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L&PM POCKETAcho que deveríamos colocar Esopo

entre os grandes sábios de que a Grécia seorgulha, ele que ensinava a verdadeirasabedoria, e que a ensinava com muitomais arte que os que usam regras edefinições.

LA FONTAINE

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A MOSCA

Uma mosca caiu numa panela de carne.Afogada no molho e já quase morrendo, eladisse para si mesma: “Se já comi, já bebi e játomei um banho, que me importa morrer?”

Suportamos a morte com mais facilidadequando a ela não associamos pensamentostristes.

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A CAMELA

Uma camela atravessava um rio de águasturbulentas. Tendo defecado, as fezes levadaspelo redemoinho foram parar no seu focinho.Ela então exclamou:

– Como é que o que estava atrás veioparar na minha frente?

Em certas ocasiões, os sensatos sãoultrapassados pelos piores imbecis.

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GUERRA E VIOLÊNCIA

Cada um dos deuses se casou com amulher que o destino lhes havia reservado.Quando foi a vez do deus Guerra, só haviasobrado a Violência: ele se apaixonouloucamente por ela e a desposou. Desde então,ele a acompanha por toda parte.

A violência impera numa cidade ou entreas nações, trazendo guerra e discórdia.

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O GATO E O GALO

Um gato queria ter uma boa razão paradevorar um galo que caiu em suas garras.

– À noite – acusou-o –, teus gritos nãodeixam os homens dormir.

O galo se defendeu:– É um serviço que lhes presto,

chamando-os a seus deveres.O gato não se abalou e acusou o galo de

ultrajar a natureza por não respeitar nem a mãenem as irmãs.

O galo respondeu:– Isso reverte mais uma vez para o bem de

meus patrões: eles têm assim ovos emabundância.

Os pretextos especiais de nada servem

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quando o celerado, desavergonhadamente, estádecidido a fazer o mal.

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O PESCADOR QUE TOCAVA FLAUTA

Um pescador, que era também flautista,pegou a flauta e a rede e foi pescar. De pé numpromontório, pôs-se a tocar. Os peixes,pensava ele, atraídos pela beleza da música,pulariam sozinhos fora d’água. Tocou um bomtempo sem parar. Em vão. Deixando de lado aflauta, pegou a rede e a lançou na água. Pegouum monte de peixes. Tirava-os da rede e osjogava na areia . Como os peixes se retorciam,ele disse: – Seus malditos, quanto vocês nãodançaram enquanto eu estava tocando!

Assim agem os ardilosos.

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O JARDINEIRO E O CÃO

Um jardineiro desceu ao fundo de umpoço para tirar seu cão que caíra lá dentro.Pensando que seu dono descera para enterrá-loainda mais, o cão voltou-se contra ele emordeu-o.

O jardineiro saiu do poço lamentando suador: “Bem empregado. Quem mandou eu querertirar do aperto quem lá se meteuvoluntariamente?”

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A GATA E AFRODITE

Uma gata que se apaixonara por um finorapaz pediu a Afrodite para transformá-la emmulher. Comovida por tal paixão, a deusatransformou o animal numa bela jovem. O rapaza viu, apaixonou-se por ela e a desposou. Paraver se a gata havia se transformadocompletamente em mulher, Afrodite colocouum camundongo no quarto nupcial. Esquecendoonde estava, a bela criatura foi logo saltando doleito e pôs-se a correr atrás do ratinho paracomê-lo. Indignada, a deusa fê-la voltar ao queera.

O perverso pode mudar de aparência, masnão de hábitos.

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A VELHA E O MÉDICO

Uma velha senhora doente dos olhosmandou chamar um médico. Ele foi atendê-la e,sempre que lhe aplicava um ungüento, roubavaalguma coisa da casa, já que ela estava de olhosfechados. Depois de tratá-la e de levar seusmóveis, apresentou-lhe a conta. Como a velhanão quis pagá-la, ele abriu-lhe um processo. Notribunal, ela declarou que tinha secomprometido com ele a pagar desde que ele acurasse; ora, no momento, ela estava vendobem menos que antes da cura: “Antes”, disseela, “eu via todos os móveis de minha casa;agora não vejo mais nenhum”.

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A NOVILHA E O BOI

Pobre de ti!, disse uma novilha a um boique estava trabalhando.

Nisso, houve uma festa. Desatrelam o boi.Pegam a novilha e a matam. E o boi sorrindo:“Está aí, minha cara novilha, por que estavassem trabalhar: teu destino era o sacrifício”.

A ociosidade é perigosa.

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OS GOLFINHOS, AS BALEIAS E A CARPA

Golfinhos e baleias se engalfinhavam. Abatalha renhida já durava muito tempo quando,vindo das profundezes, uma carpa tentoureconciliá-los. Mas um dos golfinhos falou: –Antes morrer sob os golpes de nossosadversários que te ter como mediador!

Em tempos de conflito, os insignificantesquerem se fazer de importantes.

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DIÓGENES E O HOMEM CARECA

Diógenes disse ao homenzinho que oinsultava: “O insulto? Não é o meu forte. Mastodos os meus cumprimentos aos fios decabelo que desertaram dessa tua cabeçaperversa”.

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HERMES E O ESCULTOR

Hermes quis saber qual o grau de estimaque os homens lhe devotavam. Tomou aaparência de um mortal e foi ao ateliê de umescultor. Ao ver uma estátua de Zeus,perguntou: – Quanto custa?

– Um dracma – respondeu-lhe o homem.Hermes sorriu:– E aquela, de Hera?– É mais cara.Hermes viu então sua própria estátua.

Achava que, sendo ao mesmo tempomensageiro e deus do comércio, seu preçoseria bem mais alto.

– E Hermes, quanto custa? – quis saber.– Oh, se comprares as outras duas, a levas

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de brinde.Quem se acha o tal termina valendo

menos que o esperado.

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OS BOIS E O EIXO

Um carro era arrastado pelos bois. Comoo eixo rangia, eles se voltaram e disseram-lhe:“Nós puxamos o carro e vocês é que gemem?”.

Para uns o sacrifício, para outros asqueixas.

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HÉRACLES E ATENA

Quando caminhava por uma rua estreita,Héracles viu no chão alguma coisa que separecia com uma maçã e quis esmagá-la. Acoisa então aumentou de volume diante de seusolhos. Ele a pisoteou com mais força ainda e agolpeou com a clava. Mas a coisa engrossou detal forma que bloqueou o caminho. Héraclesjogou fora a clava e ficou ali, presa do espanto,quando Atena lhe apareceu e disse:

– Pára, irmão, o que estás vendo é oespírito da querela e da discórdia. Quanto maisa gente deixa de provocá-lo, menos ele reage.Mas, quando o atacamos, ele cresce da formaque estás vendo.

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A RAPOSA E A GRALHA

Uma gralha faminta estava no alto de umafigueira; estava achando os frutos muito verdese esperava que amadurecessem. Uma raposa, aovê-la esperar pelo tempo, descobriu logo arazão e lhe disse: “Minha amiga, não adiantaalimentar esperanças. Elas só nos enchem deilusões”.

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OS ESCARGÔS

Um pobre camponês pusera uns escargôspara assar na grelha. Ao ouvir os estalos, eledisse: “Que idiotas, ainda cantam enquanto suascarapaças ardem!”

Quem age na hora errada termina sendoinsultado.

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OS VIAJANTES E A URSA

Dois amigos iam por uma estrada. Derepente surge uma ursa. Um deles logo sobenuma árvore para se esconder. O outro, vendo-se quase pego, deitou no chão e se fingiu demorto. A ursa passa o focinho sobre ele, fareja-o daqui, fareja-o dali, e ele de respiração presa.(Dizem que os ursos respeitam os mortos.) Oanimal se foi e o que estava na árvore desceu eperguntou ao amigo o que a ursa lhe havia ditono ouvido. “Para não viajar mais com amigosque nos deixam sozinhos no perigo”,respondeu.

É nas vicissitudes que conhecemos osamigos.

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OS VASOS

Um pote de barro e um de cobre boiavamnum rio. O primeiro disse ao outro: “Fica longede mim, porque se me tocares serei destruído”.

Não há vizinhança mais perigosa para umpobre que a de um senhor voraz.

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A GRALHA E OS CORVOS

Uma gralha de tamanho descomunalolhava seus semelhantes com desdém. Partiuentão em busca dos corvos para morar comeles. Mas os corvos, que nunca a tinham visto,expulsaram-na sem piedade. Rejeitada por eles,a gralha voltou para os seus. Mas estes não lheperdoavam o orgulho: não a aceitaram de volta.E ela não pôde viver nem com uns nem comoutros.

Não troques tua terra por uma outra: nestaserás rejeitado por ser estrangeiro e naquela oteu desprezo será devolvido em ódio.

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A RAPOSA E O CROCODILO

Uma raposa e um crocodilo discutiampara ver qual dos dois era o mais nobre. Ocrocodilo se gabava dos feitos de seusancestrais e concluiu dizendo que seus paispresidiam os jogos ginásticos. A raposareplicou: “Nem precisavas dizer, só de olhartua pele já dá para ver tua longa práticaesportiva”.

Contra os mentirosos, os fatos falam porsi sós.

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OS VIAJANTES

Alguns homens iam por uma estrada parafechar um negócio. Eis que, no caminho,encontram um corvo caolho. Como nãoqueriam passar pelo pássaro, um deles,pensando que estavam diante de um maupresságio, achou melhor não ir em frente. Umoutro replicou: – Como esse pássaro podeprever nosso futuro se não soube evitar a perdade seu próprio olho?

Não dá para ouvir os conselhos de quemnão sabe cuidar de si mesmo.

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A CORÇA E O LEÃO

Uma corça perseguida por caçadoreschegou à entrada de uma gruta onde estava umleão. Ela entrou para se esconder. Quandoestava morrendo sob as garras da fera, eladisse: – Triste destino o meu: tentei fugir doshomens e terminei nas garras de um animalselvagem.

Às vezes o medo de um perigo pequenotermina nos levando a um perigo maior.

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O CABRITO E O LOBO

Da casa em que se encontrava, um cabritoviu passar um lobo. Pôs-se a insultá-lo e aescarnecer-lhe. O lobo disse então: – O insultonão vem de ti, mas do lugar onde estás.

Muitos deixariam de ser valentes diantedos fortes se não estivessem em lugar seguro.

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A COTOVIA

Presa numa arapuca, uma cotovia selamentava: “Pobre de mim! Pobre pássaro quesou! Não roubei nem prata nem qualquer outroobjeto precioso: por causa de um pequeno grãode trigo vou encontrar a morte”.

Tão grande risco por nada!

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O ASNO E O JARDINEIRO

Um asno a serviço de um jardineiro comiapouco e trabalhava muito. Ele pediu a Zeus queo libertasse de seu cativeiro fazendo-otrabalhar para um outro patrão. Zeus o ouviu eele foi vendido a um oleiro. Mas, de novo, oasno reclamou: carregava ao mesmo tempoterra e barro, de modo que seu fardo era maiorainda que antes. Pediu uma vez mais para mudara situação e foi vendido ao dono de umcurtume. E eis que ele caiu de novo nas mãosde um patrão pior que os anteriores. Ao ver otrabalho que tinha de fazer, o asno diziagemendo: – Pobre de mim! Por que não fiqueicom meus primeiros donos! Este, pelo queestou vendo, terminará me tirando a pele!

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Um novo chefe faz lembrar com saudadeo antigo.

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A ÁGUIA E SEUS DOIS DONOS

Um dia, uma águia foi capturada por umhomem. Este lhe cortou as asas antes de jogá-laentre as aves de seu galinheiro. A águia baixavaos olhos de vergonha; roída pela tristeza,parecia um rei cativo. Um outro homem acomprou e arrancou-lhe as penas. Depois,untou-a com mirra e as asas cresceram denovo. A águia voltou ao que era e, tendo pe-gouma lebre com suas garras, foi levá-la depresente ao seu novo dono. Mas uma raposa aviu e lhe disse:

– Entrega-a ao teu primeiro dono, pois osegundo é bom por natureza: melhor ser bemvista pelo primeiro, a fim de que ele não tepegue no novo e te prive de tuas asas.

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O GATO E AS GALINHAS

Chegou até os ouvidos de um gato que emcerto galinheiro as galinhas estavam doentes.Ele se fez então passar por médico e, levandoconsigo os instrumentos necessários, foi até lá.Ao chegar à porta do galinheiro, perguntou-lhes: – Como estão?

Elas responderam:– Muito bem, desde que dês o fora.Por mais que queira passar por bonzinho,

o ho-mem mau não engana o homem sensato.

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O HOMEM QUE PROMETIA OIMPOSSÍVEL

Um homem jazia, doente e perto damorte. Era pobre. Como os médicos lhe tinhamtirado qualquer esperança de cura, eleprometeu aos deuses o sacrifício de cem bois elhes dedicar um monumento se serestabelecesse. Sua mulher, que estava a seulado, perguntou-lhe: – E de onde tirarás odinheiro?

Ele lhe disse:– Você acha que vou me restabelecer para

os deuses me cobrarem essas promessas?É fácil fazer promessas quando sabemos

que não vamos cumpri-las.

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O CAMELO E ZEUS

Invejoso do touro que se vangloriava deseus chifres, o camelo quis ter também osseus. Foi pedi-los a Zeus. Mas o deus seindignou: – Teu tamanho e tua força já bastam,para que queres ainda mais vantagens?

E, em vez de dar-lhe chifres, encurtou-lheas orelhas.

Quem inveja os bens de outrem nãopercebe que perdeu os próprios.

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O LEÃO E O JAVALI

Era verão e os animais estavam sedentos.Um leão e um javali foram matar a sede numapequena fonte. Estavam brigando para ver quemia beber primeiro. A briga terminou numa lutasangrenta. De repente, tendo-se separadomomentaneamente para recuperar o ar, viramos abutres que só estavam esperando que umdeles morresse para devorá-lo. Pararam entãode brigar: – Melhor ficarmos amigos que servirde pasto aos abutres e aos corvos.

Querelas e disputas nos expõem aoperigo. Melhor acabar com elas.

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A SERPENTE, A DONINHA E OS RATOS

Uma serpente e uma doninha tinham idobrigar numa casa. Ao ver isso, os ratos, quenormalmente eram a presa de uma ou de outra,saíram para estirar as pernas. Mas, quandoviram os ratos, uma e outra pararam a briga e osatacaram.

Sejamos discretos enquanto os grandes sebatem, senão os golpes sobram para nós.

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O LOBO E O CAVALO

Ao atravessar um campo, um loboencontrou cevada. Mas, como não tinha ohábito de comê-la, foi embora. Um pouco maisadiante, encontrando um cavalo, disse-lhe: –Venha aqui, encontrei cevada; não a comi,guardei-a para ti só para ter o prazer de ouvir oruído de tua mastigação.

O cavalo respondeu:– Meu caro, se os lobos comessem

cevada, quando irias trocar o prazer de enchertua pança pelo de ouvir o ruído de meus dentes?

Não dá para crer na súbita bondade dohomem mau.

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O PASTOR E O LEÃO

Um pastor que apascentava seus animaisperdeu um bezerro. Como já andara todo ocampo em vão, fez uma promessa a Zeus:sacrificar-lhe um cabrito se descobrisse quemera o ladrão. Nesse ínterim, ele viu, à beira deuma floresta, um leão devorando o bezerro.Tomado pelo medo, levantou os braços para océu e exclamou: “Ó Zeus soberano, há poucofiz uma promessa para te oferecer um cabritose eu encontrasse o ladrão; agora imolarei umtouro se eu escapar das garras dele”.

Assim agem os que, na dificuldade,procuram uma saída que, depois de encontrada,só pensam em se safar.

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O PASSARINHO E O MORCEGO

Quando caía a noite, um passarinho quetinha sido posto numa gaiola começava acantar. Um morcego ouviu sua voz. Foiperguntar-lhe por que de dia ele descansava e ànoite cantava. O passarinho respondeu:

– Tenho minhas razões. Foi cantando dedia que terminei preso; desde então, aprendi aser sensato.

O morcego lhe disse:– A prudência agora não adianta de nada:

por que não a usaste antes de te prenderem!

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O MÉDICO INEXPERIENTE

Um médico sem muita experiênciaacompanhava um doente. Diferentemente deseus colegas que prognosticavam um finalfeliz, embora distante, para a doença, ele dissea seu paciente para tomar as providências,deixando-o com essas palavras: “Não passarásde amanhã.”Algum tempo depois, o doentemelhorou e foi à rua. Estava pálido e caminhavacom dificuldade. O médico o encontrou eperguntou-lhe: – Bom-dia, como vão os queestão debaixo da terra?

O doente respondeu:– Estão bem, pois beberam a água do

Letes[1]. Mas, há pouco, a Morte e Hadesfaziam terríveis ameaças contra os médicos

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porque eles não deixam os doentes morrer.Fizeram uma lista com o nome deles. Queriamincluir o seu nome mas me lancei aos pés delese supliquei; jurei que o senhor não era ummédico de verdade e que não tinham comoacusá-lo.

Envergonhados sejam todos os médicosignorantes e estúpidos cuja arte se resume só abelas palavras.

[1]. Letes: rio dos Infernos cujas águas davamàqueles que a bebiam o esquecimento (emgrego lethe) e a despreocupação.

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O CÃO E A CONCHA

Um cão que tinha o hábito de comer ovosviu uma concha. Abriu a boca e, não semesforço, a engoliu. Sentindo então a barrigapesada e doendo, disse: “Isto me ensinou a nãoachar que tudo o que é redondo é ovo”.

Reflita antes de agir a fim de não se ferircom estranhos espinhos.

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O ASNO E A RAPOSA

Um asno estava comendo as folhas deuma amoreira. A raposa o viu e disse-lhe rindo:“Como uma língua tão delicada e macia podemastigar alimento tão áspero?”

Algumas pessoas se servem da próprialíngua para destilar veneno.

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A HIENA E A RAPOSA

As hienas, dizem, mudam de sexoperiodicamente: o macho se torna fêmea evice-versa. Ora, como uma hiena repreendiauma raposa por rejeitar sua corte, a raposarespondeu: “Não é por mim, mas por tuanatureza, pois não posso saber se me tomaráscomo um amante ou como uma amante”.

Cuidado com o homem ambíguo.

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O LOBO E A GARÇA

Um lobo que engolira um osso corriapelo campo procurando quem o salvasse. Aoencontrar uma garça, disse: – Por favor, tira-me esse osso da garganta e te recompensarei.

A garça enfiou a cabeça na goela do loboe retirou o osso. Depois ela reclamou arecompensa prometida. O lobo entãorespondeu: – Já não te basta ter tirado tuacabeça sã e salva da boca de um lobo?

O reconhecimento do homem mau selimita a não causar um novo mal a quem lhe fezo bem.

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A MULHER E AS CRIADAS

Uma viúva que trabalhava arduamentetinha por hábito acordar suas jovens criadascom o canto do galo para a lida. Cansadas detanto trabalhar sem trégua, as criadasresolveram matar o galo: achavam que a razãode toda sua desgraça era ele, que acordava asenhora antes de o dia nascer. Qual nada!Morto o galo, o destino delas piorou aindamais: pois a senhora, sem o galo e,conseqüentemente, sem seu relógio, asconvocava ainda mais cedo.

Muito freqüentemente nossas desgraçassão o fruto de nossas próprias resoluções.

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OS PESCADORES

Os pescadores começaram a puxar a redelan-çada ao mar. Ela estava pesada e, por isso,eles dançavam de alegria achando que tinhamfeito uma boa pescaria. Mas, quando adepositaram na areia, encontraram mais pedrasque peixes. Foi aquela decepção: não tanto pornão terem pescado nada, mas por teremacreditado na sorte. Então um velho do grupofalou: “Não nos deixemos abater, meus amigos:parece que o sofrimento é irmão da alegria.Seja como for, depois de nos termos alegradoantecipadamente, teríamos de sentir algumatristeza”.

Vejamos como a vida é cambiante: édifícil reagir aos fatos com a mesma

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felicidade, pois não há bom tempo que não sejaseguido de tempestade.

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O CARVOEIRO E O FABRICANTE DE LÃ

Um carvoeiro soube que um fabricante delã tinha se estabelecido não longe da casa emque ele morava e estava trabalhando. Foi até láe o convidou para morarem juntos: dividindo omesmo teto, ficariam mais próximos egastariam muito menos. Mas o fabricante de lãrespondeu: “Não dá para mim, pois o que eulavar, tu sujarás de fuligem”.

Impossível juntar coisas diferentesdemais.

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AS RÃS NO AÇUDE

O sol de verão secara o açude ondemoravam duas rãs. Elas se olharam e partiramem busca de outro charco. Diante de um poçoprofundo, uma disse à outra: – Como é, vamosdescer?

Ao que a outra respondeu:– E se de novo a água secar, como vamos

subir?Prudência em tudo que se faz.

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HERMES E TIRÉSIAS

Hermes quis ver mesmo se Tirésias eraum autêntico adivinho. Roubou seus bois queestavam no pasto e, disfarçado de homem,pediu para ser recebido por ele, na cidade.Advertido de que seus bois tinham sidoroubados, Tirésias foi com Hermes até osarredores da cidade: a observação dos pássaroso ajudaria a esclarecer o assunto. Hermes, aquem ele pediu para descrever as aves queencontrasse, falou-lhe primeiro de uma águiaque voava da esquerda para a direita. “Esta nãonos interessa”, disse Tirésias. Depois Hermesdescreveu uma gralha que estava numa árvore eora levantava os olhos, ora os baixava. Tirésiasdisse então: “Este pássaro jura, pelo céu e pela

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terra, que depende de ti eu achar os meus bois”.

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O LEÃO, O LOBO E A RAPOSA

Um leão envelhecido estava doente emsua caverna. Todos os animais, exceto a raposa,tinham ido fazer uma visita ao seu rei. O loboaproveitou a ocasião para denegrir a ausente: –A raposa não tem nenhum respeito por nossogrande chefe, foi por isso que não veio visitá-lo.

Ele ainda estava terminando essas palavrasquando apareceu a raposa. Quando a viu, o leãosoltou um rugido. Mas a raposa pediu que adeixassem se defender e disse: – Entre osanimais aqui reunidos, quem lhe prestou maisserviço que eu? Fui à casa de todos os médicosdas redondezas atrás de um remédio capaz decurá-lo e o encontrei.

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O leão quis logo saber qual era esseremédio. A raposa respondeu:

– O senhor tem de tirar a pele de um lobovivo e vesti-la ainda quente.

O lobo foi logo morto e estendido nochão. A raposa disse rindo: “Não se deve atiçara ira do chefe, mas sua benevolência”.

Quem quer fazer o outro de vítimatermina se transformando nela própria.

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O ASNO QUE QUERIA PASSAR POR UMLEÃO

Um asno vestira a pele de um leão e todoso tomavam como tal: homens e animais fugiamdele. Mas um vento forte arrancou-lhe a pele eele ficou nu. Todos voaram sobre ele e deram-lhe uma surra.

Quando quer imitar os ricos, o pobre seexpõe à zombaria e ao perigo. A cada um suaprópria condição.

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O LOBO SACIADO E A OVELHA

Um lobo saciado viu uma ovelha que jaziapor terra. Achando que ela tinha desmaiado demedo, ele se aproximou e a acalmou dizendo:

– Dize-me três coisas verdadeiras e tedeixarei partir.

A ovelha respondeu:– Eis os dois primeiros: gostaria de não te

ter encontrado, ou, se encontrasse, queestivesses cego. Quanto ao terceiro, ouça bem:que a morte te carregue, a ti e a todos os lobosque atacam sem piedade pobres ovelhas.

O lobo, achando que ela havia dito averdade, deixou-a ir embora.

Assim é a força da verdade, mesmo se ditaa nossos inimigos.

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O CAVALO E O SOLDADO

Enquanto durou a guerra, um soldadoalimentara com cevada seu cavalo, que lhe eramuito precioso. Quando veio a paz e o animalsó servia, como um escravo, para carregarpesadas cargas, a palha substituiu a cevada. Denovo, vieram os rumores de guerra. Ouviu-se osoar das trombetas. O dono do cavalo se armou,arreou-o e se foi cavalgando. Mas o cavalodepauperado caía a cada passo. Ele disse entãoao dono: “Vai agora te juntar aos outrossoldados! Como posso hoje agir como umcavalo depois de ter recebido tratamento deasno?”

Em tempos de paz, é bom não esquecer otempo dos infortúnios.

