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CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS FACULDADE DE EDUCAÇÃO DOUTORADO EM EDUCAÇÃO

ROSE CLAIR POUCHAIN MATELA

EXPERIÊNCIA E NARRATIVA NO MOVIMENTO CINECLUBISTA DA

DÉCADA DE 1970: “CORAÇÕES E MENTES”

Niterói 2007

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ROSE CLAIR POUCHAIN MATELA EXPERIÊNCIA E NARRATIVA NO MOVIMENTO CINECLUBISTA DA

DÉCADA DE 1970: “CORAÇÕES E MENTES”

Tese apresentada ao programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Doutor em Educação.

Orientadora: Professora Doutora Célia Frazão Soares Linhares

Niterói 2007

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M425 Matela, Rose Clair Pouchain.

Experiência e narrativa no movimento cineclubista da década

de 1970: “Corações e Mentes” / Rose Clair Pouchain Matela. –

2007.

316 f.

Orientador: Célia Frazão Soares Linhares.

Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense,

Faculdade de Educação, 2007.

Bibliografia: f. 220-228.

1. Movimento social – Brasil – 1970-1979. 2. Memória e

história. 3. Narrativa. I. Linhares, Célia Frazão Soares. II.

Universidade Federal Fluminense. Faculdade de Educação. III.

Título.

CDD 301.240981

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DEDICATÓRIA

Aos meus pais, Tereza e Ernesto. À Horacio e Igor. E “Há aqueles que lutam um dia; e por isso são muito bons; Há aqueles que lutam muitos dias; e por isso são muito bons; Há aqueles que lutam anos; e são melhores ainda; Porém há aqueles que lutam toda a vida; esses são os imprescindíveis.” Brecht

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AGRADECIMENTOS

Agradecer se constitui sempre num desafio, pois corre-se o risco de esquecer,

mesmo quando este esquecimento é involuntário. O trabalho desta tese, pelo tempo

que me mobilizou e me envolveu, acabou por “tocar” muitas pessoas com as quais

convivo. Assim, a lista será um pouco extensa. Feita esta breve observação, optei

por correr o risco e espero que minha memória não me prepare armadilhas.

A minha orientadora Célia Linhares pela liberdade que me deu na condução

deste trabalho. Pelo incentivo constante e pelos diálogos que enriqueceram o meu

trabalho.

Ao meu filho Igor pelas conversas questionadoras e instigantes; por nossas

concordâncias e divergências. Pela possibilidade de me fazer ver a juventude e suas

diferentes formas de estar no mundo. Pelos momentos divertidos, pelo carinho...

Aos narradores e narradoras que gentilmente se dispuseram a contar suas

histórias de vida e sem os quais esta pesquisa não teria sido possível. Aos

momentos das entrevistas que nos possibilitaram reviver nossa juventude.

À Andréa que nesta travessia foi se tornando interlocutora, companheira e

amiga. À sua solidariedade nos momentos de dúvidas, receios, inquietações... Ao

compartilhamento de nossas descobertas e alegrias.

À Cristina pelo apoio, pela leitura e contribuições sempre criativas.

À amiga Maria Lucia pelo carinho, pela leitura generosa e atenta, pelas

sugestões que estimularam diálogos entre nós, contribuindo para o enriquecimento

do trabalho.

Às amigas Dagmar e Eugénia pela presença, pelo afeto, pelas sugestões e

pela possibilidade de partilharmos a escrita de alguns textos, colaborando para o

meu crescimento intelectual.

À Luiza pela cooperação na transcrição das fitas.

Ao grupo de pesquisa Aleph, em especial, Ruth, Isabel e Ney pelas leituras e

sugestões; pelas interlocuções.

À Nívea e Rejany pela compreensão nos momentos de “sufoco”.

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Ao amigo Eduardo pelos momentos de companheirismo e pelas conversas

fecundas.

Ao amigo Nilton pela sua irreverência, afetividade e cumplicidade.

À minha irmã, Regina, pela leitura entusiasta e pelo estímulo.

À Sofia e Dalton companheiros de sempre e pelo afeto.

À Flora, pela disponibilidade e generosidade.

À Olavo e Letícia pelas “dicas”.

À amiga Tete pela companhia ao MAM.

Aos amigos do Sarau que me levaram a encontros inesperados.

Aos professores e à turma de doutorado de 2003 pelas discussões.

À Secretaria do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal

Fluminense pelo tratamento cordial.

Ao setor de documentação do Museu de Arte Moderna (MAM) pelo

atendimento zeloso.

Ao CNPq pelo auxílio financeiro.

Para o meu querido companheiro Horacio sei que nem todas as palavras

serão suficientes para expressar minha gratidão. De qualquer forma vale a pena

tentar. Todo o carinho e amor dispensado nestes quatros anos tornou esta “aventura”

possível e muitas vezes prazerosa: compartilhando os momentos da escrita da tese

com o seu violão e pandeiro, a leitura generosa dos capítulos e suas sugestões, o

acompanhamento ao Museu de Arte Moderna, os cuidados com a alimentação, o

cafezinho da tarde e as palavras de apoio e incentivo nas horas em que o desânimo

“se instalava”. Obrigada.

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Je ne veux parler que de cinéma, pourquoi parler d’autre

chose? Avec le cinéma on parle de tout, on arrive à tout.

Le cinema, comme la peinture, montre l’invisible.

Jean-Luc Godard

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RESUMO MATELA, Rose Clair Pouchain: Experiência e narrativa no movimento cineclubista da década de 1970: “corações e mentes”. Orientadora: Célia Frazão Soares Linhares. Niterói-RJ/UFF, 15/05/2007. Tese (Doutorado em Educação), 316 páginas. Campo de Confluência: Movimentos Instituintes, Políticas Públicas e Educação. Linha de Pesquisa: Formação de Professores; Projeto de Pesquisa: Experiências Instituintes em Escolas Públicas II: Memórias e Projetos para a Formação de Professores.

Nesta tese de doutorado, recolhemos as memórias do movimento cineclubista da década de 1970, através das narrativas de vida de alguns de seus protagonistas. Buscamos compreender como esta experiência, mesmo sob forte repressão política, possibilitou aos seus participantes a construção de ações coletivas, traduzidas numa prática política-cultural que ampliava os espaços de exercício da cidadania, pondo em questão o poder de repressão da ditadura militar. Consideramos ainda, que o movimento cineclubista constituiu-se num espaço de formação para os sujeitos envolvidos, visto que a experiência vivida na atividade tinha como prática fundamental a pesquisa e o debate – espaço de construção intelectual e formação coletiva. Tendo como referência os conceitos de experiência (erfahrung) memória e narrativa de Walter Benjamin, o presente trabalho tem como principal enfoque refletir sobre o valor da experiência como fonte e possibilidade da narrativa. Entendemos que as narrativas construídas no processo de rememoração são manifestações de memórias coletivas, uma vez que são vistas tanto como expressões individuais - palavras, gestos, olhares, vozes, escritas - como produções culturais. Possibilitam compreender que os sujeitos subjetivam a cultura, por terem a capacidade da reflexão, da interpretação, significando e re-significando o mundo e suas experiências nessas mediações. Entendemos que as experiências por se inscreverem na história das sociedades, estão inseridas numa continuidade/descontinuidade, onde se por um lado, temos as estruturas sociais instituídas, por outro lado, temos o que se instituí, o que se (re)estrutura. Na tensão entre instituído e instituinte, surgem experiências, como a cineclubista, que vão se contrapondo ao esvaziamento das relações entre os sujeitos, colaborando para a constituição de processos sociais que resultam de experiências que se desdobram, se alongam, se intercambiam. Experiências mais comprometidas com o devir humano. Palavras-Chave: Memórias, Experiências e Narrativas.

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ABSTRACT

MATELA, Rose Clair Pouchain: Experience and narrative in the cineclub movement of the decade of 1970: “hearts and minds”. Orientadora: Célia Frazão Soares Linhares. Niterói-RJ/UFF, 15/05/2007. Tese (Doutorado em Educação), 316 páginas. Campo de Confluência: Movimentos Instituintes, Políticas Públicas e Educação. Linha de Pesquisa: Formação de Professores; Projeto de Pesquisa: Experiências Instituintes em Escolas Públicas II: Memórias e Projetos para a Formação de Professores. In this thesis, we collect the memories of the cineclub movement of the decade of 1970, through the narratives of life of some of its protagonists. We try to understand how this experience, despite under strong political repression, made possible to its participants the construction of collective actions, translated into a political-cultural practice that extended the spaces of exercise of the citizenship, putting in question the power of repression of the military dictatorship. We also consider that the cineclub movement consisted in a space of formation for the involved citizens, since the experience lived in the activity had as fundamental practice the research and the debate - space of intellectual construction and collective formation. Taking as reference the concepts of experience (erfahrung), memory and narrative of Walter Benjamin, the present work have as its main approach to reflect on the value of the experience as source and possibility of the narrative. We understand that the narratives constructed in the remembering process are manifestations of collective memories, since they are seen both as individual expressions - words, gestures, looks, voices, written – and as cultural productions. They make possible to understand that the subjects subjectivize the culture, by having the capacity of reflection, of interpretation, meaning and re-meaning the world and its experiences in these mediations. We understand that the experiences, by inscribing itselves in the history of the societies, are inserted in a continuity/discontinuity, where if in one hand, we have the instituted social structures, on the other hand, we have what is instituted, what is (re) structured. In the tension between instituted and institutor, experiences appear, as the cineclub’s, that go opposing to the emptying of the relations between the subjects, collaborating for the constitution of social processes that result of experiences that unfold, prolongate, interchange itselves. Experiences more compromised with human becoming. Key-words: Memories, Experiences and Narratives.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 12

Memórias de uma geração: elaborando o problema 17

Olhares sobre o movimento cineclubista 20

CAPÍTULO I: ESCAVANDO EXPERIÊNCIAS QUE NARRAM

AS HISTÓRIAS DE UM MOVIMENTO

28

1.1 Trilhando os Caminhos da Memória e Experiência 31

1.2 Histórias de vida, histórias do cineclubismo 42

CAPÍTULO II: COMPARTILHANDO PERCURSOS 55

2.1 Tempos Entrecruzados 56

2.2 Tempo, Cinema, Cineclubismo 64

2.3 Tempo, Cultura e Educação 70

2.4. Tempo, Cineclube, Resistência 78

2.5. Tempo Presente 88

CAPÍTULO III: A NARRATIVA NA RECONSTRUÇÃO DAS EXPERIÊNCIAS 100

3.1 Das muitas maneiras de narrar uma história 101

3.2 Experiências que se desdobram 112

3.3 Memórias e narrativas: construindo percursos 117

CAPÍTULO IV: NARRATIVAS DE VIDA: AS EXPERIÊNCIAS COMO

FORMADORAS DOS SUJEITOS

126

4.1 Conhecendo nossos narradores/as: nossa sinopse 130

4.2 Por que uma sinopse? 176

CAPÍTULO V: CINECLUBISMO: HISTÓRIAS QUE NOS TOCAM 179

5.1 Contando histórias de uma formação 188

5.2 Experiências e afetos 203

DIÁLOGOS INACABADOS 214

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 220

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REFERÊNCIAS DE IMAGENS 229

ANEXOS 230

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INTRODUÇÃO

A língua tem indicado inequivocamente que a memória não é um instrumento para a exploração do passado; é, antes, o meio. É o meio onde se deu a vivência, assim como o solo é o meio no qual as antigas cidades estão soterradas. Quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um homem que escava. Antes de tudo, não deve temer voltar sempre ao mesmo fato, espalhá-lo como se espalha a terra, revolvê-lo como se revolve o solo. Pois ‘fatos’ nada são além de camadas que apenas à exploração mais cuidadosa entregam aquilo que recompensa a escavação.1 Walter Benjamin

Neste trabalho, a exemplo do fragmento acima, escavamos nosso

passado mais recente, revolvendo um baú com recordações que ficaram guardadas.

Recordações que ao serem resgatadas, oferecem àquele que escava preciosidades:

experiências que nos contam histórias de desejos, medos, dominação, esperanças,

utopias, projetos, perdas e solidariedades. Experiências de mulheres e homens e

suas histórias em permanente construção.

A elaboração desta tese entrelaça-se com a nossa vida pessoal e

profissional. Iniciamos este trabalho vasculhando na memória os fios da história que

pretendemos narrar, porque concordamos com Benjamin - nossas memórias são

sempre coletivas, embora as exerçamos individualmente - uma vez que são

1 BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. Obras escolhidas II. São Paulo: Brasiliense, 5a edição, 1995,

p.239.

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decorrentes da tensão dialética entre lembranças (Erinnerung) “pessoais” e o

processo de rememoração (Eingedenken). Este processo vincula-se à “noção do

despertar”, à dimensão política e ética da rememoração, que não nos impede de

sonhar, mas nos instiga ao confronto de sonho e vigília em nossas práticas

cotidianas. (GAGNEBIN, 1994)

Em nosso período de estudantes universitários, durante a vigência do

regime ditatorial, nos foi tolhida a experiência democrática. Nossa formação se

alimentava de silêncios e medos e teria sido quase cinzenta e banal, não fossem as

cumplicidades nas resistências de alguns professores e estudantes, que longe de

serem isoladas, respondiam aos mesmos apelos éticos que se alastravam no país de

diferentes formas.

Nossa experiência junto com a de outros companheiro(a)s, na

(re)fundação e participação do Movimento Cineclubista do Rio de Janeiro na década

de 70, mostrou que ele representou uma resistência político-cultural à ditadura,

possibilitando uma experiência política - ou, no dizer de Benjamin, erfahrung - que se

contrapunha à ordem reinante.

O gosto pelo cinema, a consciência política e até mesmo a necessidade

de “mexer” naquele cotidiano, fizeram com que muitos jovens como nós

encontrássemos no cineclubismo uma das formas de dar sentido às nossas vidas.

Para muitos, inicialmente, significou uma forma de contestação ao regime ditatorial,

já que os canais de participação política tradicionais estavam fechados. Uma espécie

de resposta a quem “mandava”, fazendo-nos sentir que nossas vozes não estavam

caladas; vozes que soavam como canções em nossos ouvidos, como nos dizia a

música de Chico...

Hoje você é quem manda / Falou, tá falado / Não tem discussão / A minha gente hoje anda / Falando de lado / E olhando pro chão, viu / Você que inventou esse estado / E inventou de inventar / Toda a escuridão.... / Apesar de você / Amanhã há de ser / Outro dia... 2

2 Música “Apesar de Você” (1971) de Chico Buarque de Holanda.

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Essa experiência aliada à paixão pelo cinema possibilitou um olhar - olhar

que, como dizia Gerd Bornheim3, articula-se à especificidade da língua grega, onde o

verbo ver se liga ao ato do conhecimento - capaz de ampliar o que entendíamos por

cultura e política, abrindo horizontes antes não explorados. Fomos tomando

consciência do entrelaçamento das diferentes dimensões que nos constituem

enquanto seres humanos. Fomos percebendo a possibilidade de pensar a

democracia não como um conceito abstrato e a-histórico, e sim, como uma

construção histórica que envolve todas as facetas da vida humana.

Uma outra experiência fundamental neste percurso foi a nossa

participação no movimento feminista, em especial no Centro da Mulher Brasileira.

Aqui como no movimento cineclubista, estes espaços foram vistos por nós,

inicialmente, como luta política no seu sentido mais restrito. Porém, a continuidade

da experiência, mesmo sob um regime ditatorial, revelou como “objetivamente”

experimentamos o imbricamento das diferentes dimensões que nos formam,

imprimindo em nós mudanças que implicaram numa forma diferenciada de resistir.4

Falamos de uma “forma diferenciada”, porque se nossa leitura de mundo

está impregnada dos valores de nossa sociedade, não significa que não haja

autonomia, nem tampouco a indeterminação dos sujeitos frente à realidade vivida,

como nos diz Eder Sader 5, citando Castoriadis: o “fazer histórico”

estabelece e se dá outra coisa que não o que simplesmente é, e que há nele significações que não são nem reflexo do percebido, nem simplesmente prolongamento e sublimação das tendências da animalidade, nem elaboração estritamente racional dos dados.

Isto não quer dizer que o acaso seja o condicionante em nossas relações

com o mundo e com os outros, mas que “as condições objetivas” não são as únicas

a constituírem as ações sociais. Estas ações estão impregnadas das experiências

3 BORNHEIM, Gerd. As metamorfoses do olhar. In: Novaes A. (org). O Olhar. São Paulo: Companhia das letras, 1998. 4 Nesta tese trabalhamos com a idéia de que as resistências produzidas nos movimentos sociais

brotam de forças instituintes que asseguram predominantemente o poder de criação dos seres humanos de inventar outros modos de existência, gerando ações e reações a uma situação instituída. 5 SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo, 1970-80. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p.46.

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elaboradas pelos sujeitos sociais que trazem consigo significações culturais que

singularizam suas ações no mundo. (SADER, 1988)

Nossa trajetória profissional está vinculada à participação no movimento

sindical que se reorganizava no início dos anos 80. Desde então, vimos nos

dedicando ao exercício do magistério, seja na escola fundamental e média, seja nos

cursos de graduação e pós-graduação. Neste cenário, procuramos compreender,

através de pesquisas sobre as diferentes vivências, que formas de intervenção os

sujeitos realizam em suas práticas cotidianas, entrelaçadas com as políticas

educacionais que de alguma forma tentam “enquadrá-las”, e perceber também em

que medida estas relações estão impregnadas de hierarquias, verticalizações e/ou

insubordinações.

Em nossa dissertação de mestrado, investigamos a apropriação que o

professor de história faz do conteúdo do livro didático, suas leituras e usos, em

confronto com as concepções de história, do livro e do professor, revelando que esta

prática pedagógica é mediada por um saber da experiência que a define

fundamentalmente. Este saber é o orientador do trabalho docente e desvela as

possibilidades e limites do fazer pedagógico em conexão com as instâncias sociais,

políticas, econômicas e culturais.

Salientamos também nossa participação no grupo de pesquisa ALEPH6

desde 2000, o que colabora de forma decisiva para nossa formação de

pesquisadora, propiciando nosso crescimento pessoal e profissional. Esse é um

espaço público formador de espírito crítico e de construção de nossa autonomia

coletiva e individual e preocupado com políticas públicas comprometidas com as

lutas dos movimentos sociais que buscam uma escola mais includente e uma

sociedade mais justa e democrática.

A experiência de pesquisa vivida junto ao ALEPH, conjugada às nossas

inquietações profissionais, fizeram com que prosseguíssemos nossos estudos,

fazendo-nos perceber o quanto, na última década, as questões educacionais

6 Programa de Pesquisa em Formação dos Profissionais da Educação - ensino e extensão/Universidade Federal Fluminense, coordenado pela Professora Doutora Célia Frazão Linhares.

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revestiram-se de outras complexidades, na medida em que as contradições e

desigualdades produzidas pela política “neoliberal” aprofundaram a exclusão social e

a violência extrema, principalmente nas grandes metrópoles, exigindo dos

pesquisadores novos olhares e posicionamentos éticos frente aos problemas

escolares e à formação docente.

De acordo com Linhares (2000), a problemática educacional vincula-se

a um movimento de reterritorialização dos campos de saberes e poderes, com deslizamentos e deslocamentos abruptos, visando a redefinição dos lugares sociais. A escola também vem sendo redefinida em termos de expectativas e legitimações sociais. No entanto, a construção de um outro lugar não pode fazer-se com responsabilidade democrática, sem que os professores se apropriem de uma autonomia profissional em que a formação teórico-política seja enfatizada, sustentada por memórias. 7

1.1. Memórias de uma geração: elaborando o problema...

Quando decidimos em nossa pesquisa recolher as memórias do

movimento cineclubista8, no período da ditadura militar – através das narrativas de

vida de alguns de seus protagonistas – algumas indagações nos desafiavam.

Primeiro, compreender como esta experiência, mesmo sob forte repressão

política, propiciou aos seus participantes a construção de ações coletivas, traduzidas

numa prática política-cultural que ampliava os espaços de exercício da cidadania,

pondo em questão o poder de repressão da ditadura militar.

De que forma a experiência cineclubista contribuiu para que, num período

de total fechamento do regime, surgissem movimentos de questionamento contra a

configuração política existente?

Segundo, considerando o movimento cineclubista como um espaço de

formação extra-escolar e sua possibilidade de articulação com outros movimentos

7 Projeto de Pesquisa: Experiências Instituintes em Escolas Públicas II: memórias e projetos para formação de professores. Mimeo, ano 2000, p.13. 8 Os cineclubes configuraram-se sempre como um espaço plural. Embora com uma estrutura básica - passar um filme e depois realizar o debate - cada cineclube tinha a sua especificidade. Primeiro pela sua localização - igreja, escola, universidade, curso de línguas, associação de bairros, entre outros. Segundo, pela sua dinâmica interna que incluía além da programação que estava vinculada à possibilidade de acesso aos filmes e aos interesses de seus membros, muitas vezes contraditórios, e a produção de materiais sobre os filmes e cinema.

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sociais, não seria esse um tipo de experiência capaz de instituir outras formas de se

pensar educação e cidadania?

Não poderia esta experiência suscitar o tensionamento de práticas

educativas impregnadas por políticas educacionais que “teimam” em repetir velhas

fórmulas, mantendo hierarquizações e desigualdades? Não poderia ainda, expor

processos educativos que despotencializam uma socialização capaz de criar

sentidos/valores para os sujeitos envolvidos neste processo?

Ressaltamos que os processos de socialização convivem com os

constrangimentos, mas também com a capacidade de invenção e transformação dos

sujeitos sociais, conforme nos apontam as experiências que “escapam” desses

constrangimentos9 e criam outras formas de vivenciar o cotidiano escolar,

provocando fissuras nas políticas dominantes.

Nossa pesquisa tem a intenção de contribuir para que no “movimento de

reterritorialização”, anteriormente apontado por Linhares (2000), os cursos de

formação e a escola tenham a oportunidade de configurar práticas pedagógicas que

incluam a diversidade da vida social, criando condições para uma socialização que

favoreça os projetos de autonomia dos sujeitos envolvidos.

Nesse sentido, queremos saber como a experiência no movimento

cineclubista atuou no processo de formação dos jovens que dele participaram, o que

foi experimentado por esses sujeitos, em termos de vivência na construção de um

projeto político-democrático de sociedade que se colocava na contramão da ditadura,

então vigente.

Seguindo essa direção, nos perguntamos: De que forma o movimento

cineclubista se constituiu numa alternativa à formação de seus sujeitos participantes,

num período de opressão e emudecimento?

9 Constatamos que nas experiências instituintes que ocorrem nas escolas públicas – Escola Plural,

Escola cidadã, Escola Cabana, entre outras – o espaço escolar incorpora outras práticas culturais e educativas, onde as cooperações começam a ser construídas pelo resgate dos diferentes tipos de memórias coletivas que nos constituem para que nossas histórias de vida – que não só nossas – possam nos conectar com os outros, possibilitando extrair da experiência significações e referenciais que fomemtem narrativas partilhadas, contribuindo para uma aprendizagem mais plural e aberta. Consultar LINHARES, Célia. Projeto de Pesquisa: Experiências Instituintes em Escolas Públicas II: memórias e projetos para a formação de professores.

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Inquietava-nos ainda, pensar que reflexões poderiam ser estabelecidas

entre esta experiência e as nossas da atualidade; não no sentido de um estudo

comparativo, mas na intenção de observar continuidades/descontinuidades dos

processos históricos, ampliando nossa capacidade de olhar o cotidiano. Perceber

nelas que movimentos emergem, que desafios, que perspectivas e ações podem

contribuir para o questionamento de experiências instituídas.

Uma outra questão, não menos importante, é salientar que nesta época se

fortaleceu no país um projeto político de desenvolvimento excludente. Este projeto

revelava o descompromisso com a implantação de políticas públicas de caráter

redistributivo de bens; as prevalências nos investimentos políticos e econômicos

recaíam no “mercado”, que passava a ser o regulador das relações sociais,

favorecendo a iniciativa privada.

O governo militar, não sem resistências, traçava, então, uma política para

o campo da cultura buscando aprisioná-la à dinâmica do mercado, ao fomentar a

criação de uma indústria cultural articulada aos interesses da política de Segurança

Nacional. Tal prática se configurava através de uma produção que exercia um rígido

controle político na veiculação de mensagens e tentava integrar o país num projeto

ufanista e nacionalista que, então, se afirmava.

Também na educação, delineou-se uma política educacional que

procurava adequar a escola ao novo modelo de desenvolvimento, tornando-a

“eficiente e produtiva”, com vistas à preparação para o trabalho, para o

desenvolvimento econômico do país, para a segurança nacional.

Consideramos que esta política reafirmou uma escola excludente, que

alicerçada em diversas medidas impostas, através de um saber outorgado em doses

distintas, às diferentes classes sociais contribuiu para o distanciamento entre elas,

ampliando as desigualdades, apesar das resistências e lutas daqueles que se

indignaram diante do autoritarismo e das injustiças sociais.

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1.2. Olhares sobre o movimento cineclubista

Resgatamos, como foco central deste trabalho, os diferentes olhares

sobre a história do movimento cineclubista da década de 70 do século passado.

Através dos relatos orais de vida de alguns de seus protagonistas, indagamos sobre

suas experiências, na tentativa de apreender até que ponto estas germinaram ações

instituintes e os possíveis vínculos com a sua formação.

Encontramos na concepção de história de Walter Benjamin10 a

possibilidade de resgatar memórias e narrativas de movimentos culturais que ficaram

à margem, nas bordas dos processos instituídos, como forma de confrontar o

presente, revelando a historicidade do conhecimento e suas potencialidades na

direção de um projeto libertador. “Articular historicamente o passado não significa

conhecê-lo ‘como ele foi de fato’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal

como ela relampeja no momento do perigo.” (BENJAMIN, tese 6, 1994: 224).

Neste trabalho, as memórias e narrativas são trazidas para estabelecer

uma experiência histórica com o presente, enfatizando não um passado glorioso de

lutas, mas explicitando que elas se modificam em sintonia com as ações humanas de

cada tempo histórico. Elas acentuam que as criações são produzidas em conexão

com as necessidades postas pelas experiências enfrentadas em determinadas

conjunturas, diferindo de unidades fabricadas por um discurso homogeneizador.

No cenário sombrio dos “anos de chumbo”, a repressão aos movimentos

educacionais e de cultura popular, que aconteciam desde a década de 60 do século

XX, representou um corte profundo no processo de democratização da cultura e da

educação brasileiras. Instalou-se um período tenebroso para os movimentos sociais.

Entretanto, destacamos que mesmo nos períodos autoritários, o poder instituído não

forma um bloco homogêneo, já que as ações de resistência encontram brechas que

10

“A concepção de história de Benjamin [...] constitui uma forma heterodoxa do relato da emancipação: inspirando-se em fontes messiânicas e marxistas, ela utiliza a nostalgia do passado como método revolucionário de crítica do presente.” (Löwy, 2005: 15). “A filosofia da história de Benjamin se apóia em três fontes muito diferentes: o Romantismo alemão, o messianismo judaico, o marxismo. Não se trata de uma combinação ou “síntese” eclética dessas três perspectivas (aparentemente) incompatíveis, mas da invenção, a partir destas, de uma nova concepção, profundamente original. [...]”. Idem,ibdem, p.17.

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escapam ao controle do poder dominante, instituindo clandestinamente outros modos

de agir e viver.

Assim, no início da década de 70, ainda bastante embrionário, emergiu

junto com outros movimentos de resistência - o Movimento Cineclubista 11 nas

principais capitais brasileiras. Este buscava se (re)estruturar voltado, principalmente,

para as questões sociais, políticas e culturais - opondo-se às censuras e às

perseguições.

O cineclubismo foi configurando-se, a nosso ver, numa experiência que

sutilmente colaborava para quebrar algumas amarras e mordaças, concorrendo

assim para o estremecimento do contexto sócio-político que vivíamos. Fortaleceu

resistências coletivas e estabeleceu diálogos com outros movimentos sociais, como

por exemplo, as associações de bairros e de favelas, que então vinham se

reorganizando.

