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FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIALUERJ

Tecnologia, literatura, moda,sociedade e interação social

Leituras pluraisem comunicação

15

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LOGOS

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SumárSumárSumárSumárSumárioioioioio

EditorEditorEditorEditorEditorialialialialial

Héris Arnt 03

ArtigosArtigosArtigosArtigosArtigos

O caso Napster ou de como um dropout deu a volta por cima e abalou 04Gisela Castro

…tica e discurso do mal na contemporaneidade 12Fátima Cristina Régis Martins de Oliveira

Os bastidores da produÁ„o liter�ria 20Heloísa Guimarães Peixoto Nogueira

O livro num mundo globalizado 30Héris Arnt

A lentid„o na cultura das cidades 34João Maia

Na moda: Simmel, cultura e consumo 41Ricardo Freitas

InteraÁ„o e comunicaÁ„o na escola sociolÛgica alem„ 47Euler David de Siqueira

ResenhaResenhaResenhaResenhaResenha

Jorgiana Breve ou o pacto com a serpente 55Janete Oliveira

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LOGOS

Editorial

A presente edição de Logos traz um conjunto de questões sobre a comunicação

e suas diversas leituras na relação com o social. Dividimos essa edição em sete

artigos, cada um deles tratando de aspectos pertinentes à compreensão da

atualidade. Abrimos a revista com a temática das novas tecnologias. O caso Napster,

tema do primeiro artigo, polemiza a questão dos direitos autorais na rede. O

segundo artigo, a partir da reflexão sobre a natureza do mal, na cultura ocidental,

discute os caminhos da ética dos direitos humanos face à renovação tecnológica.

A seguir, este número apresenta a questão dos gêneros literários,

sobretudo da autobiografia, dentro dos estudos da recepção, mostrando a

sutil relação entre leitor e escritor. Dentro da mesma abordagem entre

comunicação e cultura, o texto que se segue coloca em evidência a questão

do livro na atual etapa da sociedade pós-industrial.

O quinto artigo mostra que a aceleração e a velocidade, que marcam a

cultura urbana, convivem com traços comunitários de uma cultura mais

lenta em que predominam outras relações espaço-temporal. Indo em

direção às questões que tratam do conhecimento social, os dois últimos

artigos abordam a moda e as interações sociais, a partir da sociologia alemã.

Dando continuidade à reforma editorial, a revista passa a ser publicada

em novo formato, por considerarmos mais aprazível para leitura, mas

sobretudo por questões de melhor aproveitamento gráfico. A partir deste

número, a Logos passa ter uma versão online no endereço www2.uerj.br/

~fcs. Disponibilizamos sumário, resumos e um artigo de cada revista das

edições recentes. A partir do número 12, já estão na rede. As revistas Logos

antigas, esgotadas, serão disponibilizadas na íntegra, paulatinamente. Os

números recentes podem ser solicitados, por email.

Héris Arnt

Editora da Revista Logos

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LOGOS

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O O O O O cccccaso Napster ouaso Napster ouaso Napster ouaso Napster ouaso Napster oude como umde como umde como umde como umde como um

dropoudropoudropoudropoudropouttttt deu a volta deu a volta deu a volta deu a volta deu a voltapor cima e abaloupor cima e abaloupor cima e abaloupor cima e abaloupor cima e abalou

Gisela Castro*

Este artigo tem como foco um dos mais polêmicosacontecimentos na recente história da cibercultura, a saber,o caso Napster. Tal qual o pequeno mas astuto David aoderrotar o gigante Golias, Shawn Fanning, um jovemamericano de menos de vinte anos de idade, acabou porabalar a supremacia do cartel da indústria fonográfica aocriar um site na rede mundial de computadores onde umalegião de usuários pode compartilhar arquivos de músicaem MP3, sem ter que pagar por isto.

Desde então, uma intensa cruzada em defesa dos direitosautorais vem sendo travada, visando proibir que sitesindependentes de distribuição de música digital continuema operar livremente. A banda Metallica tem sido um dosmais ferrenhos combatentes, juntamente com as principaisgravadoras que se associaram para processar a Napster ecolocá-la fora de operação.

Longe de ser uma unanimidade, a questão dos direitosautorais não é vista sob o mesmo ângulo por gravadoras,classe artística e toda uma nova geração de amantes demúsica, que floresceu na era pós-Napster. Músicos comoMadonna, Bono Vox e o nosso Lobão vêm a público darseu apoio ao download gratuito de música na Internet,enquanto que outros se dizem lesados pelo que consideramum escandaloso caso de ciber-pirataria. Seja como for, ojulgamento irá criar jurisprudência em torno desta novamodalidade de veiculação de música digital via www.

Recentemente, em uma surpreendente reviravolta noprocesso, a gigante Bertelsmann (proprietária dos selosBMG e RCA, dentre outros) se associa ao Napster2, visando

RESUMOO presente artigo historia a criação doNapster, destaca o conceito inovador defile sharing e apresenta a polêmica em tornodos direitos de distribuição de música digi-tal, enfocando algumas de suas múltiplasfacetas. O objetivo deste trabalho, queaborda um tema cujo desfecho está longede ser previsível, é contribuir para adiscussão dos desdobramentos tecno-lógicos na cena dos estudos avançados emComunicação e Cultura.Palavras-chave: música digital, tecnologia,cibercultura

ABSTRACTThis essay outlines the creation of Napster,highlights the innovative concept of file sharingand presents the polemics over digital music copy-rights, focusing on some of its multiple aspects.The aim of the present work, which deals withan issue whose end is far from predictable, is tocontribute to the discussion of technological de-velopments within the scope of advanced con-temporary cultural studies.Key words: digital music, technology, ciberculture.

RESUMENEl presente artículo se refiere a la creación delNapster, destaca el concepto inovador del file sharingy presenta la polémica alrededor de los derechos dedistribución de la música digital, enfocando algunasde sus múltiples facetas. El objetivo de este trabajo,que aborda un tema cuyo desenlace está lejos de serprevisible, es contribuir para la discusión de losdesdoblamientos tecnológicos en el escenario de losestudios avanzados en Comunicación y Cultura.Palabras claves: música digital, tecnología,cibercultura.

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a criação em conjunto de um novo tipo desistema que possibilite o rastreamento dosarquivos disponibilizados, coibindo assim acópia indiscriminada de música na rede. Estamanobra criou uma situação insólita: Davidjunta-se a Golias, formando um estranhohíbrido no cenário cultural contemporâneo.

Parte integrante de uma pesquisa sobre música& tecnologia3, este trabalho foi escrito ainda nocalor dos acontecimentos. O tom jornalístico quebuscou-se imprimir teve como objetivo espelhara cobertura que dada ao caso. Não obstante, oque se pretendeu aqui foi fazer uma reflexão sobreos caminhos e descaminhos da difusão de músicana Internet, bem como apontar algumas possíveisconseqüências destas novas tecnologias para ofuturo da indústria fonográfica, assim como paraa criação e/ou divulgação de música em geral.

Fanning: uma idÈia na cabeÁa,um computador na m„o

Aos dezoito anos de idade, Shawn Fanningdecidiu abandonar seu primeiro ano da North-eastern University e trabalhar full time em umaidéia que não lhe saía da cabeça: viabilizar umsistema que facilitasse o acesso e expandisse aoferta de música na Internet.

Desde a criação do padrão mp34, que permitecompactar arquivos de áudio, facilitando suadifusão pela Web, havia uma forte demanda poreste tipo de serviço. Os primeiros sistemas queforam surgindo ainda eram canhestros, lentos edifíceis de acessar, exigindo conhecimentos decomputação que o jovem comum não possui.Além disto, a quantidade e variedade de músicasdisponíveis era bem reduzida, o que tornava alaboriosa busca ainda mais frustrante.

A grande novidade do Napster5, que abriuo caminho para toda uma nova linha de criaçãoem software, foi o acesso peer to peer (P2P), ouseja, um sistema de acesso direto de um compu-tador pessoal a outro6. Fanning percebeu que aí

residia a maior parte dos problemas enfrentadospelos aficcionados por MP3, até então depen-dentes de um servidor central ou sites intermediá-rios, com limitado catálogo de músicas disponíveis.

Combinando funções de diferentes sistemas jáexistentes – o instant-messaging do Internet RelayChart, o sistema de troca de arquivos do MicrosoftWindows e as capacidades de busca avançada efiltragem de vários sistemas de busca disponíveisno mercado – este menino-prodígio acabou porprojetar um tipo de software que efetivamenteliberava o potencial da rede, permitindo a criaçãoviral de comunidades virtuais, realçando acapacidade transgressora da Internet de passar porcima de barreiras e colocar em cheque antigasnoções sobre negócios, cultura e conteúdo.

Convencido de que outros estariam trabalhandoem idéia semelhante e de que precisaria ser rápidopara não perder a corrida, Fanning trabalhou semcessar durante três meses até finalmente poderlançar seu aplicativo em outubro de 1999. Duranteeste período Shawn lutou sozinho contra acorrente, já que não pode contar com o apoio oua compreensão de seus companheiros de chat-roomssobre programação, que consideravam sua idéiaequivocada por princípio: “Este é um mundo deindividualistas e ninguém vai querer compartilhar nada”. 7

Logo se viu que eles estavam errados. Emtempo recorde, o Naptser tornou-se tremen-damente popular, especialmente dentre jovensuniversitários americanos, além de uma multidãode outros pelo mundo afora. Em termos denúmero de usuários, este foi o site de crescimentomais rápido em toda a história da rede.

Para seus milhões de usuários, o Napster foide tal forma incorporado ao quotidiano quepassou a funcionar como mais um eletroele-trônico de uso doméstico, algo como uma torra-deira ou um walkman. Através dele, tornou-seincrivelmente fácil copiar e colecionar músicadigital, com a vantagem adicional de não se terque desembolsar um tostão.

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Em termos de programação, o Napster eraum sistema bastante simples que fazia a leitura dearquivos musicais de mp3 em um disco rígido eem seguida publicava a lista destes arquivos emum servidor qualquer na rede. Todos os queestavam utilizando o Napster publicavam sua listaem um banco de dados comum, o qual podia servasculhado quando se estava procurando umamúsica em que se estava interessado. Ao seracionado o sistema de busca, o Napster exibiauma lista de compatibilidades e, ao clicar domouse, o usuário estaria diretamente conectadoao usuário escolhido, do qual poderia obterdiretamente o arquivo desejado. Sistemas defiltragem por gênero ou artista facilitavam a busca.

Vale observar que este banco de dados estavaem fluxo constante, dependendo de quem está online a cada momento. Segundo dados oficiais daempresa, uma média de 1,3 milhões de pessoasutilizava o site simultaneamente, o que garantia umaimpressionante diversidade de títulos à disposição.

Devido ao grande número de usuários Napstere à sua inovadora simplicidade operacional, quasetodos as músicas mais populares dos últimosquarenta anos estavam virtualmente disponíveisneste banco de dados. Nestes termos, o Napsterfuncionava apenas como uma ponte entre ousuário e a música, ou seja, um sistema geral delocalização e distribuição de mídia em um mundolargamente mediatizado pela tecnologia.

Típica história do vale do silício, o jovemFanning, aos 20 anos, tornou-se uma celebridadeda noite para o dia, vindo a ser matéria de capade revistas como a Time, Newsweek, Forbes, Roll-ing Stone, além dos principais jornais e revistasespecializadas em todo o mundo, que apontamo Napster como um dos mais inovadores e bemsucedidos lançamentos em software no ano 2000.

Direitos autorais em quest„oConcentrado em desenvolver seu projeto,

Fanning talvez jamais tenha pensado que o que

estava fazendo poderia vir a ser considerado ilegal.Afinal, a prática de se “descascar” CDs8 – ou seja:copiar arquivos de áudio digitalizados e traduzidospara o formato mp3, disponíveis na rede – estavase difundindo dentre jovens de sua geração,aficcionados por música e tecnologia.

Entretanto, a Recording Industry Associationof America (RIAA) não considera esta prática tãoinocente assim, qualificando-a como pirataria. Como surgimento do Napster, e outros sites de músicadigital que brotaram em sua esteira9, isto tornou-seacessível a qualquer usuário de computador. AIndústria então viu seriamente ameaçados seusdireitos reservados de propriedade intelectual. Emsetembro de 2000, a RIAA partiu para a briga nascortes norte-americanas. Ao ser iniciado o processojudicial, diversas universidades americanas passarama proibir o uso do Napster em seus campi, gerandoprotestos inflamados por parte de estudantesinconformados com a arbitrariedade desta decisão.

O que está em questão neste processo, que vemse desenrolando em diversas instâncias jurídicasnorte-americanas, atraindo a atenção de milhõesde pessoas em todo o mundo, é a própria definiçãode propriedade intelectual, ou direito autoral naera da informação, mas as questões éticas envolvidasparecem fazer pouco sentido na democracia dociberespaço, ao menos no entender dos jovensinternautas que já se habituaram a ter acesso gratuitoàs suas músicas preferidas.

Artistas como Lars Ulrich, líder da bandaMetallica – que se declarou lesado pela Napster efoi dos primeiros a entrar com ação judicial contraa empresa, forçando-a a bloquear a troca dearquivos de músicas da banda dentre seus usuários– tiveram sua imagem maculada pela pecha decapitalistas gananciosos, antidemocráticos e forade sintonia com seu público. Durante a entregados prêmios MTV de música (MTV Music Awards/2000), o outrora popular Ulrich foi recebido comuma chuva de vaias. Neste mesmo evento, o tímidoShawn Fanning foi escolhido para entregar o

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prêmio à grande vencedora da noite, a cantoraBritney Spears. Ao pisar no palco, quase rouboua cena, sendo ovacionado pelos presentes.

Outros astros e bandas têm dado o seu apoio àdifusão gratuita de sua música via Internet, alegandoque o importante é cativar o público. O caso deTom Morello, da banda Rage Against the Machine, éum exemplo. A Sony, proprietária legal dos direitosde distribuição de sua música, utilizou-se do DigitalMillenium Copyright Act (DMCA) para requisitar quea Napster bloqueasse de seus quadros os usuáriosque estavam compartilhando faixas do “Renegades”,último lançamento da banda, em seu site. Ao tomarconhecimento do fato, Morello foi à imprensadeclarar-se totalmente ultrajado com a decisão daSony, e anunciando que outras faixas em MP3, nãoutilizadas no álbum em questão, estariamdisponíveis para download na home page da banda.Ainda assim, nada pode ser feito até agora parareverter o banimento de seus fãs do site da Napster.

Além do interesse, talvez demagógico, decompor uma imagem simpática de artistasrealmente preocupados em satisfazer seu público,o que parece motivar esta atitude pró-Napster éque a grande fonte de renda para o artista temsido a venda de ingressos para shows e o mer-chandising, não a venda de discos. Alega-se queapenas aqueles músicos cuja vendagem de CDs éaltíssima realmente chegam a lucrar com isto. Aparte do leão destas vendas fica com as gravadoras,que debitam do total a ser pago aos artistas osaltos custos com a produção e divulgação de seustrabalhos. Por esta razão, há muitos anos, músicoscomo o lendário Jerry Garcia10 encorajam opúblico a fazer e distribuir gravações piratas deseus shows. Por esta mesma razão, Lobão vemhá tempos bradando “me pirateiem, por favor”11. Emambos os casos, trata-se de atitudes que desafiamo monopólio da distribuição no mercado damúsica, até então detido pelas grandes gravadoras.

Mesmo selos “independentes”, criados porartistas inconformados com as regras impostas

por estas gravadoras12 – que cerceiam sualiberdade de criação e restringem enormementeo acesso de novos nomes a seu cast – dependemdelas para garantir a distribuição de seus produtos.No caso brasileiro, há ainda a histórica e semprecrescente insatisfação dos músicos com o sistemade arrecadação de direitos autorais pelo ECAD,órgão encarregado de fiscalizar e administrar osdireitos autorais em música no Brasil

Enquanto o número de usuários Napsterse aproximava rapidamente dos 50 milhões13,um fato parecia contradizer o principalargumento utilizado pela RIAA durante todoeste processo: não obstante o aumentoexponencial de coleções de música em mp3nos computadores pessoais, a venda de CDscontinuava crescendo significativamente14.

Seja como for, executivos da indústriafonográfica preocupam-se com o fato de até omomento não haver legislação específica queregulamente a difusão e comercialização de músicana Internet. Neste vácuo, segundo estes, cresce onúmero de sites irregulares que se ocupam dadistribuição e venda de música15 on line, ignorandoos direitos autorais. Por outro lado, especialistasde empresas de software garantem que o que estáocorrendo é uma disputa desleal entre a indústriade entretenimento e a indústria de informática,na qual aquela parece querer forçar esta a se moldaraos seus interesses, seja eliminando as empresasque estiverem fora da linha, seja simplesmenteassimilando-as.16 De acordo com a respeitadarevista Wired, especializada em informática ecibercultura, “O problema não é que a indústriafonográfica irá eliminar a tecnologia. O verdadeiroproblema é que só será permitido desenvolver eoperar tecnologias que estejam sob o controle daindústria fonográfica.”17

No afã de criar especificações para asseguraro controle dos direitos reservados na rede,algumas das principais gravadoras criaram oSDMI – Secure Digital Music Initiative, em agosto

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de 2000. Como um selo d’água, este sistemadotaria os arquivos musicais protegidos de umamarca especial, sem a qual eles não se tornariamcompatíveis com toda uma nova geração desistemas de leitura de mp3 (mp3 players),especialmente desenhados para este fim. Umdos graves problemas desta iniciativa é que nemtodas as gravadoras estarão utilizando o mesmopadrão (codex), já que cada grupo associou-se adiferentes empresas de software para desen-volver seus respectivos projetos nesta área. Aprevisão é de que, ao menos a princípio, coexis-tência de diferentes códigos tornará confuso oconsumidor consciente da questão dos direitosautorais. Apenas a futura unificação de todosos padrões viria a assegurar a viabilidade dosistema em termos da grande rede.

Pode-se especular com certa segurança quenão será possível coibir completamente apirataria de música digital. Logo, o grandedesafio que a indústria fonográfica tem pelafrente – e que a associação BMG/Napster veiodemonstrar – é tornar tão rápido e fácil (emtermos de baixo custo, oferta diferenciada esimplicidade operacional) o acesso legal àmúsica digital que a pirataria em grande escalanão venha a fazer mais sentido. No entenderda Bertlesmann, ninguém melhor do queShawn Fanning para tornar isto viável.

Trade free or die?A proposta das grandes gravadoras, que

custaram a perceber o enorme potencial domercado on line, é a criação de um sistema dedistribuição com base em assinaturas de baixo custo(fala-se em termos de US$ 4,95 mensais porassinante), o que garantiria o pagamento dos royal-ties contemplando ao mesmo tempo a demandade música por parte dos internautas. Desta forma,o mercado de divulgação e distribuição de músicadigital na rede passaria a ser devidamente regu-lamentado e os direitos autorais salvaguardados.

Isto é exatamente o que toda uma geração de “filhosdo Napster” parece não querer.

Clay Shirky – um dos editores da revista digitalFEED e também professor de Media Studies noHunter College – ao analisar a fusão entre a Napstere a Bertelsmann18, aponta para os aspectoseconômicos da música digital, desprezandoqualquer tipo de zelo antiautoritário por parte dosusuários da rede. De um lado, diz ele, a indústriafonográfica insistia em tornar inconveniente o down-load de música e alardeava prejuízos monumentaisse este viesse a ser feito em larga escala, o quecolocaria em risco a própria viabilidade do sistemaexistente de comercialização e distribuiçãoprofissional de música. Neste contexto, surgiu oNapster demonstrando a facilidade e o baixo custode um sistema de distribuição mais eficiente.

Apesar dos protestos de membros da classeartística e da mobilização de tecno-anarquistasinteressados em deflagrar uma onda dedesobediência civil dentre os usuários do Napster,prossegue Shirky, a única surpresa advinda dafusão do Napster com um de seus “adversários”é a de que ele, sozinho, trouxe a indústriafonográfica para a era da Internet. Agora, comoforma de recompensa, está sendo trazido para omainstream dos negócios em música.

Resta saber como irão reagir os milhões deassociados do Napster quando o novo sistemade assinaturas for implantado. Na imensamobilidade que caracteriza a rede, nada impedeque estes se bandeiem para outros sites inde-pendentes, em busca de melhores preços oupelo simples prazer de obter alguma coisa pornada. Há uma legião de internautas queempunha orgulhosamente a bandeira do tradefree or die19. De acordo com esta nova moda-lidade de ativismo cibersocial a rede deve con-tinuar a ser um espaço livre, democrático,aberto e não apenas o braço eletrônico dasmega-corporações. Segundo alegam seusadeptos, um sistema de assinaturas mensais –

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mesmo que o valor a ser pago seja baixo – irárestringir o acesso à música de formainaceitável, descaracterizando o espírito da Web.

Para alÈm da m˙sica digitalApenas uma década depois que Tim Berners-

Lee desenvolveu um sistema genérico dedistribuição e localização de documentos na rede(a World Wide Web), a inovação trazida pelo genialcriador do Napster resolveu o problema no quese refere a arquivos de mídia. Diferentemente dostextos, músicas e filmes são codificados eformatados em diversos sistemas, diante dos quaisos mecanismos de busca e rastreamento existenteseram quase sempre inoperantes. Por esta razãoaplicativos com o Napster já se tornaram parteintegrante e indispensável da Internet. Atravésdeles, a veiculação de música na rede saiu do un-derground habitado por hackers e tornou-se um ca-nal de distribuição acessível ao usuário comum,ganhando a atenção da indústria fonográfica queainda não tinha entrado pra valer no negóciojustamente por faltar à rede este tipo de tecnologia.

Um sistema como o Napster pode muitofacilmente ser adaptado para operar comobanco de dados para outros formatos de mídia,como imagens JPEG, arquivos MIDI e atéfilmes MPEG, como os que atualmente sãodistribuídos em DVD20. Isto posto, pode-sefacilmente deduzir que o que esteve em jogona disputa do RIAA com o Napster em tornoda questão dos direitos autorais vai além docampo da distribuição de música digital.

Assim como aconteceu quando foram lançadosos primeiros aparelhos de vídeo-cassete – que aindústria cinematográfica tentou em vão impediralegando que isto seria o fim da produção comercialde cinema – novas tecnologias estão forçando oredimensionamento da indústria de entretenimen-to. Como não é possível ignorar o poder de barga-nha dos milhões de usuários da rede em todo omundo, pode-se arriscar dizer que nada será

como antes, amanhã. Como provam a fusão dasgigantes Time-Warner/America Online e, emmenor escala, a aliança Napster/Bertelsmann,estamos presenciando a reestruturação degrandes conglomerados do mundo da mídia(media networks), definindo o próprio futuro dadistribuição de mídia no mercado globalizadoda comunicação e entretenimento eletrônico.

O recém-lançado grupo de eCommerce daalemã Bertelsmann (Digital World Services –DWS) vem trabalhando justamente na criaçãode um supervia digital de distribuição de modoa garantir a infra-estrutura necessária para quea empresa possa oferecer mídia digital de formasegura, através do sistema business to business(B2B), para varejistas em todo o mundo. Nestesentido, o mercado de música digital é apenasuma fatia do mercado total almejado, que iráincluir filmes, livros, jogos eletrônicos e outrasoportunidades de negócios que forem surgindono vasto horizonte da era digital.

Tal sistema de distribuição será altamentebeneficiado por uma nova e expandida versãomultimídia do Napster, cuja criação já estaria sendoestudada após a fusão Napster/BMG. Desta vez,e Shawn Fanning certamente está ao par disto, acorrida vai envolver muitos outros competidores.Embora seja indiscutível que ele tenha dado oprimeiro passo, o Napster passou para a históriada Internet como um pioneiro na redefinição daformatação final do produto musical. Ao invés depassivamente consumir os CDs comercializadospela indústria fonográfica, os amantes de músicapodem agora mixar seus próprios CDs, escolhendona rede as faixas que mais lhes interessam. O que jáera possível na era das fitas cassete ficou agora maisatraente devido à alta qualidade da mídia digital.

Thanks for sharingJon Gilmour21, co-fundador da Sun, decla-

rou uma vez que a rede, espaço democráticopor excelência, encara a censura como um erro

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e constrói suas rotas de modo a poder driblá-la. O que o caso Napster veio a demonstrar éque as atuais leis de copyright podem funcionarcomo forma de censura, contornável atravésdos recursos próprios da rede.

Neste mundo imaterial de puro fluxo de infor-mação, barreiras e fronteiras se tornam inconsis-tentes. A conectividade (connectedness) é o que tornaeste estranho mundo palpável. Os anônimosmilhões de usuários da rede, sem corpo, sem pesoe sem identidade fixa, só passam a ter existência namedida em que estabelecem suas conexões.

Neste cenário composto por bits e bytes, novasformas de sociabilidade estão sendo geradas.Comunidades virtuais, criadas a partir de interessescomuns e por definição abertas a qualquer novomembro cujo perfil se enquadre em seus contornos,espalham-se como vírus através da rede, podendoser acessadas com um simples click do mouse.