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O CANIÇO E A OLIVEIRA

Constância, força e impassibilidade: ocaniço e a oliveira se gabavam alternadamente.Mas, como a oliveira o repreendia por curvar-se a todos os ventos, o caniço ficou emsilêncio e não disse uma palavra. Algum tempodepois, um vento violento se pôs a soprar. Pormais que a tormenta o sacudisse, o dobrasse, ocaniço se mantinha firme. Mas a oliveira, detanto enfrentar a violência dos ventos, terminouse rachando.

Melhor ceder às circunstâncias e aos maisfortes que rivalizar com os poderosos.

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O CAMELO, O ELEFANTE E O MACACO

Um dia, os animais decidiram escolherum rei. O camelo e o elefante eram candidatos,e cada um achava que ia vencer, um graças àaltura, o outro graças à força. Mas o macacodeclarou ambos inaptos para reinar: “O camelonão sabe enfrentar os malfeitores; o elefantetem medo de porco, cujos ataques tememos”.

Basta muito pouco para sustar as grandesempresas.

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O BEM E OS MALES

O bem, vítima de sua fraqueza, foi expulsopelos males. Terminou indo parar no céu.

– Como – perguntou ele a Zeus – devo mecomportar com os homens?

– Dirija-se a cada um deles em separado.Eis por que os males, por permanecerem

perto dos homens, os atormentam sem parar,enquanto o bem custa tanto a vir dos céus.

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ESTÁTUA À VENDA

Um homem tinha feito um Hermes demadeira. Foi vendê-lo na feira. Nãoencontrando comprador, pôs-se, para atrair afreguesia, a bradar as vantagens de suamercadoria: era, dizia ele, um deus benfeitor epródigo de favores. Alguém que passava lhedisse:

– Como queres vender alguém cujosfavores te seriam tão úteis?

O vendedor respondeu:– É que estou precisando de um socorro

urgente e ele, normalmente, demora a distribuirseus benefícios.

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A PAREDE E A CAVILHA

Uma parede atravessada brutalmente poruma cavilha gritou:

– Por que estás me furando, não te fiznada!

A cavilha respondeu:– Não sou eu, é alguém que está me

batendo violentamente por trás.

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A ÁGUIA E A RAPOSA

Tendo ficado amigas, uma águia e umaraposa decidiram ficar morando uma perto daoutra: esse acordo reforçaria, pensavam elas, aamizade. No alto de uma grande árvore, a águafez seu ninho: logo embaixo, numa moita, araposa deixou seus filhotes. Ora, um dia emque a raposa tinha ido caçar, a águia, desprovidade alimento, foi direto à moita e raptou asraposinhas e se regalou com seus filhotes.Quando a raposa voltou e viu o que tinhaacontecido, ficou mais aflita com a dificuldadede se vingar que com a morte dos filhos: suaspatas não permitiam fisgar um pássaro. Em suaimpotência, reduziu-se a amaldiçoar de longe oinimigo: assim fazem os fracos. No entanto, a

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águia não tardou a ser punida por seudesrespeito à amizade. Estavam sacrificandouma cabra no prado. Ela foi até o altar, roubouuma víscera fumegante e a levou para o ninho.Um vento violento fez o fogo se propagar apartir de um graveto seco. Seus filhotes, aindaincapazes de voar, caíram no chão queimados.A raposa correu e, diante dos olhos da águia, osdevorou.

O amigo traído é fraco demais para tecastigar, mas nem por isso escaparás davingança divina.

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ZEUS E APOLO

Zeus e Apolo disputavam para ver qual erao melhor arqueiro. Apolo puxou o arco esoltou a flecha. Zeus, então, com uma sópernada alcançou o local onde ela havia caído.

Ao presunçoso, a vergonha.

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O HOMEM E O LEÃO

Um homem e um leão que caminhavamjuntos se gabavam o tempo todo. E eis queencontraram uma estela com um homemestrangulando um leão. Mostrando-a a seucompanheiro, o homem lhe disse: – Estásvendo como somos mais fortes que vocês.

Mas o animal, mal escondendo o riso,replicou:

– Se os leões soubessem esculpir, veriasuma porção de homens destruídos por um leão.

Alguns se vangloriam – e são muitos – deserem fortes e ousados, até seremdesmascarados e confundidos pela experiência.

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A VÍBORA E A HIDRA

Uma víbora ia regularmente beber águanuma fonte. Mas uma hidra tinha feito ali suamorada e resolveu proibir-lhe o acesso: – Aquié meu domínio, a víbora que se contente com oseu.

O conflito chegou a tal ponto que elasdecidiram se enfrentar. Quando chegou o dia daluta, as rãs, que detestavam a hidra, foram aoencontro da víbora para encorajá-la e lheprometeram combater a seu lado. A lutacomeçou. Enquanto a víbora enfrentava a hidra,as rãs, incapazes de fazer qualquer coisa,coaxavam até mais não poder. Vitoriosa na luta,a víbora lhes repreendeu a conduta: “Vocêstinham prometido lutar comigo, mas, em vez de

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me ajudar, ficaram cantando!”.“Saiba”, responderam elas, “que é com a

voz e não com os braços que nós ajudamosnossos aliados.”

Quando se precisa de força, as palavrasnão servem para nada.

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ZEUS E O PUDOR

Quando fez o homem, Zeus deu-lhe umasérie de apetrechos, mas se esqueceu de lhe daro pudor. Por isso, sem saber onde colocá-lo,mandou que ele entrasse por trás. O pudorficou indignado. Como Zeus insistisse, eledisse: – Tudo bem, eu entro, desde que Erosnão entre também, senão sairei logo.

Por isso que todos os devassos sãodespudorados.

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A LEBRE E A RAPOSA

A lebre perguntou à raposa:– Que é que levas no teu saco, ouro ou

mais uma peça? Pois teu nome significa lucromuito mais do que astúcia[1].

– Se queres saber – disse a raposa –, vematé minha casa, convido-te para jantar.

A lebre acompanhou a raposa até sua toca:lá, não havia nada para jantar a não ser a lebre.Esta declarou:

– Como aprendi com minha própriadesgraça, sei agora de onde vem teu nome: detua astúcia e não de teus lucros.

Curiosidade além da conta é fonte degrandes desgraças.

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[1]. A raposa às vezes é chamada em grego dekerdô, nome derivado de kerdos: “ganho, lucro;astúcia”.

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A GAIVOTA E O MILHAFRE

Uma gaivota se engasgara ao engolir umpeixe e jazia morta na areia. Ao vê-la, ummilhafre declarou:

– Bem mereceste teu destino, tu, quenasceste para os ares, fizeste do mar teudomínio.

Infeliz de quem adota costumes que lhesão alheios.

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A LEOA E A RAPOSA

Uma leoa disse à raposa que a reprovavapor só ter dado à luz um filhote:

– Um só, mas um leão!O bem deve ser medido não pela

quantidade, mas por seu valor .

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O VIAJANTE E A VERDADE

Num lugar deserto, um viajante encontrouuma mulher que estava sozinha e triste.

– Quem és tu? – perguntou ele.E ela:– A verdade.– E por que abandonaste a cidade dos

homens para viver nesta solidão?– Foi porque antigamente só poucas

pessoas mentiam; hoje a mentira está por todaparte.

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O ASNO E AS CIGARRAS

Um asno ouviu as cigarras cantando ecomeçou a ficar com inveja da doçura de seucanto: – O que é que vocês comem para ficarcom voz tão bela?

– Orvalho, responderam elas.O asno ficou esperando o orvalho e

morreu de fome.Não se ganha nada, a não ser grande

infelicidade, quando se deseja o que vai contraa própria natureza.

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A SERPENTE E O CARANGUEJO

Uma serpente e um caranguejo viviamjuntos. Quanto mais o caranguejo se mostravabom e cuidadoso, mais a serpente usava dacautela e da falsidade. O caranguejo, por maisque exortasse a serpente a se portar bem eimitar sua maneira de viver, não conseguiafazer o réptil ouvir nada.

No fim, já esgotado, o caranguejo esperouo momento em que a serpente dormia e,saltando em sua garganta, matou-a. Ao vê-lamorta, disse: – Quando te incentivava a seramiga, não quiseste, agora a morte o fez: aindapoderias estar viva!

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O CAÇADOR E A COTOVIA ESPERTA

Um caçador estava estendendo sua redepara pegar passarinhos. Uma cotovia esperta oviu de longe e perguntou-lhe o que estavafazendo.

– Estou fundando uma cidade – respondeuele.

Depois disso, ele se afastou e seescondeu. Confiando no homem, a cotovia seaproximou e foi pega na armadilha. Ao caçadorque vinha a seu encontro, ela disse: “Pois é,meu caro, se é assim que vais fundar tua cidade,podes crer que muita gente vai querer morarlá!”

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O CÃO E O PEDAÇO DE CARNE

Um cão atravessava um riacho com umpedaço de carne na boca. Quando viu seureflexo na água, pensou que fosse um outro cãocarregando um pedaço de carne ainda maior.Soltou então o pedaço que carregava e se jogouna água para pegar o outro. Resultado: nãoficou nem com um nem com outro, pois oprimeiro foi levado pela correnteza e osegundo não existia.

Cuidado com a cupidez.

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O LEÃO E O GOLFINHO

Um leão que perambulava por uma praiacruzou com o olhar de um golfinho. Logoconvidou-o a se juntar a ele.

– Eu e tu faremos uma dupla perfeita, poisreinaremos, tu sobre os animais marinhos, e eusobre os terrestres.

O golfinho aprovou com alegria essaidéia. Ora, o leão mantinha de longa data umaguerra contra um touro selvagem. Pediu então aajuda do golfinho. Mas este, por mais quetentasse sair da água, não conseguia, e o leãoacusou-o de traição. O golfinho respondeu: –Não me acuses, é minha natureza que me fazviver na água e não me permite pisar em terrafirme.

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Devemos escolher aliados que possamnos socorrer em hora de perigo.

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O LOBO E O CÃO

Ao ver um cão enorme preso por umacoleira, o lobo perguntou: – Quem te prendeu ete tratou tão bem?

– Um caçador – disse o cão. – Mas peça aDeus que te poupe tal destino: o peso dessacoleira me tira qualquer prazer.

É impossível ser feliz no infortúnio.

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A POMBA E A GRALHA

Uma pomba que vivia num pombalorgulhava-se de sua enorme prole. Uma gralhaouviu-a e lhe disse:

– Deixa de te vangloriar: quanto maisfilhos tiveres, mais lamentarás a escravidão emque viverás.

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OS DOIS SACOS

Quando Prometeu fez o homem, deu-lhedois sacos para carregar: um com os defeitosalheios, o outro com os defeitos próprios. Oshomens levam o primeiro na frente e o segundoatrás. Eis por que sempre estamos prontos a veros defeitos dos outros, mas nunca percebemosos nossos.

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O MACACO E OS PESCADORES

Do alto da árvore onde tinha subido, ummacaco viu alguns pescadores jogando suasredes no rio. Pôs-se a observar atentamentecomo eles faziam. Os pescadores tiraram entãoas redes e se afastaram para comer. O macacodesceu e quis imitá-los – os macacos são dadosà imitação. Mas, quando pegou as redes,enrolou-se de tal forma que quase se afogava.Fez então a seguinte reflexão: “Como eupoderia pescar sem nunca ter aprendido?”

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OS VIAJANTES E O MACHADO

Dois viajantes iam pela mesma estrada.Como um deles encontrou um machado, ooutro disse: – Fizemos um achado.

– Não diga “fizemos”, diga “fizeste” umachado – corrigiu o primeiro.

Pouco depois, apareceram os que tinhamperdido o machado. O que o carregava, ao sever perseguido, disse ao amigo: – Estamosperdidos.

– Não diga “estamos”, mas “estou”perdido – replicou o outro –, pois quandoencontraste o machado, não me incluíste.

Se nossos amigos não partilham de nossosuces-so, nos abandonarão quando cairmos emdesgraça.

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A GRALHA E OS PÁSSAROS

Zeus tinha decidido: iria escolher um reipara os pássaros. No dia marcado, todoscompareceriam diante dele e o mais belo seriao eleito. Os pássaros foram então ao rio tomarbanho. A gralha, ao se ver tão feia, recolheu asplumas caídas dos outros pássaros e cobriu-secom elas colando-as firmemente. Assim, foiela que ficou com a melhor aparência. Quandochegou o dia marcado, todos os pássaroscompareceram diante de Zeus. A gralhatambém foi, toda coberta de plumas variadas.Quando a mão de Zeus já ia apontá-la comorainha – tal era a sua beleza –, cada um dospássaros, indignados, arrancou-lhe a pena quelhe pertencia. Ficando sem os adornos, a gralha

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voltou ao que era.Ao tomar emprestado o dinheiro dos

outros, o devedor se dá ares de rico; aodevolvê-lo, volta ao que era antes.

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A MULHER E A GALINHA

Uma viúva tinha uma galinha que punha umovo todo dia. “Dando-lhe um pouco mais decevada, ela porá dois”, disse ela. Mas deu-lhetanta cevada que a galinha ficou entupida e nãoconseguia pôr nem mais uma vez por dia.

Por querer sempre mais, perdes até o quejá tens.

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A FEITICEIRA

Uma feiticeira dizia que era capaz desortilégios que acalmavam a ira dos deuses.Nunca estava sem trabalho e conseguia assimuma boa renda. Mas, acusada de praticar rituaisnovos, foi julgada pela justiça e condenada àmorte. Ao vê-la sair escoltada do tribunal, umsujeito matreiro lhe disse: “E então? Tu, que tevangloriavas de desviar a ira dos deuses, nãofoste capaz de persuadir os homens?”

Que a vergonha destrua todas as falsasvidentes. Prometem mundos e fundos etropeçam numa dificuldade bem tola.

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O CAÇADOR E A PERDIZ

Era uma vez um caçador que recebeu avisita de um hóspede numa hora bem avançada.Sem ter nada o que oferecer ao visitante, foiaté a perdiz que criava e já ia sacrificá-laquando esta lhe disse: – Seu ingrato! Não soueu que te sirvo de chamariz para as minhasirmãs e ainda queres me matar?

Ele respondeu:– Eis uma razão a mais para te imolar,

pois não poupas nem teus semelhantes.Quando traímos os nossos, despertamos o

ódio dos que foram traídos e daqueles para osquais traímos.

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A GALINHA E A ANDORINHA

Uma galinha que havia encontrado ovos deserpente, chocou-os cuidadosamente até o diafinal. Uma andorinha que a vira fazer aquilodisse-lhe: – Tu és doida! Para que criar seresque quando crescerem farão de ti a primeiravítima?

Não se pode esperar nenhuma bondadedas pessoas perversas.

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O CAÇADOR MEDROSO E O LENHADOR

Um caçador procurava o rastro de umleão. Per-guntou então a um lenhador: – Se osenhor visse o rastro da fera saberia dizer ondeela mora?

– Vou te mostrar o animal – respondeu olenhador.

Pálido de medo e batendo os dentes, ocaçador exclamou:

– Não estou procurando o leão, estouprocurando seu rastro.

Assim é o medroso metido a valente: só éauda-cioso nas idéias.

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O PORCO E OS CARNEIROS

Um porco tinha se misturado a umrebanho de carneiros e pastava com eles. Umdia o pastor o pegou. Como ele gritasse eresistisse, os carneiros o repreenderam: – Nósficamos berrando quando ele nos pega?

O porco replicou:– Questão de detalhe. Quando ele corre

atrás de vocês, é porque quer sua lã ou seuleite, mas de mim ele quer a carne.

Reclamas com razão quando querem tirarnão teus bens, mas tua vida.

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A ÁGUIA E O ESCARAVELHO

Uma lebre estava sendo perseguida poruma águia. Em seu desespero, foi obrigada apedir ajuda ao único animal que lhe apareceu:um escaravelho. Este tranqüilizou-a, e disse àaguia que se aproximava: “Por favor, poupa meusuplicante”. Mas a águia, que não tinha senãodesprezo pelo diminuto escaravelho, devorou alebre diante de seus olhos. Desde então, cheiode rancor, o escaravelho não parava de ficarespiando a águia. Quando ela punha os ovos, eleia até o ninho e empurrava-os para quebrá-los.Não sabendo mais o que fazer, a águia foi atéZeus, seu protetor juramentado, e lhe pediu umlugar seguro para fazer seu ninho. Zeuspermitiu que ela pusesse os ovos nas dobras de

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sua veste. Mas nem isso havia escapado aoescaravelho: ele fez uma bolinha com seu cocôe voou. Ao sobrevoar o regaço de Zeus, deixoucair a bolinha. E Zeus, ao se erguer para selivrar do cocô, esquecido dos ovos, deixou-oscair no chão. Diz-se que, desde então, as águiasnão fazem mais seu ninho na estação dosescaravelhos.

Não há fraco que, ultrajado, não tenha umdia força para se vingar: quem os olha do alto,cuidado!

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O CAMELO QUE DANÇAVA

O camelo dizia a seu dono que o obrigavaa dançar: “Se já sou todo desajeitado quandoando, imagine quando danço...”.

Isto se aplica a tudo o que foge ao seunatural.

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OS GALOS E A PERDIZ

Um criador de galos viu na feira umaperdiz à venda. Comprou-a e levou-a para casapara criar junto com os galos. Mas estes arejeitaram dando-lhe bicadas, e a perdiz,despeitada, pensava que o desprezo deles eraporque ela tinha outra origem. Pouco depois,vendo dois galos se engalfinharem até tirarsangue, ela se disse: – Pois bem, não tenhomais com que me preocupar ao ser ferida poresses dois que não poupam nem a si mesmos.

O homem sensato suporta maisfacilmente os agravos do outro quando vê queeste não poupa nem os seus próximos.

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OS PESCADORES E O ATUM

Alguns homens foram à pesca e, apesar detodos os longos e terríveis esforços, nãoconseguiram pescar nada. Estavam sentados,desanimados, em sua barca, quando um atum,sem querer, pulou dentro, correndo de umpescador. Eles o capturaram, levaram-no paracasa e o venderam.

Assim, muitas vezes, o acaso nos dá o quecom nosso trabalho não conseguimos.

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A RAPOSA E O CÃO

Uma raposa se misturou a um rebanho deovelhas. Pegou um carneirinho que aindamamava e fingiu que o acalentava. Um cão lheperguntou:

– Que estás fazendo?– Estou fazendo um carinhozinho nele,

disse a raposa.– Se não largares já já – disse o cão –, sou

eu que vou te acalentar.

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O NÁUFRAGO

Um rico ateniense navegava com outrospassageiros. Veio uma forte tempestade: obarco virou. Enquanto todos os seuscompanheiros lutavam nadando contra as ondas,o ateniense não parava de invocar Atena,prometendo-lhe uma oferenda atrás da outra seela o salvasse. Um dos náufragos, que nadava aseu lado, disse-lhe: – Convoca Atena e tambémteus braços.

Ao procurar socorro convocando osdeuses, é bom também fazermos nossa parte.

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A VÍBORA E A LIMA

Uma víbora entrou no ateliê de umferreiro e pediu um favor às ferramentas. Ela oconseguiu. Restou a lima, que respondeu assimao seu pedido: – Tu és bem ingênua ao pensarque vais conseguir algo de mim; tenho porhábito não dar, mas tomar.

Tolo quem pensa que vai conseguir tiraralguma coisa do avarento.

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O CÃO E A RAPOSA

Um cão de caça viu um leão e se lançouno seu encalço. Mas o leão se voltou e pôs-se arugir. Assustado, o cão deu uma meia-volta efoi embora. Uma raposa, vendo-o fazer aquilo,disse-lhe: – Pobre cão! Perseguias um leão e teassustas com um simples rugido?

O presunçoso que quer ir além de suasforças treme logo diante de alguém que lheresista.

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O MOSQUITO E O LEÃO

O mosquito foi dizer ao leão:– Não tenho medo de ti, não és mais forte

que eu. És mesmo forte? Arranhas com asunhas e mordes com os dentes; mas umamulher faz o mesmo quando briga com omarido. Eu sou muito mais forte que tu.Enfrentemo-nos, se quiseres.

E, zumbindo, o mosquito se pôs a picar oleão no focinho, onde não há pêlo. O leão ficoutão machucado que terminou por entregar asarmas. O mosquito deu-se como vencedor e foiembora. Mas caiu numa teia de aranha e,enquanto esta o engolia, ele se lamentava:

– Eu, que fiz a guerra contra os maiorais,como fui morrer entre as patas de uma vulgar

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aranha?

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O LOBO E A VELHA

Um lobo faminto estava atrás do quecomer quando ouviu uma velha dizer a umacriança que chorava: – Pára de chorar, senãovou te entregar ao lobo.

O lobo acreditou que a velha falava sério;parou e ficou à espera. Bem mais tarde, quandocaiu a noite, ele ouviu de novo a velha falar. Elaacalentava o bebê e dizia: – Se o lobo vier,queridinho, nós o mataremos.

Ouvindo isso, o lobo se foi dizendo:– Neste casebre, dizem uma coisa e fazem

outra.Muitos homens fazem o mesmo.

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O VIAJANTE E HERMES

Um homem que estava fazendo uma longaviagem fez uma promessa: se encontrassealguma coisa, ofereceria a metade a Hermes.Foi quando caiu sobre um saco cheio deamêndoas e de tâmaras e, acreditando que setratava de dinheiro, pegou-o. Quando o sacudiu,viu o que continha e comeu tudo. Depois,pegou as cascas e os caroços e depositou-os noaltar declarando: – Aceita, Hermes, minhaoferenda. Reservei para ti uma parte do meuachado: metade da parte de fora, metade daparte de dentro.

Há avaros cuja cupidez consegue enganaraté os deuses.

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A RAPOSA COMILONA

Uma raposa que estava morrendo de fomeviu que alguns pastores haviam deixado pão ecarne no oco de uma árvore. Sorrateiramente,foi lá e comeu tudo. Como a barriga cresceu eela ficou presa no buraco, gemia e selamentava. Uma outra raposa que passava porperto ouviu-a se lamentando e perguntou porquê. Quando soube o que tinha acontecido,disse-lhe: – Paciência! Quando voltares ao queeras antes, sairás facilmente.

O tempo resolve as dificuldades.

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AS RÃS VIZINHAS

Duas rãs eram vizinhas. Uma morava numaçude profundo, afastado da estrada, e a outranuma pequena poça d’água, por onde todospassavam.

– Queres um conselho? – perguntou a rãdo açu-de à outra. – Vem morar comigo. Terásuma vida agradável, longe do perigo.

Mas a outra não se deixou levar:– Sofrerei – disse ela –, longe de meus

hábitos.Um dia ela terminou sendo esmagada

pelas rodas de uma carroça.Assim acontece com os que, preocupados

com ninharias, morrem antes de ter feito algoimportante.

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OS LENHADORES E O PINHEIRO

Alguns lenhadores estavam cortando umpinheiro: tarefa fácil para eles, já que usavamcunhas feitas da mesma madeira. “Tenho menosraiva do machado”, dizia o pinheiro, “que dascunhas feitas com minha madeira.”

Nossa infelicidade parece maior quandoinfli-gida por pessoas que nos são próximas.

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O PINHEIRO E A SARÇA

Um pinheiro e uma sarça estavambrigando. O pinheiro se vangloriava: – Soubelo, imponente e altivo, sirvo para fazer o tetodos templos e os barcos: como queres tecomparar a mim?

Ao que a sarça respondeu:– Se te lembrares dos machados e das

serras que te cortam, preferirás meu destino aoteu.

Vida simples, vida segura.

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O CERVO E O LEÃO

Um cervo premido pela sede foi atrás deuma fonte. Ao se abeberar, viu seu reflexo naágua. Ao mesmo tempo que tinha orgulho doschifres que se esgalhavam, mortificava-se comas pernas finas e frágeis. Ao ver surgir um leão,parou de pensar. A perseguição começou. Ocervo levou vantagem por se distanciar muitodo leão, pois a força dos cervos está nas pernase a dos leões no coração. Enquanto estava emcampo aberto, o cervo manteve uma distânciasalvadora. Mas, ao entrar num bosque, oschifres se emaranharam nos galhos das árvores:interrompida a fuga, ele caiu nas garras do leão.Quando estava morrendo, disse a si mesmo: –Pobre de mim! Eu achava que minhas pernas

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me atrapalhavam e foram elas que me salvaram;acreditava em meus chifres e eles me traíram.

Assim acontece muitas vezes, quando operigo nos ronda. O amigo em quem nãoacreditávamos nos salva, e aquele com quemcontávamos nos trai.

