáriosnahierarquiareligiosaeperitosem Leis islâmicas, não sobreviveriam para ver o fim da história. Eramexecutadas de forma sumária, sem quaisquer formalidades jurídicas,escapandoàfarsadeumjulgamentodecartasmarcadas.

    Consultei o relógio, presente de Behruz. Passava das onze horas.Nãoabrimosalojapormotivodeluto,ninguémdecasasaiuparatrabalhar.Osepultamentoseriadaliaumasemana.Antes,precisavamtransportaroscorpos, ou o que sobrara deles para devolver às famílias em diferentes

  • cidadesdopaís.Quemtinharecursospagavadoprópriobolsoaviagematéasproximidadesdafronteirapararesgatarosrestosmortaisdosfilhos,quetraziamnosautomóveispelaestradamunidosdesalvo-conduto.Nãosaíabarato. Com a gasolina racionada, só dava para comprar combustível nomercadonegroapreçosexorbitantes.

    Pelafrestadaportaagoraentravaumaromaestimulantequeabriumeuapetite.Eraopolo,oarrozcomfrutassecasacompanhadodebrochetede carneiro, temperado com estragão e servido com molho de menta.Minhamãeprosseguiacomsuasartesculináriasdepodercurativo,edestaveznãoresistiàsedução.Desligueiosom,masamúsicacontinuouecoandodentrodaminhacabeça.Aosairdoquarto,viumafotografiaamarelecidadeBehruz,dequandotínhamos15ou16anos.Costumávamosassistiraosfilmes de caubóis, eu achava esquisito porque ele torcia para os índios enãoparaosmocinhoscomoamaioriadenós.Sabiamuitacoisasobreosapaches,siouxeoutrastribosdepeles-vermelhascujosnomesnãorecordo.Economizávamosdinheiroparaasentradasdocinemaeparacomprarosdiscos da nossa estrela Googoosh e do pop star Dariush. Eu gostava damúsica tradicional iraniana, aquela em que o cantor usa estrofes dosmaiores poetas como Hafez, Saadi, Moulavi, Ferdussi ou Khayam,acompanhados pelos instrumentos típicos, mas não resistia aos LPs derock.Tocava-osnavitrolaatédecoraras letrasecantarolar juntocomasbandas.HojeeumeperguntavaseBehruzchegara,algumdia,agostardosBeatlescomoeu.

    Eu questionava quando e como esses conjuntos passaram arepresentaradecadênciaeo lixoque infectavaanossacultura.PressintotersidoaíquemeutrajetoeodeBehruzafastaram-secomonabifurcaçãode um rio, as águas cavando dois leitos a partir de uma pedra. O deleresultou namorte e sua conversão em herói da pátria. Com páginas embrancoeplenodeincertezas,omeuaindaestavaporserescrito.

    Um tremor percorreu meu corpo feito uma descarga elétrica. Se

  • tivesse uma fração da coragem de Behruz ou de Hossein, romperia comtudo isso para mudar de vida. Sim, eu sabia de pessoas que estavamdeixandoopaísemsegredo,apesardasfronteirasfechadasepatrulhadas.AsrotasdefugacortavamoPaquistão,Turquia,KuwaitouArábiaSaudita,através do Golfo Pérsico. Ficava fora de cogitação tentar passar pelaimpenetrávelUniãoSoviética, a leste, e, obviamente,pelo Iraque, aoeste,comquemestávamosemplenaguerra.

    TorneiaolharparaoretratodeBehruz,desciparaasalaedevoreioalmoço com uma fome premeditada. Iria precisar de toda a energia douniversopararevelaraosmeuspaisminhadecisãoirrevogável.

    Nãodesconfiavaqueelespróprioshaviamconversadoarespeitodeumapossível fuga,comamortedramáticadomeuamigodeinfânciacujaimagem, agora, apareciaperfeita comose ele estivesse sentadodiantedemim. O riso fácil, cabelos anelados emoldurando o rosto que chamava aatençãodetodasasgarotasedespertavaemmimumapontinhadeinveja,surgiulímpidoesemdistorções.

    -Precisamosderrubarestegovernoqueprejudicanossopovo.–Avozdelesoavanumtimbredifícildeesquecer.Eleganhavanossaconfiançanaadesãoàlutaquetomouasruasdecadacidade,decadapovoadodoIrãatéoestabelecimentodarepúblicaislâmicaem1979.Seusolhosbrilhavamcomofachosdeluzenosguiavamnaquelaaventuraépica,queconquistavamaisemaisadeptos,inclusiveosmaiscéticoserelutantes.

    Tínhamosapenasdezesseteanos,masnosengajamoscomagarraeféde quem acredita na possibilidade de alterar radicalmente o curso dahistória. Eu seguia os passos de Behruz como se segue um profeta. Sóenxergava a bravura do amigo, com quem compartilhara os momentosmais felizes da infância e da adolescência. Ainda era muito jovem paraperceber que aquela faísca refulgindo nas suas pupilas era a marca dosfanáticosedosloucos.

  • ParteIIOfimdainocência

    IIAcasadeBehruzeaminhaficavamnomesmoquarteirão,pertoda

    escolaparaondecaminhávamosjuntostodasasmanhãs.Poucagentetinhacarroenãoéramosexceção.EuacordavacomosomdorádionoquartodeAghoJunchamandoparaaspreces.Elecompraraoaparelhoassimquenosmudamosparaum localdeondenãoconseguíamosescutaromuezimnoalto do minarete. Agora contávamos com a tecnologia para as oraçõesmatinais.Aquilosoavacomoumamúsicaavisandooiníciodeumnovodia.Ele seria como o de ontem e o de amanhã. Alegre e despreocupado,contantoquenãomeesquecessedospreceitosbásicosdareligião–afé,aoração(salat),acaridade(zakat),ojejumeaperegrinaçãoquandoeufossemaisvelho.

    Agho Jun não era um devoto extremado, mas fazia questão deobedecer aos cinco pilares sagrados do Islã, até mesmo quando estespareciamforademoda.NãomeatreviaatransgredirosmandamentosdeAláparanãopagarpelosseuspecadosnoJuízoFinal. Íarezartodasexta-feiranamesquitaparaaqualdoavaumaporcentagemdosganhosmensais.Jejuava durante o Ramadã. Jamais deixou que consumíssemos bebidaalcoólica,apesardeservendida,quaseàvontade,duranteogovernodoXá.Nem permitia que minhas irmãs usassem saia curta. “Uma moça derespeito não pode mostrar mais do que os tornozelos”, ele avisava,torcendoonarizpara as amigasdelasque chegavamvestindoasúltimas

  • novidades damoda estrangeira. Para ele, era uma questão de princípios.Recatodignificavaamulher,roupasdecotadassignificavamvulgaridadeeofensaaocorpofeminino.

    “Isso vai acabar mal”, Agho Jun costumava advertir diante dacrescente invasão dos usos e costumes ocidentais. Também não gostouquandoRezaPahleviproibiuochador,queapesardissocontinuavausadopor muitas mulheres, principalmente nos vilarejos do interior do país.Achavaque certos limitesnãodeveriam serultrapassados sobo riscodeperdermosnossaidentidadeeauto-estima.

    “Somosumdospovosmaisantigosdoplaneta”–gostavadefrisar.“Nãoprecisamoscopiarosoutros,pelocontrário.Nóséquetemosmuitoaensinar”.

    EntãoAghoJuncontavapelamilésimavezahistóriadaformaçãodoIrã, nome dado em tempos remotos à extensa região composta demontanhasrochosas,terrasressequidasedesertossalgadosentreoGolfoPérsicoeoMarCáspio,ocupadapelosarianos,nômadesdepeleclara.Seusolhosmiúdos faiscavam por detrás das lentes dos óculos de aro escuro.Umadashastesestavaremendadacomumesparadrapo,porquedesdequemeconheciaporgenteelealegava faltade tempoparamandarconsertaroufazerumnovo.Eassim,malcontendoaemoçãoquetransmitiaapesardeestarmosouvindoamesmalengalengaquejásabíamosdecor,voltavaacontar que na planície de Susiane, às bordas do Iraque, nasceram asprimeiras cidades iranianas. Elas desenvolveram-se graças à suaproximidadecomaMesopotâmiaeUruk.Foiquandovagassucessivasdetribos indo-européias chegaram, sendo que uma delas, conhecida comoPersa,instalou-senapequenafaixaondefica,nosdiasdehoje,aprovínciadeFars.

    Sentados em almofadas feitas de tapete persa, nós e minha mãeouvíamos resignados. Ela desistira de fazer Agho Jun mudar de assuntoquandootemagiravaemtornodahistóriadoIrã.Noseucantopreferido,

  • com os pés metidos no chinelo de couro macio de cor marrom, eleprosseguia. Como não cursara faculdade, nem tinha diploma, Agho Jungostava de exibir sua cultura, quase erudita. Teria sido professor, masprecisavasustentarafamília.Queremédio?

    - Há pelomenos 2600 anos, os persas organizaram-se em Estadoindependente sob a chefia de Achéménès. Seus descendentes, de Ciro aDarioeXerxes,osxahanxas,reisdosreis,alargariamasfronteirasdaPérsia– Agho Jun acrescentou – construindo a Estrada Real, de quase 3.200quilômetros, que atravessava o coração do Império desde Susa, a capitaladministrativa,atéoMarEgeu,noextremooposto.A redeviária fariadaregiãoumcentrodenegócios,atravésdoqualfluíaocomércioentreaÁsiaocidentaleoriental.Mas,comoemtodahistóriadahumanidade,sofreriaainvasãodeAlexandre,oGrandeedeseuselefantes,usadoscomotanquesde guerra. Sem mencionar os gregos bizantinos e as tropas mongóis deGengis Khan, que destruíram aldeias inteiras e massacraram suaspopulações. Isso, depois de terem sido convertidos ao islamismo aointegrarem-se ao império árabe sob o califado. Fomos nós, os iranianos,queensinamosaosárabesálgebra,arquitetura,químicaeastronomia,quedepois eles disseminariammundo afora -, contava entusiasmado, sem seimportaremparacerrepetitivo.

    - Pensam que os árabes são os maiores sábios da antiguidade,quando foram nossos ancestrais os grandes cientistas e matemáticos dopassado! – Agho Jun vivia repetindo. Tinha o maior orgulho daquelasraízes,tantoquepreferiausar“Khoda”quandosereferiaaDeus.

    Saltandoséculosparaencurtarumalongahistória,noscontavaqueem1935avelhaPérsiatinhaadotadoonomedeIrã.“Somosoúnicopaísdocontinentequenãofalaárabeesimpersa,quechamamosfarsi,portersurgidojustonaregiãodeFars,berçodanossacivilização.Oalfabetode32caracteres possui quatro letras amais do que o árabe, que semesclou ànossalínguaoriginal”.

  • Shiraz,minha cidadenatal emque sempremorei, é tida comoumoásisnomeiodaaridezdesérticadaprovínciadeFars.Emboraamaioriados jardins que a tornaram célebre no passado tenha desaparecido, operfume das flores e árvores frutíferas povoouminha infância. Fecho osolhosepossoadivinharascoresdastulipasedosamores-perfeitosesentiroaromadaromãplantadanofundodonossoquintal.Apaisagemcontinuaintactanosarquivosdamemória.Revejo,aonorte,osmontesZagrosqueseelevam a mais de 3 mil metros de altitude. Ao sul eles vão diminuindoprogressivamente, formando bacias propícias ao cultivo de cereais e dealgodão e que outrora serviram de pastagem de inverno aos nômades.Antes da proibição do consumo de álcool, a região era coberta pelasparreirasdasquaisseproduziaorenomadovinhodeShiraz,umacepaqueganhou o mundo. Recito de cor poemas de Hafiz e Saadi, cujos túmulosenfeitamosparquesondecostumávamospassearcomosparentesvindosdeoutrasprovíncias.