A paisagem predominantemente textual dawww está se tornando, graças aos novosaperfeiçoamentos em software, efetivamentemultimídia. No caso da música digital, sua legi-timidade como forma de expressão artística etambém como objeto de desejo de ávidos cole-cionadores de mp3 não pode mais ser discutida.Otimista, o veterano BB. King considera a redeum excelente meio de promover seu trabalho, “masquestões de copyright e outras no gênero terãoque ser resolvidas – e elas serão resolvidas”. 22

Em sua essência a revolução deflagrada peloNapster diz respeito ao conceito inovador deum compartilhar instantâneo e ubíquo de mídiaatravés da rede. Quando sonhava desenvolverseu aplicativo, Shawn Fanning acreditava quecompartilhar (sharing) seria a chave para resolveros problemas de escassez de música disponívelna rede. Apesar do ceticismo à sua volta, Shawnachava que isto estaria em perfeita sintonia comos princípios que norteiam a existência da rede.Os fatos que se seguiram provaram que eleestava certo. Os internautas aderiram em massa

à idéia do file sharing fazendo do Napster umdos fenômenos mais espetaculares do ano 2000,figurando com destaque nas retrospectivas doano/século/milênio que se encerrava, nosprincipais periódicos pelo mundo afora.

Em sua última mensagem do ano 2000 aosassociados Napster23, Fanning – com seu habitualestilo informal embora mais cuidadoso por contado processo judicial em que estava envolvido –recordava os primeiros tempos do Napster,anunciava o breve lançamento de uma nova inter-face em fase de elaboração e o lançamento da últimaversão beta para usuários de Windows, disponívelpara download no site da empresa. Shawn tambémlamentava o ocorrido com os fãs da Rage Againstthe Machine (“gostaria que as coisas fossemdiferentes, mas lei é lei, especialmente quando nósestamos lutando por nossa vida”), pedia a todosque “continuem espalhando a mensagem” eagradecia, como de costume, “thanks for sharing”.

Muito se tem escrito sobre a perda de valoresno mundo contemporâneo. Muitos tambémapontam o individualismo como uma marca danova geração. Não deixa de ser um fato instiganteque, em pleno limiar de um novo século, jovensestejam envolvidos em uma disputa milionáriaem defesa do direito de compartilhar.

NotasEscrito em janeiro de 2001, este trabalho acompanhouo lançamento e o enorme crescimento do Napster, atéo começo do seu ocaso. Agora extinto, este sistemadeu origem a outros tantos que operam hoje na rede,como o Kazaa e o Gnutella. Mais recentemente, olançamento do I-Tunes refletem reações da indústriaà contínua e crescente demanda por música digital.

1 Doutora em Comunicação e Cultura, ECO/UFRJ.Contatos por e-mail: [email protected] A fusão foi anunciada oficialmente em 31 de outubro de 2000.3 Trata-se de minha tese de doutorado “As CançõesInumanas: música, tecnologia, escuta & comunicação”,sob orientação da Profa. Liv Sovik, defendida na ECO/UFRJ em maio de 2003.4 Sigla para o algoritmo para padrão de compressão deáudio, mpeg-1 Audio-Layer 3, desenvolvido pela indústria

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alemã Fraunhofer Schaltungen em 1987. Visando inicialmente aradiodifusão de música digital, o novo formato mp3 passou a servirtambém para difundir arquivos de música digital via Internet.5 Este era o apelido de Shawn Fanning na escola, por causa doseu cabelo desengonçado (em inglês nappy hair) por baixo dosempre-presente boné de baseball.6 Este sistema está agora sendo expandido, criando toda umanova topologia no ciberespaço.7 Apud Time Magazine, 2/outubro/2000.8 Em inglês, língua onde o termo foi originalmente cunhado,“ripping Cds”.9 Além do Napster, foram também acionados judicialmente oMP3.com, Scour e MP3Board, dentre outros.10 Leia-se Greateful Dead, banda norte-americana, um ícone dos anos 60.11 Cf. Jornal do Brasil – Caderno B12 Um dos pioneiros desta iniciativa no Brasil foi o músico AntônioAdolfo, com o lançamento de seu primeiro CD independente, oqual recebeu o sugestivo título de “Feito em Casa”.13 De acordo com a empresa, a Napster contava com 48.387.405associados até 21/12/2000.14 Segundo dados da Billboard, houve um aumento de 9,6 % nas vendasde CDs somente no mês de dezembro/2000.15 Este não é o caso do Napster, que como já foi dito, não comercializavamúsica digital e nem sequer retinha em seu banco de dados qualquermaterial protegido por leis de copyright. O Napster apenas viabilizavaa permuta de arquivos mp3 entre seus usuários. Ainda assim, foiacusado de “encorajar a violação à lei dos direitos autorais”.16 Pressionada por falta de recursos financeiros para fazer frenteaos altíssimos custos de um processo judicial, a Scour se viuforçada a pedir concordata, tendo sido recentemente compradapela gigante AOL.17 Boyle, professor de Direito da Universidade de Duke, citado porBrad King no artigo “Digital Music’s Nasty Little War”, publicado naWired News, edição de 31/11/2000.18 The BMG/Napster Deal – in FEED, Digital Culture, 20/12/2000.19 “Comercialize gratuitamente ou morra”, em tradução livre minha.20 Utilizando o sistema operacional Linux, o Gnutella está sendodesenvolvido para operar com outros padrões, além do mp3. Háainda o Kazaa e diversos outros.21 Citado por Mark Pesce in Napster, the media network that mightupstage the web, FEED, 20/12/2000.22 Cf. banco de citações que figura no site da Napster.com, páginaprincipal.23 Napster newsletter, dezembro/2000.

BibliografiaEste trabalho utilizou-se da extensa cobertura que diversos periódicosdedicaram ao caso Napster como fonte de pesquisa. Dentre o fartomaterial que coletado na rede desde que o lançamento do Napstercomeçou a virar notícia, foram selecionados alguns dos artigos maissignificativos, perfazendo um painel diversificado e abrangente desuas inúmeras facetas e implicações. Considerando o escopo dopresente trabalho, buscou-se privilegiar um enfoque que pudessecontribuir para situar a questão dentro do contexto das mudançasem curso no campo da cibercultura.FEED – revista digitalThe BMG/Napster Deal – artigo escrito por Clay Shirky

* Gisela Castro é doutora emComunicação e Cultura pela

ECO/UFRJ, psicóloga clínica eprofessora da UNESA.

Immaterial World – por Julian DibbellNapster, the media network that mightupstage the web – por Mark Peasce

NAPSTER.com – site oficial da empresa.Napster Newsletter – boletim dirigido aosassociados Napster.Press Room – página onde são coletadosos press-releases da empresa, bem comolinks para artigos referentes ao processoem diversas publicações.

ROLLING STONE.com – versão digital darevista Rolling StoneNapster Strikes Deal with Bertelsmann –por Andrew DansbyPeople of the year: entrevista com ShawnFanningPeople of the year: entrevista com Lars Ulrich

TIME.com – versão digital da revista Time2/outubro/2000 – Meet the Napster – longoartigo de capa, escrito por Karl Taro Greenfeldedição especial: dezembro/2000 – Personsof the Year: Shawn Fanning

Time digital – versão disponível apenas na redeAre you a music bandit? – reportagemespecial sobre Napster e MP3.Right & Wrong – longo artigo no qual ojornalista Joel Stein discute as implicaçõeséticas do download de MP3.Disabling the System – longa reportagem dacentral MP3, a respeito de Justin Frankel,inventor do Winamp e outro menino-prodígiocuja história se entrelaça com a de ShawnFanning de muitas maneiras.

WIRED NEWS – boletim semanal darevista digital Wired31/outubro/2000 – Digital Music’s NastyLittle War – artigo escrito por Brad King.3/novembro/2000 – Strange Days inMusicland – artigo escrito por Brad King.25/novembro/2000 – The Napster MasterPlan – artigo escrito por Brad King.

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Ética e dÉtica e dÉtica e dÉtica e dÉtica e discursoiscursoiscursoiscursoiscursodo mal nado mal nado mal nado mal nado mal na

contemporcontemporcontemporcontemporcontemporaneidadeaneidadeaneidadeaneidadeaneidadeFátima Cristina Régis Martins de Oliveira *

Desvendar a origem e a natureza do mal sempre foi umapreocupação para o pensamento filosófico. Na história dopensamento ocidental o mal já teve diversos topos, que semodificam de acordo com o saber de cada época. Já foiarticulado à censura (Grécia Arcaica), ao simulacro (GréciaClássica), ao estrangeiro (Renascimento), à loucura, à poesiae à bruxaria (Período Clássico), à alienação, ao impensadoe à má-consciência (Modernidade).

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Desde a Teodicéia, de Leibniz, a filosofia parece ter isentadoDeus da acusação e da responsabilidade do mal e creditado aomundo sensível a existência de um ou mais responsáveis,individuais ou coletivos, pelo mal, pela dor e pela injustiça2.Estes devem ser julgados por suas ações. Sabe-se que opensamento moderno entendeu que o homem - ser dotadode razão - deve valer-se de seu próprio entendimento, sem atutela de um ser superior. Desde então, não há sentido pensaro mal ontológico. Resta como topos do mal as ações que causamsofrimento e as que põem em risco a conservação da vida.Uma vez que o mal tornou-se um problema deste mundo, suaatuação torna-se passível de ser contida pela ação humana epelo desenvolvimento do conhecimento científico. As ciênciashumanas e as exatas parecem ter criado instâncias para conterou eliminar o mal da sociedade. As primeiras parecem terconfiado à Ética dos Direitos Humanos a tarefa de estancar omal social (violência, injustiças). O desenvolvimentotecnocientífico parece ser a arma das ciências exatas para contero mal “natural” (catástrofes, doenças).

Desde então resolver o problema do mal significaidentificar o autor da ação maléfica (um indivíduo ou uma

RESUMOA cultura ocidental criou a idéia da ética dosdireitos humanos (EDH), postulando umaessência humana comum e a existência dedireitos naturais. Em oposição a este pen-samento é preciso rever os filósofos que tentamdesvendar a origem e a natureza do mal. Desteponto de vista, a EDH se relaciona diretamentecom o conceito de comunicação, limitando-se a uma questão de democratização dosmeios, ou de dar a palavra às minorias.Palavras-chave: natureza do mal, ética, direitoshumanos, fragilidade, novas tecnologias.

ABSTRACTThe occidental culture created the humans rightsethic idea (HRE), postulating a common humanessence and the existence of natural rights. Againstthis thought, it is needed to review the philoso-phers who try to uncover the source and the natureof evil.From this point of view, the HRE is di-rectly related with the communication concept, re-stricting it to a matter of means democratization,or to give voice to the minority.Key-words: nature of evil ,ethics, human rights,fragility, new technologies.

RESUMENLa cultura occidental creó la idea de la ética de losderechos humanos (EDH), postulando una esenciahumana común y la existencia de los derechos natu-rales. Oponiéndose a este pensamiento es necesario revera los filósofos que intentan desvendar el origen y lanaturaleza del mal. Deste punto de vista, la EDH serelaciona directamente con el concepto de comunicación,limitándose a una cuestión de democratización de losmedios, o de dar la palabra a las minorías.Palabras claves: naturaleza del mal, ética, derechoshumanos, fragilidad y nuevas tecnologías.

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coletividade, um vírus, um agente causador decatástrofes), julgá-lo e extirpá-lo, por meio deeliminação ou derrota.

Alain Badiou, em Ética - um ensaio sobre aconsciência do mal, assegura que a cultura ocidentalcriou a Ética dos Direitos Humanos (EDH) paratentar garantir a paz e estancar o que causasofrimento. A EDH supõe “que exista um sujeitohumano reconhecível em toda parte, que possuidireitos de algum modo naturais: direitos desobreviver, de não ser maltratado, de dispor deliberdades ‘fundamentais’ (liberdade de opinião,de expressão, de escolha democrática, degovernos etc). Estes direitos são consideradosevidentes e merecedores de um amplo consenso.A ‘ética’ consiste em preocupar-se por essesdireitos, fazer com que sejam respeitados.”3

As ciências exatas – ainda que carentes dootimismo da Modernidade – mantêm seupercurso rumo à onipotência. As pesquisas daárea médica buscam métodos eficazes e indolorespara o tratamento de doenças, propiciandoconforto e maior expectativa de vida. A ciênciabusca formas de prever e controlar as catástrofesnaturais, evitando mortes e danos ao ecossistema.

Devidamente fundamentados pela ética dosdireitos humanos e da conservação da vida, osdiscursos contemporâneos são repletos deexpressões que estimulam os indivíduos a lutarpela manutenção de seus direitos “naturais”, aidentificar e denunciar o agente de seu sofri-mento. Assim é o discurso da cidadania. Oindivíduo sem cidadania é aquele que não possuiresguardados seus direitos de vida, de segu-rança, de liberdade, de respeito e, mais recente-mente, de acesso aos bens tecnológicos.

Criadas as instâncias de contenção do mal,julgado o seu agente e pedagogizado o sujeito,faz pleno sentido a afirmação de Bruno Latourde que o mal é um problema do qual as ciênciashumanas e exatas haviam se desembaraçado4.Entretanto, na prática, o problema do mal, trazido

por seu correlato sofrimento, é bastante presentee ressoa no pensamento de alguns autores.

Alain Badiou, em Ética, afirma: “a realidade,perfeitamente visível, é o desencadeamento dosegoísmos, a desaparição ou a extrema precarie-dade das políticas de emancipação, a multi-plicação das violências ‘étnicas’ e a univer-salidade da concorrência selvagem.”5

Preocupado com os rumos da produção desubjetividade nos sistemas maquínicos, FélixGuattari reflete: “Sabemos da curiosa misturade enriquecimento e empobrecimento queresultou disso tudo até agora: uma aparentedemocratização do acesso aos dados e aossaberes, associada a um fechamento segregativode suas instâncias de elaboração; uma multi-plicação dos ângulos de abordagem antropológicae uma mestiçagem planetária das culturas,paradoxalmente contemporâneas de umaascensão dos particularismos e dos racismos; umaimensa extensão dos campos de investigaçãotécnico-científicos e estéticos evoluindo numcontexto moral de insipidez e desencanto.”6

A defasagem visível entre a teoria e a práticado problema do mal provoca-nos a vasculharos alicerces de sustentação dos discursoscontemporâneos sobre os Direitos Humanose as Novas Tecnologias.

…tica dos Direitos HumanosA Ética dos Direitos Humanos pressupõe a

existência de um sujeito humano universal quedemanda uma legislação referente às suasnecessidades, à sua vida, e à sua morte. AlainBadiou identifica nos fundamentos desta Éticaum “retorno a Kant”. Deste filósofo, a EDHteria mantido a idéia de que existem exigênciasimperativas que referem-se aos casos de ofensa,de crime, de mal e que deve existir um direitonacional e internacional para sancioná-los.

A EDH é concebida como capacidade dedistinguir o mal e como princípio de julga-

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mento, em relação a um mal identificado a priori.Alguns de seus pressupostos são: “1. um sujeitohumano geral tal que o que lhe sucede de mauseja identificado universalmente (...), de modoque esse sujeito é ao mesmo tempo um sujeitopassivo, ou patético, ou reflexivo: aquele quesofre; e um sujeito de julgamento, ou ativo, oudeterminante: aquele que, identificando osofrimento, sabe que é preciso fazê-lo cessarpor todos os meios disponíveis. (...) 2. O Mal éaquilo a partir do que se dispõe o Bem e não oinverso. 3. Os ‘direitos humanos’ são direitosao não-mal: não ser ofendido ou maltratadoem sua vida (horror à morte e à execução), emseu corpo (horror à tortura, às sevícias e àfome), nem em sua identidade cultural (horrorà humilhação das mulheres, das minorias etc).”7

A força da EDH reside no fato de o sofrimentoser visível e incontestável. Cria-se assim, umconjunto de evidências capaz de constituir umconsenso mundial e legitimar sua imposição.

Badiou alerta que por definir os direitoshumanos como “direitos ao não-mal” e porclassificar os humanos em vítimas oujulgadores, a EDH tende a nos tornar apáticos.A aposta do pensador é que se produz doistipos de sujeito: um sujeito passivo e patético,aquele que sofre, que é capaz de se identificarcomo vítima; e, um sujeito de julgamento ouativo: aquele que, identificando o sofrimento,pensa o que pode ser feito para suprimi-lo. Noentanto, a posição ativa deste segundo sujeitoé relativa: ela se dá no campo do julgamento.O sujeito de julgamento, portanto, também nãoé da ordem da força ativa, mas da reativa, poisbusca o equilíbrio. Somos colocados em umaposição de fragilidade mesmo quando tudoindica que frágil é o outro.

A lógica da EDH é ilustrada com clarezapor Paulo Vaz: “nossa condição de fragilidadenão acontece apenas nas situações de julga-mento, mas também na nossa relação com o

sofrimento do próximo. O homem atual sente-se forte ao observar a fragilidade do outro. Acaridade, por exemplo, é um mecanismo deconquista da sua própria identidade pordiferenciação: quando os países desenvolvidosvêem as tão divulgadas cenas de fome e misériado terceiro mundo identificam-se como fortesporque estão longe da miséria e, paracompensar a culpa ajudam o fragilizado.”8

A culpa que antes era mecanismo de controle,segundo Vaz, “é hoje objeto de consumo tãoanestesiante como qualquer outro: naresponsabilidade por culpa se mantém distânciado outro, poupando o indivíduo de uma dor muitomaior que a da culpa - a dor da responsabilidadepor comoção.”9 Na responsabilidade por culpabasta que doemos um quilo de algum alimento oudez reais através da conta de luz e, está pronto,fizemos a nossa parte. Na responsabilidade porcomoção, as emoções afloram e, com elas, osprocessos de subjetivação: o questionamento sobreo Ser, sobre o que é a vida, o que ela pode ser e oque significa a condição de vida do outro.

A Ética dos Direitos Humanos defende,portanto, o direito do ser humano de não sermolestado. É uma ética da fragilidade que supõeque o objetivo da vida é viver o máximo detempo possível. Transforma a vida em sobrevida.O sentido da vida passa a ser prolongar a vida.

Neste ponto identificamos a convergência dediscursos entre a Ética dos Direitos Humanos eas Novas Tecnologias. A ética do direito ao não-mal e do prolongamento da vida é totalmentecompatível com o desenvolvimento das bio-tecnologias, nanotecnologias, engenharia gené-tica entre outros.

Novas TecnologiasOs discursos sobre as Novas Tecnologias

(NT) são por demais paradoxais. Por um lado,sustentam que as NT oferecem grandediversidade de soluções para prolongar a vida,

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diminuir o sofrimento físico e muitas opções deprazer e de diversão. Por outro, indicam o limitedas ações humanas de acordo com o risco queoferecem tanto para conservação pessoal comocoletiva: é preciso prevenir-se, cuidar do corpo,evitar atitudes de risco, assim como, é precisoconservar a natureza e evitar as ações que lhecausam danos. Por um terceiro ângulo, defendemque as Novas Tecnologias são portadoras dopróprio mal: sua produção de artifícios queimbricam-se indissociavelmente ao humano,ameaçam a continuidade e a integridade da espécie.

No primeiro caso, onde as tecnologias servemaos interesses humanos, elas criam também umdirecionamento das ações humanas que se traduzno que Michel Serres denomina de moral danecessidade. O pensador afirma que passamos doverbo poder ao verbo dever. Se podemos, entãodevemos. “Isto significa que devemos escolher o sexode nossos filhos, devemos nos assegurar, antes deseu nascimento, de sua normalidade, devemosorganizar ou proteger a multiplicidade da vida...Sem nos darmos conta, passamos do verbo poder ao verbodever, em relação aos mesmos atos. Que retornoinesperado da moral!”10, desabafa o pensador. Defato, em vez de oferecer opções aos indivíduos,como prometem, as tecnologias têm sido utilizadaspara sujeitá-los, direcionar-lhes as ações. Asinúmeras opções de prazer e diversão funcionamcomo dispositivo anestésico que embotam o sujeito,impedindo-o de subjetivar-se.

No segundo, o desenvolvimento das NovasTecnologias é diretamente proporcional aocrescimento das responsabilidades do indivíduoe das sociedades. A sensação de responsabilidadesurge porque as Novas Tecnologias parecemescapar de nosso poder de controlá-las. Parecemir mais rápido, modificarem-se, desdobrarem-se de forma muito mais ágil que nossa capacidadede dominá-las ou sequer prevê-las.

O terceiro ponto refere-se à preocupaçãocom os efeitos negativos que a aceleração

tecnológica pode engendrar na experiênciahumana. Esta preocupação se remete a duasformas de perda: de realidade e de humanidade.A perda de realidade sustenta-se na possibilidadede substituição do real pelo virtual. Philippe Quéauilustra esta ameaça: “Creio que o maior perigo dovirtual, ... é a confusão para qual ele nos arrastapelo desenvolvimento das técnicas de trucagem.(...) Logo as imagens serão totalmente enganosase, não se saberá mais muito bem onde se está,precisamente por causa dessa mistura de real evirtual, de numérico e de analógico. Será cada vezmais difícil distinguir as origens respectivas daquiloque constituirá as imagens.”11 Paul Virilio preo-cupa-se com a perda de humanidade. Receia queas faculdades humanas, através das técnicas dovirtual e das nanotecnologias se liberem darealidade e do corpo próprio. “O mínimo de ho-mem que nos resta – corpo e território – en-contra-se ameaçado.”12

* * *Parece-nos que a Ética dos Direitos

Humanos é uma ética da fragilidade e doressentimento. Não apenas renunciamos aoprazer e à vitalidade em prol da sobrevivência,como corremos para as raias da justiça aoprimeiro sinal de injúria.

De modo semelhante, as Novas Tecnologiassugerem-nos uma ética de responsabilidade sobrenossos atos e de prolongamento da vida. Delimitamnossas ações de acordo com o risco que oferecemtanto para o individual como para o coletivo.

As instâncias que prometem abolir osofrimento e trazer liberdade e qualidade de vidaparecem ser as mesmas que estancam o prazere as paixões; apontam os limites de atuação doindivíduo, tirando-lhe a intensidade da vida.

Vemos delinear-se os contornos de umaforma de poder invisível e anestesiante que atuaprecisamente onde se parece ter liberdade - ocontrole. Deleuze define o controle como umtipo de poder que se exerce por comunicação

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instantânea e por modulações, mudanças contínuas,“como uma peneira cujas malhas mudassem deum ponto a outro.”13As formas ultra-rápidas decontrole ao ar livre garantem a modulação e ocontrole contínuo sobre os indivíduos. A ação destaforma de poder se dá precisamente onde o sujeitopensava ter mais liberdade e força.

Entram em cena as mÌdiasÉ o desenvolvimento das mídias, da eletrônica

em particular, e mais recentemente da telemática,que tornou possível a comunicação instantâneae permanente entre cada ponto do planeta, assimcomo a transmissão superabundante e em temporeal de qualquer tipo de informação capaz deser codificada binariamente.

A emergência das mídias é de vital importânciapara fins de controle: são elas que mantêm osindivíduos ampla e profundamente informadossobre como viver com mais conforto e por maistempo. A mídia faz a apologia dos alimentos diete light, das academias de ginásticas e das dietasmacrobióticas e, não se cansa de exibir docu-mentários sobre as novas parafernálias científicasque permitem o prolongamento da vida. Asimagens de populações miseráveis, guerras étnicase religiosas insanas clamam por cidadania,igualdade, justiça e respeito aos direitos humanosgarantindo nossa responsabilidade por culpa eimpedindo a comoção.

As mídias parecem estar em consonânciaperfeita com a ética do não-sofrimento e do pro-longamento da vida. Suas principais ocupaçõesdizem respeito ao divertimento e à ampla difusãode informações. Quanto ao entretenimento nasmídias, está claro que refere-se a uma ética deanestesia que dificulta a subjetivação do indivíduoe condena as singularidades. O excesso deinformações, de possibilidades de escolhas e aausência de espaços vazios é precisamente o queimpede a hesitação, inibindo o aparecimento denovos discursos.

Começamos a visualizar a formação de umtripé sobre o qual se sustentam os mecanismosdo controle na contemporaneidade. Doispilares (Ética dos Direitos Humanos e NovasTecnologias) fundantes de valores imperativosanti-sofrimento e um terceiro pilar (Mídias)solto, flutuante, ou talvez virtual, fazendo cir-cular informações, uniformizando discursos elegitimando valores em tempo real em umespaço sem extensão.