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A CORSA E A VINHA

Uma corsa que estava sendo perseguidaescondeu-se numa vinha. Ao ver que osperseguidores estavam indo embora, ela achouque estava livre e se pôs a comer a parreira.Ouvindo o ruído das folhas, os caçadoresvoltaram. Viram logo que o animal esta-vaescondido ali atrás e a mataram com doisgolpes.

– Castigo merecido – disse a corsa aomorrer. – Não podia ter feito o mal a quem mehavia salvado.

Os deuses punem quem faz o mal a seubenfeitor.

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O ASNO, O CORVO E O LOBO

Um asno que sofria de uma ferida nascostas pastava num campo. Um corvo pousousobre ele e começou a bicar-lhe a ferida. Oasno, presa da dor, pôs-se a pular e a urrar. Issoprovocou risadas em seu dono. Um lobo quepassava por perto praguejou: “Nós, pobres-diabos, mal nos vêem, e já começa aperseguição; já seres como esse corvoprovocam risinhos quando se aproximam”.

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A VESPA E A SERPENTE

Uma vespa havia pousado na cabeça deuma serpente e a atormentava com suas picadasincessantes. A serpente, que se torcia de dorsem poder se defender, pôs a cabeça sob a rodade uma carroça levando consigo a vespa.

Que eu morra, desde que meu inimigomorra também.

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O TOURO E AS CABRAS SELVAGENS

Perseguido por um leão, um touro serefugiou numa gruta onde estavam algumascabras selvagens. Elas se puseram a dar-lhechifradas.

– Se eu suporto seus golpes – disse-lheso touro –, é porque tenho medo, não de vocês,mas daquele que está na entrada da gruta.

O medo de um grande mal nos ajuda asuportar um mal menor.

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O PAVÃO E A GRUA

O pavão zombava da grua por causa da corde sua plumagem:

– Minha roupa é de ouro e púrpura, já atua plumagem não tem nenhuma beleza.

– Só eu – respondeu a grua –, canto entreas estrelas, e meu vôo me leva às alturas; tu,igual a um galo, caminhas pela terra como agalinhada.

Melhor a glória em andrajos que adesonra no fausto.

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A FORMIGA E A POMBA

Uma formiga sedenta foi até uma fonte.Mas a corrente a levou e ela já ia se afogandoquando uma pomba a percebeu. A ave cortouum galhinho de uma árvore e o lançou na água.A formiga subiu e se salvou. Pouco depois,veio um caçador: ele estava espalhando viscopara pegar a pomba. A formiga, vendo-o fazeraquilo, mordeu-lhe o pé. Gritando de dor, ocaçador deixou cair o visco e assustou apomba, que voou.

Imitemos a formiga, saibamos retribuir obem.

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A OVELHA TOSQUIADA

Uma ovelha disse ao inábil barbeiro que atosava:

– Se é minha lã que tu queres, cortamenos fundo; se é minha carne, mata-me deuma vez por todas em vez de me torturar compequenos golpes de tesoura.

Cuidado com os maus artesãos.

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O RATO DO CAMPO E O RATO DACIDADE

Um rato do campo convidou um rato dacidade para jantar. Serviu-lhe produtos docampo: figo, uva e castanhas. Ao ver a pobrezade seu anfitrião, o rato da cidade convidou-opara ir viver com ele. Tendo-o levado para oceleiro de um homem rico, ofereceu-lhe todotipo de carne, de peixe e até mesmo doces.Nisso, apareceu o fiscal. Os ratos,desnorteados, fugiram na hora. O rato docampo disse então ao rato da cidade:

– É assim, com todo esse medo, queconsegues teu alimento; eu tenho o prazer deconseguir o meu livremente e tranqüilo.

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OS FILHOS DO CAMPONÊS

A discórdia reinava entre os filhos de umcamponês. Em vão, ele os exortava a mudar decomportamento; suas palavras não produziamnenhum efeito. Foi por isso que decidiu dar-lhes uma lição na hora:

– Tragam-me – disse ele – um feixe degravetos.

Os meninos foram buscar. O camponêspegou os gravetos e os uniu num feixecompacto e pediu que eles o partissem. Apesarde toda a força que botaram, não conseguiram.O pai então desfez o feixe e deu a cada umdeles um graveto. As crianças os quebraramcom facilidade.

– Vejam, meus filhos, o mesmo acontece

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com vocês: se forem unidos, não temerão seusinimigos, mas, se continuarem na discórdia,cairão na mão deles.

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A MULHER E SEU MARIDO

Uma mulher se casara com um beberrão.Ela pensou então numa forma de acabar com ovício dele. Esperou que, entorpecido pelabebida, ele caísse igual a um morto.Carregando-o nos ombros, levou-o até ocemitério, deixou-o no chão e se foi. Quandoachou que ele já tinha voltado ao normal, elavoltou e bateu à porta do cemitério. Quando eleperguntou “quem é?”, ela respondeu: – É amulher que traz comida para os mortos.

O marido disse então:– Por favor, não me dê comida, prefiro

bebida. A senhora me faz sofrer se falar decomida e não de bebida.

Ouvindo isso, a mulher exclamou batendo

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no peito:– Pobre de mim! Meu estratagema não

serviu para nada. Em vez de te corrigir,chegaste ao ponto em que o vício se transformanuma segunda natureza.

Cuida de cortar o vício antes que ele tetransforme em escravo.

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HERMES E OS ARTESÃOS

Zeus havia obrigado Hermes a dar a todosos artesãos o veneno da mentira. Hermespreparou a mistura e espalhou-a igualmente portoda parte. Quando foi a vez de dá-la aosapateiro, ainda restava uma boa quantidade nofundo do pote. É por isso que, de todos osartesãos, o sapateiro é o mais mentiroso.

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O CÃO E A LEBRE

Um cão tinha pego uma lebre e ora amordia, ora lhe lambia os beiços. A lebre lhedeu então um ultimato: – Vamos. Decide-te.Ou o carinho ou a morte. Quero saber comquem estou lidando, se amigo ou inimigo.

Isto se aplica a quem tem comportamentoambíguo.

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O LEÃO, PROMETEU E O ELEFANTE

Freqüentemente, o leão se queixava aPrometeu:

– Me fizeste grande e belo; me destedentes afiados e garras; fizeste de mim o maisforte de todos os animais. E, apesar disso,tenho medo do galo.

Prometeu respondia:– O que significam essas tolas

reclamações? Tens tudo o que eu, com meupoder, podia te dar. Salvo o galo, nada abala atua coragem.

Mas o leão chorava o seu destino e seacusava de fraco. Terminou desejando morrer.Estava assim perdido em seus pensamentosquando encontrou o elefante. Saudou-o e, tendo

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parado para falar com ele, observou omovimento que lhe agitava as orelhas semparar.

– O que tens? – perguntou. – Tuas orelhasnão podem ficar um instante paradas?

E, como um mosquito não parava de voarà sua volta, o elefante respondeu:

– Estás vendo esse ser minúsculo quezumbe? Se entrar em minha orelha, estoumorto.

O leão disse então:– Por que morrer, se, para minha

felicidade, minha força está para o elefanteassim como o galo está para o mosquito!

O mosquito é bastante forte para abalar oelefante.

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O CAÇADOR E A CEGONHA

Um caçador tinha estendido a rede parapegar umas gruas e se escondeu enquantoesperava as presas. Ora, quando viu que entre asgruas havia uma cegonha, ele correu e acapturou também. Como a cegonha pediu paraser solta, alegando que, além de não prejudicarninguém, ainda era útil comendo as serpentes eoutros répteis, o caçador respondeu: “Mesmoque eu não tenha nada contra ti, não deixas demerecer um castigo por teres te misturado aosmaus”.

Não é bom nos juntarmos aos maus paranão dar a impressão de que participamos desuas maldades.

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A PORCA E A CADELA

Uma porca e uma cadela discutiam paraver qual a melhor parideira. A cadela achava queera ela porque, entre todos os quadrúpedes, eraquem paria mais rápido. “Ora”, retrucou aporca, “mas teus filhotes vêm ao mundo cegos,de olhos fechados.”

A pressa é inimiga da perfeição.

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O LEÃO COM RAIVA E O CERVO

Um leão pegou a doença da raiva. Umcervo que o vira ao sair da floresta exclamou:“Pobres de nós! Se lúcido ele já erainsuportável, o que não fará tomado de furor?”

Fujamos dos poderosos exaltados e quecom-pactuam com a injustiça.

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O CAVALEIRO CARECA

Um cavaleiro careca, e que usava peruca,cavalgava num descampado. Veio umatempestade e arrancou-lhe a cabeleira postiça,o que provocou risos em seus companheiros. Ocavaleiro, então, freando seu cavalo, disse-lhes:“Não vejo nada demais em ter perdido estescabelos, já que eles tinham abandonado antes acabeça em que nasceram”.

Aconteceu uma desgraça? Não tepreocupes. O que não nos foi dado de berçonão será nosso por muito tempo. Nus viemos,nus voltaremos.

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O AVARENTO

Um avarento juntou tudo o que tinha etransformou numa barra de ouro que enterrouem seu jardim: com ele enterrou também suaalma e todos os seus pensamentos. E desdeentão, diariamente, ia inspecionar seu tesouro.Um de seus empregados, observando aquelevaivém, viu logo de que se tratava; desenterroua barra de ouro e levou-a. Pouco depois, oavarento foi fazer sua inspeção. Quando viu oburaco vazio, começou a se lamentar e aarrancar os cabelos. Vendo-o nesse estado, umtranseunte perguntou o que tinha acontecido e,compreendendo o que afligia o avarento, disse-lhe: “Por que ficar assim tão desolado? Tinhaso ouro e ao mesmo tempo não o tinhas. Basta

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pôr uma pedra no lugar onde estava a barra deouro e imaginar que ele está lá. Pelo que vejo,mesmo quando o ouro estava lá, não fazias usodele”.

Ter bens e não usufruí-los é o mesmo quenão ter.

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O FERREIRO E O CÃOZINHO

Era um vez um ferreiro que tinha um cão.Enquanto o dono estava na forja, o cão dormia;quando ia comer, o cão ficava a seu lado. Umdia, ao jogar-lhe um osso, o ferreiro disse: –Seu maldito dorminhoco! Enquanto estoumalhando o ferro, estás dormindo; mas quandomeus dentes estão mastigando, logo acordas.

Assim fazem os malandros que vivem dotrabalho alheio.

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O INVERNO E A PRIMAVERA

O inverno estava ralhando com aprimavera e a enchia de reprovações:

– Mal tu apareces, ninguém fica parado;este vai pelos campos e florestas para colher asflores que ama, lírios ou rosas, para admirá-lasou pô-las no cabelo; aquele outro pega umbarco, atravessa o mar e, se for possível, vaivisitar outros países. Ninguém se preocupamais com o vento ou a chuva. Eu, ao contrário,pareço um chefe a quem se obedece semreclamar: a uma ordem minha, os olharesvoltam-se do céu para a terra; inspiro medo ehorror, e as pessoas se dão por felizes porterem de ficar em casa dias e dias quando assimdecido.

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A primavera disse:– Por Zeus! É por isso que os homens

gosta-riam de se livrar de ti, enquanto só o meunome lhes parece bonito, quando não o maisbelo de todos, de modo que se lembram demim quando desapareço e ficam felizes quandoretorno.

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A ANDORINHA E A SERPENTE

Uma andorinha tinha feito seu ninhodentro de um tribunal. Tendo se ausentado, umaserpente foi até o ninho e devorou-lhe osfilhotes. Quando voltou e viu o ninho vazio,aterrada pela dor, pôs-se a chorar. Umaandorinha amiga tentou consolá-la, dizendo-lheque ela não era a única a quem acontecia taldesgraça. Mas a mãe desconsolada respondeu:– O que me aflige é menos a perda de meusfilhos que o fato de ser vítima desse crime numlugar em que os ultrajados geralmente sãoassistidos.

Nossa infelicidade é tanto maior quandovem de onde não esperamos.

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OS VIAJANTES E O PLÁTANO

Meio-dia, pleno verão. Dois viajantes,cansados pelo calor, avistam um plátano. Ao seaproximarem, deitam-se para tirar um soneca àsua sombra. Observando a árvore, um diz para ooutro: – Eis uma árvore estéril sem nenhumautilidade para os homens.

O plátano os interrompeu:– Ingratos! É justamente quando vocês

aproveitam de minha sombra que me chamamde inútil e de estéril.

Assim é o destino de alguns: são vistoscomo inúteis mesmo quando prodigalizam seusbenefícios.

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O LOBO E O LEÃO

Um dia, um lobo roubou um cordeiro.Estava levando-o para o covil, quando veio umleão e roubou sua presa. O lobo tomou certadistância e gritou: – Bandido, roubaste o queera meu!

O leão pôs-se a rir:– E por acaso tinha sido presente de

algum amigo teu?Assim se acusam mutuamente bandidos e

ladrões insaciáveis quando surpreendidos pelasadversidades.

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O MÉDICO E O DOENTE

Um médico cujo paciente morrera disseaos que o carregavam para o cemitério:

– Ali vai um que, se tivesse largado abebida e tomado lavagens, não teria morrido.

Alguém replicou:– Excelência, de que serve falar isso se

não não tem mais jeito? O senhor devia ter ditoisso quando ele podia ainda ouvir seusconselhos.

Ajudemos nossos amigos quando elesprecisam, em vez de ironizá-los quando não hámais jeito.

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O MILHAFRE E A SERPENTE

Um milhafre raptou uma serpente e vooubem alto. Mas a serpente ficou se contorcendoe terminou picando seu raptor. O pássaro caiumorto no chão. A serpente disse então: – Quemosca te mordeu para fazer mal a quem não teprejudicava em nada?

Quem pretende se apoderar dos maisfracos, quando encontra um mais forte, pagapor todos os males que causou.

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O CÃO DORMINHOCO E O LOBO

Como estava dormindo à porta de umestábulo, um cão foi surpreendido por um loboque se lançou sobre ele, pronto para devorá-lo.Mas o cão lhe pediu para adiar o sacrifício:

– Agora – disse ele – estou raquítico edoente. Mas espera um pouco, meus donosestão para comemorar suas núpcias: comereimuito e, bem gordo, serei para ti um pratodelicioso.

O lobo acreditou nele e se foi. Algunsanos depois, ele voltou e viu que o cão estavadormindo no andar de cima da casa. De baixo,ele o chamou:

– Lembras de mim – disse ele –, daquiloque combinamos.

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O cão então falou:– Ô seu lobo, quando me vires de agora

em diante dormir diante do estábulo, nãoesperes mais as núpcias.

Uma vez salvo do perigo, o homemsensato se previne para sempre.

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A SERPENTE PISOTEADA

Uma serpente que era freqüentementepisoteada foi pedir a Zeus que a ajudasse. Zeuslhe respondeu:

– Se tivesses mordido o primeiro que tepisou, um segundo não teria feito o mesmo.

Se enfrentares os primeiros que teatacam, os outros te temerão.

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O MENINO E AS TRIPAS

Os camponeses tinham sacrificado umacabra e convidaram pessoas da vizinhança paraum banquete. Entre elas havia uma mulherhumilde acompanhada do filho. A festançaestava bem adiantada quando o menino, quetinha se empanturrado de carne, queixou-se àmãe: – Mamãe, vomitei minhas tripas.

– Não vomitaste as tuas, mas as quecomeste.

O mesmo acontece com o devedorsempre pronto a pegar o dinheiro alheio;quando se trata de devolvê-lo, sofre como sefosse devolver o que era seu.

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O CAMELO VISTO PELA PRIMEIRA VEZ

A primeira vez em que viram um camelo,os homens fugiram assustados com o tamanhodo animal. Mas quando, com o tempo,constataram que ele era dócil, fizeram tudopara se aproximar dele. Depois, dando-se contade que ele não se aborrecia, começaram a tratá-lo com descaso a ponto de lhe colocar umcabresto e deixar que as crianças oconduzissem.

O hábito faz arrefecer o medo.

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DOIS ESCARAVELHOS

Numa pequena ilha, pastava um touro cujoesterco alimentava dois escaravelhos. Quandochegou o inverno, um disse ao outro:

– Estou pensando em voar até terra firme;assim, terás aqui com que te alimentarconvenientemente. Quando a mim, passarei oinverno nesse outro lugar e, se encontraralimento em quantidade, venho te buscar.

Uma vez no continente, encontrou umaboa quantidade de esterco fresquinho. Comeu eficou por ali mesmo. Na primavera, voltou àilha. Ao vê-lo gordo e com boa cara, seucompanheiro repreendeu-o por não lhe tertrazido nada:

– Tu me tinhas prometido.

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– Não é culpa minha – respondeu o outro–, mas da natureza: lá tem o que se comer, masnunca em grande quantidade.

Assim acontece com algumas pessoas.Sua amizade vai até oferecer uma refeição, masnão passam disso.

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O CARANGUEJO E A RAPOSA

Um caranguejo saiu do mar e ficou alipela praia, sozinho, à procura de alimento.Nisso, uma raposa faminta o viu. Como nãotinha outra coisa para comer, se lançou sobre ocaranguejo. Quanto estava para ser devorado, ocaranguejo exclamou: – Bem empregado, quemme mandou, eu, um animal marinho, quererpassar por um animal da terra.

Triste de quem se lança em negócios quenada têm a ver com seus hábitos.

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O LAGOSTIM E SUA MÃE

– Não andes de lado – dizia a mamãe-lagostim a seu filho –, pára de roçar as costasnas rochas úmidas.

– Mas, mamãe, aprendi com você: andedireito, que também andarei.

Quem quer consertar os outros deveprimeiro se consertar.

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UMA NOGUEIRA

Uma nogueira, que crescia à beira de umaestrada e que era alvo das pedradas dostranseuntes, queixava-se para si mesma: –Pobre de mim, que todo ano sou vítima deultrajes e sofrimentos!

Assim são os que, por causa de seuspróprios bens, estão expostos a todo tipo dedesgosto.

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O CASTOR

O castor é um animal de quatro patas quevive nos pântanos. Dizem que seus órgãossexuais servem para fazer remédio. Quando oscaçadores o descobrem, capturam-no para lhosextirpar. Sabendo disso, ele foge a todavelocidade para se conservar inteiro. Quandoacontece de ser capturado, ele mesmo decepaseus órgãos, abandona-os e salva assim suavida.

Olha com certo desdém quem põe o olhoem tua riqueza a fim de salvar tua vida.

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O ASNO E O CÃOZINHO

Um homem que tinha um cão de Malta eum asno passava o tempo brincando com oprimeiro. Quando ia jantar fora, trazia umpedaço de carne e o dava ao animal, que vinhabalançando o rabo. Um dia, tocado pela inveja,o asno foi ao encontro do dono e, querendopular igual ao cão, terminou dando-lhe umcoice. Furioso, o dono deu-lhe uma surra eordenou que o amarrassem a um poste.

A cada qual sua maneira de ser.

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A GRALHA E A ANDORINHA

A andorinha dizia à gralha:– Eu sou virgem e ateniense, princesa e

filha do rei de Atenas.E pôs-se a contar sua história: Tereus,

suas sevícias, e o episódio da língua cortada[1].A gralha disse então:

– O que não ouviríamos se tivesses língua,por-que mesmo sem ela ainda nos conta tantashistórias!

De tanto mentir, os loroteiros terminamse denunciando.

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[1]. Alusão à lenda das irmãs Filomela eProcne. Um dia, Tereus, o marido de Procne,violentou a cunhada Filomela e depois lhecortou a língua para que ela não pudesse ficarse lamentando. Filomela, no entanto, bordousua história num pedaço de pano que deu àirmã. Esta decidiu se vingar de Tereus, matou ofilho que tivera com ele e deu-lhe para comer.Quando Tereus descobriu a verdade, quis puniras duas irmãs. Os deuses tiveram então piedadedelas e transformaram uma numa andorinha e aoutra num rouxinol.

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A ÁGUIA E A TARTARUGA

Uma tartaruga pediu a uma águia que aensinasse a voar. Por mais que a águia lhedissesse que ela não fora feita para isso, elanão desistia. A águia pegou-a então entre asgarras e, voando bem alto, soltou-a das alturas.A tartaruga terminou se espatifando nosrochedos.

É assim que termina o insensato quandoquer ser melhor do que o outro.

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O RIO E O COURO DE BOI

Um rio, cuja correnteza arrastava umcouro de boi, perguntou-lhe como se chamava.

– Eu me chamo dureza – respondeu ocouro.

O rio, então, arremessando-se contra elecom toda a sua fúria, disse: – Procura um outronome, porque daqui a pouco estarás bemmolinho.

O infortúnio existe para dobrar os que nãose vergam.

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DIÓGENES E O HOMEM DO RIO

Durante uma viagem, Diógenes, o cínico,parou diante da correnteza de um rio. E ficouali na margem, sem saber o que fazer, quandoum homem que tinha o hábito de atravessar aspessoas, vendo-o indeciso, aproximou-se e,com sua bondade, colocou-o nos ombros paralevá-lo à outra margem. Diógenes ficouconstrangido por ser muito pobre e não tercomo pagar-lhe. Estava assim absorto em seuspensamentos quando o homem, vendo um outroviajante com as mesmas dificuldades paraatravessar o rio, correu até ele e ajudou-o apassar. Diógenes se aproximou dele e disse-lhe: – Pelo que vejo, não posso lhe seragradecido, pois o que fazes é antes fruto de

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uma mania que de um discernimento.Quando prestas serviço tanto às pessoas

honestas quanto aos néscios, terminas sendovisto não como um homem de boa vontade mascomo um imbecil.

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OS CARVALHOS E ZEUS

Os carvalhos acusavam Zeus:– De que adiantou nos dar a vida? Estamos

muito mais expostos a morrer sob o machadoque as outras árvores.

Zeus disse então:– Vocês mesmos são os responsáveis por

sua desgraça: se não produzissem os cabos domachado e não fossem úteis aos carpinteirosnem aos camponeses, não seriam abatidos.

Insensato! Não acuses os deuses pelosmales por que és responsável.

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A RAPOSA E O LENHADOR

Uma raposa estava fugindo dos caçadores.Ao ver um lenhador, suplicou-lhe umesconderijo. O lenhador convidou-a a seesconder em sua cabana. Os caçadores nãotardaram a chegar e perguntaram ao lenhador senão tinha visto passar uma raposa. Ele disse quenão com a voz, mas apontou-lhes com o dedoonde ela estava escondida. Os caçadores nãolevaram o gesto em consideração, prestandoatenção somente no que ele falara. Ao vê-los seafastar, a raposa saiu sem dizer uma palavra. Olenhador repreendeu-a: – Veja só! Não tensnem mesmo uma palavra de agradecimento paraquem te salvou?

A raposa respondeu:

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– Eu diria obrigado se tuas palavrasestivessem de acordo com teus gestos.

Só quem pensa em fazer o mal é quechama a atenção sobre suas virtudes.

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O MEDROSO E OS CORVOS

Um rapaz medroso foi para a guerra. Aoouvir o crocitar dos corvos, ele colocou asarmas no chão e ficou completamente imóvel.Depois as retomou e foi embora. Os corvoscrocitaram de novo, ele parou e disse: – Nãoadianta vocês ficarem me agourando. Não lhesdarei o prazer de saborear a minha carne.

Assim é o medroso.

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A GRALHA E AS POMBAS

Uma gralha viu num pombal umas pombasbem gordinhas. Pintou então as plumas debranco e se foi para o meio delas. Enquantoficou calada, as pombas, tomando-a como umairmã, ficaram admirando-a. Mas, ao primeirogrito que ela deu sem querer, nãoreconheceram sua voz e a expulsaram. Ao verque não ia poder comer o alimento das pombas,a gralha voltou para os seus. Quando chegou lá,não conseguiu ser reconhecida por causa da core foi expulsa. Assim, não realizou nem um deseus dois desejos.

Contentemo-nos com nossos própriosbens. A cobiça não leva a nada, a não ser aperder muitas vezes o que já possuímos.

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O JAVALI, O CAVALO E O CAÇADOR

Um cavalo e um javali pastavam nomesmo campo. Como o javali destruísse ocapim e sujasse sua água, o cavalo pediu a umcaçador para acabar com ele: – Eu te ajudarei –disse o caçador –, desde que eu te ponha umcabresto e monte em ti.

– Certo – disse o cavalo.Foi assim que o caçador montou no

cavalo e deu cabo do javali; depois, levou ocavalo para casa e o prendeu no estábulo.

Algumas pessoas sacrificam a próprialiberdade para se vingar dos outros.