    De uma família classe média, meu cotidiano era tranqüilo.Levantava, punha o uniforme deixado por minha mãe sobre a cadeira eseguia para a escola, onde as matérias eram ensinadas por professoreslaicos.ParapenetrarnosmistériosdoAlcorão,Agho Junme fez teraulasparticularescomSeyyed.Barbudo,omuláusavaoammame,turbantepretoprópriodosdescendentesdeMaomé.Osuorgotejavadasuatestaestreitanacabeçagorduchaquebrotavadiretodocorpanzilsempescoço.Comvozgutural,diziaqueummuçulmanonãodevenegligenciarascinconamaz,asoraçõesdiárias.

    AghoJunqueriaumfuturomelhorparamim.Aocontráriodealgunsdosmeuscolegas,mandavaqueficasseemcasaapósasaulas.ElepreferiaqueeulesseedecorasseversosdoShahname,oLivrodosReis,emvezdeajudarnoescritóriodalojadoBazarqueherdariaumdia,assimcomoeleareceberadopai.ParaAghoJun,oépicoescritoporFerdussihámaisdemilanossobreopassadohistóricoemitológicodoIrãdesdesuacriaçãoatéa

  • conquista islâmica no século VII, despertaria em mim o senso depatriotismoqueeleprópriocultivavacomtantaintensidade.Comocaçulaeúnico filho homem, após duas garotas e um menino que morreu aocompletarumanodeidade,eusempreforaumtantomimado.Elesonhavaqueeuseguisseatradiçãodafamílianaloja,masenquantoisso,satisfaziaamaioria dos meus caprichos. Convencido da impunidade, esperava AghoJunterminaroalmoçoesumirnaesquinaparaescapardoquartoecorreratéacasadeBehruz.Naqueledianãofoidiferente.Amãedelemeviupelajanelaeveioabriraporta.

    -Salamaleikum–elacumprimentou.–Vocêsvãojogarfutebol?Nempreciseiresponder,poisnoteiafiguradeBehruzcomumabola

    debaixo do braço. Ele era o nosso craque e recentemente tornara-se ocapitãodotimedaescola.

    -Vocêdemorou,penseiquenãoviessemais–meuamigoreclamouquandoeufizmençãodeentrar.

    - Agho Jun ficou no telefone discutindo sobre um lote de tapetes.Imaginequequeriamcobrarodobrodopreçocombinado!

    -Bem,agoravamosrecuperarotempoperdido.Despedimo-nos da mãe dele e apertamos o passo em direção ao

    pontodoônibus.- Para onde estamos indo? – eu perguntei. – Vamos bater bola no

    campo?- Você vai ver. Por enquanto, siga-me. Trouxe o dinheiro da

    passagem?Eufizquesimcomacabeça,tateandonobolsodacalçaostrocados

    quereceberadeAghoJuncomopagamentopelaajudaquederanalojanofim de semana anterior, quando o Bazar fervilhava de clientes. Nãoquestioneimeuamigosobrenossodestino,poisnessastardesroubadasaoestudo eu me sentia como um fugitivo, sem direito algum. Além disso,qualquer coisa era melhor do que ficar trancado em casa, sobretudo no

  • calor.Naverdade,não importavaparaondeestávamosindo,oqueviesseerapurolucro.

    Minhacuriosidadefoilogosatisfeita.Conheciaoitinerárioeelenoslevava ao noroeste, rumo ao parque de Bâgh-e Eram. Como de praxe, otrânsitoestava caótico, asbuzinasnãoparavamde tocareosmotoristas,enfurecidos no meio da balbúrdia, gritavam com todos que cruzavam ocaminho. Semáforo não fora feito para respeitar e as batidas eramcostumeiras, atravancandoas ruas entupidasdegente tentando irparaooutro lado da avenida sem a segurança das faixas de pedestres, entãoinexistentes.

    -SabequenaSuéciaoscarrosparamnosinalvermelho?–Behruzperguntou.

    -Edaí?- Lá os pedestres também têm preferência. Os automóveis freiam

    paradeixá-lospassar... – eleprosseguiu, acrescentando. -Eassimmesmoelestêmomaioríndicedesuicídiodoplaneta!Váentenderacabeçadessagente...

    Behruztinhadessesrompantesinesperados.Semmaisnemmenosvinha com dados e fatos de almanaque e me fazia sentir ignorante edesinformado. Fiquei tentando localizar a Suécia dos suicidas no mapamundieemalgunsminutosnoslivramosdotráfegocarregadopararodarnuma velocidade razoávelmargeando o rio Khoshk. Suas águas estavamturvas, há semanasnão chovia. Sentado ao ladodeBehruz, euprocuravaadivinharoquesepassavanacabeçadele.Derepente,donada,perguntei:

    -Vocêvaitrabalharnalojadoseupaiquandoterminaraescola?Ele olhou para mim com um ar meio superior e disse sem

    pestanejar.-Dejeitonenhum.Querosersoldado!Mordioslábiosdeinveja.Nãopelaescolha,maspelaconvicçãoque

    as palavras dele carregavam. Porque eu não fazia amínima idéia do que

  • estudar,oqueaprenderequal tipodevida levar.Paramim,o futuroeraumaenormeincógnitae,porisso,admiravaoamigosempredecididocomoumadultoemminiatura.

    Fiquei pensando em como Behruz era sortudo e, quando dei pormim, tínhamos chegado.Diantedenósos ciprestes riscavamo chão comsuassombraslongilíneas.Delongejádavaparasentiroperfumedasrosasaindaemflornaquelefinaldeverão.

    Passamos pela entrada do Jardim Botânico para contornar opavilhãoprincipal,umpaláciodoséculoXIX.Jáoviraumsemnúmerosdevezes, mas de novo me surpreendi com a beleza dos mosaicosmulticoloridos. Eles brilhavam sob o sol da tarde, lançando reflexosdançantesnasuperfíciedoespelhod’águaaolongodafachada.Nosfundosdo jardim, onde começava o roseiral, distingui um grupo demeninos daescolaagachadosemtornodealgumacoisaqueexaminavamcomatenção.

    Aprincípio,acheiquefosseoutraboladefutebolejámeperguntavacomoiríamos jogarali, foradocampo,masquandonosaproximarmos,viumtabuleirodexadrezeummontedenotasempilhadas.Tomeiumsustoao ver tantos tomans, mas meu amigo foi avisando que tinha feito umaaposta.

    -Pustodasasminhaseconomiasemvocê,nãovámedecepcionar!Soube então do torneio que começava hoje e ia até Noruz, o Ano

    Novo. Em lugar de futebol, toda quarta-feira nos reuniríamospara testarnossashabilidades.No final, o vencedor ficava comumaporcentagemdoarrecadadoapósopagamentodasapostas.

    Encareimeusoponentes,trêsgarotosmaisvelhosdoqueeu.Apesardo jeito de poucos amigos, não senti medo algum. Desde pequenoaprenderaxadrez,inventadonaPérsiaetrasmitidoaosárabescomotodoorestante da nossa cultura. Quando alguém fala “xeque mate” está, naverdade,dizendo“Xámat”–oreiestámorto.

    Agachei com tranqüilidade para arrumar as peças brancas, as

  • minhaspreferidas,queBehruzescolheraantesdedisputarmoso torneio.Eusabiadaexistênciadessesjogosclandestinos,queserepetiamtodoano,maseraaprimeiravezqueparticipavadeum.Oesportenãoerailegal,sóasapostasemdinheiro.Porisso,apartirdaqueledianosencontraríamoscadavezemumlocaldiferente.

    - Se formos pegos pela Savak, estamos perdidos! – comentei,arrepiadosódepensarnaterrívelpolíciapolíticadoXá.

    -Deixadebesteira!–meuamigoexclamou.–Eles têmmaisoquefazer.Estãoocupadoscaçandocomunistasesubversivos!

    Cocei a cabeça, sem entender direito, mas me calei. Não ia dar obraçoatorcer,perguntandoosignificadodaquelaspalavras.Behruzsabiamais do que qualquer garoto na nossa idade. Acostumara-se a darexplicações detalhadas sobre os mais variados assuntos e, às vezes, eufingiatercompreendidosóparanãomesentirdiminuído.Guardeiaquelestermos na memória para pesquisar quando voltasse para casa. Nãoimaginavaqueumasimplesfrasedetonariaminhafuturapolitização.

    Aquele jogo de xadrez custou caro. Sem conseguirme concentrar,levei o primeiro de uma série de xeques-mates da tarde. Mais medesesperava,menoseracapazderaciocinar.Quandonosdemospelacoisa,jápassavadasseishoras.Marcamosarodadaseguinteenosseparamos.

    - O que está acontecendo? Você perdeu a mão? – meu amigo mecobrou assim que nos afastamos do grupo. Embora chateado, ele teve aconsideraçãodenãomehumilharnafrentedosoutros.

    Eu não sabia como responder. A última coisa que desejava eradecepcioná-lo.

    -Dapróximavezrecuperooterrenoperdido,prometo.–e,comoaselarminhaintenção,batiamãonopeito.-Agoratemosquecorrer,AghoJunvaimematarporchegartarde.–eudisseparamudardeconversapois,nofundo,sabiaqueeleseriaincapazdemebater.Nomáximo,umcastigoleve.Eueraintocávelparameupai,quemeviacomoummilagre,nascido

  • quando já tinha perdido as esperanças de ter um filho homem parasubstituiroquemorreraantesdahora.

    Paraagravarasituação,oônibusamareloebrancoestavalotadoetivemos que cobrir a pé o longo percurso do parque até nossas casas.Apertamos o passo e por quase uma hora e meia permanecemos emsilêncio.Nomeucérebrooslancesdotabuleirodisputavamespaçocomonovovocabuláriopolíticoquepassarapertodemimderaspão.Fragmentosdeconversasditasameiavozporalgunsdosprofessoresnaescolasobreascrueldades dos agentes da Savak adquiriam contornos mais nítidos. Iaremendando os rombos da minha ignorância na medida em que,imperceptivelmente,davainícioaomeuprocessodeconscientização.

    IIIPorsortesóminhairmãmaisvelhaestavaemcasaquandocheguei,

    exausto, quase às sete da noite. Todos tinham ido visitar uma tia recém-operada.Nargesabriuaportaentrecontrariadaepreocupada.Sempreforacomoumasegundamãeparamim,apesardassuasidéiaspeculiaressobrefamília. Cursava o penúltimo ano da faculdade de medicina e pretendiatrabalhar, além de casar e ter filhos. Estava comprometida com umcirurgião recém-formado, na verdade um primo distante que foraapresentadoporumatia,deacordocomastradiçõesiranianas.Elesfaziamplanos,masnãopoderiamadivinharqueseriameternamenteadiadospelodesenrolardacriseprestesadesabarsobrenossascabeças.

    ApesardeAghoJunnãoconcordarplenamentecomaqueletipodeprojeto,umtantomodernoparaogostodele,elenãoseopunha.Preferiavê-laaplicadanosestudosdoquecomoafilhadomeio,comamentecheiadas bobagens que lia nas revistas e via na televisão. Farzane tentara acarreiradequímica,maslogosedesinteressou.Agorapassavaosdiasemcasasemfazernada,anãoserquandoiaajudarAghoJunnalojadetapetes

  • etecidos.Comoestávamossós,pergunteidesupetão.-Oquesignificacomunistasubversivo?Narges me olhou desconfiada, mas num instante se abriu. Muito

    negros, os olhos dela soltaram um brilho estranho que eu jamais tinhanotado.