Exposto o problema, nosso pensamentosolidariza-se com o de Guattari: “A questão quevolta aqui, de maneira lancinante, consiste emsaber porque as imensas potencialidadesprocessuais trazidas por todas essas revoluçõesinformáticas, telemáticas, robóticas, biotecno-lógicas... até agora só fizeram levar a um reforçodos sistemas anteriores de alienação, a uma mass-midiatização opressiva e a políticas consensuaisinfantilizantes. O que irá permitir que estaspotencialidades desemboquem enfim numa erapós-mídia, que as livre dos valores capitalísticossegregativos e crie condições para o plenodesabrochar dos esboços atuais de revolução dainteligência, da sensibilidade e da criação?”14

* * *Longe de estar solucionado, o mal é um dos

problemas mais prementes da sociedadecontemporânea. O discurso da fragilidade,sustentado pela Ética dos Direitos Humanos, eo discurso do prolongamento da vida, sugeridopela forma como se usam as Novas Tecnologias,ao contrário de proteger os indivíduos do mal,como prometem, caracterizam-se como opróprio topos do mal na Atualidade. Primeiroporque escamoteiam o âmago da questão:apontam o sofrimento como problema a serresolvido e oferecem como armas de combate,instrumentos que inibem os processos desubjetivação e as singularidades. Em seguida,porque suas suposições trabalham no campoda moral. Parte-se do pressuposto de que

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existem princípios que definem uma naturezahumana a ser protegida e uma espécie humana aser preservada. As mídias, por sua vez, corroborampara a legitimidade e efetividade das éticas vigentes,reforçando-as com sua padronização de discursos.Por fim, esta tríade constituída, sob o pretexto deproteger os homens e a vida, permite o com-parecimento dissimulado do poder.

Como já sabemos desde L’ordre du discours, deFoucault, o discurso não é apenas o que traduzas lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilopelo quê e para quê se luta, o poder do qual sequer se apoderar. O perigo dos discursos pro-duzidos pela Ética dos Direitos Humanos, pelasNovas Tecnologias e pelas Mídias é que disse-minam-se como discursos pelos quais o povodeve acreditar e lutar, não obstante sejam apenasmais uma máscara do poder.

A tentativa de resolução do problema do maltal como é proposta pelas instâncias criadas pelasciências humanas e exatas soa-nos como umfalso problema por ser uma resolução sob oponto de vista da moral. É preciso uma propostade investigação que desloque o eixo de análisedo campo da moral para o da intensidade.Buscando analisar o problema sob este novoângulo, esboçamos aqui algumas vias de pesquisa.

Mal - da eliminaÁ„o ao equilÌbriosimbiÛtico

A Ética dos Direitos Humanos insiste emreunir os homens em torno de uma essênciaque lhes seria comum e a acoplá-la à idéia depaz. Acreditar em uma essência humana é negartoda a diversidade da vida, é tentar condensar amultiplicidade em uma unidade que lhe repre-sente. Ao associar a humanidade à idéia de paz,a EDH a caracteriza pela fragilidade e pela forçade reação, pois a paz é função reativa da guerra.Nesta acepção, a crueldade15 é entendida comofruto da animalidade, da ausência de cultura e apaz como um produto da civilização. Ao “acor-

rentar o homem à argola da sociedade e dapaz”16, estamos tirando-o do campo da força edo vigor. Tucherman afirma que “descrever ahumanidade diferente da crueldade é separar aforça do que ela pode, é não conhecer a forçaenquanto força, é dar pré-valia, é tirá-la do campode conflitos. Ser cruel é ser do campo da força.”17

É a sociedade, e neste caso a EDH, que em buscade uma “boa” essência humana, identifica a crueldadecomo desvio e a associa a um castigo, criando o queNietzche denominou de má-consciência.

Precisamos pensar uma ética que valorize assingularidades, os processos de subjetivação e quereconheça a humanidade por sua potência, porsua força. Para construirmos esta nova éticaprecisaremos pensar diferentemente o mal. Nãopodemos solucionar o problema do mal elimi-nando o sofrimento. Este, assim como a como-ção, abre fenda, questiona a ordem, causa rupturas.Eliminar o sofrimento é também eliminarpossibilidades de subjetivação e de aparecimentodo novo. É preciso encontrar mecanismos queestanquem os agentes de sofrimento humano semimpedir a comoção e os processos de subjetivação.

Michel Serres parece indicar alguns caminhospara inspirar esta empreitada. O pensador afirmaque não cabe tentar solucionar o problema domal, apontando acusados. Desde Leibniz jájulgamos todos os acusados possíveis e nãoconseguimos resolver o problema do mal.Esgotaram-se os acusados. “O problema do malnão mais é suscetível de uma solução judiciária,tornou-se um problema científico: universal,objetivo, estável na história e recorrente, portanto,suscetível de uma solução sem subjetividade, nemindividual nem coletiva, mas objetiva.”18 Se nãoexiste o sujeito do mal, o julgamento é inócuo.

Não podemos mais pensar o mal como o quedeve ser eliminado. Temos três boas razões paraisto. Após uma tentativa de eliminação, o inimigosempre volta mais forte, com novas armas. Umaação que vise estancar o sofrimento de um

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indivíduo pode gerar sofrimento para outro. E, porúltimo, porque não controlamos a passagem dolocal para o global, do individual para o coletivo.Uma ação de efeitos positivos a nível singular podeter efeitos catastróficos ao ser generalizada.

Serres sugere que é preciso encontrar equi-líbrios simbióticos com os agentes maléficos. Pon-dera que as melhores soluções para o câncer talvezadvenham de um método que em vez de eliminá-lo aproveite-se de seu próprio dinamismo.

Novas Tecnologias - da moral danecessidade ‡ potencializaÁ„o da vidaA tecnologia concebida como ferramenta

para prolongar a vida ou aumentar o confortodo indivíduo traduz-se por uma falsa sensaçãode liberdade de escolhas, a moral da necessidade.As inúmeras opções oferecidas tornam-senecessidades obrigatórias, direcionando assim asações do indivíduo, de modo a parecer que asdecisões foram tomadas por ele.

As descobertas científicas utilizadas para nosadverter dos efeitos negativos produzidos pordeterminadas ações limitam nossas possibilidadese nos responsabilizam por atos consideradosarriscados. Obtém-se assim modos de respon-sabilização dos indivíduos por seus atos, mais ummecanismo eficaz para fins de controle.

Acreditar na ameaça da tecnologia é novamenteuma aposta em uma essência humana estranha aoartifício. Ao contrário, queremos pensar a ciênciacomo atividade “natural” do homem, como o quelhe permite potencializar a vida.

Precisamos pensar como as Novas Tecno-logias podem ser utilizadas para realmenteaumentar o campo de escolhas do sujeito,potencializar-lhe a vida, em vez de embotar-lhe a mente ou sugerir-lhe restrições.

MÌdias - do contexto ao hipertextoA questão que se faz presente aqui parece

relacionar-se diretamente com o próprio con-

ceito de comunicação. O problema é querertornar comum as informações, o que só podeser feito com o sacrifício das singularidades.

Fala-se muito da necessidade de democratizaros meios de comunicação de massa. Parece-nosque o cerne da questão precisa ser deslocado. Nãose trata de colocar as minorias no poder nemmesmo de deixá-las retomar a palavra. Para resistirao poder, assegura Deleuze, “necessita-se aomesmo tempo de criação e de povo.”19 Não éapenas uma questão de democratização, é antesde criação. É ainda Deleuze que afirma: “Talvez afala, a comunicação, estejam apodrecidas. Estãointeiramente penetradas pelo dinheiro: não poracidente, mas por natureza. É preciso um desvioda fala. Criar foi sempre coisa distinta de comu-nicar. O importante talvez venha a ser criarvacúolos de não-comunicação, interruptores, paraescapar ao controle.”20

Para gerarmos um campo de comunicaçãocriativa, que comporte vacúolos de não-comu-nicação, que abra espaço para novos discursos epara os enigmas da linguagem e que permita que“palavras e frases dialoguem e ecoem para alémda linearidade do discurso”21 precisamos pensardiferentemente a comunicação.

Pierre Lévy percebendo a mesma necessidadeesboçou uma teoria hermenêutica da comu-nicação. O autor acredita que o sentido de umamensagem não se esclarece por seu contexto, maspor sua associação a uma rede contextual (hiper-texto). Lévy sugere o hipertexto como metáforapara pensar a comunicação. É preciso uma teoriaque tome as redes de significação como centrode suas preocupações: “os principais operadoresdesta teoria seriam as operações moleculares deassociação e desassociação que realizam ametamorfose perpétua do sentido”22, diz Lévy.

Na era da globalização, não nos parece queo papel das mídias seja divulgar e uniformizarinformações em âmbito mundial, mas sim, co-locar as informações em movimento, em fluxo.

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Neste sentido, o hipertexto parece uma ferramenta eficazpara o desenvolvimento da comunicação e da inteligênciacoletivas, como sugere Lévy, ou para unir criação e povo, naspalavras de Deleuze. O hipertexto pode proporcionar vôosmais altos, pode fazer as mensagens viajarem em busca denovas redes, novos significados, novas associações; finalmente,deixá-las em devir.

Notas* Artigo apresentado no GT de Comunicação e Análise doDiscurso, na 7ª COMPOS – Encontro Anual da AssociaçãoNacional de Programas de Pós-Graduação em Comunicação, naPUC-SP, em junho de 1998.

1 Cf. OLIVEIRA, F. C. R. M. A Literatura e o Mal no Ocidente:implicações éticas estéticas. Rio de Janeiro: ECO/UFRJ,Dissertação de Mestrado, 1996.2 SERRES, M. Sagesse. In: Eclaircissements. Paris: Flammarion,1992, p. 2733 BADIOU, A. Ética - um ensaio sobre a consciência do mal. Rio deJaneiro: Relume Dumará, 1995, p. 19.4 LATOUR, Bruno. Entrevistando Michel Serres em Sagesse. In:Eclaircissements. Paris: Flammarion, 1992, p. 2735 BADIOU, A. Ética - um ensaio sobre a consciência do mal. Rio deJaneiro: Relume Dumará, 1995, p. 19.6 GUATTARI, F. Da produção de subjetividade. In: Imagem Máquina.Rio de Janeiro: Editora 34, 1993, p. 177.7 BADIOU, A. op. cit., p. 24.8 VAZ, P. Curso Comunicação e Ética. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995.9 Ibidem.10 SERRES, Michel. Sagesse. op. cit., p. 25111 QUÉAU, P. Novas imagens, novos olhares. In: O império dastécnicas. Campinas: Papirus, 1996.12 Cf. VIRILIO, P. A arte do motor. São Paulo: Estação Liberdade,1996.13 DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992,p. 221.14 GUATTARI, F. op. cit., p. 187.15 Cruel, do latim cru = não cozido.16 NIETZSCHE, F. Genealogia da moral. São Paulo: Ed. Moraes,1991, p. 50.17 TUCHERMAN, I. Curso A questão do sujeito. Rio de Janeiro:UFRJ, 1995, mimeo.18 SERRES, M. op. cit., p. 277-8.19 DELEUZE, G. op. cit., p. 218.20 Ibid. Apud TUCHERMAN, I. Voando no inesperado. In: O indivíduoe as mídias. Rio de Janeiro: Diadorim, 1996.21 LÉVY, P. As tecnologias da inteligência. Rio de Janeiro: Ed. 34, p 73.22 Ibidem. * Fátima Cristina Regis Martins de

Oliveira é Professora Assistente daFaculdade de Comunicação Social

da UERJ e Doutoranda emComunicação e Cultura pela Escola de

Comunicação da UFRJ.

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Os bastidores daOs bastidores daOs bastidores daOs bastidores daOs bastidores daprodução literárprodução literárprodução literárprodução literárprodução literáriaiaiaiaia

Heloísa Guimarães Peixoto Nogueira*

Em quest„o os gÍneros liter�riosA proliferação exaustiva e extensiva de autobiografias,

biografias, memórias, diários e cartas publicadas no mundointeiro angariam, através da mídia e do marketing editorial, umatributo percebido e incorporado pela história das mentalidades,como o direito à necessidade de revelar-se o escondido, daurgência em se contar “todas” as histórias. O fenômeno ocupaespaço internacional e provoca acaloradas discussões teóricas,seja sob o ângulo da teoria literária, com contribuições comoas de Lejeune e Elisabeth Bruss; no âmbito psicanalítico, oenfoque de Berenkassa; ou do ângulo da semiologia, dalingüística ou da história, esta última examinada diferencialmenteatravés da teoria da estética da recepção, formulada por Jauss.A questão assume ares preocupantes nos círculos das ciênciashumanas porque impõe a revalidação de seus paradigmasmetodológicos e espistemológicos. No caso da literatura,limitaremos o enfoque da discussão aos códigos que ora regemalguns destes gêneros literários e o lugar que ocupam comofenômeno literário. Entre os gêneros citados, dedicarei espe-cial atenção à autobiografia.

Cada época produz uma espécie de código implícitoatravés do qual, e graças ao qual, as obras do passado e asobras novas podem ser recebidas e classificadas por seusleitores, constituindo os gêneros literários. O exame daoperação historiográfica literária nos faz distribuir oselementos do passado em função de nossas categorias atuais.O horizonte de leituras deste tempo passado funde estasexperiências anteriores de leitura numa espécie de ‘paisagem-tipo’1, numa fôrma, num mesmo modelo que pressupõe

RESUMOA autora utiliza-se do opúsculo “Como eporque sou romancista” (1873), de Joséde Alencar, para colocar em discussão aautobiografia como gênero literário,compreendida à luz da teoria da estéticada recepção. O documento traz elementosinteressantes sobre a construção do leitore do escritor, e sobre os entraves sofridosna editoração, publicação e divulgação desuas obras.Palavras-chave: gêneros literários,biografia, literatura, história.

ABSTRACTThe author uses the piece “How and Why Iam a novelist” (1873), by José de Alencar, todiscuss the autobiography as a literary genre inthe light of the aesthetic of reception. Thisdocument raises some points of interest to theconstruction of the reader as well as the writer.Alencar also examines here the obstacles toediting, printing and promoting his works.Key-words: literary genre, biografy, literature, history.

RESUMENLa autora utiliza el opúsculo “Cómo y Porqué soy romancista” (1873), de José de Alencar,para poner en discusión la autobiografía comogénero literario, comprendida a través de la teoríade la estética de la recepción. El documento deAlencar trae elementos relevantes acerca de laformación del lector y del escritor, así como sobrelas dificultades en la edición, publicación ydivulgación de sus obras.Palabras claves: generos literarios, biografía,literatura, historia.

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simultaneamente a idéia de permanência e deautonomia, justapondo uma força de inércia amudança. A permanência e a inércia funcionamno sentido de assegurar continuidade a ummodelo que se pretende vivo e comunicativo. Aautonomia, a independência existe na proporçãoem que a própria força literária se estabelece naproporção da transformação da atenção dosleitores. Ou melhor, esta arte onde a autonomia épetrificada em um dogma institucional – umgênero – deve ser de novo submetida às leis dacompreensão histórica, ao mesmo tempo em quedeve ser rendida à experiência estética, ao trabalhosocial e à função de comunicação que ela perdeu.

A expressão horizonte de expectativa, utilizada porJauss, posiciona exatamente esta possibilidade damudança de lugar do leitor, de acordo com a pers-pectiva por ele assumida. Contrariamente, a gran-de massa do público em todas as épocas tem exer-cido o desejo de “fixar” horizontes, de estabilizarcategorias classificatórias referenciais apesar dopoder de transformação a que está submetido oleitor: o sistema escolas, os medias e a indústria edi-torial que atuam em sentido contrário. Daí decorreque o estudo da história da literatura com respeitoaos gêneros literários conduz a intensivamente sermuito menos uma história das “cartas” ou das“autobiografias” em seu sentido genealógico. Aevolução do gênero em seu conjunto tende muitomais a constituir objeto da história assegurando,desta maneira, que os “horizontes de expectativa”sejam progressivamente transformados. Porque aestética da recepção deduz seu caráter parcial daconsciência que temos, de que é impossívelcompreender um texto literário em sua estrutura ea arte em sua história, como objetos totalizantes.

Na verdade, os problemas começam ao setentar definir um gênero segundo critérios decomposição ou de estilo, porque a associaçãoentre características textuais e identidade genéricanão é natural, mas convencional. O primeirotexto de Lejeune (1973) sobre o pacto auto-

biográfico se excede em definições dogmáticas esectárias quanto a estes aspectos. Sua reflexãoinicial teoriza a possibilidade de se criar modeloscomparativos entre biografias e autobiografias, apartir de critérios de recepção que possam serestabelecidos por um leitor situado em um tempodiferente daquele em que a obra foi produzida.Dificilmente, afirma Elisabeth Bruss (1973;14), oleitor de hoje tem condições de partilhar asatitudes e tarefas assumidas pelo público originalde uma obra.“Um leitor não pode legitimamenteestabelecer um “contrato” que com leitores que compreendame aceitem as regras que governam seu ato literário; somentetais leitores podem, reciprocamente, ser-lhe responsável porsua produção”. Não se pode falar propriamente deum “contrato autobiográfico” entre um escritordo século XIX e um leitor do século XXI, porquetal escritor não seria capaz de prever a maneiracom a qual um leitor do futuro consideraria aleitura e o mundo em suas relações. Como vere-mos, a estética da recepção utiliza-se de uma meto-dologia que sugere contornar a citada dificuldade.

Numa atitude de quase “mea culpa”, Lejeunereelabora as mesmas questões tratadas no pri-meiro texto, desta vez no Pacto Autobiográfico(1982) segundo nova abordagem, questionandoa validade do uso de categorias como a de defi-nição, de vocabulário, de identidade e de autoria,de contrato, de estilo para discutir os limitesteóricos entre estes gêneros literários. Éoportuna a afirmação de Michel Foucault(1969:83), quando aborda o lugar do autor:

“(...) Em uma civilização como a nossa, há umcerto número de discursos que são dotados da função‘autor’ enquanto outras são dela desprovidos. Uma cartaprivada bem pode ter um signatário, mas não tem autor,um contrato bem pode ter um fiador, mas não tem autor.(...) A função autor é portanto característica do modode existência, de circulação e de funcionamento de certosdiscursos no interior de uma sociedade.”

A idéia de autoria está na base da propostade um pacto com o leitor. Um pacto que carre-

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ga o propósito de revelar uma “verdade”. Aressalva seria interessante no contexto da carta,assim como no caso do diário e da autobiografiamuito mais do que para as memórias (entendidasaqui como gênero), porque todas elas supõemum autor que se identifica e que assume em gerala identidade de um narrador em 1a pessoa e averacidade daquilo que é narrado. Todas elassupõem relatos de fatos ocorridos, pensados,sentidos do ponto de vista do narrador. Porémeste é um acordo tácito: do papel pretendido eassumido pelo narrador, será posto o mundodiante do leitor como consciência bruta, comoum dado, como um “teatro mental” a ser opera-do pelo leitor na medida da naturalização destasmemórias. Precisando Foucault: são os papéissocialmente adotados pelo autor que geram apersona e constroem suas janelas “textuais” paraolhar o mundo. Já se pronuncia aqui a aberturapara uma possível ficcionalização.

No processo de elaboração de uma memória“textualizada”, seja em forma de diário, carta, bio-grafia ou autobiografia, ou mesmo nomeada co-mo memória, está presente implicitamente a“construção“ do papel de um “eu” que se dirigea um “outro”, mesmo que esse “outro” seja omesmo. Tem sido tradicionalmente assim a situa-ção dos diários que, por sua natureza, eram monó-logos, secretos, apesar de sustentarem um “diá-logo” em que o outro é o “mesmo”. No proces-so da construção desse “eu” pode estar ritualizadotambém uma nova invenção do biográfico, con-forme Berenkassa, em cujo cerne se confun-diria o “real” e o “fictício”, porque pode serum eu que fundiu em si a imagem do outro.Ou mesmo, num exercício de dialéticatransversa, o “eu” – que aparece no discursoem primeira pessoa – pode parecer fundar umdiscurso unívoco porque tem a memória de si.E a memória do “eu”, neste caso, passa a ser amemória de uma ausência, a memória de umadiferença, conforme Boulais (s/d,115):

“Desta dialética incompleta nasce um jogo estéril debalanceamento entre dois estereótipos que se implicamum no outro: o estereótipo da narrativa, como aquilo queo “eu” não é; aquele “eu”como aquilo que não é “aquilo”(oque se lembra de não tê-lo sido e prevê não sê-lo).”

Por tudo isso, Lejeune percebe que o problemaestá menos em “amarrar” critérios que, justapostos,construam um modelo da inclusão e/ou exclusãodaquilo que consubstancia uma autobiografia, porexemplo, e mais em estabelecer um “espaço auto-biográfico” no qual a ambigüidade e a graduaçãopossam relativizar as posições assumidas pelo autorno jogo estabelecido pela recepção do leitor. In-clusive porque é possível ocorrer incompatibilidadeentre a intenção inicial do autor e aquela atribuídapelo leitor. Entre autor e leitor existem inúmerasinstâncias que condicionam a leitura, desde ainterferência do editor ou a interpretação veiculadapelas mídias, afora os níveis de recepção culturaisdo próprio receptor.

Assim, um estudo quantitativo quanto aoaumento das autobiografias publicadas a cada anonão poderia ser feito, afirma Lejeune (1991;324),que a partir de aspectos sistemáticos e não porum percurso em que as obras sejam selecionadasem função das “normas” do Gênero.

Em Les Écritures du moi (1991), Lejeuneflexiona ainda mais seus pontos de vista aoatentar para a inexistência de um modelo únicode autobiografia, por exemplo. Ele chega asugerir que cada autobiografia possa ter seupróprio tipo, fundada sobre uma combinaçãooriginal de soluções dos problemas comuns atodas. O que ele quer dizer, finalmente, é que otrabalho da teoria não seria mais o de construiruma classificação dos gêneros, ou a análise deum gênero em particular segundo apenas aperspectiva histórica. É a evolução do sistemada língua em seu conjunto que permite descobriras leis de funcionamento dos sistemas históricosdos gêneros. Por este ângulo, a utilização daestética da recepção como metodologia básica

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para o encaminhamento do estudo exigiriacompreendê-la como uma disciplina não-autô-noma, que se funda sobre uma axiomática que lhepermite resolver somente os problemas que elaencontra, mas que é susceptível de ser associada aoutras – pois consciente de ocupar um papel me-todologicamente parcial – e de ser completada poroutras em seus resultados. Este, segundo Jauss(1978:245), é exatamente o caráter de “autonomiarelativa” da arte de que falamos acima.

Ao relatar pesquisa2 sobre a poesia líricaeuropéia de 1857, Jauss mostra avanços nestesentido. Estabelece um elo entre a teoria daestética da recepção e a teoria do mundo vivido(Lebenswelt) desenvolvida pela sociologia do sa-ber. Jauss se propõe a fazer falar as instituições“mudas” que regem a sociedade trazendo aonível da formulação temática as normas queconstroem a prova de seu valor, mas também ocaráter problemático nelas implícito.

A construção do objeto de estudo em questãoimpõe um processo de decomposição em váriasfases: a identificação dos comportamentos este-reotipados no corpo poético, sua institucionali-zação a medida em que recebem legitimidade esão interiorizados e, como resultado, produzemum sistema hierarquizado de papéis sociais, deinstituições e de “universos particulares” – o quevem a constituir os “enclaves de sentido” no in-terior da realidade quotidiana que os engloba atodos. Jauss privilegia a idéia ou imagem que oleitor se faz da realidade representada pela poesia,e não o conhecimento objetivo que tem dela. Estarepresentação cria a coisa representada, torna-averossímil, reconhecível e satisfatória à leitura.

A mensagem poética vem integrar o horizontede experiência do leitor como atenção sobre umsentido quanto como modelo comunicacional,como paradigma social que comunique asexperiências e os valores e como imagem “con-tra-idealizada” do fenômeno social. Neste caso,o lirismo não usa somente a idealização para a

construção da imagem e da sugestão poética.Ele pode evocar também, conforme Jauss, demaneira direta ou indireta, a ameaça de umasanção à sociedade. Em suma, Jauss propõe queo uso desta metodologia parcial permita localizaros pontos que conduzem a recepção da obrasingular ao nascimento dos cânones artísticos, àatualização e à totalização, e finalmente fazendoextrair a experiência estética do conjunto dapráxis humana, da qual ela é parte integrante.

A teoria da estética da recepção pode fun-cionar como um exercício propedêutico na lo-calização e exame dos gêneros literários aquiapontados num momento particular da literaturabrasileira. Procurei localizar, por particular in-teresse acadêmico, obras que tivessem sidoconsideradas por alguns críticos e historiadoresda literatura como memórias, diários, cartas, bio-grafias e autobiografias, em específico do períodoromântico até o assim-chamado pré-modernis-mo. Encontrei apenas um documento, tecni-camente intitulado como autobiográfico porAlfredo Bosi, na História concisa da literaturabrasileira (1983). Trata-se do opúsculo de José deAlencar – Como e porque sou romancista – escritoem forma de carta em maio de 1873 e publicadopelo filho de Mário de Alencar como autobio-grafia literária, em 1893.