Estas considerações nos remeteram às seguintes questões: de que modo

determinados movimentos culturais e educacionais se constituíram em experiências

instituintes no período da ditadura militar? Quais são os seus entrelaces?

Particularmente, em relação ao cineclubismo, queremos saber em que

dimensão a prática reflexiva produzida no interior desse movimento, pode ser

considerada uma experiência instituinte?

Em nossa pesquisa, denominamos de experiências “instituintes”12,

aquelas que se constituem em movimentos que surgem em diferentes tempos e

espaços, engendrados por sujeitos históricos, envolvidos em ações coletivas,

capazes de trazer mudanças significativas/éticas no processo político, social e

cultural que estão vivendo. Alterações comprometidas com um projeto político que

permita a estes sujeitos religarem os saberes produzidos socialmente, na perspectiva

de uma sociedade mais justa e igualitária. Elas estão aqui e ali para serem

fecundadas, já que são experiências que contêm sementes preservadas 11 Por exemplo, em 1971, no Rio de Janeiro havia quatro cineclubes em funcionamento. Em 1974, a Federação de Cineclubes do Rio de Janeiro já contava com 12 associados permanentes. Macedo, Felipe Bacelar. O cineclubismo no Brasil. In: Cinema - Fundação Cinemateca Brasileira - 02/1974 - 52. São Paulo. 12 Nos apoiamos em Linhares, Célia. Projeto de Pesquisa: Experiências Instituintes em Escolas Públicas II: memórias e projetos para formação de professores. Mimeo, ano 2000, pp.22/23.

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historicamente (BENJAMIN, 1994), prontas para germinar o “novo” enquanto uma

utopia possível. É o novo que se opõe à barbárie - que luta contra a perpetuação da

miséria humana.

Partimos do pressuposto de que este movimento cultural teve um papel

político-pedagógico (no sentido ampliado do termo) importante na formação dos seus

participantes, por ter como prática fundamental a pesquisa e o debate – por ser um

espaço de construção intelectual e de formação coletiva. Esta prática ofereceu

condições para a elaboração de uma perspectiva de vida voltada para os ideais de

liberdade e de concepções éticas e estéticas como fundamentos de constituição dos

seres humanos, no momento em que o conhecimento difundido e ensinado nas

universidades e nas escolas sofria censura por parte das instituições dominantes.

(...) Era importante o que acontecia depois do filme, porque primeiro era um fórum democrático de debate. Nós tiramos muita gente do ostracismo, porque as pessoas mesmo jovens, mesmo desacostumadas, elas começaram a dizer o que pensavam, davam palpites, sondavam algumas possibilidades, começaram a destravar a fala. Nós hoje temos grandes oradores, jornalistas e profissionais de cinema, inclusive cineclubistas que partiram para a atividade empresarial de salas de cinema alternativas, como os de Botafogo, Nacional e em SP, as iniciativas do Cineclube Bexiga e Cineclube Oscarito. Dentro daqueles quadros que a gente tinha de espectadores, num primeiro momento, não demorou eles já eram participantes, já eram membros, já pegavam no projetor, já ajudavam a pegar o filme, já rodavam a crítica, porque havia algumas atividades a serem realizadas. Não demorou, a gente distribuía aquelas atividades para o cineclube funcionar entre mais pessoas, não só três ou quatro que faziam parte do núcleo central. Então, tinha que se consultar uma bibliografia para conhecer melhor a obra do diretor, rodar o mimeógrafo com uma crítica... íamos ao Museu de Arte Moderna (MAM) buscar material, que também tinha uma Cinemateca. A gente podia pegar material conversando com o Conservador da Cinemateca, que era naquela ocasião o Cosme, que ficou muitos anos na Cinemateca. O Cosme era um franco aliado do cineclubismo, também do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Ele deixava que a gente consultasse os arquivos em torno de material crítico, cedia filme do acervo do MAM, quando havia uma certa segurança dele ir e voltar sem sofrer danos. Ele permitia que a gente usasse do acervo do MAM para exibir filmes importantes da cinematografia brasileira, do neo-realismo e outros tantos que a gente já falou. Então, o cineclubismo não ajudou somente aqueles que eram as lideranças, mas também aqueles espectadores daquele bairro, daquela escola, colegas nossos, gente que chegava de todos os lados, até de outros bairros mais populares, que vinham em torno de uma atividade... e a gente fazia também propaganda para que isso acontecesse e todo mundo participava da discussão. A discussão era comparecida e formou muita gente. Essa discussão não formou só lideranças universitárias, de mentalidade mais avançada por conta do

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estudo, formou gente também que não tinha tanto estudo, mas que estava interessado em cinema e que discutia a realidade brasileira, a realidade política, a realidade internacional: ditadura, repressão, democracia. Nós tivemos uma oportunidade de politização muito grande, através da atividade de cineclubes. (Marisa)

A política implantada por aquelas instituições baseava-se, principalmente,

numa educação de base tecnocrática e autoritária, tão coerente com a ideologia

dominante, expressa na doutrina de segurança e desenvolvimento nacional.

Entendemos que a política educacional implementada pela ditadura

militar, ao focar o treinar, em detrimento do formar, destituiu as experiências

educativas do seu traço mais criativo e inovador, privilegiando o “adestramento” na

formação dos sujeitos da escola. Em contraposição à esta política, compreendemos

que o movimento cineclubista, dentre outros, através do trabalho de pesquisa

realizado pelas equipes que formavam os cineclubes, constituiu-se num lugar de

produção, aquisição e divulgação de conhecimentos, materializados no momento do

debate. Momento este de troca, de diálogo entre diferentes sujeitos, instituindo um

movimento dialético entre pensar e fazer, que configurou experiências formadoras

para os envolvidos neste processo. Assim nos conta uma das narradoras:

(...) Mesmo hoje, meu filho, por exemplo, que faz parte do Movimento Estudantil ele é ativista e tudo, mas ele não tem nessa prática estudantil os momentos de discussão, de reflexão que nós tínhamos na prática cineclubista. As nossas discussões cineclubistas foram formadoras de todos nós. Era uma coisa muito de troca mesmo de conhecimento e menos engajado. Então menos ideologicamente fechado, tínhamos posições políticas diversas, as brigas, as filiações partidárias, mas isso tudo era... era menor do que a afinidade, o amor ao cinema, o interesse pelo cinema era maior do que as divergências. (Ana) ∞∞∞

Para compreender o valor da experiência cineclubista na formação dos

sujeitos da pesquisa, procuramos pensar as tensões e lutas que se fizeram

presentes nela, a partir da concepção de história, de narrativa e de experiência de

Benjamin. Ele nos convida a ver dialeticamente as dimensões macro e micro

políticas destes processos e também a buscar em suas narrativas palavras

silenciadas e/ou marginalizadas.

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Recorremos às contribuições de Castoriadis (2000), na medida em que

elas permitem elucidar como ocorrem os movimentos instituintes, mostrando que a

existência do mundo social e sua transformação estão imbricados na tensão entre

instituinte e instituído e que a contestação da ordem dominante está articulada a

capacidade que os movimentos sociais têm para criarem novas formas de vida

individual e coletiva - perpassadas por contradições, conflitos e complementaridades.

Também não podemos deixar de mencionar Boaventura Santos (2003)

quando nos auxilia no questionamento do discurso científico universalista que tem

prevalecido nas análises dos fenômenos sociais. Partilhamos assim, de estudos e

pesquisas13 que demonstram as limitações de uma ciência social que separa ciência

de existência, e estabelece dicotomias entre sujeito/objeto, razão/emoção, afirmando

uma ciência neutra, uma verdade única e absoluta.

(...) Em minha opinião, a alternativa à teoria geral é o trabalho da tradução. A tradução é o procedimento que permite criar inteligibilidade recíproca entre as experiências do mundo, tanto as disponíveis como as possíveis... (...) Trata-se de um procedimento que não atribui a nenhum conjunto de experiências nem o estatuto de totalidade exclusiva nem o estatuto de parte homogênea. As experiências do mundo são vistas em momentos diferentes do trabalho da tradução como totalidades ou partes e como realidades que não se esgotam nessas totalidades ou partes. (p. 758).

Nosso trabalho pautou-se por esses princípios epistemológicos de não

separar e não hierarquizar as diferentes experiências humanas, mas por tentar

“traduzi-las”, visto que os problemas de pesquisa são inerentes às questões da vida

cotidiana - surgem das necessidades postas pelos homens em determinadas épocas

-, confluindo experiências e teorizações. Mas, o que entendemos por tradução?

Em nosso entendimento, o trabalho de tradução proposto por Santos

(2003), sugere criar inteligibilidade e dar visibilidade às múltiplas experiências

humanas, não para estabelecer teorias e verdades únicas e definitivas, mas para

provocar no nosso exercício epistemológico a busca das singularidades e

articulações que as diversas experiências produzem, explicitando o caráter

intelectual, político e emocional da tradução.

13 Linhares, Célia. Projeto de Pesquisa: Experiências Instituintes em Escolas Públicas II: memórias e projetos para formação de professores. Mimeo, ano 2000, 22/23. Santos, Boaventura. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 8a edição. São Paulo: Cortez, 1991.

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Este procedimento estremece com a lógica cartesiana da modernidade e

dos modelos pré-estabelecidos, possibilitando uma compreensão das experiências

humanas como ”... trabalho transgressivo que (...) vai fazendo seu caminho,

caminhando.” (Idem, p.764). Ou como apontava o pensamento benjaminiano:

(...) A atividade crítica e salvadora do pensamento exercer-se-ia, segundo Benjamin, não tanto nos amplos vôos totalizantes da razão, muito mais, na atenção concentrada e despojada no detalhe à primeira vista sem importância, ou então no estranho, no extremo, no desviante de que nenhuma média consegue dar conta.” (Gagnebin, 1992:44)

Para que nosso estudo pudesse atingir o objetivo exposto, entrelaçamos

as leituras dos autores14 que são fundamentais neste trabalho, com a pesquisa de

campo. Privilegiamos as narrativas dos sujeitos que participaram dos processos que

investigamos, na tentativa de trazer as memórias submersas, circulando idéias

silenciadas, para potencializar políticas públicas comprometidas com a

“emancipação” e a justiça social.

O uso das narrativas possibilita a valorização dos saberes oriundos da

vida cotidiana dos diferentes sujeitos sociais, concorrendo para o alargamento da

razão, através da incorporação dos múltiplos conhecimentos e experiências vividas

pelos sujeitos. Proporciona ainda o surgimento de histórias interditadas, de

interpretações e leituras de mundo diverso do instituído, que fratura conhecimentos

hegemônicos e ultrapassa o discurso oficial, contribuindo para a ampliação do

conceito de verdade científica.

Devemos destacar que, ao trazer para a pesquisa os sujeitos com suas

emoções e razões, foi realçada a importância de se trabalhar todas as dimensões

que constituem os seres humanos. Assumimos, assim, nossa subjetividade neste

trabalho, mas a entendemos profundamente imbricada na cultura e permitindo a

14

Os autores nesta tese são vistos como interlocutores que ora nos aproximamos, ora nos distanciamos, pois entendemos que na produção do conhecimento, os conceitos surgem como tentativa “...de responder a um feixe de problemas que se construiu, de maneira contingente, em um determinado momento. (...) Em outros termos, um conceito não surge do aprimoramento das idéias, mas da emergência de um campo problemático que exige novas categorias de pensamento que lhe façam face. Só se criam conceitos em função de problemas, e eles se transformam do mesmo modo que os problemas aos quais se supõe que eles respondam (...).” GONDAR, Jô. Quatro proposições sobre memória social. In: GONDAR, Jô e DODEBEI, Vera (orgs.). O que é memória social? Rio de Janeiro: ContraCapa Livraria/ Programa de Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2005, p.13.

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elaboração de uma história que busca unir subjetividade e objetividade, emoção e

razão, sem abrir mão de nossa responsabilidade social e ética e dos pressupostos

epistemológicos que orientam nossa tese.

Precisaria perceber que há na imaginação uma instância criadora que nos tira do fatalismo mecanicista do mundo, um fatalismo mecanicista que se atribui ao jogo da sociedade. Para isso é preciso resgatar o direito à criatividade da imaginação. Resgatar a ética como uma normatividade que se legitima a partir da indignação, do espanto diante da ausência de justiça. (Pessanha, 1993, p.35)15

Percebemos que as narrativas se harmonizavam com o nosso objeto de

estudo, quando recolhemos dos sujeitos sociais suas experiências de vida.

Descobrimos, a partir das narrações, aspectos da história, ausentes dos documentos

oriundos de outras fontes, que só passam a existir e a fazer sentido, quando

relatados por aqueles que vivenciaram determinados acontecimentos.

∞∞∞

O roteiro desta pesquisa foi escrito seguindo um trajeto que fosse capaz

de expressar as experiências vividas no processo de conhecimento, revelando

riscos, lacunas, dissonâncias, descontinuidades, complementaridades, diálogos,

afetos, memórias, (in)certezas.

No capítulo I: Escavando experiências que narram as histórias de um

movimento, fizemos uma reflexão sobre as noções de memória e experiência que

entreteceram este trabalho, revelando como a experiência cineclubista foi se

constituindo num movimento instituinte, visto que possibilitou aos seus protagonistas

criarem um espaço público de discussão e produção de um saber plural, mesmo sob

ditadura militar.

No capítulo II: Compartilhando percursos: cultura e educação,

entrecruzamos diferentes momentos históricos e experiências, evidenciando como os

movimentos instituintes produzem outros modos de agir e viver que escapam à

lógica do poder dominante.

15 Citado em MOLL, Jaqueline. Histórias de vida, histórias de escola: elementos para uma pedagogia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

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No capítulo III: A narrativa na reconstrução das experiências, destacamos

a narrativa como nossa opção teórico-metodológica, uma vez que por meio dela nos

apropriamos das experiências cineclubistas, recuperando a história de vida dos

diferentes sujeitos da pesquisa e estabelecendo as interrelações entre narrativas,

movimento cineclubista e experiências de formação.

No capítulo IV: Narrativas de vida: as experiências como formadoras dos

sujeitos, tivemos a intenção de proporcionar aos leitores “conhecer” nossos

narradores/personagens para que percebam a dimensão que a atividade cineclubista

desempenhou na formação deles.

No capítulo V: Cineclubismo: histórias que nos tocam... evidenciamos o

entrelaçamento político-cultural da experiência cineclubista e a diversidade presente

no interior do movimento.

Nas reflexões finais “Diálogos Inacabados”, sublinhamos a importância da

experiência coletiva na potencialização de ações instituintes, bem como para uma

educação que busca fortalecer os sujeitos em seus processos de emancipação,

contribuindo para uma maior conexão entre escola e vida social.

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CAPÍTULO I

ESCAVANDO EXPERIÊNCIAS QUE NARRAM AS HISTÓRIAS DE UM MOVIMENTO

Nunca podemos recuperar totalmente o que foi esquecido. E talvez seja bom assim. O choque do resgate do passado seria tão destrutivo que, no exato momento, forçosamente deixaríamos de compreender nossa saudade. Mas é por isso que a compreendemos, e tanto melhor, quanto mais profundo jaz em nós o esquecido. Walter Benjamin

A epígrafe assinala a intenção que conduziu este trabalho: no processo

de rememoração - o esquecimento é parte integrante de nossa

existência/sobrevivência - condição humana para lembrar. Ele assegura nossa

capacidade de reflexão e absorção das experiências, nossa capacidade de criação,

na medida em que o que “chega” em nós do passado, é o que dele desejamos e

podemos recuperar, pois como nos diz Gabriel Garcia Márquez: “A vida de uma

pessoa não é o que lhe aconteceu, mas o que ela recorda e como o recorda”.

Sabemos que para Benjamin (1994) “um tempo saturado de agoras”16 é o que

permite o entrelaçamento entre passado/presente/futuro, indicando que no resgate

das memórias, passado e futuro se encontram no tempo de agora. A memória na

concepção benjaminiana não recupera o passado “como ele foi de fato”, mas o que

16

BENJAMIN, tese 16, 1994, p.229.

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ele “poderia ter sido”. Esta memória guarda, especialmente, como cada período

histórico “sonhou o seu futuro não realizado”.

Para o autor, existe uma “frágil força messiânica”17 em cada geração de

homens e mulheres que pode tornar-se potente, a partir do entendimento de que o

passado está presente de forma muito diferente do que normalmente o concebemos:

“Alguém na terra está à nossa espera”18. Em que sentido?

Enquanto em diversas religiões se espera o Messias para a salvação da

humanidade, nas interpretações limitadas do materialismo histórico se espera um ato

messiânico que venha de fora da sociedade ou do “desenvolvimento das leis da

história” para emancipá-la; que em última instância não é outra coisa se não a

esperança por um Messias. No sentido inverso, Benjamin buscou elementos do

messianismo judaico para denunciar que o tempo linear, ininterrupto e progressivo é

uma construção ideológica do capitalismo e que “... não há um Messias enviado dos

céus. (...) a tarefa messiânica é inteiramente atribuída às gerações humanas. O

único Messias possível é coletivo (...) a humanidade oprimida.” (LÖWY, 2005: 51/52)

Para superar, então, as contradições da sociedade capitalista, é preciso

encontrar as pistas de saída num “tempo saturado de agoras”, através da

reatualização das esperanças das gerações anteriores que se dirigem a nós;

resgatar do esquecimento os anseios dos vencidos, e se possível, continuar a sua

luta.

Inspirando-se no procedimento de meditação dos monges, o autor propõe

distanciar-se do mundo - não no sentido contemplativo - para perceber que o que

está acontecendo não representa a totalidade desse mundo; distanciar-se sim, mas

para reforçar um olhar crítico frente à situação política, criando formas de luta que

possam romper com as armadilhas do totalitarismo.

Neste momento, em que os políticos nos quais os adversários do fascismo tinham depositado as suas esperanças jazem por terra e agravam sua derrota com a traição à sua própria causa, temos que arrancar a política das

17

BENJAMIN, tese 2, 1994, p. 222. 18 Idem.

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malhas do mundo profano, em que ela havia sido enredada por aqueles traidores.(BENJAMIN, tese 10,1994, p. 227)19

Compreendemos, portanto, que o “tempo de agora” ao romper com a

concepção de tempo linear, homogêneo e vazio, nos convoca a ver e refletir de uma

outra forma; isto é, no processo de reflexão é preciso superar a idéia de progresso

incessante e inevitável. Vale dizer que é necessário de nossa parte ter uma visão

radicalmente diferente da história humana, para entender melhor a sociedade e com

isto poder mudá-la a partir de suas contradições e conflitos.

A teoria e, mais ainda, a prática da social-democracia foram determinadas por um conceito dogmático de progresso sem qualquer vínculo com a realidade. Segundo os social-democratas, o progresso era, em primeiro lugar, um progresso da humanidade em si, e não de suas capacidades e conhecimentos. Em segundo lugar, era um processo sem limites, idéia correspondente à da perfectibilidade infinita do gênero humano. Em terceiro lugar, era um processo essencialmente automático, percorrendo, irresistível, uma trajetória em flecha ou espiral. (BENJAMIN, tese 13,1994: 229)

Neste cenário, acreditamos que a memória pode fortalecer os movimentos

instituintes, ao recuperar os projetos adormecidos dos vencidos, abrindo fissuras no

tempo, e, por instantes, um espaço de liberdade, o que lhe permite trazer à tona o

que estava submerso e condenado ao esquecimento.

Livre é o estado daquele que tem liberdade. Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda.20

1.1. Trilhando os caminhos da memória e experiência

Se no período da ditadura militar, a impossibilidade do exercício democrático e

da liberdade política eram o foco de nossas preocupações, hoje nossas inquietações

vinculam-se às problemáticas que desafiam nossa capacidade crítica frente à

indiferença que se aprofunda nas relações sociais. Indiferença aliada a um processo

de “barbárie”, na medida em que constitui-se no elemento central da forma como as

sociedades capitalistas contemporâneas estão organizadas. A globalização

19 Benjamin nesta tese faz uma crítica ao partido comunista alemão que ao firmar o pacto Molotov-Ribbentrop, retirou as esperanças de um combate mais eficaz contra o nazismo, alinhando-se à linha soviética. 20

Frase retirada do filme Ilha das Flores de Jorge Furtado, Brasil 1989.

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neoliberal21 centralizou o poder nas mãos de restritos agentes políticos e

econômicos, colocando em xeque o modelo das chamadas democracias

ocidentais.22

Estudos como os de Bauman (1999) nos apontam para o complicado

processo de viver na sociedade capitalista de consumo da atualidade. Se no início

dos tempos modernos este sistema necessitava de mão-de-obra em abundância,

para gerar trabalho e consumo, caracterizando uma sociedade de produtores, com o

seu desenvolvimento e aperfeiçoamento, e que hoje se define por globalização

neoliberal, o que conta primordialmente, são os consumidores, ficando o trabalho

cada vez mais escasso, conforme nos diz o autor:

(...) A maneira como a sociedade atual molda seus membros é ditada primeiro e acima de tudo pelo dever de desempenhar o papel de consumidor. A norma que nossa sociedade coloca para seus membros é a da capacidade e vontade de desempenhar esse papel. (p. 86/87).

Sabemos que nesta sociedade de consumo o modelo de “homem” a ser

cultivado é o do indivíduo que não deve se satisfazer com nada por muito tempo, que

não tem compromissos mais duradouros, pois o que conta é sempre o desejo de “ter”

mais e diversamente. Que compromissos coletivos são possíveis de assumir nessa

sociedade onde reina o individualismo, a indiferença, a competitividade, o

descompromisso e o desemprego estrutural?

Frisamos que neste processo, a esfera econômica foi se dicotomizando em

relação à esfera política, delineando uma formação social em que o ideal

democrático, restrito à dimensão pública, tornou-se cada vez mais limitado em seu

potencial emancipador. O trabalho foi perdendo sua capacidade de opor-se ao

21

“(...) O modo capitalista de produção entra em uma época propriamente global, e não apenas internacional ou multinacional. Assim, o mercado, as forças produtivas, a nova divisão internacional do trabalho, a reprodução ampliada do capital, desenvolvem-se em escala mundial. Uma globalização que, progressiva e contraditoriamente, subsume real ou formalmente outras e diversas formas de organização das forças produtivas, envolvendo a produção material e espiritual.” In: IANNI, Octavio: Teorias da Globalização. 5ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. pp.17-18. 22 “... a atual lógica econômica dominante está centrada naquilo que se poderia denominar indiferença estrutural, que envolve a irresponsabilidade das agências decisivas (empresas, mas também em escala crescente os Estados nacionais) em relação a tudo que exceda a órbita imediata de sua ação. (...)”. COHN, Gabriel. Indiferença, nova forma de barbárie. In: NOVAES, Adauto. Civilização e barbárie. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, pp. 87-88.

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capital, perdendo sua centralidade, seu poder de regulação de conflitos. Oliveira23 ao

falar da “colonização da política”, assinala que a predominância da economia sobre a

política criou um paradoxo “letal” no nosso cotidiano: a economia tira da política a

escolha, a faculdade de arbitrar os conflitos.

Esta situação retirou dos sujeitos coletivos a capacidade de decidir, escolher e

mediar divergências. O paradoxo decorrente é que a política se torna importante e

irrelevante. É importante, pois no capitalismo é a instância que corrige as assimetrias

de poder e é irrelevante, visto que hoje se apresenta impotente para regular os

conflitos e corrigir as assimetrias.

Mas, até que ponto esta impotência não carrega fagulhas capazes de truncar

a política dominante?

(...) talvez fosse interessante saber exatamente o que os jovens estão fazendo antes de falar que eles são.... nós éramos cultos, sem sombra de dúvida, muitos de nós cineclubistas tínhamos uma cultura é... como o pessoal fala, de berço. (...) o Brasil tava fervilhando de competência na década de 60. (...) Agora esses garotos, eu não sei se eles têm menos cultura que a gente. Eles são muito generosos, eles trabalham com todas as artes, embora eles sejam cineclubistas, eles aderem com muita facilidade às outras artes, às outras mídias... eu hoje mesmo vi uma coisa que eu não sei bem o que é aquilo: se é uma projeção de slides ou é um power point, porque são fotos belíssimas feitas por garotos de favelas (...) são fotos com música e a música é da favela, e as fotos são deles né? Então fizeram em DVD... e aí você vai conversar com eles, eles são o quê? São de esquerda? Não, naquela época a gente era marcadamente de esquerda, eles são o quê? Não sei, a gente tem que conhecer a garotada. Agora, o que nós tínhamos sim, é lastro cultural pra tornar a nossa proposta cultural e política competente. Nós tínhamos uma competência política na época, que eu acho que podia ser observada também pela garotada. E a garotada pensar o seguinte: olha esses coroas aí até que nem tudo deles se joga fora, eles também têm algumas coisas interessantes, mas a gente tem que saber o que eles têm de interessante também. (Dudu)

∞∞∞

É no confronto das tensões e esperanças, presentes na luta contra a ditadura

militar, que recuperamos memórias e narrativas, que nos instigam a compreender as

práticas sociais como práticas instituídas e instituintes; práticas culturais que revelam

um tempo histórico de dominação, de lutas e resistências, de experiências, escritas e

23

“A Colonização da Política”. Palestra proferida no Curso: Esquecimento da Política, organizado por Adauto Novaes, na Aliança Francesa do Rio de Janeiro, em 2006.

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reescritas no passado, e que ao serem resgatadas possibilitam captarmos outras

formas de ação política, segundo revela uma das entrevistadas:

(...) o cineclubismo me revelou um novo campo de ação. A literatura era e é a minha maior paixão. Sou, além de professora, escritora de ficção. Mas o cinema permite compartilhar a ficção, ao contrário da leitura e da escritura, que são atividades solitárias. Digamos que o cinema complementou minha formação cultural e fundamentou minha ação política, uma vez que, talvez pela própria natureza da atividade literária, sempre fui meio avessa à militância partidária. (Lídia)

Até que ponto estas memórias e narrativas podem contribuir para a

elaboração de experiências partilhadas em sociedades complexas como as nossas,

rompendo com uma cultura que privilegia um tipo de esquecimento e onde o

individualismo exacerbado e a indiferença total ao outro caminham passo a passo?

Esta situação de indiferença não é uma circunstância incomum no

capitalismo, faz parte de sua constituição, mas, causa impacto a força com que

ocorre esta indiferença total ao outro no Brasil de hoje, o alheamento constante em

relação ao “outro”, conforme nos diz Jurandir Freire Costa: “(...) Ao contrário da

crueldade inspirada na rivalidade ameaçadora, real ou imaginária, a indiferença

anula quase totalmente o outro em sua humanidade.” (1999:70/71).

Vivendo num dos momentos de crise aguda do sistema capitalista, em que

as relações sociais estavam dilaceradas pelo regime totalitário nazista, que produziu

experiências perpassadas por medo e indiferença, Benjamin (1994) denunciava de

forma contundente o paradoxo do desenvolvimento capitalista - a riqueza produzida

por esta sociedade se faz acompanhada da pobreza de nossas experiências.

Para ele, na sociedade capitalista, a experiência (erfahrung) que comporta as

diferentes dimensões da vida dos homens numa perspectiva histórica - a experiência

genuína - deu lugar à vivência ou à experiência vivida (erlebnis), constituída de

isolamento e, portanto, da impossibilidade de criar experiências transmissíveis.

Ao marcar a distinção erfahrung/erlebnis, entendemos que Benjamin reforçava

o paradoxo assinalado - o mito de que o desenvolvimento técnico estaria

automaticamente articulado com a melhoria das condições da vida social e da

liberdade dos homens – através da sua própria experiência de vida, estando

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(...) convencido de que, sem uma interrupção revolucionária do progresso técnico tal como ele se dá sob o capitalismo, a existência mesma da humanidade está em perigo. Além disso, inclina-se cada vez mais a pensar que o “progresso” capitalista/industrial produziu um grau considerável de “regresso” social, fazendo da vida humana moderna exatamente o contrário do paraíso perdido, a saber: um inferno. (LÖWY: 1989: 97).24

Compartilhamos com Löwy (1989), quando ressalta que o pensamento de

Benjamin sobre a modernidade não se restringe à conjuntura pré - segunda guerra

mundial, mas é uma “reflexão fundamental sobre a modernidade, cujas raízes se

encontram nos seus primeiros escritos e cujo alcance é bem mais vasto e

significativo que um comentário sobre a atualidade política.” (idem, ibdem, p. 98).