    -Quemandapondoessascoisasnasuacabeça,Roshy?–elasorriu,usandooapelidocarinhosoqueinventaraparamim.

    Deideombros.Poucoimportava.- Aliás, por onde andou até agora? – espertamente ela mudou de

    assunto, tentando me demover de questões grandes demais para minhapoucaidade.Maseuinsiti.

    -Nãosoucriança,Narges...–Nãovoumorrersevocêmeexplicaroqueécomunistasubversivo.

    Ela soltou um suspiro fundo como fazia quando via que algumacoisa não tinha jeito. Estava resignada. Sempre que a gente discutia, eulevavaamelhor.NargesmemimavamaisdoqueminhamãeeAgho Jun.Compaciência,mecontousobrealutaquevinhasendotravadaemsilênciocontraoregimedoXá,queperseguiaquemaeleseopusesse.Comentava-se que a corrupção corria solta, acobertada pela Savak. Odescontentamento geral crescia e todos começavam a exigir a volta doaiatoláKhomeini,expulsodopaísem1964.Ascríticasdele,queolevaramaoexílionaTurquiaedepoisemNajaf,cidadesantaxiitaaosuldeBagdá,estavam se convertendo em palavras de ordem. Seus discursos eramreproduzidosedistribuídosclandestinamentenauniversidadeeforadela.Nargeslera-ováriasvezes.Asituaçãoiapegarfogoeelaapostavaquetudomudariaparamelhor.

    -Vocênãotemmedo?–foiaúnicaperguntaquemeocorreu.Elaiaresponderquandoacampainhasooucomachegadadosmeus

    pais. Aproveitei e corri para o quarto, não queria encará-los e ter que

  • inventar uma mentira. Dormitando na cama, as imagens do palácio deBâgh-eErammisturavam-se a cenas de filmes deHollywoodque vira nocinema. Os mocinhos do lado do Aiatolá enfrentavam os bandidos, quetraziamnopeitoasiniciaisdoserviçosecretodoXá.Nomeiodotumulto,surgia minha irmã mais velha com uma pilha de panfletos nos braços,berrando“MargBarXá”,ou“MorteaoXá”.Noinstanteseguinteospapéisvoavam para o alto e depois caíam como flocos de neve gigantescos noespelho d’água do parque. Boiavam por uma fração de segundo atéafundaremjuntocomela.

    Acordei com uma batida na porta do quarto. Como não tinhajantado, Narges trazia nân-e sangak, um pão espesso quentinho,acompanhadodechápreto.Agradeciepelaprimeiravezpenseinaminhairmãcomoumserindependente,compensamentosesonhospróprios.Elaarriscava-se por seus ideais, enquanto eu vivia despreocupado entre aescolaeostorneiosproibidosdexadrez.

    Assimmesmo, não desisti deles, pelo contrário. E como precisavarecuperaroprejuízodojogoanterior,decidiprocurarumartesãoquefaziaos mais delicados objetos em marchetaria de Shiraz. O ateliê dele, àsmargensdorioKhoshk,estavarepletodemadeiracortadanasflorestasdeMâzanderân. Elas tinham cores e cheiros diferentes, pois era precisodiversas tonalidades para os khatam que fabricava usando tambémmarfim, osso emetal. A dele, era umaprofissão que passava de pai parafilho,daspoucasqueaindasobreviviamnumacidadegrandecomoanossa.Sua fama espalhava-se pelo Irã inteiro. Diziam que tinha entre seusprincipais clientes a imperatriz Farah Diba e o próprio Xá que já vierapessoalmente fazer encomendas. Só que eu não estava interessado nosartefatos que ele criava, por mais bonitos que fossem. O que realmenteprocuravaeramconselhossobrexadrez.Haviaumalendadequeninguémnopaísconheciaaquelejogomelhordoqueele.Agoraeupagariaparaver.Aliás,fariaqualquernegócioparanãomancharminhareputaçãodiantedo

  • meumelhoramigo.Entreisembatereatravesseiapesadaportaentalhadaatrásdeum

    jardimmuitomalcuidado,parecendoummatagal.Escuteio latidodeumcachorro,maslogoviqueestavaacorrentado,sempodermealcançar.

    -Quemestáaí?Antes deme dar tempo de responder, ele continuou, em um tom

    ligeiramenteameaçador.-Senãomarcouhora,nemadianta,quenãorecebo.Eunãotinhachegadoatéaliàtoa.Nãodesistiriatãofácil.-Porfavor,soufilhodeHassan.Precisofalarcomosenhor.-QueHassan?TemmilharesdelesemShiraz...-OdoBazarRegente,dalojadetapetesetecidos... -griteidevolta

    cheiodeesperança.Silêncio.Atéocão,misturadepastoralemãocomlobodeverdade

    como viria saber mais tarde, emudeceu. Uma brisa leve soprava asfolhagens.

    -VocêserefereaHajHassan?–eleperguntou.Sóbalanceiacabeça,sentindo-mehonradoporelesereferiraomeu

    pai daquele jeito.Haj era usado para os muçulmanos que estiveram emMeca, como Agho Jun. Ele fizera a peregrinação dez anos atrás, mas euaindameemocionavaaolembrardaalegriadequandofomosbuscá-lonoaeroporto na sua volta. Eram dezenas e dezenas de parentes orgulhososquelotaramumônibusfretadopararecebê-loemfesta.

    Oartesãonãopodiamever,porissotornouaperguntar.-ÉfilhodeHajHassanMajidi?Com toda a força dos pulmões berrei que sim. Aguardeimais um

    poucoeescuteiachavegirarnafechadura.Pelafrestaviumhomemmagrodemeia idadee túnicabegedescendoatéospés.Mandou-meentrar.Elesentou-se atrás de uma mesa forrada de papéis e amostras de madeira.Noteiquemancavadeumapernaeusavaumabengala.Examinou-mede

  • cimaabaixocomodeviafazercomamatéria-primadassuasobras.Aofinaldealgumtempoperguntou.

    - Quer comprar um presente para alguém? Saiba que só aceitopagamentoadiantadoedemorodoismesesparaentregar.

    E,semqueeupudesseresponder,prosseguiu:-MasemsetratandodofilhodeHassan,quemsabefaçaumpreço

    especial...Embora a temperatura ambiente estivesse acimados 20 graus, eu

    tremiadeleve,mascrieicoragem.-Nãoéisso.Precisodeoutracoisa.- Ah, é? – e soltou uma gargalhada tão estridente que pensei que

    seus ossinhos frágeis fossem se espatifar de tanto chacoalhar. Quasemearrependidetervindo,minhavontadeerafugircorrendodali.

    - E o que seria, exatamente, o seu desejo, haji? – ele caçoou mechamandode pequenoHaj, filho daquele que fora aMeca. Eu não estavaachandoamínimagraça,masaprumeiopeitoedissedeenfiada.

    - Quero aulas de xadrez. Preciso me aperfeiçoar para vencer umtorneio.

    Silêncio.O ar pesava como antes de um terremoto, daqueles que arrasam

    uma cidade inteira. Fiz força para me controlar diante daquela figurasinistra.Parameuespanto,emvezderirdemim,eleapenasperguntou:

    -Eoqueeuganhoemtroca?Pego de surpresa, franzi as sobrancelhas. Realmente, na ânsia de

    resolver meu problema, nem tinha pensado naquilo. Bãbak – este era onomedele–olhouparaasprópriasmãosepôs-seatirarserragemeacolaacumuladadebaixodasunhas.Permaneceumudoporumtempomaiordoqueeuconseguiasuportar.Depoisfalou.

    -HajHassansabequevocêestáaqui?Era a pergunta que temia, mas não podia mentir. Cabisbaixo,

  • sussurrei qualquer coisa que ele fingiu entender. Agho Jun não tinha amenor idéiadeque eu estava ali. Aliás, se ele imaginasseque jogavapordinheiro,seriacapazdemecolocardecastigo.Bãbaknãodemonstrouestarpreocupadocomisso.Pelocontrário.Daliainstantesfezumapropostaqueeujamaisesperaria.

    -Eu treinovocê.– fezumabrevepausa.–Emretribuição,queroasualealdade.

    -Comoassim,minhalealdade?Bãbak riu de novo. Agora estava mais relaxado, quase de bom

    humor.-Nãoprecisafazeressacara.Nãoestoupedindoasuaalma!Abriuagavetadamesaeretirouumcadernoespiraltodoanotado.

    Consultou-oeemseguidamedisse.-Tenhoassextas-feiraslivres.Vocêpodeviràtarde.Paramimeracomplicado, justonessesdiasAghoJunmearrastava

    paraamesquita.Mascomorecusarumaoportunidadedaquelas?Erapegarou largar. Preferia aborrecer meu pai do que tornar a decepcionar meuamigoBehruz.

    - Combinado. Logo depois da sesta estarei aqui. – respondi, aindasemsabercomodriblarAghoJun.

    Ele levantou-secomdificuldade,abriuaportaparamime,àsaída,tornouadizer:

    -Nãoseesqueça...lealdade.–Coçouabarbicharalaeacrescentou.–Odiaviráemqueserfornecedordesuarealeza,oXá,contarámuitopouco.Muitopoucomesmo...

    Fechou a porta, deixando-me só como cachorro que rosnava semme alcançar. Saltitei contente em direção à minha casa, tentando varrerparaumaparteocultadamenteasarmadilhasquehaviacriadoparamimmesmo.

    Nunca levei nada tão a sério como a tarefa de vencer o torneio.

  • Mergulhei nos livros que Bãbak me emprestou e junto com ele estudeiestratégiasdeataqueetáticasdedefesa. “Aspeçasemmovimentosãoosexércitos se enfrentando em uma guerra sangrenta”. Ele dissera. “Oguerreirosábiotemclaroovínculoentreasregrasealiberdadedeescolha.É preciso conhecer para assumir riscos. Você tem que fazer as opçõescertas.Vocêtemquesesuperar”.

    Sobaorientaçãodele,preparei-mecomafincoesaíconfianteparaapartida seguinte. A cada sexta-feira, inventava uma desculpa esfarrapadaparaAghoJun.

    - Estou com dor de estômago – disse uma vez. – Vou à MesquitaVakil como pai deBehruz. – inventei de outra feita. Paraminha sorte, afamília dele raramente se encontrava com a minha e assim nuncadescobriramaverdade.

    O local das partidas mudava a cada semana. Numa das quartas-feirasescolhemosoParqueMelli,próximoaoMausoléudeHâfez,umdosnossosgrandespoetas,nascidoalimesmoemShiraz,noséculoXIV.Agoraestava cheio da segurança proporcionada pelos treinos e enfrentei osadversários com calma e frieza, em lances cuidadosamente calculados.Fixei-menasfigurasorganizadasemoposiçãosimétrica,dezesseisdecadalado. Esperar e agir, matar ou morrer. Os sessenta e quatro quadradosformavam o campo de batalha, eu comandava os soldados da linha defrenteeacavalaria,meustanquesdecombate.