Os demais gêneros inclusos nas categoriaspropostas são, em sua maioria, tratados comomemórias porém não se pode asseverar, apenaspor seus títulos, sejam representativos dascategorias que lhes são sugeridas. A questãomereceria maior aprofundamento. São eles:Memórias do sobrinho de meu tio, de Joaquim Manoelde Macedo (1868); Memórias, de Alfredo Taunay,publicadas em 1948; Biografia da vida do PadreAntonio Vieira, de João Francisco Lisboa (1812-1863); Memórias póstumas de Brás Cubas e Memorialde Aires, publicadas como ficção, respectivamenteem 1881 e 1908; Memórias de um condenado, deAluízio de Azevedo (1882); A Conquista, de

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Coelho Neto (1899), tratada como trabalhoautobiográfico; O meu próprio romance,de GraçaAranha (1931); Diário Íntimo (1903) e Cemitériodos Vivos (1920), de Lima Barreto, ambos consi-derados como memórias por Alfredo Bosi.

A teoria da estÈtica da recepÁ„o aplicadaa ìComo e porque sou romancistaîAntônio Cândido (1975) aponta que, na

verdade, existiam três autores manifestos em Joséde Alencar: o Alencar dos rapazes, heróico,altissonante – o autor de O Sertanejo, As Minas dePrata, O Guarani –; o Alencar das mocinhas,gracioso, astucioso, quase trágico – autor de CincoMinutos, A Viuvinha, Diva, Pata de Gazela – e oAlencar adulto, no enfrentamento teórico-literáriocom as questões humanas, sociais, políticas oueconômicas. A sociedade brasileira, segundo estaperspectiva, funcionava como um espaço deconcorrência em direção à felicidade e ao bem-estar, onde a segurança e a solidez estavamrepresentadas nas figuras do comerciante e dofazendeiro pelo que, emblematicamente,significava a posse da terra, os títulos de nobrezae tradição e as bases patrimoniais feudais.

Foi através dos jogos de linguagem construídospor esta tipologia que o Alencar “adulto” alicerçouas bases de sua teoria literária. O “pós-fácio” deDiva, o “Bênção paterna” de Sonhos d’ouro e oopúsculo “Como e porque sou romancista”constituemos sumários-projetos, segundo Afrânio Coutinho,para o estudo teórico da língua e da literatura.

“Como e porque sou romancista” é apresentadopor Bosi como autobiografia, no entanto é umacarta sem destinatário identificado, o que já é, porsi só, uma situação interessante. Não é uma cartapessoal no sentido de revelar intimidadesparticulares, sentimentos, segredos, amores,frustrações pessoais. É uma carta escrita em 1873,editada num pequeno opúsculo como“autobiografia literária” pelo filho de Mário deAlencar. A carta diz respeito ao processo de

construção de José de Alencar como leitor e comoescritor, e dos entraves sofridos no tocante àeditoração, publicação e divulgação de suas obras.

É uma carta que fala de uma persona emconstrução profissional, um “eu profissional” quenomeia o documento como o “livro dos meuslivros”. Aí se revela a intenção do autor de trazersuas origens à tona, as cenas fundantes daconstrução do escritor. Escrita em primeirapessoa, o opúsculo poderia perfeitamente, sobeste ponto de vista, ser categorizado como umacarta redigida a um colega, um ensaio/artigopublicado em jornal ou brochura, ou umaautobiografia literária. Em todos os casos a idéiade pacto com o leitor procede. O relato de Alencarsobre suas experiências como leitor e o processode construção do escritor e jornalista constituiuma “história de vida” que, pelo tom memorialistae pelas narrações de vida sugere a intenção detorná-la pública, de partilhar ao menos com odestinatário da carta, ou mesmo publicá-la.

Tendo sido escrita em 1873, cabe-nos arti-culá-la num diálogo entre nossa atual conjunturae um discurso que é passado de maneira apercebermos a circunstância implícita contidaneste discurso passado, e esta percepção seráentendida como resposta a uma questão que noscabe colocar agora. Aplicando a metodologiada estética da recepção ao conteúdo da carta/autobiografia, Alencar nos conta, em primeirolugar, suas memórias literárias, o leitor emconstrução. Relata minuciosamente, passo apasso, o acesso às obras literárias nacionais eestrangeiras e detém-se em seu relato. Seimportante nos é acompanhar o processo deformação acadêmica de Alencar – que autores,quais obras, em que seqüência – mais do queisso assume importância radical para nossaspesquisas compreender os processos culturais esociais que estruturaram a formação deste leitor.Por exemplo, Alencar (1987:21-22) narra comoocorriam os serões familiares:

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“Afora os dias de sessão, a sala do fundo era aestação habitual da família.

Não havendo visitas de cerimônia, sentava-se minhaboa mãe e sua irmã D. Florinda com os amigos queappareciam, ao redor de uma mesa redonda dejacarandá, no centro da qual havia um candeeiro.

Minha mãe e minha tia se occupavam com trabalhosde costuras, e as amigas para não ficarem ociosas asajudavam. Dados os primeiros momentos á conversação,passava-se à leitura e era eu chamado ao lugar de honra.

Muitas vezes, confesso, essa honra me arrancava bem ácontra gosto de um somno começado ou de um folguedo querido;já naquella idade a reputação é um fardo e bem pesado.

Lia-se até a hora do chá, e tópicos havia tão interessantesque eu era obrigado à repetição. Compensavam esse excesso,as pausas para dar logar ás expansões do auditório, o qualdesfazia-se em recriminações contra algum mao personagem,ou acompanhava de seus votos e sympatias o heróe perseguido.

Uma noite, daquellas em que eu estava maispossuído do livro, lia com expressão uma das paginasmais commoventes da nossa bibliotheca. As senhoras,de cabeça baixa, levavam o lenço ao rosto, e poucosmomentos depois não poderam conter os soluços querompiam-lhes o seio.”

O relato da cena familiar é de imensa riqueza.Em primeiro lugar, Alencar localiza, na casa, oespaço da intimidade social – a “sala do fundo”.Estudos arquitetônicos3 sobre a disposição daspeças nas residências de classe média do séculopassado indicam uma forte tendência emaumentar a intimidade da família à medida queos cômodos da casa se situam mais ao fundo.Transpor a primeira sala e chegar ao corredorou demais dependências da casa exigia que ovisitante tivesse um grau de intimidade poucocomum àquele tempo.

Significativa, também, perceber a localizaçãodas pessoas no ambiente da sala – sentados aoredor de uma mesa redonda de jacarandá no centro daqual havia um candieiro – flagrando a vida em tornode um centro representado pela disposição daspeças da casa, da mobília e pela centralização da

família em torno dos homens da casa – pai efilho, pelo fato de Alencar ser chamado a ocuparo lugar de honra – enquanto as mulheres – as dacasa e as amigas – ocupam-se com os trabalhosde costura. De outra parte, transparece nele aambigüidade entre sentir-se honrado e aomesmo tempo compungido a ocupar este papel.

Segundo Alencar, as obras lidas em famíliaeram novelas e romances de Amanda e Oscar,Saint-Clair das Ilhas, Celestina e outras nãoespecificadas. A leitura se realizava de modocoletivo, como vimos, e contínuo, provavelmenteà tarde e interrompida apenas na hora do chá. Noentanto, aqui a interrupção não parece provocara dissolução do clima intimista familiar e amicalpropiciado pelo ritual da leitura, ao contrário doque ocorre em nossos tempos em que acomplexidade e o número de atividades quedesempenhamos e os deslocamentos físicos queelas exigem dispersam, fragmentam os possíveisvínculos psicológicos e sociais tornando asintimidades mal esboçadas e logo banalizadas.

Outras situações ainda chamam a atenção –tópicos havia tão interessantes que eu era obrigado àrepetição – o recontar de cenas da obra então emleitura, e o compartilhamento da emoçãoprovocada, os soluços que irrompiam sonoros.A reiteração de partes da história conduz àmemorização e constrói o imaginário. Por sercoletivo, o momento torna-os cúmplices de ummesmo sentimento, de uma mesma vivência oque reforça o sentido gregário de pertencimentoe de valorização da memória coletiva.

O opúsculo aborda, de outra parte, asdificuldades enfrentadas por Alencar paratornar-se escritor: do aprendizado da línguaestrangeira, autodidata – foi assim que leu asobras de Balzac – às fontes por ele recorridas,dos cronistas coloniais aos romances marítimosde Walter Scott e Cooper, além de leituraextensiva das obras de Dumas, Arlincout,Frederico Soulié, Engène Sue e outros. A

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perseverância com que conduz seus estudos sugerea investigação sobre como agiam, deste ponto devista, outros escritores em seu ofício e quedificuldades poderiam encontrar em suas carreiras.

O último aspecto trazido por Alencar dizrespeito às relações do escritor com o jornal ea mídia. Estava ele a construir um romance-folhetim deixado inconcluso a uma gaveta dojornal em que trabalhava. A necessidade deencher o rodapé da folha do jornal (no qual elepublicava suas matérias) leva o encarregado darevista semanal a localizar, em sua gaveta, ocapítulo em construção e editá-lo como conto,sem consultá-lo, com uma linha de reticências e duasde prosa, um desses súbitos desenlaces que fazem o effeitode uma guilhotina litteraria. A situação era prosaica:o leitor conhecia o desenrolar do romance an-tes mesmo de seu autor! Eis suas palavras: Imag-ine como fiquei, em meio de um romance, cujacontinuação o leitor já conhecia oito dias antes. Quefazer? Arrancar do Livro do Domingo, as palavras jápublicadas? (Alencar:1987;37-8)

Chama atenção o modo fragmentário deprodução dos capítulos do romance-folhetim emcurso, como provável decorrência do ritmo e dasnecessidades da edição jornalística, um fenômenoestilístico que iria influir definitivamente o processoliterário brasileiro. Eis seu relato (idem, 36):

“Trabalhava, não pela ordem dos capítulos, masdestacadamente esta ou aquela das partes em quese dividia a obra. Conforme a disposição do espíritoe a veia da imaginação, buscava entre todos oepisodio que mais se moldava ás idéias domomento. Tinha para não perder-me nesse dedaloo fio da acção que não cessava de percorrer.”

A pressa no processo de redação dos capítulos– sinal de uma literatura em vias de profissiona-lização – mostra-se neste parágrafo (idem, 38-9).

“Meu tempo dividia-se desta forma. Accordei, porassim dizer na meza do trabalho; e escrevi o resto docapitulo começado no dia antecedente para envial-o átypografia. Depois do almoço entrava por novo capitulo,

que deixava em meio. Sahia então para fazer algumexercício antes do jantar no Hotel de Europa.”

O papel desempenhado pela imprensaperiódica na difusão das primeiras investidasdos autores brasileiros em gêneros literárioscomo conto, novela e romance foi tão ex-pressivo a ponto de Barbosa Lima Sobrinho,em sua introdução ao volume Os precursores doconto no Brasil afirmar que “a história literária doBrasil ganharia pelo menos 10 anos, se se escrevessetomando como referência os jornais e não os livros.”

Raro é encontrar, no texto literário, referênciasà recepção direta dos leitores sobre o lançamentode uma obra. Mais freqüente sabe-lo através datiragem, dos locais de distribuição e revenda, dareação da crítica literária ou comentários da im-prensa local. Alencar revive, aqui, situações enfren-tadas por ele com a publicação de Lucíola, editadaa suas expensas e no maior sigilo. Diz ele (1987:43):

“O apparecimento de meu novo livro fez-se com aetiqueta, ainda hoje em voga, dos annuncios e remessade exemplares á redação dos jornaes. Entretanto todaa imprensa diária resumiu-se nesta noticia de umlaconismo esmagador, publicado pelo Correio Mercantil:‘Sahiu á luz um livro intitulado Lucíola’. Uma folhade caricaturas trouxe algumas linhas pondo ao romancetaxas de francezia.”

Realmente, o poder da mídia impressa era e éinquestionável. Imagine-se o impacto que a notícia‘despretensiosa’ do lançamento de Lucíola deve tercausado no público ao lado da indignação de Alencar!

O comentário seguinte reclama do direitoautoral, da dificuldade do escritor acompanhara divulgação e circulação de sua obra, no caso,O Guarany (idem, 41):

“Durante todo esse tempo e ainda muito depois,não vi na imprensa qualquer elogio, crítica ou simplesnoticia do romance, á não ser em uma folha do RioGrande do Sul, como razão para a transcripção dosfolhetins. Reclamei contra esse abuso que cessou; masposteriormente soube que aproveitou-o a composição jáadiantada para uma tiragem avulsa.”

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O assunto mereceria maiores investigações,compreender os processos que geravam e aindacontribuem para a falta de controle, da partedos autores, sobre o direito autoral. Rastreandoa recepção da obra Lucíola, eis o que Alencar(1987:43 e 37) nos traz:

“Apezar do desdém da critica de barrete, Lucíolaconquistou seu público, e não somente fez caminho comoganhou popularidade. Em um anno esgotou-se a primeiraedicção de mil exemplares, e o Sr. Garnier comprou-mea segunda.” E mais:

“Escrevi Cinco Minutos em meia dúzia de folhetinsque iam sahindo na folha dia por dia, e que foramdepois tirados em avulso sem nome do author. Apromptidão com que em geral antigos e novos assignantesreclamavam seu exemplar, e a procura de algumaspessoas que insistiam por comprar a brochura, somentedestinada á distribuição gratuita entre os subscriptoresdo jornal; foi a única, muda mas real, animação querecebeu esta primeira prova. (...) Tinha leitores eexpontaneos, não illudidos por falsos anúncios.

Duas questões aqui merecem atenção: com-parar a tiragem e a periodicidade entre os roman-ces “masculinos” de Alencar e os “femininos”. Éprovável que a demanda promovida pelas “leito-ras” seja mais evidenciada, confirmando pesquisade Tinhorão (1994) sobre os romances em folhetinsno Brasil. Além disso, o primeiro recorte apresentaníveis de recepção diferenciados: o silêncio daimprensa em relação à publicação da obra e, apesardisto, o sucesso de venda. Tal situação sugere estu-dos que discutam a correlação entre a inevitabilidadedo sucesso de uma obra literária e a promoçãoveiculada pela mídia. Outro elemento digno demenção: primeiro, a edição dos fragmentos da obraCinco Minutos em jornal, sem o crédito ao autor;de outra parte, a resposta dos assinantes e não-assinantes em busca da brochura expressam o nívelexcelente de recepção produzido pela obra, e ainda,a consciência de Alencar sobre a distância entre avenda sob efeito de ação promocional e a reaçãopositiva espontânea do leitor.

Alfredo de Escragnolle Taunay – o conhecidoVisconde de Taunay – comenta que era moda, àépoca, acompanhar avidamente as histórias emtiras de jornal e que isto atingia não apenas asmulheres, mas os estudantes e o próprio públicomasculino, leitor costumeiro de jornais do Riode Janeiro. Na verdade, confirma-nos Tinhorão,tudo indica que a pequena burguesia não lia livros,porém comprava e muito os jornais...

Portanto, os “estereótipos de compor-tamento” falados por Jauss e percebidos no textode José de Alencar funcionam tanto comoconstrutores de um sentido paradigmático socialquanto como modelo comunicacional sobrefenômenos sociais ocorridos num determinadoperíodo de tempo. A teoria da estética da recepçãopermite localizar alguns dos pontos queconduzem à recepção de uma obra singular aonascimento dos cânones artísticos, à sua atua-lização e a condição para extrair, desta experiênciaestética, o conjunto da práxis humana.

InconclusıesAssim, retornando à questão básica que

norteou este estudo, pergunta-se: em que gêneroliterário deve ser entendido o Opúsculo de Joséde Alencar “Como e porque sou romancista? ” Comocarta, respeitando o formato inicial dado peloromancista? Tratando-o como autobiografialiterária, tal qual recomendado pelo filho deMário de Alencar? Sabe-se que os limites entreos diversos gêneros revelavam-se imprecisosnesse início da moderna ficção destinada aopúblico de massa. Segundo Tinhorão (1994),havia contos que melhor seriam chamados decrônicas, ou quando mais extensos constituíamverdadeiras novelas, novelas estas que às vezeseram apenas contos esticados, da mesma formaque certos romances não passavam de novelas.O uso da categoria autobiografia aparecesomente na obra de Alfredo Bosi e no prefácioao opúsculo, escrito por Afrânio Coutinho e

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estritamente neste caso. Poder-se-ia conjecturarcom Flora Sussekind (1990) que este narrador,havendo assimilado os moldes do folhetim, domelodrama e da novela histórica - enaltecedoresda idéia de unidade nacional e “fundação” deuma novelística local - tenha preferido colocar-se em segundo plano em relação à paisagem eao texto, negando à autobiografia uma pers-pectiva de auto-centramento? Nos períodosentre 1830 e 1840, essas “figuras de narradornecessitaram obrigatoriamente de um olhar-de-fora e deuma exibição – consciente ou não – de certa ‘sensação denão estar de todo’ na sua composição” afirma Sussekind(1990:20-1). De 1840 a 1873, data do opúsculode José de Alencar, o autor avança do gêneroromance histórico para a experimentação emoutros gêneros como a poesia, a ópera bufa, odrama e o romance ficcional, incentivado peloaumento provável de público leitor.

Ao considerar o texto como autobiográfico,então, estaria suposto o direcionamento a umleitor imaginário, não específico, como o seriatalvez em uma carta. E um leitor no mínimomoderno, tendo em vista ser esta uma categorianotadamente envolvida com a questão daidentidade. Lejeune ressalta que a autobiografiaexige a identidade entre autor, narrador epersonagem. Afirma ele (1973:23):

“Um autor não é uma pessoa. É uma pessoa queescreve o que publica. O autor se define como sendosimultaneamente uma pessoa real socialmenteresponsável e o produtor de um discurso. Para o leitor,que não conhece essa pessoa real, o autor se define comoa pessoa capaz de produzir este discurso, e ele o imaginaa partir daquilo que ele produz”.

Sabemos que Alencar produziu muitasoutras obras literárias além deste pequeno eprecioso documento; o pré-conhecimentodeste fato ajuda a orientar o leitor quanto aopróprio texto. De outra parte, “o paradoxo daautobiografia é o de pretender ser ao mesmo tempo umdiscurso verídico e uma obra de arte; da banalidade do

curriculum vitae à poesia pura.” (Lejeune:1982;424) Emoutras palavras: o discurso sobre uma memóriavivida coexiste àquilo que simultaneamente atranscende em duas dimensões: uma real sobre aqual se estrutura, e outra ficcional. Se, no entanto,o gênero é definido por aquilo em que ele diferede outros atos literários, pode-se cogitar, naatualidade, que ele se aproprie de característicastextuais vinculadas exclusivamente a um outrogênero, o que tornaria toda a distinção entre gênerosliterários e sua discussão inteiramente descabida.Assim, a única segurança possível está emconsiderar que o valor desta autobiografia comogênero literário estaria no reflexo das distinçõesconvencionadas que dizem respeito ao contextosocial, à identidade do autor e a técnica discursiva –todas condições, no entanto, relativas, porquesubmetidas à mudança no tempo.

Notas1 Expressão utilizada em Lejeune a respeito da teoriada estética da recepção, de Jauss [1991:320].2 Jauss, H.R. La douceur du foyer. In: Pour uneesthétique de la réception. Paris: Gallimard, 1978, p.263-297.3 Realizei estudo em 1993 a partir da obra Casa dePensão (1884), de Aluízio de Azevedo entrecruzandoas idéias expressas num dos primeiros e belíssimotrabalho de Jean Baudrillard (1988) – El sistema delos objetos – e a proxemia definida por EdwardHall(1966) em A dimensão oculta, os aspectosculturais denotados pela disposição das peças e domobiliário das casas do final do século XIX e ocomportamento de proximidade-afastamento entre aspessoas. O estudo das relações espaciais entre osobjetos e pessoas tem suscitado inúmeras questõesimportantes do ponto de vista da compreensão de ummodelo de comportamento social.

BibliografiaALENCAR, José de. Como e porque sou romancista.

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* Heloísa Guimarães PeixotoNogueira é Mestre em Memória Social e

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O livro numO livro numO livro numO livro numO livro nummundo globalizadomundo globalizadomundo globalizadomundo globalizadomundo globalizado

Héris Arnt*

RESUMOEste artigo tem o propósito de abordaralgumas questões sobre o livro na atualfase de globalização, mostrando a relaçãoentre a literatura e os outros produtosda indústria cultural. A principal questãoenvolvendo este campo é saber se aliteratura ainda tem relevância no mundocontemporâneo e se corresponde, numaperspectiva mais abrangente, a um meiode comunicação.Palavras-chave: literatura, imagináriosimbólico, intertextualidade, globalização,fragmentação

ABSTRACTThis article proposes to broach some issues aboutthe book in the present globalization level, showingthe relationship between literature and otherCultural Industry’s products. The main issue whichinvolves this field is to know if literature is stillrelevant in the contemporary world and if itcorresponds, in a extended perspective, to a meanof communication.Key-words: literature, symbolic imaginary,intertextualidade, globalization, fragmentation.

RESUMENEste artículo tiene el propósito de abordar algunascuestiones sobre el libro en la actual fase de laglobalización, mostrando la relación entre laliteratura y los otros productos de la industriacultural. La principal cuestión envolviendo este campoes saber si la literatura aún tiene relevancia en elmundo contemporaneo y si corresponde, en unaperspectiva más amplia, a un medio de comunicación.Palabras claves: literatura, imaginario simbólico,intertextualidad, globalización y fragmentación.

Indissociável da maneira de ser e pensar do homem, aliteratura perde na contemporaneidade sua aura. Integradaao sistema de produção da indústria cultural, a literaturaainda é um meio de comunicação, respondendo àsinquietações do homem? O termo “meio” está sendointencionalmente utilizado, para se estabelecer de imediatoa ligação entre literatura e o universo midiático.

Partindo-se de um enfoque histórico, podemos dizer quea literatura foi a base da comunicação de massa no séculoXIX, quando os escritores começaram a escrever para osjornais folhetins, contos e crônicas, dando, assim, os primeirospassos em direção à massificação da cultura. Esta abordagemtem por objetivo pontuar, de início, nossas opções teóricas,que vêem a literatura por um viés sociológico.

O romance do século XIX torna-se, praticamente, umproduto da mídia impressa. Este fenômeno foi geral noOcidente. Assim foi com Dostoiévski, na Rússia, que escreviafolhetins e se inspirava nos casos policias divulgados pelaimprensa; os romances de Balzac, na França, foram escritosoriginalmente para jornais; Charles Dickens, na Inglaterra,e Machado de Assis, no Brasil, escreveram sob a forma defolhetins. E a lista poderia se alongar. Se, no século XIX, aliteratura chega às massas, através dos jornais, revistasliterárias e fascículos, é porque ela representava um meio decomunicação muito forte que favorecia os laços sociais; eisto foi possível porque existia um imaginário simbólicocompartilhado, fruto de uma representação coletiva,idealizada ou não, de um projeto de sociedade ou dehumanidade. Essa literatura, no sentido mais amplo do

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termo, era engajada numa ideologia daeducação, da cultura, do progresso individual ecoletivo. Pode-se mesmo dizer que ela eradidática. Impossível ler a obra de Dickens semse pensar num projeto político de justiça so-cial; José de Alencar sem acreditar napossibilidade da construção de uma identidadenacional brasileira; ou Flaubert, ficandoindiferente ao papel corretivo dos costumes queele confere à obra literária. Isto para citarmosescritores de estilo e fases totalmente diferentes.

Nenhum autor, talvez, tenha feito com tantamaestria esta ligação entre imaginário simbólicoe tensão emocional como Victor Hugo. Apesarde não ter sido um folhetinista (seus livros nãoforam originalmente escritos para jornal), suaobra foi reproduzida nos jornais, em capítulos;e um eficiente sistema de vendas em fascículospermitiu a divulgação massiva e penetraçãopopular de sua obra. Victor Hugo foi umfenômeno de massa no século XIX. Algumasquestões que envolvem sua vida e obra mostramesta ligação do autor com sua época e seusleitores. Seu enterro provocou uma convulsãonacional, com milhares de pessoasacompanhando o cortejo até o cemitério –prenunciando um fenômeno que seriamarcante um século depois, com a indústriacultural do cinema. Podemos ver, ainda hoje,nos documentários sobre cinema, a massa en-sandecida no enterro de seus stars. O imagináriosimbólico captado por Victor Hugo atravessaos séculos e chega incólume ao século XXI,nas reproduções musicais da Broadway, em queOs Miseráveis é um ícone. Mais recentemente, amontagem musical francesa do Corcunda deNotre Dame emocionou multidões.

Nada disto existe na literatura de hoje; aocontrário, ela torna-se fragmentária, dirigidapara segmentos compartimentados da socie-dade. Para o escritor alemão Hermann Broch,isto representa o fim da literatura. Para ele, a

literatura deve ser o espelho do mundo e repre-sentar a totalidade deste. Assumindo, assim, umafunção de conhecimento. Na contempora-neidade, a literatura representa o mundo não nasua totalidade – no sentido de construção devalores universais – mas na fragmentação e nafratura, e torna-se parte integrante de umacomunicação intertextual total em que todos osprodutos culturais do universo mediático estãoincluídos. Espelho não do mundo, mas dofragmento, a literatura conserva, no entanto, suafunção de conhecimento.