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O EUNUCO E O PADRE

Um eunuco foi procurar um padre epediu-lhe para fazer um sacrifício em seu favorpara que ele pudesse ser pai.

– Quando vejo a oferenda para osacrifício – disse-lhe o padre –, rezo para quete tornes pai, mas quando vejo como és feito,tenho dificuldade de acreditar que és umhomem.

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DOIS INIMIGOS

Dois inimigos mortais iam no mesmobarco. Um ia na popa, o outro na proa. Veiouma tempestade. Como o barco estava paranaufragar, o que estava na popa perguntou aopiloto por onde o barco começaria a afundar.

– Pela proa – respondeu.– Está ótimo – disse o outro –, a morte

para mim não tem nada de triste se euconseguir ver meu inimigo morrer antes demim.

Pouco nos importam os dissaboresquando a desgraça fere nossos inimigos.

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A VÍBORA E A RAPOSA

Uma víbora estava sendo levada pelacorrenteza de um rio sobre um feixe deespinhos. Ao vê-la, a raposa que passava lhedisse:

– O piloto tem a nau que merece.

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O LEÃO E O RATO

Um rato foi passear sobre um leãoadormecido. Quando este acordou, pegou orato. Já estava para devorá-lo quando o ratopediu-lhe para deixá-lo ir embora:

– Se me poupares – disse –, te serei útil.E o leão, achando aquilo engraçado,

soltou-o. Tempos depois, o leão foi salvo pelorato agradecido. Ele fora capturado porcaçadores que o amarraram a uma árvore. Orato o ouviu gemer: foi até lá, roeu as cordas eo libertou. E disse ao leão:

– Naquele dia zombaste de mim porquenão esperavas que eu mostrasse minha gratidão;aprende então que entre os ratos também seencontra o reconhecimento.

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Quando a sorte muda, os mais fortes têmnecessidade dos mais fracos.

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O VIAJANTE E O DESTINO

Cansado de tanto caminhar, um viajantecaiu junto a um poço. Como adormecera e iacair dentro, o Destino se aproximou, acordou-oe disse:

– Se tivesses caído dentro, não teculparias, mas a mim.

Na infelicidade, acusamos logo os deuses.

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QUANDO OS ASNOS APELAM PARAZEUS

Por não suportarem mais os pesadosfardos que tinham de carregar, os asnosenviaram uma delegação a Zeus para quealiviasse suas penas. Mas Zeus quis que elesentendessem que isso era algo impossível elhes disse: – No dia em que vocês urinarem edaí nascer um rio, pararão de sofrer.

Os asnos levaram essas palavras a sério e,desde então, quando vêem um companheirourinando, param para urinar também.

Ninguém pode mudar seu destino.

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O HOMEM QUE QUEBROU UMAESTÁTUA

Um homem tinha em casa um deus demadeira e, como era pobre, suplicava-lhe paramudar sua vida. Mas, por mais que pedisse, nãohavia jeito de sair da pobreza. Enraivecido,pegou o deus pelas pernas e o jogou contra aparede. A cabeça do deus se partiu e de dentrocomeçou a escorrer ouro. O homem pegou aestátua e exclamou: – Tinhas de ser mau eobtuso! Quando eu te reverenciava, nada fizestepor mim, mas bastou eu te dar uma surra parame fazeres o bem.

É com pancada e não com homenagensque conseguiremos alguma coisa dos maus.

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A ÁGUIA, O GAIO E O PASTOR DO ALTODE UM ROCHEDO, UMA ÁGUIA CAIUCERTEIRA SOBRE UM CARNEIRO E

LEVOU-O EM SUAS GARRAS. INVEJOSODE TAL FEITO, UM GAIO ACHOU QUETINHA DE IMITÁ-LO. AO SE LANÇAR

SOBRE A PRESA, CAIU COM ESTRONDOSOBRE UM CARNEIRO. SUAS GARRASSE ENROSCARAM NA LÃ E ELE FICOUSE DEBATENDO, SEM CONSEGUIR SE

DESEMBARAÇAR. O PASTOR O VIU, FOIEM SEU SOCORRO E LHE CORTOU A

PONTA DAS ASAS. QUANDO VEIO ANOITE, LEVOU-O PARA SEUS FILHOS.

ELES LHE PERGUNTARAM: – PAI, QUEPÁSSARO É ESTE?

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O pai respondeu:– Que eu saiba, é um gaio, mas o que ele

queria mesmo era ser uma águia.Quem com o mais forte quer competir

sem estar à altura termina fracassando eservindo de escárnio para os outros.

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O NEGRO

Um homem comprou um negro achandoque sua cor era resultado da falta de cuidado deseu amo anterior. Levou-o para casa, e lá,entregando-lhe todo o sabão que tinha,mandou-o tomar um banho para tentar clareá-lo. Mas não conseguiu modificar-lhe a cor e oúnico resultado de tanto trabalho foi fazer onegro ficar doente.

Assim nascemos, assim ficamos.

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O CEGO

Um cego estava acostumado a reconhecerpelo tato todo animal que lhe dessem. Um dialhe deram um lobinho. Depois de apalpá-lo, ecomo tivesse dificuldade de dizer que animalera, declarou: – Se é o filhote de um lobo, deuma raposa ou de um animal dessa espécie, nãosei; de uma coisa estou certo: não é animal quese deixe entre os carneiros.

Os maus sempre se comportam de talmaneira que logo os identificamos.

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O MENTIROSO

Um homem estava caído, doente, emestado lastimável. Prometeu aos deuses cembois se o salvassem. Para pô-lo à prova, osdeuses apressaram sua cura. Uma vez refeito,como não tinha na realidade os bois, ele os fezde cera na quantidade prometida e os sacrificouno altar dizendo:

– Ó deuses, aceitai minha oferenda.Mas os deuses, por sua vez, resolveram

lhe pregar uma peça. Mostraram-lhe em sonhoque encontraria mil dracmas se fosse até o mar.Louco de alegria, o homem correu até a praia.Lá caiu nas mãos dos piratas que o capturaram,o venderam e ainda lhe roubaram mil dracmas.

Mentirosos, cuidado.

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O CAVALO E O PALAFRENEIRO

Ao palafreneiro que lhe roubava a cevadae ao mesmo tempo o acarinhava o dia inteiro,um cavalo declarou: – Queres mesmo que euseja belo? Não vendas mais a minha cevada.

Assim fazem as pessoas cúpidas:procuram seduzir os pobres com propostasinsinuantes e baju-lação, enquanto os priva donecessário.

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A RÃ E O RATO

Um rato do campo criou fortes laços deamizade com uma rã. Esta teve a infeliz idéia deatar a pata do rato à sua. E foram juntos peloscampos para arranjar alimento. Quandochegaram à beira de um açude, a rã arrastou orato para o fundo, lançando-se na água comespalhafato. O pobre do rato, de tanto beberágua, morreu. Como seu cadáver flutuasse,amarrado que estava à pata da rã, um milhafreveio e o levou em suas garras. A rã foi forçadaa ir com ele e terminou também na pança domilhafre.

Tua vítima, mesmo morta, pode ainda tepunir; a justiça divina a tudo vigia e, com o olhona balança, dá a cada um o que merece.

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O NÁUFRAGO E O MAR

Um náufrago, a quem as ondas tinhamlançado na praia, caiu no sono de tão cansado.Pouco depois, acordou e, ao ver o mar,invectivou contra ele: – Você seduz os homenscom sua suavidade, mas, quando os acolhe, osmata sem dó nem piedade.

O mar, que estava disfarçado de mulher,disse:

– Amigo, não me culpes, mas ao vento:sou por natureza o que estás vendo; são osventos que, soprando sobre mim de repente, meatiçam e me animalizam.

Não imputes a injustiça a quem a cometequando os verdadeiros responsáveis são os queestão por trás.

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OS JOVENS E O AÇOUGUEIRO

Dois rapazes tinham ido comprar carnejuntos. Aproveitando a distração do açougueiro,um deles pegou uns miúdos de galinha e osescondeu sob a roupa do amigo. Quando oaçougeiro voltou-se para eles e não encontrouos miúdos que procurava, pôs-se a acusá-los.Mas ambos juraram que não os tinham roubado.Suspeitando da astúcia dos dois, o açougueirodisse-lhes: – Vocês podem muito bem jurarfalso para mim, mas os deuses sabem de tudo.

Por mais astucioso que seja, um falsojuramento nunca deixa de ser um ato ímpio.

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O CERVO E SEU FILHOTE

Um dia, o filhote de cervo disse ao pai:– Pai, és mais rápido e maior que os cães;

além disso, a natureza te deu chifresmaravilhosos; como é possível então teresmedo deles?

E o cervo respondeu rindo:– É verdade, meu filho, e no entanto sei

muito bem que, quando ouço um cão latir, issoé mais forte que eu e fujo.

Não adianta querer convencer os fracos.

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O JOVEM PRÓDIGO E A ANDORINHA

Um jovem pródigo havia gasto todo o seupatrimônio. Só lhe restava agora um casaco. Aover uma andorinha – chegada prematuramente –achou que já era a primavera se anunciando eele não precisava mais do casaco. Vendeu-osem titubear. Algum tempo depois, vieram achuva e o frio. E o rapaz caminhava peloscampos quando viu a andorinha: ela estavamorta de frio.

– Fizeste mal a mim e a ti.É perigoso agir sem refletir.

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O DOENTE E O MÉDICO

– Como vais? – perguntou o médico a seudoente.

– Suei demais – respondeu o doente.– Isso é bom – disse o médico.Perguntado uma segunda vez sobre seu

estado, o doente respondeu que tinha sentidoviolentos calafrios.

– Isso é bom – disse o médico.Uma terceira vez, o médico apareceu e

perguntou ao doente como ele ia.– Agora estou com diarréia – respondeu o

doente.– Isso também é bom – disse o médico.Quando um de seus parentes perguntou ao

doente sobre sua saúde, ele disse: – Estou

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morrendo de tanto ir bem.Freqüentemente as pessoas que nos são

próximas se fiam nas aparências: o que elastomam como sinal de nossa felicidade é narealidade o que nos faz mais sofrer.

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AS LEBRES E AS RAPOSAS

As lebres, em guerra contra as águias,foram pedir socorro às raposas. Mas estasresponderam:

– Nós as socorreríamos se soubéssemosquem são vocês e qual o seu inimigo.

Quem enfrenta alguém mais forte não dávalor à vida.

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O MORCEGO, A SARÇA E A GAIVOTA

Um morcego, uma sarça e uma gaivotadecidiram entrar para o comércio marítimo. Omorcego tomou dinheiro emprestado numbanco popular, a sarça arranjou as roupas e agaivota a louça. Feito isso, estava tudo pronto.Mas veio uma violenta tempestade e o barconaufragou. Os três se salvaram, mas a carga foia pique. Desde então a gaivota não sai da praia,esperando que o mar devolva sua louça; omorcego, com medo dos credores, não sai dedia, só à noite, para procurar alimento; já asarça agarra na roupa de quem passa, naesperança de encontrar os seus.

Voltamos sempre ao que éramos antes.

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O MOSQUITO E O TOURO

Um mosquito pousou no chifre de umtouro e ficou ali um bom tempo. Quando iasair, perguntou ao touro: – Queres mesmo queeu vá embora?

O touro respondeu:– Assim como não senti tua chegada, não

vou sentir tua partida.Aqui ou alhures, o insignificante não

causa nem o bem nem o mal a ninguém.

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O LEÃO, O ASNO E A RAPOSA

O leão, o asno e a raposa tinham caçadojuntos e feito uma boa provisão. O leão deuordem para dividi-la e o asno assim o fez.Dividiu tudo em três partes iguais e pediu aoleão para escolher a sua. Furioso, o leão saltouem cima do asno e o devorou. Depois, pediu àraposa para fazer a divisão. Ela juntou tudo edeixou só alguns pedaços para si.

– Agora é a sua vez – disse para o leão.Este lhe perguntou quem lhe ensinara

dividir assim.– O triste destino do asno – respondeu a

raposa.A infelicidade de uns é fonte de sabedoria

para outros.

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O ASNO E SEU AMO

Um asno que conduzia seu amo trotavapor um caminho fácil, mas depois pegou umcaminho difícil, muito escarpado. Como iacaindo no fundo de um precipício, o homemagarrou-o pela cauda e fez tudo para o asnodesistir da viagem. Mas o asno resistiu comtodas as suas forças, de modo que o homem olargou dizendo: “Está bem, venceste, mas aomesmo tempo encontraste tua derrota”.

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A CORÇA CAOLHA

Uma corça caolha fora pastar à beira-mar.Com seu olho são, voltado para a terra,observava a vinda dos caçadores; quanto a seuolho cego, estava voltado para o mar, de ondenada podia vir. Mas uns marinheiros quecruzavam aquela região a viram e a abateram.

– Pobre de mim – disse a corça morrendo–; eu vigiava a terra, que acreditava cheia deperigos, e foi o mar, onde fui buscar abrigo,que me foi fatal.

Onde vês perigo, podes encontrarbenefícios, e onde pensas ver salvação,esconde-se a perdição.

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O CABRITO E O LOBO QUE TOCAVAFLAUTA

Um cabrito que não conseguiaacompanhar o rebanho foi pego por um lobo.

– Sei bem, senhor lobo – disse elevoltando-se para seu predador –, que terminareiem tua boca, mas, para que eu não morradesonrado, toca tua flauta e dançarei.

O lobo estava tocando e o cabritodançando quando os cães, alertados pelobarulho, acorreram e começaram a perseguir olobo. Este se voltou para o cabrito e disse:

– Bem feito; quem me mandou, sendoaçougueiro, querer bancar o flautista.

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HERMES E A TERRA

Depois de ter feito o homem e a mulher,Zeus pediu a Hermes para conduzi-los à Terra elhes mostrar onde eles deviam laborar paraconseguir os meios de subsistência. Hermescumpriu o pedido, mas a Terra ofereceu certaresistência. Hermes não transigiu:

– Foi Zeus quem mandou – disse ele.– Eles podem lavrar o quanto quiserem –

disse a terra –, mas pagarão caro por isso.Às vezes suamos para pagar o que nos foi

emprestado tão facilmente.

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O LOBO E O ASNO

Promovido a chefe de sua raça, um loboinstituiu que, dali em diante, cada um deviacolocar num determinado lugar o produto desua caça, que iria ser dividido irmãmente portodos. Assim, a escassez de alimento não iriaprovocar mais nenhuma desavença entre eles.Nisso, um asno se aproximou e, balançando acrina, disse:

– Bela idéia, sobretudo porque vem de umlobo. Mas por que deixaste no teu covil a presaque caçaste ontem? Vamos, o que estásesperando para dividi-la com os outros?

E o lobo, sem saber o que dizer, aboliu alei.

Assim acontece com alguns: suas leis

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parecem justas, mas eles próprios não arespeitam.

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A ANDORINHA E OS PÁSSAROS

Nos primeiros dias da estação de caça, aandorinha sentiu o perigo que rondava seusirmãos. Convocou então os pássaros para umaassembléia e aconselhou-os a arrancar doscarvalhos as parasitas viscosas.

– No entanto – acrescentou –, se vocêsnão conseguirem fazer isso, vão até os homense peçam-lhes para não recorrer ao visco paranos pegar.

Os pássaros riram, achando que aandorinha não estava bem do juízo. Ela, por seulado, foi até os homens e pediu-lhes clemência.Eles a acolheram por vê-la tão inteligente ederam-lhe abrigo. A andorinha encontrourefúgio e proteção entre eles; já os outros

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pássaros foram pegos e serviram de alimentopara os homens.

Quem sabe prever os perigos consegue sesafar melhor.

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A RAPOSA E O ESPANTALHO

Uma raposa entrou na casa de um ator.Ficou remexendo em seus pertences eencontrou uma cabeça de espantalho muitobem feita. Tomou-a entre as patas e exclamou:– Que bela cabeça, mas é oca.

O mesmo se pode dizer das pessoas belasmas sem inteligência.

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QUERELA INÚTIL

Dois homens brigavam para saber quemera o deus mais poderoso: Teseu ou Héracles.Isso provocou a ira dos dois que se vingaramatacando cada um o defensor do outro.

As querelas dos subordinados terminamexcitando contra si a ira dos chefes.

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O ASSASSINO

Um assassino era perseguido pelos paisde sua vítima. Quando chegou à beira do Nilo,um lobo lhe apareceu. Tomado de medo, subiunuma árvore para se esconder. Ao ver que umdragão ia atacá-lo, pulou dentro do rio onde umcrocodilo o devorou.

Não há abrigo seguro para quem os deusesperseguem.

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O BOIADEIRO E HÉRACLES

Um boiadeiro voltava para a aldeia em seucarro gemente e caiu numa ravina com seusbois e sua gente.

Grande devoto de Héracles, ficou aliparado implorando a seu deus para ajudar seusagregados.

“Inútil”, disse-lhe o deus, “aos céusimplorar se com o aguilhão teus bois nãoferroar.”

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O VENTO E O SOL

O Vento e o Sol discutiam para ver quemera o mais forte. Ficou estabelecido queganharia aquele que conseguisse arrancar ocasaco de um viajante. O Vento começou: pôs-se a soprar violentamente e, como o homemsegurasse o casaco com força, ele redobrou osataques. Transido de frio, o viajante pôs umsegundo casaco, de modo que o Vento,desencorajado, deu a vez ao Sol. Este aprincípio brilhou moderadamente e o homemtirou o segundo casaco. O Sol lançou entãoseus raios mais fortes e, assim, sem suportarmais o calor, o viajante tirou toda a roupa e sejogou num rio próximo.

Conseguirás o que queres pela persuasão,

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não pela violência.

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O ASNO E O CÃO

Um asno e o cão viajavam juntos.Encontraram no chão uma carta lacrada. O asnoa pegou, arrancou o selo, abriu-a e leu-a para ocão. A carta falava da alimentação do gado, ouseja, do feno, da cevada e da palha. E, como aleitura do asno o cansasse, o cão disse:

– Lê mais embaixo, meu amigo, e vê sefala de ossos e de carne.

Depois de percorrer toda a carta e nãoencontrar nada do que o cão queria, este disse:

– Joga fora esse papel sem nenhum valor.

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AS LEBRES E AS RÃS

Numa assembléia, as lebres se queixavamde levar uma vida insegura e cheia de muitomedo. Elas eram as presas preferidas doshomens e dos cães, das águias e de muitosoutros animais. Era melhor morrer de uma vezpor todas do que viver assim aterrorizadas.Uma vez tomada essa decisão, como se fossemsó uma, correram para o açude para se afogar.Mas, ao ouvir aquele atropelo, as rãs, sentadasem volta do açude, logo se jogaram dentro.Uma lebre, que parecia ser mais inteligente queas outras, disse às companheiras: – Parem! Nãofaçam isso. Vejam que existe alguém aindamais medroso que nós.

As desgraças dos outros são um consolo

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para as nossas.

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O JARDINEIRO E OS LEGUMES

Ao ver um jardineiro regando suas plantas,um transeunte parou para lhe perguntar por queos seus legumes eram belos e grandes,enquanto os dele eram mirrados e feios.

– A terra – respondeu o jardineiro –, parauns é uma mãe, para outros uma madrasta.

O mesmo acontece com as criançasquando são alimentadas ou não por sua mãe.

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O TOCADOR DE CÍTARA

Acompanhando a si mesmo com umacítara, um cantor medíocre vivia cantando entrequatro paredes. Ouvindo o eco, achou sua vozmuito bela. Ficou tão vaidoso que achou tersido feito para o teatro. Mas, uma vez em cena,cantou tão mal que foi expulso a pedradas.

Muitos oradores parecem perfeitos entrequatro paredes, mas são um fracasso quandoem contato com o grande público.

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O TORDO

Um tordo ciscava num bosquezinho demirtos: como abandonar frutos tão saborosos?Seu gosto por aquele local não tinha escapado aum caçador que o espiava. Terminou capturado.Quando estava prestes a morrer, o tordoexclamou: – Pobre de mim, que fui vítima deminha gulodice!

O devasso é vítima de seus excessos.

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OS LADRÕES E O GALO

Uma casa foi invadida por ladrões. Seubutim se reduziu a um galo que levaram aodeixar o local. Iam sacrificá-lo quando a avelhes pediu o seguinte: – Deixem-me ir embora;já não faço o bem aos homens quando osacordo à noite para irem ao trabalho?

E os ladrões responderam:– Uma razão a mais para te matar.

Acordando-os, nos impedes de roubar.O virtuoso vê o bem onde o celerado vê

um obstáculo.

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O ESTÔMAGO E OS PÉS

Os pés diziam que eram mais fortes que oestômago:

– Queres uma prova? Somos nós que tetransportamos.

– Meus queridos – respondeu o estômago–, sem o alimento que lhes dou, vocês nãopoderiam carregar nada sozinhos.

Assim, num exército, a quantidade desoldados não vale nada se não houver umgeneral com as melhores idéias.

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O MILHAFRE QUE RELINCHAVA

Em tempos idos, o milhafre tinha uma vozmuito estridente. Mas um dia ele ouviu umcavalo relinchar belamente. Quis imitá-lo: seusgrandes esforços para acompanhar a voz docavalo só o levaram a perder a própria voz.Assim, ao fim e ao cabo, ele não tinha maisnem a voz do cavalo nem a do milhafre.

O homem insatisfeito e invejoso perde oque a natureza lhe deu ao ambicionar o que elalhe recusou.

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O CAÇADOR E A SERPENTE

Um caçador partiu para a caça levandovisco e algumas ramagens. Viu então um tordonuma árvore e quis pegá-lo. Colocou os ramosuns sobre os outros e, sem desgrudar os olhosdo pássaro, nem percebeu que pisara numaserpente. Esta se retorceu e destilou seuveneno. Ferido de morte, o caçador exclamou:– Pobre de mim, que, ao perseguir minha presa,não vi que a morte estava nos meuscalcanhares.

Quem põe armadilha para os outrostermina sendo sua primeira vítima.

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O VELHO CAVALO

Um velho cavalo foi comprado para fazergirar um moinho. Uma vez atrelado à mó, eledisse gemendo: – Depois de ter girado peloscampos de corrida terminar desse jeito!

Quando somos jovens e belos, tudo nosparece possível; mas é bom não nosvangloriarmos. Para muitos, a velhice é umtempo de dureza.

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O GATO E OS RATOS

Havia muitos ratos numa casa; um gato, aosaber disso, foi para lá. Pegava um rato atrás dooutro e os devorava. Uma hecatombe. Os ratosentão fugiram para os buracos distantes doalcance do gato. Este pensou num jeito de fazê-los sair. Subiu numa estaca, fingiu enforcar-see parecia estar morto. Um rato, que naquelemomento estava saindo do buraco, ao vê-lo,disse: – Ah, só sairei daqui quando virares pó.

O homem sensato, depois de sofrer osgolpes do mau, não se deixa levar por seusfingimentos.

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A CABRA E O PASTOR

Um pastor chamava as cabras para oestábulo. Como uma delas parou para devorarum arbusto saboroso, o pastor lhe jogou umapedra. Foi tão certeiro que lhe quebrou umchifre. Ele pediu à cabra que não dissesse nadaa seu dono. Mas a cabra retrucou: – Mesmoque eu fique calada, como esconder a verdade?Quem não veria meu chifre quebrado?

Não há desculpas diante das evidências.

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O HOMEM DE MÁ-FÉ

Um homem sem fé nem lei tinha apostadoque desmascararia o oráculo de Delfos. No diacombinado, pegou um pardalzinho e oescondeu sob o casaco. Ao chegar ao santuário,postou-se diante do oráculo e perguntou se oque ele tinha na mão era ou não um ser vivo. Seo deus dissesse “um objeto inanimado”,mostraria o pardal vivo, e se ele dissesse queera um “ser vivo”, mostraria o passarinhodepois de tê-lo estrangulado. Mas o deusadivinhou sua deslealdade: – Chega! O que tensna mão, vivo ou morto, depende de ti.

É difícil pegar um deus em falta.

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A GRALHA FUJONA

Um homem pegou uma gralha. Amarrou-lhe um barbante nas patas e depois deu-a a seufilho. Viver entre os homens, que tédio para agralha! Quando teve um momento de liberdade,fugiu em direção a seu ninho. Mas o barbantese prendeu nos galhos de uma árvore e seu vôofoi interrompido. Como ia morrer, disse para simesma: – Pobre de mim, que, por não terquerido ser escrava dos homens, condenei-meà morte.

Quando fugimos dos pequenos perigos,caímos sem querer em perigos maiores.