A crítica radical de Benjamin à cultura ocidental pressupõe, de nossa parte, a

compreensão de que nesta cultura o empobrecimento progressivo da experiência

humana é intrínseco ao modo como na sociedade capitalista os acontecimentos são

vivenciados: a defasagem entre a velocidade das mudanças e a faculdade humana

de digerir essas mudanças; um afastamento contínuo entre a dimensão individual e a

coletiva e a ampliação da fragmentação cultural, conseqüência da crescente divisão

técnica e social do trabalho e da separação entre as classes sociais.

Ainda nesta direção, nos alerta para a importância da idéia de “destruição” nas

tensões próprias dos processos históricos “... como condição de possibilidade da

experiência (erfahrung) no sentido forte, filosófico, de uma experiência da verdade”.

(BENJAMIN, A e OSBORNE, P: 1997: 12).25 Desse modo, a verdade apresenta-se

para o filósofo da mesma forma que para o artista: a verdade é tentativa, esforço de

descoberta, mas não é obtida definitivamente, já que o conhecimento precisa da

24

“Em ‘Zentralpark’(1938), acha-se esta passagem extraordinária, carregada da energia do desespero: ‘É preciso fundar o conceito de progresso sobre a idéia de catástrofe. Que as coisas continuem ‘desse jeito’, eis a catástrofe [...]. O pensamento de Strindberg: o inferno não é de maneira alguma o que nos espera – mas esta vida aqui’.” In: LÖWY, Michael. Redenção e Utopia: o judaísmo libertário na Europa central: um estudo de afinidade eletiva. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p.97. 25

“Para Benjamin, “destruição” sempre significou a destruição de alguma forma falsa ou enganosa de experiência como condição produtiva para a construção de uma nova relação com o objeto.” Assim, por exemplo, “(...) considera que a fotografia destrói a aura do objeto, abrindo a possibilidade de um conhecimento radicalmente novo ( o inconsciente óptico). Na obra do próprio Benjamin, a montagem destrói a continuidade da narrativa como condição para uma nova construção da história; enquanto isso, o tempo do agora destrói a experiência da história como progresso, substituindo-a pelo par apocalíptico da catástrofe e da redenção. (...)” In: BENJAMIN, A e OSBORNE, P.: 1997: 12.

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incompletude para não asfixiar o pensamento. É sempre busca e encontro,

mantendo o desejo e o mistério da criação humana. (Muricy, 1998).

A partir deste pensamento, percebemos nossas relações sociais sofrendo um

esvaziamento do valor das experiências coletivas (histórica/política) – que

engendram práticas constituintes dos sentidos que os sujeitos produzem no seu

processo de existência - dando lugar a relações efêmeras, fugidias, que reforçam o

isolamento dos sujeitos sociais neste processo.

Esse esvaziamento tem conexões com o momento histórico atual,

caracterizado por uma democracia que se por um lado, amplia o espaço das

liberdades individuais - ainda que para uma minoria - por outro, aumenta a

impotência coletiva, constituindo-se, segundo Saramago26, numa democracia que

“está seqüestrada, condicionada e amputada”. Uma democracia que vem sendo

constrangida por diferentes práticas políticas, econômicas e sociais e que em nome

da liberdade e segurança dos cidadãos, vai conformando preponderantemente,

indivíduos subalternos, amedrontados, cínicos e céticos.

Neste embate entre constrangimento e ampliação das práticas democráticas,

temos observado um aumento de políticas de segurança, por exemplo, que aplicam

e alargam medidas características de regimes totalitários27, com o consentimento de

grande parte da sociedade. Assim é que temos: as ações da polícia entrando nas

favelas e atirando pra qualquer lado, o extermínio de pessoas que por ventura

estejam “no lugar errado, na hora errada”, a situação calamitosa dos presídios no

Brasil, enfim, ações arbitrárias que espalham o medo e a insegurança em nome da

segurança. Como produzir ações coletivas que possam se contrapor a

preponderância do arbítrio e da indiferença?

26 Fala recolhida em entrevista televisiva durante o Fórum Social Mundial, em janeiro de 2005. 27

“(...) O totalitarismo moderno pode ser definido (...) como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político. Desde então, a criação voluntária de um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos.” In: AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. (Estado de Sítio).

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“A tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção” no qual

vivemos é a regra. Precisamos chegar a um conceito de história que dê conta disso.

Então surgirá diante de nós nossa tarefa, a de instaurar o real estado de exceção;

(...)”. (BENJAMIN, tese 8, 1994: 226). Entendemos que Benjamin desloca a

concepção usual do que seja “estado de exceção” ao mostrar que a violência e a

opressão são características intrínsecas do sistema capitalista.

Ao nos convocar a “instaurar o real estado de exceção”, nos convida a

“escovar a história a contrapelo”, a desmascarar a opressão, a barbárie, a violência

social, potencializando os sujeitos sociais na luta contra o arbítrio e na produção de

sociedades menos opressoras e desiguais, que possibilitem o fortalecimento de

práticas democráticas.

Este contexto, associado a um desenvolvimento tecnológico excludente e

baseado numa perspectiva evolucionista de progresso, propiciou o predomínio de

formas de sociabilidade em que os processos de barbárie (as guerras, o fascismo, o

nazismo, os colonialismos, invasões, entre outros) ameaçam permanentemente os

processos democráticos. Na sua construção, as democracias ocidentais instituíram a

esfera pública, política, distinta da esfera privada, possibilitando a formação de um

espaço público onde as divergências, dúvidas e desentendimentos eram debatidos e

negociados.

Com o hiper desenvolvimento das tecnologias eletrônicas, dos meios de

comunicação, em especial da TV e do modelo neoliberal, esta distinção vem sendo

apagada, através do desaparecimento “... entre público e privado, o mercado e a

cultura, o cidadão e o consumidor, o povo e a multidão.” (IANNI, 2000: 153). Desse

modo, a esfera política passa a ser incorporada como mais um produto, e, portanto,

como espetáculo no mundo contemporâneo.28

Esta situação comprime o espaço público, no qual as ações coletivas

poderiam constituir experiências compartilhadas. Ela esvazia a potencialidade da 28

“O que singulariza a grande corporação da mídia é que ela realiza limpidamente a metamorfose da mercadoria em ideologia, do mercado em democracia, do consumismo em cidadania. Realiza limpidamente as principais implicações da indústria cultural, combinando a produção e a reprodução cultural com a produção e reprodução do capital; e operando decisivamente na formação de “mentes” e “corações” em escala global. In: IANNI, Octavio. Enigmas da modernidade-mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

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política enquanto dimensão constituidora das relações humanas, contribuindo para a

sua banalização e tornando tênue a fronteira entre democracia29 e totalitarismo.

Nesta trilha, Ianni (2000) nos adverte que no capitalismo atual as condições de

fazer política foram alteradas radicalmente. Dentre as várias modificações,

destacamos o fenômeno do “príncipe eletrônico”, que segundo ele substitui os

conceitos clássicos de príncipe de Maquiavel e “príncipe moderno” de Gramsci, na

interpretação da organização política da sociedade capitalista neoliberal.

O príncipe eletrônico não é um indivíduo, um personagem político, o

condottiere de Maquiavel, nem o partido político ou a organização de Gramsci. Ele

reúne e personifica líder e partido, além de concretizar e extrapolar o alcance, a

perspicácia e as atividades das duas instituições mencionadas.

(...) O príncipe eletrônico é uma entidade nebulosa e ativa, presente e invisível, predominante e ubíqua, permeando continuamente todos os níveis da sociedade... E (...) expressa principalmente a visão do mundo prevalecente nos blocos de poder predominantes, em escala nacional, regional e mundial, habitualmente articulados. (IANNI, 2000: 148/149).

É importante ressaltar que esta entidade está perpassada por divergências,

incoerências e incertezas, mas também por certezas, acordos e entendimentos,

revelando sua complexidade e heterogeneidade. Podemos observar a

heterogeneidade e a complexidade deste “intelectual coletivo e orgânico”30 dos

poderes dominantes, na competição existente entre os grupos sociais pelos espaços

da mídia e pelas idéias que circulam nos diferentes meios de comunicação,

mostrando a disputa pela hegemonia do discurso midiático.

29 É importante ressaltar que a noção de democracia apresentada neste texto, enfatiza sua elaboração histórica, revelando que interesses e práticas serão definidos a partir da ação dos sujeitos sociais e suas lutas, não sendo, portanto, dadas previamente por uma essência universal. Podemos afirmar então, que o que define uma democracia são as “escolhas” / “caminhos” políticos, sociais, econômicos e culturais – limites e possibilidades – construídos pelos diferentes sujeitos coletivos a partir dos conflitos vividos por uma sociedade num determinado momento histórico. 30

“Em linhas gerais, (...), o modo pelo qual se desenha e movimenta o príncipe eletrônico permite defini-lo como o intelectual orgânico dos grupos, classes ou bloco de poder dominantes, em escala nacional e mundial. (..) [ele] sintetiza a atividade, o descortino e as formulações de várias categorias de intelectuais – jornalistas e sociólogos, locutores e atores, escritores e animadores, âncoras e debatedores, técnicos e engenheiros, psicólogos e publicitários -, todos mobilizando tecnologias eletrônicas, informáticas e cibernéticas como técnicas sociais de alcance local, nacional, regional e mundial.” In: IANNI, Octavio. Enigmas da modernidade-mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

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Temos clareza que, mesmo com uma certa diversidade de publicações,

programas de rádio e televisão, e internet, que exprimem visões mais matizadas dos

diversos grupos sociais, o poder hegemônico dos grupos dominantes procura sufocar

constantemente a pluralidade do pensamento. Isto se dá através de um discurso

sofisticado que aparenta a multiplicidade, mas que se repete, que é recorrente,

indicando a homogeneidade e unicidade dos vários meios, apesar das lutas sociais –

Fóruns, Ongs, Sindicatos, Associações - pela democratização da informação e

inclusão digital. “Não adianta existir liberdade de expressão, se não há diversidade

de pensamento”.31

É nesta direção que Benjamin (1994) nos ajuda a compreender a

importância da política - espaço público politicamente constituído e constituinte;

esfera através da qual homens e mulheres, grupos e classes sociais medeiam

conflitos, carências e interesses - como forma de nos contrapormos à “barbárie”

enquanto possibilidade permanente na estruturação das relações sociais.

A dialética benjaminiana nos propõe pensar a “barbárie” na tensão entre

destruição e criação32, buscando a invenção de espaços públicos que possam re-

significar esta tensão, estimulando as experiências que não se dissociam da

existência – que se contrapõem à indiferença assinalada anteriormente - e

questionam as relações de poder da sociedade e a centralidade que alcançaram as

mídias e tecnologias eletrônicas neste contexto.

Seguindo este rastro é necessário destacar que o poder destas tecnologias

assenta-se principalmente nas imagens veiculadas pela mídia. Elas desempenham o

papel de nos articular ao mundo e vivenciá-lo imaginariamente, uma vez que o

consumo de imagens nos dá uma sensação de pertencimento, mesmo para aqueles

que não consomem efetivamente.33

31

Diálogo do filme Cama de Gato de Alexandre Stockler, Brasil, 2002. 32 “ (...) É o elemento destrutivo que assegura a autenticidade do pensamento dialético. O caráter destrutivo é a consciência do homem histórico”. In BENJAMIN, Andrew e OSBORNE, Peter (orgs). A filosofia de Walter Benjamin: destruição e experiência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p.12. 33 “A imensa oferta de imagens que caracteriza a paisagem da cultura contemporânea costuma ser pensada como se fosse um efeito natural e um tanto sujo da era da comunicação generalizada. (...) O espetáculo não é um transitar ensandecido de conteúdos saídos de emissoras em busca de receptores, mas o novo estágio das relações sociais. As imagens, antes de mensagens, são mercadorias - mercadorias que revelam a própria face do Capital. O capitalismo se converte num

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O homem da rua / Com seu tamborim calado / Já pode esperar sentado / Sua escola não vem não / A sua gente / Está aprendendo humildemente / Um batuque diferente / Que vem lá da televisão... 34

A banalização de um cotidiano perverso, veiculado, constantemente, pela TV,

vulgariza o nosso olhar, nos anestesia, produz sentimentos paradoxais como

indignação, conformismo e passividade, seja por saturação, ou por falta de

esperança. Neste momento, nos recordamos das palavras de Saramago: “... talvez

um dia se chegue a conhecer a Razão porque cegamos, Queres que te diga o que

penso, Diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, cegos que vêem,

cegos que, vendo, não vêem.” 35

Olhar o presente, na perspectiva benjaminiana, significa perceber não só os

projetos que se esfacelam cotidianamente, mas, principalmente, aqueles que

irrompem e instituem ações que fortalecem os sujeitos coletivos em seus embates,

revelando as potencialidades dos movimentos instituintes. Estes movimentos

elaboram estratégias políticas que ao se colocarem na contramão da continuidade,

criam descontinuidades que permitem re-significar a partir da própria “barbárie”.

Nesta direção, citamos o Fórum Social Mundial que tem se constituído num

espaço aberto que proporciona o debate, o diálogo e a interação entre os diferentes

movimentos, intensificando o enfrentamento contra o neoliberalismo e o pensamento

único, abrindo novas frentes e ampliando as resistências. É importante realçar que o

Fórum tem alargado o debate político, que possibilita às entidades (re)pensarem

suas relações com o poder instituído, reforçando as ações coletivas locais que lutam

para construir instrumentos de controle social sobre as políticas públicas.

Estes movimentos exigem, portanto, um olhar capaz de captar o elemento de

“destruição” presente em nossa história, enquanto possibilidade de estancar a

modo de produção de signos - não de coisas. (...) Como negócio, como indústria e como mercado, a representação se converte em fator de exploração do trabalho e do lucro. A representação torna-se processo ingovernável, e isso por uma razão histórica: passa a ser regida pela lógica da economia capitalista (em que tem lugar a anarquia da produção) e não mais pelas intenções que imaginariamente conduziriam a comunicação social. É como modo de produção que o espetáculo pode ser compreendido. É como imagem que o capital se manifesta.” In: Bucci, Eugênio: Muito Além do Espetáculo. Ciclo de Conferências realizado na Maison de France no período de 26/08 a 25/09/03. Rio de Janeiro. 34 Música “A Televisão” (1967) de Chico Buarque. 35 SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

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continuidade de experiências “ilusórias” como condição para criar uma nova relação

social. Esta insurge, concomitantemente, da destruição e (re)elaboração da tradição,

compondo um presente que arranca “a tradição ao conformismo, que quer apoderar-

se dela”36, no instante de perigo.

É importante ressaltar que na concepção de história de Benjamin, tradição

não significa a linearidade da história oficial, mas a sua interrupção. Ao buscar

resgatar no passado, as histórias sufocadas, aquelas que clamam por sua re-

significação num presente que procura a retomada da experiência como forma de

explodir a continuidade da sociedade capitalista, ele institui outros modos de agir e

viver, que possibilitam o aprofundamento e expansão do que seja a experiência

política.

Podemos dizer que o surrealismo foi a experiência cultural decisiva para a

redefinição do político na obra de Benjamin, como um “modo temporal de

experiência: uma orientação para o passado geradora de ação, em contraposição a

uma orientação contemplativa”. Na sua perspectiva, os surrealistas tinham como

tarefa “mobilizar para a revolução as energias da embriaguez”, uma vez que “em

todo ato revolucionário vive um elemento de êxtase”. No entanto, para os surrealistas

isto não é suficiente, pois é preciso descobrir o extático na experiência comum,

“graças a uma ótica dialética que percebe o corriqueiro como impenetrável, o

impenetrável como corriqueiro”. “Desse modo, o êxtase é ao mesmo tempo

secularizado e politizado”. (BENJAMIN e OSBORNE: 1997: 76).

“O surrealismo soltou a energia reprimida presa na obra de arte autônoma, liberando a consciência do “estético” como um domínio para a experiência da verdade, livre para perambular por todo o mundo da experiência cultural. Era essa a “carga secreta” do esteticismo. Foi isso – sua função vanguardista de combater a divisão conceitual e institucional entre a “arte” e outras práticas culturais, não pela rejeição da arte mas por sua universalização – que implantou o surrealismo como a base para a transposição da teoria de Benjamin sobre a obra de arte para o âmbito de uma teoria geral da experiência. (Idem, p.77/78).

36

BENJAMIN, tese 6, 1994, p.224.

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1.2. Histórias de vida, histórias do cineclubismo

Compreendemos que as experiências, por se inscreverem na história das

sociedades, estão inseridas numa continuidade/descontinuidade, onde se por um

lado, temos as estruturas sociais instituídas, por outro lado, temos o que se institui -

o que se (re)estrutura. Na tensão entre instituído e instituinte, surgem experiências

que vão se contrapondo ao esvaziamento das relações entre os sujeitos, que

colaboram para a constituição de processos sociais resultantes de experiências que

se desdobram, se alongam, se intercambiam. Experiências mais comprometidas com

o devir humano - experiências instituintes.

Eu acho que foi uma coisa que a gente encontrou, um espaço naquele momento, numa repressão tal que ninguém podia falar nada. O cineclube foi uma válvula, um meio da gente penetrar na política, da gente fazer algum tipo de trabalho, entendeu? Porque não havia espaço nenhum. E também pela questão da própria... ou seja, do cinema em si, o que ele tenta passar pras pessoas. Ali, quer dizer, na verdade eles não viam esse [o cineclube], eles que eu falo é a repressão.(...) como forma de política. (...) É como eu falei, não ficava apenas no filme, pois como a gente fazia debates, essas discussões com certeza... as pessoas que a gente teve assim... muito perto da gente, vimos que elas enriqueceram, elas ficaram grande em termos de argumentos, em termo de posição, em termo de conhecimento de mundo... eles passaram a ter uma visão diferente, eu não tenho a menor dúvida. (Claudia) Olha... o cineclube e o partido, indivisivelmente falando, naquele momento, foram fundamentais na minha vida. Foram não, são. Eu até hoje trabalho com movimento social, não é a toa né? Eu tinha uma paixão enorme por cinema, mas com o cineclube... eu pela primeira vez, eu tive uma profunda experiência de convívio democrático adulto. (...) Então ali as questões eram discutidas e você é... e como nós também éramos amigos... Isso é fundamental para a democracia, que você também tenha um entendimento interpessoal interessante, razoável, você não bate em ninguém, você não quer vencer todas as discussões. Se teu amigo ficou zangado porque você escolheu outro filme, então você “desescolhe” o filme que vai passar. (Dudu) (...) No movimento cineclubista eu encontrei minha turma. (...) interlocutores para meus anseios... E aí, vendo filme, e isso numa época de formação; entre os 15 e 17, né? Isso foi muito enriquecedor. Fui definindo coisas na minha vida, amadurecendo, tendo um entendimento melhor do que é política, no sentido mais amplo da palavra, além da política partidária, uma coisa mais ampla. Passa pelas relações entre as pessoas, dentro de casa e se estende a outros níveis: relação de trabalho, com o vizinho, e a partidária, também. Essa percepção foi ali, naquele momento e o entendimento do que é arte; enfim foi muito rico nesse sentido. (Newmar)

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Castoriadis (2000) salienta que o fazer humano compreende,

fundamentalmente, o “imaginário radical”, isto é, a capacidade criadora que os seres

humanos têm de inventar o mundo e se reinventar, para além das determinações

biológicas; capacidade de produzir rupturas e “criar” significações, atravessadas

pelas coerções do real e do racional, tocadas pelo simbolismo historicamente

constituído. Neste processo de socialização, os indivíduos vão construindo e

internalizando as “significações imaginárias sociais”, elaborando sem cessar,

sentidos para o organização da vida em sociedade.

As sociedades se organizam criando suas significações e suas

instituições. Estas assinalam a capacidade que o “coletivo anônimo” - o imaginário

social constituinte - tem para elaborar idéias, costumes, linguagens, leis, etc.,

expressando seu sentido social-histórico, conforme nos diz o autor:

O social histórico é o coletivo anônimo, o humano-impessoal que preenche toda formação social dada, mas também a engloba, que insere cada sociedade entre as outras e as inscreve todas numa continuidade, onde de uma certa maneira estão presentes os que não existem mais, os que estão alhures e mesmo os que estão por nascer. É por um lado, estruturas dadas, instituições e obras ‘materializadas’, sejam elas materiais ou não; e por outro lado, o que estrutura, institui, materializa. Em uma palavra, é a união e a tensão da sociedade instituinte e da sociedade instituída, da história feita e da história se fazendo. (Idem, p.131)

Uma vez estabelecidas as instituições, passamos a conviver com a

tendência a sua rigidez e fixidez, formando sujeitos históricos reprodutores das

significações sociais instituídas, indicando uma situação de heteronomia. Nas

sociedades heterônomas, há uma ocultação da sua capacidade de auto-criação que

é imputada a uma fonte exterior (heróis, ancestrais, deuses, Deus, leis do mercado,

leis da História). “Quase em toda parte, as sociedades praticamente sempre viveram

na heteronomia instituída” 37, mas também na possibilidade de romper com as forças

exteriores que atravessam as significações imaginárias sociais, criando condições de

autonomia. Assim ocorreu com a criação da filosofia e da democracia na Grécia

Antiga que, ao questionar o instituído e as representações aceitas, explicitou a auto-

37 Idem, p. 187.

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criação da organização social e a capacidade de alteração das suas instituições, a

partir de experiências coletivas que refletiram e deliberaram ações.

Uma sociedade autônoma constitui-se, então, na tensão entre o que se

elaborou historicamente e o que se cria cotidianamente, originando movimentos

instituintes. Estes buscam a dissolução de dicotomias que impeçam o surgimento de

uma esfera pública, onde os sujeitos sociais exerçam sua autonomia individual e

coletiva, deliberem numa relação de igualdade e onde as decisões políticas possam

ser constantemente questionadas e reavaliadas, uma vez que o conflito e o poder

estarão sempre presentes na reinvenção permanente da sociedade.38

Entendemos que autonomia implica um processo de ruptura com as raízes

históricas do poder dominante, ensejando práticas políticas que potencializem ações

que busquem o diálogo e a emancipação. Autonomia, na sua pluralidade é, portanto,

uma construção coletiva. Como tal, não está pronta, acabada, depende de ações

conjuntas, em que os indivíduos não se sintam apenas parte da sociedade, mas que

a própria sociedade seja sentida neles, conferindo-lhes um processo de “autoria” em

que sejam capazes de construir e escrever a sua própria história. Em outras

palavras, é a capacidade de leitura de mundo, na perspectiva da construção de

novas relações e a capacidade de romper com estruturas sedimentadas que

enquadram, insensibilizam e imobilizam os sujeitos. A dificuldade para mudar não se

encontra somente nas grandes decisões, mas na nossa prática cotidiana,

acomodada, pesada, ferina e insidiosa de pequenos gestos39, conforme o trecho da

música Cotidiano de Chico Buarque nos relembra:

Todo dia ela faz tudo sempre igual / Me sacode às seis horas da manhã / Me sorri um sorriso pontual / E me beija com a boca de hortelã / (...) / Todo o dia eu só penso em poder parar / Meio-dia eu só penso em dizer

38 Cremos ser fundamental explicitar que “Enquanto instituinte e enquanto instituída, a sociedade é intrinsecamente história - ou seja, auto-alteração. A sociedade instituída não se opõe à sociedade instituinte como um produto morto a uma atividade que o originou; ela representa a fixidez/estabilidade relativa e transitória das formas-figuras instituídas em e pelas quais somente o imaginário radical pode ser e se fazer ser como social-histórico. (...)”. Ibdem, p.416. 39 MATELA, Rose Clair P. e SERRA, Margarida de Andrade. “As Múltiplas Vozes nos 500 anos de Brasil e o eco de uma voz.” (2000: 06)

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não / Depois penso na vida para levar / E me calo com a boca de feijão... 40

Alongando nosso olhar, percebemos, hoje, que as experiências cineclubistas

revelaram que os movimentos de resistência podem ultrapassar a simples reação e

oposição a um tempo determinado, gerando, portanto, um processo instituinte. A

criação de novas práticas culturais e políticas, que foram se imiscuindo, fraturando

processos instituídos, demonstraram a potencialidade de se elaborar outras formas

de agir e viver, mesmo sob forte repressão política.

Eu acho que o cineclube entra nesse momento como uma forma das pessoas fazerem alguma coisa, não só pelo gosto do cinema em si. Porque no fundo, a ditadura era muito forte, poderosa, mas não era onipresente, então sempre existia uma maneira de escapar da ditadura. As Atléticas nas universidades eram uma maneira e os cineclubes, fora das universidades, ou até dentro delas eram uma outra forma de escapar. Então talvez hoje aquela experiência que foi o movimento do cineclube não vingaria com a mesma ênfase. E é uma pena que a gente não tenha, se é que não tem, essa história catalogada, registrada, como também acho uma pena que o morro do Catumbi, não tenha. Eu estou aqui falando de um trabalho, mas tiveram outros do nosso grupo e de outros. (Ubiratan)

O cineclubismo apresenta, então, indícios de um movimento instituinte ao

deixar claro seu caráter de resistência ao instituído, uma vez que possibilitou aos

seus protagonistas criarem um espaço coletivo de discussão e produção de um

saber mais plural. Saber este que se ao contrapor ao oficial, ao saber difundido pelas

instituições dominantes, não sem contradições e ambivalências, pode fortalecer os

sujeitos envolvidos na luta por uma sociedade mais justa e solidária, tal com nos

relata uma das narradoras:

O cineclubismo favoreceu um espaço para discutirmos assuntos ligados ao cotidiano, à nossa proposta de vida, aos nossos anseios em relação ao momento sócio-político. Esses momentos foram significativos. Tínhamos um tempo para discutirmos nossas idéias, nossos projetos. Hoje, não temos espaço para discutirmos nada . Não trocamos mais idéias... O tempo não deixa... Tudo é mais ou menos assim: - Olá, tudo bem? - Tudo. Sabe, eu passei um filme ótimo para os alunos. - É mesmo! Sobre o quê? - O tema é maravilhoso. Fala sobre..... - Ah!, desculpe, depois a gente se fala, tenho que ir agora! (Claudia)

40 Música “Cotidiano” (1971) de Chico Buarque.

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46

Neste sentido, resgatamos as disputas de memórias e de poder presentes

no movimento cineclubista, trazendo à insurgência, através da história de vida dos

diferentes sujeitos, movimentos culturais que não submergiram na ditadura, mas

preservaram-se ocultos como forma de resistência ativa, conforme nos diz Lídia:

Inscrevi o CASA na federação de cineclubes e depois o Gravatá também. Isso deve ter sido lá pelo fim dos 70 e início dos 80. O movimento cineclubista recebia, se bem me lembro,um contingente de gente mais jovem, que substituía os pioneiros do Cinema Novo e do CPC, desarticulado pela ditadura. Mas ainda havia remanescentes da ideologia do CPC dentro do movimento e era a clara sua disputa com outras tendências de esquerda. De um modo geral, havia uma onda mais pragmática, não tão atrelada à filiação de organizações, até porque o momento era outro. Mas a resistência à ditadura era clara em todos.

Movimentos que apesar de manterem suas pronúncias camufladas, andaram

na contra-mão da ordem ditatorial, produzindo novas táticas de enfrentamento,

tecendo redes que escaparam das armadilhas silenciadoras de uma história oficial e

ficaram presentes na memória daqueles que experimentaram vivê-las.

Continuando com Benjamin (1994), desejamos constituir “uma experiência

com o passado”, voltando nossas atenções para as memórias e narrativas. Estas ao

romperem com o continuísmo da história, permitem o afloramento de outras histórias,

não escritas nos livros, nem contadas pela cultura dominante - “A verdadeira imagem

do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que

relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido”. (tese 5, p. 224)

Na nossa perspectiva, parece-nos que o autor ao comentar o quadro Ângelus

Novus de Klee 41, indica a potência da memória na construção de tempos

compartilhados, ao ser capaz de se contrapor à banalização de situações

catastróficas produzidas por uma história que traça um futuro desprovido da criação

ética do presente. Além disso, ele ressalta o caráter problemático da memória

coletiva, revelado pelas disputas, conflitos e solidariedades que subjazem na

elaboração da mesma. Faz-se necessário buscar no passado as tragédias e ruínas,

re-significando-as, para poder articular presentes/futuros que se coloquem na

contramão da banalização da vida.