    Comartilhariapesadasomadaaoarsenaldeastúcia,vencicadaumadas partidas e recuperei o prejuízo de Behruz. Saímos de lá empatados.ComoumaformadeagradeceraDeus,caminheipelaavenidaGolestãnatéo túmulo do mestre da lírica do ghazal, a antiga forma de verso persa.Contornei o pequenopavilhão revestidodepastilhas amarelas, brancas emarrom claro e, através de suas colunatas, recitei os refrões gravadossobreomármoredopoeta.Algunsdeleseusabiadecorgraçasàsaulasnaescola,quandotínhamosdisputasentreosalunosdocolégio.

  • “Shirazéninhodelábiosderubiemanancialdebeleza;

    Souumjoalheirosemdinheiroevivoansioso.

    Éumacidadeplenadeolharesconvidativoseemtodoladohábeleza;

    Maseunadatenho,oudetodasseriacomprador”.

    Meuamigoriadaminhaencenação,masdavaparanotaraalegriae

    oorgulhoquesentiademim.Aliás,literaturaeraumadasúnicascoisasemqueeuiamelhordoqueBehruz,talvezemrazãodoslivrosquemantinhaemcasa.Antesdeirembora,gasteinacasadechánofundodaquelejardimmeusúltimostrocadoscomumfaludê,osorvetebrancoregadoaáguaderosas.

    Semodinheirodapassagem,tivemosqueregressardenovoapé,sóque não era tão tarde comona abertura do torneio. Andamos pelas ruaslotadas, rindo da nossa pequena aventura semanal. Não desconfiávamosque momentos como aquele se tornariam cada vez mais raros, atédesapareceremporcompleto.

    Assim passaram-se os meses, talvez os mais radiantes da minhaexistência.Acadaquarta-feirarefazíamosumarotadiferenteparadisputaraspartidasque,emgeral,euvencia.Ooutonochegara,tingindodeamareloouro as folhas que iam se espalhando pelo chão dos parques. As ruaspareciamcobertasportapetescujosdesenhosmudavamaosoprodovento.Lembroquenumadaquelastardesjáfriorentas,quandocruzamosumadaspontessobreoKhoshk,paramosnaesquinaparadividirumdugh,refrescogasosodeleitefermentadopormeiodeiogurtenatural,servidocomfolhassecas de hortelã triturado. Ali perto havia ummodesto templo zoroastraquesempreatraíaminhacuriosidade.Aportademadeiraestavaabertae,ao contrário das nossas mesquitas, para entrar não era preciso tirar ossapatos, só lavar as mãos. Além disso, mulheres rezavam ao lado doshomens,algoimpensávelemumamesquista.

  • De repente reparei num homem que saía do local. Estava vestidocomumatúnicaclaracomprida.FixeiavistaeoreconhecicomoopaideumcolegadaescolachamadoÕrash.Meuamigotambémnotou,masdeudeombroscomoseaquilonãofossenovidade.Porunssegundosmepergunteicomoumnãomuçulmanoimpuropodiaestudarjuntoconosco,masdepoislembrei que os governantes sempre os toleraram como aos judeus e aoscristãos, embora os tratassem como inferiores. “Os que renegam a Fé,dentreosseguidoresdoLivro,eosidólatrasnãopropensosarenunciaraseucultos,atéquelheschegasseaevidenteprova”,recordei.

    Zoroastroreformaracrençasarcaicasporvoltade1000a700antesdeCristo,emépocasremotasanterioresaoImpériopersa.MaisconhecidocomoZaratustranoOcidente, introduziuomaniqueísmoéticoqueresultana luta entre o Bem e o Mal, influenciando a tradição judaico-cristã. Euhaviaaprendidoqueseusseguidoresrecolheramoscânticos,ouosgâthâ,para registrá-los no Avesta, o livro santo daquela doutrina pré-islâmica.Primeira religião a acreditar em um só Deus, chamado de AhuraMazda,pregaumateologiacomplexa,masbaseadanosprincípiossimplesdebonspensamentos, bom discurso e boas ações. Sábios e estudiosos, oszoroastrasoumazdaístasforampioneirosnaspesquisassobreastronomiae condenavam os sacrifícios de animais, prática mantida no sincretismoreligiosooperadomaistardepelosreisaquemênidas.

    -Achavaqueosmazdeístas se concentravamna regiãodeYazd. –observouBehruz.

    -Porquê?–fuilogomeinteressando.- Porque o fogo sagrado foi transferido para lá em 1940. – ele

    respondeu.-Quefogo?Meuamigorespiroufundo.Estavacansadodedarexplicaçõessobre

    ahistóriadonossopaís.Mesmoassimnão se recusouemesclarecerquehavia uma chama ardendo há mais de 1.500 anos, protegida no templo

  • construído em Yazd especialmente para guardá-la. Aí veio o dado maisintrigante.

    -Sabequeoszoroastrascolocamseusmortosnoaltodastorresdosilêncio,paraseremdevoradopelosabutres?

    Incrédulo,sóbalanceiacabeça.Comoformavamumaparcelaínfimada população, menos de 0,07%, os mazdaístas eram, para mim, ilustresdesconhecidos. Mas Behruz lera em algum lugar que os cadáveres nãopodem ser cremados e muito menos enterrados. Não devem entrar emcontatodiretocomofogonemcomaterra,elementossagradosparaeles.Deixavam-nosentãoacéuabertonasdakhmadeformatocircular,erguidassobre colinas fora das cidades. Os corpos acabavam devorados pelosabutres.

    Fiqueiimaginandoaquelacenanotopodastorresdepedra.Eradearrepiar.Maslogomeanimei.PrincipalmenteporqueestávamoschegandopertodeNoruz,minhadatapreferida,queporumadessasironiasdavida,eraumaherançadosmazdaístas.FaltavaapenasumasemanaparaoAnoNovo, a principal celebração do nosso calendário, uma celebração tãoantiga e fincada nas nossas raúzes milenares, que o islamismo nãoconseguiuerradicar.Seriamtrezediasdefestaemfamília,comvisitasquesesucediamdiaenoite.Começávamossemprecomumaoraçãoporsaúde,felicidade e prosperidade: "Oh reformador de corações ementes,Diretordodiaedanoiteetransformadordecondições,mude-nosparamelhordeacordocomVossodesejo".ApósasrezasAghoJun,agoraomembromaisvelhodafamília,apresentavaaosmaisnovosoEidi,umanotadedinheironunca usada que fora previamente colocada entre as páginas do LivroSagrado. Minha excitação crescia ainda mais porque, além de tudo, euganharaamaioriaesmagadoradaspartidasdexadrez, trazendoumbomlucroparamimeBehruz.

    -Oquevocêvaicomprarcomodinheiro?–pergunteiaele,quesecaloucomosetivesseumdesejoinconfessável.Pelaprimeiravezsentiuma

  • coisa estranha, feito uma pedra dentro do sapato. Nomomento, não deiimportânciaaofato,estavafelizdemaisparanutrirpensamentoslúgrubes.Fui direto ao Bazar do Regente encontrar Agho Jun e minha irmã parafazermosascompraseabasteceracozinha.

    Despedi-medomeuamigoemeembrenheipelolabirintodecheirosedecoresqueconheciatãobemcomominhaprópriacasa.Logoàentrada,algumas barracas ofereciam utensílios domésticos. Lá dentro, sob aabóbadadotetodecoradocomdesenhosgeométricos,eumeperdiaemeencontrava. Em criança, parava enfeitiçado pelos jogos de luz e sombrafiltrados através dos recortes dos lustres dourados. As pastilhas querecobrem algumas das paredes internas ofuscam o brilho das bandejas,candelabros e luminárias de metal. As jóias encrustradas de pedrassemipreciosas, amachetariadelicadaeas roupasmulticoloridasexpostasdecimaabaixosempremefascinaram.Nalojadomeupai,queeleherdoudos nossos avós, tapetes tribais feitos artesanalmente em vilarejosdistantesagoradisputavamespaçocomaqueles fabricadospormáquinasnosateliêsdascidades.MasAghoJunnãoabriumãodostecidosembatik,impressosumaum,quemandavabuscardiretoemIspahan.

    Guardonamemóriaocheirodessasmercadorias,queevocavamemmimimagensdetribosnômadesprimitivasatecernossoscélebrestapetespersascomalãresistentedasovelhascriadasnodeserto.Essastradiçõesalimentavam minha imaginação assim como as fabriquetas de fundo dequintal,algumasdasquaismaistardeexpandidasemindústriasprósperas.Para mim, tudo isso vinha temperado com o perfume de menta e rosasmisturadoàsespeciariasvendidasemumsetorespecialdoBazar.

    Aosairmosdelá,carregadosdeembrulhos,jáeranoitefechada.EuestavaexcitadocomoemtodoNoruzpoisalémdospresentes,erafanáticopelasbrincadeirasquefazempartedafesta.Quandonosaproximamosdonosso quarteirão, já pude ver as pequenas fogueiras a iluminar as ruascujas luzes elétricas haviam sido desligadas de propósito. Meu coração

  • bateumaisforteecorriàfrentedeAghoJunparasaltarsobreelasnaquelaquarta-feira anterior a Noruz e assim atrair sorte para o ano a começar.Não supunha o quanto necessitaria dela para os difíceis tempos que seseguiriam.

    IVAqueleEydeNoruz,oufestadeAnoNovo,ficariagravadonaminha

    memória como o ponto final de uma época. Elemarcaria um corte, umamudançaradicalnapazcotidianaemquefuicriado.Seriaofimdaminhainocência. Pressentindo que nada mais seria como antes, aproveitei asfestas como um peregrino despedindo-se do aconchego familiar àsvésperasdeumaviagemsemvolta.

    EstávamosemplenoFarvadin,nonossocalendáriosolar,oumarçona folhinhagregoriana.Nãovia ahorade saborearospratospreparadosporminhamãecomaajudadeNargesededuastias.Cadaqualmoravaemumlugardiferentee,devezemquando,passavamNoruzconosco.Shahin,irmã de Agho Jun, casara-se com Amir, engenheiro de uma grandecompanhiadogovernoeforamoraremTeerã.Viajamosparalánoinvernopara conhecer o Shâhyâde, imponente arco do triunfo inaugurado paracomemoraro2500ºaniversáriodafundaçãodoImpériopersa.Quandoovinotrajetoparaoaeroporto,fiqueidequeixocaído.Eupareciaummosquitodiantedaquelemonumentoempedrabrancade45metrosdealtura,sobrequatro pés em forma de cone que só pareceu menor do que o MonteDamavandcomseupicocobertodeneveseternas.Deresto,acheiacapitaldopaísbarulhentaecaótica.GosteidosmuseusquevisiteicomAghoJunemeutio,enquantoasmulheresficavamemcasacuidandodacomidaedosmeusprimos,doisbebêsentreumequatroanos.Oapartamentodeleseraespaçosoedecoradocomluxo.Tinhamatéempregada,algoraroentreasfamíliasdeclassemédiacomoaminha.Dizemquemeutioganhavariosde

  • dinheiro nos empreendimentos do Xá, que continuou privilegiando asmultinacionais mesmo depois da nacionalização do petróleo em 1951.Ficarariquíssimo,masAghoJunnãogostavadetocarnoassuntoporcausadacorrupçãoenvolvendoosnegócios.

    Roya,irmãmaisnovadaminhamãe,nasceraemYazdcomoela,deonde mudou-se ainda moça. O marido dava aulas na universidade emIspahan. Recebia salário de professor, uma insignificância segundo ouvidizer,entrecochichosesussurros,poisAghoJunachavafaltadeeducaçãobisbilhotarsobreosparentes.Comseuperfildeintelectual,FarhãdgostavadecriticarogovernoeviviadiscutindocomAmir,quedefendiaoXácomunhasedentes.