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O LEÃO E O ONAGRO

Um leão e um onagro caçavam, um usandosua força e outro sua rapidez. No fim da caça, oleão dividiu-a em três porções: – A primeira –disse ele –, é minha de direito: sou o rei dosanimais. A segunda é minha pela mesma razão.Quanto à terceira, será tua infelicidade se nãoderes o fora agora mesmo.

Mede tuas próprias forças para nãoentrares em confronto com quem é mais forteque tu.

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A CADELA E A PORCA

Uma cadela e uma porca trocavaminsultos um atrás do outro.

– Por Afrodite – jurava a porca –, eu voute devorar com o maior prazer.

– Fazes bem – disse a cadela –, jurar porAfrodite: vê-se claramente que, entre todos, ésa mais querida por ela, que proíbe a entrada notemplo de todos os que comeram de tua carnesuja.

A porca retrucou:– É mais uma prova de seu amor por mim:

ela usa de todos os meios para dissuadir oshomens de me matar ou de me maltratar.Quanto a ti, fedes, estejas viva ou morta.

Os oradores hábeis sabem transformar o

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insulto em elogio.

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AS VESPAS, AS PERDIZES E OCAMPONÊS

Como as vespas e as perdizes estavamsedentas demais foram pedir a um camponêságua para beber.

– Seremos sempre agradecidas –prometeram elas. – Nós, as perdizes,capinaremos tuas vinhas; nós, as vespas,vigiaremos os ladrões com nossos ferrões.

– Verdade seja dita – falou o camponês –,tenho dois bois que fazem tudo sem prometernada; é melhor dar água a eles que a vocês.

Cuidado com as promessas dosespertalhões!

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O MACACO E O GOLFINHO

Os marinheiros têm o hábito de levar abordo cãezinhos de Malta e macacos: essesanimais os distraem enquanto navegam. Porisso um homem viajava em companhia de ummacaco. Ora, no altura do cabo Súnio, no sul daÁtica, estourou uma violenta tempestade. Onavio naufragou e todos, o macaco inclusive,viram-se às voltas com as ondas. Um golfinhoviu o animal e, achando que se tratava de umhomem, colocou-o nas costas e levou-o à terrafirme. Ao chegar a Pireu, o porto de Atenas, ogolfinho perguntou ao macaco se ele eraateniense.

– Sim – respondeu o macaco –, e de boaorigem.

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– E conheces o Pireu? – perguntou ogolfinho.

– É um dos meus melhores amigos –respondeu o macaco.

A impostura desagradou ao golfinho:mergulhou no mar profundo e o macacomorreu.

Isto é uma advertência àqueles que,ignorando a verdade, procuram enganar osoutros.

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O CARRO DE HERMES E OS ÁRABES

Percorrendo a Terra com seu carro cheiode mentiras, astúcias e enganos, Hermesexaminava a carga para distribuí-la igualmenteentre todos os povos. Mas, quando chegou àArábia, o carro quebrou-se inesperadamente.Os habitantes pilharam a carga como se setratasse de bens preciosos e o deusinterrompeu ali sua viagem.

Entre todos os povos, os árabes são osmais espertos e mentirosos: a verdade não falapor sua boca.

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A LIMA E A DONINHA

Uma doninha entrara no ateliê de umferreiro e se pôs a lamber uma lima que estavano chão. Sua língua começou a sangrarabundamente. Ela não se deu por vencida,achando que era o ferro que estava sendocomido. Quando se deu conta, estava sem alíngua.

Quem gosta de uma contenda trabalha pelaprópria desgraça.

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O CAMPONÊS E A ÁGUIA

Um camponês encontrou uma águia presanuma armadilha. Achando-a tão bela, deu-lhe aliberdade. A águia mostrou-se grata. Um dia viuo camponês descansando encostado numaparede. Lançou-se em sua direção e arrancou-lhe o turbante da cabeça. O homem se levantoue pôs-se a perseguir o pássaro. Este deixou cairo turbante. O camponês o pegou de volta e, aoretornar, viu que a parede tinha ruídojustamente onde ele estava antes. Grande foisua admiração por esse gesto dereconhecimento.

Quando receber um bem, saiba retribuí-lo.

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O CAVALO, O BOI, O CÃO E O HOMEM

Quando o homem saiu das mãos de Zeus,estava destinado a uma vida breve. Usando suainteligência, quando veio o inverno, eleconstruiu uma casa e a habitou. Nesse ínterim,o frio foi tão intenso, e Zeus fez chover tãoforte, que o cavalo, sem forças, foi procurarabrigo na casa do homem. Este disse que só oreceberia se ele lhe desse uma parte dos anosque tinha para viver. O cavalo os cedeu comprazer. Pouco depois apareceu um boi,acossado também pelo mau tempo. O homemlhe disse a mesma coisa: só o receberia se emtroca ele lhe cedesse alguns anos de sua vida.Concluído o negócio, o boi entrou. Finalmentechegou o cão, morrendo de frio. Teve de ceder

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ao homem alguns anos de sua vida. Por isso queos homens vivem puros e bons durante o tempoque Zeus lhes deu. Quando chegam aos anoscedidos pelo cavalo, eles fanfarronam, cheiosde altivez; quando chegam os anos do boi,ficam autoritários. Enfim, quando terminam avida com os anos do cão, rosnam raivosamentepor um sim ou por um não.

Isto é para ti, velho rabugento.

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O VELHO E A MORTE

Carregando a madeira que acabara decortar, um velho ia por uma longa estrada.Cansado, depositou no chão o seu fardo e pediuque a Morte lhe aparecesse. A Morte apareceu:– Por que me chamaste?

E o velho:– Para que leves meu fardo.Por mais difícil que seja a vida, ninguém

quer deixá-la.

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O CORVO E A RAPOSA

Um corvo roubou um pedaço de carne efoi para o alto de uma árvore. Uma raposa, aovê-lo, logo quis se apossar do pedaço de carne.Ao pé da árvore, pôs-se a louvar a beleza e agraça do corvo: – Quem, além de ti, pode ser orei dos animais? Bastava que tivesses voz.

O corvo, querendo mostrar que não eramudo, deixou cair o pedaço de carne ecomeçou a emitir ruídos. A raposa abocanhou acarne e disse: – Ora, senhor corvo, se tambémfosses inteligente, não faltaria nada para sereso rei dos animais.

Tolos, atenção!

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O LOBO E O PASTOR

Um lobo acompanhava tranqüilamente umrebanho de carneiros. No começo, o pastor ovigiava como a um inimigo e o observava como canto do olho. Mas, como o lobo oacompanhasse sempre sem dar o menor sinalde agressividade, ele disse para si mesmo quehavia ali antes um guarda que um inimigo mal-intencionado. Foi por isso que, ao ser chamadopara resolver alguns problemas na cidade, opastor deixou seus carneiros com o lobo e sefoi. O lobo viu o momento propício: lançou-sesobre os carneiros e estraçalhou quase todos.De volta, o pastor viu seu rebanho dizimado eexclamou: – Pobre de mim! É a justiça. Comofui confiar meus carneiros a um lobo?

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Quem confia seus bens a quem só pensaem lucro está apostando na perda.

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O MENINO AFOGADO

Um garoto que tomava banho num rioestava prestes a se afogar. Pediu socorro a umhomem que passava. Este se pôs a passar umadescompustura no menino por causa de suaafoiteza.

– Primeiro me salva – gritou o menino –,e só depois me dês o carão.

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O DEPOSITÁRIO E O JURAMENTO

Um homem estava pensando em ficar como dinheiro que um amigo lhe tinha confiado.Assim que soube que esse amigo queria que eleprestasse juramento, conseguiu escapar,fugindo para o campo. Ao chegar às portas dacidade, viu um coxo. Perguntou-lhe quem era eaonde ia.

– Eu sou o Juramento e persigo quemfalta à palavra.

O homem quis saber mais:– Normalmente, depois de quanto tempo

o senhor volta a cada cidade?– Trinta ou quarenta anos, depende –

respondeu o Juramento.No dia seguinte, sem mais tardar, o

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homem jurou que não tinha recebido nenhumdinheiro para guardar. Mas encontrou oJuramento, que o levou à beira de umprecipício.

– Mas como! – exclamou ele. – O senhorme disse que voltaria ao fim de trinta anos e jáno outro dia está aqui!

O Juramento respondeu:– Saibas que, quando alguém me contraria,

tenho por hábito voltar no mesmo dia.

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O PAI E SUAS FILHAS

Um homem havia dado suas filhas emcasamento, uma a um hortelão, a outra a umoleiro. Depois de algum tempo, foi ver aprimeira: – Como vais – quis saber ele –, ecomo vão teus negócios?

– Vai tudo bem – respondeu ela –, só háuma coisa que peço aos deuses: que chova pararegar meus legumes.

Pouco depois, foi à casa da segunda.Mesmas perguntas.

– Estou feliz – disse ela –, e meu únicodesejo é que o tempo continue bom e que o solbrilhe para secar a cerâmica.

O pai então falou:– Se tu queres o tempo bom e tua irmã a

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chuva, com qual das duas eu fico?Querer ao mesmo tempo fazer uma coisa

e o seu contrário é a melhor maneira de nãoconseguir fazer coisa nenhuma.

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A POMBA SEDENTA

Uma pomba sedenta viu uma taça de águapintada num quadro. Tomando-a comoverdadeira, arremessou-se contra o quadro,fazendo um grande ruído com as asas. O queaconteceu? Quebrou as asas e caiu ao chãoonde foi pega por um transeunte.

Há pessoas que, impelidas por um grandedesejo, se lançam impensadamente em grandesempresas sem saber que estão a caminho de suaprópria perdição.

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O LEÃO E O ASNO

O leão e o asno tinham se unido paracaçar. Chegaram a uma caverna onde estavamalgumas cabras selvagens. Enquanto o leão,postado na entrada, observava a saída dosanimais, o asno se precipitou sobre elas,zurrando para assustá-las. Depois que o leãohavia pego a maior parte delas, o asnoreapareceu e perguntou-lhe: – Viu como eu ascombati bravamente e as pus para correr?

– Repara – respondeu o leão –, eutambém teria tido medo se não soubesse queeras tu, asno, que estavas zurrando.

Tuas gabolices, certamente, farão rir osque te conhecem.

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O CAVALO E O ASNO

Um homem tinha um cavalo e um asno.Um dia, quando caminhavam juntos por umaestrada, o asno disse ao cavalo:

– Se minha vida te importa, leva um poucode meu fardo.

Mas o cavalo não se deixou levar pelaconversa e o asno caiu morto. O dono entãopôs toda a carga nas costas do cavalo, inclusiveos despojos do asno morto. E o cavalo pôs-se alamentar seu destino aos brados:

– Como sou infeliz! Que triste destino omeu! Não quis levar uma parte da carga do asnoe agora estou levando tudo em dobro, e comoprêmio a pele do outro.

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O HOMEM E O SÁTIRO

Contam que um homem tinha feitoamizade com um sátiro. Quando veio o invernoe seu frio intenso, o homem levava as mãos àboca e soprava para aquecê-las.

– O que fazes? – perguntou o sátiro.– Estou aquecendo minhas mãos –

respondeu ele – porque está fazendo frio.Mais tarde, os dois foram jantar Como o

prato que tinham servido estava muito quente, ohomem ia pegando pequenos bocados esoprando sobre eles. Perguntado uma segundavez pelo sátiro, ele explicou que estavaesfriando a comida.

– Ora veja – disse-lhe o sátiro –, nãoquero tua amizade, pois usas do mesmo

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artifício para o quente e para o frio.Guardemo-nos dos amigos que fazem

jogo duplo.

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O HOMEM QUE QUERIA COMPRAR UMASNO

Um homem estava querendo comprar umasno e levou-o para testá-lo. Colocou-o entreos que já tinha e pôs-lhe um cabresto. Mas oanimal, abandonando a companhia dos outros,preferiu ficar com o mais preguiçoso e o maisglutão de todos. Como não fazia nada, ohomem passou-lhe uma corda no pescoço e foidevolvê-lo a seu dono. Este perguntou se aexperiência tinha sido boa.

– Nem precisei pô-lo à prova. Sei que elese parece com o companheiro que escolheu –respondeu o homem.

Somos julgados por nossas companhias.

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O PESCADOR

Um pescador estava pescando num riacho.Jogara a rede de uma margem à outra e comuma pedra amarrada numa corda pôs-se a baterna água. Os peixes em fuga, pensou ele, iriamcair nas malhas de sua rede. Ao vê-lo agirassim, um morador das redondezas repreendeu-o: – Assim nos impedes de beber água limpa.

O pescador retorquiu:– Sim, mas se eu não remexer a água vou

morrer de fome.Os demagogos seguem em frente à custa

dos transtornos que provocam.

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O ALCIÃO

O alcião é um pássaro marinho queprocura os lugares ermos. Dizem que, para selivrar dos caçadores, ele faz o ninho nosrochedos à beira-mar.

Um dia, um alcião que queria pôr seusovos seguiu um promontório e, tendo visto umrochedo batido pelas ondas, fez ali seu ninho.Tendo saído à procura de alimento, aconteceuque o mar, agitado por um vento fortíssimo,alcançou o ninho, inundou-o e matou osfilhotes do alcião. Quando voltou, o pássaro, aover o que tinha acontecido, exclamou: – Pobrede mim! Para fugir das armadilhas da terra,refugiei-me no mar, onde perigos maiores meesperavam.

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Ao fugir de nossos inimigos, nemsabemos que estamos indo a caminho deamigos ainda mais temíveis.

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AS RAPOSAS

As raposas reuniram-se um dia à margemdo Menandro para matar a sede. A corrente eraforte e nenhuma delas ousava mergulhar,embora cada uma encorajasse a outra. Umadelas fez um discurso. Atacou as companheiras,zombou de sua covardia e, tendo exaltado suaprópria bravura, pulou na água. A correntezaveio e logo a arrastou. As outras, que estavamna margem, gritaram: – Não nos abandones,volta para nos dizer onde podemos beber água asalvo.

O animal, levado pela correnteza,respondeu: – Estão me esperando em Mileto,pois tenho negócios a resolver lá. Na volta,lhes direi.

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Assim agem os fanfarrões contumazes.

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OS VIAJANTES E AS TOUCEIRAS

Alguns homens que viajavam pela praiachegaram ao alto de uma duna. Avistaram entãoumas touceiras flutuando ao longe e pensaramque se tratava de algum navio importante. Mas,quando o vento trouxe as touceiras para maisperto, acharam que era um barco com umpescador. Finalmente, quando viram astouceiras chegar à margem, disseram uns paraos outros: – Foi por isso que esperamos tantotempo!

Determinada pessoa que nossa ignorânciatransformou em alguém temível revela-se narealidade insignificante.

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OS LOBOS E O VELHO CARNEIRO

Os lobos enviaram uma embaixada aoscarneiros:

– Entreguem-nos os cães para que osmatemos; em troca, faremos com vocês umapaz perpétua.

Os cordeiros, em sua idiotice, nãosouberam responder nada. Mas um velhocarneiro disse aos lobos: – Como vou confiarem vocês se mesmo com os cães nosguardando não posso pastar tranqüilo?

Não te desfaças daquilo que te dásegurança baseado na palavra de teus inimigosjurados.

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O CÃO, O GALO E A RAPOSA

Um cão e um galo que tinham feitoamizade iam juntos por uma estrada. Quandoveio a noite, o galo subiu numa árvore,enquanto o cão se aninhou no oco do tronco.Adormeceram. Como de costume, o galocantou antes de o dia nascer. Uma raposa,escutando-o, correu até a árvore e pediu paraele descer: queria beijar um animal de voz tãobela. O galo respondeu-lhe: – Acorde antes oporteiro que está dormindo ao pé da árvore.Quando ele acordar, descerei.

Quando a raposa foi conversar com o cão,ele saltou sobre ela e a despedaçou.

Quando nossos inimigos nos atacam,astuciosamente mandemos que se entendam

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com os mais fortes que eles.

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O CORVO E A SERPENTE

Um corvo faminto viu uma serpente quedormia ao sol. Lançou-se sobre ela e a levoupelos ares. Mas a serpente tanto se retorceuque conseguiu picá-lo. Quando estavamorrendo, o corvo exclamou: – Pobre de mim,que encontrei a morte em achado tão belo!

Se descobrires um tesouro, cuidado comtua vida.

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O CAMPONÊS E A ÁRVORE

Nas terras de um camponês, nascera umaárvore que não dava nenhum fruto: serviaapenas para abrigar os pardais e as cigarras quecantavam. Por isso o camponês resolveu cortaraquela árvore estéril. E, já com um machado namão, ao dar o primeiro golpe, as cigarras e ospardais pediram para não destruir seu abrigo:

– Poupa-o para que possamos continuar aencantar-te com nossos cantos.

Sem se importar com tal pedido, ohomem deu um segundo golpe com o machado,depois um terceiro. Foi quando encontrou nooco da árvore um enxame de abelhas e mel.Antes mesmo de saboreá-lo, jogou longe omachado, tratou a árvore como se fosse sagrada

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e a cercou de cuidados.Assim somos nós: temos mais pressa em

salvar os ganhos que fazer justiça.

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ZEUS E A TARTARUGA

Para celebrar suas núpcias, Zeus tinhaconvidado todos os animais para participar dobanquete. Só a tartaruga não foi. No outro dia,Zeus quis saber os motivos de sua ausência: –Todos os animais vieram. Por que só tu nãovieste?

A tartaruga respondeu:– Não há melhor casa que a minha.Zeus, irritado com ela, deu-lhe o castigo

de carregar nas costas a casa por onde quer quefosse.

Muita gente prefere viver modestamenteem sua casa que na opulência em casa alheia.

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O LEÃO, A RAPOSA E A CORÇA

O leão estava muito doente e disse àraposa, sua boa amiga:

– Quer que eu fique curado e viva? Vábuscar a grande corça que mora na floresta,convença-a com suas doces palavras e traga-apara mim: preciso de suas vísceras e de seucoração.

A raposa se foi e encontrou a corçacorrendo pelos campos. Saudou-a amavelmentee disse-lhe:

– Vou lhe dar uma boa notícia. Sabe quenosso rei, o leão, é meu vizinho. Ele estádoente, quase morrendo. Ele se perguntou queanimal seria o rei após sua morte. O javali,disse ele, é meio roliço; o urso, preguiçoso; a

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pantera, irritadiça; o tigre, fanfarrão. A corsa,concluiu ele, é a mais digna de reinar: tem umporte esbelto, vive muito e tem chifrestemíveis. Em suma: você foi a escolhida. Queadianta ter sido a primeira a lhe dar essanotícia? Prometa-me uma coisa: tenho medode que ele me chame. Ele precisa sobretudo demeus conselhos. E agora, vá até lá e assista-oem seus últimos instantes.

A corça, ouvindo isso, se deixou levarpelos elogios e foi até a gruta do leão semsaber o que a esperava. Mal chegou e a fera foilogo saltando sobre ela. Mas só conseguiurasgar-lhe as orelhas com suas garras. A corçafugiu em desabalada carreira pelo campo. Araposa esfregou as patas de raiva: tanto trabalhopara nada! Quanto ao leão, lamentava-serugindo, acossado pela fome e pela amargura:precisava mais uma vez que a raposa usasse desua astúcia para trazer a corça de volta.

– O senhor está me dando uma tarefa

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difícil e penosa – disse a raposa –, mas vou meesforçar.

E, como um cão de caça, pôs-se atrás dacorça, tramando mil maneiras de trazê-la para oleão. Perguntou aos pastores se não tinhamvisto uma corça ensangüentada. Eles mostraramo lugar da floresta onde ela estava. A raposaencontrou a corça descansando e foi direto aoassunto. A corça exclamou, o pêlo eriçado deraiva:

– Mentirosa, pensa que vai me pegar denovo! Mais um passo e morre. Para alguns, assuas astúcias, para outros, os ingênuos, ofereceum reino e os faz perder a cabeça com suasbelas palavras.

Mas a raposa respondeu:– Você é assim tão covarde e fraca? É

assim que nos julga, nós, seus amigos? Quandoo leão pegou suas orelhas, como alguém quesabe que vai morrer, ele queria lhe darconselhos e instruções para o seu reino

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glorioso. E você nem conseguiu suportar oarranhão da pata de um doente. Agora ele estácom mais raiva ainda de você. O lobo é que vaiser o rei dos animais. É uma pena! O lobomalvado! Vamos, venha, não tenha medo. Juropor todas as folhas e por todas as fontes, o leãonão lhe fará mal nenhum. Quanto a mim, estouà sua inteira disposição.

A raposa conseguiu assim levar a corça devolta ao leão. Quando ela entrou no covil, foilogo abocanhada. O leão devorou tudo: ossos,tutano, vísceras. A raposa ficou só olhando,mas ao ver o coração da corça no chão pegou-odiscretamente e o comeu para recompensar seutrabalho. Na mesma hora, o leão, ao nãoencontrá-lo entre os outros pedaços do animal,reclamou. A raposa, mantendo-se a distância,disse-lhe:

– Na verdade, essa corça não tinhacoração: não o procure mais. Como teria umcoração de corça[1] quem, por duas vezes,

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voltou ao antro de um leão para cair nas suasgarras?

O amor pela glória perturba o espírito enos deixa cegos diante dos perigos.

[1]. Comer o coração de um animal e emparticular um “coração de corça” significa, emgrego, ser covarde. Ver, por exemplo, Ilíada, I,225.

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O ASNO, A RAPOSA E O LEÃO

Um asno e uma raposa que tinham ficadomuito amigos foram à caça. Um leão apareceuno caminho. Vendo o perigo que os ameaçava, araposa se aproximou do leão e prometeuentregar-lhe o asno:

– Prometa-me, em troca, me deixar viva.O leão prometeu e a raposa se empenhou

para fazer o asno cair na armadilha. Mas o leão,vendo que o asno já estava ganho, pegouprimeiro a raposa para depois se ocupar doasno.

Quem confia no sócio está trabalhandopela própria derrota.

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O PASTOR E O LOBO

Um pastor encontrou um lobo recém-nascido. Levou-o para casa e o criou com umde seus cães. O lobinho logo cresceu. Desdeentão, quando um lobo roubava uma ovelha, elese juntava aos cães para escorraçá-lo. E, seacontecia de os cachorros não conseguirempegar o lobo e voltarem de mãos abanando, elecontinuava a perseguição até o fim e dividia aovelha com seus companheiros de raça. Sódepois disso retornava. No entanto, quandonenhum lobo vinha roubar uma ovelha, elemesmo a matava escondido e se saciava juntocom os cães. Mas o pastor terminou sabendodos fatos e matou o lobo enforcando-o numaárvore.

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De semente ruim não nascem bons frutos.

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ZEUS, PROMETEU, ATENA E MOMOS

Zeus, Prometeu e Atena, tendo feito,respectivamente, o touro, o homem e uma casa,foram a Momos para que ele julgasse seustrabalhos. Mas Momos ficara com inveja ecomeçou a dizer que Zeus tinha se enganado,que ele deveria ter colocado os olhos do tourona ponta dos chifres a fim de que ele visse ondeestava batendo. Que Prometeu deveria ter postoo coração do homem do lado de fora para queos maus fossem reconhecidos e ospensamentos de cada um ficassem bemvisíveis. Que Atena, enfim, deveria tercolocado a casa sobre rodas para que a gentepudesse se distanciar de um vizinho indelicado.Zeus, então, indignado, expulsou-o do Olimpo.

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Não há nada, por mais perfeito que seja,que não seja passível de correção.

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O DEVEDOR ATENIENSE

Ao credor que o pressionava para ter suadívida saldada, um ateniense, cuja bolsa, diziaele, estava vazia, pediu um prazo. Como o outronão quisesse desculpa, o ateniense pegou aúnica porca que possuía e, diante do credor, pô-la à venda. Veio um comprador que lheperguntou se a porca era fértil.

– Se é fértil? – disse o ateniense. – É atédemais! Nos Mistérios[1], ela dá à luz fêmeas,e nas Panatenéias[2], machos.

Como o comprador ficou meio perplexocom essa explicação, surpreso, o credoracrescentou:

– Isso não é nada. Imagine, ela lhe darácabritos nas Dionisíacas[3]!

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Quando o interesse está em jogo, algumaspessoas dão o seu aval para as coisas maisestapafúrdias.

[1]. Festas em honra de Deméter, deusa dafecundidade.[2]. Festas em honra de Atena, deusa fundadorade Atena.[3]. Festa em honra de Dionísio.