A contemporaneidade coloca em xeque umacerta visão da literatura, como fruto de trêsdiferentes vertentes: a universal, a de massa e aregional. Aqui cabe um parênteses explicativosobre o caráter universal da literatura: conside-ramos como universal não a literatura que emanade uma cultura elitista, mas a literatura quecorresponde ao que George Steiner define comoum “logos” universal, que é o que permite a co-municação e a tradução. A comunicação de umalíngua para outra, como no interior da próprialíngua, é um processo de tradução. Para o autor,a língua tem duas características, uma particulare outra universal. A comunicação só é possívelporque existe possibilidade de fusão entre o uni-versal e o particular. Deste ponto de vista, a dico-tomia entre literatura regional e universal desa-parece, enquanto o particular, em seu sentidoestrito, tem caráter excludente, exige iniciação etende à repetição e à exacerbação. Na cultura demassa, por definição, o discurso busca a uni-ficação, com o objetivo de atingir o maior nú-mero de pessoas heterogêneas. Em decorrênciadisto, os temas procuram encontrar o mínimodenominador comum, o que significa homo-geneização e pasteurização – diluem-se fron-teiras, desaparecem as particularidades.

A condição de universalidade da literaturanão desaparece na contemporaneidade, mas aquestão não tem mais nenhum sentido. Não

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se trata mais da comunicação de um “logos”universal, mas da transmissão de códigosparticulares acessíveis a um grande número depessoas. A tendência da literatura é, pois, aespecialização. O sentido particular dá umcaráter de intraduzibilidade, favorece os adeptosdo mesmo código, cria laços de comunicação.Para Michel Maffesoli, os laços sociais existem,mesmo que a comunicação não seja direta. Oslaços podem mesmo ser profundos entreleitores de um mesmo gênero. O sentimentode pertencer a um grupo é mesmo muito forteentre leitores dos livros de série de horror, deficção científica entre outros.

A literatura contemporânea integra-se aomercado cultural, ao lado dos outros produtos daindústria cultural, é um dos fragmentos dessediscurso intertextual total. E quando falamos emfragmento, estamos nos referindo a um discursode construção e reconstrução de códigos. A lite-ratura, como todos os outros produtos culturais,estabelece uma comunicação segmentada. E istonão quer dizer que os grandes temas universais nãotenham mais lugar na literatura contemporânea,mas apenas que eles têm o seu público cativo deli-mitado. A vocação da literatura é, cada vez mais,produzir para um segmento determinado – osadeptos da ficção científica, dos livros policiais, doassédio sexual, etc. A globalização e interna-cionalização dos produtos culturais difere dofenômeno de cultura de massa, que perdurou atérecentemente. Mesmo que se trate de um consumoem escala mundial, o mercado é totalmentesegmentado, não diferente do xampu O produtoideal de massa, que reproduz valores universais, queagradaria a um público heterogêneo, de gostos eculturas diferentes, não existe mais. A indústriaprocura o consumidor tipo de seu produto, lá ondeele estiver – do Japão ao Brasil.

A tendência da literatura é, cada vez mais,produzir para um determinado setor da sociedade.A globalização na produção cultural não significa,

necessariamente, o fim dos regionalismos edestruição de um sentido universal. Tudo éproduzido ao mesmo tempo para todos os gostos.E a indústria vai procurar os produtos e osprodutores culturais onde estiverem, em qualquerparte do mundo, para assegurar a produçãoabsolutamente gigantesca do mercado cultural.

Paradoxalmente, na atual fase de globalização,podemos observar pluralidade, diversidade decódigos, multiplicação rizomática de produtosculturais quanto à criação e centralização quantoà produção. Poucos conglomerados dominamo mercado da produção cultural, e o livro estáinterligado a este sistema. Mas, apesar dasgrandes editoras produzirem integradas ao setorda indústria cultural, existe um dinâmico evariado setor, de pequenas empresas, produzindofora do esquema. Milhares de editoras,espalhadas pelo mundo, formam uma linha defrente tentando antever os rumos que o gostodo público vai seguir. Na produção editorial atualpredomina a política do grande número detítulos, com pequenas tiragens, na expectativade se encontrar a obra que se tornará bestseller.É neste aspecto que a análise da produção edi-torial é importante para a compreensão de todoo sistema cultural. Uma conseqüência disto é oaumento considerável de títulos publicados.Nunca se publicou tanto – títulos novos,clássicos, títulos esquecidos, traduções. Traduz-se muito, de todas as línguas para todas as línguas.

Apesar da indústria cultural ser predo-minantemente globalizada, produzindo para omercado mundial, os receptores dos produtosculturais são segmentos bem determinados dasociedade. Nós não estamos mais numa lógica dehomogeneização, da cultura de massa – em queos filmes americanos dos anos de ouro de Holly-wood foram modelares. Qualquer que fosse ogênero dominante, misturava-se uma pitada desexo, amor, violência, suspense, para agradar atodos, em qualquer lugar do planeta. Os produtos

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culturais da contemporaneidade são produzidos para umpúblico alvo específico. Talvez isto explique o desgaste da“receita” de novelas brasileiras de televisão, que alternamem doses pasteurizadas o arrivista, o vilão, o enriquecimentoilícito, o empobrecimento nobre, em situações de suspense,sexo, violência e pieguismo, com o objetivo de agradar atodos os segmentos da sociedade brasileira.

A tendência à segmentação provoca interdependênciaentre as diferentes mídias, mais do que no interior deum mesmo meio. Exemplificando, o livro se articula comum filme, vídeo, videogame que reproduzem o mesmouniverso imaginário, mais do que com diferentes gênerosliterários. As pessoas não “lêem” de maneira genérica,mas lêem especificamente o que está sendo produzido,na medida certa, do seu gosto.

Se a literatura reproduz o imaginário fragmentado dacontemporaneidade, ela traz nela o “vírus” do seu próprioquestionamento. E isto é possível porque a literatura temuma forma portadora de sentido. A descontinuidade dodiscurso literário reproduz e denuncia a fragmentação e aexpansão ilimitada de códigos da nossa era. O que a literaturaestá querendo dizer, de forma indireta, é que oremembramento de todos os fragmentos, para se encontrara coerência do sistema, é absolutamente impossível – asintuições pessimistas de Broch se realizam na pós-modernidade, quando ele prevê que esses fragmentostendem a ter vida própria, se fecharem neles mesmos e setornarem absolutos. Esses sistemas de valores tornam-se“estrangeiros uns aos outros” (Broch, 1966: 226).

Michel Maffesoli, de maneira mais otimista, observa amesma fragmentação da sociedade. Para o autor, o corposocial divide-se em partes autônomas, formando grupos– as novas tribos –, tornando mais complexa e orgânica aestrutura da sociedade: “Cada grupo é, para si mesmo,seu próprio absoluto. Esse é o relativismo afetivo que setraduz, especialmente, pela conformidade dos estilos devida. Tal coisa pressupõe , no entanto, que exista umamultiplicidade de estilos de vida – de certa forma, ummulticulturalismo. De maneira conflitual e harmoniosa,ao mesmo tempo, estes estilos de vida se põem e opõemuns aos outros (Maff. 1998: 125).

A última questão envolvendo o livro, sobre a qual não

podemos deixar de fazer referência,mesmo que rapidamente, é sobre suainserção no universo da multimídia.Com um número cada vez maior delivros copiados em disquetes e em CD-Rom para serem lidos on line, umaquestão que se coloca é sobre o destinoe a sobrevivência do livro impresso. Nósassistimos, com o advento das novastecnologias de comunicação, à evoluçãodo livro, que se liberta da formarestritiva do “códex” das escrituras cató-licas. Para Arlindo Machado, a passagemdo livro impresso ao monitor recuperaa significação primeira de conteúdo quea palavra livro continha antes dainvenção da forma atual, já velha de maisde 17 séculos. Os meios eletrônicosabrem a possibilidade ilimitada departicipação na construção do texto. Seo livro vai continuar a existir, na suaforma “códex”, não se sabe, e estaquestão não tem grande importância.De qualquer maneira, o homemcontinuará a “inventar dispositivos paradar permanência, consistência e alcanceao seu pensamento e às invenções desua imaginação.”(A.M.p.212)

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* Héris Arnt é Doutora em sociologia eProfessora Titular da Faculdade de

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A lentidão naA lentidão naA lentidão naA lentidão naA lentidão naculturculturculturculturcultura das cidadesa das cidadesa das cidadesa das cidadesa das cidades

João Maia*

Propomos, aqui, pensar sobre o movimento de uma culturaque podemos chamar de urbana e que nasce com amodernidade de maneira provocadora, instigante, massiva eplural, logo contraditória. Esta cultura que privilegia as maisvariadas formas técnicas e imaginários vive das formas de tem-pos que se inscrevem de maneira plural na cidade. Ela vai crescere se reproduzir em diferentes domínios do social e valorizar avelocidade, a mobilidade e a efemeridades dos acontecimentos.Vai transformar modos e estilos de vidas sociais, profissionais,sexuais, enfim, relacionais de maneira ampla. Vamos investigaralguns fatores que aceleram as mudanças das imagens quecriamos sobre a cidade de acordo com essa efervescência do“espírito do tempo” moderno. Vamos mostrar, nesse artigo,as maneiras de resistência à velocidade dessa cultura moderna.Hoje, constatamos que um tempo lento se estabelece marcandoa cultura local e que serve de resistência aos processos demundialização da cultura. Existe claramente uma resistência aessa mundialização da cultura que marcou a modernidadeespecificamente com a comunicação de massa e que está seacelerando na pós-modernidade com a circulação deinformações em redes de computadores.

Partimos do princípio que se a modernidade urbana privilegiaa circulação e a pluralidade de estilos de vidas marcando a suacultura, vai também se caracterizar pela pluralidade de tempos.O tempo lento comunal não foi eliminado pela modernidade enem apagado pela contemporaneidade. Pensamos sobre umtempo lento que serve de resistência ao movimento aceleradoda modernidade e que também está presente no tempo hiper-acelerado imposto pela cultura do mundo das novas tecnologias.

RESUMOA cultura urbana, marcada pela aceleraçãoe pela velocidade das descobertas técnicasda modernidade, caracteriza-se tambémpelo tempo vivido de maneira lenta nasruas, nos encontros banais dos habitantesda cidade. A cultura comunitária aindaestá presente em todos os circuitosculturais das cidades. Da modernidade àpós-modernidade a lentidão marca arelação espaço-temporal.Palavras chave: cultura da cidade,comunidade, tempo e espaço.

ABSTRACTThe urban culture, marked by the accelerationand the speed of the modernity technicaldiscoverys, also can be caracterized by the timelived slowly on the streets, in the banal meetingsof the city’s citizens.The comunitary culture isstill present in all cities’ cultural circuit. Frommodernity to post-modern the slowness marksthe space-time relation.Key-words: city culture, comunity, time and space.

RESUMENLa cultura urbana, marcada por la aceleracióny por la velocidad de las hallazgos técnicas de lamodernidad, caracterizase también por el tiempovivido de manera lenta en las calles, en losencuentros banales de los habitantes de la ciudad.La cultura comunitaria aun está presente entodos los cicuitos culturales de las ciudades. Dela modernidad hasta la pos-modernidad lalentitud marca la relación espacio-temporal.Palabras claves: ciudad, comunidad, tiempo y espacio.

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Um tempo de máquinas velozes de comunicaçãoe de circulação maximizada de informações. Ummundo de corpos sem materialidade e cidadessem ruas. Estamos falando de estabilidade em umtempo de relações efêmeras marcando asinterações urbanas, em um mundo de crisesconstantes que nos levam a viver de maneirainsegura em relação a tudo na vida.

Devido à mistura de idéias de espaços, de no-vas impressões do tempo nas coisas da vida e daspessoas das mais variadas culturas circulando pelomundo, que caracterizou a modernidade, podemosrevelar a pluralidade de sentidos simbólicos circu-lantes na cultura moderna. A constituição do mun-do material da sociedade pode sugerir a pluralidadee a velocidade marcando uma possível ruptura como mundo da lentidão das comunidades.

Falamos, também, da constituição de ummundo “imaterial” e sensível na medida queafirmamos a existência de uma lentidão dotempo das comunidades que continuou presentena cultura moderna e na cultura pós-moderna,mas que está apenas sutilmente se deixandosentir pelo cidadão comum. Essa lentidão nãose deixou ver claramente, mas sempre estevepresente tanto na modernidade como aindapersiste e marca a cultura da contemporaneidade.

A cultura urbana moderna nos remete aconstatar que uma maneira homogênea de ver omundo penetrou o todo social. Este movimentogerou uma certa maneira totalitária e mesmoautoritária no modo de olhar a vida na cidade.Porém, observamos claramente, a existência deuma reação a este processo indicando a formaçãode uma sociabilidade que afirma o “localismo”de maneira intensa. É no local que estabelecemosnossas regras de convívio na cidade, no bairro,na nossa cidade criamos a vida em sociedade. Énessa sociabilidade marcada territorialmente queafirmamos o tempo da lentidão.

A cultura “desenvolvida” na cidade moderna éindiscutivelmente plural. Entretanto, era necessário

se criar um “sistema” de homogeneização capazde se fazer crer em uma fortificação dos laçossociais, em termos de nação e de Estado Moderno.Falar em mistura significava contrariar o mundode assepsia moderna com suas verdades únicas queestava sendo construído. Era necessário dar umsentido objetivo, e conseqüentemente produtivo,às atitudes e pensamentos racionais e puritanos parafortificar um mundo social que só poderia serinterpretado pela via da economia e da política.

A cultura da cidade marca o tempo que passade maneira implacável. O flâneur foi a criatura comtempo para parar e apreciar as transformaçõesde uma época. Ele estava lentamente apreciandoe registrando as transformações e inovações quede maneira rápida passavam diante de seus olhos.Ele é a figura emblemática para falar da existênciado tempo lento que marca a modernidade.Sublinha os acontecimentos, os registra demaneira detalhada e é capaz de descrever a vidana cidade através de um relato que grava apassagem do tempo da lentidão.

Walter Benjamin usa a literatura como produtoda cultura que ambienta um determinado espíritode tempo, da modernidade, para descrever acirculação das pessoas e coisas através do olhar dafigura do flâneur. Ele é um errante na cidade e o seualimento é a cultura do boca a boca e também dasobras literárias do século XIX. Paris criou o flâneure os parisienses fizeram da cidade a terra prometidapara a circulação desse errante. Ele vê a cidade demaneira dialeticamente dividida em dois pólos eessa dialética nunca resultará em síntese. Paris seabre em forma de paisagem e contraditoriamentetambém se fecha como quarto. Ele andaamplamente pela cidade, se larga pelo transito degente nos novos transportes urbanos, passeia pelasgalerias com suas vitrinas mostrando os novostecidos, aprecia as pessoas que perambulam peloscafés. Sua visão assim é panorâmica. Testemunhao nascimento de uma nova época, de produtos epessoas com um poder de circulação cada dia

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mais veloz. Essa é a paisagem. Por outro lado, dointerior de um quarto, ele vê tudo de maneirapróxima e familiar. É como se ele estivesse emum cômodo de sua casa, pode andar de olhosfechados que não esbarrará em nenhum móvel.Ele conhece cada canto do seu bairro, a praçaonde os bancos se tornam a cama de quem temsono, os pés das árvores que são como cadeirasna tranqüilidade de quem senta como se estiveem sua própria sala de estar.

O flâneur pode ser uma espécie de animal quecircula numa selva social. Segundo Benjamin aexperiência fundamental desse personagem é ofenômeno de “colportage” do espaço. Essa expe-riência é a do relato que circula, a da idéia e a daimpressão que são transportadas como um produtopelas ruas da cidade. Não podemos deixar de ver acontradição no circular nesse personagem decaracterística plural, pois ao mesmo tempo em queele circula pela cidade veloz da modernidade eletambém se prende a um bairro, se senta em umcafé e aprecia os passantes preguiçosos.

Essa figura também no leva a pensar naexistência da circulação bem circunscrita emdeterminada área. Temos como exemplo nacontemporaneidade da cidade o personagemboêmio e histórico do Madame Satã que viveulivremente no bairro da Lapa no Rio de Janeiro,também lembramos os mendigos quepertencem apenas a um único bairro, eles nãoabandonam a sua esquina. Nos anos oitentaexistia em Copacabana a figura emblemática doMister Éter que morava no posto seis. São osdesgarrados ancorados no nosso bairro.

No tempo da cidade do errante, apenas nosresta compreender quais foram as transformaçõesna relação tempo/espaço para reconhecer apluralidade de movimentos que foi se instalandolentamente na cultura. A intensidade da circulaçãomoderna é pendular, balança entre o rápido e lento.Constatamos a presença de pelo menos doismovimentos nesse momento de ouro da flânerie.

Um que se expressa pela velocidade dos novostransportes coletivos e um outro no andar pelasruas que estavam sendo pavimentadas permitindoo perambular, o flanar. O do errante constrói acidade através de relatos fragmentados que jamaisconstituirão uma unidade segura. A cidade é otempo todo reinventada pelo poder dasimbolização. O relato é sobre a cidadecaleidoscópica. O tempo que caracteriza a culturaurbana pode ser compreendido nas circulaçõesentre as diversas referências culturais, na construçãoe produção das diversas leituras de cidade. A cidadese reinventa a cada dia devido a sua pluralidade detempos. Vivemos entre a lentidão e a rapidez. Seriainocente pensar que um indivíduo já encontra ouniverso simbólico constituído de alguma formaquando nasce e que continuará quando ele morrer.A sua vida seria experimentada e orientada pordeterminações de culturas urbanas localizadas demaneira rígida. Isso não existe, pois a pluralidadede tempos e de concepções de espaços que se mes-clam o tempo todo na cidade permite ao homemse reinventar e resimbolizar o lugar constantemente.

A presença de determinados códigos que secolocam como expressão e até parecem dar umsentido seguro a uma cultura, através dos bensmateriais e imateriais, formam a expressão do valorsimbólico. Porém, eles se recentralizam constan-temente.O intercruzamento incessante do mate-rial e imaterial coloca o simbólico de maneira efer-vescente, palpitante e vibrante. O simbólico setorna mutante. O nosso modo de circular afeta eé afetado por esse simbólico. Os produtos deexpressão artística, por exemplo, podem marcardefinitivamente um local e nos levar a acreditarque o simbólico é forte e estará presente antes dequalquer possibilidade de mudança. Isso marcariao “gênio do lugar”. Assistimos a criação dapersonalidade de algumas cidades na filmografiamoderna. A cidade foi muito bem retratada pelocinema. Porém, a cidade transforma o homemconstantemente de maneira intensa.

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Para se pensar a localização, na forma que seapresenta na cultura, devemos nos entregar àsrelações contraditórias, plurais, dialéticas semsínteses de elementos plurais que constituem omaterial e o imaterial no dia a dia banal da cidade.Devemos assumir a postura do flâneur. O que sepensa e se sente sobre a cidade nunca aconteceapenas de uma única maneira. Se fosse assim seriamuito simples e mecânico. Não precisaríamos pegarum avião, um ônibus, um carro, enfim, um trans-porte qualquer, para conhecer uma cidade distante.Bastaria ver alguns filmes ou ler determinados livrossobre a vida que se leva naquele lugar. Não con-seguimos falar apenas de um único sentido dacidade. Não podemos dizer que apreendemosdeterminado valor com sentido seguro. É essefenômeno de pluralidade de sentidos que permitiua existência do circular da cultura mundializada. Acirculação de gente em busca e interessada nessetempo lento comunal foi a marca da culturamoderna e está sendo a da cultura contemporânea.

A alta tecnologia desenvolvida nos aparelhosdomésticos ganha, hoje, o mesmo valor das pe-quenas técnicas artesanais dos instrumentos queusamos no dia-a-dia. Se vamos a uma cidade dointerior de Minas Gerais, por exemplo, é para sentiro sabor de uma comida cozida lentamente numapanela de barro em fogão à lenha, mas com certezalá também estará a panela de alumínio no fogão agás e o plástico ou vidro no forno de microondas.Cada material, o carvão, o gás, o microondas, obarro, o alumínio e o vidro ou plástico garantiráum certo tempo e uma determinada técnica demanuseio. Esse quadro seria próximo ao queBanjamin desenhou como sendo o da flânerie domenu. Ele falava da pluralidade de conteúdos queconstituíam um cardápio e falamos agora para alémde conteúdo, também na materialidade do processoe também na imaterialidade da importância do“capital cultural” que a comida pode adquirir.

Existem certos elementos circulando nas cul-turas industrializadas, que até podem sofrer leituras

mundializadas porque retratam um tempo lentocompartilhado por todos do mundo todo.Benjamim chama de “petits métiers de la rue” osnegócios dos comerciantes ambulantes nas ruasde Paris do século XIX que podem, com certeza,ser reconstituídos cenograficamente em filmes quecontam a história da cidade, e mais, ainda persistemem existir mundo a fora porque marcam o tempolento que circula pelas ruas. Hoje na Cidade Luzcomo na Cidade maravilhosa ainda temos oscomerciantes instalados nas calçadas vendendo detudo um pouco. Aos berros os camelôs vendemsuas bugigangas. Eles resistem aos impostos, àsgrandes lojas de departamento modernas etambém às compras via computadores com elogioa circulação de dinheiro de plástico.

As sociabilidades das ruas sugerem a existênciade uma certa preguiça. Elas são lentas. Esseimaginário do espaço fechado, do cômodoconhecido, do bairro onde o tempo escoalentamente ao lado do espaço aberto, da circulaçãoacelerada dos veículos de transporte coletivos levaao homem a viver ao que Benjamin aponta como“songerie”. A coexistência desses dois imaginários:os do espaço aberto e do espaço fechadopossibilitam o nascimento do sonhador. Sãosonhos sem objetos definidos, pois permitem aohomem meditar, pensar de maneira liberta. Oautor fala que esse estado do sonho não é o daespera, pois esse seria o estado do contemplativoimóvel, ele descreve o sonhador em estado dedúvida. Este seria o estado do flâneur na dúvidacaracterística do estado de embriaguez do haschisch.

Um aparelho que permitiu que as referênciasculturais pudessem dialogar intrepidamente en-tre as diversas cidades foi justamente acomunicação tela a tela dos computadores no fi-nal do século XX e início do XXI. Podemos viajarsem sair da cadeira apenas ligando a televisão comtela de plasma que está ligada a um cabo que faz omundo girar no controle remoto. O distante setornou muito próximo no século XX. Isso faz

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tempo que acontece nas cidades. O telégrafoacelerou o ritmo dos negócios da comunicaçãodo dinheiro no século XIX. Porém, os meninosdas favelas cariocas ainda se comunicam comsuas pipas soltas ao vento. A imagem é lúdica,não? A diversidade de formas de comunicaçõesmarca a pluralidade de tempos.

A fecundidade das relações comunicacionaisestá provocando deslocamentos constantes e aomesmo tempo fundando espaços sociais decirculação. Nós, homens, somos nômades,estrangeiros respeitando regras de convívio.Algumas portas, de certas cidades, podem sefechar diante do estrangeiro ou pontes se erguerpara ligar comunidades. A questão se concentrana sociabilidade. Os modos de vida vão setransformando de acordo com o uso quefazemos dos espaços. O estrangeiro pode setornar um elemento de extrema importânciapara nos afirmar como grupo. Reafirmamos opequeno “círculo de aconchego” diante de umaameaça estrangeira ao nosso modo de vida.

As cidades modernas foram palcos paraencontros com desconhecidos, e diante dessecenário efervescente tínhamos que inventar novosmodos de nos relacionar com os indivíduos quetambém estavam circulando nos novos espaçospúblicos. Seres civilizados inventavam maneirasde se relacionar com o estranho da cidade paradividir o espaço da circulação pública. Hoje, osdeslocamentos realizados em espaços esvaziadosde sentido nos impõem novos modos deinteração. Por um lado, podemos ver na cidade acirculação limitada e contida dos que ficamtrancados em prédios cercados de grades, comcâmeras em seus elevadores. Esses homens estãovivendo sociabilidades específicas e caracterizadaspelas interações nas telas de seus computadores.Por outro lado, também constatamos o indivíduose entregar às sensações diversas das novascomunidades efêmeras, na circulação aberta efragmentada das ruas da cidade contemporânea.

Surgem vários modos de circulação na cidadeque nos colocam novas formas de sociabilidades.

A questão da sociabilidade foi de grandeimportância para se pensar a cidade moderna.Simmel aprofunda esta questão em um texto quefoi publicado pela primeira vez em 1903, chamado“A metrópole e a vida mental”. Para o autor o espaçomarca a maneira do homem se relacionar com omundo e com o outro. A sociabilidade era vista demaneira conturbada devido à metrópole ser porexcelência o lugar do dinheiro e da conseqüentedivisão do trabalho, fator determinante das relaçõessociais e dos deslocamentos. O homem em ummundo de estímulos nervosos extremos criariamecanismos de resistência a relações com o outro,devido à convivência muito próxima a que eraobrigado na metrópole. Segundo Simmel, diantedessa situação tensa, criamos uma “atitude dereserva” como instrumento para nos afastarmosmentalmente daqueles que somos obrigados aconviver de maneira intensamente próxima.