41 BENJAMIN, tese 9,1994, p. 226

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Julgamos importante sublinhar que o “anjo da história”42 olha para trás,

primeiro porque o que deixa rastros, mesmo imperceptíveis, é o passado. Ele está

presente materialmente em nossa vida, mas para enxergá-lo necessitamos recuperá-

lo. Segundo, porque o progresso por si só não é uma tendência de aproximação a

um futuro melhor; o tempo como algo homogêneo que avança inexoravelmente não

existe. Terceiro, porque não é possível enfrentar o capitalismo, se o entendemos

como uma etapa histórica necessária ao desenvolvimento do progresso técnico.

Olhar para trás é uma exigência para resgatar a tradição das mãos da história oficial,

porque as lutas se fazem pelos mortos e vencidos das gerações anteriores, e não

por promessas de futuros prontos e acabados. (Gandler, 2006).

Assim, o processo contínuo de reconstrução das experiências coletivas

envolve contendas e ambivalências entre uma memória nacional e homogeneizadora

dominante e as memórias subterrâneas, aquelas que foram silenciadas e excluídas,

mas que não tiveram suas palavras caladas, prosseguindo seu trabalho de

subversão no silêncio, insurgindo-se nos “momentos de perigo”.

Para ilustrar este processo, pensamos no filme “Uma cidade sem passado”43,

que narra a história de uma estudante (Sonia) numa pequena cidade da Alemanha:

sua trajetória estudantil aos poucos vai se imbricando com a história “oficial” de sua

cidade natal, isto é, destaca sua trajetória pessoal, escolar e familiar, mostrando que

essas dimensões coletivas e individuais não são dicotomizadas em nossas vidas.

“O momento do perigo”, “o relampejo de uma reminiscência”44 surge num

trabalho de escola proposto a Sonia: “Minha cidade natal no III Reich”. Por que um

“momento de perigo”? Por entendermos que foi a partir daí, que Sonia descobriu as

“tramas” da memória e seus usos políticos na construção da história oficial de sua

cidade natal.

42

Idem, ibdem. 43

Título em português do filme Das Schreckliche Mädchen do diretor Michael Verhoeven, 1990. Os filmes neste trabalho “saltaram” de nossa memória, no momento em que se fizeram presentes pela necessidade de ilustrar situações suscitadas em nossa tese. Não obedecem, portanto, a uma cronologia, nos remetendo a Benjamin “Citações em meu trabalho são como salteadores no caminho, que irrompem armados e roubam ao passeante a convicção”. (1995: 61) 44 BENJAMIN, tese 9, 1994, p.226.

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Todos se perguntavam: para que remexer no passado, já que se sabia que a

cidade tinha sido um baluarte na luta contra o nazismo? E Sonia respondia: -

justamente para trazer a tona nossa história, celebrar os “heróis” da resistência -

acreditando, até então, na memória como exaltação e reforço da história oficial.

Entretanto, qual não foi a surpresa de Sonia quando inicia sua investigação

para a realização de seu trabalho? O silêncio. O medo. Reticências...

O que seria um trabalho escolar monográfico, passa a ser, para Sonia, uma

questão de vida, uma necessidade de saber a “verdade” e esta busca foi

despertando nela, perplexidades, desconfortos, medos, surpresas, desafios, raiva e,

por vezes, até alegrias.

Neste percurso casou, teve filhos, ingressou na universidade, se indispôs com

os pais, marido, parentes e amigos, além das autoridades locais. Constantemente,

uma pergunta rondava sua cabeça: Devo continuar? Por que? E, entre descobertas

dolorosas e cumplicidades, continuou sua busca pelo passado oculto de sua cidade.

No auge de suas tristes descobertas: sua cidade fora mais “colaboracionista”

do que “resistente” e, portanto, de que houve envolvimento de grande parte das

autoridades locais e de pessoas próximas no governo do III Reich, Sonia novamente

se pergunta: devo continuar? Por que?

E continuava, porque não podia ou não conseguia mais parar, estava

entranhado nela o desejo de saber, de entender, apesar das perseguições e

violências que ela e seus parentes sofriam. O marido não resistiu e se foi. Seus pais

ficaram. Outros permaneceram para lutar, como sua avó.

A “ousadia” de uma jovem ao remexer num passado de “guerra”, inverteu o

presente, liberou amarras, fez ecoar seus gritos de dor, permitindo que “heróis”

revelassem suas faces de algozes e que “réus-produzidos” resgatassem sua

integridade enquanto cidadãos.

Diante de recordações tão dolorosas, os envolvidos no passado nazista

optaram pelo silêncio e pelo terror como formas de impedir que Sonia divulgasse a

história que os implicava como colaboracionistas, recorrendo a velhas práticas de

silenciamento.

Esta atitude associa-se a lembranças proibidas e indica

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A fronteira entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável, separa (....) uma memória coletiva subterrânea da sociedade civil dominada ou de grupos específicos, de uma memória coletiva organizada que resume a imagem que uma sociedade majoritária ou o Estado desejam passar e impor”. (Pollack, 1989, nº3, p.09).

Assim, no momento em que os colaboracionistas não podem mais manter a

estratégia de silêncio e terror, após Sonia ter denunciado esta prática à mídia e

recorrido incessantemente à justiça pela liberação de documentos - como forma de

resistência às tentativas de silenciamento - passa, por instantes, de “vilã” a “heroína”.

Os colaboracionistas, então, numa prática política bastante comum, crucificam

um dos seus, aquele que se tornou mais exposto no processo de pesquisa,

individualizando a questão, ao mesmo tempo que buscou cooptar Sonia, tornando-a

figura pública, condecorada pela cidade.

Entre perplexa e contente, Sonia num primeiro momento não se deu conta

desta nova estratégia para enquadrá-la ou silenciá-la. No entanto, no dia da

celebração, quando sua estátua seria colocada junto com outras figuras públicas da

cidade, percebeu toda a manobra e se recusou a aderir ao projeto político

dominante. A solidão instalou-se novamente em seu corpo. Devo continuar? Por

que?

Sonia continuou. Talvez por perceber que o passado só é capturado no

momento em que é distinguido. Talvez, agora, tenha se dado conta que sua

existência presente não escapa mais do passado nem do porvir...

Compreendemos, desse modo, que a memória sofre um processo de

“enquadramento” na sua construção, isto é, para que ela se torne dominante é

necessário que negocie constantemente o(s) passado(s) entre memórias

predominantes e subterrâneas, residindo aí seus limites para a elaboração de uma

história com referenciais comuns.

Temos clareza que muitos podem ser os usos da memória e mais variadas,

ainda, suas apropriações políticas. Nossa escolha, porém, encontra-se na “zona do

despertar” de Benjamin, onde o exercício da “rememoração” pode proporcionar uma

relação viva com o passado, uma via de resgate libertador daquilo que um dia

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aconteceu. Esta é a dialética proposta por Benjamin para mobilizar homens e

mulheres numa ação transformadora de suas realidades. (KONDER, 1999)

A rememoração como uma relação viva com o passado pressupõe

envolvimento, tem algo de nós, que nos diz respeito, na medida em que o passado

revela as condições de futuro perdidas e que teriam (ou têm) sentido para nós. Daí

Benjamin acentuar a relevância desse “futuro do pretérito” na rememoração histórica.

O tempo perdido de Benjamin não é o passado, mas o futuro. A grande dificuldade, para o historiador, está em farejar os sonhos, as aspirações, os movimentos subjetivos voltados para o porvir que não chegaram a se expressar em realidades objetivas duradouras, embora estivessem prenhes de significação histórica. (Konder, 1999: 67)

A memória, então, acolhe os projetos e sonhos que não foram concretizados

em outras épocas. Estes sonhos, imagens do passado - “prenhes de significação

histórica” - saltam, desprendem-se do contínuo da história, quando estabelecem

correspondências com o presente, não pela similaridade, mas pela dissimilaridade,

uma vez que foi reconhecida pela memória, como imagens do que poderia ter

acontecido.

Entretanto, devemos estar atentos com a busca obsessiva do(s) passado(s)

promovida pela cultura ocidental contemporânea. Esta se faz através de uma série

de práticas não só acadêmicas, literárias e artísticas, mas também no campo das

administrações públicas, como as organizações e as revitalizações de museus e

centros históricos, além dos variados produtos comerciais desenvolvidos pela

indústria cultural (canal de TV voltado para a história e vários documentários). A que

desejos do presente se vinculam estes passados?

Esta questão, parece-nos articular-se também com a complexidade das

práticas de memória que vão se instituindo nos diferentes espaços da sociedade,

institucionais ou não, e com a fragmentação decorrente que estas práticas

constroem. Além disso, o papel hegemônico da mídia na produção de memórias e,

portanto, histórias, nos coloca diante da seguinte pergunta: é possível construirmos

uma memória coletiva que seja capaz de nos dar referenciais compartilhados, sem

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apagar as especificidades? Como escapar da padronização e espetacularização

empreendida pela mídia?

Entendemos, portanto, que as “teses sobre o conceito de história” anunciam

uma crítica radical por parte de Benjamin, da qual compartilhamos - a recusa ao

historicismo, que concebe a história como sendo uma sucessão causal e linear dos

acontecimentos, uma história única e verdadeira. Nesta concepção, a história é

encarada como reconstrução do acontecido, reforçando mecanismos de identificação

e empatia com o vencedor.

Benjamin (1994) anuncia que

(...) o tempo histórico permanece ‘não acabado’, ‘não preenchido’, deixando sempre lugar para um conhecimento ainda inconsciente do passado, para um ‘encaixe’ com o presente. Um conhecimento que vê a tradição como descontinuidade do passado, como Perplexidade fundamental: a história dos oprimidos é uma descontinuidade. A tarefa do historiador é apoderar-se da tradição dos oprimidos. (p. 227)

Esta postura de Benjamin revela que a história é produzida por homens

situados historicamente, que a produção do conhecimento é social, e que os homens

ao fazerem sua história e, portanto, ao produzirem conhecimento, estão envolvidos

com ele a partir do seu presente, a partir da sua posição social em relação com os

“outros”. É pensar a história como tempo de possibilidades; pensar as memórias e as

experiências vividas como expressões humanas capazes de desvelar o que não é

contado nem escrito na versão oficial dos livros.

O pensamento de Ricoeur também nos lembra, fundamentalmente, que a história é sempre, ao mesmo tempo narrativa (as histórias inumeráveis que a compõem, Erzählung) e processo real, seqüência das ações humanas em particular (Geschichte), que a história como disciplina remete sempre às dimensões humanas da ação e da linguagem, e, particularmente da narração. (GAGNEBIN, 1981, p. 23)

Reconhecer a diversidade e a provisoriedade implica não cair num relativismo,

mas compreender que a produção do conhecimento vive o desafio dialético na

tensão entre singular e universal, perpassado por relações de poder e pela

necessidade da construção ética como parâmetro para o pluralismo e a igualdade.

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Significa reconhecer ainda, que nesta concepção de história aberta, as ações

humanas emancipadoras não podem ser determinadas previamente. Elas derivam

de uma “aposta”, do comprometimento dos sujeitos coletivos em um projeto, que

envolve tanto a esperança de sua realização, como a possibilidade do seu fracasso,

mas que acima de tudo demonstra que a imprevisibilidade assegura a abertura da

história, “... pois, nos limites dados pelas condições objetivas, o futuro será o que

dele fizermos.” (LÖWY, 2005: 157)45

Sem dúvida, trabalhar com horizontes de possibilidades, sob o ponto de vista

político, implica a percepção de que cada momento histórico traz diferentes

alternativas, descerrando uma “multiplicidade de futuros possíveis”46. Estes

evidenciam que a abertura do passado e do futuro está estreitamente articulada pela

rememoração, num presente que é construção concomitante de passados e futuros -

“cada época é origem, na perspectiva do historiador materialista.” (Muricy, 1998: 232)

Quando falamos em diferentes alternativas lembramos de alguns

acontecimentos evocados por nossa memória no que diz respeito a essa articulação

na abertura do passado e do futuro: a violenta repressão do governo nos episódios

da Revolta da Vacina e da Chibata, no início do século no Rio de Janeiro não era

inevitável; o golpe militar de 1964 no Brasil e as outras ditaduras latino-americanas,

no mesmo período, não eram inevitáveis; quase meio século de bloqueio econômico

a Cuba, também não. Mais recentemente, a invasão do Afeganistão e do Iraque

capitaneada pelos Estados Unidos e o fato de a base de Guantânamo em Cuba ter

se transformado em uma nova modalidade de “campo de concentração”, também

não são inevitáveis. “O futuro pode reabrir dossiês históricos ‘fechados’, ‘reabilitar’

vítimas caluniadas, reatualizar esperanças e aspirações vencidas...” (Lowy, 2005:

158)

Como podemos instigar a abertura desses futuros?

45 “A imprevisibilidade não é a falta de previsão (foresight), e nenhuma administração de engenharia dos negócios humanos jamais poderia eliminá-la... Somente um condicionamento total, ou seja, a abolição da ação, poderia esperar vencer a imprevisibilidade.” ( Hannah Arendt). Citado em LOWY, M. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 151. 46 Idem, p.158.

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Pensar a história dialeticamente segundo Benjamin é instaurar uma origem,

não no seu sentido originário, mas perceber que cada época apresenta-se como

totalmente nova e inventa um passado também novo, pois “O materialista histórico

não pode renunciar ao conceito de um presente que não é transição, mas pára no

tempo e se imobiliza. Porque esse conceito define exatamente aquele presente em

que ele mesmo escreve a história.” (tese 16, 1994: 230)

Notamos que a dialética proposta por Benjamin na relação passado/presente

dissolve o aspecto temporal destes termos e propõe para aquela relação um

encontro, no momento de um “relâmpago”, do “perigo”.

O domínio onde tal encontro é possível é o da linguagem: é com as palavras que se constroem as imagens dialéticas. (...) O que torna possível ler uma realidade histórica através dessas imagens é a visibilidade do texto alcançada em uma época determinada no momento crítico, na hora perigosa de um presente ameaçado. (Muricy, 1998: 226/227)

Ver a história sob este prisma é descobrir a abertura de passados/presentes e

futuros, sua permanente elaboração, seu inacabamento e o engajamento por parte

dos sujeitos comprometidos com a luta dos opressores e daqueles que a combatem

na construção de um futuro incerto. Futuro pleno de significação histórica, visto que

“A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio,

mas um tempo saturado de ‘agoras’”. (BENJAMIN, tese14, 1994: 22)

Um tempo “saturado” de histórias, pois:

“Ouvindo as narrativas de um sábio, um homem notou que às vezes

elas eram interpretadas de um jeito, às vezes de outro. Para que contar

histórias, perguntou o homem, se a elas eram dados significados diferentes?

- Mas isso é o que dá valor a elas! – respondeu o narrador. – De que

valeria uma xícara da qual você só pudesse beber apenas água e leite? Ou

um prato de onde você só pudesse comer carne e nunca lentilhas? E lembre-

se: tanto a xícara como o prato têm capacidade limitada. O que podemos

dizer então da linguagem, que nos proporciona uma dieta infinitamente mais

abundante, rica e variada?

Por um momento ele ficou em silêncio. Depois continuou, mais

gentilmente:

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- A verdadeira questão não é: “Qual o sentido dessa história? De

quantas formas posso compreendê-la? Ela pode limitar-se a um só

significado?” A questão é: “Essa pessoa a quem estou me dirigindo pode

aproveitar o que vou lhe contar?” 47

47

Citado em Carrière, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995, p.207.

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CAPÍTULO II

Compartilhando Percursos: Cultura e Educação

(...) O filme quis dizer “eu sou o samba”/ A voz do morro rasgou a tela do cinema/ E começaram a se configurar/ Visões das coisas grandes e pequenas/ Que nos formaram e estão a nos formar/ Todas e muitas: Deus e o Diabo, Vidas Secas, Os Fuzis,/ Os Cafajestes, O Padre e a Moça, A Grande Feira, O Desafio/ Outras conversas, outras conversas sobre os jeitos do Brasil/ Outras conversas sobre os jeitos do Brasil(...)

(Gilberto Gil – Caetano Veloso) 48

2.1 Tempos entrecruzados

Como entender a vitalidade da experiência cineclubista na década de 70

expressa nas narrativas dos sujeitos da pesquisa num momento em que “a nossa

pátria mãe... era subtraída em tenebrosas transações”?49

Compreendemos junto com outros autores que essa não foi uma “década

perdida”, um “vazio cultural”, como ficou marcada no senso comum. A vitalidade

expressa nas narrativas corrobora nosso entendimento de que mesmo em épocas de

repressão, de autoristarismo, os sujeitos coletivos encontram brechas que

possibilitam ações políticas de resistência e afirmação da liberdade.

Naquela hora, a expressão “vazio cultural” tornou-se um quase lugar-comum, servindo para salientar o papel da repressão política e da censura sobre a produção de cultura. Se bem que fossem, de fato, anos de “sufoco”,

48

Música Cinema Novo 49

Referência a Música “Vai Passar” (1970) de Chico Buarque e Francis Hime.

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como se dizia na época, a noção de “vazio cultural” não deixava de conter uma dose de preconceito ou mesmo de desatenção em relação a uma série de manifestações do período. Se a ação da censura fazia-se sentir pesadamente sobre as artes, ainda assim produzia-se – e consumia-se. Ao lado de intelectuais que vinham de anos anteriores, a nova geração, que viria a explodir em passeatas em 1977, já começava a criar suas alternativas culturais. Novos grupos de teatro se haviam formado, filmes alternativos e experimentais estavam sendo feitos, a música popular se renovava e já estava em cena uma nova produção literária, notadamente poética, mas também ficcional.50

Materializando a citação acima, relembramos o Cinema de Rua,

movimento documentarista ocorrido na primeira metade dos anos 70, em São Paulo.

Este movimento rompeu com a idéia de que o documentário procura registrar a

realidade com a menor interferência possível dos cineastas. Assumindo que a

intervenção é inevitável, procuram torná-la positiva e fértil. Distantes da idéia da

neutralidade, desejam “... que esta intervenção faça vir à tona aspectos do real. O

que [ele] filma é esta intervenção, como o real se revela graças a esta intervenção,

que envolve o documentarista na sua relação com o que ele filma.” ( Bernardet,

2005: 303)

Nesta perspectiva, João Batista de Andrade realiza o filme “Migrantes”, no

qual tematiza as condições de vida dos migrantes nordestinos em São Paulo, não a

partir de um olhar que fala a respeito das pessoas, de um “observador neutro”, mas

de um sujeito implicado nas condições de sua produção, propiciando acontecimentos

nos quais os conflitos se manifestam. Assim nos conta Jean-Claude Bernardet

(2005):

(...) a seqüência mais significativa de Migrantes é um diálogo entre um nordestino recém-chegado a São Paulo, instalado com a família debaixo de um viaduto, e um colarinho-branco paulistano. O nordestino expõe a sua situação, a impossibilidade de tratar a terra no Nordeste, a necessidade de um trabalho para sustentar a família. Enquanto o burocrata defende a tese que “São Paulo tem muitos problemas, os migrantes trazem mais, de qualquer modo o baiano não vai resolver o seu problema, devia ter ficado no Nordeste ou pelo menos ir para o interior do estado trabalhar a terra”. Esse diálogo não tinha sido previsto pelo diretor, que começa a seqüência entrevistando ele próprio o nordestino. O burocrata, como outras pessoas, parou para assistir à filmagem e se meteu na conversa. Ao invés de afastá-lo, como faria o documentarista tradicional, o diretor o integrou à filmagem.

50

HOLLANDA, Heloisa Buarque de, GONÇALVES, Marcos Augusto. A ficção da realidade brasileira. In: NOVAES, Adauto. (org.). Anos 70: ainda sob a tempestade. Rio de Janeiro: Aeroplano: Editora Senac Rio, 2005, p.96.

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Há um aproveitamento da situação de filmagem e do que esta situação pode fazer surgir espontaneamente. Esse espontâneo é aproveitado desde que seja revelador das contradições que o documentarista quer expor.(...).(p. 305)51

Este e outros filmes demonstram que nos anos 70 não só o documentário,

mas as manifestações culturais em geral - mesmo num período de repressão que

não contribui para as inovações – germinaram novas expressões. Expressões que

indicaram um outro entendimento “...da sociedade, do outro, do sujeito cineasta, da

inserção do artista na sociedade.” (Bernardet, 2005: 308); expressões que

rechaçaram a “política nacional de cultura”, realçando a multiplicidade da vida

cultural brasileira e revelando que “(...) O autoritarismo não molda a totalidade da

vida social brasileira, nem a nossa vida se limita a uma relação de subjugação ou

oposição a ele.” (Bernardet, 2005: 310).

Vários estudos52 vêm demonstrando a potencialidade das ações de

resistência, em especial, a partir de meados da década de 70, quando a luta

democrática contra a ditadura militar se fez cada vez mais ampla, constituindo um

campo de oposição política ao regime, liderada pelas organizações de esquerda.

Estes trabalhos mostram as diversas formas de criação e produção

realizadas no campo da música, da literatura, do cinema, do teatro; na imprensa

alternativa, nas publicações clandestinas das organizações de esquerda, nos

movimentos sociais, revelando a pluralidade dos movimentos políticos, suas

especificidades e riquezas nesse processo de luta durante os anos 70.

Ao valorizar esta dimensão plural, e, portanto, positiva na instituição de

nossa democracia, não queremos apagar os traços mais desumanos, como a

desigualdade social e o autoritarismo, entre outros, mas reafirmar a potência política

dessas ações na construção de práticas democráticas.

51 Citado em NOVAES, Adauto. Anos 70: ainda sob a tempestade. Rio de Janeiro: Aeroplano: Editora Senac Rio, 2005. 52

REIS, Daniel Aarão, RIDENTI, Marcelo, MOTTA, Rodrigo Patto Sá. (orgs.). O golpe e a ditadura militar: quarenta anos depois ( 1964-2004). Bauru, SP: Edusc, 2004. NOVAES, Adauto. (org.). Anos 70: ainda sob a tempestade. Rio de Janeiro: Aeroplano: Editora Senac Rio, 2005. GASPARI, Elio, HOLLANDA, Heloisa Buarque de, VENTURA, Zuenir. Cultura em trânsito: da repressão à abertura. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2000.

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Nesta direção, entendemos que a construção da democracia em nossa

sociedade, convive ainda, com problemas oriundos de um processo colonizador de

exploração, com base na grande propriedade e mão-de-obra escrava, que impôs

relações de mando e obediência, deixando marcas muito graves de desigualdades e

exclusões, não obstante as diferentes ações que os grupos subalternos criaram e

criam para se libertar.

Esta herança cultural possibilitou a configuração de relações sociais

assentadas em hierarquizações: as diferenças de classe, gênero e raça compõem

uma extensa escala de classificações e divisões que foram colocando os indivíduos

em seus devidos “lugares” sociais.

O ditado “cada macaco no seu galho” explicita uma formação social

autoritária e hierárquica, indicando que ser pobre vai além da questão econômica,

designa uma maneira de ser em que os indivíduos não são vistos como sujeitos

portadores de direitos, vivendo não só uma escassez material, mas cultural e política.

Temos conhecimento de que a construção da democracia faz parte de um

longo processo histórico que vai tornando-a mais ou menos formal, em função das

lutas sociais que transformam o que está declarado simplesmente como um direito,

em direitos reais; a possibilidade da ampliação dos que já existem e a criação de

novos direitos. (CHAUÍ, 2000)

Acreditamos que para construir uma sociedade democrática é preciso

mais do que a democratização do regime político. É necessário democratizar as

relações sociais, o que significa perceber que as práticas culturais estão imbricadas

no processo de exclusão e desigualdade, já que entendemos a cultura como

atribuição de significados embutida em todas as práticas sociais; atribuição esta,

perpassada por conflitos e relações de poder. Nesta direção, a noção de cidadania

adquire contornos que se contrapõem à visão liberal difundida, configurando um

processo de conquistas de direitos das classes subalternizadas que alargam a

relação com o Estado e a sociedade. (DAGNINO, 2000)

A implantação de uma ditadura civil-militar em 1964 está inserida num

processo constante de reatualização da tradição histórica brasileira - autoritarismo,

desigualdades e exclusões – ou seja, a interrupção de experiências democráticas

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através de operações que impedem o avanço da organização autônoma da

sociedade civil. Como nos diz Delgado (2004),

(...) No Brasil de 1964, fatores inerentes aos tempos históricos de longa e curta duração se entrecruzaram, conformando uma crise complexa, que não cabe ser interpretada através de qualquer tipo de esquema teórico preestabelecido, pois cada dinâmica histórica é singular.” (p. 26).53

A conjuntura internacional de “guerra fria”, ao colocar a América Latina na

órbita dos Estados Unidos da América, imprimiu uma política de dominação e

intervenção em todos os países que, pressionados por diferentes movimentos sociais

- que exigiam dos governos uma maior participação política - vinham ampliando as

conquistas sociais, vistas aqui como o caminho para o comunismo. Sabemos

que, nesta conjuntura, a revolução cubana (1959) servia como justificativa para a

manutenção dos privilégios das classes dominantes dos países latino-americanos;

bem como para a intervenção cada vez maior do imperialismo norte-americano no

continente, sob a alegação da defesa da democracia contra o comunismo,

reprimindo os movimentos sociais, comprometidos com a emancipação da classe

trabalhadora, que se fortaleceram desde o final da segunda guerra mundial. Fora do

continente americano, outros movimentos poderiam “ameaçar” a ordem bipolarizada,

como o processo de independência na África (1960), a retomada da guerra do Vietnã

(1960) e a vitória da revolução argelina em 1962.

O golpe 54, que já vinha sendo gestado desde a década de 50, ocorreu

num cenário político bastante conflituado, explicitando a bipolaridade da política

nacional: os militares ligados à Escola Superior de Guerra e setores importantes do

empresariado defendiam que o desenvolvimento econômico do Brasil deveria

processar-se através de uma internacionalização aprofundada da economia nacional,

enquanto que outros setores alinhados com o nacionalismo e o trabalhismo,

53 DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. 1964: temporalidades e interpretações. In: REIS, Daniel Aarão, RIDENTI, Marcelo, MOTTA, Rodrigo Patto Sá. (orgs.). O golpe e a ditadura militar: quarenta anos depois (1964-2004). Bauru, SP: Edusc, 2004. 54 “Faz-se necessário frisar que não se tratou de mera manobra de cúpula, na qual apenas se teriam envolvido círculos políticos e militares dirigentes, resultando na mera substituição de uma camarilha por outra. A campanha pela deposição do presidente da República suscitou um grande movimento de massas e foi, decisivamente, o resultado desse movimento. (...)”. GORENDER, Jacob. In: Teoria e Debate. Revista Trimestral da Fundação Perseu Abramo, ano 17, nº57 (60), março/abril, 2004.

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defendiam um projeto reformista (reformas de base) e nacionalista que ganhava

cada vez mais adeptos. Frisamos que a bipolaridade apontada estava atravessada

por conflitos e contradições no interior dos dois grupos.

Neste contexto em que as contradições políticas, sociais e econômicas se

aprofundavam, o governo João Goulart enfrentava as diferentes demandas de uma

sociedade cindida e que passava a ter uma sociedade civil cada vez mais atuante e

reivindicativa. Para a manutenção da governabilidade, o presidente oscilava, ora

para o atendimento dos segmentos à direita, ora para a esquerda, perdendo neste

movimento apoio dos dois lados, acirrando os conflitos e se isolando cada vez mais.

Na tentativa de romper com o isolamento, aproximou-se dos movimentos

populares, acenando para a reforma agrária e anunciando medidas tais como a do

controle da remessa de lucros para o exterior e a de apoio à indústria nacional

dedicada à fabricação de produtos mais populares, entre outras.