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O ROUXINOL E A ANDORINHA

– Segue meu conselho, imita-me – dizia aandorinha ao rouxinol –; vem viver com oshomens em suas casas.

O rouxinol lhe respondia:– Prefiro morar nos lugares desertos a

fim de não me lembrar de minhas antigasdesgraças.

Quando conhecemos a infelicidade,procuramos evitar sobretudo o lugar ondefomos por ela tocados.

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A RAPOSA E O MACACO

Um macaco e uma raposa que viajavamjuntos discutiam para saber quem era o maisnobre. Ao chegar em determinado lugar, omacaco fixou o olhar num ponto e começou asoluçar.

– Que é que há contigo? – perguntou-lhe araposa.

Apontando os túmulos, o macacorespondeu:

– Como não chorar diante das estelas dosmeus pais, que foram escravos e alforriados?

A raposa retrucou:– Podes mentir à vontade. Nenhum deles

se levantará para dizer que estás mentindo.Os mentirosos dizem o que querem

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quando não há ninguém por perto paradesmenti-los.

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O CAMPONÊS E OS CÃES

Um camponês ficou preso em seuestábulo pela tempestade. Como não podia sairpara procurar alimento, começou a comer seuscarneiros. Como a tempestade continuasse,devorou as cabras. No terceiro dia, como nãohouvesse melhora, matou os bois de arado.Vendo-o agir assim, os cães falaram entre si: –Vamos embora, pois se o nosso dono nãohesitou em matar os bois, por que iria nospoupar?

Resguardemo-nos de quem não hesita emfazer o mal a seus próximos.

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O CORVO E HERMES

Um corvo pego numa armadilha prometeua Apolo oferecer-lhe incenso. Mas, uma vezfora de perigo, esqueceu a promessa. Pego denovo, abandonou Apolo e fez uma promessa aHermes. Este lhe respondeu: – Miserável!Como vou confiar em você, que renegou elesou seu mestre?

Você foi ingrato para com seusbenfeitores? Não conte com a ajude delesquando estiver em apuros.

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A GALINHA DOS OVOS DE OURO

Um homem tinha uma galinha que punhaovos de ouro. Achando que por dentro ela erasó ouro, matou-a, mas não encontrou nada dediferente das outras galinhas. Assim, em vez dedescobrir o enorme tesouro que esperava,perdeu até o pequeno lucro que ela lhe dava.

Cuidado com a ambição. Contenta-te como que já tens.

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ZEUS E O TONEL DE BENS

Zeus colocou todos os bens num tonelque enviou ao homem. Este, curioso pornatureza, quis saber o que havia ali dentro.Levantou a tampa. E os bens voaram para oscéus.

Aos homens só restou a esperança, quelhes promete de volta os bens perdidos.

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A CAUDA E O CORPO DA SERPENTE

Um dia, a cauda da serpente quis ir nafrente conduzindo todo o corpo. Este nãoaceitou: – Como nos conduzirá, você que nãotem olhos nem nariz como os outros animais?

Mas não adiantou de nada, o bom sensofoi posto de lado: a cauda foi na frente docorpo, conduzindo-o cegamente, até que aserpente caiu no fundo de um precipício cheiode pedras, despedaçando-se. A cauda, então,toda ondulante, suplicou à cabeça: – Salva-nos,por favor, ó querida rainha, eu te fiz umapéssima proposta.

Isto serve para os malandros e perversosque se revoltam contra seus mestres.

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O LEÃO APAIXONADO E O CAMPONÊS

Um leão se apaixonou pela filha de umcamponês e a pediu em casamento. Como nãoqueria dar sua filha a um animal selvagem aquem temia dizer não, o camponês imaginou oseguinte. Declarou ao leão, que o pressionavainsistentemente, que o considerava digno decasar com sua filha. Ele lha daria sob umacondição: que arrancasse os dentes e aparasseas garras, pois isso a assustava. O leão aceitou aproposta facilmente: estava apaixonado. Mas,em troca, conseguiu apenas o desprezo docamponês, pois, quando voltou, foi expulso apauladas.

Se, ao confiar em alguém, renuncias a tuasprerrogativas, tu te tornas presa fácil para os

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que até então te temiam.

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PROMETEU E OS HOMENS

De acordo com as normas de Zeus,Prometeu criou os homens e os animais. Mas,vendo que estes eram muito mais numerosos,Zeus ordenou a Prometeu suprimir um certonúmero, transformando-os em homens. Assimfoi feito. Eis por que há homens que de humanosó têm a aparência, mas a alma é de animal.

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A ROSA E O AMARANTO

Um amaranto disse à rosa, sua vizinha: –Como és bela! Deus e os homens te desejam!Tu é que és feliz por tua beleza e teu perfume!

– Amaranto, breve é a minha vida –respondeu a rosa –; mal desponto, alguém vemme colher. Tu, ao contrário, permanecessempre jovem. Melhor viver mais tempocontentando-se com pouco que ver ainfelicidade e a morte virem rápidas depois dedias tão felizes.

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ENTRE ÁRVORES

Os mais belos frutos? Cada árvore – aromãzeira, a macieira e a oliveira – se gabavade produzi-los. Criou-se uma discussão. Umasarça da vizinhança entrou na briga: – Ora,minhas amigas, não vamos perder nosso tempodiscutindo.

Quando os melhores se entredevoram, osinsignificantes fazem tudo para parecerimportantes.

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A CORNETA

Os soldados, com raiva da corneta que osconvocava para a guerra, tomaram-na comorefém. A corneta gritava: – Por favor, não mematem assim, sem mais nem menos: não mateinenhum dos seus e, além desse cobre de quesou feita, não possuo mais nada.

Eles responderam:– Uma razão a mais para te matar, tu, que,

por não poderes fazer a guerra, excitas osoutros ao combate.

Infelizes daqueles que levam os fortes ase mostrar cruéis e maus.

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A TOUPEIRA

Eis a história da toupeira – animal cego –que disse à mãe que estava enxergando. A mãecolocou-a então à prova: deu-lhe um grão deincenso e perguntou o que era.

– Um calhau – respondeu a filha.– Minha filha – disse a mãe –, além de

cega, perdeste o olfato.O impostor promete o impossível: basta

um nada para confundi-lo.

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O JAVALI E A RAPOSA

Um javali parara para descansar sob umaárvore para afiar suas garras.

– Para que serve – perguntou a raposa –,afiar tuas garras se não estás vendo nenhumcaçador e nenhum perigo?

– Tenho minhas razões – respondeu ojavali. – Se vem um perigo, não terei tempo deafiá-las; mas, como elas estarão prontas, ficarámais fácil para mim usá-las.

Não espere o perigo para se preparar paraele.

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A MORTE E O CISNE

A lenda é conhecida: quando estãomorrendo, os cisnes cantam. Ora, um homemencontrou um cisne que estava à venda.Disseram-lhe que era um animal que cantavamuito bem. Ele então o comprou. Um dia, aodar uma festa, pediu que trouxessem o cisnepara que ele cantasse. Mas a ave ficou calada.No entanto, algum tempo depois, sentindo amorte se aproximar, ele entoou um cantofúnebre. Qundo o dono o ouviu cantar assim,disse-lhe: – Se só cantas no momento demorrer, fui bem idiota naquele dia ao te pedirpara cantar em vez de te matar.

Às vezes somos obrigados a agradarmesmo contra nossa vontade.

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OS DOIS CÃES

Um homem tinha dois cães. Transformouo primeiro em cão de caça; o segundo, em cãode guarda. Ora, sempre que o primeiro traziaalguma caça, o dono dava um pedaço aosegundo. O cão de caça, descontente, disse aseu companheiro em tom de reprovação:

– Sempre sou eu que vou à luta e arriscominha vida. Tu ficas aí sem fazer nada. Depoisde eu tanto trabalhar, tu é que te regalas.

O outro respondeu:– Não tenho culpa nenhuma, vai te queixar

ao nosso dono. Foi ele que, em vez de meensinar a trabalhar, me ensinou a me alimentarcom o trabalho dos outros.

O filho não tem culpa do maus

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ensinamentos que aprendeu dos pais.

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A RAPOSA QUE NUNCA TINHA VISTOUM LEÃO

Era uma vez uma raposa que jamais viraum leão. A primeira vez que o encontrou, quasemorreu de medo. Na segunda vez, o medo foimenor. Na terceira, ousou falar-lhe.

O hábito termina eliminando o ladoassustador das coisas.

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OS SERES HUMANOS E ZEUS

Diz-se que os animais foram os primeirosa serem feitos. Uns se viram dotados pelo domde força, outros de velocidade, outros ainda deum par de asas. O homem, que permanecia nu,disse ao deus:

– Só eu não fui aquinhoado com nada.Mas Zeus lhe respondeu:– Não te dás conta do presente que te dei?

No entanto, foste tu que recebeste o mais belo.Recebeste a razão, cujo poder é grande entre osdeuses e os homens: quem pode mais e quem émais rápido?

Reconhecendo que se tratava de um belopresente, o homem se inclinou e se afastouagradecido.

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O deus honrou todos os homens dando-lhes a razão: mas alguns não se dão conta dahonra que lhes foi concedida e prefereminvejar os animais que não têm razão nemsentimento.

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O HOMEM E A RAPOSA

Um homem estava possesso com umaraposa que vinha prejudicando-o. Pegou-a e,como queria infligir-lhe um bom castigo,amarrou-lhe à cauda uma estopa embebida deóleo e ateou fogo. Depois, soltou-a em plenocampo. Mas um gênio esperto levou a raposapara os campos de seu carrasco. Aoacompanhar os passos da raposa, o homem iase lamentando diante da colheita perdida.

Calma! Não te deixes levar peladesmedida: tua raiva poderá te causar umgrande mal.

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ZEUS E A RAPOSA

Maravilhado com a inteligência e a astúciada raposa, Zeus a escolheu para rei dos animais.Mas quis saber se seus hábitos maliciosostinham mudado junto com sua sorte. Quando araposa ia passando numa liteira, ele pôs umescaravelho na frente dela. Incapaz de se conterdiante do inseto que voava à sua volta, a raposadeu um pulo e, abandonando qualquer discrição,tentou pegá-lo. Zeus, indignado, a fez voltar àsua antiga condição.

Por mais que mude as aparências, ohomem mau permanece o mesmo.

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AS CADELAS FAMINTAS

Duas cadelas famintas viram duas peles deanimais dentro de um rio. Mas como pegá-las?

– Se bebermos o rio, o secaremos e aspeles serão nossas.

Assim fizeram. Mas, de tanto beber água,explodiram bem antes de alcançar seu objetivo.

A pessoa cúpida expõe-se a perigos que adestroem antes de realizar o seu desejo.

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O LEÃO E O TOURO

Um leão, que estava pensando em comodar cabo de um enorme touro, preparou-lheuma armadilha. Convidou-o para comer umcarneiro que ele tinha sacrificado aos deuses.Ele pensava se lançar sobre o touro assim queestivessem à mesa. Quando chegou, o touro viumuitos caldeirões e enormes espetos, mas nadade carneiro. Sem uma palavra, retirou-se. Oleão repreendeu-o: – Não te fiz nada, por quevais embora assim sem dizer nada?

O touro respondeu:– Tenho minhas razões: vejo que fizeram

os preparativos não para um carneiro, mas paraum touro.

As astúcias dos maus não atingem o

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homem sensato.

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O PASTOR BRINCALHÃO

Um pastor que levou suas ovelhas parapastar em uma aldeia distante gostava de fazer aseguinte brincadeira: gritava “os lobos estãoatacando!” E clamava pelo socorro doshabitantes locais. Duas, três vezes, osmoradores ficaram com medo e fugiram dacidade, para depois voltarem rindo. Mas oslobos terminaram atacando de verdade. Comoestavam devorando os carneiros, o pastorgritou por socorro. Os moradores pensaramque fosse mais uma brincadeira e não lhederam nenhuma atenção. Foi assim que o pastorperdeu seu rebanho.

Ninguém acredita no mentiroso mesmoquando diz a verdade.

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O PESCADOR E O LAMBARI

Um pescador jogara sua rede no rio epescou um lambari. Era um peixe pequeno. Porisso este suplicou ao pescador para soltá-loporque ele ainda estava muito pequeno.

– Mas, quando eu crescer e me tornar umbelo peixe, poderás me pescar – disse ele aopescador –, e seu lucro será bem maior.

O pescador respondeu:– Eu seria muito idiota se menosprezasse

o ganho de hoje por menor que seja para pôrminha esperança no futuro, por melhor que mepareça.

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O ASNO SELVAGEM E O ASNODOMESTICADO

Um asno selvagem, ao ver um asnodomesticado num vale pleno de sol, felicitou-opor sua pança bem redonda: – Feliz és tu quepodes te regalar assim.

Mas, quando ele o viu um pouco depoiscom um pesado fardo no lombo e acompanhadopelo dono que lhe batia com um pedaço de pau,exclamou: – Não, eu não invejo mais teudestino, agora que estou vendo como pagas tuasregalias!

Não devemos invejar as vantagens que nosexpõem aos perigos e ao sofrimento.

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O ASNO, O GALO E O LEÃO

Um galo ciscava ao lado de um asno. Derepente, surgiu um leão que pulou sobre o asno.O galo então lançou seu grito e o leão fugiu(dizem que a voz do galo assusta os leões). Oasno, pensando que o leão tinha fugido commedo dele, pôs-se a persegui-lo. Mas, quando oasno já estava bem distante sem que se pudesseouvir mais a voz do galo, o leão se voltou edevorou-o.

Para nos destruir melhor, o inimigo se fazpequeno diante de nós.

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OS LOBOS E OS CORDEIROS

Os lobos estavam observando um rebanhode cordeiros. Como os cães de guarda osimpediam de avançar, eles resolveram lançarmão da astúcia. Enviaram alguns dentre elespara pedir aos cordeiros que lhes entregassemos cães:

– São eles – diziam os lobos –, que são acausa de nossa inimizade: entreguem-nos que apaz reinará entre nós.

Sem saber o que lhes ia acontecer, oscordeiros entregaram os cães. E os lobos, umavez de posse destes, não tiveram muito trabalhopara dizimar o rebanho sem os guardiães.

Quem entrega seus chefes não está vendoque em breve será presa de seus inimigos.

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O CÃO FUGITIVO

Um cão tinha sido criado numa casa. Foraensinado a enfrentar os animais selvagens, mas,quando se viu diante de um grupo deles prontopara atacar, quebrou a própria coleira e fugiupelas ruas da cidade. Vendo-o gordo e fortecomo um touro, alguns de seus companheirosde raça lhe perguntaram:

– Por que fugiste?– Eu sei – respondeu o cão –, que posso

comer tudo o que quero e necessito, e atémuito mais; mas, quando luto contra ursos eleões, posso morrer a qualquer momento.

Os outros disseram entre si:– Nossa vida é só nossa. Apesar de pobre,

é bela, pois não combatemos nem leões nem

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ursos.Melhor viver longe dos perigos que ficar

exposto a eles em troca de boas coisas ou deglória vã.

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O PESCADOR E OS PEIXINHOS

Quando o pescador puxou sua rede daágua, ela veio repleta de peixes graúdos que eleespalhou pela areia. Os menores escaparampelos buracos da rede e voltaram ao mar.

Quem tem uma posição modesta escapamais facilmente da rede em que caem os maisgraúdos.

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A RAPOSA E O BODE

Uma raposa caíra num poço. Não haviacomo sair. Foi quando apareceu um bodesedento. Ao ver a raposa, perguntou-lhe se aágua era boa. Diante de tanta sorte, a raposacomeçou a elogiar a água: não havia maissaborosa. E convidou o bode a descer também.Sem pensar duas vezes e só pensando em saciarsua sede, o bode desceu. Depois de beber àvontade, era hora de voltar à superfície: “comofazer?”, perguntou à raposa.

– Eu sei – disse ela –, de uma boa saída,desde que tenhas vontade de nos tirar desseaperto: põe os teus pés da frente contra aparede e ergue os teus chifres; aí eu dou umpulo e saio. Uma vez lá fora, eu te puxo.

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O bode fez o que ela disse. Com a ajudadas pernas, das costas e dos chifres do bode,ela conseguiu, dando alguns pulos, voltar à bocado poço e, assim que se viu salva, foi embora.Como o bode a repreendesse por não tercumprido o acordo, a raposa lhe disse:

– Ah, meu caro, se tivesses tanta presençade espírito quanto pêlos no queixo, não teriasdescido sem saber como irias sair.

É preciso antever o final em tudo o que sefaz.

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A ANDORINHA E A GRALHA

À andorinha que se achava o mais belo dospássaros, a gralha replicou:

– Tua beleza só floresce na primavera,enquanto eu suporto também o inverno.

Mais vale uma longa vida que a beleza.

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O HOMEM MORDIDO POR UMAFORMIGA E HERMES

Diante de um navio que naufragava com ospassageiros, um homem se pôs a invectivarcontra a injustiça dos deuses; por causa de umque os tinha ofendido, estavam pagando osinocentes. Enquanto falava, foi mordido poruma formiga – havia muitas onde ele seencontrava. Apesar de só uma havê-lo mordido,ele matou todas. Hermes então tomou apalavra: – Tu, que te vingas assim de umaformiga, não admites que os deuses ajam à tuamaneira?

Diante da desgraça, não blasfemes contraos deuses: examina antes teus próprios erros.

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O MARIDO E A MULHER

Como sua mulher era muito ranzinza coma criadagem, um homem se dizia: “Gostaria desaber se ela ousaria tratar assim os empregadosde seu pai”. Encontrou um bom pretexto paramandá-la até a casa deste. Quando voltou,alguns dias depois, perguntou como tinha sidorecebida.

– Os boiadeiros e os pastores – disse ela–, me olhavam de través.

– Pois veja, minha cara – disse ele –, sequem sai de manhã e só volta à noite com seusrebanhos te olhava assim, o que dizer de quempassa o dia inteiro contigo!

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O MORCEGO E AS DONINHAS

Um morcego havia caído no chão.Veiouma doninha e o capturou. Já ia matá-lo quandoo morcego implorou: – Deixa-me viver.

– Impossível – respondeu a doninha –,pois sou inimiga de todos os pássaros desdeque nasci.

– Eu não sou um pássaro – disse o outro.E a doninha o deixou ir embora.Pouco depois, o morcego caiu de novo e

foi pego por outra doninha.– Não me comas – suplicou.A doninha disse:– Detesto ratos.O morcego falou:– Não sou um rato, sou um morcego.

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Mais uma vez conseguiu se salvar.Assim, mudando duas vezes de nome,

escapou da morte. A cada perigo, uma novafeição.

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AS ÁRVORES E A OLIVEIRA

Um dia, as árvores acharam-se no deverde escolher uma rainha e elegeram a oliveira:

– Sê nossa rainha.Mas a oliveira respondeu:– Vou ter de renunciar ao azeite que

homens e deuses celebram em mim para irchefiar as árvores?

As árvores foram então à figueira, masesta respondeu:

– Vou renunciar à minha doçura, ao meufruto suculento, para ir chefiar as árvores?

As árvores foram então ao pé decarrapicho e ele respondeu:

– Se vocês me sagraram rei, ponham-sesob a minha tutela. Se não for assim, que de

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mim saia uma espécie de fogo capaz de devoraros cedros do Líbano.

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O LENHADOR E HERMES

Um lenhador que trabalhava à margem deum rio deixara seu machado cair dentro daágua. Desconsolado, ele chorava, sentado naareia. Ao saber de seu infortúnio, Hermes tevepena dele e mergulhou no rio. Trouxe-lhe ummachado de ouro.

– É o teu? – perguntou ao lenhador.– Não – respondeu o homem.Hermes mergulhou de novo e voltou com

um machado de prata.– Não, não é esse – respondeu o homem.Hermes mergulhou pela terceira vez e

trouxe um machado de lenhador.– Sim, é esse – disse o homem.Diante de tal honestidade, Hermes deu os

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três machados a ele. O lenhador foi contar ahistória a seus amigos. Um deles quis ver seaquilo era mesmo verdade. Foi até a beira dorio e jogou seu machado na água. Depois sesentou e começou a se lamentar. Hermes lheapareceu e, ao saber o porquê de suas lágrimas,mergulhou no rio. Mais uma vez, voltou comum machado de ouro e perguntou se era aqueleo que tinha perdido. E o homem, os olhosbrilhando de satisfação: – Sim, é esse, semdúvida.

Tal descaramento desagradou demais aodeus, que não só guardou o machado de ouromas também o outro.

Os deuses protegem o homem correto,mas desapontam o velhaco.

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O CAMPONÊS E A SORTE

Um camponês, ao cavar a terra, descobriuouro. Desde então, passou a abençoar a terraem quem via sua grande benfeitora. Mas a Sorteapareceu e lhe disse:

– Não foi a terra, mas eu, que te dei estepresente e que quer te enriquecer. No dia emque os ventos soprarem ao contrário e o ouropassar para outras mãos, é a mim que culparás.

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OS LOBOS E OS CÃES

Os lobos disseram aos cães:– Vocês se parecem demais conosco. Por

que então não confraternizamos? Só a forma dever as coisas é que é diferente. Vivemos livres,enquanto vocês vivem em função de seusdonos. Além de suportar os golpes deles, vocêsusam uma coleira e tomam conta de seusrebanhos. Quando eles comem, só lhes jogamos ossos. Confiem em nós: entreguem-nos osrebanhos. Nós os dividiremos com vocês ecomeremos até nos fartar.

Os cães aceitaram a proposta. Ao entrarnos estábulos, os lobos estraçalharam logo oscães.

Esse é o preço de quem trai sua pátria.

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O PASTOR E O LOBINHO

Um pastor encontrara um lobo. Criou-o e,logo cedo, lhe ensinou a roubar as ovelhas dosrebanhos alheios. Mas, uma vez treinado, olobo disse ao pastor:

– Agora que me acostumaste a roubar,trata de me conseguir uma boa quantidade detuas ovelhas.

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A PULGA E O HOMEM

Um dia, uma pulga estava importunandoum homem. Ao ser mordido, ele exclamou:

– Quem és tu, que te alimentas de meusangue e me devoras sem razão alguma?

– É assim que nós pulgas vivemos; não memates, não posso te fazer o mal.

E o outro começou a rir:– Vou te matar agora, pois não é bom

deixar o mal crescer, por menor que seja.

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O LEÃO E A LEBRE

Um leão encontrou uma lebreadormecida. Já ia devorá-la quando passou umacorça. Deixando então a lebre, pôs-se aperseguir a corsa. A lebre, acordada pelobarulho, fugiu. Depois de ter perseguido acorça infrutiferamente, o leão voltou parapegar a lebre, mas, vendo que ela tinhaescapado, exclamou:

– Por querer uma presa maior, termineiperdendo a que já estava garantida.

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AS HIENAS

Dizem que as hienas mudam de sexo deum ano para o outro: ora são machos, ora sãofêmeas. Como uma hiena macho copulava portrás com uma fêmea, esta lhe disse: – Estás mefazendo o que vão fazer contigo em breve.

Isto vale para o magistrado que te ultraja ea quem sucederás logo depois.

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O ASNO E A MULA

Um asno e uma mula iam juntos por umaestrada. Vendo que eles levavam a mesmacarga, o asno ficou indignado e se queixou de amula ganhar mais ração do que ele e, noentanto, a carga era a mesma para os dois. Aofim de algum tempo, como o asno já não estavamais agüentando a carga, o tropeiro passou umaparte dela para a mula. Um pouco depois, comoo asno estivesse de novo esgotado, o tropeiro oaliviou de parte da carga, e assim foi fazendoaté que a mula terminou carregando tudo. Esta,então, se voltou para o asno: – E agora, nãomereço minha ração reforçada?

Julguemos as coisas quando estãoconcluídas e não logo no começo.

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A RAPOSA SEM CAUDA

Uma armadilha decepara a cauda de umaraposa. Sentindo-se desonrada, perdeu o gostopela vida. Mas teve uma idéia: ia fazer com queas outras raposas também perdessem a sua. Setodas ficassem iguais, seu defeito passariadespercebido. Reuniu então todas as raposas eas convocou a cortar a cauda, apêndice,segundo ela, feio, inútil e pesado. Foi quandouma das raposas tomou a palavra: – Se isso nãofosse para o seu bem, não nos teria dado esseconselho.

Quem dá conselhos está visandosobretudo o próprio bem e não o dos outros.

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O MACACO E O CAMELO

Quando de uma assembléia de animais,um macaco se levantou e pôs-se a dançar. Suadança agradou a todos e não faltaram elogios.Invejoso, um camelo quis também fazersucesso. Levantou-se e pôs-se a dançar. Massuas contorções indignaram os animais, que oexpulsaram a pauladas.