    - Noruz é feito para confraternizarmos - Agho Jun intervinha,colocandoumpontofinalnasdiscussões.

    NaqueleFervadinnaminhacasa,noteilágrimasquerendosaltardosolhos de Roya porque, como fiquei sabendomais tarde, enfrentava umacrise conjugal. Ganhara peso depois do parto e o marido fazia enormesucesso com as alunas na faculdade. Para distraí-la, sugeri que no anoseguintefôssemostodosparaacasadelacomemorarNoruz.

    - Morro de vontade de conhecer Ispahan, Khale Jan – eu disse,acentuandoojeitocarinhosodedizeronomedela.

    De fato, eu tinha a maior curiosidade em visitar a cidade famosapelassuasmesquitasepontesdearcossobreorioZayandeh-Rood.

    -OPalácioRealétãoimpressionantequantodizem?Roya passou a mão na minha cabeça e esboçou um arremedo de

    sorriso.-Kurosh,comovocêcresceu!–elafalou,parecendoquesónaquele

    instantetinhasedadocontadaminhapresença.-Émesmo–emendouGissu,irmãdeAghoJun.-Játematéunsfios

    debigode–ecomosdedoscheiosdeanéisapontouparaospêlosqueseinsinuavam acima do meu lábio. Recuei entre encabulado e orgulhoso.

  • Estava no limiar da adolescência, mas ainda não tinha decidido sair dainfância. Era mais confortável continuar como o caçula mimado do queatravessaroportalemdireçãoaomundoadulto,complicadodemaisparaamim.

    -Páracomisso,AmmeJan-pedi,todoembaraçado.-Comlicença–eminhamãefoientrandoparaforrarochãocoma

    toalha floridasobreaqualporiamseteobjetosoupratos iniciadoscomosomde“s”paratrazerriquezaealegria.Emcimadeladepositarampotesdesib,sabzi,somagh,siresamanu,respectivamentemaçã,brotosdetrigo,temperousadonoKebab,alhoeumtipodesobremesafeitacomnozes.OLivroSagrado,umespelho,umpequenoaquáriocompeixinhosdourados,ovos cozidos coloridos, além de pão e culche va masghati, os docesconfeitados,complementavamoarranjo.

    Asvisitasentravamesaíam.Conversavamalto, trocavamvotosdesaúde e deixavam pães, doces ou salgados. O mulá que me instruía nospreceitos do Islã trouxemeio carneiro queminhamãemergulhou numasalmoura de vinagre com folhas de hortelãmaceradas para assar no diaseguinte.Fiqueiempanturradodeãgil,amisturadesementestorradasdeamendoim,pistacheemelanciaqueenchiamacasadeumaromaespecial.ElepermaneceriaparasempreguardadonofundodamemóriaolfativadequemjáestevenoIrãduranteNoruz.Devoterganhounsbonsquilos,malentravanasroupasnovasqueempilhei juntocomosoutrospresentesnacamaparamostrarà turmaesobretudoaBehruzque, inexplicavelmente,nãoapareceraparanosver.Nargestentoumeconsolarcomosesoubessemaissobreoparadeirodeledoquequalquerumdenós.

    -Nãosepreocupe,Kurosh,seuamigoviráaopiquenique.Para minha alegria, no Sizde bedar, o décimo terceiro dia após

    Noruz,quandotodossaemdecasaparasedivertiraoar livre,evitandoonúmero treze e seus maus fluídos, Behruz estava de novo ao meu lado.Levanteicedo,meservidosamovarprateadoquefumegavanumamesinha

  • decantoadoçadocomtrêscubosdeaçúcaresepareiopresentecompradoparameuamigo.Destavez,emlugardeirmosatéumparquenosarredoresda cidade, Agho Jun resolveu fazer uma pequena viagem ao sítioarqueológicodePersépolisjuntocomtodaaparentela.Convidoutambémafamília de Behruz para me satisfazer. Como só Amir tinha automóvel,fretamosduascaminhonetes.AghoJunnuncamaisdirigiradesdeaperdadomeuirmãozinho.Remoía-sedeculpaporqueacriançatinhamorridoemumdesastrecomeleaovolante.Traumatizado,proibiuminhamãeeirmãsde guiar, de modo que sempre andamos de ônibus, táxi ou um veículoalugado com motorista. Hoje, os adultos iriam acomodados na cabine,enquantonósocupávamosapartetraseira,comendoapoeiradasestradasdeterra.

    Aodescerdoveículo, sessentaquilômetrosdepois, leveiumsusto.Descobri que meus bolsos estavam vazios. Não trouxera os brotos quesemeara para com eles, em um gesto simbólico, ferilizarmeu futuro. Napressaesqueceradepegarassabzi,osgrãosgerminadosparajogarlongeegarantirarealizaçãodosprojetosnospróximosdozemeses.Minhaspernasbambearam e senti uma leve tontura. Seria aquilo um presságio demauagouro?

    Como coraçãoapertado, caminhei até amuralhade15metrosdealturaqueescondiaasruínasmilenares.Tentavadisfarçarodesapontoàsportas da cidadela erguida por Dario para receber os que prestavamtributoaoreidosreisnosfestejosdeNoruz.Porummomentocrieiasasevoeirumoaopassado,maisprecisamentea2500anosatrás,quandoteveinícioaconstruçãodacapitalreligiosa,a500quilômetrosdeSusa,ocentroadministrativodadinastiaaquemênida.Utilizandopedrastransportadasdelocais distantes, os trabalhos duraram sessenta anos e nunca foramconcluídos. Do palácio de Se-Darvaze, de 150 mil metros quadrados,restavam apenas os muros com os relevos dos 28 povos trazendo asoferendas típicas de cada região. As figuras conservam os traços que as

  • diferenciavamentresi,incluindoatépigmeusnofinaldafila,ademonstraravastidãodo Impériopersa,queseespalhavadoEgitoà Índia.Decoradoemouro,pedrasemetaispreciosos,eracercadoporumavegetaçãoquaseexuberante, diferente da aridez semi-desértica de hoje. Os livros contamque,aoentraraliem330AC,Alexandre,oGrande,maravilhadodiantedetanto esplendor, só pilhou o tesouro real, deixando intactos os edifícios,mantidossobaguardadoexércitomacedônio.

    Os devaneios provocados por aquela viagem no tempo foramcortados pela voz estridente de Omid, nosso priminho, filho de Shahin eAmir.

    -Mepõe no chão,babaí – ele pediu aomeupai, que o levava nascostasdecavalinho.AcheimuitoesquisitochamaremAghoJundevovô.Eletinha apenas uns poucos fios de cabelo branco e nem parecia tão velhoassim,pelomenosparamim.Foiquandomesentidenovoestranhocomoseestivessemudandodepele.Examineiasmãosqueleveiaorostoparamecertificar de que continuava o mesmo. Por fora, não havia dúvidas, eupermaneciaigual.Ládentro,noâmago,operavam-semudançasradicaisdequeninguémsuspeitava.

    VAo lado de Behruz, fui subindo uma das rampas da escada

    monumentalparachegaràPortadasNações.ConstruídaporXerxes,formauma sala quadrada de quatro colunas, onde paramos fascinados pelosgigantescostouroscomcabeçahumanaqueflanqueiamaentrada.

    - Venha! – e meu amigo me puxou em direção às escadarias quedavam acesso ao terraço da apadana. De novo fizemos uma pausa paraadmiraraprocissãodasnaçõesvassalasapagar tributoaorei.Osbaixosrelevoscomprovavam,maisdoquequalquertexto,amultiplicidadeétnicaeculturaldospovosqueformavamnossopoderosoImpério.

  • Deslumbrado, Behruz saiu correndo à minha frente. Como eu jáestiveranasruínaseconheciaseuspontosmaisatraentes,fuificandoparatrásatéperdê-lodevista.Minhafamíliainteirapassoudiantecompressa.Fuioúltimoachegaràsaladascemcolunas,ondeficavaotrono.

    -NuncapenseiquePersépolis fossebonitacomonos livros!–umavoz feminina chamou minha atenção. Virei o rosto e vi Faty, irmã maisvelhadeBehruz,queconversavacomHossein,nossocolegadeclasse.

    -EuprefiroPasárgada–elecomentoutodocheiodesi.–Nãoestátãobempreservadaquantoaqui,sóqueémaisantiga.

    Notei nos olhos de Faty um brilho que despertou alguma coisadentrodemim.Écomoseaolhassedeverdadepelaprimeiravez.Comumadasmãos,elaprotegiaorostodosolepudeperceberadelicadezadosseusdedosesguioscomoosdeumapianista.

    Era evidente que Hossein tentava impressioná-la com seusconhecimentos históricos. Senti uma pontada de raiva cuja origem nãoseria capaz de definir. Só sabia da urgência em me colocar em pé deigualdade.Seconseguisserebaixá-lo,tantomelhor.

    -Pasárgadaerausadaparaascerimôniasdecoroaçãodosreis...–ecalei-me,semsabercomoprosseguir,muitoemborativesseestudadoumaporçãodecoisassobreacidadeladeCiro.

    Encabulado,fixeiavistanoscabelosdeFaty,quedançavamaosabordovento.Elepareciasoprardasruínasdiretoaomeucoração,queagoralatejava feitouma feridaaberta.Comonunca tinhanotadoacordosseuscachosquebrilhavamnaqueleiníciodetarde?QuantasvezescruzaracomelaentrandoousaindodacasadeBehruzemalacumprimentara?Seráqueestavacegoesóagoracomeçavaaenxergar?

    Perguntas sem resposta enchiamminha cabeça. Senti uma dornoestômago,enquantoaprofusãodecavalheirosassírios,babilônios,etíopes,capadócios e hindus com seus elefantes, camelos, touros, leões e cavalossaltavamdosrelevosparagiraremtornodemimcomosefossemdecarne

  • eosso.Porunsinstantesacheiquetivesseenlouquecido.-Porquenãodescemos?Temummontedecomidaesperandopor

    nós!–eraavozdeBehruzmesalvandodasminhasalucinaçõesetrazendo-medevoltaparaarealidadedepedraaoredor.

    Aliviado, despenquei escadas abaixo como se fugisse. Entrei nacaminhoneteeocupeimeulugar.NãodemoroueBehruzsentou-seaomeuladoeretirouumembrulhodobolsodacalça.

    -ÉseupresentedeNoruz.–elefalou.Aliviadoporteremquemeconcentrar,rasgueiopapeleabriacaixa

    paraacharumrelógiocomoqualvinhasonhandodesdequemeentendiaporgente.

    -Vocêédoido!Devetercustadoumafortuna!Elesoltouumdosseusrisoscristalinos.-Vocême ajudou a ganharodinheiropara comprá-lo.Gastei nele

    umapartedostomansdaapostadotorneiodexadrez.Sóentãorelembreiotorneio,masemvezdeficaralegre,fuitomado

    pelo pavor de ver os pais dele conversando com os meus. Poderiamdescobrirqueeujamaisfreqüentaraamesquitaàssextas-feiras,quandoiater aulas com Bãbak. Estas questões me martirizaram durante o brevepercurso até Naqsh-e Rostam, sete quilômetros ao norte de Persépolis,ondeafinalfaríamosnossopiquenique.

    Para certificar-me de que não havia sido delatado, assim queparamosdiantedasfalésiasdeKuh-eHossein,corriatéAghoJun.

    -Vejaoqueganheidepresente! – e exibiorgulhosoo relógioquemarcavaatéosdiasdasemana.

    Entre surpreso e contrariado, Agho Jun esperou que todosdescessem.VimeuamigocomsuairmãseguidadepertoporHossein,queolhavaparatrás,naminhadireção,demaneiraquasetriunfal.