No início de 1964, a reação conservadora veio rápido. O medo da reforma

agrária e vários acontecimentos como o histórico comício de 13 de março na Central

do Brasil, no Rio de Janeiro, a revolta dos marinheiros - que reivindicavam mais

direitos, inclusive o de votar - e o almoço do Presidente da República com os

sargentos no Automóvel Clube do Rio de Janeiro, foram usados por seus opositores

para desestabilizá-lo, infundindo pânico (“o comunismo estava sendo implantado no

Brasil”) e incentivando os conservadores e grande parte da classe média a irem às

ruas pedir a deposição do Presidente.55

Com um discurso bem afinado com a conjuntura da época - guerra fria -

os militares contrários a Jango, articulados com políticos importantes da federação

como Carlos Lacerda, Magalhães Pinto, Adhemar de Barros e empresários,

proprietários rurais e setores da classe média, apoiados pela maioria do clero da

Igreja Católica, se uniram às outras forças retrógradas e conservadoras e depuseram

o Presidente, “proclamando a volta do Brasil à ordem democrática”.

55 “No dia 19 de março, em São Paulo, desenrolou-se uma primeira Marcha da Família com Deus pela Liberdade. As direitas unidas, alarmadas, aparentando decisão, também foram às ruas, cerca de 500 mil pessoas. Outras marchas se seguiram em várias cidades...” In: REIS, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2000, p.30.

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No entanto, o que se viu foi a organização de um regime autoritário e

ditatorial que durou 20 anos, difundiu o terror e impôs uma modernização

conservadora, apesar das resistências permanentes em todos os setores da vida

nacional. A face mais tenebrosa do golpe foi instalar uma continuidade com o

passado conformista, no momento em que a sociedade brasileira participava de

movimentos visando “escovar a história a contrapelo” - se democratizar.

A continuidade constituiu-se

Num tempo / Página infeliz da nossa história / Passagem desbotada na memória / Das nossas novas gerações / Dormia / A nossa pátria mãe tão distraída / Sem perceber que era subtraída / Em tenebrosas transações. 56

O momento do golpe caracteriza-se, então, pela coibição aos movimentos

que se insurgiam contra a ordem dominante: os sindicatos urbanos e rurais, as ligas

camponesas, o movimento estudantil e os movimentos de educação e cultura

popular - movimento de cultura popular (MCP/1960), Campanha “De pé no chão

também se aprende a ler” (1961), Movimento de Educação de Base (MEB/1961) e

Centro Popular de Cultura (CPC/1961) - entre outros.57

As experiências educacionais realizadas por estes movimentos e o triunfo

de Angicos (RN) em 1963 - Paulo Freire e seus colaboradores alfabetizaram em 45

dias 300 camponeses - materializaram uma “educação para a liberdade”. Isto

significou uma alfabetização como criação, uma alfabetização que colocava os

homens como sujeitos de seu processo de aprendizagem, possibilitando superar a

posição “ingênua” de adaptação ao mundo para a posição crítica de inserção no

mundo. Para que isso fosse possível era necessária a articulação entre educação e

democratização da cultura brasileira.

A concepção de liberdade na pedagogia freiriana rechaça desde o início a

sua noção de liberdade formal. “(...) A liberdade é concebida como o modo de ser o

56 Música “Vai passar” (1970) de Chico Buarque de Holanda e Francis Hime. 57VENTORIM, Silvana; PIRES, Marlene de Fátima; OLIVEIRA, Edna de Castro. Paulo Freire; práxis político-pedagógica do educador. Vitória, Espírito Santo: Ed.UFES, 2000.

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destino do Homem, mas por isto mesmo só pode ter sentido na história que os

homens vivem.” (WEFFORT, 2003: 14 e 15)

Entendemos, desse modo, que ao assumirmos uma educação como

afirmação da liberdade, reconhecemos a opressão vivida pelas classes populares e

imediatamente a luta pela sua libertação. Isto pode concretizar uma cidadania efetiva

dos excluídos, para que eles possam deixar de arriscar suas vidas diariamente na

luta pela sobrevivência para tentar tocá-la verdadeiramente, pois “a liberdade meu

filho, é a realidade do fogo do meu rosto quando eu ardo na imensa noite a buscar a

luz que pede guarida nas trevas do meu olhar.” 58

Por isto, nos Círculos de Cultura59, era estimulada a participação dos

educandos, que traziam em suas palavras uma forma da linguagem reelaborar a

realidade fragmentada, re-significando-a. Esse trabalho dos Círculos contribuía para

que os oprimidos buscassem em suas memórias e narrações, em suas experiências

coletivas, uma nova leitura do mundo que concorria para a constituição de sujeitos

históricos e sociais.

Nestes projetos as classes populares despontavam como protagonistas e

não como figurantes, esboçando uma prática política renovadora ao se colocarem na

posição de sujeitos ativos e não de subalternos.

Neste período, cultura e política caminhavam junto nos projetos e ações

empreendidos por intelectuais, jovens estudantes e trabalhadores que tinham

abraçado o ideal de um Brasil nacional e popular, alinhado à esquerda. Nestes

movimentos, havia forte influência do projeto do Partido Comunista, que pregava

alterações na estrutura da sociedade brasileira, através de reformas constitucionais e

graduais. As lideranças acreditavam poder desempenhar o papel de “vanguarda”

junto às classes trabalhadoras, conscientizando-as para que realizassem a

transformação da ordem econômica e social do país, centrando fogo na luta contra o

latifúndio e o capital estrangeiro. 58 Fragmento do poema: “Meu pai, o que é a liberdade?” de Moacyr Félix. 59 “(...) unidade de ensino que substitui a escola, autoritária por estrutura e tradição (...) O coordenador, quase sempre um jovem, sabe que não exerce as funções de “professor” e que o diálogo é condição essencial de sua tarefa, “a de coordenar, jamais influir ou impor”. WEFFORT, Francisco C. Educação e política (reflexões sociológicas sobre uma pedagogia da liberdade). In: Freire, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.

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Ainda nesta paisagem, temos o surgimento de novos valores culturais,

oriundos do desenvolvimento de uma classe média urbana com novos padrões de

consumo, que alterava significativamente o modo de vida das principais cidades

brasileiras. Instalou-se uma onda criativa como resultado da busca de uma

“brasilidade”. Em todos os campos brotavam as mais diversas experiências

artísticas, como a Bossa Nova, os festivais de Música Popular Brasileira, peças

teatrais no estilo “Teatro de Arena”, o Concretismo na poesia e o Cinema Novo que

se contrapunham às manifestações artísticas dominantes.

Nesses movimentos, cultura e política, então, formavam um par

inseparável e a arte ganhava uma dimensão de destaque na luta contra a ordem

estabelecida pela potencialidade de transformação que traz em suas diferentes

expressões e manifestações; pela potencialidade de traçar “... caminhos que se

desdobram em imprevistos”.60

2.2 Tempo, Cinema, Cineclubismo

No que se refere ao Cinema, cabe ressaltar que, neste período, o Cinema

Novo com a estética da fome e o Cinema Marginal com a estética do lixo (1950 /

1970) expressaram os debates mais contundentes da época. A arte cinematográfica

era colocada no âmbito da reflexão e da crítica, produzindo novos estilos que

revigoraram a cultura e contribuíram para revolucionar o Cinema Brasileiro. No início

dos anos 60 do século passado, nosso cinema ganhava uma dimensão “moderna” e

internacional ao juntar-se às experiências do cinema de autor que vinham se

realizando na Europa e América Latina, além de se inserir no debate político da

época em torno das questões do nacional-popular e do realismo.

Em sua variedade de estilos e inspirações, o cinema moderno brasileiro acertou o passo do país com os movimentos de ponta de seu tempo. Foi um produto de cinéfilos, jovens críticos e intelectuais que, ao conduzirem essa atualização estética, alteraram substancialmente o estatuto do cineasta no interior da cultura brasileira, promovendo o diálogo mais fundo com a

60

Frase de Faya Ostroywer, retirada de uma exposição.

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tradição literária e com os movimentos que marcaram a música popular e o teatro naquele momento. (XAVIER, 2001: 18)

Em sintonia com os outros movimentos culturais, o Cinema Novo através

de seus filmes - Vidas Secas (PEREIRA DOS SANTOS, 1963); Macunaíma

(JOAQUIM PEDRO, 1969) e Deus e o Diabo na Terra do Sol (GLAUBER ROCHA,

1964) entre outros - trazia para discussão temas mais politizados, como a questão da

formação social brasileira: nacionalismos e identidades, opressão e libertação,

mostrando uma tradição de rebeldia dos oprimidos, que não sem ambigüidades, se

contrapunha à visão dominante de um povo pacífico e ordeiro.

Ressaltamos que, neste período, o Cinema Novo também assumia uma

postura de crítica ideológica à produção industrial cinematográfica, considerada

comprometida com a cultura burguesa, cultura do colonizador, que produzia

alienação e a reprodução dos valores estéticos da classe dominante. Segundo

Xavier (2001), a busca por uma estética comprometida com a libertação dos

oprimidos, “... se traduziu na ‘estética da fome’, na qual a escassez de recursos

técnicos se transformou em força expressiva e o cineasta encontrou a linguagem em

sintonia com os seus temas.” (p. 57/58)

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Neste contexto, o cinema como a cultura em geral, eram vistos na

perspectiva do engajamento, conscientização e transformação da realidade

desafiadora. Assim, (re)surgiram os cineclubes 61, a maioria nas universidades e

ligados às entidades estudantis. Caracterizaram-se, principalmente, como um espaço

de acesso a filmes de “qualidade”, debate e, eventualmente, de produção. Devemos

destacar que os cineclubes, neste período, priorizavam as discussões políticas

trazidas pelos filmes.

De qualquer maneira, sem dúvida a gente estava fazendo essa atividade na área de cinema pensando que ela serviria para uma conscientização política do povo. Tanto assim que uma boa parte desses filmes eram filmes políticos, eram filmes artisticamente perfeitos, muito bons etcetera e tal, mas tinham um enfoque político e a gente notou que quanto mais enfoque político tivesse o filme mais público ele tinha, porque havia nessa época aqui no Brasil uma sede muito grande de conhecer o que era a esquerda, as

61 Data de 1928 o primeiro cineclube: O Chaplin Club. Reunia jovens pertencentes à burguesia carioca e tinha por objetivo o debate sobre o cinema mudo. Quando surge o cinema falado, deixa de existir.

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posições de esquerda, aquilo era uma espécie de mito e aquilo impressionava muito as pessoas.62

Quando Cosme Alves Neto assumiu a direção do Grupo de Estudos

Cinematográficos da União Metropolitana de Estudantes - CEG da UME - em 1960,

o aspecto político da atividade cineclubista fica claro na programação, no valor dado

ao cinema brasileiro e na responsabilidade em formar um público engajado e

consciente. No entanto, é importante ressaltar que a centralidade nos aspectos

mencionados não engessavam as discussões éticas e estéticas. Havia uma

preocupação em divulgar outras cinematografias, como a européia, a latino-

americana, a japonesa, além do cinema americano, ampliando a formação dos

estudantes.63

Paralelo ao CEG, outros cineclubes foram fundados - o cineclube da

Escola Nacional de Engenharia, o da Escola Brasileira de Administração Pública da

Fundação Getúlio Vargas, entre outros - colaborando para o surgimento da

Federação dos Cineclubes do Rio de Janeiro, em 1958, com o intuito de coordenar

as atividades de todos os cineclubes.

A Federação foi criada:

... como uma associação de entidades culturais, com o objetivo de articular, desenvolver e fortalecer o cineclubismo que ganhava força naquele momento. Mas a Federação tinha também uma outra missão: ser o braço político dos cineclubes e procurar direcionar a perspectiva política do movimento. Para isso organizou os Encontros de Cineclubes e lançou campanhas para aumentar o interesse pela educação artística e cultural cinematográfica do estudante e do público em geral e elevar o gosto artístico das platéias. (POUGY, 1996: 47)

62 Entrevista de Cosme Alves Neto. In: POUGY, Alice. A Cinemateca do MAM e os Cineclubes do Rio de Janeiro: Formação de uma Cultura Cinematográfica na Cidade. Dissertação de Mestrado, PUC, 1996. 63 No documento “Revisão e planejamento para 60/61” do CEG é reafirmado entre outros pontos “...o caráter didático do cineclube que deve realizar o mesmo papel de uma escola ou de cursos de aprofundamento sobre cinema.” In: POUGY, Alice. A Cinemateca do MAM e os Cineclubes do Rio de Janeiro: Formação de uma Cultura Cinematográfica na Cidade. Dissertação de Mestrado, PUC, 1996.

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Nos vários encontros que a Federação organizou, ressaltamos o encontro

de 1961, no Rio de Janeiro, por ter entre as suas deliberações, a integração do

cinema na escola, e o encontro de 1963 em Porto Alegre, que reafirmou a

necessidade de subsídios para a criação do cineclubismo infanto-juvenil,

expressando a importância do cinema e da atividade cineclubista na formação dos

estudantes.64

É importante assinalar que, desde os seus primórdios, o cineclubismo

esteve ligado à trajetória do cinema brasileiro de diferentes formas, como nos

estudos da cinematografia brasileira e estrangeira, na crítica às formas de produção

e distribuição do filme nacional, na necessidade de se criar um público para o cinema

brasileiro, além de ter sido sempre um espaço de formação de futuros cineastas.

Muitos cineastas pertencentes ao Cinema Novo - Silvio Tendler, Leon Hirszman,

Marcos Farias, entre outros - vinham do cineclubismo.

Com o golpe de 1964, estes movimentos tentam manter sua resistência,

mas com o agravamento da repressão em 1968, através do Ato Institucional nº 5, AI-

5, que suspendia as garantias constitucionais, as experiências são brutalmente

interrompidas e silenciadas.

“Pai, afasta de mim esse cálice (cale-se?).../ De vinho tinto de sangue / Como beber dessa bebida amarga / tragar a dor, engolir a labuta / Mesmo calada a boca, resta o peito / Silêncio na cidade não se escuta...” 65 (...) quando eu entrei na faculdade [1974], na universidade, havia um nada. Aí sim, que a gente se defronta com o zero, ou seja você encontra na rua, na tua vida, uma vida incrível, os movimentos, coisas, mesmo que subterrâneos, escondidos e tal. Na universidade era um deserto, com raras exceções, na PUC havia alguma manifestação, mas na UERJ... fiquei impressionado quando eu cheguei, não havia nada, zero. Claro que cinco anos antes ou seis anos antes, tinha sido destroçada pela ditadura, pelo 477, enfim tinha gente que já tinha morrido, fugido e tal. Aí nós começamos um núcleo, começamos a querer montar um cineclube... Catuca daqui, catuca de lá, tem um projetor 16mm dando sopa num canto lá. Vamos lá e tal tinha que pedir autorização [a direção], tinha que explicar o que que era,etc. Nós iniciamos com um filme que chamava “O Passe Livre” sobre o jogador de

64 Vieira, Carlos. Panorâmica do Cineclubismo no Brasil. In: Cinema - Fundação Cinemateca Brasileira - 02/1974. 65 Música “Cálice” ( 1973) de Chico Buarque de Holanda e Gilberto Gil.

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futebol Afonsinho e havia uma cópia disponível para o movimento cineclubista que já existia na ocasião e praticamente sediado no MAM, onde a gente ia obter informação dos outros filmes. Não podíamos só pensar em passar exatamente aquilo que tinha nas empresas americanas ou do Consulado francês na universidade quando a gente já estava querendo fazer a discussão um pouco melhor. Mas aonde, como, quando, quem, em que lugar? Aí vem a cinemateca do MAM. Eu me lembro que essa fonte foi fundamental, por que? Porque nessa sessão do Passe Livre , a gente soube que esse filme estava sendo distribuído alternativamente em 74, exatamente o ano que eu entrei na UERJ. E fomos lá e encontrei a Ana, que eu já conhecia, que era amiga da minha irmã ,e aí descobri o mundo, quer dizer, tem uma estrutura, tem uma organização, tem uma Federação de Cineclubes, tem uma entidade ,é importante citar que naquela época entidade era uma coisa muito importante porque a gente era tudo desgarrado e o MAM era uma entidade. (Nelson)

Com a nova conjuntura política, o Cinema de autor, principalmente o

Cinema Novo perplexo frente aos acontecimentos, viu-se diante de um novo desafio:

entender o golpe militar e a derrota das esquerdas em sintonia com a “passividade”

do povo. A luta por uma consciência proletária comprometida com a revolução, na

linha de um discurso conscientizador e didático que “ensinava a todos o caminho do

futuro”, foi dando lugar à autocrítica e à busca por um diálogo mais intenso com a

tradição cultural erudita ou com a comédia popular, como forma de encontrar novas

perspectivas de análise e atuação que dessem conta da nova realidade social que se

desenhava.

Se antes viver no Brasil era estar apoiado no sentido claro, inexorável, da história, agora viver no Brasil é entrecruzamento de sentidos, agonia. E o presente doloroso não se redime por nenhum horizonte de transformações”. (XAVIER, 2001: 65)

Neste momento de desencanto e resistência, explodem diferentes visões

sobre como derrotar a ditadura e construir a democracia tendo em conta a

diversidade cultural e as desigualdades sociais que tão bem caracterizam a

sociedade brasileira, rompendo com nacionalismos ufanistas e identidades

homogêneas e abrindo espaço para a criação e o pluralismo. Entretanto, com o AI-5,

estes movimentos são reprimidos, mas suas idéias permanecem latentes através das

metáforas produzidas por diversas realizações cinematográficas, como no filme

“Como era Gostoso o Meu Francês” de Nelson Pereira (1971), onde a antropofagia é

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“...metáfora de resistência ao opressor, referência de identidade, resgate histórico da

perspectiva dos vencidos que quer ter incidência sobre a discussão política do

presente.” (XAVIER, 2001: 79)

2.3. Tempo, cultura, educação

Durante o período da ditadura militar, o Estado brasileiro consolidou o

modelo de desenvolvimento excludente, concentrador de renda, privilegiando o

grande capital como forma de inserção permanente no mercado global. Neste

modelo, as políticas implementadas integravam a população pela via da segregação.

Assim, os negros, mulheres, crianças, jovens vão sendo inseridos na dinâmica

econômica, social e política, de forma que os atributos físicos destes indivíduos

tornam-se signos de diferenciação, de separação, discriminação e, portanto,

exclusão. A contra face desta hierarquia discriminatória era oferecida pelo modelo de

capitalismo expansionista, então, praticado.

Este modelo propiciou a implantação de uma indústria cultural, que

contribuiu para a ampliação de atividades culturais e do fortalecimento do mercado

de bens culturais. Este mercado ao abarcar fundamentalmente uma dimensão

simbólica, expressa valores e concepções de mundo conflitantes, se tornando um

campo de disputas políticas e ideológicas. É neste contexto que a censura exerceu

uma ação repressiva seletiva, isto é, não era o teatro, o cinema ou a indústria

fonográfica que era censurada, mas o surgimento de uma obra ou pensamento

contrário à ideologia dominante. “O ato censor atinge a especificidade da obra, mas

não a sua generalidade de produção”. (Ortiz, 2001: 114).

Assim, temos repressão política e ideológica, mas também a expansão

dos bens culturais, uma vez que é o “Estado autoritário o promotor do

desenvolvimento capitalista na sua forma mais avançada”. (Ortiz, 2001: 115). A

implementação de uma indústria cultural altera substancialmente o tipo de relação

que se estabelece com a cultura, na medida em que ela passa a ser vista como

investimento comercial. Porém, é preciso analisar esta relação em consonância com

as mudanças nas outras esferas do social, para não reduzi-la apenas a seu aspecto

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econômico, captando as contradições e conflitos que irão caracterizar esta nova

forma de exercício da atividade.

Tendo como referência a Ideologia de Segurança Nacional, o governo

militar reconhecia a importância da cultura como mais uma instância capaz de

contribuir para a integração nacional, através da construção de um imaginário

comum aos brasileiros, da afirmação de uma identidade nacional, dando início a uma

política que reforçasse esta identidade. Neste sentido são criados o Conselho

Federal de Cultura, Instituto Nacional de Cinema, Empresa Brasileira de Filmes

(Embrafilme), Fundação Nacional de Arte (Funarte), Pró-Memória, etc. Neste

cenário, os meios de comunicação de massa se destacam, pois difundem idéias,

fazem à comunicação direta com as massas, além de poder gerar “estados

emocionais coletivos”.

(...) bem utilizados pelas elites constituir-se-ão em fator muito importante para o aprimoramento dos componentes da Expressão Política; utilizados tendenciosamente podem gerar e incrementar inconformismo. O Estado deve, portanto, ser repressor e incentivador das atividades culturais. (Ortiz, 2001: 116)

Com a criação da Embrafilme (1969), o governo militar buscou, então,

direcionar os conteúdos que deveriam orientar as produções, incentivando, por

exemplo, produções históricas66 que se baseavam numa visão que privilegiava os

grandes acontecimentos, os grandes personagens e seus feitos, enfim uma história

grandiosa e pacífica, que já encontrava eco na sociedade e no próprio meio

cinematográfico, conforme ressalta Bernardet (200: 329)

(...) Não se pode dizer que os governos da década de 70 tenham procurado inovar na matéria, nem criar, nem impor alguma coisa que já não estivesse aí. Procuraram é sustentar, dar melhores meios de expressão e divulgação a esta visão da história que já estava aí, incentivá-la, privilegiá-la em relação a outras. Ao reforçar o filme histórico, ao reforçar determinada abordagem da história, mesmo que subentendidamente, o governo, com pressão moderada, exerce autêntico dirigismo cultural, porque reforça uma tendência e este reforço entrava outras possibilidades.

É importante destacar que os mecanismos que elaborados para a

produção, financiamento, distribuição, etc. destes filmes articulavam-se aos

66

Independência ou Morte (1972), Anchieta, José do Brasil, O Mártir da Independência (1977).

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interesses dos grupos dominantes, ou parte deles, no intuito de produzir obras

convenientes aos seus interesses ideológicos e estéticos, reforçando estereótipos e

uma cinematografia cada vez mais voltada para o mercado, conforme observamos:

(...) Carlos Mattos Jr., ao descrever a realidade do cinema brasileiro na década de 70 dirá: “Ele saiu de uma fase em que a multiplicidade de realizações experimentais e contestatórias provocou a retração do público. Agora há uma franca procura de narrativas de fácil aceitação popular”. Dito de outra forma, o cinema brasileiro encontra finalmente o seu caminho e a sua vocação no entretenimento. (...) Gustavo Dahl, (...) parte do princípio de que a ambição primeira de um país é ter um cinema que fale sua língua, independente do critério de maior ou menor qualidade cultural. Mas, “para que o país tenha um cinema que fale a sua língua é indispensável que ele conheça onde essa linguagem vai se exercitar. Esse terreno é realmente o mercado. Neste sentido explícito, é válido dizer que mercado é cultura, ou seja, que o mercado cinematográfico brasileiro é objetivamente a forma mais simples da cultura brasileira”.67

A Embrafilme, mesmo privilegiando cineastas que de alguma forma

atendiam aos interesses governamentais e da indústria cinematográfica, nem sempre

identificados, propiciou o desenvolvimento do cinema brasileiro, até mesmo de filmes

que “escapavam” da orientação oficial, concorrendo para a criação de uma

filmografia mais diversificada, segundo nos contam alguns entrevistados/as:

(...) Com a pressão da classe cinematográfica, a Embrafilme foi criada como uma tentativa de “ajudar” os cineastas a realizar filmes e ter um lugar na cinematografia mundial. (...) Eles queriam financiamento, regularização da atividade, (...) concorrer a prêmios (...)Então, através da Embrafilme foi possível produzir uma bateria de filmes brasileiros (...) mas não demorou muito foi meio desastroso, entrando em rota de colisão entre receita x despesa e bilheteria, porque os mecanismos de controle das verbas, (da maneira como se gastavam aquelas verbas) eram frágeis. Então houve muita polêmica, muito desentendimento sobre quem é que podia levar o dinheiro, quem é que era responsável por fazer filmes, que tipo de filmes valia a pena produzir ou financiar, qual era o resultado daqueles filmes na bilheteria, quer dizer, tudo que envolve o cinema desde a sua produção até seu resultado final era muito polêmico dentro da Embrafilme. Acredito que isto tudo se deva a inexperiência de quadros, tanto de cineastas que digamos, tinham a responsabilidade de executar bem aquilo com aquela verba, - quanto daqueles administradores que estavam ali na condição inclusive de escolher que filme financiar, a quem favorecer com aquelas verbas, que nunca foi para todos, que sempre foi para alguns. Não havia também nenhum mapeamento de mercado para o cinema brasileiro, ao mesmo tempo que o roubo nas bilheterias era flagrante. Então a Embrafilme teve um momento em que estava com o meio de campo bem embolado (...) Antes dela havia um núcleo de cinema em SP fazendo pornochanchadas

67

ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. São Paulo: Brasiliense, 2001, p.168.

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como eram chamados, filmes mais voltados para o apelo sexual e tal, e ela vem com uma bateria de filmes de mais qualidade, baseados em literatura brasileira de qualidade, ou de bons roteiros selecionados. ROSE – Havia algum tipo de censura? MARISA – Que eu me lembre na Embrafilme? ROSE – Quanto a tema, o que filmar? MARISA – É. Não havia uma censura da polícia, mas havia assim uma acomodação dentro da utilização da verba com relação assim: 1o) a obras brasileiras com alguma categoria, por exemplo, extraídas da literatura de melhor qualidade ou ... 2o) com roteiros que passassem por uma triagem mais ou menos prévia ou 3o) mesmo entregar o financiamento em mãos de pessoas mais competentes. Aí eu coloco esse “competente” entre aspas porque isso dependia muito de critérios pessoais e aí não se sabe exatamente quem foi justo nessa avaliação ou não. A Embrafilme foi um ganho muito grande para o cinema brasileiro, porque ela conseguiu realizar uma produção cinematográfica no momento em que nada acontecia. (...) cobriu esse vácuo, realizou por uma década mais ou menos alguma coisa que é considerável como obra do cinema brasileiro. Levantou os nomes, as capacidades de muitos realizadores brasileiros e eles estão até hoje aí no mercado, produzindo filmes agora por sua própria conta, dentro de outros critérios, se empenhando junto a financiamentos bancários ou parcerias com empresas ou instituições, porque já não existe mais essa verba à fundo perdido para se produzir cinema no Brasil. (Marisa) Era [uma empresa] pequena, não tinha muita gente, e olha o barulho que fez. Tinha 300 ou 400 funcionários. O Instituto Brasileiro do Café quando acabou tinha 6.500, o Instituto do Açúcar e do Alcool tinha uns 20.000. A Embrafilme tinha 350. E aí, esse foi o acordo feito entre os grandes cineastas brasileiros: Barreto, Cacá, Zelito, Jabour, e os demais foi fazer isso, ou seja, vamos dotar o Brasil de uma moderna indústria cinematográfica, uma moderna indústria de audiovisual, porque o Brasil tem capacidade. Isto é a leitura comercial e a leitura política era não me encham o saco e façam seus filmes, cuidado, não façam falando mal, de fato ninguém falou mal, todo mundo fazia seus filmes, mas “Os Inconfidentes” falava, entendeu, diversos outros filmes; “Macunaíma” falava, enfim vários outros filmes que foram feitos falavam nas entrelinhas... (Nelson)

∞∞∞

No campo educacional, o golpe militar de 1964 representou a vitória dos

grupos defensores da iniciativa privada, em todos os níveis de ensino intensificando

o sucateamento da educação pública, de um sistema educacional elitista e

antidemocrático. Apesar dos discursos governamentais proferirem o contrário, o que

se via era a manutenção de uma rede pública quantitativa e qualitativamente

deficitária, com escolas particulares de qualidade diferenciada, dependendo da

“clientela” que constituía seus estudantes, persistindo, assim, veladamente as

discriminações e o dualismo do sistema educacional brasileiro. (CUNHA, 2002)

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A política educacional mascarava os problemas estruturais da educação

brasileira, através de um projeto político-pedagógico que concebia a resolução das

questões educacionais pelo predomínio da razão técnica, esvaziando o conteúdo

político da educação, sua potencialidade de transformação e perpetuando um

sistema educacional que atendia ao desenvolvimento sem mudança estrutural.