Isto vale para o invejoso que quercompetir com quem é melhor do que ele.

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O CISNE E A GANSA

Um homem rico criava juntos uma gansa eum cisne, este por seu canto e aquela por suacarne. Quando chegou a hora de matar a gansa,já era noite. Como distingui-la do cisne? Ocisne terminou sendo levado em seu lugar. Eleentão começou a cantar como prelúdio àmorte, e sua voz melodiosa, revelando quemele era, poupou-lhe o fim.

Assim, muitas vezes, a música afasta amorte por um tempo.

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A CABRA E O ASNO

Uma cabra e um asno viviam na mesmacasa. A cabra ficou com ciúme porque o asnorecebia mais ração do que ela. Ela lhe disse: –Que inferno é a sua vida! Quando não está nomoinho, está carregando um fardo! Quer umconselho: quer descansar? Faça como seestivesse tendo uma crise de epilepsia e caianum buraco.

O asno achou que era um bom conselho:caiu de propósito e quebrou os ossos. Seu donofoi atrás de um médico para socorrê-lo.

– Se lhe der um chá de pulmão de cabra,ele vai se restabelecer.

A cabra foi sacrificada e o asno ficoucurado.

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Quem maquina contra os outros terminafazendo o mal a si próprio.

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A RAPOSA E AS UVAS

Uma raposa estava com muita fome e viuuma cacho de uvas numa latada. Quis pegá-lo,mas não conseguiu. Ao se afastar, disse para simesma: – Estão verdes.

O homem que culpa as circunstânciasfracassa e não vê que o incapaz é ele mesmo.

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A MINHOCA E A SERPENTE

Uma minhoca viu uma serpente quedormia à sombra de uma figueira. Com invejade seu tamanho, quis igualar-se a ela. Esticou-se tanto que terminou se despedaçando.

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O HOMEM QUE ENCONTROU UM LEÃODE OURO

Um avarento, que era também um poltrão,encontrou um leão de ouro. Disse então para simesmo: – O que será de mim? Dividido entremeu amor pelas riquezas e minha fraquezanatural, não sou mais dono de mim e não sei oque fazer. Quem fabricou esse leão de ouro: oacaso ou o demônio? Minha alma guerreiacontra si mesma: ela ama o ouro, mas teme oque ele fabricou. O desejo me impele a pegaraquilo que eu mesmo quero abandonar. Ófortuna, que dás e não permites que eu pegue oque vejo. Ó bom gênio, cuja graça cria a minhadesgraça! E agora? O que faço? Que astúciadevo usar? Vou mandar vir meus criados: eles

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pegarão o leão e eu olharei de longe como eleso seguram.

Assim é o rico que não ousa tocar emsuas riquezas.

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O URSO E A RAPOSA

Um urso se gabava de ser um amigo dogênero humano: – Quando um homem morre –dizia –, não toco em seu cadáver.

Ao ouvir isso, a raposa retrucou:– Se pelo menos devorasses os mortos

em vez dos vivos!Violentos, hipócritas e frívolos: tirem as

máscaras.

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O LAVRADOR E O LOBO

Um lavrador desatrelou seus animais e oslevou ao bebedouro. Um lobo que, faminto,procurava o que comer, encontrou a charrua.Começou a lamber a canga. Depois, ao passar opescoço por baixo, ficou preso, e, sem se darconta, começou a puxar a charrua pelo campo.

Ao voltar do bebedouro, o lavrador o viu edisse:

– Maldito animal, não vá querer dizer quedeixou de pilhar e de fazer o mal para lavrar aterra!

Não adianta os maus quererem passar porvirtuosos, a forma como o fazem osdesacredita aos olhos dos outros.

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ZEUS E OS HOMENS

Depois de ter feito os homens, Zeuspediu para Hermes lhes dar a inteligência.Hermes assim o fez, distribuindo-aigualitariamente. Mas a mesma quantidade quefoi suficiente para os pequenos não o foi paraos grandes. Daí a inteligência destes ser beminferior à daqueles.

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O PASTOR E O CÃO

Um pastor tinha por costume, quando umade suas ovelhas morria, dá-la para seu jovemcão comer. Ora, um dia em que uma de suasovelhas caiu doente, ele viu o cão ao lado dela,os olhos aflitos, e parecia que ia chorar. Opastor acariciou o cão dizendo-lhe: – Tuacompaixão é louvável; pede, no entanto, ao céuque o que tu desejas não se realize!

Muitos herdeiros se parecem com essecão.

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O GAROTO LADRÃO E SUA MÃE

Um dia, na escola, um menino roubou alousa de um colega e a levou para a mãe. Esta,em vez de ralhar com o filho, lhe deu osparabéns, de modo que da próxima vez eletrouxe uma peça de roupa; por esse novo rouboele recebeu cumprimentos ainda maiores. Aolongo dos anos, já rapaz, passou a roubar mais emais. Um dia, porém, foi pego em flagrante:amarraram-lhe as mãos e o conduziram aocarrasco. Ao ver que a mãe o acompanhava, eledisse que queria confiar-lhe um segredo.Quando ela se aproximou, ele agarrou-lhe aorelha e a rasgou com os dentes.

– Ímpio – disse-lhe ela –, já não bastaramos malfeitos que cometeste e ainda ultrajas tua

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mãe!O filho respondeu:– Se a senhora tivesse me dado uma surra

no dia em que eu lhe levei a lousa roubada, eunão teria chegado ao ponto a que cheguei: nãoestaria a caminho da morte.

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O LEÃO JUSTO

A realeza foi parar nas mãos de um leãoque não era nem irascível, nem cruel, nemviolento. Sua benevolência e sua justiça tinhamalgo de humano. Em seu reinado, houve umaassembléia dos animais, uma ocasião paratodos repararem seus erros, uns em relação aosoutros: o lobo com o cordeiro, a pantera com ocamelo, o trigre com o veado e o cão com alebre. Esta, medrosa, disse então: – Sempresonhei com o dia em que os indefesos fossemtemidos pelos violentos.

O Estado justo e a igualdade dosjulgamentos asseguram a tranqüilidade dospequenos.

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O ASNO E O LOBO

Um asno estava pastando num campoquando viu um lobo vindo a seu encontro.Fingiu então estar mancando. Ao encontrar oasno, o lobo lhe perguntou o que o fazia mancardaquele jeito.

– Ao pular a cerca, entrou um espinho emmeu pé – respondeu o asno. – Basta que tu otires e depois poderás me comer sem o riscode engoli-lo.

O lobo obtemperou. Levantou a pata doasno e, enquanto examinava com cuidado ocasco, levou um coice no queixo, que lhequebrou os dentes. E o lobo em estadolastimável exclamou:

– Bem feito! Quem me mandou bancar o

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médico, eu que fui instruído por meu pai nasartes de açougueiro?

Cada qual em seu ofício.

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O CAÇADOR

Um caçador estendeu sua rede pregando-aàs paredes de seu pombal. Colocou-se a algumadistância e esperou para ver o que ia acontecer.Pombos selvagens se aproximaram dos pombosdomésticos e terminaram presos nas malhas. Ocaçador foi logo correndo para pegá-los.

– Por que vocês não advertiram seusirmãos da armadilha que lhes foi estendida? –perguntou ele aos pombos domésticos.

Os pombos responderam:– Melhor escapar de sua ira do que

agradar nossos companheiros.Não censuremos os criados que, por amor

a seus patrões, violam as leis da amizade que osunem a seus próprios parentes.

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O LEÃO QUE TINHA MEDO DE UMCAMUNDONGO E A RAPOSA

Um camundongo estava passeando sobreum leão que dormia. Este acordou e se pôs aprocurar por toda parte quem ousara tanto. Umaraposa o viu assim e lhe perguntou: – Como éque pode um leão ficar assustado por causa deum camundongo?

Mas o leão respondeu:– Não é que eu estivesse com medo.

Estava admirado de alguém ter tido a coragemde ficar passeando em cima de um leãoadormecido.

O homem inteligente preocupa-se com osmenores detalhes.

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O BANDIDO E A AMOREIRA

Um bandido estava fugindo. Assassinaraum homem numa estrada, depois o abandonaratodo ensangüentado, e agora estava sendoperseguido pelas testemunhas. Quando cruzoucom alguns viajantes, eles lhe perguntaramonde tinha sujado as mãos.

– Acabo de descer de uma amoreira –respondeu.

Por ter dito isto, seus perseguidores opegaram, o amarraram e o enforcaram numaamoreira. Esta lhe disse: – Não estou chateadapor te servir de forca, pois foi em mim quelimpaste o sangue que fizeste correr.

Mesmo o homem bom não hesita emtratar duramente quem o caluniou.

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A GUERRA DOS LOBOS E DOS CÃES

Um dia, o ódio lançou os lobos e os cãesuns contra os outros. Os cães escolheram umgeneral grego. Este estava demorando a iniciaro combate, apesar das violentas ameaças doslobos, a quem ele disse: – Saibam por queestou ganhando tempo: é bom pensar antes deagir. Vocês lobos formam uma só raça e sãotodos da mesma cor. Nossos soldados, noentanto, são de hábitos bem diferentes: cadaum vem de uma região da qual se orgulham. Eeles diferem também na cor: uns são negros,outros ruivos, outros brancos ou cinzentos.Como posso, então, comandar soldados tãodiferentes e pouco afeitos uns aos outros?

As armas da vitória: uma só vontade, um

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só pensamento.

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O ASNO E A CARGA DE SAL

Um asno carregado de sal atravessava umrio. Um passo em falso e ei-lo dentro da água.O sal então derreteu e o asno se levantou maisleve. Ficou todo feliz. Um pouco depois,estando carregado de esponja às margens domesmo rio, pensou que se caísse de novoficaria mais leve e caiu de propósito nas águas.O que aconteceu? As esponjas ficaramencharcadas e, impossibilitado de se erguer, oasno morreu afogado.

Algumas pessoas são vítimas de suaspróprias artimanhas.

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O PAVÃO E A GRALHA

Os pássaros discutiam:– Quem será nosso rei?– Por minha beleza, serei eu – disse o

pavão.Todos o aprovaram. Mas a gralha

argumentou:– Vejamos. Tu és nosso rei, uma águia nos

ataca. Como vais nos salvar?Previdência é sabedoria.

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A CIGARRA E A RAPOSA

Uma cigarra cantava no alto de umaárvore. Uma raposa que queria abocanhá-lapreparou a seguinte armadilha. Procurou veronde ela estava e disse que admirava a doçurade seu canto. Convidou-a a descer, pois queriacontemplar animal dotado de tão bela voz. Masa cigarra notou logo que era uma armadilha.Arrancou uma folha e deixou-a cair. E, como araposa correu pensando que fosse a cigarra,esta lhe disse: – Enganou-se, amiga. Esta nãosou eu. Fujo das raposas desde o dia em que vinum de seus covis asas de cigarra.

A desgraça sempre serve para algumacoisa.

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OS NAVEGADORES

Alguns homens tinham embarcado parauma longa viagem. Quando estavam em alto-mar, foram pegos por uma violenta tempestade,e faltou pouco para o navio ir a pique. Um delestinha rasgado suas vestes e invocava os deusesde seus antepassados com fortes lamentos egemidos. Prometia-lhes sacrifícios e ações degraça se os livrassem daquele perigo. Mas,quando veio a bonança, todos se puseram acomer, a pular, a dançar, por terem sido salvosdo perigo. Mas o comandante não se deixoulevar pelo entusiasmo: – Brindemos, meusamigos – disse-lhes ele –, sabendo que nãoestamos livres de uma nova tempestade.

Não nos deixemos cegar pelo sucesso: o

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destino é mutável.

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O HOMEM RICO E O CURTUME

Um homem muito rico morava bem pertode um curtume. Como já não suportava mais omau cheiro das peles, pressionou oproprietário a se mudar. Este sempre dizia queiria se mudar logo logo, mas não o fazia nunca.E fez isso durante tanto tempo que o homemrico se habituou ao cheiro do curtume e paroude importuná-lo.

O hábito atenua os dissabores.

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AS CARPIDEIRAS

Um homem muito rico tinha duas filhas.Quando uma delas morreu, ele chamou ascarpideiras. A outra filha disse então à mãe: –Veja a nossa infelicidade: nós que estamossofrendo não sabemos como chorar, enquantoessas mulheres que não têm nada a ver comnosso luto se dilaceram e choram com tantaviolência.

– Não se admire, minha querida –respondeu a mãe –, se elas fazem tudo isso éporque estão sendo pagas.

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O PASTOR E O MAR

Um pastor apascentava seu rebanho àbeira de uma praia e o mar lhe pareceu tãocalmo que ele se sentiu tomado pelo desejo denavegar. Seria comerciante. Vendeu então oscarneiros e ganhou o alto-mar. Umatempestade o surpreendeu e o barco começou asoçobrar. Ele jogou toda a carga nas águas e sesalvou com muita dificuldade, mas sem nada.Depois de algum tempo, como um outrohomem admirava o mesmo mar tranqüilo – e defato ele estava naquele momento – o pastor lhedisse: – Meu caro, ele está assim tão calmoporque ainda precisa de comida.

A experiência ruim deixa suas lições.

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O LEÃO E A RÃ

Um leão ouviu uma rã coaxar e se voltou,pensando tratar-se de um animal bem grande.Mas quando, instantes depois, viu que se tratavade uma rã saindo do açude, esmagou-a dizendo:

– Um corpo tão pequeno e tão grandesgritos!

Falastrões, cuidado!

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O CAMPONÊS E SEUS FILHOS

Um camponês tinha chegado ao fim desua vida. Como queria que os filhos soubessemo que era cuidar da terra, chamou-os e lhesdisse:

– Meus filhos, chegou a minha hora.Quanto a vocês, nada lhes faltará se procuraremo que escondi nas minhas vinhas.

Os filhos pensaram que ele estivessefalando de algum tesouro. Uma vez o paimorto, eles cavaram todo terreno, mas em vão.Nada de tesouro, mas a vinha bem lavrada deu-lhes uva em abundância.

O tesouro é o trabalho.

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O ROUXINOL E O FALCÃO

Um rouxinol estava cantando no alto deum carvalho. Um falcão que estava morrendode fome o viu e partiu certeiro em sua direção,levando-o em suas garras. Ao ver-se perto damorte, o rouxinol rogou ao falcão para soltá-lo: – Não é um pobre rouxinol que vai matar tuafome. Se tens fome mesmo, vai pegar outrospássaros maiores.

O falcão replicou:– Eu seria bem idiota se largasse o

alimento que tenho em mãos para ir atrás deoutras presas que nem estou vendo.

Por querer demais, o insensato terminaperdendo até o que já possui.

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A ÁGUIA

Quando estava tocaiando as lebres do altode um rochedo, uma águia foi ferida por umaflecha cuja ponta se enterrou em seu peito.Quando viu que se tratava de uma flechaadornada de penas, exclamou: – É uma duplatristeza morrer vítima de minhas própriasplumas.

O aguilhão que nos fere dói muito maisquando nós mesmos o fabricamos.

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A RÃ E A RAPOSA

Do açude onde estava, uma rã gritava paratodos os animais:

– Eu sou médico, conheço todos osremédios!

A raposa então replicou:– Como vais curar os outros se não

consegues curar teu andar manco?O ignorante pode nos instruir?

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OS BOIS E O LEÃO

Três bois pastavam sempre juntos. Maunegócio para o leão que queria devorá-los.Depois de conseguir separá-los com suasmentiras, devorou um depois do outro.

Se queres viver longe do perigo,desconfia de teus inimigos e cuidado com osteus amigos.

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O CÃO E O JANTAR

Como seu dono estava preparando umfestim para amigos e familiares, um cãoconvidou um de seus parentes: – Venha para anossa festa.

O convidado chegou todo feliz. Diante dobelo jantar, ladrando para si mesmo disse: –Oh! Não acredito no que estou vendo! Vouencher a pança e comer tanto que amanhã nãoterei fome.

Enquanto pensava isso, abanava o rabo.Confiava no amigo. Mas o cozinheiro vendo-oabanar o rabo pra lá e pra cá, pegou-o pelaspatas e o jogou sem mais delongas pela janela.O animal se retorceu e saiu se lamentado. Nocaminho encontrou uma matilha de cães. Um

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deles lhe perguntou: – E aí, amigo, comeumuito?

– Bebi e fiquei tão embriagado que nemsei mesmo por onde saí.

Desconfiemos das promessas feitas comos bens dos outros.

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O MENINO E O GAVIÃO

Uma mulher consultou o oráculo arespeito de seu filho. Os adivinhos previramque ele seria morto por um gavião. Assustada, amulher trancou o filho no quarto de guardados,esperando assim poupá-lo da morte prevista.Todo dia, na mesma hora, ela ia alimentá-locom o maior cuidado para que ele não saísse.Um dia, porém, quando o menino foi mexernuns apetrechos que estavam em cima de umarmário, veio sobre ele uma foice cujo gaviãofoi certeiro em seu pescoço, matando-o nahora.

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OS FILHOTES DA MACACA

Dizem que os filhotes da macaca semprevêm ao mundo em dupla. Um é o objeto dosternos cuidados da mãe, enquanto o outro é aomesmo tempo detestado e abandonado àprópria sorte. Mas a providência é sábia: oprimeiro, de tanto carinho e proteção, terminamorrendo sufocado pelo excesso de carinhos;o segundo, a quem ela não dá atenção, cresceviçoso, sem problemas.

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O FILHO, SEU PAI E O LEÃO

Era uma vez um velho timorato que tiveraum filho único. Este era bravo e gostava muitode caçar. Um dia o velho teve um sonho em quevia o filho ser morto por um leão. Temendoque aquilo realmente acontecesse, levou-o paraum lugar seguro e confortável. Para agradá-lo,mandou pintar nas paredes toda espécie deanimal, e entre eles havia um leão. No entanto,quanto mais o menino olhava as pinturas maistriste ficava. Até que um dia ele se aproximoudo leão e disse:

– Maldito animal, foi por causa de umsonho falso de meu pai que fiquei aquienclausurado como uma mulher.

E começou a socar a parede para furar o

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olho do leão. Nisso, uma farpa entrou em suaunha. O dedo inflamou, um tumor apareceu,acompanhado de uma febre altíssima, e omenino terminou morrendo. Mesmo pintado, oleão não deixou de ser responsável pela mortedo menino, apesar dos artifícios inúteis do pai.

Ninguém escapa a seu destino.

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A RAPOSA E A PANTERA

– Veja – dizia a pantera –, o brilhocambiante de minha pele.

– Entre nós, raposas, não é o corpo quebrilha, mas a inteligência.

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O FANFARRÃO

Um atleta cuja falta de energia erarepreendida constantemente por seuscompatriotas, abandonou um dia seu país. Devolta, ao fim de um certo tempo, ficaraproclamando os feitos que ele dizia terconseguido no estrangeiro. Em Rodes,particularmente, ele havia saltado mais longeque qualquer outro vencedor dos jogosolímpicos. E havia várias testemunhas paradizê-lo. Um dos que o ouviam tomou então apalavra: – Se dizes a verdade, não precisas detestemunha; dá agora o pulo que deste emRodes.

A prova dos fatos torna todo discursoinútil.

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O HOMEM GRISALHO E SUAS DUASMULHERES

Um homem cujos cabelos estavamficando grisalhos tinha duas mulheres: uma erajovem; a outra, velha. A de idade avançada tinhavergonha de ter um amante mais novo que ela.Quando ele ia visitá-la, ela ficava o tempo todoarrancando os cabelos pretos dele. A maisnova, por sua vez, era reticente à idéia de terum amante mais velho que ela, e ficavaarrancando os cabelos brancos dele. De tantoarrancarem os cabelos do homem, ele terminoucareca.

Nada pior que estar em condição desigualà dos parceiros.

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O PASTOR E OS LOBINHOS

Um pastor que tinha encontrado unsfilhotes de lobo, criou-os com o maiorcuidado.

– Quando ficarem adultos – dizia ele –,não só tomarão conta de minhas ovelhas, comotambém roubarão as dos outros e as trarão paramim.

Mas, assim que ficaram grandes, vendoque nada tinham a temer do pastor, os lobinhosatacaram o seu rebanho. Quando se deu contadisso, o pastor começou a se lamentar: – Mascomo fui deixar crescer esses animais que,uma vez adultos, iam se tornar ainda maisindesejáveis.

Se poupares os maus, quando ficarem

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fortes serás o primeiro que eles atacarão.

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O LEÃO E A RAPOSA

Um leão cuja idade avançada não permitiamais que fosse à procura de alimentos, valeu-sede um estratagema. Entrou numa gruta e sedeitou, fingindo estar doente. E os animais queiam visitá-lo, ele comia. Muitos já tinhammorrido quando a raposa, que tinha descobertoa astúcia, se apresentou. Ela parou a distânciada gruta e perguntou ao leão como ele estava.

– Mal – respondeu.E acrescentou:– Por que não entras?A raposa respondeu:– Eu não entrei porque só vi rastro de

animais entrando, nunca saindo.O homem advertido pressente de longe o

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perigo e é capaz de evitá-lo.

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O LOBO E O CORDEIRO REFUGIADONUM TEMPLO

Perseguido por um lobo, um cordeiroprocurou abrigo num templo. Como o lobo lhedisse que, se o sacerdote o encontrasse ali osacrificaria a seu deus, ele respondeu: – Dequalquer maneira, prefiro terminar no altar deum deus que na tua boca.

Morrer, mas com toda dignidade.

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O CAMPONÊS E A SERPENTE

Uma serpente conseguira deslizar até ofilho de um camponês e o picara. Terrível foi ador do pai que, pegando um pedaço de pau,ficou na porta do buraco do réptil, esperando-opara matar. Assim aconteceu. A serpente malpôs a cabeça para fora e o homem jogou-lhe opau em cima. Mas este caiu ao lado daserpente, numa pedra, partindo-a. Temendoentão represálias, o camponês quis sereconciliar com a serpente. Mas ela respondeu:– Como não nos odiarmos quando eu, de umlado, vejo a pedra lascada, e você, do outro, vêo túmulo de seu filho?

Para um grande ódio, paz difícil.

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O HOMEM QUE FOI MORDIDO POR UMCÃO

Um homem que fora mordido por um cãopôs-se a procurar quem cuidasse de seuferimento. Alguém lhe disse: – Basta enxugar osangue com um pedaço de pão. Depois jogue opedaço para o cão que o mordeu.

– Nada disso – respondeu o homem –,assim todos os cães da cidade vão me morder.

Agradar o mau só faz aguçar seu instintode perversidade.

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ZEUS JUIZ

Zeus disse a Hermes:– Escreva os erros dos homens nas

conchas e as deposite nesta taça ao meu lado.Assim poderei punir os culpados.

Mas as conchas se misturaram e algumasdemoram mais que as outras a cair nas mãos dojuiz.

Por isso, não é de estranhar que, desdeentão, os criminosos demorem a receber àsvezes o castigo pelo erro que cometeram.

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O SOL E AS RÃS

Naquele verão, celebravam-se as núpciasdo Sol. Todos os animais estavam felizes. Atéas rãs se alegraram. Mas uma delas exclamou:– Insensatas, por que esse alvoroço? Se,sozinho, o Sol pode secar toda a lama, o quenão sofreremos se, uma vez casado, ele gerarum filho igual a ele?

Levianos, por que se regozijar com o quenão lhes trará nenhuma alegria?!

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A MULA

Depois de ter-se fortalecido comendomuita cevada, uma mula pôs-se a dar pulos.Dizia para si mesma toda vaidosa: – Meu pai, ocavalo, é um corredor veloz e eu sou muitoparecida com ele.

Mas, um dia, a necessidade obrigou-a acorrer. Terminada a corrida, estava de caratriste: lembrava-se de seu pai, o asno.

Se um dia conheceres a glória, nãoesqueças de tuas origens: esta vida não é senãoinconstância.

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HÉRACLES E PLUTOS

Quando foi recebido como novo deus namesa de Zeus, Héracles saudou cada um dosimortais com toda a cortesia. Mas, quandochegou a vez de Plutos[1], o último de todos, onovo deus baixou os olhos e se desviou dele.Zeus ficou intrigado com aquilo e perguntou-lhe: – Por que, depois de ter saudado todos osdeuses com alegria, desviaste o olhar só dePlutos?

– Foi porque – respondeu Héracles –, notempo em que eu estava entre os homens, eu ovia a maior parte do tempo em companhia dosmaus.