    -Vocênãopodeficarcomisso–AghoJunfalou.–Écarodemais.- Eu sempre quis um desses! – protestei, com minha entonação

  • especialcultivadaaolongodosanosparasatisfazeremmeuscaprichos.Sóqueagoraminhasorteestavamudando.AghoJunnãoseimpressionou.

    -Devolvaissohoje!Quandovoltarmos,nãoqueroveresterelógio–esaiusemsevirar,apesardosmeusprotestoschorososque,destavez,nãosurtiramomenorefeito.

    Desanimado, fui andando em direção ao grupo que procurava asombradeumaárvoredebaixodaqualestenderatoalha.Diantedemim,asfalésias de Kuh-e Hossein impunham-se como um símbolo daengenhosidade humana. Não satisfeito em erguer Persépolis, Dario Imandaraseussúditosaplainaremumadasfacesdaquelasmontanhas.Nela,escultores gravaram não apenas sua majestosa figura eqüestre como ahistória do reino em escrita cuneiforme. Ali escolheu descansar em paz,assimcomoXerxeseArtaxerxèsI.Oconjuntoeraimpressionante,maseutinha problemas mais concretos, ainda que mesquinhos, para ocupar amente. De que forma devolver o relógio sem que Behruz tomasse meugesto como ofensa? Convencer Agho Jun estava fora de questão, eleacabariasabendodotorneioedasapostas.Tãoconcentradoestavanomeuumbigo,quenemmedeicontadeNarges, logoali, ameencararcomoseadivinhasseminhasinquietações.

    -Algumproblema,Roshy?Instintivamente olhei para os lados para me tranquilizar de que

    ninguémouvirameuapelidodecriança.Hosseinpoderiausaraquiloparazombardemim,algodequeeunãoprecisavanaqueleminuto,sobretudonafrentedeFaty.Porsortetodosestavamentretidosemarrumaroscomesebebesemcimadatoalhaqueteimavaemvoarcomoumtapetemágico.Otempo mudava com o vento do noroeste, anunciando chuva para breve.Tenteiocultarmeurelógiocomumadasmãos,masjáeratarde.

    -PresentedeBehruz?–elaperguntou,pegandonomeupulsoparaexaminá-lodeperto.

    - Agho Junmandou devolver – contei, com aminha vozmanhosa

  • guardadaparataisocasiões.-Éumapena...–elaretrucou.-Vocênãopodefalarcomele?–eudeiàminhafraseumaentonação

    depânicosóparaforçá-laameajudar.Suarespostamedeixousemfala.-Econtarsobreotorneioeasapostasemdinheiro?Devo ter empalidecido, pois Narges passou as mãos nos meus

    cabelosparameacalmar.Sepudesse,teriamepostonocolo.-Nãosepreocupe,euseiguardarsegredo,Roshy.-Como ficousabendo?Quemtecontou?–e sentiumapontadade

    raiva misturada a ciúme. Behruz tinha me traído. Nossa amizade nuncamaisseriaigual.

    Denovo,Nargesnotouminhaangústia.-Nãofiquechateado...Elatentoumealcançar,maseumeafasteicomfirmeza.-Nãosoumaisumbebê!–protestei.-Calma,Roshy...-Eparedemechamarassim!Jávoufazerdezesseisanos,seráque

    nãodáparaperceber?Narges recuou como se tivesse levadoum tapa. Sei o quanto teria

    gostado de continuar me tratando feito criança, mas era inteligente osuficiente para mudar de atitude. Além disso, possuía uma nobrezaincomum,queeunãotiveraocasiãodeapreciar.

    -Desculpe.Eudeveriatercontado...-Contadooquê?–esóentãomedeicontadequeelasabiamuito

    mais sobreBehruzdoqueeu. Senti-meduplamenteexcluído.Tinhammeapunhaladopelascostas.

    Sóqueminhairmãgostavademaisdemimparamedeixarsofrendo.Aúnicamaneiraderemediaroestragoseriarevelartodaaverdade,aindaqueissocolocasseavidadelaemperigo.ENargesnãovacilou.

    -Pode ficar como relógio.Vocêomereceu. –Ela soltouum longo

  • suspiro, desses que vêm lá do fundo, do lugar onde guardamos nossossentimentosmaispuroseexplicou.

    - O dinheiro que você ajudou Behruz a ganhar... – ela parou desúbito,comoseestivessearrependida,maslogoretomouofiodaconversa.-Foiporumacausajusta.AlájáperdoousuasmentirasaAghoJun...

    Agoraeuéqueperdiofôlego.Nargestinhanoçãoexatadecadaumdos meus passos. Por alguns segundos, fiquei zonzo, sem nadacompreender.Daítudofoiseencaixando.BehruztambémestavaengajadonomovimentocontraoXá!Porissosuainsistênciaparaeutomarpartenotorneio, mesmo que isso significasse pecar toda sexta-feira! Queria odinheiro para ajudar a imprimir aqueles panfletos de que Narges falara.Eramumbandodesubversivos,otermonãotinhamaismistérioparamim.

    - Aposto que Farhãd também está metido nisso! – eu disse, mecontrolandoparanãogritar.–PorissoRoyachoramingava,nãotemnadaavercomocasamentodela!

    - Shhh, Kurosh, fale baixo! – Narges pediu, temendo que nosescutassem.

    -Porquenãomecontaramdesdeoinício?–agoraeuestavaàbeiradaslágrimas.–Porqueesconderamdemim?

    Elanãodissenada,mastambémseguravaochoro.Vestiaumacalçajeans com uma camiseta clara de mangas compridas. Tinha os cabelospresos num rabo de cavalo e nenhuma pintura no rosto, diferente deFarzane,sempremaquiada.Eralindaaonatural,semrecursosartificiaisarealçar a beleza que Deus lhe dera. Não é à toa que Rassul, seu futuromaridohojepassandoodia comosparentesdele, contassenosdedososmeses para Narges se formar e afinal se casarem. Minha raiva foiderretendopara ceder lugar aumaemoçãodiferente.Tivepena, inveja eorgulho da minha irmã. Tudo ao mesmo tempo. Senti uma necessidadeimensadeprotegê-la.Numgesto impulsivo,abracei-acomohámuitonãofazia.Pelaprimeiraveznavidaeraeuqueaacolhia.

  • -Estátudobem,Narges,nãotenhamedo.Euestouaqui,aseulado.–completei,conscientedequesoavaumtantomelodramático.

    -Aondevocêsemeteu?–avozdeBehruzveio interrompernossomomentoderevelaçõesmútuas.

    -Ele jáestáaparde tudo–Narges informoucomavoz firme.Daícontouaelesobreorelógio,quememandoupôrnobolso, fingindo tê-lodevolvido.

    Meu amigo parou, olhando incrédulo para nós dois. Seu rostotornou-se pálido e elemordeu o lábio inferior. Daí abriu-se num sorrisolargoemedeuumabraçoapertado.

    -Sejabem-vindoàturmadoscontra.De mãos dadas como os melhores amigos, fomos nos juntar ao

    grupo.Aproximei-medeFatycomoseHosseinnãoestivessepresente.Elenão me intimidava, pois eu tinha acabado de virar adulto. BobamenteachavaqueagorafaziapartedaconspiraçãoparaderrubaroXá.Naminhacabeça, aquilo constituía razão suficiente para me tornar superior aqualquer colega da mesma idade. Pouco me importava que ele fosseimbatívelnohaftsang.Nemligueiquandoretiroudamochilasetespedras,agachou-se, empilhou-as e deu um show da sua habilidade, mais paraimpressionar a irmã de Behruz, do que para se divertir. Tampouco mechateei ao perceber em Faty um interesse que me excluía. O tempo seencarregariademostraraelaquemeraomelhor.

    Oscomesebebeshaviamsido,afinal,dispostosemcimadastoalhasestendidassobreoskilinsqueamaciavamochãoarenoso.Seusperfumesvariados misturavam-se num só, mas eu perdera o apetite. Descobriraoutras realidades das quais nunca suspeitara. A vida adquiria umadimensão diferente, tornando-se mais complexa e dinâmica. As pessoastambém erammuito mais interessantes do que pareciam. Minha irmã eBehruz tinham ideais, Faty possuía encantos a serem desvendados eHosseinconstituíaumapequenaameaça.AtéAmirmudara.Nãoeraapenas

  • omaridoricodeShahin,esimumcúmplicedoregimedeRezaPahlevi.Transbordando de euforia, eu não seria capaz de adivinhar que

    outras surpresas ainda me aguardavam naquela viagem simbólica. Nãopoderia prever o quantominhas certezas seriam abaladas e comominhavidinha medíocre sofreria transformações. Alvoroçado pelo turbilhão denovasinformaçõesqueprocuravaprocessar,varricomosolhosocenáriodiantedemim.Queriaassimilaraquelepanoramamonumentalnatentativade congelar as sensações inusitadas que experimentava. Nunca tinhaolhado para uma garota com o desejo que agora subia pelas minhasentranhasequeimavafeitofogo.Éóbvioquediantedaturmadeamigoseufingia cobiçá-las, mas de fato nunca chegara a sentir atração pelo sexoopostocomoagora.Nãosabiadireitocomolidarcomasnovaspercepções,enfrentandoumaconfusãodiabólica.Estavaadmirandoamimmesmoadespeitodasfabulosastumbasde Dario e Xerxes, quando reparei, do outro lado, uma figura conhecida.Espremiosolhos e fuimeaproximandoatédistinguirÕrash, o colegadeclassecujopaitínhamosvistonumadaquelastardesdetorneio.

    “Claro! Aquela torre alta é a Kaaba de Zaratustra”. - pensei commeus botões observando no horizonte a construção que no passadoabrigavao fogosagradoaquemênida.Prosseguia,portanto, como localdeperegrinaçãoentreosquepraticavamomazdeísmo.

    Fizmençãodevirarascostas,masÕrashmereconheceuesepôsaagitar os braços. Perto de mim, todos estavam entretidos em seempanturrarcomoeradepraxeduranteostrezediasdecomemoraçãodeNoruz. Aquela falta de apetite representava o principal indicador dasminhas mudanças interiores. Behruz, Narges e o restante do grupopareciam esquecidos da revolução. Na hora de comer, todas as idéiasimportantesevaporamfeitochuvadeverão.Sóeupermaneciapreocupadocomtudooquesepassaramomentosantes,ninguémestavainteressadonaminhapessoa.AssimfuimeafastandoemdireçãoaÕrash,sentadocomos

  • paisàsombradoautomóveldeles.-Vocêporaqui!–eledisse,numtomdevozacimadonormal.Cumprimentei-omeiosemjeito,poisjamaisfomospróximos.Eleme

    apresentouaopai e à irmã.Moravamapenasos trêsnão longedaminhacasa,amãemorreranumacolisãodetrensqueporpouconãolevaraÕrash,cujo braço direito fora quase esmagado, demandando dolorosasfisioterapias para recuperar parte dos movimentos. O pai, que nunca secasaradenovo,nãomencionounossoencontro casual àportado temploem uma das quartas-feiras de xadrez. Recusei o carneiro assado àmodapersa,nosfornoscavadosnochãoqueaindaexistemnosvilarejose,omaiseducadamente que consegui, disse que precisava voltar para junto daminhafamília.

    Fuiretornandodevagar,quandoumavozfemininaquenãoeranemdasminhas irmãs nem de Faty, com quem eu estava sonhando de olhosabertos,metiroudotorpor.