No entanto, é necessário esclarecer que a técnica nesta política é

compreendida numa perspectiva tecnocrática e autoritária, que enfatiza a separação

entre pensamento e ação e não numa ótica dialética que vê a atividade criadora

como entrecruzada pela paixão, razão criativa e ação.

É neste cenário que se inscreveram as reformas do ensino de 1º e 2º

graus e universitária no âmbito do sistema educacional, além de projetos “paralelos”

como Mobral e Rondon, entre outros, que tinham a finalidade já citada neste

trabalho, qual seja, de promover mudanças sem alterar as relações sociais. No caso

do Mobral significou, acima de tudo, extirpar o Método Paulo Freire de Alfabetização.

O cotidiano escolar estava inserido na conjuntura de emudecimento que

então se aprofundava, revelando uma prática pedagógica permeada por relações

fisiológicas e clientelistas. Reforçava mecanismos de preconceitos e exclusão,

através da escolha do local de construção das escolas, da contratação de

professores, das matrículas dos estudantes, do currículo imposto e, em geral, da

postura autoritária dos diretores indicados por conveniências políticas pelas

secretarias de educação. A escola voltava a reafirmar-se como palco de disputas

políticas das lideranças locais e interesses particulares.68

Julgamos que estes projetos deslocaram o que seria central num trabalho

político pedagógico comprometido com as classes populares, pondo-as à margem,

para facilitar a manutenção dos privilégios da classe dominante que desfoca e

desloca para excluir. No entanto, realçamos que mesmo neste cenário sombrio,

práticas alternativas se imiscuíam no cotidiano escolar, gestando outras práticas

68 Neste período não havia concurso público para professor na maioria dos Estados, sendo indicação de vereadores, deputados e dos próprios diretores. Os diretores eram designados muitas vezes pelos prefeitos ou governadores. As matrículas nas escolas consideradas de qualidade privilegiavam as classes mais favorecidas, empurrando os mais pobres para escolas superlotadas, de 3 a 4 turnos, entre outras deficiências, ocultando os mecanismos de exclusão.

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pedagógicas e políticas comprometidas com a justiça e a liberdade, conforme nos

conta Silvina:69

Meses atrás, embarquei para a Ilha de Paquetá, no fundo da Baía de Guanabara (Rio de Janeiro). Eu não conhecia a Ilha, tão famosa pelos seus atrativos turísticos. Contudo, não era esse o motivo da minha viagem, senão o de não faltar à cita com Regina Yolanda - a quem tampouco conhecia, ex-diretora da escola Joaquim de Macedo. Esta escola, desde meados dos 60 até meados dos 80, caracterizou-se por desenvolver um projeto escolar alternativo que perdurou ao longo de toda a ditadura (!), até os anos de retorno à democracia, quando Regina Yolanda, finalmente, aposentou-se. Ela começou seu trabalho nessa escola como professora de Jardim de Infantes, logo, passou a ser orientadora pedagógica. Foi ali que percebeu seu desejo de ser diretora, acreditando que desde esse lugar poderia ter mais chances de transformar a escola para chegar mais perto dos desejos e interesses das crianças. Era preciso aproximar-se o mais perto possível do seu mundo cotidiano para, desta forma, convidá-los a querer conhecer tantos outros mundos. Era preciso alfabetizar não somente lendo e escrevendo, senão acordando a criatividade, a curiosidade, os múltiplos desejos de conhecer, de fazer, de compartilhar... que se encontravam vivos naquelas crianças e que a escola teimava em afastar, silenciar, até reprimir. Era preciso, assim mesmo, demonstrar a essas crianças que eles eram valiosos, únicos, dignos da melhor escola, de todo o carinho e o respeito, de todo o reconhecimento social. Era necessário que essas crianças re-conhecessem seu mundo cotidiano e começassem a perguntar-se por outros mundos diferentes, distantes ou próximos, que alicerçassem a reflexão e a imaginação. (...) Aos poucos a escola foi mudando o aspecto. Foi preciso combinar certa firmeza com um profuso diálogo, também paciente e insistente. Fez-se necessário um espaço que pudesse significar uma formação reflexiva e continuada das professoras. Assim, às sextas-feiras conseguiu tomar forma um seminário, onde planificar e avaliar permanentemente as práticas, em forma coletiva. A escola arriscava, todos e cada dia. Os seus protagonistas sentiam-se diferentes, faziam parte de um projeto em permanente andamento e mudança, mas com uma finalidade clara: que as crianças aprendam a ler, a escrever, a somar e restar... e, junto com isso, que aprendam o quanto eles são valiosos, o quanto é importante o que eles sabem, que não tem só um mundo pela frente, senão que existem inúmeros mundos a conhecer e construir...

No que se refere à educação superior,

(...) a universidade enquanto instituição desenvolveu-se contraditoriamente. De um lado, certas instituições foram especialmente visadas pela polícia política e todas as Universidades públicas tiveram o mecanismo de cooptação na escolha de dirigentes alterado em proveito da instância governamental. De outro, o mesmo pacto garantidor da modernização abriu

69 Fernández, Silvina Julia. Quando a “Joaquim de Macedo” foi uma escola plena... In: www. Revista do Aleph.

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um espaço de liberdade intelectual e até mesmo ideológica que se voltou logo para a luta contra a ditadura. (CUNHA, 1992: 10)

Como esta contradição marcou as políticas de formação de professores e

suas subversões?

Verificamos que esta política educacional reforçou o pressuposto

tecnocrático, implementando modelos dicotômicos de formação, fundamentados em

licenciaturas estruturadas com base na separação entre preparação

pedagógica/conhecimento específico da disciplina, preparação para o

ensino/preparação para a pesquisa, apesar das resistências por uma formação mais

integral, que articulasse ensino e pesquisa.

No que diz respeito à Escola Normal, esta política através da lei 5692/71,

ao implantar o ensino “profissionalizante”, esvaziou sua especificidade e importância

ao torná-la simplesmente mais uma habilitação entre tantas outras. Na concorrência

entre aptidões, o magistério, com o seu desmerecimento progressivo, já aparecia

como a opção dos mais “fracos”, daqueles que não tinham conseguido nota para as

consideradas mais interessantes. (CUNHA, 2002)

Neste percurso, os professores da escola básica passaram a conviver

com sua crescente desvalorização social 70, ao mesmo tempo que desenvolviam seu

processo de mobilização e luta, formando associações e posteriormente sindicatos.

Sabemos que nos anos de 1970, os professores públicos se organizaram em

associações, muitas vezes de cunho assistencial e recreativo, por ser proibida a

filiação sindical. Somente com a Constituição de 1988, esse direito foi estendido aos

funcionários públicos.

No decorrer deste processo, foram criadas várias associações de

docentes, como o Centro Estadual dos Professores (CEPE/RJ) em 1979, entre

outros, que apontavam para a defesa da democratização da escola pública, de uma

educação pública gratuita e de qualidade. Salientamos a importância desses

movimentos no combate à ditadura militar e ao mesmo tempo na explicitação, para a

70 A formação de professores, principalmente do ensino fundamental, vem sendo considerada problemática há muito tempo. Cf. Villela: A primeira Escola Normal do Brasil. In: Nunes, Clarice (org). O Passado Sempre Presente. São Paulo: Coleção Questões da Nossa Época. Cortez Editora: 1992.

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sociedade, das péssimas condições de trabalho dos professores, sua baixa

remuneração e a necessidade de publicizar a escola. Neste sentido, foram capazes

de se articular com movimentos sociais que iam se consolidando na luta pela

ampliação dos direitos sociais e políticos, por uma cidadania efetiva. (LINHARES,

1993)

É fundamental dizer que a desvalorização social desses profissionais, na

década de 1970 vinculou-se ao crescente “processo de proletarização” por que

passaram a viver, colocando-os numa situação de ambivalência. Ora se

aproximavam da classe trabalhadora, em termos das suas condições de trabalho e

remuneração, ora se aproximavam dos profissionais liberais (profissionalização), do

ponto de vista do controle de seu próprio trabalho.

Apesar do discurso da democracia e da cidadania nos anos de 1980, se

fazerem bastante presente na sociedade e nos meios educacionais, em virtude,

principalmente, da luta destes trabalhadores, a formação “aligeirada” vem se

tornando uma realidade. Particularmente nas Universidades privadas, como pode ser

visto pelo vasto número de anúncios veiculados em jornais de grande circulação, que

oferecem inúmeros cursos de graduação e pós-graduação. No entanto, as tentativas

de plena racionalização do trabalho docente, nos marcos das relações capitalistas,

encontram dificuldades, a nosso ver, devido às particularidades deste tipo de

trabalho e de seus profissionais.

A autonomia e a participação do professorado em seu processo de

trabalho, embora restritas, resultam da especificidade do trabalho docente: é preciso

“autonomia” para adaptar os métodos, materiais e conteúdos à realidade do aluno,

num lugar específico - a sala de aula. Nesta, o professor trabalha “sozinho” e sua

autoridade é estruturada com base na legitimidade institucional e social que lhe é

conferida em relação aos estudantes.

Consideramos importante lembrar que desde a sua construção até hoje,

embora em momentos históricos diferenciados, de avanços e recuos, a educação em

nossa sociedade se pauta pela constante discriminação às classes subalternizadas

de diversas formas. Como exemplo, temos a elaboração de um currículo voltado

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para construir e reconstruir uma “história oficial”, que cotidianamente tenta calar

outras vozes, perpetuando mitos e estereótipos dominantes.

De acordo com Cunha (1992), nossa escola não escapou das marcas

discriminatórias herdadas por nossa sociedade de base escravagista que persistem

ainda hoje. Uma dessas marcas é a existência de um dualismo velado no nosso

sistema educacional, isto é, a persistência de um ensino para as elites, em escolas

de qualidade, e um ensino para as classes populares de duvidosa qualidade.

Salientamos que a política ditatorial se assentou ideologicamente em

bases nacionalistas e ufanistas, do “Brasil Grande”, do “Brasil Potência”. Através de

um discurso baseado na exaltação de nossas riquezas naturais, na amplidão de

nosso país, nas características pacatas, ordeiras e empreendedoras de nosso povo,

o Brasil estava livre de influências nefastas (comunismo), estranhas a sua cultura e

sua história e pronto para integrar o mundo capitalista ocidental.

O poder autoritário, através da classe dominante, assim justificava a

ausência de democracia (temporariamente?), recorrendo mais uma vez à nossa

história, onde o conflito não é visto como elemento constituinte da democracia, mas

como ameaça à estabilidade das instituições. Daí a necessidade de uma intervenção

militar para o Brasil retomar seu destino “democrático”, ou seja, para a manutenção

da ordem burguesa que então se sentia ameaçada.

A propagação das idéias do “Brasil Potência”,

(...) foi feita nas escolas com a disciplina de educação moral e cívica, na Televisão com programas como ‘Amaral Neto, o repórter’ e os da Televisão Educativa, e pelo rádio por meio da ‘Hora do Brasil’ e do Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização), encarregado, de um lado de assegurar mão-de-obra qualificada para o novo mercado de trabalho e, de outro, de destruir o Método Paulo Freire de alfabetização. (CHAUÍ, 2000: 41/42)

2.4. Tempo, cineclube, resistência

Acentuamos que os horrores - prisão, tortura, assassinato de

trabalhadores, estudantes, parlamentares, - praticados pela ditadura militar

implantada a partir do golpe de 1964, estavam em perfeita sintonia com a

perspectiva política pautada no autoritarismo e na Doutrina de Segurança Nacional,

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que desfechava golpes cotidianos em projetos, assentados na democracia, que

vinham se desenrolando. Vale dizer que mesmo nos seus momentos mais sombrios,

a ditadura conviveu com a resistência que ia sendo tecida nos subterrâneos dos

movimentos sociais, nas metáforas das manifestações artísticas 71 e nas ações

individuais, familiares ou de grupos de proteção (redes), aos que eram perseguidos

pelo aparato policial.

(...) Os franciscanos, lembrando Frei Tito, Frei Beto e outros, tiveram lugar, abrigando, protegendo e facilitando a fuga para o exterior de vários militantes de esquerda, envolvidos com os seqüestros do Embaixador americano e do cônsul da Suíça, como é sabido. Eram militantes que estavam presos e sujeitos à tortura. (Inclusive os franciscanos foram torturados). (Marisa)

Os movimentos - de bairro, das donas de casa, de trabalhadores do

campo, da cidade, da construção civil, moradores das periferias, das favelas;

feministas, etc. - forjados no período de 1970 reivindicavam serviços públicos de

saúde, transporte, habitação, educação, etc. Construíam seu percurso em conexão

direta com as necessidades vividas no cotidiano, colocando em xeque a política

econômica da ditadura, concorrendo para o seu enfraquecimento e surgindo

(...) com a marca da autonomia e da contestação à ordem estabelecida. (...) De onde ninguém esperava, pareciam emergir novos sujeitos coletivos, que criavam seu próprio espaço e requeriam novas categorias para sua inteligibilidade. (SADER, 1988: 35)

Estudos, como os de Sader (1988), nos apontam a originalidade desses

movimentos por terem rompido com a visão vanguardista e paternalista que muitos

intelectuais e políticos de esquerda tinham sobre a organização das classes

trabalhadoras e sua capacidade de transformação. “Os novos sujeitos coletivos”

vinham com a marca da autonomia, da contestação, da diversidade, bem como da

solidariedade e da unidade política por objetivos comuns em determinadas

71 Na área cinematográfica tivemos entre outros: Brasil Ano 2000 de Walter Lima Jr., Macunaíma de Joaquim Pedro de Andrade, Matou a Família e Foi ao Cinema de Júlio Bressane, Os Inconfidentes de Joaquim Pedro de Andrade, São Bernardo de Leon Hirszman, Cabra marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho.

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conjunturas políticas, como a luta pela “redemocratização” da sociedade brasileira no

final dos anos de 1970.

Rose – Você percebia ressonâncias do movimento cineclubista em outras esferas sociais... Roberto -Vamos dizer. Houve locais que circulei onde via-se claramente as instâncias orgânicas da sociedade, como as associações de moradores, etc... Isto também influenciou minha experiência profissional como arquiteto (no período dos anos 70, ainda como estudante). Assim, quis descobrir como é que a cidade do Rio de Janeiro, onde eu vivia, funcionava. Não bastava só a prancheta, eu queria saber então como funcionava aquela cidade em que habitava. Fui assim me meter também com associações de moradores. Como havia em vários pontos da cidade tensões urbanas, ou sociais, enfim, impostos que eram cobrados e não retornavam pra população, principalmente nas áreas mais pobres, apareciam demandas que eram lançadas na mesa dessas organizações urbanas, as associações de moradores. Uma destas demandas foi o lazer. As pessoas não tinham o lazer como têm hoje, não tinham televisão. Você tinha a censura, a televisão não era uma coisa de acesso pra qualquer um como tem hoje. Então, se vizinhos (ou moradores) de um bairro ou parte da cidade tivessem alguém (ou uma organização) que oferecessem passar um filme no final de semana, pra criançada em geral ou adultos, essa demanda, urbana e social, estava atendida. Houve também variantes disso: passar filmes pras mães se organizarem, ou também no mesmo sentido para os homens, após sua chegada do trabalho. Nesses bairros populares, era uma coisa muito importante. Mas mesmo em outros bairros de classe média, (...) o cinema, sua discussão (ou apreciação) gerou outros tipos de organização social. (...) Começando a discutir cinema viraram cineastas, videomakers ou qualquer coisa... Que eu acho que é um ramo diferente, não pra organização social (como aqueles exemplos de bairros populares), mas pra um trabalho social distinto, de fins estéticos com o cinema. Resultados que foram também importantes. (Roberto)

Consideramos importante realçar que as reivindicações, sejam elas

materiais ou simbólicas, estão envolvidas numa série de questões específicas de

cada grupo. Demonstram a heterogeneidade de suas ações, por estarem articuladas

aos sentidos que os sujeitos atribuem e constroem nas experiências concretas do

cotidiano. Expressam valores, sentimentos, objetivos que vão configurando suas

práticas políticas.

Na esteira dos movimentos de resistência, no início dos anos 70,

houve uma reorganização dos cineclubes, que surgiam naquele momento como

espaço público alternativo, para estudantes, professores, trabalhadores, já que suas

representações políticas tinham sido desmanteladas violentamente pela repressão

policial, que

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Realizavan la labor / de desunir nossas mãos / E fazer com que os irmãos / Se mirassem com temor.72

O Grêmio era cinema e atividades esportivas. Se quisesse, se houvesse lugar, se houvesse quadras podíamos fazer atividades esportivas. Tocar violão também podia, assim: estudantes fazendo encontros musicais, saraus, no horário diferenciado das aulas. Cinema podia, porque tinha até um equipamento, um projetor e caixas de som e como eu gostava muito mais de atividade política e politizante que fosse, do que exatamente da sala de aula, posso falar que tive uma faculdade medíocre, não tinha grandes notas, não era freqüente, matava muita aula, porque eu estava no Grêmio. Até mesmo varrer eu varria, limpava janela, comprava as coisas para por lá dentro, que não tinha. Eu gostava mais do grêmio do que de sala de aula. E ia me virando, eu não deixei de passar de ano, mas as minhas notas não eram lá essas coisas, porque eu estava no grêmio; eu era grêmio. Através dele e organizada partidariamente - através do partido (PCB) na ilegalidade - a gente realizava cinema. De algum modo exibia filmes e tal. E não demorou muito, o cineclubismo já estava acontecendo como a única atividade possível dentro daquela realidade de muita repressão estudantil dentro da universidade. Eu conheci outros participantes de cineclubes, despontava o da Tijuca [ Glauber Rocha]... (Marisa)

Olha, eu não me lembro de nenhum cineclube universitário que tenha sido forte. Eu acho que a universidade tava tão ainda incipiente (...) os espaços eram pequenos e quando havia alguma assim... eram movimentos culturais mais de massa, fazer shows. Estava se tentando fazer a questão do circuito musical universitário, era uma coisa mais de oferecer um produto cultural de forte apelo como um show musical do que fazer uma atividade cotidiana como o cineclube exige. Um engajamento, um grupo sempre pequeno, então as lideranças do movimento nunca priorizavam a questão do cinema e eu acho mesmo que a dispersão, os horários, o sistema de crédito, onde as pessoas entram e saem em horários diferenciados, quer dizer, a universidade já não era mais o lugar de encontro, de convívio. Na Arquitetura isto era muito claro, quer dizer, o 1º ano era um ano que eu conseguia ficar de manhã e de tarde, então ainda era possível você reunir pessoas, os calouros. Ainda se conseguia fazer alguma atividade, mas a partir do 2º ano o pessoal pegava estágio e ficava com o horário muito esfacelado. Então eu não me lembro... Talvez eu até esteja cometendo alguma injustiça, mas eu não me lembro de nenhum cineclube universitário atuante... (Ana)

Apesar das ameaças que sempre pairavam sobre os cineclubes, através

da presença de censores “disfarçados” durante as sessões, de uma maneira geral,

eles representaram uma possibilidade de escapar de um cotidiano opressivo e banal.

Proporcionavam aos seus membros a oportunidade de encontros coletivos que foram

se constituindo em espaços, mesmo que no início muito timidamente, de discussão

72 Canción por la Unidad de Latino América, de Pablo Milanês e Chico Buarque de Holanda.

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estética e política, e posteriormente se transformando mais explicitamente em

espaço de resistência à ditadura militar.

Hoje os cineclubes são diferentes, não são mais aqueles, mas eu acho que a motivação é a mesma, é discutir cinema, conhecer as realidades brasileiras, as realidades internacionais, regimes políticos, econômicos - que o cinema tem ampla margem, possibilidade de mostrar - ensinando, politizando as pessoas ainda hoje, apesar de não haver mais aquela repressão batendo em cima. Na nossa época eu considero que foi um movimento revolucionário, justamente porque a gente abria aquela brecha para ir se movimentando e hoje temos uma consciência, somos representantes de uma geração consciente da situação política do país, que era uma situação adversa, mas a gente conseguiu realizar uma atividade de resistência através de bom cinema, do cinema mundial, inclusive brasileiro. O cinema brasileiro era outro também, era o cinema do Glauber Rocha, de Joaquim Pedro de Andrade, Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues, Roberto Farias, David Neves, Walter H. Khouri, Person, Sganzerla, Leon Hirshman, Roberto Santos, e tantos outros. Era o cinema de Humberto Mauro, era o cinema mudo brasileiro. Nós tivemos a sorte de ver este cinema. Quem teve a sorte de ver este cinema? Muito pouca gente.(...)Eram documentários de Humberto Mauro, era Limite do Mário Peixoto. (Marisa)

Na universidade (...) reabrimos o DCE (mais ou menos 1976) e eu continuei junto do movimento estudantil e no cineclubismo. Então assim, essas coisas juntas, elas foram fundamentais para minha formação cultural e humanista. O cineclube teve papel de resistência política e cultural e de formação de uma cultura cinematográfica. Eu também estava envolvida na militância estudantil, lutando por melhores condições de vida e pela democracia. Na verdade, naquele momento casava as duas atividades, casavam bem. (Lucinha)

Trocando idéias sobre a atividade cineclubista, uma das narradoras

destaca a sua heterogeneidade:

(...) em geral ele se caracterizava por ser um movimento de jovens, de esquerda, de oposição à ditadura. Em alguns lugares faziam do movimento cineclubista, uma coisa assim muito imediatamente política, em outros já havia mediações maiores entre o trabalho político e o trabalho cultural. Isso a gente via que variava de lugar pra lugar, e tinha também os cineclubes totalmente diferentes disso, os cineclubes de gente assim, de outra geração, mais velhos, (...) de cidades do interior de São Paulo, como Clube de Cinema de Marília. Eu me lembro bem que eram pessoas, que há anos tinham uma espécie de um cinema na cidade, que não era uma empresa comercial, que era uma coisa feita lá, por um grupo de pessoas e que durante a ditadura, hoje eu não sei como é que está, continuaram fazendo e que se acoplaram a gente, na medida em que viram que a coisa tava, passava, vinham... Participavam. Até se politizavam com essa participação, porque era um momento muito propício pra isso. Então eu acho que era um movimento muito diferenciado interiormente, entendeu? (...) Os cineclubes das universidades em geral, eram os mais assim, politizados nesse sentido,

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porque eles eram quase sempre muito acoplados aos grêmios, aos C.As, ao movimento estudantil. Eles eram apêndices do C.A, dos grêmios. Os de bairro já tinham mais mediações (...) A gente tinha cineclube em curso de língua, na Aliança Francesa, na Cultura Inglesa e aí é claro que já não era uma coisa como um cineclube na universidade. Então tinha uma variedade assim, embora em geral, tivessem algo único, que era a luta pela liberdade de expressão. Então dificilmente alguém que não estivesse sintonizado com isso estaria ali. (Aninha)

Com a ampliação do movimento cineclubista, em 1974 foi reestruturada a

Federação dos Cineclubes do Rio de Janeiro, que congregava todos do Estado. A

Federação atuava tanto no nível organizacional, fornecendo material e ajudando na

infra-estrutura, como no plano político-ideológico, uma vez que se buscava uma

orientação político-cultural para o movimento, respaldando-o frente ao Estado e aos

seus interlocutores mais imediatos como o MEC.

A Federação tinha um trabalho muito importante de articular informação, de incentivar, de ir aos cineclubes para orientar, as vezes puxar debate, levar um cineasta que pudesse ser uma atração, fazer uma interlocução com o responsável. Então a Federação tinha um papel assim... estruturante mesmo. (...) a gente levava aquilo muito a sério, nós éramos muito... comprometidos com aquela idéia, tinha que ser feito direito. Os bailes pra arrecadar fundos, tinha os mimeógrafos, o boletim da Federação era uma coisa que a gente levava muito a sério. Lembro de fazê-lo nas horas extras lá na Cinemateca do MAM, usando a máquina elétrica para fazer o boletim. Rodava-se no mimeógrafo do trabalho do outro, quer dizer, era uma rede onde a gente usava os nossos horários ociosos no trabalho pra criar isso. Me lembro muito claramente do boletim como uma ferramenta de união, de informação; as reuniões quinzenais e esses programas. A gente por exemplo fazia durante o mês de agosto, o mês do cinema brasileiro onde se incentivava a exibição de filmes brasileiros nos cineclubes, aí se levava os cineastas. Federação do Rio teve também esse papel importante, o de estar perto dos cineastas, o movimento cinematográfico carioca sempre foi mais rico, mais atuante, pelo menos mais famoso. Então, desde Nelson Pereira, Leon, quer dizer, os cineastas se colocavam muito a disposição, isso sempre foi um chamariz importante, quando o cineclube tava meio mal das pernas a gente chamava um cineasta para debater, o que ajudava na divulgação. (risos) (Ana)

Com a expansão do movimento por outros estados do Brasil, criou-se o

Conselho Nacional de Cineclubes (CNC), que reunia todas as federações a ele

filiadas. Encontravam-se em Congressos Anuais (Jornadas), onde ocorriam as

discussões de política cultural e as trocas de experiências dos diferentes cineclubes.