Isto se aplica bem a qualquer pessoa queenriqueceu por acaso, mas não perdeu a

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maldade.

[1]. Plutos: Deus da riqueza. Rezava a tradiçãoque Zeus o tornara cego a fim de que eledistribuísse a riqueza indistintamente aos bonse aos maus. Aristófanes recorre a essa tradiçãoem sua comédia; Plutos. Sabemos também que,durante o período helenístico, a figura deHéracles foi tomada com freqüência como ummodelo de virtude.

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O SEMIDEUS

Um homem estava fazendo sacrifícios aum semideus que abrigava em sua casa. Comoestava gastando demais para fazer suasoferendas, o semideus apareceu-lhe uma noitee disse-lhe:

– Amigo, pára de dilapidar teus bens. Secontinuares gastando desse jeito, ficarás pobree te voltarás contra mim.

Muitas pessoas, por idiotice, caem emdesgraça e depois culpam os deuses.

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O ATUM E O GOLFINHO

Perseguido por um golfinho, um atumfugia provocando enormes remoinhos na água.Já estava prestes a ser capturado quando, levadopor sua própria força, foi dar sem querer napraia. O golfinho foi também lançado longe daságuas. Vendo que seu inimigo estava morrendo,o atum lhe disse:

– Para mim a morte não me entristecemais, pois comigo vai aquele que me levou atéela.

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O CÃO E O CHOCALHO

Como um cão mordia as pessoastraiçoeiramente, seu dono atou-lhe umchocalho no pescoço para que assimsoubessem de sua presença. E o cão, ao sacudiro chocalho, divertia a todos na praça pública.Mas uma velha cadela lhe disse: – Por quetanto orgulho? Não é por seres virtuoso quetens este chocalho no pescoço. Ele representao teu vício oculto.

Pobres fanfarrões! Por trás da glória queostentam esconde-se a maldade.

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O LOBO FERIDO E A OVELHA

Um lobo que havia sido mordido peloscães e estava em lastimável estado não podiamais ir atrás de alimento. Ao ver uma ovelha,ele pediu-lhe para ir buscar água no riopróximo.

– Se me deres água – disse-lhe ele –,poderei depois ir procurar comida.

Mas a ovelha respondeu:– Se te dou o que beber, serei o teu de-

comer.Que isso sirva de lição aos hipócritas com

suas armadilhas.

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A LAMPARINA

Uma lamparina cheia de óleo gabava-se deter um brilho superior ao do sol. Um assovio,uma rajada de vento e ela apagou-se.Acenderam-na de novo e lhe disseram: –Ilumina e cala-te. O brilho dos astros nãoconhece o eclipse.

Que o brilho de uma vida gloriosa não teencha de orgulho. Nada do que adquirimos nospertence de verdade.

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O ADIVINHO

Um adivinho montara sua banca numapraça e começou a ficar rico. Mas, de repente,alguém veio lhe dizer que haviam forçado asportas de sua casa e tinham-lhe roubado tudo.Transtornado, ele se levantou dum pulo só e,lamentando-se, correu até a casa para ver o quetinha acontecido. Um dos que se encontravamlá disse-lhe impertinente: – Como é que é,amigo! Ficas te vangloriando de prever odestino dos outros e não prevês o teu?

Muita gente se acha capaz de dirigir osnegócios dos outros quando não é capaz dedirigir os próprios.

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AS ABELHAS E ZEUS

Ciosas de seu mel, as abelhas resolveramescondê-lo dos homens. Foram até Zeus e lhepediram a força necessária para matar aferroadas os que se aproximassem de seusfavos para beber o mel. Mas aquela maldadedesagradou a Zeus. Ele as castigou então daseguinte forma: sempre que ferroassemalguém, perderiam o ferrão e a vida.

A pessoa perversa chega ao ponto de fazero mal a si mesma.

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O APICULTOR

Um homem foi à casa de um apicultor e,como ele tinha saído, roubou seu mel e osfavos. Quando o apicultor voltou e percebeusua colméia vazia, foi ver o que tinhaacontecido. As abelhas, que estavam voltandode sua labuta, apareceram e o picaram com seusferrões, dando-lhe um tratamento terrível. Oinfeliz exclamou: – Suas idiotas, vocêsdeixaram ir embora impunemente aquele quelevou seus favos de mel, enquanto eu, quecuido de vocês, sou atacado sem dó nempiedade!

Esse engano é freqüente: muitas vezesabrimos as portas ao inimigo e as fechamos aoamigo por suspeita.

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OS SACERDOTES DE CIBELE

Quando iam viajar, os sacerdotes tinhamum asno que levava suas bagagens. Mas, um dia,o animal morreu de cansaço. Eles entãoarrancaram-lhe a pele e com ela fizeramtamborins para se divertir. Outros sacerdotesos encontraram e perguntaram como ia o asno.

– Morreu – responderam. – Mas agoraainda está apanhando mais que antes.

Por mais que tenha conseguido selibertar, o escravo muitas vezes ainda tem dedesempenhar outros trabalhos servis.

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OS RATOS E AS DONINHAS

Ratos e doninhas estavam em guerra.Como os ratos sofriam derrota atrás de derrota,reuniram-se em assembléia e, certos de queprecisavam de chefes – assim se explicavamseus reveses –, escolheram entre si algunsgenerais. Para que se distinguissem dos outros,os escolhidos fabricaram uns chifres e ospuseram na cabeça. Deu-se a batalha. Derrotacompleta dos ratos. Os soldados fugiram paraseus buracos sem nenhum problema. Já osgenerais, impedidos pelos chifres, não puderamentrar. Capturados, foram comidos.

A glória fútil é fonte de todos os males.

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AS MOSCAS

Como o mel havia se derramado numceleiro, as moscas foram até lá para comê-lo.Como é possível viver sem essa delícia? Massuas patas ficaram tão grudadas que nãopuderam mais voar. E, assim, morreramsufocadas, dizendo:

– Pobres de nós que morremos por umbreve instante de prazer.

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A FORMIGA

A formiga era, em tempos passados, umhomem que laborava a terra. Mas suas própriascolheitas não lhe bastavam. Ele invejava as dosoutros e freqüentemente ia roubar os frutosdos vizinhos. Zeus se irritou com tal cupidez eo transformou no inseto que chamamosformiga. O homem, assim metamorfoseado,não perdeu seus hábitos: ainda hoje percorre oscampos alheios e põe de reserva o trigo e acevada que o outro colheu.

Por mais que se castigue o homem mau,ele nunca se emenda.

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A FORMIGA E O ESCARAVELHO

Era verão. Uma formiga percorria ocampo fazendo sua provisão de trigo e cevadapara o inverno. Um escaravelho admirou-se porvê-la tão agitada; enquanto ela estava assimatarefada, os outros animais se divertiam. Aformiga não disse nada. Mais tarde, porém,quando veio o inverno e a chuva destruiu osestercos, o escaravelho foi até ela e pediu umpouco do que ela tinha guardado. A formigarespondeu-lhe: – Amigo escaravelho, setivesses trabalhado no tempo em que meusesforços não suscitavam senão teus sarcasmos,agora terias alimento.

Quem foi irresponsável em tempo deabundância chorará em tempo de penúria.

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O ASNO E O CAVALO

Um asno dizia a um cavalo:– Tu que és feliz! Cuidam de ti direitinho,

te dão alimento em abundância. Quanto a mim,nem mesmo capim eu tenho e inúmeros sãomeus sofrimentos.

No entanto, quando veio a guerra, umcavaleiro pegou o cavalo, montou e partiu.Corria de um lado para outro, lançava-se noscombates mais encarniçados. O cavalo,exausto, terminou morrendo. Incontinenti, oasno mudou de opinião, lamentando o destinodo cavalo.

Não invejes nem os ricos nem ospoderosos. Pensa nos invejosos que osameaçam e aprende a gostar de tua modesta

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fortuna.

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O LEÃO, O URSO E A RAPOSA

Um leão e um urso disputavam um pavãoque tinham encontrado. Brigaram de tal formaque, sem sentidos, os dois caíramdesacordados. A raposa, que passava por ali,vendo-os assim totalmente esgotados epróximos do pavão morto, apoderou-se deste ese foi.

– Desgraçados de nós! Lutamos tanto paraentregar tudo a uma raposa! – exclamaram osdois animais incapazes de se levantar.

Não há nada que mais nos enraiveça doque ver um aventureiro se apoderar de nossotrabalho.

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A RAPOSA E A SARÇA

Uma raposa estava escalando uma cerca.Ao escorregar, foi cair em cima de uma sarça.Os espinhos deixaram suas patas sangrando e,louca de dor, ela disse para o arbusto: – Pobrede mim! Esperava de ti socorro e só fizesteaumentar minhas dores.

A sarça respondeu:– Que engano o teu, quereres te agarrar

em mim quando sou eu que tenho o hábito deagarrar os outros.

Pobre de quem vai pedir ajuda a quem sósabe fazer o mal.

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O ASTRÔNOMO

Um astrônomo tinha o hábito de sair ànoite para observar o céu. Estava ele um diacaminhando pelos arredores da cidade, oespírito perdido entre as estrelas, e, como nãoviu um poço à sua frente, caiu dentro. Começouentão a gritar bem alto. Um transeunte oescutou, aproximou-se e, ao saber como elefora parar lá dentro, disse:

– Mas o senhor, que vive estudando o quehá no céu, não vê o que há na terra!

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AS RÃS QUE QUERIAM UM REI

Irritadas com a anarquia que reinava entreelas, as rãs enviaram uma delegação a Zeus:queriam um rei. Zeus viu como elas eramingênuas. Jogou então um pedaço de madeirano açude dizendo-lhes que aquilo era seu rei. Aprincípio assustadas com o ruído, as rãsfugiram para a parte mais profunda do açude.Depois, como o pedaço de madeirapermanecesse imóvel, elas voltaram àsuperfície e começaram a zombar do seusoberano a ponto de montar em suas costas.

Achando-se logradas, voltaram a Zeus epediram um rei um pouco mais enérgico. Zeusentão lhes enviou uma hidra que se lançousobre elas e as devorou.

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Mais vale ter como governante um bravohomem, embora lento, que um celerado quesemeia o terror.

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O CORVO DOENTE

Um corvo doente disse à sua mãe:– Roga aos deuses, mãe, não chores.A mãe respondeu:– Qual deles terá pena de mim? Será que

existe algum do qual não tenhas roubado umpedaço de carne?

Algumas pessoas fazem tantos inimigosque na hora da necessidade não encontranenhum amigo.

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O LOBO ORGULHOSO DE SUA SOMBRAE O LEÃO

Hiperion já sumia no horizonteQuando no deserto surgiu um lobo

errante.Falou assim ao ver sua sombra projetada:“Meu medo do leão me parece infundado,Com a minha silhueta será que não

podereiAos outros animais parecer o rei?”Ia embalado em sua gloriosa quimeraQuando um bravo leão lhe declarou a

guerra.Logo o lobo se refez: “Quem tão grande

se acha termina fabricando sua própriadesgraça”.

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O LOBO E A CABRA

Um lobo viu uma cabra que pastava naencosta de um rochedo escarpado. Como nãoconseguia ir até lá, convidou-a a descer: –Cuidado, qualquer desatenção e cais – disseele. – E mesmo aqui onde estou o capim émelhor, a relva está toda florida.

Mas a cabra respondeu-lhe:– O festim para o qual me convidas é o da

tua pança vazia.Quem conhece o homem mau sabe de

suas astúcias.

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O CAMPONÊS E A SERPENTECONGELADA

Num certo inverno, um camponêsencontrou uma serpente enregelada de frio.Como ficou com pena, pegou-a para aquecê-lano calor do corpo. Uma vez aquecida e refeita,a serpente picou seu benfeitor. Já morrendo,ele exclamou: – Paguei o preço justo por tertido piedade de quem nada vale.

Os maus não se comovem com a bondadeque lhes cumulam.

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A RAPOSA E O MACACO ELEITO REI

Reunidos em assembléia, os animaisescolheram para rei um macaco cuja dança lheshavia agradado. A raposa ficou com inveja. Aover um pedaço de carne numa armadilha, elalevou o macaco até lá e lhe disse: – Encontreium tesouro, mas não o mereço. Guardei para ti,como presente de investidura. Pega-o.

Sem pensar duas vezes, o macacoaproximou-se e caiu na armadilha. Comorepreendesse a raposa por tê-lo enganado, elalhe disse: – Um imbecil como tu queria reinarsobre os animais?

Quem se lança numa empresairrefletidamente, além de poder fracassar, aindacorre o risco de cair no ridículo.

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ZEUS E A SERPENTE

Como Zeus ia se casar, cada um dosanimais deu-lhe um presente de acordo comsuas posses. A serpente, arrastando-se, foi atéele levando uma rosa na boca. Ao vê-la, Zeusexclamou: – Aceito os presentes de todos, masde tua boca não aceito nada.

Cuidado com a bondade dos maus.

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A GRALHA E O CÃO

Uma gralha convidou um cão para umbanquete que ia dar para Atena. O cão lhe disse:– Por que gastar teu dinheiro à toa? A deusa teodeia tanto que não dá a mínima para os teuspresságios.

– Sei disso – respondeu a gralha –, eestou justamente oferecendo um banquete paraela para que nos reconciliemos.

Por temer nossos inimigos procuramosagradá-los.

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A TARTARUGA E A LEBRE

Uma tartaruga e uma lebre discutiam parasaber quem era a mais veloz. Por isso,combinaram uma data para uma corrida e umlocal aonde deveriam chegar. No dia certo,partiram. A lebre, que contava com sua rapideznatural, não se preocupou com a corrida. Caiu àbeira de uma estrada e adormeceu. Já atartaruga, que se sabia quão lenta era, nãoperdeu tempo e, deixando a lebre dorminhocapara trás, venceu a aposta.

O talentoso com preguiça perde paraquem enfrenta a liça.

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AS GANSAS E AS GRUAS

As gansas e as gruas estavam ciscandojuntas num campo. Apareceram então unscaçadores. As gruas, leves, alçaram vôo, mas asgansas, muito pesadas, não conseguiram voar eforam capturadas.

Assim, quando vem a guerra, os pobrestêm facilidade de ir para outra cidade ondeencontram a salvação e a liberdade; já os ricos,presos a seus inúmeros bens, são levadosfreqüentemente à escravidão.

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A PULGA E O ATLETA

Uma pulga saltou um dia no dedo do pé deum atleta fora de forma e o mordeu. Com muitaraiva, o atleta ia esmagá-la entre as unhasquando, dando seu salto habitual, ela escapou,evitando assim a morte. O atleta, então, selamentou:

– Ó Hércules, se é assim que me ajudascontra uma pulga, o que será de mim diante demeus adversários!

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O LEÃO E O CAMPONÊS

Um leão entrou no estábulo de umcamponês. Este, para capturá-lo, trancou-o ládentro. Como não podia mais sair, o leãodizimou primeiro o rebanho miúdo, depoisatacou os bois. Temendo pela própria vida, ocamponês deixou-o ir embora. Como ocamponês ficou se lamentando, sua mulherdisse: – Tens o que mereces. Por que prenderum animal cuja presença mesmo ao longe teporia para correr?

Quem excita os mais fortes deve estarpreparado para suportar as conseqüências.

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O LOBO E O CORDEIRO

Ao ver um cordeiro à beira de um riacho,o lobo quis devorá-lo, mas era preciso ter umaboa razão. Apesar de estar na parte superior doriacho, acusou-o de sujar sua água, o que oimpedia de matar a sede. O cordeiro sedefendeu: – Eu bebo com a ponta dos lábios e,mesmo, como eu ia sujar a água se ela estávindo daí de cima, onde tu estás?

Como ficou sem saber o que dizer, o loboreplicou: – Sim, mas no ano passado insultastemeu pai.

O carneiro respondeu:– Eu nem era nascido...O lobo não se calou:– Podes te defender como quiseres que

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não deixarei de te devorar.Quando alguém está disposto a nos

prejudicar de nada adianta nos defendermos.

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O PASTOR E SEUS CARNEIROS

Um pastor levou seus carneiros para umafloresta de carvalhos. Sob uma enorme árvorecheia de frutos, ele estendeu seu casaco.Depois subiu para sacudi-la e assim os frutoscairiam. Mas os carneiros comeramindistintamente as bolotas e o casaco. Quandodesceu, vendo o que tinha acontecido, o pastorexclamou: – Suas bestas, aos outros vocês dãosua lã para abrigá-los, e a mim, que lhes dou osustento, vocês destroem até o casaco!

Muita gente, sem se dar conta, serve adesconhecidos e faz mal aos que lhe sãopróximos.

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O ASNO E A ESTÁTUA DE UM DEUS

Um homem tinha colocado a estátua deum deus no dorso de seu asno e levou-o àcidade. Por onde passavam, todo mundo securvava diante da estátua. O asno pensou queera a ele que adoravam. Todo envaidecido, pôs-se a zurrar e empacou. Compreendendo o queestava acontecendo, o dono do asno começou abater-lhe e disse: – Cabeça de asno! Só faltavaisso: um asno ser adorado pelos homens.

Quem te conhece ri de teu orgulhoquando não tens nada a ver com aquilo de que teorgulhas.

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O BODE E A VINHA

A vinha estava brotando novamente. Comoum bode estava comendo seus botões, eladisse: – Por que me fazes mal? Acabou ocapim? Lembra-te de que sou eu que forneço ovinho no dia de teu sacrifício.

Receberás do outro o tratamento que lhedás.

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O PASTOR E AS CABRAS SELVAGENS

Um pastor viu que entre suas cabrasestavam algumas cabras selvagens. Em vez deexpulsar as intrusas, levou-as para o estábulojunto com as outras. No outro dia, como houveuma tempestade, ele não pôde levá-las ao pastohabitual e as manteve trancadas. Ora, às suaspróprias cabras ele deu apenas a ração desempre, o necessário para não matá-las defome. Em contrapartida, tratou bem asestranhas, pensando assim ganhar a simpatiadelas. Quando a tempestade amainou, ele aslevou para o campo. Quando chegaram lá, ascabras selvagens ganharam a montanha efugiram. O pastor disse-lhes então:

– Ingratas, abandonar assim quem as

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tratou com tanto carinho!Voltando-se para ele, elas disseram:– Foi justamente isso que nos deixou

cabreiras. Se a nós, que conheceste naquele dia,nos trataste melhor que aquelas que há muitotempo estão contigo, é sinal de que preferirásas que virão depois de nós.

Se, numa amizade recente, te derem maisatenção que aos amigos de velha data, cuidado.Chegará o dia em que também serás velhoamigo e te colocarão de lado.

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A ESCRAVA E AFRODITE

Uma escrava feia e má era amada por seusenhor. Ela gastava todo o dinheiro que ele lhedava em adornos. Queria que eles fossem maisbelos que os da patroa. Por isso, ofereciasacrifício atrás de sacrifício a Afrodite, a quematribuía a graça de estar ficando cada dia maisbela. Mas a deusa lhe apareceu em sonho edisse: – Não te enganes. Nem penses que estoute fazendo bela, estou sim é irada com o teupatrão.

Que as fumaças do orgulho não teceguem, tu que, sem berço e sem beleza, devestua riqueza a procedimentos vergonhosos.

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ESOPO NUM ESTALEIRO

Esopo, o fabulista, foi flanar numestaleiro. Lá, provocado pelas zombarias dosoperários, disse-lhes: – Quando o mundo eraapenas água e caos, Zeus quis fazer um dia umnovo elemento: a terra. Foi por isso que ele afez engolir o mar três vezes. Da primeira vez, aterra deixou aparecer as montanhas; da segunda,as planícies; quando ela for beber pela terceiravez, a arte de vocês não servirá para nada.

Quem ri de quem lhe é superior terminaráperdendo o riso.

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OS DOIS GALOS E A ÁGUIA

Dois galos brigavam por uma galinha. Umcolocou o outro para correr. O vencido foi serefugiar num recanto obscuro. O vencedor,todo vaidoso, e alcançando o alto de um muro,pôs-se a cantar a todo pulmão. Veio uma águiacerteira e caiu sobre ele, levando-o pelos ares.Saindo de seu esconderijo, seu rival pôde entãose divertir livremente com as galinhas.

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A GRALHA E O CORVO

Invejosa do corvo, a gralha sonhava com omesmo tratamento que davam a ele: o corvo,como se sabe, é visto pelos homens como umaave cujos gritos são cheios de presságios. Aover passar uns viajantes, a gralha foi postar-seno alto de uma árvore e de lá começou a emitirseus gritos. Assustados com aquela voz, osviajantes se voltaram. Um deles falou então: –Vamos embora, é só uma gralha e seus gritosnão pressagiam nada.

O fracasso e o ridículo são o fim de quempretende competir com os mais fortes.

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A CIGARRA E A FORMIGA

Era inverno e as formigas botaram parasecar os grãos que a chuva molhara. Umacigarra faminta lhes pediu o que comer. Mas asformigas lhe disseram: – Por que tu tambémnão armazenaste tua provisão durante o verão?

– Não tive tempo – respondeu a cigarra –,no verão eu cantava.

As formigas completaram:– Então agora dance.E caíram na risada.

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O PAPAGAIO E A GATA

Um homem comprara um papagaio e odeixou solto pela casa. Mas o papagaio tinha lásuas manias. Alçou vôo e foi pousar no altardos deuses domésticos, pondo-se a gritaralegremente. Vendo-o ali, a gata da casa lheperguntou quem ele era e de onde vinha.

– O patrão – respondeu o papagaio –,acaba de me comprar.

– E és tu, atrevido, que, recém-chegado,gritas desse jeito, enquanto eu, que nasci aqui,sou proibida de fazer isso. Vá eu gritar e logoserei expulsa.

– Que é isso, senhora! É que minha voznão incomoda os patrões como a sua.

Isto vale para as pessoas de má vizinhança

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que sempre têm de que reclamar.

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O ARQUEIRO E O LEÃO

Um caçador foi até a montanha. Tratava-sede um excelente arqueiro. Ao vê-lo, todos osanimais fugiram, ficando apenas o leão, que oprovocou para uma luta. O caçador arremessou-lhe uma flecha e disse: – Viste meumensageiro. Agora vais me ver em pessoa.

Ferido pela flecha, o leão fugiu.– Que é isso – disse-lhe uma raposa –,

pára de correr.– De jeito nenhum – respondeu o leão. –

Se o mensageiro fere desse jeito, o que vai serde mim quando o encontrar em pessoa?

Não esperemos pelo tempo: fujamos doperigo ao primeiro sinal.

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DÊMADES, O ORADOR

Um dia, Dêmades falava ao povo deAtenas. Como ninguém o escutava, ele pediupermissão para contar uma fábula de Esopo.Permissão dada, ele começou: – Deméter, umaandorinha e uma enguia caminhavam juntas.Chegaram à beira de um riacho. A andorinhaentão voou e a enguia mergulhou na água.Depois calou-se.

– E Deméter – quis saber o povo –, o queela fez?

– Ela ficou irada com vocês, que deixamde lado os negócios do Estado para ficarouvindo fábulas de Esopo.

Insensato. Trocas o necessário peloprazer!

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O ASNO COM A PELE DO LEÃO

Um asno vestido com a pele de um leãocomeçou a semear o terror entre os animais.Ao ver uma raposa, quis pregar-lhe também umsusto. Mas a raposa, que há pouco o tinha vistozurrar, disse-lhe: – Eu teria tido medo se nãotivesse te ouvido zurrar.

Quem se despoja mal do que é,fantasiando-se com o hábito alheio paraparecer diferente, revela-se logo quem éporque não consegue ficar calado.

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Capa: Ivan G. Pinheiro Machado sobre gravurado século XIX

Tradução: Antônio Carlos ViannaRevisão: Delza Menin e Ruiz R. Faillace

E76f

Esopo, 550 a.C.Fábulas de Esopo / Esopo; tradução de AntônioCarlos Vianna. – Porto Alegre: L&PM, 2011.(Coleção L&PM POCKET; v. 68)

ISBN 978.85.254.2321-4

1.Ficção grega-Fábulas. 2.Fábulas-LiteraturaInfantil.3.Literatura infantil-Fábulas. I.Título. II.Série.CDD 883.36

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028.5CDU 875087.5:398.2"-0550"398.2:087.5"-0550"

Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo,CRB 10/329

© da tradução, L&PM Editores, 1997

Todos os direitos desta edição reservados aL&PM Editores Rua Comendador Coruja, 314,loja 9 – Floresta – 90220-180Porto Alegre – RS – Brasil / Fone:51.3225.5777

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