    -Vocêvemsempreaqui?SacudiacabeçaparaairmãdeÕrash.-Agentesenteapresençadosespíritosdopassado...–elafalou,de

    chofre. Fiquei surpreso, pois aprendera em casa que não se tocava emassuntos desse tipo com estranhos. Sobretudo se professassem outrareligiãocomoeles. Procureiesconderodesconforto,mastampoucopodiamecalardiante de uma simples garota. Ia parecer criança, algo que eudefinitivamentedeixaradeser.Pelomenosdiantedosmeusprópriosolhos.Para meu espanto, me saí com uma pergunta da qual só me dei contaquandoeumesmoaescutei,incrédulo.

    -VocêacreditaemDeus?Elanãopareceuincomodada,pelocontrário.Iadizerqualquercoisa,masantestenteiremendar.

    -Desculpe...–eemseguida.-Comosechama?

  • -Zibã...–foiaresposta.–ZibãMehrabani.Martelei meu cérebro tentando achar um comentário espirituoso

    parafazerarespeitodonomedela.Nãoabriaboca,masatéhojetenhoaimpressãodequeelaliaospensamentoshumanos,poisriuencabulada.

    -Querdizer“bonita”...-Claro...–foitudooqueeufuicapazdepronunciar.-Eosobrenomesignifica“amabilidade”,emfarsi.–elaacrescentou. - Eu seidisso. –balbuciei, contrariadopornão ter conseguidoformularnenhumcomentáriointeligente.

    Elasentou-senochão,colhendoaspontasdovestidofloridosobreosjoelhos.Fezmençãoparaqueeuaimitasse,solapandomeusplanosdeirembora.Semmaisnemmenos,retomouofiodaconversa,istoé,respondeuminha pergunta de ummodo singelo como se aquilo fosse a coisa maisnaturaldomundo.

    -ÉlógicoqueacreditoemDeus.-Masvocênãoémuçulmana...–retorqui,semsaberporquê.

    -Edaí?–elafalou,parafazerumapausacompridacomoamepunir.Eutinhaconsciênciadaminhafaltadetato,masnãosabiacomoconsertaraquilo. Sentia-me esquisito e deslocado como se estivesse dividido emmuitos“eus”. –Nãoimportaonomeque lhedamos... -Zibãdisse. -Deusestádentro de cada um de nós. E somos livres para escolhermos nossoscaminhos.

    A última frase feriu meus ouvidos. Eu queria expor minhadiscordânciaprofunda,discorrersobreanecessidadedeobedecermosaosdesígniosdivinosdoProfeta,frisarquetudodependedavontadesupremadeAlá,mas por uma razão inexplicável fiqueimudo. A verdade doLivroSagrado encolheu diante das sábias palavras daquela menina. Aliás, queidade teria ela? Se fossemaisnovadoqueÕrash,não completaraquinzeanos. Como falava daquela maneira, tão segura e franca como eu nunca

  • ousaria?Uma lufadadeventosoproupara longeochapéudepalhaqueela

    traziasobreoscabelospuxadosemumatrança.Corremospararecuperá-lo,mas sempre voava paramais longe quando nos aproximávamos dele.Nossos movimentos seguiam o ritmo da brisa como os passos de umadança ancestral. Os risos dela borbulhavam entre os testemunhosmilenares de Nashq-e Rostam e hoje, quando relembro aqueles brevesminutos,encaixo-osentreosmaissublimesdaminhaexistência.

    Comumpuloresgateiochapéunoar.Meioacanhado,recoloquei-osobre os cabelos dela que se haviam libertado das tranças no meio dacorreria.Elesbrilhavamfeitoaságuasdeumrio,refletindoosraiosdosolqueescorriampordetrásdosalto-relevosentalhadosnapedrabruta.

    Talvez fosseamagiadahora, a luminosidadedifusado luscofuscodatarde.Sóseique,numinstante,nossoslábiostocaram-sedeleve,quasede brincadeira. Senti uma sacudidela como se tivesse levado um choque.Ela afastou-se ligeira,mas logo se reaproximou. Abriu um sorriso sem omenorvestígiodeconstrangimento.Pertodela,aimagemdeFatytornava-se tão insignificante que desaparecia por completo. Enfeitiçado, não mecontive.

    - Você quer casar comigo? – disse, duvidando dos meus ouvidos,paraacrescentar.–Quandoagentecrescer...

    -Vocêestáfalandosério?Nuncativera tantacertezadenadaemtodaminhavida.Podianão

    atinar que profissão seguir, que faculdade fazer, em que Deus acreditar.Mas sabia do fundo de mim mesmo que Zibã era aquela com quem eugostaria de dividir cada segundo domeu presente e domeu futuro. Tãoconvencidoestava,querespondi.

    - Claro que não... falei de brincadeira... – e nós dois de novocompartilhamos uma cumplicidade ímpar. Por serem supérfluas ouminúsculas demais para a intensidade do momento, ali as palavras

  • significavamocontráriodoqueforadito.Despedi-medeZibãefuijuntar-meaosmeus,quecomeçavamadar

    pelaminhaausência.HosseineFatytrocavamolharesdisfarçados,maseunãodavaamínima.Ocupeimeuassentona traseirada caminhonete semdissimularmeuestadodegraça.Aliás,nemconseguiria.Seosolhossãooespelhodaalma,osmeuscontavamahistóriadeumamorqueaindanãoimaginavaserimpossível.

    VIDiz a sabedoria popular que se você esteve em Persépolis com a

    almapura,suavidateráumdesfechofeliz.Comoaminhaforaconspurcadapelo torneioepelasmentiras,aindaque,deacordocomNarges,porumacausa nobre, eu só poderia esperar o oposto. Gostaria de ter vivido nostemposhelênicosparaconsultarumoráculoemeprepararparaofuturo.ApósaqueleNoruznadaseriacomoantes.

    Para começar, os eventos políticos sucederam-se num ritmofrenético.DanoiteparaodiaaspasseatasestudantistomaramcontasdasruasdeTeerã,transbordandodeTabrizedeQomparaasoutrascidades.Oano passou num piscar de olhos entre protestos, marchas e a notóriabrutalidade da Savak, que não economizou violência no afã demanter aordem. Feriados religiosos como Ashura, o martírio de Hussein, quecaminharaparaamortecomapenas72homensemumconfrontodesigual,transformaram-seempretextoparamanifestaçõescontraoXá.HusseinerafilhodeAli,ogenrodeMaomé,e foimassacradoemKerbala, Iraque,nosidos do século VII. A cada aniversário do suplício, procissões de homenssaempelasruasautoflagelando-secomchibatadasnascostas,pancadasnacabeçaeferindo-secomlâminasparareproduzirosofrimentodomártir.

    Nomeiodamultidãohavia gentede todos osmatizes ideológicos.Comunistas,democratas,liberaiseosmodestosmollah,pessoassimplesdocampoquevinhamengrossaro levantepopular.Marcheiombroaombro

  • como irmãodeZibã,poisnaquelemomentonão importavaocredoouaprofecia.Muçulmanossunitasexiitas,zoroastras,cristãos,judeusemesmoateus confessos uniam-se nessa epopéia que faria do Irã uma nação dehomens emulheres livres. Não tínhamos nenhum programa em comum,tudo o que visávamos no início era depor um governo corrompido queabraçara os valores ocidentais em prejuízo das nossas tradições.Queríamos sentir outra vez o que era ser iranianos e não apenas cópiasmalfeitas de Hollywood. Os Estados Unidos e sua mania de mandar nomundo inteiro já nos tinhamprejudicado o suficiente. Estava na hora devoltarmosasernósmesmos,umdospovosmaisnobresdoplaneta.

    Behruz,NargeseRassul,seufuturomarido,eramosmaisengajados.Iam e vinham da universidade, o centro nevrálgico da luta anti-Xá emShiraz. Eu cursava o último ano do ensino fundamental, mas nas horasvagasajudavacomopodia.NacasadeBehruzviasempreairmãdele,quetinha desistido domeu suposto rival eme olhava de ummodo cada vezmaisdoce.

    -Hosseinnãopassadeumgarotoquederrubapedrascomumabolade tênis. Você levantou fundos para o movimento de oposição com seutalentoparaoxadrez.–Fatymedissera,referindo-seaotorneio,quehaviasetransformadonumsegredodepolichinelo.

    Sentia-meenvaidecido,sóquenessemeiotempoestavavendoZibãescondido de todos, por causa das nossas religiões. É claro que nuncadiscutira esse tipo de coisa em casa, nem precisava. Era uma daquelasregras jamais mencionadas, porque óbvias. Eu me casaria com umamuçulmanaescolhidapelosnossosparenteseassumiriaopostodeAghoJun na loja do Bazar. Se quisesse cursar uma faculdade, sem problemas,desde que não negligenciasse os negócios da família. Minha vida estavamuito bem delineada no horizonte turbulento, mas por ingenuidade euachavaque,comarevolução,tudomudaria.TalvezinfluenciadoporZibãesua crença na liberdade e no discernimento individual pregados pelo

  • zoroastrismo, eu imaginava que no futuro próximo cada um poderiaescolherseucaminhonumpaísdepluralidadeétnicaetolerânciareligiosaecultural.Bastavaterumpoucodepaciência.

    Parame encontrar comZibã, que eu chamava de “minha princesazoroastra”,inventavapretextosmirabolantes.Comopassardosmeses,fuime convertendo em um mentiroso hábil e descarado. Via Zibã naspasseatas,quandonosperdíamosnamultidãoparaficardemãosdadasetrocar confidências. A maioria das pessoas estava ocupada demaisberrandopalavrasdeordemeerguendoospunhoscerradosparanosdaratenção.Meus amigos usavambandanas atémesmona escola, dentro dasala de aula. Naquele estado de revolta patriótica, também acabeicontagiado.Nomeiodosjovens,velhoseatécriançasqueiamocupandoasruaseavenidas,eutinhaanítidaimpressãodequefaziapartedeumtodo.Maisdoqueisso,euachavaqueestavaajudandoaescreveraHistória,comHmaiúsculo. Ao civismo exacerbado, somava-se minha paixão crescenteporZibã, arrastando-meaumestadode euforiaqueme levou a cometerpequenasloucuras.Pareciaembriagado,estavatãoforademimquantonaúnicavezemqueexperimenteiduastaçasdevinhoeacabeideporre.

    Para fugir do burburinho, às vezes faltávamos às aulas eperambulávamos pelas imediações de Shiraz, visitando monumentoshistóricos onde haveria menores chances de sermos vistos. Com aefervescência política, os turistas estrangeiros tinham desaparecido epoucosiranianossearriscavamaseafastarparalongedoseubairro.Numadessasmanhãs fomos aomausoléude Saadi. Eupodia avistá-lode longe,com suas colunas esguias, na ponta do boulevard Bustân, ou Avenida doPomar, títulodeumadassuascélebresobras.Zibãsabiadecorosghazaldo livroGolestãn, Jardimderosas,quecantavaoamor físicoemísticodemaneiraeleganteeenvolvente.NoslábiosdeZibãospoemasadquiriamumsignificadoespecialeeumaquinavanacabeçacomopoderiafazerparaumdiamecasarcomelasemmagoarnossasfamílias.

  • - Já sei! – ela falou numa ocasião. – Podemos fugir para asmontanhas...-Eviverdoquê?–indaguei,entrelisonjeadoepreocupado. -Dandoaulas,ora.Eusemprequisserprofessoranumvilarejoqualquer...