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Conversando sobre a organização e funcionamento do movimento, damos

a palavra a uma de nossas entrevistadas:

Bom.... O movimento estava organizado... Existiam vários cineclubes no Brasil inteiro, que foram se reorganizando em torno de Federações de Cineclubes e tinha o Conselho Nacional de Cineclubes, isso em 76, 77, 78, 80. As Jornadas de Cineclubes aconteciam anualmente e dentro desse movimento existiam, várias tendências, partidos políticos, que eram clandestinos e que também militavam no movimento cineclubista. Toda a organização que existia na sociedade civil e no movimento cineclube era praticamente a mesma. (...) eu também era de partido, era do PCB (partidão) e várias pessoas eram de partido. Aliás, o partidão sempre foi... Tinha uma influencia muito grande dentro do movimento cineclubista. Então essas articulações com os partidos, que na época eram partidos clandestinos e com a sociedade civil também, porque existia cineclube em igreja, cineclube em universidades, em escolas, em varias instituições, Associação Brasileira de Imprensa (ABI), enfim, com varias... IAB... É. Instituto dos Arquitetos, quer dizer, o cineclube estava em várias entidades e organizações culturais, políticas e profissionais. (Lucinha)

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A importância que este movimento alcançou pode ser vista tanto na

criação de uma distribuidora própria, a Dinafilme – Distribuidora Nacional de Filmes

para Cineclubes73 - como pela influência e relação que estabeleceu junto aos órgãos

públicos voltados para o cinema, exemplo a Embrafilme - Empresa Brasileira de

Filmes – como ainda na própria formação de cineastas e na formação de um público

não só para o cinema em geral, mas para o cinema brasileiro. Vejamos o depoimento

do cineasta João Batista de Andrade:

Eu comecei minha história no cinema como um duplo, meio cineclubista, meio pretendente a cineasta. Junto com o Ramalho e o Clóvis Bueno, fizemos na Poli (Escola Politécnica da USP), em 1963, o Grupo Kuatro que era de tudo um pouco: ativismo, cinema, cineclubismo. Publicávamos uma revista de cinema, o Cadernos da Poli. Fazíamos programações de cinema, com debates, em toda a Universidade. (...) O golpe de 64 infelicitou a nação e destruiu esse trabalho. Mas as coisas voltam, se bem plantadas. E voltaram com uma força muito maior nos anos 1970, com o movimento cineclubista se reorganizando, crescendo de forma impressionante, criando federações e até um Conselho Nacional. E, claro, a cor da resistência, do não à ditadura, era misturada à paixão pelo cinema, sedimentando um movimento de renovação política e cultural dentro do cinema brasileiro. Por decisão do movimento, foi criada a distribuidora nacional que originalmente serviria para alimentar os cineclubes de filmes. Mas que se transformou radicalmente, assumindo o cinema brasileiro e a postura de combate à opressão. Eu tenho a honra de ter participado desse primeiro momento, decisivo, pois foi com nossos filmes do Cinema de Rua que a Dina Filmes começou esse trabalho. Eram filmezinhos curtos, pobres, mas que falavam do Brasil real, dos problemas sociais, e que atraíam um interesse crescente das organizações da sociedade que, a partir de 1974/1975, ousavam se reorganizar, discutir o país, mesmo que no início, tivessem que fazê-lo clandestinamente. (...) Muitas vezes li relatórios feitos por essas centenas de entidades que proliferavam pelo país. Eram relatórios das sessões, sobre as discussões provocadas por filmes como “Migrantes”, “Pau pra toda Obra, “Buraco da Comadre” (...). Pequenos filmes, trazendo as imagens reais do país, em contraposição à empulhação da imagem sem conflito, empurrada pela ditadura goela abaixo dos meios de comunicação. Os relatórios (Clube de mães, Igreja, Sindicatos, Sociedades Amigos de Bairro, etc.) mostravam como aqueles filmes ajudavam a libertar o espírito crítico e a vontade de contestar”. 74

73

Fundada na X Jornada Nacional em Juiz de Fora (1976), a DINAFILME foi criada com dois objetivos básicos: 1) garantir a existência de um movimento realmente nacional, através da distribuição de filmes para todo o território brasileiro; 2) criar as bases para um circuito alternativo, constituído pelos cineclubes e entidades semelhantes, que servisse de base para a alimentação de um cinema mais próximo das realidades das comunidades em que os cineclubes atuam – o que, ao fim e ao cabo, significa lançar as bases de um cinema mais popular, livre das injunções e padrões do cinema comercial. Outro elemento fundamental de constituição da DINAFILME era a resistência à Censura, que na época reinava absoluta. Cf Macedo, Felipe: Da distribuição clandestina ao grande circuito exibidor. Artigo consultado na Internet: www.cineclube.utopia.com.br 74

Depoimento dado ao PCRP – Ponto de Cultura de Rio Claro: Os Cineclubistas estão chegando. www.pcrp.utopia.com.br

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Uma experiência de distribuição que merece registro e que pode ser vista

como uma “semente” da Dinafilme, expressando a busca por uma maior autonomia

do movimento, frente ao monopólio das distribuidoras, e a criação de alternativa de

exibição, foi o lançamento independente do filme “Passe Livre” no circuito 16mm dos

cineclubes, realizado pela Federação de Cineclubes do Rio de Janeiro, como nos

afirma uma das entrevistadas:

... O Passe Livre era um filme que o Oswaldo Caldeira fez com o Afonsinho [jogador de futebol do Clube de Regatas Botafogo], um filme em 16 mm. Foi então organizado um circuito, uma experiência de exibição mesmo de fato, com lançamento e tudo através do circuito, foi uma coisa interessante. Claro que não havia escala econômica pra isso, não ia poder nunca pagar uma produção pelo circuito, mas a tentativa era que o circuito fosse auto-suficiente, quer dizer, reembolsasse o custo da cópia e desse algum dinheiro ao cineasta. (Ana)

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Consideramos que, mesmo sob forte repressão policial, o movimento

cineclubista, neste período, foi capaz de criar alternativas de distribuição e exibição

de filmes que encontravam dificuldades de circulação no circuito comercial,

possibilitando aos seus militantes e freqüentadores o contato com outras

cinematografias e estéticas, ampliando o “olhar”, o desenvolvimento de uma

consciência crítica e o compromisso político na luta pela democracia e pelo cinema

brasileiro. 75

75 Se por um lado tivemos a invasão da Dinafilmes pela Polícia Federal, apreendendo quase 200 filmes, além da apreensão em cineclubes, sindicatos, etc; por outro, filmes das guerrilhas de El Salvador, Peru, Organização Para a Libertação da Palestina - OLP, dos governos revolucionários de Cuba, Angola, Moçambique, Nicarágua, entravam e eram exibidos nos cineclubes do país afora, com o Conselho Nacional de Cineclubes e as Federações Estaduais organizando a distribuição. In: Revista Cineclube Brasil, nº1, ano nº 1, novembro de 2003.

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2.5. Tempo presente

Estamos convencidos que os obstáculos à implantação de uma sociedade

democrática hoje são enormes, na medida em que os conflitos entre as classes se

complexificaram de tal forma, que a sua explicitação torna-se sempre mais difusa e

opaca e brilhantemente mascarada pela ideologia dominante que vai naturalizando

os conflitos e individualizando-os cada vez mais. Generaliza-se a miséria e privatiza-

se a riqueza.

Assim, Wood (2003) nos lembra que estes obstáculos estiveram sempre

presentes na história da democracia capitalista porque na sua formulação realizou a

separação entre igualdade política e desigualdade econômica. Neste sentido, a

convivência das relações de exploração com a igualdade jurídica e o sufrágio

universal são possíveis porque não afetam a estrutura de desigualdade desta

sociedade, pelo contrário, ela permanece intacta.

Em nosso país, a democracia limita-se a uma democracia formal, já que

os direitos que asseguram a igualdade entre os indivíduos não podem existir

concretamente para a maioria da população. Cada vez mais a população vai

adquirindo e incorporando o sentimento de que o voto não traz mudanças

significativas em suas vidas porque é desvinculado de outras práticas políticas que

assegurariam a participação efetiva dos sujeitos nas decisões públicas.

A reportagem “Um Golpe na Democracia” 76 é ilustrativa desta situação:

pesquisa realizada pelo Programa Nacional das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) em 18 países da América Latina mostra que 54,7% dos 19 mil entrevistados trocariam a democracia por um governo autoritário se este fosse capaz de resolver os problemas econômicos. No Brasil, os números são preocupantes: apenas 36,6% dos habitantes se dizem democratas, contra 27% de não democratas. Outros 42,4% se apresentam como ambivalentes: defendem a democracia, mas são simpáticos ao uso da força pelo presidente.

Esta reportagem revela a dificuldade dos atuais regimes democráticos

realizarem reformas econômicas e sociais que possam ir rompendo com as

desigualdades aprofundadas no período das ditaduras militares, por terem optado

76 Jornal do Brasil, 22/04/04, p.A3.

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por um modelo “neoliberal” que não permitiu nenhum crescimento significativo de

renda per capita. Pelo contrário, houve um agravamento na concentração de renda:

em 15 dos 18 países pesquisados, mais de 25% da população vivem abaixo da linha

de pobreza.

Além disso, apresenta também, como indicado anteriormente, uma

descrença nas práticas políticas tradicionais. “Para 64,7%, os políticos mentem para

ganhar as eleições e, conseqüentemente, não cumprem suas promessas.” “(...)

Menos de um terço dos entrevistados (27,2%) têm um partido político e votam

sempre na mesma legenda.” 77

Por isto, nos alerta Oliveira (2003),

(...) A democracia e a república são o luxo que o capital tem que conceder às massas, dando-lhes a ilusão de que controlam os processos vitais, enquanto as questões reais são decididas em instâncias restritas, inacessíveis, e livres de qualquer controle. Está em gestação uma sociedade de controle, que escapa aos rótulos simples do neoliberalismo e até mesmo ao mais radical e oposto do autoritarismo. (p.01)

No entanto, a denúncia do esvaziamento da erfahrung/experiência

política nos remete imediatamente para o reconhecimento e necessidade da

construção de uma outra experiência que possa ir se contrapondo ao seu

empobrecimento e apontando para a necessidade de alteração do modo de

produção capitalista. Seria uma forma de recuperar o protagonismo dos espaços

públicos, potencializando a política na sua capacidade de arbitrar os conflitos e de

promover o debate, a escolha e decisões públicas. Fomentar experiências em que os

laços comuns se fortaleçam frente aos interesses particulares, privados.

É... A minha experiência de Cineclube começou no tempo que eu tava na PUC. Eu fiz filosofia na PUC. Isto era um momento muito rico, porque era anos 60 e a gente tinha... achava que a gente ia reformar o mundo, né? Então o Diretório Acadêmico era muito atuante naquela época e a gente começou as primeiras exibições. Não tinha o Cineclube ainda, mas depois a gente chamava Paulo Emilio Sales Gomes, diretores de cinema. (...) E a gente começou a batalhar essas coisas na PUC, e eu acabei ajudando a formação do Cineclube lá. (...) Mas eu tinha as duas coisas (cinema e filosofia): eu tinha a faculdade, com esse movimento estudantil fervilhando, os Diretórios Acadêmicos tinham... não era só cinema, era também um núcleo. Eu lembro que a gente montou a “A Margem da Vida”, do Tennessee

77 Idem.

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Williams, peça de teatro. Eu fiz a cenografia. (...) Então, eu acho que nessa época a gente... não só as questões sociais pra gente eram muito importante, o Diretório Acadêmico era muito atuante. Eu sempre achei que Filosofia tinha tudo a ver com cinema, não é? (Marialva) (...) Bom, mas depois foi o cineclube do Leme, que foi um cineclube mais de patota né, foi geracional. Era o cineclube do encontro dos domingos. Era muito gostoso, onde as pessoas ficaram muito amigas... Todas saíam... todos juntos, quer dizer, foi o cineclube de juventude. Eu também estudava arquitetura e a gente tentou...abrir um cineclube na faculdade, onde era mais difícil, foi lá a situação mais difícil que a gente teve, porque os alunos eram muito desinteressados de qualquer atividade. Nós estávamos reabrindo o Centro Acadêmico e.... (...) O da arquitetura foi o último, eu devia tá... eu entrei na faculdade em 73... arquitetura deve ter sido em 75, porque precisava juntar um grupo de mais de um interessado, um só não faria o cineclube. Tinha o Marcos, o Marquinhos que era o mais interessado...hoje mora em Santa Catarina, que era o ativador mesmo da coisa, mas era muito disperso, era muito desanimador. Você promovia a sessão, ia muito pouca gente. Você tinha aquele trabalho todo de pegar cópia, levar cópia, alugar cópia, pra depois não ter público, essa frustração do público né (risos) enquanto que no Leme a coisa era muito prazerosa. Nós mesmos...só o grupo de organizadores já prestigiava... nós éramos nosso próprio público (risos). Então isso foi uma coisa muito rica né, uma experiência muito especial... (Ana)

∞∞∞

Como os movimentos instituintes, locais/globais, podem vir a se constituir

em experiências capazes de instigar uma outra racionalidade ético-política? É

possível forjar uma cidadania na qual os indivíduos sejam vistos como sujeitos

sociais no processo de mudança, isto é, criar práticas de participação que ampliem a

idéia de cidadania política, incluindo suas dimensões sociais e culturais?

A globalização 78 neoliberal no Brasil articulou “miséria” e

“autoritarismo”, concorrendo para o enraizamento do apartheid social que vivemos.

Constituiu um contexto de pobreza e violência extremas, expressos na deterioração

dos níveis de educação, saúde, alimentação e moradia das classes populares além

78 “(...) O modo capitalista de produção entra em uma época propriamente global, e não apenas internacional ou multinacional. Assim, o mercado, as forças produtivas, a nova divisão internacional do trabalho, a reprodução ampliada do capital, desenvolvem-se em escala mundial. Uma globalização que, progressiva e contraditoriamente, subsume real ou formalmente outras e diversas formas de organização das forças produtivas, envolvendo a produção material e espiritual.” In: IANNI, Octavio: Teorias da Globalização. 5ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. pp.17-18.

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de seu alijamento cultural, principalmente nas grandes cidades, como nos relata a

reportagem “Os excluídos da cultura”:79

... Não tenho dinheiro nem tempo. Estou fazendo pré-vestibular, trabalho e cuido dos meus dois filhos – conta Cristiane. Ela não é exceção. Como ela, milhões de jovens nunca pisaram num cinema, num teatro ou numa casa de shows. Foi o que revelou a pesquisa Perfil da Juventude Brasileira, que ouviu 3.501 brasileiros de 15 a 24 anos. Segundo o estudo, 39% dos entrevistados nunca foram ao cinema. Em relação ao teatro, a situação é ainda pior: nada menos do que 62% dos jovens brasileiros nunca assistiram uma peça. O estudo mostrou ainda que 59% dos jovens nunca foram a um show de rock ou pop e 36% de música brasileira.(...) Cristiane Simone demorou 24 anos, a sua idade, para assistir a um filme no cinema.”

Neste processo, o apartheid social proporciona também um esgarçamento

dos valores culturais tornando-os incapazes de substituir os valores tradicionais,

ultrapassados, por outros, capazes de articular, fazer conexões e permitir relações

menos autoritárias e mais democráticas entre os diferentes grupos sociais e entre as

gerações.

Assim, o projeto neoliberal institui uma “democracia de baixa intensidade”,

isto é, uma democracia que não ameaça o apartheid assinalado, mas que, para se

reproduzir, vai elaborando, principalmente através da mídia, mecanismos de controle

social escamoteados pela imagem da “democratização de formas de consumo e

estilos de vida que estão fora do alcance da maioria da população.” (SANTOS:

1999:53)

É neste sentido que Santos (1999) nos chama a atenção para a

emergência do “fascismo societal”, uma forma de sociabilidade que sonega as

condições de produção da vida à maioria de seus membros, e ao mesmo tempo faz

crer que estas condições são da responsabilidade destes mesmos indivíduos que

compõem esta maioria.

Este projeto soube captar várias das reivindicações dos trabalhadores,

utilizando-as de forma a aprofundar o individualismo e a indiferença. A introdução da

idéia de “flexibilidade” associada à liberdade e mudança para um trabalhador mais

“autônomo” e livre, “dono” do seu tempo e trabalho, apresenta-se na verdade como

79 Revista Megazine, suplemento do Jornal O Globo, 23/11/04.

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uma nova forma de poder e controle, contribuindo para a perda de valores que antes

permitiam a elaboração de vínculos mais solidários e afetivos.

No entanto, ao dizer isto, não defendemos o capitalismo tal qual ele era,

mas enfrentamos o desafio de estruturar nossas histórias de vida num capitalismo,

que como diz Sennett (2003), “nos deixa à deriva”. Como escapar do poder do

capital de cooptar valores que em princípio seriam contestadores da sua própria

ordem?

De acordo com Japiassú e Marcondes, alienação em Marx

significa a ‘despossessão’, seguida da idéia de escravidão. Assim, quando dizemos hoje que o trabalho é um instrumento de alienação na economia capitalista, estamos reconhecendo que o operário é despossuído do fruto de seu trabalho. (1999: 06/07).

No neoliberalismo, podemos agregar à alienação, a indiferença que

propaga o desdém, o desinteresse que vamos estabelecendo em relação ao “outro”.

Assim, vamos introjetando atitudes que cada vez mais dispensam a idéia de

responsabilidade e confiança entre “nós”, abdicando de sermos necessários uns aos

outros. Até quando um sistema que vai minando nossa capacidade de nos

relacionarmos (intercambiar experiências) pode se manter?

Por entendermos que não podemos perder de vista os riscos permanentes

na luta pela democracia, é que acreditamos ser necessário reafirmarmos a dialética80

proposta por Benjamin como forma de contraposição à incompatibilidade entre

expansão do capital e democracia, que gera relações sociais permeadas pela

alienação e indiferença.

Neste contexto, a contradição fundamental é a exclusão social, política,

econômica, cultural, enfim existencial, de grande parte da população, pois para que

este projeto se mantenha e se reproduza é preciso segregar e indiferenciar. Temos

conhecimento de que esta segregação e indiferenciação são construídas e não um

dado fatalista do desenvolvimento capitalista atual, como podemos vislumbrar no

sentimento do poeta:

80 “(...) Para pensar a mudança e a contradição, o sujeito precisa incorporar as verdades de diferentes ‘momentos’, a riqueza de experiências que se realizam em condições diversas. O dialético, portanto, não pode deixar de ser um indivíduo capaz de ouvir o outro.” In: Konder, Leandro. Walter Benjamin: o marxismo da melancolia. 3ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p.16.

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(...) Ai, quem me dera ter um choro de alto porte / Pra cantar com a voz bem forte / E anunciar a luz do dia / Mas quem sou eu / Pra cantar alto assim na praça / Se vem dia, dia passa / E a praça fica mais vazia / (...) Meu chorinho / Não é uma solução / Enquanto eu cantar sozinho / Quem cruzar o meu caminho, não pára não / Mas não faz mal / E quem quiser que me compreenda / Até que alguma luz acenda, este meu canto continua / Junto meu canto a cada pranto, a cada choro / Até que alguém me faça coro pra cantar na rua 81

Assim, visto que a exclusão é parte inerente do desenvolvimento

capitalista, é preciso destacar que, durante a história da humanidade, foi fundamental

para a reprodução dos mecanismos de dominação dos vários sistemas sociais, a

idéia de que homens e mulheres existam apenas como força de trabalho.

Hoje, com a opção por um desenvolvimento tecnológico excludente,

podemos vislumbrar a possibilidade real dos seres humanos se tornarem supérfluos

para os mecanismos que reproduzem esta dominação. Estaria o sistema capitalista

esgotando sua capacidade civilizatória, como denunciam vários autores? Como

elaborar experiências coletivas que caminhem na contramão desta política produtora

de indiferenças?

Para citar apenas um exemplo, na reportagem intitulada “O Primeiro e

Último Emprego” 82, relata-se o problema vivido pelos jovens pobres no que diz

respeito à falta de trabalho.

A necessidade de emprego somada à falta de oportunidades transformou o tráfico de drogas no maior empregador de jovens no Rio.Segundo dados do Instituto Brasileiro de Inovações em Saúde Social (Ibiss), 12.527 crianças e jovens de 8 a 18 anos trabalham hoje no tráfico de drogas em 232 favelas cariocas, sendo 5.773 com idades entre 15 e 17 anos. Nesta mesma faixa etária – segundo a pesquisa mensal de empregos do IBGE de 2002 para a região metropolitana do Rio de Janeiro - estão empregados no mercado regular apenas 1,1% do universo de 287.837 adolescentes. Ou seja: menos de 3.200 jovens trabalham sem risco de serem presos ou mortos.

Vale destacar ainda: “Segundo Pedro Américo (OIT), a pesquisa realizada

mostrou que a maioria de jovens envolvidos, se tivesse escolha, deixaria o tráfico

para estudar ou ter um emprego digno”.

81 Música “Um Chorinho” (1967) de Chico Buarque. 82 Jornal O Globo, 08/12/02.

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Até quando nossa democracia conseguirá coexistir com as violências

decorrentes destas desigualdades e exclusões?

O relato da reportagem revela a fragilidade do exercício da democracia em

nossa sociedade. Uma formação social complexa, que nos últimos 50 anos sofreu

mudanças profundas e traumáticas e, portanto, onde o jogo democrático apresenta-

se ameaçado pelas tensões e conflitos decorrentes destas mudanças.

Cabe ressaltar que este discurso insere-se numa cultura política

autoritária, que imprimiu valores intelectuais e morais sobre o conjunto da sociedade,

confirmando a crença bem explícita do slogan de nossa bandeira: ordem e

progresso. Para tanto, o conflito, como já foi apontado, é invariavelmente expulso do

horizonte político de nossa democracia. Este é visto como desordem e caos, como

caso de polícia. Eis aí um limite que precisa ser desvelado para a ampliação da

cidadania e da democracia.

Neste clima, de acordo com a história da sociedade brasileira, há no

nosso cotidiano a marca, bastante forte, de uma representação homogênea que nós,

brasileiros, temos do país e de nós mesmos. É a partir desta representação que

elaboramos tanto a crença na unidade, na identidade e na indivisibilidade da nação e

do povo brasileiros, como entendemos a divisão social e política como o lugar no

qual ocorrem os conflitos que poderão gerar ou conservar a unidade, a identidade e

a indivisibilidade nacionais.

Esta representação é tão forte que é “tranqüilo” convivermos com os

discursos

os índios são ignorantes, os negros são indolentes, os nordestinos são atrasados, os portugueses são burros, as mulheres são naturalmente inferiores, mas simultaneamente, declarar que se orgulha de ser brasileiros porque somos um povo sem preconceitos e uma nação nascida da mistura de raças. (...) Em suma, essa representação permite que uma sociedade que tolera a existência de milhões de crianças sem infância e que desde seu surgimento, pratica o apartheid social possa ter de si mesma a imagem positiva de sua unidade fraterna. (CHAUÍ, 2000: 08)

Para Chauí (2000), essa representação articula-se à idéia de um mito

fundador. “Um mito fundador é aquele que não cessa de encontrar novos meios para

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exprimir-se, novas linguagens, novos valores e idéias, de tal modo que, quanto mais

parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo.” (p.09)

Este mito, aparentemente difuso, pode ser visto concretamente nos

diferentes discursos que, em nome da cidadania e da democracia, apelam

constantemente para a sua reatualização, como a crítica contundente feita pelos

poderosos com o apoio da mídia, aos movimentos sociais que se colocam na

posição de sujeitos ativos e não de subalternidade.

É, por exemplo, o caso do MST, que segundo eles, se caracteriza por ser

um movimento que contesta a “ordem” legal vigente, aposta no conflito e, portanto,

pode jogar o país no caos. Novamente vemos o mito em ação, na medida em que se

tenta desqualificar um movimento social com reivindicações legítimas e históricas,

apelando para os marcos de uma institucionalidade que não é refutada na sua

origem, ou seja, não se questionam as desigualdades promovidas por esta

institucionalidade. Será porque rompem com os limites de uma democracia formal e

apontam para a construção de uma democracia social e cultural?

Compreendemos que este discurso ambíguo faz parte da estratégia das

elites dominantes de, não abrindo mão de seus interesses e poder, buscarem na

ambigüidade uma forma de aplacar as reivindicações das classes subalternizadas e

manter seus privilégios. Assim, esta prática para se reproduzir, procura na dimensão

simbólica os mecanismos de manutenção de uma prática segregadora.

Os símbolos representam, no caso, uma faixa de segurança, que é alargada, ou estreitada, segundo as vicissitudes da onda reivindicatória. Quando esta se avoluma, criam-se novos símbolos para absorvê-la; se não é possível, tomam-se iniciativas mais realistas, reduzindo-se a área de ficção, recorrendo-se a válvulas de escape. (TRIGUEIRO, 1994:70/71).

Sabemos que este paradoxo tem raízes profundas na cultura e educação

brasileiras. Sua superação depende da capacidade dos movimentos instituintes de

criarem espaços públicos nos quais os interesses, as especificidades e as diferenças

dos diversos sujeitos possam ser expostos, debatidos e negociados, configurando

outras relações culturais e educacionais capazes de romper com o paradoxo

assinalado, por estarem ampliando as práticas democráticas.

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Devemos ter em mente que uma outra estratégia usada pelas classes

dominantes no controle dos direitos de cidadania diz respeito a cooptação das lutas

históricas dos diferentes movimentos sociais e à pressão constante sobre os

governos democráticos, como forma de explicitar sua inoperância e incapacidade

para resolver os problemas que afetam a sociedade.

Reconhecemos que a sociedade brasileira é pluriétnica e policultural, mas,

constituindo-se ainda plural. Historicamente essa diversidade foi e, de certa forma,

continua sendo ignorada mediante um projeto político de domínio e homogeneização

que silenciou e jogou no esquecimento experiências e memórias dos diversos grupos

que não pertenciam e não pertencem à elite dominante. Até que ponto esquecidos e

silenciados?

É importante notar que este projeto necessita apagar cotidianamente

essas e outras histórias e memórias para que se torne hegemônico. Entretanto,

encontra resistências reais nos vários movimentos sociais, que buscam no resgate

de suas memórias coletivas, construir outras narrativas e identidades múltiplas,

capazes de elaborar resistências e liberdades.

Nesta direção, fica claro que para potencializar os conceitos de

democracia e cidadania na perspectiva ética que promova a justiça e igualdade, é

urgente desprivatizar o Estado, colocando-o sob o controle da sociedade civil,

publicizando-o, garantindo a transparência de seus atos e o caráter democrático de

seus procedimentos.

No entanto, Oliveira (1998) chama a atenção dos riscos permanentes na

luta pela democracia em sociedades periféricas e dependentes:

A hipótese radical de Florestan Fernandes, de esgotamento das energias revolucionárias da burguesia na América Latina, que torna incompatíveis expansão capitalista e democracia, parece sombriamente confirmada pelos últimos desenvolvimentos/experimentos neoliberais, que soaria outra vez como um paradoxo barroco, em virtude de que são os regimes democráticos(?) saídos do longo período de ditaduras militares os condutores performáticos da nova exclusão. (p. 207)

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Nesta esteira, Sennett (2003) nos adverte sobre a incerteza (desastres

naturais, guerras, epidemias, etc...) que homens e mulheres sempre conviveram ao

longo de suas histórias. Entretanto, destaca que o que torna a incerteza ímpar hoje é

que ela, ao contrário de outros tempos, está mesclada nas práticas cotidianas de um

robusto capitalismo. A instabilidade vira rotina e a indiferença vai se “naturalizando”.

Como, então, construir experiências compartilhadas?

Como já apontado anteriormente, de acordo com Benjamin, “sabia-se

exatamente o significado da experiência: ela sempre fora comunicada aos jovens”.

(1994:114). Entretanto, com a perda desta comunicabilidade e com o predomínio da

experiência individual, em detrimento de laços coletivos, caminhamos em direção a

uma nova barbárie, já que nossa experiência atual tende a construir experiências

desvinculadas, impedindo compor narrativas coletivas que criariam uma nova

sociabilidade.

Como desvelar as contradições de um discurso de valorização do trabalho

e da mobilidade social, numa sociedade com desemprego estrutural? Que práticas

são necessárias para irmos rompendo com o conflito existente na vida social entre

competitividade e solidariedade? Quais as possibilidades e limites das ações

instituintes na construção de sujeitos coletivos e individuais comprometidos com uma

ética que visa a emancipação social?

Neste contexto, cumpre esclarecer que as mudanças materiais -

tecnológicas principalmente - ocorridas nas últimas décadas do século passado, não

foram acompanhadas de mudanças nas relações sociais, no sentido de um

progressivo bem-estar da maioria da população, aprofundando o fosso entre pobres

e ricos e ampliando a defasagem cultural e educacional entre as classes sociais e as

gerações.

Estamos convencidos que a tecnologia, neste quadro, desempenha um

papel fundamental, tornando o conhecimento o elemento fundamental na

organização desta nova forma de se elaborar a vida humana. Assim, a educação e a

cultura adquirem um papel imprescindível, pois os indivíduos necessitam dominar

cada vez mais sistemas complexos que envolvem linguagens técnicas,

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procedimentos especializados e a manipulação de um repertório simbólico bastante

específico. O não domínio desta tecnologia implica numa “nova” forma de exclusão.

Contudo, a principal conseqüência desse processo de tecnificação cada vez mais abrangente é a de pôr à prova a solidez dos sistemas tradicionais de valores, obrigando-os a um regime de reajustes tão incessante quanto indeterminado. (OLIVEIRA, 2002: 195)

Para nós, esta situação articula-se a uma crise da “cultura ocidental”

apontada por diversos autores, que explicitam o aprofundamento do divórcio

existente entre ciência e existência. Aqui, sublinhamos que a especialização e

fragmentação dos saberes, implicando no estabelecimento de dicotomias: separação

entre sujeito e objeto, razão e emoção, corpo e mente, propiciou um pensamento,

predominantemente homogêneo e dogmático, que negou as diferenças, o debate e o

diálogo e (re)afirmou atitudes de subalternidade e exclusão, encontrando no modelo

neoliberal de sociedade a sua possibilidade de continuar a se reproduzir.

No entanto, as condições para esta reprodução fizeram-se e fazem-se

crivadas por intensos embates científicos, filosóficos, políticos e culturais que

revelam as disputas dos diferentes projetos de mundo, sociedade e ser humano.

Vale esclarecer que, neste debate, é preciso compreender a relação

dialética entre igualdade e diferença. Assim, em nosso entendimento, não é possível

contrapor igualdade à diferença, pois a oposição ocorre entre

igualdade/desigualdade e diferença/padronização. Neste sentido, compreendemos

que, para que haja relações democráticas na sociedade e na escola, é necessário

existir igualdade de direitos básicos para todos os indivíduos. Todavia, “esses todos

não são padronizados, não são os mesmos”. (CANDAU, 2002)

É nesta perspectiva, que a criação de uma sociedade democrática

pressupõe o reconhecimento das diferenças como elemento de construção da

igualdade, além de vislumbrar, no mínimo, a possibilidade dos homens e mulheres

criarem uma nova relação com o mundo, onde a ética não seja uma palavra oca e

sejamos capazes de estabelecer uma experiência com “um passado que não se

encontra apenas atrás de nós, mas dentro de nós”. (BOSI, 1992)

Um passado que como diz este autor:

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(...) foi capaz de sustentar, em meio a lutas fratricidas e em pleno surto feroz do capitalismo, o ideal dos Direitos do Homem e do Cidadão; e que conseguiu harmonizar, mediante a invenção da arte, a paixão libertária e as regras imanentes da forma nas sinfonias de Beethoven e nos poemas de Blake; e que pensou o destino do ser humano com a densidade e a beleza do Fausto, de Guerra e paz e dos Irmãos Karamazov (... ) (idem, p. 356)

Este projeto facilitaria também o convívio com os diferentes

conhecimentos, dando condições de diálogo entre tradição e inovação, respeitando

as diferenças entre os sujeitos, na perspectiva de entender como estas se localizam

no seio de uma cultura, além de perceber a diferença como sinônimo de tolerância e

convivência e não de formação de “guetos”.