“ Em parte esse fato psicológico, em parte odireito de desconfiar que os homens têm em face doselementos superficiais da vida metropolitana, tornanecessária a nossa reserva, freqüentemente nemsequer conhecemos de vista aqueles que foram nossosvizinhos durante anos [...] Na verdade, se é quenão estou enganado, o aspecto interior dessa reservaexterior é não apenas a indiferença, mas, maisfreqüentemente do que nos damos conta, é uma leveaversão, uma estranheza e repulsão mútuas, queredundarão em ódio e luta no momento de umcontato mais próximo, ainda que este tenha sidoprovocado”(Simmel, 1979, p.17).

O autor, descrevendo as formações sociais,apresenta a história da invenção da idéia desegurança do pequeno grupo, do “círculo deaconchego”, da comunidade de afinidades. Estahistória é extremamente útil para sustentarmosuma reflexão aprofundada sobre as associaçõesfragmentadas nas cidades de hoje. Assistimos,de maneira explícita, no cotidiano de nossas

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vidas, grupos se formando, crescendo, morrendo,se confrontando e se odiando. As vidas sociais,afinal, são compostas de atrações e repulsas. Apolifonia da cidade se faz presente através dessapluralidade estruturante dos encontros edesencontros. A característica violenta de certosgrupos pode se justificar na tentativa de fortificarcada vez mais a sua congregação, a sua coesão. Oódio, de certa forma, serve para “conformar”-manter os indivíduos unidos contra os que sãoestranhamente ameaçadores. Na moral gregáriaé marcante a existência da obrigação que cadaum tem de defender a pequena comunidade.

Seguindo a atualidade do pensamento deSimmel constatamos que na sociedadecontemporânea permanece a idéia moderna daexistência de “um círculo relativamente pequenofirmemente fechado contra círculos vizinhos, estranhosou sob qualquer forma antagônico. Entretanto, essecírculo é cerradamente coerente e só permite a seusmembros individuais um campo estreito para odesenvolvimento de qualidades próprias e movimentoslivres, responsáveis. Grupos políticos e de parentescos,associações partidárias e religiosas começam dessaforma.” (Simmel, p.18).

O que nos interessa é constatar o sentimentoque movimenta o homem a inventar os destinosda sua cidade. Assim, a pergunta chave que seimpõe hoje é: como compartilhar a vida pública?Sabemos que a vida urbana moderna foi tão plu-ral, com culturas diversas circulando velozmente,que era só com muita paciência que poderíamosconviver com os nossos vizinhos, com a diferença.A cidade tão cuidada, estudada e planejada pelamodernidade tinha o espaço urbano como civil.O espaço era para o exercício da civilidade.

A sociabilidade em curso de elaboração podeser delineada, primeiramente, se estivermos atentose generosamente receptíveis à maneira como ohomem contemporâneo pensa e vive a relação dereciprocidade. A questão do outro, do homem nasua relação com o mundo pode ser refletida com a

ajuda de Marc Augé quando nos faz “uma introduçãoa uma antropologia da supermodernidade”. O etnólogonos interessa no procedimento que articula ascrenças estudadas com o mundo atual. Arepresentação do indivíduo se transforma narepresentação do “vínculo social”(Augé, 1994).

Sobre as mudanças celeradas que acontecemno mundo contemporâneo Augé nos apresentatrês áreas onde acontecem importantes trans-formações. São elas: tempo, espaço e a figurado indivíduo.

Em primeiro lugar, em relação à mudança daidéia de tempo, vemos que o conjunto de discursosexplicativos sobre o futuro seguro da humanidadese eclipsou. A dúvida se inscreve nos destinos,historicamente nos múltiplos acontecimentos, nãoprevistos pelas ciências humanas. Para Augé oproblema se coloca na “superabundância factual”se levarmos em conta a nossa superabundância deinformação e as “interdependências inéditas do quealguns chamam hoje de sistema-mundo”. Essadensidade pode fazer com que os significados dascoisas desapareçam. O excesso assim se mostracomo emblema da “supermodernidade”. O tempopode ser problematizado empiricamente quandovemos que o prolongamento da vida nos obriga aviver concomitantemente com quatro gerações. Oretrato da família está mudando, se ampliando.

A segunda área de transformação a serapreciada pelo autor é a do espaço. Segunda figurado excesso. Assistimos o encolhimento do planetacom as performances dos cosmonautas, com aronda dos nossos satélites e na terra tambémexperimentamos um certo encolhimento. Osmeios de transporte rápidos aproximam oshomens velozmente para qualquer lugar e, comofalamos anteriormente, o mundo chega até àsconfortáveis poltronas sem nenhum acidente depercurso. As misturas caleidoscópicas do mundoestão recheando a vida. Mistura de informação,de publicidade e de ficção. A superabundânciaespacial oferece os espaços de reconhecimento.

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“É próprio dos universos simbólicos constituir para oshomens que os receberam por herança mais um meio dereconhecimento do que de conhecimento: universo fechado,onde tudo se constitui em signo, conjuntos de códigos dosquais alguns têm a chave e o uso, mas cuja a existênciatodos admitem, totalidades parcialmente fictícias, porémefetivas, cosmologias...” (Augé, p.35).

Todos os universos “imaginais” contem-porâneos oferecem essa “cosmologia”. Taiscosmologias são compostas e recompostas nocotidiano fragmentado das tribos urbanas quecirculam nas cidades. Os homens comuns, quechamaremos de “adoráveis vagabundos”, nosapresentam um mundo reconfigurado pelodeambular solto, efervescente e barulhento nasruas. Para Marc Augé mudanças concretas sematerializam nas cidades configuradas nasconcentrações urbanas, transferência de populaçãoe multiplicação do que nomeia de “não-lugares”.O autor observa o caráter contraditório no “glam-our” dos particularismos ao mesmo tempo em quevivemos o esvaziamos dos sentidos de lugares. Nomomento em que Marc Augé reconhece que“Temos que reaprender a pensar o espaço”, ficamos maisà vontade para seguir os passos do etnólogo nainvestigação do mundo contemporâneo.

A terceira figura do excesso se apresenta naquestão do indivíduo. O autor declara que nuncaas histórias individuais foram tão referidas pelocoletivo e também que nunca os pontos deidentificação coletiva foram tão flutuantes. Nessecampo poderemos apreciar os sistemas derepresentação nos quais são informadas ascategorias da identidade e da alteridade. O autorrecorre a Michel de Certeau para falar das “manhasdas artes de fazer”, da atitude que permite aoindivíduo oprimido da modernidade inventar seucenário e seus itinerários particulares. Nessemomento aparecem os “indivíduos médios”distantes dos sujeitos reflexivos. O homem“saudável de espírito” consente em existir nummundo definido pela relação com o outro. Assim

se coloca o problema de como trazer asubjetividade, no “estatuto renovado” do indivíduo,emergir nas interpretações do mundo. Teremosque redefinir a idéia de representatividade. Amaneira como nós, indivíduos, podemos pensar oespaço superabundante de informações e de no-vas histórias se coloca como primordial naconstituição das imagens formadoras da idéia deespaço compartilhado. Augé recomenda quedeveríamos prestar atenção às singularidadesdiversas que compõem o mundo.

Pensar nos dias de hoje em um lugar de me-mória, em um lugar inventado pelo homem quedeambula sem saber ao certo sobre o destino, podeparecer em um primeiro momento pura fantasia.Porém para o etnólogo tal postura não passa deuma “semifantasia”. Em primeiro lugar porque essafantasia sempre funcionou bem resguardando olugar de agressões externas e internas. Semifantasiatambém porque ninguém duvida da realidade dolugar e também não ignora a realidade de outrosgrupos. É necessário negociar com o outro numa“tentativa de totalidade” do singular plural. O frag-mento remeteria a uma possível totalidade e essapossibilidade nos re-enviaria à pluralidade de for-mas. O mundo se re-encanta através das fantasias.

BibliografiaAUGÉ, Marc. Não-lugares: Introdução a uma antropologia

da supermodernidade. Campinas, São Paulo: Papirus,1994 (Coleção Travessia do Século).

BENJAMIN, Walter. Paris, capitale du XIXe. Siècle. Lelivre des Passages. Paris: Lês Éditions du Cerf. 1993.

SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: O fenômenourbano.(Otávio Velho -organização e introdução). Rio deJaneiro: Zahar Editores, 1979.

* João Maia é é Professor adjunto da FCS-UERJ,mestre em Teoria da Comunicação

e doutor em Sociologia. Desenvolvepesquisa sobre a questão da Comunidade

na cidade do Rio de Janeiro.

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Na moda: Simmel,Na moda: Simmel,Na moda: Simmel,Na moda: Simmel,Na moda: Simmel,culturculturculturculturcultura e consumoa e consumoa e consumoa e consumoa e consumo

Ricardo Freitas*

A moda pode ser um bom ponto de partida paraa análise. De início, porque ela está onipresente. Nãohá nenhum domínio que lhe escape: do mais frívoloàquele tido como o mais sério, encontra-se a necessidadede se identificar. Moda vestimentária, é claro, mastambém modas culinárias, lingüísticas, musicais,esportivas. (Maffesoli, 1996, p. 341)

Nas ciências sociais, a moda é concebida como umprocesso de transformação incessante, e de tendência cíclica,das preferências dos membros de uma dada sociedade. Estanoção não se limita apenas à indumentária ainda que seja omais recorrente exemplo trabalhado. Afinal de contas, nahistória da humanidade, o corpo foi recoberto de maneirassimultaneamente singulares e tribais de acordo com o tempoe o espaço significando, quase sempre, os sentimentos daépoca. Eis um dos principais motivos para a moda ser umadas referências obrigatórias no início dos estudos dasociologia, permitindo, assim, inúmeras possibilidades deanálise dos grupos sociais e das influências do meio sobreo indivíduo. A imitação é um dos pontos centrais dessadiscussão da qual partilharam sociólogos do final do séculoXIX como Tarde, Spencer e Simmel. Neste artigo,tomaremos especialmente em conta o pensamento deGeorg Simmel por o considerarmos extremamente atual epertinente à discussão dos hábitos contemporâneos. Suaobra ilustra bem que a moda é, muitas vezes, indiferente aqualquer consideração utilitária. É claro que as roupas edemais objetos devem ser adaptados às necessidades do

RESUMOA moda é uma referência obrigatória nosestudos da sociologia, pois abre diversaspossibilidades de análise dos grupos sociaise das influências do meio sobre o indivíduo.Muitos sociólogos do final do século XIX,como Tarde, Spencer e Simmel, compar-tilham deste pensamento. Este artigo abordaa questão, a partir do pensamento de GeorgSimmel, pela atualidade de suas idéias. Suaobra ilustra bem que a moda é, muitas vezes,indiferente a considerações utilitárias.Palavras-chave: Moda, indivíduo, imitação,consumo.

ABSTRACTFashion is an obligatory reference in the sociologicalstudies, because it opens many possibilities to analyzesocial groups and the influence of the mean over theindividual. Many sociologists from the late nineteenthcentury , as Tarde, Spencer and Simmel, share thisline of though. This article broachs the matter, fromGeorg Simmel’s studies, for the contemporanety ofhis ideas. His work showns well that fashion isoften indiferrent to utilitaries considerations.Key-words: fashion, individual, imitation, consumption.

RESUMENLa moda es una referencia obligatoria en los estudiosde la sociología, pues abre muchas posibilidades deanálisis de los grupos sociales y de las influencias delmedio sobre el individuo. Muchos sociólogos del finaldel siglo XIX, como Tarde, Spencer y Simmel,comparten esto pensamiento. Este artículo abordala cuestión, a partir del pensamiento de GeorgSimmel, por la actualidad de sus ideas. Su obrailustra bien que la moda es, muchas veces, indiferentea las consideraciones utilitarias.Palabras claves: moda, individuo, imitación y consumo.

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cidadão, mas nem sempre são essas utilidadesque ditam, por exemplo, o comprimento dassaias ou as cores das calças a serem usadas emdeterminada estação.

Em 1895, no seu mais importante ensaio sobrea moda, Simmel já a analisava como umacombinação dualista entre as características deimitação-universalização e a de distinção-particu-larização. Segundo o sociólogo, esse dualismo meta-físico universalização/particularização se materializafacilmente na moda, já que ela se manifesta gera-lmente como uma forma de síntese prática entreas tendências psicológicas à imitação e à distinção.Para Simmel, a moda constrói uma formação sempausa na qual o homem procura esconder suasindividualidades mais importantes atrás das normasestéticas em vigor: “... é essencial para a moda que elapenteie com o mesmo pente todas as individualidades; mas ofará sempre de tal modo que ela nunca se apossa de todo dohomem, permanecendo de fato infalivelmente algo de exteriora ele.” (Simmel, 1988, p.111).

Nessa perspectiva, o homem junta o interessepela igualdade ao interesse pela singularidade. Avariabilidade e a unicidade fundem a essência damoda enquanto refúgio e, ao mesmo tempo,enquanto estabilidade - uma estabilidade nuncacerta que pode residir na própria mudança. Nadaimpede que a moda seja o impulso ou mesmo amola propulsora de um movimento revolucionário,por exemplo. Ela acomoda necessidades de apoiocomunitário levando o homem a um caminhoseguido pelos outros e admite, em uma mesmaação, a tendência à igualização social e o impulso àdistinção individual, ou seja, à diferença.

Considerando que a moda é um produto dadivisão de classes, Simmel crê que ela se apoderafreqüentemente das camadas contíguas. Na suavisão, quando as classes inferiores começam aimitar as classes superiores e a se apropriar dasua moda, estas últimas passam a declinardaquelas preferências para adotarem outras no-vas. Porém, ao mesmo tempo, na modernidade,

a impaciência e o vai-e-vem fazem mudar amoda muito rapidamente entre as camadassociais, “arriscando a abolir seu próprio sentidopor uma difusão geral” (1988, p.101). Simmeltambém atenta a uma espécie de “não-modernidade” que acontece nas opções deroupas, adornos e objetos, um certo sentimentode individualização através da negação doexemplo social que se oporia à moda:

...O indivíduo deliberadamente não-moderno assume exatamente o mesmoconteúdo daquele que segue a moda,exceto que ele a molda dentro de umaoutra categoria, a da negação, e não, comoeste último a da intensificação. Podemesmo tornar-se moda em meios inteirosno seio de uma vasta sociedade adotar umapostura não-moderna - há aí uma dascomplicações socio-psicológicas das maiscuriosas, na qual o instinto que impele àdistinção individual, primeiramente, secontenta a inverter a imitação social esegundamente, extrai sua força por sua vezdo apoio que toma de um círculo maisestreito com características semelhantes...(Simmel, 1988, p. 106)

Na contemporaneidade, continua havendo orisco da rapidez da moda abolir seu própriosentido devido a sua difusão generalizada etambém parece haver uma certa “não-modernidade” no cotidiano, especialmente, o dascidades. Mas, não se trata de uma representaçãode um mundo do não-valor ou da não-moda; aocontrário, como Simmel mostra, inverter aimitação social não elimina a moda - isto pode setornar moda. A imitação, nesses casos, completaalgumas carências do indivíduo, uma vez que omundo interior do homem está submisso amodas, ele marca sua adesão a um meio ou a umgrupo e ao mesmo tempo valoriza a acentuaçãodo sentimento de força individual. Por outro lado,podemos acrescentar a essa discussão, dada a

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experiência da contemporaneidade, a questãoda possibilidade de banalização da moda, demaneira que o indivíduo deixa de vivê-laenquanto processo pessoal, subjetivado, parasomente estar vestido, protegido, e podertransitar na cidade sem constrangimentos. Dequalquer forma, mesmo essa banalização con-tinua tendo um toque pessoal devido às infinitaspossibilidades de combinação de preferênciasde cada cidadão enquanto consumidor.

Moda, polÌtica e consumo...Quer seja a televisão, o videotexto, a

micro-informática e outra telecópia, todosencurtam o tempo, aniquilam o futuro esão promotores de um instante eterno. Oque dizer, senão que eles espacializam atodo custo? A pesquisa do outro não é maisadiada para um futuro longínquo, a pesquisada relação perfeita com os outros não étambém para amanhã, mas, ao contrário, épotencialmente vivida hoje e, sobretudo,aqui. De diversos modos, todos os objetossão contaminados por essa lógicacomunicacional. (Maffesoli, 1996, p. 194)

No início do século XXI, as dinâmicas sociaisse entrecruzam tão exponencialmente quedevemos ter cuidado ao generalizar falando deuma mistura, ou de uma soma, de todas aspossibilidades modais que nascem e morremdiariamente. O cotidiano das cidades é estressadoe suas modas também o são. A pós-modernidadese agita na evolução de um imaginário no qualos objetos se exibem em hiper-espetáculos,festivais cotidianos de artifícios e nos diversasesferas do espaço privado. Vive-se um cotidianoinvadido pelos códigos, emblemas e mitos dacomunicação de massa que contribuem aconstruir os argumentos de cada tribo, sejaenquanto negação ou afirmação de valorestransnacionais seja pelo simples prazer de estarjunto. Assim a proposição de classes contíguas

de Simmel continua fazendo sentido, mas elashoje são menos nítidas. A confusãoinformacional da contemporaneidade dificultaa noção de classes já que o consumo dependemais das escolhas de cada um do que do nívelcultural ou financeiro de um indivíduo. Asopções são tantas que mesmo alguém rico temde escolher entre o universo infindável oferecidopelo mundo das mercadorias.

O que se vê na pós-modernidade, é umfluido de “neo-ideologias”, de aspirações,mesmo de tradições, cujo prazer principal,segundo Michel Maffesoli, é o de estar-junto.Um fluido que substitui as noções do homempolítico e dos partidos políticos; assim como amoda, a política torna-se transnacional e tribale as pessoas tentam compreender a implosãode sua forma. Segundo Maffesoli, a política dáorigem a uma outra configuração; a dacontemplação. Uma força estetizante que serepresenta também através de elementos damoda (Maffesoli, 1992, p.128). A políticapressupõe a diversidade de opiniões; ela implicadiscussão. Mas o exercício do poder políticose tornou na pós-modernidade uma noçãoconfusa se tentarmos interpretá-la nascategorias formais da esfera pública. Asrecentes guerras, especialmente o ataque dosEUA ao Iraque, mostram a estética midiáticadando o tom de como o conflito em questãodeve ser visualmente compreendido no mundo.Uma estética que pode servir de linguagemcomum entre vários personagens diferentes. Éeste ponto que torna urgente a consolidaçãode estudos sérios sobre elementos da modacontemporânea. Atmosferas com tantosemblemas transnacionais que parecem ter umalinguagem comum, apesar da falência dasestratégias políticas desenvolvidas em nome dosdireitos do cidadão. Para muitos pesquisadores,esses direitos no século XXI só são alcançadoscom a prática do consumo. Portanto, o país

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que ganha é aquele que domina a mídia e oconsumo no mundo. Aquele que possibilita apermanente valorização do capital da moda.

Cultura de massa e moda...o objeto, em suas diversas modulações,

doméstica, pública, arquitetural, lazer etc,torna-se o totem em torno do qual seorganiza a vida social. Do mobiliáriourbano (“sanisette”, painel de sinalização)à simples engenhoca, encontra-se aconjunção do que a modernidade dedicara-se a desunir: o funcional e o belo, o útil e oagradável. É nesse sentido que o objeto éum emblema estético: ele agrega a partirde uma função. (Maffesoli, 1996, p. 287)

A moda, vista como imaginário simbólico docotidiano, é um círculo sobre o qual é impossívelsaber quem desencadeou o processo - quem acriou? Mais que nunca, esta questão não tem muitosentido já que, na pós-modernidade, pensar amoda é fundamentalmente pensar os momentosde trocas simbólicas de uma sociedade. Énecessário considerar a linguagem mítica e aomesmo tempo ordinária da comunicação social.É preciso também levar em conta que não sepode mais idealizar uma separação radical entre“cultura de elite” e “cultura de massa” como bemnotam diversos pensadores contemporâneos, dosquais destacamos o pensamento de FredericJameson quando estuda as relações entre o cin-ema e a pós-modernidade. Para o sociólogoamericano, um dos mais importantes críticosmarxistas de cultura dos EUA, é preciso repensara oposição “cultura de elite/cultura de massa”, jáque tudo é cultura e a cultura é essencialmenteum conjunto de redes de imagens. Tal abordagempede que vejamos “culturas de massa” e “de elite”como um fenômeno dialético, sobretudo sepensarmos a pós-modernidade como a maiscompleta tradução do capitalismo já vista, dada ailusão de se viver qualquer situação via consumo.

Nesse contexto, Jameson defende que tudo émediado pela cultura de massa, inclusive asrepresentações políticas e ideológicas. Assim, asobras de cultura de massa devem oferecer umasemente genuína de conteúdo como recompensaao público sempre prestes a ser tão manipulado(Jameson, 1992, p. 9/14). É dessa semente que acultura de massa tem que se nutrir se pretenderobter algum impacto social significativo. Essetambém deve ser o ponto fundamental àquelesque criam moda, designers ou comerciantes.

Como já se comentou, a universalização, ou atransnacionalização, da moda não quer dizer que ohomem esteja desinteressado em desenvolver seusemblemas próprios; a universalização discutida aquié a de uma nova matéria de base (o jeans, porexemplo) que passa por pequenas alterações paramarcar uma diferença temporal ou tribal, mas quenão deixa de ser o elemento determinante daindumentária em várias partes do mundo. Umelemento que pode se tornar uma designaçãoarbitrária de um gênero fora de gênero comoacontece com as camisetas, utilizadas e conhecidasde diferentes maneiras no mundo inteiro.

Os jeans e as camisetas são emblemas de umanoção de liberdade que se confirma como umadas referências dentro da estética da moda. É oque Baudrillard (1990, p.28) sente como“transexual” e que Yonnet chama de “unise-xualização”. Um gênero de moda no qual adeterminação sexual não é mais importante; umamistura de valores com uma pequena predo-minância de elementos masculinos. Paul Yonnet(1985, p. 344) fala da revolução de Paul Poiret e deCoco Chanel, ícones da moda do século XX. Oprimeiro ainda com muito entraves ostensivos dofísico da mulher, típicos do século XIX, maslibertando-a dos espartilhos; Chanel, por sua vez,atacava com cabelos curtos, camisetas como blusas- uma moda que ultrapassa o cotidiano em algumasdécadas. Com Chanel, a camiseta já apresentavaum notável elemento da unisexualização: o esporte.

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Esta unisexualização dos modos vesti-mentários passa muito pelo ideal de vida e desaúde preconizado pelos esportes em geral.Algumas décadas após as primeiras audácias deCoco Chanel, uma estética esportiva começoua dominar o visual da publicidade vendendo umaabordagem que não deveria necessariamentepreocupar-se com a determinação sexual dasvestimentas, mas que deveria preocupar-se comnovas noções de praticidade; a imagem dealguém feliz e gozando de boa saúde valorizadapela publicidade de massa do pós-guerra é muitoassociada com a figura do desportista.

Jovem e desportista. Pode parecer não havermuito espaço para quem não entre nestascaracterísticas. São só as aparências. A modacontemporânea valoriza estes dois índices deexterioridade, mas sobretudo em nível de simulacro.O importante não é a idade ou o peso, o importanteé estar à vontade com seus elementos naturais ouadquiridos - o jovem e o desportista são doisemblemas de uma sociedade que quer sonhar coma liberdade do corpo, mesmo que para isso, o sili-cone substitua a academia de ginástica.

A preocupação de pensar e estruturar asvestimentas de acordo com a idade e tamanhoestá relegada a segundo plano em função de umanova maneira de pensar as relações - a “pessoa”no lugar do cidadão - a estética no lugar da política.O jeans talvez não seja a vestimenta maisconfortável, mas ele é mundialmente um emblemade uma sociedade que tem dificuldades emacreditar na via política; ao lado da unisexualização,a moda contemporânea denuncia também umcerto sentimento de despolitização. Talvez estejamfaltando, a designers e estilistas, novas sementesgenuínas de conteúdo.

Outras consideraÁıesAfirma-se que a cidadania se constitui

no mercado e, por isto, os shopping cen-ters devem ser vistos como os monu-

mentos de um novo civismo: ágora, tem-plo e mercado como nos foros da velhaItália romana. Nos foros havia oradorese audiência, políticos e plebeus a seremmanobrados; também nos shoppings oscidadãos desempenham papéis dife-rentes: uns compram, outros simples-mente olham e admiram. Nos shoppingsnão se poderá descobrir, como nasgalerias do século XIX, uma arqueologiado capitalismo, senão sua realização maisplena. (Sarlo, 1997, p. 18)

Vagando pelos “malls” do mundo, ambientesda moda e do consumo, pode-se ver personagensque utilizam os emblemas “macro” da trans-nacionalidade, mas que têm necessidade de pe-quenos pormenores para singularizar sua existênciaou suas tribos. A pós-modernidade vive com a trocade identidades, máscaras e mitos. Tudo é muitoefêmero, sobretudo a moda. E é exatamente porcausa deste caráter provisório da moda que ela seconstitui e se insere constantemente em um pro-cesso de renovação de si mesma.