    Deiummeiosorrisoechuteiumapedraaoacaso.EragozadocomoZibãsempretinhaumasoluçãoparaqualquerproblema,nãoimportavaadimensão. Seusplanosdiferiambastantedaquelesdamaioriadasmoças,que preferiam os grandes centros urbanos com bares, restaurantes ediversão.MinhaprincesaconfessaraodesejodeensinarcriançasdasvilaspobresdoIrã.-Minhamãeeraprofessoraprimária,achoqueherdeiojeitodela...–acrescentou com um ar tão cativante que dava vontade de beijar cadapalavrasaídadasuaboca.

    -Eupossovirarpastordeovelhas...Ouumnômadedodeserto...–brinquei,semdaradevidaimportânciaaoqueZibãtinhadito.Enquantoeufaziagracejos,elafalavaasérioarespeitodonossofuturo.Talvezpelofatode ter sido criada sem amãe, pareciamais sábia do que eu e bemmaismaduradoqueasgarotasdamesmaidade.Oscabelosdelaagoraestavamsoltosebatiamquasenacintura.Vestiaumasaiapregueadaesandáliasdesaltobaixo.Comooúltimobotãodecimadablusatinhaescapado,euviaoiníciodosseiosredondoscujoscontornostentavaadivinhar.

    Como sempre, ela leumeuspensamentos. Semqualquerhesitaçãocolocouminhamãodireitasobreumdelesefechouosolhos.Eupermaneciali,saboreandocomapontadosdedos,atravésdotecido,aconsistênciadeumaromãaindaverde.Por incrívelquepareça,emlugardoalvoroçodasemoções, senti umapaz desconhecida.Queria que o tempoparasse.Umasegurança também tomou contademim. Iria casar comZibã custe oquecustasse.Elaeraminhaalmagêmea,dissoeutinhaamaisabsolutacerteza.

    Saímosde ládebraçosdadosecomocoraçãonasnuvens.Fizum

  • agradecimentomudoaKhodaeporunsinstantesfixeiavistanopequenolagocompeixesqueintegraoconjuntodotúmulodeSaadi.Elebrotavadeuma fonte natural que vela pela alma do poeta cujos versos enfeitam asparedes internas do mausoléu. Desenhei com a vista o lustre compridopendendo do teto revestido de pastilhas e, seguindo o costumedo lugar,atirei moedas no espelho d’água para que meus desejos secretos serealizassem. Só bemmais tarde descobriria que omecanismo imagináriodafonteforadesativadopormãosinvisíveis.

    Dali para frente os acontecimentos precipitaram-se de formaincontrolável.Grevesparalisaramaadministraçãopública,interrompendoaexportaçãodopetróleo,basedanossaeconomia.Afinal,em16dejaneirode1979,oXá fugiudopaíscoma família real.Suapartida, recebidacomalívioporquase todaa sociedade,possibilitouavoltadeKhomeinidali aduas semanas. Os enfrentamentos entre a velha guarda imperial e asunidadesdoexércitofiéisaoaiatoláintensificaram-se.Apopulaçãoficoudoladodele,que,nanoitede2deabril,proclamavaaRepúblicaislâmica.

    Nargespreparouumafestaderuaparacomemorarmosavitória.Osvizinhostrouxeramsalgados,doces,tâmaras,cháquenteegelado,afshorehesharbat,ascaldasdeflordelaranjeira,rosas,violetaefrutas.Oshomenssentavam-se na calçada fumando o nerguilé e comentando as últimasnotícias do dia. Agho Jun lia em voz alta as manchetes do Keyhan,rivalizando com Rassul, que folheava as páginas doEtelaãt. Logo não seconseguiaouvirumafraseinteira,tamanhaagritaria,comtodosfalandoaomesmotempo.

    Pela primeira vez vislumbrei o sentido do termo cidadania.Observava a animação geral e experimentei um orgulho que ia além dopatriotismo. Ele abarcava algo maior, mais profundo e indizível. Eu eraapenasum jovemmal saídoda adolescência e já tinhaumahistóriaparacontar aos meus filhos e netos. Acreditava que tudo à minha volta iriamelhorarenadapoderiaestragaraquela felicidadedifícildesercolocada

  • empalavras.SólamentavanãopossuirotalentodeumSaadiouHâfezparatraduzir em versos o estado de espírito que tomava conta de mim, daminhafamília,dacomunidadeedomeupovo.

    FuiperceberqueascoisasnãoestavamtomandoorumodesejadoapenasquandoBehruzseaproximoudemimdeumjeitohostil.Elefoimeolhandomeiode soslaioenão retribuiuo sorrisoqueestampeino rosto.Apalpeinobolsoda calçao relógiodoqualnuncameseparavaeencareimeu amigo. Eu ia fazer qualquer comentário bobo a respeito das nossasconquistas recentes quando gelei ao som da voz dele, tão diferente dequandosedirigiaamim.

    - O que está acontecendo entre você e minha irmã? – sua frasevibravanumtomacusatórioquemecausouumtremendomal-estar.

    Eu conhecia bem o gheirat, nosso dever de proteger e defender ahonradasmulheresdafamília,masnuncapenseiquepudesseprovocaraira domeumelhor amigo. Além de confundir tudo, Behruz jamais falaracomigodaquelejeito,porissofiqueisemação,oqueeleinterpretoucomosinaldecovardia.-Vocênãoserveparaela!–elefaloudededoemristecomosemeameaçasse. -Oquevocêquerdizercomisto?–eubuscavaparecercasual,emboradentrodemimumaluzamarelacomeçasseapiscar.-Queroavisarparanãoseaproximardela!–elerespondeu,aindamaisagressivo. Denovofiqueiatônito.ComonuncatinhadiscutidocomBehruz,sentia-me extremamentedesconfortável.Abaixei os olhos, o quepara elesoou comouma rendiçãomuda. Foi o suficienteparaumataquedireto ecruel.-Vocêsóprestaparaaquelaimpura...Agorafuieuquemtomouadianteira.Sempensar,deiumsocoemBehruzenominutoseguinteestávamosrolandopelochãonumalutaferoz.

  • Ànossavoltaformou-seumapequenaplatéiademeninosquenosatiçavamcom gritos e assovios. Ficamos engalfinhados, nos esbofeteando entrepalavrõesexingamentosatéqueosadultosvieramnosseparar.-Nãoousefalardeladessejeito,seuimbecil!–berreipordetrásdosbraçosdeRassul,queacustomecontinha.–Juroquematovocê!Elemeolhoudeummodoarrevezado,eentredentesmurmurou:“-NãoéadmissívelqueoProfetaeosquecrêem imploremperdãoparaosidólatras (...) após haver-se tornado evidente, para eles, que são oscompanheirosdoInferno”. A festa acabou namaior rapidez. Não haviamais clima paracomemorações, cada qual tratou de arrumar o restante das comidas ebebidas,recolhermesasecadeirasediscretamenterefluirparadentrodasquatroparedesdosseuslares.Comacamisasujadesanguequeescorriadonariz,entreiemcasatranstornado.Queriairdiretoparaomeuquarto,masminhamãeinsistiuem tratar meus machucados. Ela não imaginava que os mais profundoseraminvisíveiselatejavamcomosetivessemcortadoforaumpedaçovitaldomeucorpo.Quandoafinalmedeiteinacama,exausto,escuteiumalevebatidanaporta.Semesperarresposta,Nargesfoientrandodevagar. - Você está bem? – ela passeou os dedos pelosmeus cabelosenquanto eu tentava segurar o choro. Dali a pouco esqueci que já tinhacrescido, virado adulto e até me apaixonado. Simplesmente me deixeiembalar feito umbebê e desatei numdaqueles prantos que servemparalimpartodasaspequenasdores,ofensasemedosacumuladosaolongodajornada.Ao finaldeunsminutos,senti-mealiviadoepudeencararminhairmã,queforamandadacomoemissáriadeAghoJun.-NuncamaisqueroverBehruz!–exclamei,numsoluço.-Nãodigabobagens,vocêssãoamigosdeinfância...-Fomosamigos,éumverboqueestánopassado.–refutei.

  • -Quenada,daquiaumtempinhovocêsvãofazeraspazes!-Issonunca!–euberrei.–QueroqueBehruzmorra!.Emboraestudassemedicina,Nargestinhapendoresparapsicóloga.Viuquenãoeraachancedemepersuadiraaceitaroamigodevolta.Emvezdisso,aproveitouparamesondararespeitodeZibã.-Vocêgostamesmodela?–insinuou,comoatestarminhareação.Eubalanceiacabeçaerespondicomoutrapergunta.-Gosto,porquê?Éproibido?

    Nargesficouemsilêncio,araciocinar.Sabiaqueotemaeradelicado,masnãoqueriaperderaquelaoportunidadede tratardeumassuntoqueAgho Jun a encarregara de resolver. Então começou a falar como serecitasseumtrechodecorado.

    -ÉnossodeverlembraromartíriodoImãHussein,netodoProfetaMaoméesenhordosjovensdoJardimdasDelícias,opilardoscrentes.–Elaparou para certificar-se de que eu estava prestando atenção, paracontinuar.

    -ElesacrificousuavidaparaqueoIslãfossepreservadoepudessechegar,semmáculas,aténós...

    Fiqueiperplexo.-Oquetudoissotemaver?...Nargespermaneceuquieta.Osilênciodelavaliapormilpalavras.Eu

    tinhaquedizeralgumacoisa.Entãodesafiei:-SóporqueZibãnãoémuçulmana?-Vocêachaissopouco?–eNargesestavadefatoindignada.Devagarlevantei-medacama.Pelajaneladoquartodavaparavero

    jardimcomopéderomãqueAghoJunplantaranodiaemquenasci.Todoano ele dava frutos doces como mel, mas nesse eles caíram antes deamadurecer.Minhamãeenxergounaquiloummaupresságio.AghoJunrirada superstição,dizendoqueera coisadegente atrasada,mashoje eumeindagava se ela não estava certa. O futuro que até há pouco parecia

  • resplandecente e cheio de esperança, agora vazava feito areia entre osdedosdamão.

    O diálogo comminha irmã não seria fácil, mas tinha quemandarumamensagemaAghoJun,mesmoqueissosignificassemagoá-lo.

    - Narges, não importa o nome que damos a Ele – eu argumentei,citandoaspalavrasdeZibã.–PodeseratravésdeMaomé,CristoouBuda...–fizumapausapararecuperarofôlego–Deusestádentrodecadaumdenós...

    Minhairmãmeolhoucomoseeufosseumcompletoestranho.Pior,elameencarouquasecomhorror,feitoseeutivesseviradoummonstro.

    - O que acabou de dizer é amaior blasfêmia que já ouvi. – e saiubatendoaportacomforça.-Nuncapenseiqueissofosseacontecer,vocêéumcasoperdido!–tevetempodegritar,antesdesumirdomeucampodevisão.

    Nossa conversamal sucedidamedeixou de sobreaviso. Ela estavadiferente,maisagitadaeradicaldoqueaNargesqueeuconhecera,semprecalmaeponderada.Algoestavaforadecontrole.Minhavidinhaesfacelara-se,minhafamíliasepuseracontramimeopaísinteiropareciaemtranse.Opiorestavaporvir.Issoeunãosabia,maslánofundodesconfiava.

    ParteIIIRevolução

    IAs peças começariam a encaixar-se no quebra-cabeças em que se

    transformaraomundoàminhavoltaquandosoubequeBehruzintegraraaprocissão de Ashura. A princípio não acreditei. Saí correndo de casa emdireçãoaocentroepudeconstatarcommeusprópriosolhos.Amúsicaaltaencobriapartedaspalavras,masassimmesmopudeescu