Para ler estes códigos seria difícil optar pelocaminho de uma semiologia estruturalista comotambém estar totalmente apegado a uma buscasobre as falsificações do circuito social. Nossa pro-posta, neste pequeno artigo, é que nos orientemosmais no sentido de uma poética do signo efêmerose quisermos ver progredir novas noções sobre asfeições e mitos da sociedade contemporânea.Devemos pensar simultaneamente na totalidade eno fragmento, no transnacional e no tribal, naunidade e na unicidade. E na possibilidade de dividiros cidadãos em somente dois grupos: os quepodem e os que não podem consumir. Miseráveisde um lado e consumidores ricos ou pobres,honestos ou bandidos, do outro. Se tiver que existiralgum projeto pára além da pós-modernidade, eledeveria ser o de transformar os dois grupos emum só: os que podem consumir dignamente. Eque cada cidadão possa fazer sua moda.

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* Ricardo Ferreira Freitas é doutorem sociologia pela Université Paris V/

Sorbonne e professor adjunto daFaculdade de Comunicação da UERJ.

Atualmente é o Diretor de Comunicaçãoda UERJ. Autor de “Centres

commerciaux : îles urbaines de lapostmodernité”, publicado pela Editora

L’Harmattan, Paris, em 1996.

Bibliografia†BAUDRILLARD, Jean. La transparence du

mal. Essai sur les phénomènes extrêmes.Paris, Galilée, 1990.

JAMESON, Signatures of the visible,Routledge, Londres, 1992

MAFFESOLI, Michel. La transfiguration dupolitique – la tribalisation du monde. Paris,Grasset, 1992.

______. No fundo das aparências. Petrópolis,Ed. Vozes, 1996.

SARLO, Beatriz. Cenas da vida pós-moderna.Intelectuais, arte e vídeo-cultura na Argen-tina. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 1997.

SIMMEL, Geeorg. La tragédie de la cultureet autres essais, Petite BibliothèqueRivages, Paris, 1988.

YONNET, Paul. Jeux, modes et masses,1945-1985. Paris, Gallimard.

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InterInterInterInterInteração eação eação eação eação ecomunicação nacomunicação nacomunicação nacomunicação nacomunicação na

escola sociológicaescola sociológicaescola sociológicaescola sociológicaescola sociológicaalemãalemãalemãalemãalemã

Euler David de Siqueira*

O conceito de interação social, questão básica da sociologiaalemã – que tem entre seus fundadores Ferdinand Tönnies,Georg Simmel e Leopold Von Wiese –, que se constitui numprincípio fundador da sociedade, é uma noção decomunicação. A sociologia francesa – positivista e objetivista– toma como postulado principal o descentramento do sujeitoe de sua subjetividade em nome de coletividades hipostasiadas,fontes de toda explicação dos fenômenos sociais. A sociologiaalemã se constituirá em bases diametralmente opostas. Emvez de tratar os fenômenos sociais como coisas externas àsconsciências dos sujeitos, a vertente alemã adota opressuposto ontológico de que o indivíduo precede àsociedade e que os significados que os sujeitos sociaisconstroem internamente não são de um estatuto inferioraos localizados pretensamente fora do sujeito. Colocando-secomo antípoda da escola sociológica francesa, a sociologiaalemã defende que as ciências sociais possuem um estatutoontológico, metodológico e epistemológico distinto dasciências da natureza. Herdeiro do pensamento kantiano,Simmel, principalmente, terá grande influência sobre MaxWeber e Leopold Von Wiese, para não falar dos sociólogosda Escola de Chicago, como Robert Park e Herbert Blumer.À sociologia francesa reservam-se as chamadas teoriasorganicistas, enquanto a alemã adota as teorias individualistas.

O objetivo central deste trabalho é o de mostrar comouma determinada concepção de sociedade, de uma vertentedo conhecimento sociológico – notadamente a sociologiaalemã, desenvolvida na segunda metade do século XIX einício do XX – adota como pressuposto básico a interação

RESUMONo século XIX, a constituição dasociologia como ciência autônoma, commétodo e objeto próprios de investigação,destacou o pensamento sociológicoalemão no qual interação, relação ou açãosocial ganham destaque como fenômenosde comunicação. Abordar aspectoscentrais dessa sociologia é uma forma dese pensar a comunicação em sua dimensãointeracional e constitutiva da sociedadesem resvalar para teorias que minimizema dimensão da subjetividade.Palavras-chave: Interação, comunicação,sociedade.

ABSTRACTIn the 19th century, the constitution of sociologyas a science, with own method and object ofstudy, revealed the german sociological school inwhich one interaction, relation or social actionappear as a communication phenomena.Studying central aspects of this sociology is away to think communication in the interactionaland constitutive dimension of society withoutminimizing the dimension of subjectivity.Keywords: Interaction, communication, society.

RESUMENEn el siglo XIX, la constitución de la sociologíacomo una ciencia autónoma, con método y objetopropios de investigación, destacó el pensamientosociológico alemán en lo cual interacción, relación oacción social ganan destaque como fenómenos decomunicación. Estudiar aspectos centrales de esasociología es pensar la comunicación en su dimensióninteraccional y constitutiva de la sociedad sinminimizar la dimensión de la subjetividad.Palabras clave: Interacción, comunicación, sociedad.

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social. Entende-se o conceito de interaçãosocial como fenômeno social amplo, tendo emseu âmago a noção de comunicação naprodução dos significados sociais e na própriaconstituição da sociedade. A sociedade é,portanto, “apenas aparentemente uma somaestética de instituições sociais; na realidade, éela diariamente estimulada e criadoramenterenovada por atos individuais de naturezacomunicativa, acarretando a participação doshomens nela” (Sapir, 1976, p.161).

Também é objetivo deste texto especificar osmomentos formadores da sociologia alemã.Entender a construção da realidade social comoprocesso interacional e entendê-la comofenômeno comunicacional – o que significa poderlançar luzes sobre distintos fenômenos sociais quede outra forma assumem uma conformação maisdeterminista da realidade social.

Importa frisar neste texto a escolha específicade uma vertente da sociologia que se caracterizapor uma concepção de sociedade que se faz apartir das mínimas relações sociais e, ainda assim,de ações recíprocas e mútuas entre os indivíduos.O conceito de sociedade elaborado pela vertentesociológica alemã não se constitui nem em umaregra ou norma que funda a sociedade, nem emuma relação de necessidade com a natureza, capazde estabelecer relações sociais por si só. Sociedade,para essa vertente sociológica, é construída porteias de relações sociais direcionadas umas àsoutras, portadoras de sentidos atribuídos a elas.

A natureza da sociedade e o objetoda sociologia alem„

Entre o final do século XIX e o começo doXX, Ferdinand Tönnies, George Simmel eLeopold Von Wiese, entre outros, preocupavam-se particularmente com a delimitação da naturezada sociedade e também com o objeto danascente sociologia. A dicotomia entre ciênciassociais e ciências da natureza seria uma herança

do pensamento kantiano. Na França, Durkheimtrilhara o caminho oposto deixado por Comte,ao mesmo tempo em que consolidava aperspectiva positivista da ciência social modeladapelas ciências da natureza.

É certo que as concepções de Tönnies,Simmel e Von Wiese convergiram em diversospontos, sendo que o principal deles informa quea sociedade é construída através das mínimasrelações entre os homens, denominadasinterações, relações ou ainda ações mútuas erecíprocas. Em outras palavras, a comunicaçãoé o processo central da constituição da vidasocial. Evidentemente, não se trata de umsimples fazer sociedade por si só como se ossujeitos fossem totalmente autônomos. Asinterações constitutivas e comunicativas dasociedade criam determinadas ordensmacrossociais que configuram-se, cristalizam-see são sustentadas por novas interações. Aliberdade dos homens não é absoluta tal comoo corolário kantiano do sujeito moral fazia crer.Os homens estão submetidos e são dominadospor ordens sociais tais como o Estado, a religião,a economia. Mas essas ordens não possuem umaexistência independente dos sujeitos comocoisas. Essas ordens podem ser mudadas etransformadas por esses mesmos homens queas suportam ainda que não esteja ao seu alcancealterá-las segundo seus desejos e vontades. Amudança social, para esses autores, estavarelacionada às interações feitas entre os homense não a uma mudança estrutural ou sistêmicaque prescinda do sujeito totalmente. Aocontrário da sociologia francesa, para quem oshomens por si sós não são suficiente capazes deconhecer os fatos sociais de forma consciente etransparente, a sociologia alemã entende que nãohá realidade social objetiva, exterior às mentesdos homens, mas significados construídos ecompartilhados de forma intersubjetiva pelosmesmos. Assim é que, para Max Weber, a ação

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social é, por excelência, o objeto da sociologiaao contrário da noção de fato social “coisificado”de Durkheim. Para a sociologia alemã, a realidadesocial não independe dos indivíduos, ela se faz apartir deles. Categoria de análise chave nasociologia alemã, o indivíduo é a condição apriori do processo interacional. Para Simmel, porexemplo, o fato de que o indivíduo “em certosaspectos não seja elemento da sociedadeconstitui a condição positiva para que o seja emoutros aspectos, e a índole de sua ‘sociabilidade’está determinada, ao menos em parte, pela índolede sua ‘insociabilidade’”. (Simmel, 1973, p.73)

Juntos, Tönnies, Simmel e Von Wieseprocuraram delimitar ou definir a idéia ou aconcepção do que seja sociedade. A forma deconceber conceitualmente a sociedade, pelavertente sociológica alemã, não constata nempercebe a representação conceitual como umahomologia da realidade empírica. A capacidadede entendimento do homem é limitada frente auma realidade infinita. As formas de interaçãosociais são conceitos que não podem serencontrados na realidade empírica em seu estadopuro. São formas abstratas que não se confundemcom o concreto sensível porque são, acima detudo, representações típico-ideais de uma realidademaior e mais complexa. Partindo da distinçãoelaborada por Kant entre a realidade em si mesma(o númeno) e sua representação (o fenômeno),funda-se uma sociologia que concebe essasrepresentações como apreensões que nãoconseguem esgotar o objeto em si mesmo. Maisimportante do que explicar os fenômenos sociaisapontando suas causas, apelando a umaregularidade pretensamente existente no mundoda natureza, na sociologia alemã busca-secompreender os sentidos da ação dos sujeitos.Nas obras de Simmel, seus exemplos não sãoconceitos miméticos da realidade, mas exemplosque podem se manifestar sob diferentes formas,assim como as mesmas formas podem ocorrer

sob os mais diferentes conteúdos concretos darealidade empírica. O recurso utilizado porSimmel entre forma e conteúdo é melhorentendido como uma metáfora. Na realidadeempírica, forma e conteúdo se acham inseparáveis,não havendo nenhuma preponderância de umsobre o outro. São dois lados de uma mesmamoeda. Ambos os elementos são sintéticos,formam uma síntese unitária. Recorrendo àdistinção entre forma e conteúdo, Simmel temdiante de si a oportunidade de ter um objetoabstraído de toda vida concreta ou de seusconteúdos particulares – que, em si mesmos, nãochegam a ser sociais, pois não se dirigem às açõesde outros sujeitos – não caracterizando o processointeracional ou comunicacional. Nesse sentido,uma frase não dita, um aperto de mão nãorealizado, um olhar que não foi lançado, umsegredo que não foi contato, alguém que não foixingado, não comunicam, não interagem, nãoformam sínteses, permanecendo na condiçãopotencial de se tornarem sociedade.

Assim é que a sociedade, na vertente socialalemã, está sempre por ser recriada, jamais seencontrando pronta ou existindo a priori àsinterações serem efetivamente manifestadas emantidas por um determinado período. E,mesmo depois de se formarem, se dissolvemrapidamente, como as relações corriqueiras davida cotidiana, ou permanecem por maistempo, como é o caso do Estado. Então, háinterações de curta e de longa duração, estáveisou instáveis, bem como interações em níveismacro e micro. Contudo, tanto o nível micro,como as relações familiares, por exemplo,quanto o macro partem de mínimas relaçõeschamadas de diádicas. Em outras palavras, “aestrutura numericamente mais simples dentreas que podem ser caracterizadas como deinteração social, ocorre entre dois elementos”(Simmel, 1976, p.128). Tipos como o namoro,a amizade, o casamento, o bate-papo, a fofoca

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e o segredo, por exemplo, são formas sociaisde interação mantidas por, no mínimo, duaspessoas e, por isso mesmo, instáveis, já quepodem ser desfeitas a qualquer momento,conforme deixa claro o próprio Simmel:

O acordo ou segredo entre duaspessoas, o destino ou objetivo comumligam-nas de maneira diversa daquela queseria possível num grupo maior, aindaque fosse de apenas três participantes.Esta é, talvez a característica maior dopróprio segredo. A experiência parecemostrar que o mínimo de dois, com oqual o segredo deixa de ser propriedadede apenas um indivíduo, é ao mesmotempo o máximo que ainda permite suapreservação mais ou menos segura(Simmel, 1976, p.133).

Enquanto o segredo é posse de uma só pessoa,ele ainda não é uma relação social diádica, pois asíntese com o outro que compartilhará ainformação ainda não ocorreu. Enquanto não hácomunicação com um outro sujeito a quem osegredo é contado, não há interação. Ao mesmotempo, sendo uma interação restrita entre duaspessoas, uma terceira pessoa coloca em risco oque é guardado ou protegido. Assim, a díade éuma forma de comunicação limitada a duaspessoas. A díade também pode se manifestar apartir da relação entre dois Estados, assim comoduas empresas, sindicados, associações.

Se a interação é sinônimo de comunicação,então há muitas maneiras dela se manifestar.Quando andamos pelas ruas, gesticulamos emnossos ambientes de trabalho, comemos emnossas casas, vamos à praia, não precisamos,necessariamente, utilizar a linguagem para noscomunicar e interagir com outros sujeitos.Nosso corpo não só foi o primeiro e maissignificativo meio de comunicação técnicousado pelo homem antes de qualquer outratécnica (como a linguagem e a imprensa), como

ainda o é hoje em dia. As inovações tecnológicascom que convivemos não reduzem a importânciada mais primordial forma de comunicaçãoutilizada pelo homem: a corporal. Interagimos e,por conseguinte, também nos comunicamos comnossos corpos e através deles.

A relação entre a comunicação e a interaçãosocial assinala que a sua natureza é a mesma. Àsvezes, para efeito de análise, separamosarbitrariamente a interação e a comunicação semque ambas percam sua identidade. Comunicaçãoe interação social compartilham um mesmoestatuto ontológico. Formas de interação socialcomo o namoro, o casamento, o segredo, amentira, o estrangeiro são formas de comunicaçãoao implicarem o outro, terem o outro como alvoe estabelecerem uma ação recíproca.

O conflito como forma de comunicaÁ„oSe Durkheim ressaltou a passagem das

sociedades tradicionais às sociedades modernasatravés da mudança do tipo de mecanismo desolidariedade, da mecânica à orgânica, a vertentesociológica alemã vai ressaltar a mudança do tipode relação comunal para a societal, do sentimentoà razão, da não escolha à escolha como suasoposições principais. Na sociologia alemã nãoexiste a preocupação de estabelecer relações decausa e efeito para se conhecer a sociedade, comofaria Durkheim, ainda que Simmel possa utilizarexemplos históricos como forma de ilustraçãoem sua obra. Portanto, em vez de tratar osfenômenos sociais como tendo uma causa queos antecedem no tempo, “pretende-se descobriros processos que, realizando-se em definitivo nosindivíduos, condicionam a ‘sociedade’, não comocausas antecedentes no tempo, mas comoprocessos inerentes à síntese que, resumindo,chamamos sociedade” (Simmel, 1976, p.67). Aidéia de causalidade que orienta a sociologiadurkheimiana – a mesma das ciências da natureza– não tem sentido quando, na interação social,

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o fenômeno perfaz um campo sintético emfunção da relação que se estabelece entre dois oumais sujeitos. Tampouco há na sociologia alemãum espírito se manifestando na sociedade sobdiferentes formas (fenomênicas), objetivandoalcançar, no fim, o conhecimento de si mesmo,como indicara Hegel. Não há teleologia para osautores que tratamos aqui, porque a idéia de quea sociedade obedece a leis deterministas doscomportamentos dos homens, tais como leis danatureza, simplesmente não existe. Não obstante,as diversas crises pelas quais passa a sociedadecontemporânea também não são algo a serdiagnosticado, medicado e curado. A sociologiadurkheimiana pretendia ser uma engenharia socialcom vias a eliminar, senão amenizar, as causasdos conflitos e crises sociais. Na sociologia alemãnão há causa sobre a qual se possa operar a fimde medicar a sociedade, porque a sociedade nãoestá dada a priori sob a forma de leis da natureza.Durkheim buscava as regularidades estatísticas afim de colher indícios da natureza do fato social.Essa mesma lógica é estranha aos sociólogosalemães considerados aqui. Uma interação nãose repete da mesma forma porque as síntesessão o resultado de infinitas possibilidades. Sehá um tipo ou forma de interação privilegiadapara análise, para essa vertente da sociologia,esse tipo é o conflito. Longe de representarpotencialmente o fim da sociedade, o queacarretaria dor e sofrimento desnecessários aoshomens, como a idéia de anomia em Durkheimpoderia sugerir, o conflito e a luta fundam asociedade, uma vez que permitem respostas deambas as partes, numa relação de açõesrecíprocas. O outro é a dimensão chave nessaconcepção de sociedade, assim como tambémaos valores desse outro.

Para Tönnies, a sociedade é concebida a partirdas interações entre os homens, o que pressupõecomunicação entre as partes. Contudo, eleelabora uma distinção entre diferentes formas

de interação: comunidade (gemeinschaft) e sociedade(gesellschaft). Enquanto para Simmel existem certosconteúdos ou matérias da ação (matéria-prima),que ainda não se configuram como interação, paraTönnies há vontades capazes de configurarrelações sociais que podem ser do tipo sociedadeou comunidade. As relações ou interações sociaissão ações que envolvem respostas recíprocassejam elas positivas (cooperativas) ou negativas(conflituosas). Uma não se sobrepõe à outra. EmTönnies, as vontades naturais ou essenciais(wesenwille) são características da forma“comunidade”, na qual não se pode escolher. Maselas também podem ser racionais (kürwille),características da forma “sociedade”. Em ambosos casos são estados psíquicos correspondentesàs respectivas formações sociais. Para Tönnies, acomunidade apresenta uma unidade psíquica dosseus fins imanente a todos os seus membros. Cadaparte constitui um todo orgânico. As interaçõescomunitárias são estabelecidas por laços que nãopodem ser rompidos, independente de tudo oque possa afastá-las, afirma Tönnies.

Em teoria, a sociedade consiste em umgrupo humano que vive e habita lado a ladode modo pacífico, como na comunidade,mas, ao contrário desta, seus componentesnão estão ligados organicamente, masorganicamente separados. Enquanto, nacomunidade, os homens permanecemessencialmente unidos, a despeito de tudoo que os separa, na sociedade eles estãoessencialmente separados, apesar de tudoo que os une (Tönnies, p. 252:1995)

Costumes, hábitos e sentimentos, como asimpatia e a antipatia, são sentidos imanentemente,pois são uma vontade natural, admite Tönnies. Énesse sentido que se deve compreender a distinçãoque Tönnies faz entre comunidade, como algo reale orgânico, e sociedade, como ficção e construçãoimaginária, como não existindo naturalmente,mas como produto dos interesses dos homens.

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Para Tönnies, a comunidade constitui-seenquanto uma unidade orgânica, parte viva doreal. Já a sociedade, seria um agregado mecânicoe artificial em função das escolhas que osindivíduos fazem. Por outro lado, o que cria umasociedade é a vontade arbitrária ou racional doshomens. A ação societal expressa melhor ouniverso onde o indivíduo pode escolherarbitrariamente, mas que está por um lado sujeitoàs ordens cristalizadas que cria para alcançardeterminados objetivos. Pessoas que jamais seconheceram um dia podem fundar, em funçãode seus interesses, por vontade arbitrária, umsindicato ou uma associação de bairro a fim deatingir determinados objetivos em comum,independente de seus sentimentos, mas pelo quetêm em comum. Portanto, os homens podemse associar ou interagir mutuamente porinteresses, por escolha arbitrária - o que envolveliberdade sem vontade essencial - sem estarpresos a laços de afetividade, de sangue ouparentesco. Ou, em outras palavras, quandoestamos em sociedade, podemos escolher semter sentimentos, o que pressupõe afastamento,impessoalidade e conseqüentemente maiorliberdade para escolher os meios mais adequadoscapazes de proporcionar o fim previsto.

Simmel, assim como Tönnies, também sepreocupa em estabelecer um conceito desociedade. Em O problema da sociologia, Simmelpergunta se é possível estudar a sociedade. Trata-se de uma preocupação fundamental acerca danatureza da sociedade. Ainda que as interaçõespossam levar a uma ordem maior, isto nãoimpede o estudo da interação entre doisindivíduos, a díade. O outro, em Simmel, Tönniese Von Wiese, está sempre presente. Para tanto,a reciprocidade da ação é um fator fundamentalpara se estudar os processos de interação – quetambém podem ser chamados de comunicação.A reciprocidade tanto pode ser entendida aquicomo uma ação de consentimento, quanto de

recusa. O que importa é que se entenda interaçãocomo unidade de conteúdos e forma dos dois ladosconstitutivos da sociação, ou seja, quem age e recebea ação e retorna na forma de uma ação recíproca.Como não pensar a interação social, do ponto devista desses sociólogos, senão como comunicação?

Simmel vai se esforçar para tornar clara adistinção entre sociologia, psicologia, história efilosofia. Os conteúdos – matéria-prima dasinterações e ainda predominantemente não-sociais – constituem o mundo dos valores, mas,em si mesmos, são objetos das psiques individuais,portanto, devem ser estudados pela psicologia.No momento em que o outro está sendo o alvodesses conteúdos e age reciprocamente, essemesmo conteúdo deixa de ser individual,componente isolado, e passa a se constituir emuma unidade sintética chamada sociedade.Quando alguém telefona, manda um e-mail,assiste à TV, conversa com alguém, assiste a umaaula, dirige seu carro, troca confidências, faz amorestá interagindo com outros, presentes ouausentes. E os sentimentos, interesses e estadosmentais, conteúdos dessas interações podem seros mais variados. Pode-se cooperar para educarum filho, fazer greve, ajudar os mais pobres,demonstrando assim que um mesmo conteúdopode assumir distintas formas, assim comotambém essas formas podem se manifestaratravés dos mais diferentes conteúdos. Asinterações, segundo Simmel, precisam serapreendidas em seu sentido mais abstrato, ou seja,na sua forma. Nesse sentido, afirma Simmel:

A sociação só começa a existir quandoa coexistência isolada dos indivíduos adotaformas determinadas de cooperação e decolaboração que caem sob o conceitogeral da interação. A sociação é, assim, aforma realizada de diversas maneiras, naqual os indivíduos constituem umaunidade dentro da qual realizam seusinteresses (Simmel, 1983, p.60)

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As formas estão sujeitas a leis próprias,suscetíveis de abstração, como afirma Simmel, adespeito dos conteúdos. Abstrair mentalmenteos conteúdos significa que os fins da ação ou osmotivos que a geraram não interessam aocientista social. As formas permitem uma certaregularidade em detrimento dos conteúdos quesão infinitos, mudam, mas que não são sociais.Os conteúdos da ação, os interesses, como fins,depois de interagirem, não significam que vãoser alcançados. É preciso que a outra parte, aoreagir, na forma de uma ação recíproca positivaou negativa, também se exerça, permitindo ounão ao se opor. Então, não é porque alguémama, odeia, se apaixona e tem interesses que elesserão realizados. Uma força contrária podeimpedir essa concretização.

A interaÁ„o social como aproximaÁ„oe distanciamento

Não tão famoso como Tönnies e Simmel, aobra de Leopold Von Wiese aparece no cenáriosociológico um pouco depois da de Max Weber,aproximadamente em 1940. Von Wiese realizouseus trabalhos no Instituto de Pesquisas deBolonha, financiado com recursos da prefeituradaquela cidade.

Junto com Tönnies e Simmel, Von Wiese esteveinteressado nas formações macrossociais e emcomo elas passam a dominar os homens, reduzindosua liberdade e autonomia. Com Tönnies e Simmel,Von Wiese não está preocupado em buscar ascausas das interações nem da existência dasociedade a partir de uma regra ou norma coercitivado tipo durkheimiano. Von Wiese retomou algumasidéias de Simmel e as desdobrou. Propõe-se, talqual Simmel e Tönnies, a sistematizar as formas deinterações entre os homens no que se aproximados dois outros autores ao privilegiar a interaçãosocial. Sua obra foi, junto com a de Simmel, umadas mais lidas pelos membros da Escola deChicago. Assim, não é difícil encontrar

trabalhos com suas idéias reelaboradas. Norastro deixado por Simmel e Weber, Von Wiesebuscou problematizar os processos sociais emtermos de distâncias sociais o que é uma grandemetáfora para se pensar a comunicaçãohodiernamente. Ao contrário do que o sensocomum costuma pensar, não se trata de umadistância geográfica que Von Wiese prioriza, masde uma distância social e mesmo simbólica.Distância social, para Wiese, compreende tantoum maior afastamento social, quanto uma maioraproximação a partir de processos interativos. ParaWiese, o contato é o resultado dos processossociais, em que estão envolvidas as questões deaproximação e distanciamento. Segundo o autor,

Esse conceito de processo social é acategoria principal dos sistemas. Tudoquanto acontece no espaço social (aassociação em sua totalidade) consiste emum número interminável de processossociais que são todos fenômenos deaproximação e distanciamento.(...) Empalavras breves e por isso suscetíveis demal-entendidos: uma relação social é umadeterminada distância entre os homens.(Wiese, 1976, p. 53)

Os contatos sociais, evidentemente, dependemda situação em que ocorrem. É importante frisarque as situações não se repetem, pois estãoenredadas ao curso da história, sendo assimsingulares. Ademais, os resultados das interaçõesnão têm um fim específico para essa escolasociológica. O resultado das interações não cabeà análise sociológica. As formas de cooperaçãopodem ser infinitas, não se constituindo em umfim, mas em meio para se alcançar os fins. Nessesentido, pode-se recorrer a outras ciências, desdeque submetidas ao ponto de vista da sociologia.Para Wiese, os homens cooperam ou se opõemem determinadas situações quando interagemcom outros. As condutas de afastamento e deaproximação seriam como um movimento de

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vai e vem. A troca está em jogo nos processos tambémdescritos por Von Wiese. Os homens podem estar maispróximos ou mais distantes sem se afastar um centímetrouns dos outros. Pessoas viajando dentro de um ônibus super-lotado lado a lado mesmo estando tão próximas se encontramdistantes do ponto de vista da distância social, enquanto doisjovens conversando em um chat pela Internet, apesar deestarem em países diferentes se encontram próximos. Osfatores, segundo Von Wiese, que conformam o processosocial seriam o comportamento dos atores envolvidos nainteração e na situação. As regularidades observadas por Wieseservem para que ele construa seus tipos ideais, mas nãointencionam se aproximar das sociologias mais objetivistas àcaça de “invariáveis da sociedade”.

ConsideraÁıes finaisA sociologia alemã, ao contrário da francesa, toma

como seu postulado o indivíduo (a insociabilidade) a fimde determinar a natureza da sociedade (a sociabilidade).Ela entende os processos de formação da sociedade comointeração e, por conseguinte, como uma açãocomunicacional. O outro, na interação, é o seu interlocutor.Ainda para a sociologia alemã, a sociedade não se constituicomo uma entidade autônoma objetivada, localizadaexteriormente às consciências dos homens, coagindo-osa agir dessa ou daquela forma. Tendo significado para ossujeitos, a realidade é um fato interno às suas consciências.Os homens podem compartilhar sentidos e significadosde forma intersubjetiva, dominar uns aos outros,diminuindo ou ampliando-lhes a liberdade, cooperandoou competindo, associando-se ou dissociando-se segundoas interações sociais e as formas que esses processosensejam. Diferentemente do que defendia Durkheim,para Tönnies, Simmel e Von Wiese, a vida social não édada pronta de antemão ao indivíduo; muito ao contrário,o indivíduo é a própria condição sine qua non para aformação da sociedade. Interação social e comunicaçãose aproximam na sociologia alemã quando a unidade entreconteúdo e forma indica a reciprocidade das trocas entreos sujeitos sociais. Seja lá qual for o meio usado parainteragir, se aproximar ou se distanciar, é a própriacomunicação que se torna o centro da vida social. Pensar

a comunicação como interação socialsignifica ampliar o raio de alcance daanálise sociológica, reservando umespaço privilegiado ao indivíduo,retirado do cenário por teoriascoletivistas ou estruturalistas.

BibliografiaCOOLEY, Charles H. O significado da

comunicação para a vida social. In: IANNI,Octavio et al. (org.). Homem e Sociedade:leituras básicas de sociologia geral. SãoPaulo: Companhia Editora Nacional, 1976.p.168-179.

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TÖNNIES, FERDINAND. Principios de sociologia.Mexico: Fondo de Cultura Economica, 1942.

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WIESE, Leopold Von. Os Processos deInteração. In: IANNI, Octavio et al. (org.).Homem e Sociedade: leituras básicas desociologia geral. São Paulo: CompanhiaEditora Nacional, 1976. p.212-222.

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* Euler David é doutor em sociologia peloIFCS/UFRJ, professor adjunto e

pesquisador da UFLA/MG.

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Janete Oliveira*

O vazio e o sujeitoO vazio e o sujeitoO vazio e o sujeitoO vazio e o sujeitoO vazio e o sujeitocontemporâneocontemporâneocontemporâneocontemporâneocontemporâneo

LivroPoian, Carmen Da. As formas dovazio: desafios do sujeito contemporâneo.São Paulo: Via Lettera Editora eLivraria, 2001.

O livro discute a questão do vazio em várias especialidades:cristianismo, budismo, psicanálise e economia, sempre semperder de vista os problemas trazidos na contemporaneidadepela sociedade de consumo. Sob várias perspectivas diferentes– que no final acabam por convergir de uma certa maneira –o tema do esvaziamento da subjetividade é abordado e jogaluz sobre uma série de aspectos do capitalismo moderno,como o individualismo, a questão econômica e artística.

O primeiro texto, A psicanálise, o sujeito e o vazio contemporâneo,da própria organizadora do livro, Carmem Da Poian, refletesobre a necessidade de uma nova psicanálise que leve emconta não somente as histórias individuais, mas sim o contextosócio-cultural. O autor divide o artigo em três partes: o vaziona psicanálise; o vazio no mundo contemporâneo; e o sujeito,o vazio e a psicanálise hoje.

A primeira parte, sobre o vazio na psicanálise, pensa estaárea como uma dentre as múltiplas experiências possíveis nabusca da verdade e como uma abordagem do vazio. Masressalta que, dentre todos os discursos, o da psicanálise é oúnico que sustenta o vazio sem tentar tampá-lo. Sustentaque algo sempre faltará ao sujeito.

O sujeito é pensado em sua relação constante com o objetoe a psicanálise em sua relação com o mundo. E, entre eles, háum espaço necessário e não negativo, à individuação (espaçode separação, ausência e diferença em que se constitui aidentidade humana). Afirma que o vazio poderá ser ou nãopreenchido pelo imaginário da fantasia e pelo simbólico dopensamento. Mobiliza a dor humana em várias de suasmanifestações (angústia, luto, depressão, melancolia,

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insegurança, impotência, etc), sendo que essa estácentrada na perda do objeto e do próprio sujeito,as suas representações esvaziam-se. Esse processoanuncia a morte psíquica do sujeito e o ego vagasem desejo e frágil já sem identidade e identificações.

Discute também o papel do vazio no luto,depressão e melancolia. No luto, leva-se em contaa experiência da realidade e o objeto ausente setorna presente através de suas representaçõesdepressivas representadas pela dor. O vazio seriaa fixação no objeto e a baixa ligação com arealidade, a depressão seria um luto inacabado.No caso da angústia, a libido não está fixada novazio da perda, mas no perigo/ameaça desta perda(frustração e impotência relativas ao desejo) e, namelancolia, o sujeito se perde no objeto ausente,ocupando o lugar do vazio, se encontranecessitado de uma imagem para representá-lo.“A ausência no luto cede lugar ao vazio nadepressão e ao nada na melancolia” (p. 10).

Na segunda parte, O vazio no mundo contemporâneo,fala-se sobre o entrelaçamento entre a questão dovazio e o mundo contemporâneo. Questiona-mentos quanto a quem seria este sujeito atual ecomo a psicanálise deve abordar esse “novo”sujeito, destacando os seguintes pontos de reflexão:

- o sujeito atual é nostálgico das referênciasclássicas de um absoluto que não existe mais assimcomo o conceito de verdade. Vive um mal-estarnascido dos vazios provocados pela ausência deDeus, de fé e de lei. Vazio de identidade eidentificações, o mundo de hoje exige volatilidade,mudanças, trocas, descartabilidade. O mundocontemporâneo se caracteriza pela insegurança,pela busca de satisfação e da liberdade individual;

- “desumanização do sujeito” significa umaconcretitude da sobrevivência, pois uma sociedadeque não apresenta um apoio para o sujeitolivrando o sistema da culpa e, colocando-a comtodo o seu peso nos ombros do indivíduo. Todaa responsabilidade por seus sofrimentos efracassos recai única e exclusivamente sobre o

desempenho individual. O econômico predominasobre o político;

- “sociedade traumática” significa um mundoilusório de promessas que acaba por fragilizar o eu;

Na terceira parte, O sujeito, o vazio e a psicanálisehoje, o autor nos lembra que é preciso pensar empossibilidades de ação e eficácia do tratamentopsicanalítico hoje por conta das transformaçõesda sociedade contemporânea. Uma nova teoriado sujeito deve ser formulada tomando-o comoum processo mais do que como um ser. Apsicanálise como um processo de análise dasmudanças do próprio desejo precisa mudar parase adaptar às transformações do mesmo napassagem para a contemporaneidade.

No texto sobre O vazio na arte, o espaço vazioé tomado como um espaço de diálogo que revelae encobre, ao mesmo tempo preenche e épreenchido. É um espaço para um diálogo entreo artista e a obra. Um locus para o extravasamentode sentimentos. Um vazio que alterna entre atotalidade e o nada, numa dialética constante.

Nos mostra como a arte é um espaçoindeterminado que foge às definições e estásempre desvelando o oculto, “um espaçosempre em devenir”.

No capítulo O vazio no Budismo, o autor fazum pequeno histórico do budismo contando assuas origens que remontam ao ano de 566 a.C.,quando nasce Sidarta Gautama e de como apreocupação com o sofrimento aparece na suavida, daí nascendo mais tarde o Budismo. Filhode um governante de uma tribo indiana, Sidartavivia longe de toda e qualquer sombra de sofri-mento, uma vez que foi previsto que se ele“viesse a ter algum contato com qualquer dossofrimentos típicos da existência humana, tudoabandonaria par ser um homem santo” (p. 35).Por isso, seu pai elaborava uma série de manobraspara afastá-lo da realidade que, no fim, acabarampor não funcionar e ele terminou por perceberque o mundo em que vivia era uma ilusão.

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Abandona tudo neste momento para com-preender a questão do sofrimento (porque existiae como eliminá-lo). Praticou com diversos gu-rus e até mesmo utilizou-se de práticas ascéticasque, num certo momento, o fizeram tomar umadecisão: postou-se debaixo de uma árvore e,praticando uma meditação simples conseguiu oque queria. Sidarta chegou à iluminação a respeitoda compreensão da origem do sofrimento e asmaneiras de irradicá-lo através do caminho doMeio. Este caminho implicava que se o serhumano se mantivesse eqüidistante das paixõesencontraria a iluminação, o Nirvana. Para Buda,o mundo em que vivemos é ilusório e, o apegoexcessivo que temos aos objetos e sentimentosdessa realidade que é transitória e, porque nãopercebemos esta impermanência, existe osofrimento. Para fugir do mesmo, portanto, énecessário se libertar das ilusões do mundoatravés da meditação e esvaziar a mente, chegara um vazio de onde se pode perceber tudo. Ovazio no budismo não se confunde com niilismo,mas sim uma forma de se desvincular datransitoriedade dos objetos e das pessoas.

Em O vazio nas relações sociais na cultura atual aanálise é feita através de pesquisa desenvolvidano Instituto de Medicina Social da Universidadedo Estado do Rio de Janeiro (UERJ) na linha“Racionalidades Médicas”. A autora percebeque uma parcela cada vez maior da classe médiaque pratica atividades de saúde está tentandoromper um vazio que se instalou nas relaçõessociais nos últimos 35 anos.

Constata que dentro dos grupos de atividadefísica, os participantes buscam outras açõesextracurriculares, como excursões e festas internastentando recuperar uma sociabilidade perdida.Pois, segundo a autora advoga, a ideologia doindividualismo capitalista adquiriu uma hegemoniaque desagrega conceitos “cristalizados” comoas idéias de comunidade e vizinhança. Averticalização das residências (mono-moradias)

significa uma perda das relações de família.Também levanta a questão da substituição de umaunião marital que se considerava permanente poruma união transitória e consensual, contratual defato. O contrato no lugar do amor romântico. Asmulheres de hoje, apesar do feminismo e da lutapelos direitos, querem manter uma imagem de“saradas” para atrair a atenção dos homens.

Há situações específicas para a solidariedadesocial moderna se expressar, pois quanto maisligado ao individualismo forem as pessoas,menor a solidariedade. Há uma desconfiançapermanente incutida nos indivíduos comrelação ao outro pelas instituições e pela mídia.

A questão da imagem e do status constróium vazio social como nos diz a própria autora:“O sucesso a qualquer preço pode estar levandoà corrupção de todas as estruturas institucionaisda sociedade” (p.65). A pesquisa desenvolvidaaponta que as práticas coletivas de saúde podemservir para transformar o vazio (ausência) paraum outro tipo de vazio (plenitude).

Em O Vazio na economia: o deserto e as miragens,faz-se um questionamento dos fundamentos daeconomia neoclássica que tem servido de basehá tempos como justificativa do mecanismocapitalista. As bases desta teoria são postas emcheque no que tange à sua efetiva aplicação nomundo e a alienação que provoca junto aossujeitos. Conceitos como o da “mão invisível”,da inexorável “tendência ao equilíbrio”, “aosdesejos ilimitados”, “a oferta que gera a sua própriaprocura” e, principalmente, a noção do homoeconomicus são colocados como abstrações. E porque abstrações? Mostram-se irreais porque o quese verifica na atualidade é um mercadodesigualmente competitivo e, portanto,desequilibrado e indivíduos irracionais no seucomportamento de consumo.

Contra esses parâmetros o autor identificaalgumas correntes de resistência como a doRelatório Lugano que expõe as mazelas que o

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conceito neoclássico pretende mascarar.Aponta para a necessidade de preservação dosestados nacionais e para a proliferação de umapolítica identitária que contribui para afragmentação ainda maior do pouco espíritocoletivo que ainda resta. Pois, esta políticapressupõe a construção de novas identidades,impossibilitando assim a mobilização emtermos de movimento social.

“Em síntese, multiplicar os referenciaisde identificação conduz à fragmentaçãoda sociedade e anula os esforços de defesados direitos sociais, pois em vez de pensarno que pode ou no que deve ser feito, apessoas ficariam ocupadas com a questãoquem ou que sou eu?” (p.82)

Além do relatório Lugano que o autorcompara ao Manifesto Comunista, apontatambém para os keynesianos, os marxistas e osregulacionistas franceses e o traço comum en-tre eles é o respeito à historicidade, amultidisciplinaridade e a concepção humanistado homem e da sociedade. Uma reflexão sobreo vazio das utopias e expectativas.

Em seguida, em O vazio na arquitetura,discute-se como a arquitetura aproveita osespaços vazios, os vãos, as aberturas, as portas,janelas e todos aqueles espaços circunscritosentre paredes e colunas. Através deles e comeles, o arquiteto contrapõe cheios e vazios como objetivo de criar uma espécie de identidadeda construção que mescla o movimento dasfachadas e a volumetria geral do edifício.

O autor descreve como a utilização destevazio evoluiu ao longo do tempo através dadescoberta de novos materiais e da evolução detécnicas construtivas. Simbolicamente distinguealguns tipos de vazio: o abrigo, o mortuário, osacralizado, o urbano, como imagem de poder,como controle social e como elemento estático.Para cada uma dessas expressões do vazio apre-senta uma obra arquitetônica que o simbolize:

o abrigo – o metrô de Washington com uma duplautilização: a de via de transporte e a de abrigonuclear; mortuário: o túmulo do Pão, Família Fortes,Cemitério de Pinheiros, São Paulo, 1940 (a ausênciado morto é indicada por um lugar vazio em umamesa de jantar); sacralizado – Stonehenge, Inglaterra,que, pelo vazio no centro, imagina-se que tenhasido um espaço de cerimônias religiosas; urbano –a ágora, o jardim, o prédio do Ministério daEducação no Rio de Janeiro (pilotis); imagem depoder – entrada dos hotéis da cadeia Hyatt ou oMacksoud Plaza, São Paulo; controle social –panóptico, Casa de Cultura do Recife (antiga prisão);elemento artístico – Oscar Niemeyer (Palácios doPlanalto e da Alvorada) ou o Museu de ArteModerna de Niterói.

E, finalizando, a arquitetura no próprio vazioque seria simbolizado pela construção na órbitada Terra de uma estação espacial.

Já em O vazio no cristianismo, o texto recorrea uma abordagem histórica desta doutrinareligiosa e de como o vazio se transforma deadjetivo (algo que perdeu o conteúdo,) emsubstantivo (o vazio – a coisa oca vazia, a ilusão,o vazio do deserto) e depois em verbo (esvaziar-se – ato de desapegar, despojar-se). Um approachda história cristã através da gramática.

Nos tempos retratados pelo livro do Êxodoconsidera-se o vazio como oposto ao cheio(adjetivo), no tempo da monarquia dos profetaspor volta do ano 1010 a.C. (tempos de Saul, Davi eSalomão), o vazio era o adjetivo e o substantivo,nos tempos de exílio – durante e depois – exerciaa função de um outro adjetivo e como verbo. János tempos do helenismo, o vazio é um substantivo.

No novo testamento, as palavras “vazio” e“esvaziar” adquirem novos sentidos, o sentidofísico: a ausência de produtos materiais, aprivação de algo esperado (sentido negativo).E também um sentido figurado: “sentido de coisavã, inútil, algo ligado à idéia de desperdício e de perda”.E, no caso do verbo (esvaziar) temos também

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dois significados: primeiramente seria dereduzir ao nada e o segundo seria o ato de sedespojar, de desapegar-se.

Apresenta também uma proposta nova devazio a partir das peregrinações de Jesus, umaperspectiva que é a do desejo de plenitude. Aquestão da caridade gerando uma solidariedade,partilha de sentimentos, existência da troca.

O texto ainda toca na questão do crepúsculovazio de Jesus que deu origem ao cristianismoem si. Jesus teria vindo para que todos tivessemvida em abundância e esse pensamento, essacrença, essa fé que é contrária ao vazio. Ouseja, Deus na figura de Jesus veio para preenchereste vácuo, veio para dar uma utopia a serperseguida, uma perspectiva de vida.

No texto Continentes psíquicos e o vazio empsicanálise - na abordagem da questão doscontinentes e dos conteúdos - o autor explorao tema do vazio no campo psicanalítico e queelaborações podem ser feitas a partir doconceito de continente psíquico (que seria umaoutra dimensão da experiência psicanalítica nãoderivada da análise de conteúdo).

Enquanto normalmente as idéias sobre ovazio remetem às articulações dos conteúdospsíquicos entre si (prática interpretativa), as decontinente psíquico remeteriam a um quadroanalítico, ao holding e à regressão. No primeirocaso, tomando Lacan como referência, ossignificantes só são significantes a partir de umponto vazio, o sujeito negativando a realidade.O autor pretende tratar o vazio mais próximode uma temática negativa primordialmente comrelação ao ser falante e ao conceito de falta.

A questão do continente psíquico surgequando a reflexão não recai mais sobre algo quediz respeito à falhas estruturais do ego. Enfim, otexto propõe uma abordagem diferente para aanálise psicanalítica que privilegie o que o autorchama de “envelopes psíquicos”, que privilegieoutros aspectos da análise que de outra forma

não o seriam. Tentar dar mais significado e im-portância, por exemplo, aos silêncios.

Na última parte, A experiência do vazio no pen-samento vista partir de considerações da filosofiaHeideggeriana. o texto demonstra que este filósofoalemão não utiliza a palavra vazio e sim a palavranada e que o interesse na sua reflexão deriva darelação feita por ele entre o esvaziamento e o Ser.

O que importa no pensamento de Heideggerpara o autor é a ligação que faz entre o Ser e onada. A questão do Ser não ser uma totalidadefechada e definida, mas sim um constante “poderser” que se concretizaria na figura do ente é oprincipal ponto levantado contra os estudosfilosóficos desenvolvidos até então. Poisconsideravam o Ser como uma totalidadedefinida que pudesse ser alcançada, mas a partirdaí, segundo Heidegger, já teria se transformadonum ente. Não se levava em conta até entãofatores como historicidade, temporalidade esubjetividade, daí o conceito do Dasein, do Serque está aí, uma totalidade aberta.

O pensamento de Heidegger apresenta umanuance diferente de reflexão: a de um ser que énada de ente, pois o Ser é um poder ser, referindo-se a possibilidades e não a realidades efetivas e oente é a realização deste poder ser sob umadeterminada temporalidade, historicidade esubjetividade. Explicado este conceito, o autorparte para o aspecto que lhe interessa: o nada/vazio como experiência suspensiva.

Segundo Heidegger o nada não pode sercircunscrito, nem definido, caso contrário setransformaria num ente, numa concretitude. Porisso, não é uma experiência lógica e sim umaexperiência afetiva que ele definiria como aangústia e comparando com os outros afetoshumanos, todos se referem a algum objeto, masa angústia se refere ao nada. Dando uma novaroupagem a esta teoria, o autor pensa então aangústia e, por conseguinte o nada, como umaexperiência suspensiva exatamente pela falta de

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representação ligada a este sentimento. O sujeito perdeas referências e emerge em uma temporalidade vazia,um tempo puro e liberto, causando também uma perdade referência identitária. Volta então o homem a umvão original onde todas as possibilidades estão abertas,ao vazio. Essa tese se abre então para a possibilidade dequalquer acontecimento afetivo poder levar a ummomento de vazio, a uma perda de referência.

Lendo atenciosamente o livro vemos como os temas,que aparentemente tratam de forma diferenciada o vazio,se interligam e de certa forma giram em torno da dualidadedo vazio como espaço do nada ou de totalidade. Umapercepção que serve como um ponto de partida para no-vas possibilidades do ser e como um esvaziamento, umnada que deixa o sujeito sem referências, perdido, semnenhuma alternativa, subjetivado.

A questão da perda de identidade/referencial érecorrente tanto de forma positiva ou negativa e a realidadeé colocada em cheque várias vezes, como um conceito quetem se esvaziado de sentido constantemente nacontemporaneidade. No caso do Budismo, do Cristianismo,dos processos artísticos e também da filosofiaHeideggeriana, esse esvaziamento pode ser utilizado comouma oportunidade de abertura de novas possibilidades doSer. Mas no caso de outros textos que pretendem discutiro vazio como uma perspectiva de deterioração da vida so-cial, enxerga-se uma impossibilidade do sujeito de viabilizaralternativas, pois os processos de subjetivação estariamviciados pela sociedade de consumo, por uma ideologiaindividualista dominante.

A evolução da sociedade de consumo tornou aconsciência do vazio um componente incômodo dentroda vida social e junto ao pensamento crítico, as referênciasestão fragmentadas e adquiriram uma velocidade que osujeito não tem conseguido acompanhar. Esse processoaguça a angústia do esvaziamento de sentido, uma vezque o sujeito está apegado ao objeto, não à suamaterialidade, mas ao poder simbólico por ele exercido.O Budismo e a filosofia Heideggeriana propõem umaruptura com essa relação pois enxergam a realidade comoum mundo ilusório, que não parte de uma totalidade dadae sim de uma totalidade no campo do devir, em que o

vazio/nada é o espaço de “iluminação”.Assim como nas artes marciais ensina-se que a mente deve estar mansa e calmacomo a água - pois ao menor movimentoem sua direção ela reagiria - o sujeito novazio “positivo” teria uma experiência daplenitude da consciência.

As questões suscitadas nos textosrevelam-se de bastante relevância paraperceber a sociedade atual que tem sedebatido entre os dois pólos queperpassam o livro: plenitude X vazio/nada. A discussão em torno das perdasde referenciais decorrentes da exacer-bação do consumo e as conseqüênciasdisso nos processos de construção deidentidades e subjetividades tem mo-nopolizado a atenção de muitos teóricos.É isso que converte o livro organizadopor Carmem Da Poian em uma boaferramenta para pensar um pouco maisestes pontos sob diferentes olhares.

* Janete Oliveira é formadaem Relações Públicas e Economia

e mestranda em ComunicaçãoSocial pela UERJ.

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Orientação editorial

1. Considerações IniciaisLogos: Comunicação & Universidade é uma pu-blicação semestral do Programa de Memória emComunicação da Faculdade de ComunicaçãoSocial da UERJ. A cada número há uma temáticacentral, focalizada para servir de escopo aos artigos,organizados por seções.

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