Como poderíamos instituir “inconformismos” sociais no sentido de nos

potencializarmos enquanto sujeitos de nossa aprendizagem, de nossa autonomia, de

nossa ação social, colaborando para a construção do processo democrático?

Em nosso texto 83, salientamos que Paulo Freire (1996), ao analisar o

papel do educador, aponta em que condições podemos ser agentes ativos da

História, resgatando passados, atualizando presentes e inventando futuros. “Não

podemos nos assumir como sujeitos da procura, da decisão, da ruptura, da opção,

como sujeitos históricos, transformadores, a não ser assumindo-nos como sujeitos

éticos.” (p. 19)

Julgamos, desse modo, que nosso estudo apresenta outro espaço de

formação e produção do conhecimento, trazendo à tona a necessidade do entrelace

entre estes e a escola enquanto uma instituição formal. Com isto, não estamos

desprezando este como espaço de formação, mas estamos falando da possibilidade

do espaço escolar constituir uma experiência - erfahrung - com as alternativas

coletivas que insurgem dos movimentos sociais e culturais.

83 MATELA, Rose Clair P. e SERRA, Margarida de Andrade. “As Múltiplas Vozes nos 500 anos de Brasil e o eco de uma voz”. (2000: 06)

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CAPÍTULO III

A NARRATIVA NA RECONSTRUÇÃO DAS EXPERIÊNCIAS

O tempo torna-se tempo humano na medida em que é articulado de um modo narrativo, em compensação, a narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da experiência temporal. Paul Ricoeur, Tempo e Narrativa.84

3.1. Das muitas maneiras de narrar uma história

Instigados pela citação acima, escolhemos para o nosso percurso

metodológico a narrativa, compreendida como mediação entre o tempo vivido e os

sentidos produzidos neste tempo pelas ações humanas; a narrativa como

experiência compartilhada, dialogada, e, assim sendo, política, visto que nesta

perspectiva, o sujeito se constitui na interação com o outro, num contexto sócio-

histórico.

Em nossa trajetória, nos apoiamos principalmente em Benjamin para

falar de narrativa, mas também nos aproximamos de outros autores e aqui

convidamos Bakhtin para enriquecer nossa reflexão, na medida em que encontramos

pontos de confluência entre ambos.

Entendemos que eles nos possibilitam perceber a narrativa como

abertura ao outro, ao diálogo85, evidenciando a multiplicidade de vozes e de sentidos

84

Citado em CARVALHO, Isabel Cristina Moura. Biografia, Identidade e Narrativa. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 9, n.19, p.283-302, julho de 2003.

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produzidos pelos sujeitos em suas narrativas, instituindo experiências. Experiências

geradas na linguagem, que nos revelam a sua dimensão ideológica e dialógica,

historicamente constituída. Homens e mulheres ao fazerem e contarem história,

inventam o mundo e a si mesmos, tornando-se sujeitos na linguagem.

“(...) o narrador é um homem que sabe dar conselhos. Mas, se “dar conselhos” parece hoje algo de antiquado, é porque as experiências estão deixando de ser comunicáveis. Em conseqüência, não podemos dar conselhos nem a nós mesmos nem aos outros. Aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada. Para obter essa sugestão, é necessário primeiro saber narrar a história (sem contar que um homem só é receptivo a um conselho na medida em que verbaliza a sua situação). O conselho tecido na substância viva da existência tem um nome: sabedoria. A arte de narrar está definhando porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção Porém esse processo vem de longe. Nada seria mais tolo que ver nele um “sintoma de decadência” ou uma característica “moderna”. (BENJAMIN, 1994, p.198.)

Falamos, então, em narrativa, porque ela se constituiu na “pièce de

résistance” de nossa opção teórico-metodológica, uma vez que através dela nos

apropriamos das experiências cineclubistas. Estas reafirmaram que as experiências

para se tornarem intercambiáveis, necessitam de um espaço coletivo de

criação/fabricação de sentidos, como nos diz um de nossos narradores:

Eu acho que têm duas coisas que são importantes. Uma é que sempre gostei de cinema, desde pequeno. Eu quando era pequenininho, os primeiros filmes brasileiros que eu vi foi com minha avó que me levava de bonde (na antiga Ipanema) pra ver cinema. Vi filme brasileiro assim desde pequenininho. Ela tinha toda uma coisa nacional, o marido (meu avô) foi desenhista e isso para ela deve ter influenciado muito. Já nos anos 70, tinha uma coisa também, a necessidade de fazer alguma coisa, aquela necessidade... de...agir, resistir. Isso ficou mais claro depois, mas na época tal atitude reuniu duas coisas: fazer algo contra a censura e ao mesmo tempo fazer alguma coisa com gosto, que é ir ao cinema. Discutir, debater cinema, sistematizar algo que você já fazia informalmente, enfim, isso que me atraiu bastante, naquele pessoal do cineclube. Eu não entrei diretamente, comecei a freqüentar o Cineclube Leme, depois me envolvi na organização do cineclubismo. (Roberto)

85 “O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão uma das formas, é verdade que das mais importantes, da interação verbal. Mas pode-se compreender a palavra “diálogo” num sentido mais amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja”. BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Editora Hucitec, 1988, p. 123.

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Nosso estudo situa-se no campo das pesquisas em ciências humanas

que advogam que a construção do conhecimento e, portanto, do estudo em questão,

são produções elaboradas entre sujeitos, ensejadas pela linguagem, explicitando o

caráter dialógico das relações sociais e o imbricamento das diferentes facetas

humanas envolvidas no processo de conhecimento. (FREITAS, 2003).

Conforme mencionado, Benjamin e Bakhtin se tornaram nossos

interlocutores e referências de interpretação na análise das narrativas em nosso

trabalho. Assinalamos que mesmo com aportes teóricos diferenciados, estes autores

permitem aproximações, uma vez que os conceitos formulados por eles foram

criados não para instituir um sistema filosófico fechado, mas como elaboração crítica,

para manter a efervescência do pensamento como questionamento permanente da

ordem das coisas, permitindo teorizações abertas, que possibilitem diferentes

apropriações e conexões.

Consideramos, porém, importante ressaltar que não esperamos que

nossas apropriações sejam expressões fiéis de seus pensamentos, na medida em

que temos clareza que no processo de conhecimento elaboramos a nossa

“contrapalavra”, estabelecendo com eles um diálogo.

Julgamos, neste sentido, que a perspectiva teórica destes autores e

seus desdobramentos, nos fornecem uma leitura das entrevistas que favorece uma

“livre interpretação dos significados contidos nas narrativas”, uma re-significação das

experiências temporais, contribuindo para resguardar o pensamento da constante

possibilidade de petrificação que podem sofrer nas suas estagnações instituídas.

Segundo Benjamin para que o conhecimento não seja aprisionado,

para que possa se expandir e se potencializar, faz-se necessário que ele tenha como

referência uma visão do “todo”, atentando-se, porém, às propensões desse “todo” à

sedimentação. Na dialética, proposta por este autor, tudo que escapa do “todo”, que

ainda está em formação, e, por isso, não foi “totalizado”, precisa ser retomado para

ser integrado em uma “nova totalidade”. (Konder, 1999).

Benjamin procurava encaminhar o conhecimento na direção da “pequena imagem fugaz, por oposição ao conforto científico”. José Guilherme Merquior discerniu com argúcia no pensamento de Benjamin essa busca de

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“uma nova espécie de relação com o Todo”, esse esforço metodológico que o levava a trabalhar com um “horizonte móvel”, no qual a “totalidade” só podia aparecer como “um clarão” e jamais poderia ser usada para compor um sistema “fechado”. (Idem, p. 71)

Assim é que ao propor aos historiadores marxistas uma fundamentação

num princípio construtivo, capaz de fazer com que o pensamento inserisse não só o

movimento das idéias, mas também a sua imobilização, Benjamin revelava a

potência transformadora de um procedimento que cessando o pensamento

subitamente, pudesse desnudá-lo, descortinando as tensões dos acontecimentos, e

possibilitasse reflexões críticas que ensejassem novas configurações.

(Benjamin,1994: tese17). “A dialética para Benjamin só se pode fazer hoje como

fotografia, que fixe a imagem e o lugar das coisas arrastadas pelo turbilhão.”

(Konder, 1999: 105).

“Imagens dialéticas” e “efeito de estranhamento ou distanciamento”86,

provocam desconforto perante o vivido, nos instigando a “interromper” o fluxo dos

acontecimentos, como forma de escapulir das opressões cotidianas, das

continuidades, visto que neste movimento de estranhamento são criadas as

condições de produzir desvios, descontinuidades, que propiciam outras ações frente

a realidade existente.

Como potencializar, no entanto, as “imagens dialéticas” perante um

pensamento dominante carregado de continuidades e imobilizações?

Nesta abordagem o método está em estreita sintonia com a articulação

que o autor faz em seu trabalho entre vida e obra, entre ciência e existência,

quebrando com a oposição entre particular e universal, o que nos possibilita ver nos

acontecimentos, grandes ou pequenos, o movimento dialético dos fragmentos que

compõem um todo em constantes rearranjos.

Seu método resulta em que na obra o conjunto da obra, no conjunto da obra a época e na época a totalidade do processo histórico são preservados e

86 Na sua perspectiva de teatro épico, Brecht propunha a criação de efeitos de estranhamento que incitam uma postura crítica e de intervenção por parte dos espectadores. Cessando a continuidade da ação e, portanto, a concentração do espectador no desfecho, este é lembrado que a arte não é a vida, marcando a teatralidade e o artifício da representação. “O teatro épico é o teatro do herói surrado; o herói não surrado não se eleva à reflexão.” (Benjamin). Citado em Konder, 1999, p.75.

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transcendidos. O fruto nutritivo do que é compreendido historicamente contém em seu interior o tempo, como sementes preciosas, mas insípidas. (BENJAMIN, tese 17, 1994: 231).

Por este procedimento, podemos descobrir os vestígios e os detalhes

que se tornam sintomáticos no momento em que escapam das ”sombras”,

expressando o significado histórico-político da composição de uma obra. Assim

sendo, tudo pode ser transformado em objeto de observação pormenorizada, uma

vez que há nestes resquícios “uma concentração de significações diversas na

intensidade de uma forma única, espécie de mundo em miniatura ou, na terminologia

leibniziana, de mônada.” ( Gagnebin, 1992: 44)

Desse modo, nosso autor percebia a energia crítica e, portanto, política

do pensamento, que dialeticamente, possibilita a partir da observação minuciosa de

fragmentos num primeiro instante sem importância ou estranho, a condição para

penetrar no mundo histórico do cotidiano, (re)interpretando-o e (re)fazendo-o

permanentemente, pelos fios que se entrelaçam na construção de nossa existência.

Encontramos na afirmativa de Benjamin (1995) “método é desvio”

afinidades entre o seu pensamento e o surrealismo87. Sabemos que nosso autor

sentiu-se seduzido ao tomar contato com as idéias do movimento surrealista, pois via

nelas uma proximidade com seus pensamentos e experiências, apesar dos

distanciamentos e críticas.88

A proximidade que queremos destacar é a noção de “deriva” que nos

parece fundamental para compreendermos a concepção de método em Benjamin.

87

O surrealismo é “(...) um protesto contra a racionalidade limitada, o espírito mercantilista, a lógica mesquinha, o realismo rasteiro de nossa sociedade capitalista-industrial, e a aspiração utópica e revolucionária de “mudar a vida”. É uma aventura ao mesmo tempo intelectual e passional, política e mágica, poética e onírica, que começou em 1924 mas que está longe de ter dito suas últimas palavras.”Ou “Aos olhos de Benjamin, o surrealismo é (...) uma tentativa de “fazer explodir de dentro o domínio da literatura” graças a um conjunto de experiências (Erfahrungen) mágicas de alcance revolucionário. Mais precisamente, de um movimento “iluminado”, profundamente libertário e, ao mesmo tempo, em busca de uma convergência possível com o comunismo.” In: LOWY, Michael. A estrela da manhã: surrealismo e marxismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 9 e p.42. 88 “(...) Benjamin tenta fugir de uma fascinação que lhe parece perigosa e destacar a diferentia specifica de seu próprio projeto. Em novembro de 1928, em uma carta a Scholem, ele explica que sente necessidade de “afastar seu trabalho de uma vizinhança excessivamente ostensiva com o movimento surrealista, que, por mais compreensível e fundada que fosse, poderia ser-me fatal”- sem com isso recusar-se a recolher a herança filosófica do surrealismo.” Idem, p.40.

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Contra a reificação de nossas ações cotidianas, a experiência da deriva, tal como

sugerida pelos surrealistas, propunha-se a romper com a rotina pesada, repetitiva,

embotadora da vida na sociedade capitalista.

Por esta experiência era possível “re- encantar o mundo”, não pela via

religiosa, mas “(...) restabelecer, no coração da vida humana, os momentos

“encantados” apagados pela civilização burguesa: a poesia, a paixão, o amor-louco,

a imaginação, a magia, o mito, o maravilhoso, o sonho, a revolta, a utopia”89, visto

que os momentos “encantados” podem romper com o regulamentado, com a lógica

estabelecida, instaurando outras lógicas, que irrompem movimentos instituintes de

outros sentidos, escapando das coerções cotidianas.

Ao desviar-se do instituído, a deriva nos propiciaria o questionamento

da cultura contemporânea, assentada em bases capitalistas e se aproximaria da

idéia de Benjamin de descontinuidade histórica, na medida em que ao derivar, é

possível “escapar do continum da história” e “captar o fluxo milenar da tenacidade

dos vencidos capaz de nutrir a história a contrapelo”.90

Assim, seria possível revelar a falácia do progresso e a linearidade da

sociedade capitalista como evoluções naturais do desenvolvimento da humanidade,

contribuindo para traçar outro percurso histórico, mais justo e solidário para mulheres

e homens.

Como manter, desse modo, acesa a chama do desvio, do instituinte em

momentos de “extremo perigo”?

(...)eu me envolvi com o movimento cineclubista, na UFES (Universidade Federal do Espírito Santo) logo que entrei na universidade. O Encouraçado Potenkin, de Eisenstein marcou minha história de vida. O filme é sobre a revolta da tripulação do encouraçado contra as péssimas condições dentro da embarcação e a recusa do totalitarismo ali estabelecido. O filme

89 “Isso vale também para a embriaguez moderna, da qual os surrealistas são portadores, que não poderia de modo algum ser associada àquela, arcaica, dos tempos antigos. Benjamin insiste, aliás, na distinção entre as formas inferiores e primitivas de embriaguez – os êxtases religiosos ou da droga – e uma forma superior, que em seus melhores momentos o surrealismo traz em si: a iluminação profana, “de inspiração materialista e antropológica”. “(...) a iluminação profana dos surrealistas consiste antes de mais nada em “experiências mágicas sobre palavras”, nas quais “interpenetram-se palavra de ordem, fórmula de encantamento(Zauberformel) e conceito:. (Benjamin 1971, p.305). In:LOWY, Michael. A estrela da manhã: surrealismo e marxismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p.46. 90 LINHARES, Célia. Anotações de Seminário.

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provocava fortes sentimentos com sua montagem e representava o sonho por liberdades. Lutávamos, naquele momento contra a ditadura militar e exibíamos filmes que eram censurados ou proibidos. (Lucinha)

Neste trajeto, percebemos que a teoria benjaminiana, ao se contrapor

às dicotomias naturalizadas por um pensamento dominante – racional/irracional;

conhecimento/vida – nos oferece uma ferramenta metodológica fundamental para

compreendermos, no que diz respeito a este trabalho, as narrativas como desvio do

que está constituído e, portanto, como experiências que retecem outros sentidos

entre passado/presente e futuro.

(...) As jornadas nacionais, que eram um barato também, porque você conhecia gente... Por exemplo, eu conheci o pessoal do Rio e de São Paulo, em Jornada de Cineclube. Eu e meu marido nos conhecemos numa Jornada. O pessoal do Estação, com o qual eu me envolvi, o Nelson, o Adhemar, conheci todos nas jornadas. Você vê como é que o cineclube mudou a minha vida, assim né? De economista... (risos) (...) [Virou] investidora, produtora cultural (risos). (Lucinha)

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Consideramos que trabalhar na direção de “método é desvio”, é

impulsionar nossa busca constante pela descoberta dos mistérios humanos que

nunca cessam, é compreender nossa alteridade, é entender a relação dialética entre

sonho e despertar, é perceber a dimensão ético-polítca da rememoração que

conecta experiências, memórias e narrativas. Ou como nos diz Lowy (2002): “(...) a

aspiração de Benjamin não é – como a de Baudelaire e de André Breton – a criação

de um mundo novo onde a ação seria enfim irmã do sonho?” (p. 53).

Desse modo, vislumbramos uma primeira aproximação entre Benjamin

e Bakhtin, pois para este, o método nas ciências humanas se configura como

“compreensão correspondente”, como dialogia; uma vez que enquanto sujeito

interpretamos ou compreendemos um outro sujeito, ao invés de conhecer somente

um objeto.“(...) A compreensão é uma forma de diálogo; ela está para a enunciação

assim como uma réplica está para a outra no diálogo. Compreender é opor à palavra

do locutor uma contrapalavra.” (Bakhtin, 1988: 132).

O dialogismo91 tem como fundamento o contexto sócio-histórico, no

qual aparece o diálogo entre interlocutores e o diálogo entre discursos. No primeiro,

o autor ressalta que a inter-relação entre os sujeitos institui a linguagem, cria o

sentido do texto e a significação das palavras, além dos próprios sujeitos no

momento da produção dos textos. Na vida social temos então uma relação entre

sujeitos e dos sujeitos com o grupo social, temos uma concepção de sujeito histórico

e ideológico. (Barros, 1996)

No segundo, a condição do sentido do discurso é dada pelo

entrelaçamento histórico, social e cultural que o atravessa. Como produção histórico-

social, o discurso carrega diferentes textos e vozes que expressam as contradições,

ambivalências, lacunas e complementaridades da vida em sociedade.

A idéia de que “a criação ideológica não existe em nós, mas entre nós” (Bakhtin; Medvedev, p.8), parece exemplar no que diz respeito ao permanente diálogo existente entre indivíduo e sociedade, dimensão que a

91

“(...) Bakhtin vê a possibilidade de construir uma ciência das relações, em que a mente teria uma função construtiva fundamental. Esta ciência Bakhtin concebeu como dialogismo. Por ser um modo de sistematização do conhecimento, de ordenação das partes num todo e de construção da percepção, o dialogismo se fundamenta não só como categoria estética, mas também como um princípio filosófico que orienta um método de investigação.” In: MACHADO, I. O romance e a voz: a prosaica dialógica de M. Bakhtin. São Paulo: Fapesp/Imago, 1995, p.36.

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linguagem se encarrega de instaurar e mobilizar. (...) é o conceito de linguagem enquanto enunciação, interação [que nos permite] entender a enunciação indissoluvelmente ligada às condições da comunicação, que por sua vez estão sempre ligadas às estruturas sociais. (Barros, 1996: 78)

Entendemos que ao privilegiar as narrativas dos/das entrevistados/as,

confluímos e corroboramos com esta perspectiva de fazer pesquisa, na medida em

que os sujeitos neste trabalho são vistos como interlocutores, e, por conseguinte, co-

participantes do processo de investigação. Esta abordagem teórico-metodológica

proporciona, assim, condições de produção de uma investigação que tenta se afastar

das cristalizações, procurando assegurar a função crítica da teoria.

É no encontro entre pesquisador/pesquisado que brotam as condições

de elaboração dos discursos e diálogos destes sujeitos, a partir dos quais os

conhecimentos são produzidos e os vários discursos são confrontados, revelando a

multiplicidade de vozes e de sentidos. Nesta multiplicidade vêm à tona os conflitos,

os paradoxos e as tensões próprias dos lugares sociais de onde se produzem os

discursos. (AMORIM, 2003).

Desse modo, encontramos na narrativa, no encontro com o outro, na

rememoração e tessitura de nossas experiências, a possibilidade de fazer um estudo

que explicita nosso envolvimento neste processo e compreende a pesquisa em

ciências humanas como interpretação e atribuição de significados. Esta experimenta

a interação com o outro, a responsabilidade de nossas ações na investigação

realizada, não abrindo mão da ética e do compromisso com os pressupostos

epistemológicos aqui expostos, como destaca Amorim (2003):

A teoria e a estética somente se tornam éticas quando viram ato: quando alguém singular num posição singular e concreta, assume a obra ou o pensamento em questão. Assumir um pensamento, assiná-lo, ser responsável por ele em face dos outros num contexto real e concreto, tornar o pensamento um ato, eis o que torna possível um pensamento ético ou, como diz Bakhtin, um pensamento não-indiferente. (p. 16)

Ao recuperar a história de vida dos sujeitos92, ou seja, as narrativas

produzidas por eles, a partir das suas rememorações, acreditamos exercitar um

92 Estamos considerando história de vida “qualquer relato retrospectivo de uma experiência de vida, completa ou em parte, de uma pessoa, grupo ou instituição, de forma oral ou escrita, obtida ou sugerida por outra pessoa.” ( Minayo, 1993; Tierney, 2000). In: Mendonça, C. P. Tese de Doutorado, 2005, p. 55.

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pensamento “não-indiferente”, pois evidenciamos o caráter social e político da

linguagem, realçando que toda palavra possui propósitos e significados, e, portanto,

que para entender o discurso é preciso entender o contexto. “(...) A palavra está

sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico e vivencial”.

(Bakhtin, 1988:95).

(...) Então para essas pessoas que compunham a equipe do cineclube, discutir sobre os filmes, naquela fase que eu falei que a gente discutia os filmes antes de passar para o público, devia ter alguma importância, porque se não tivesse, certamente elas não o fariam. Eu não sei mensurar isso, não tenho nem informação pra isso, mas que deve ter tido influência deve. Para os outros também. Uma coisa engraçada (não sei se engraçado é o correto falar), mas quando passamos o “Assalto ao Trem Pagador”, tem uma cena com o Grande Otelo, que faz o papel de bêbado. Ao ver passar um enterro de uma criança, o Grande Otelo fala assim: “Quando morre uma criança no morro todo mundo devia ficar feliz, porque é menos uma a viver nessa desgraça”. E eu perguntei as pessoas que estavam vendo o filme, se elas concordavam com essa frase e elas diziam que não. O que pra mim foi surpreendente. Quer dizer, como é que é? O diretor do filme bota na boca de uma pessoa que tá fazendo o papel de um favelado, uma frase que o favelado não concorda com ela? Quer dizer, por isso que essa experiência me moldou tanto, porque eu tava ali, assisti o filme, achei que essa frase era uma frase perfeita e o povo favelado achou que não era. Então era um negócio... Nesse dia até teve alguma conversa, às vezes tinha... Talvez eu tenha pintado o quadro pior do que ele era. As vezes tinha uma conversa, muito raramente”. (Ubiratan) (...) A característica minha e dos meus colegas de cineclube é que não éramos militante de nenhuma organização clandestina de esquerda, que era o nome dado pela ditadura na época. Eram pessoas que tinham uma visão política, da sociedade e da vida, da organização, mas não tínhamos militância. Eu inclusive passei a ter ligação com a militância política, a partir do movimento cineclubista e não ao inverso. (...) a minha motivação pra criar o cineclube era mais discutir cinema, discutir... não estética pela estética, o filme pelo filme, mas era... claro, cinema ligado a vida brasileira, a sociedade brasileira, a sociedade cultural, a vida cultural. Mas eu não tinha uma visão assim tão orgânica, organizada, partidária. ( Marcus)

Aqui, fazemos uma segunda aproximação, ao entendermos que tal

como Bakhtin, Benjamin ao articular história, experiência e linguagem numa

concepção de crítica à cultura contemporânea, expõe a cristalização que a

linguagem sofre na sociedade capitalista e chama nossa atenção para a importância

da (re)criação de uma linguagem que não separa ação e conhecimento, ato e

palavra, como possibilidade da experiência. “(...) Benjamin considera devastador o

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equívoco que cinde palavra e ação. Porque o ato não é, nestes domínios, o que está

no fim de um processo, mas a própria linguagem em seu exercício.” (MURICY, 1998:

90).

Podemos dizer, ainda, que Benjamin conflui com Bakhtin ao denunciar

o esvaziamento da “arte de narrar”, pois neste esvaziamento está a crescente perda

de nossa capacidade de criar e contar histórias, de nos comunicarmos e de nos

constituirmos com o outro. Daí a importância de revigorar a narrativa como forma de

nos contrapormos à banalização de nossas existências, produzidas pelas práticas

capitalistas.

A narrativa ao fazer parte do “discurso vivo” dos sujeitos pode

engendrar experiências intercambiáveis, experiências instituintes de outros modos de

vida que se colocam na contra mão da invariável ameaça de “barbárie” em nossa

sociedade.

Através da narrativa, recuperamos a história de vida dos diferentes

sujeitos da pesquisa, salientando o atravessamento histórico e cultural que

perpassam os indivíduos e a importância da narração na formação do sujeito, como

nos relata uma das narradoras:

(...) Eu diria que o cineclubismo foi uma coisa fundamental na minha formação, eu percebo isso até hoje. Entrei em contato com ele eu era estudante de 2° grau na época, ensino médio hoje, mas não foi pela escola, foi por amizade de bairro. Eu tinha amigos que conheciam pessoas que estavam fazendo um cineclube numa igreja próxima da minha casa e fomos lá um dia pra ver o que é que era isso, e aí conhecemos as pessoas, ficamos amigos, todos moravam ali na mesma região e comecei a freqüentar e virei cineclubista. Nunca teve, no meu caso, relação com a universidade. E eu diria que foi uma coisa assim, determinante na minha formação, muito importante, muito importante mesmo. Eu acho que eu seria outra pessoa hoje se eu não tivesse vivido o que eu vivi no movimento cineclubista, em relação a vários aspectos da vida. Aprender a trabalhar, por exemplo, aprender a me organizar.(...) a militância política... (Aninha)

Consideramos então, que as narrativas nos convidam a ver como a

experiência vivida por um sujeito nos dá pistas de que as nossas mais íntimas

vivências excedem nossa história individual, na medida em que nos constituímos na

relação com o outro, como nos diz Bakhtin:

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(...) É nesse sentido que o homem tem uma necessidade estética absoluta do outro, da sua visão e da sua memória; memória que o junta e o unifica e que é capaz de lhe proporcionar um acabamento externo. Nossa individualidade não teria existência se o outro não a criasse. A memória estética é produtiva: ela gera o homem exterior pela primeira vez num novo plano de existência. (Geraldi, 1992:55).

O processo de rememoração revela que a experiência (erfahrung), no

sentido dado por Benjamin (1994), emerge da memória coletiva, expressando a

interdependência entre indivíduo e sociedade. Nesta mesma direção, Elias (1994)

nos diz que o indivíduo deve ser compreendido na sua relação cotidiana com os

outros. Só podemos dizer “eu”, porque imaginamos a existência de outros, de “nós”.

Portanto, cada “eu” está, permanentemente, incluído num “nós”, na medida em que

para estarmos no mundo, precisamos estar com o mundo e com os outros.

Isto significa perceber que a vida humana é composta de incompletudes,

complementaridades, dissonâncias, conflitos, exigindo de nós posturas éticas diante

das opções que fazemos, cotidianamente, no contexto sócio-cultural em que

vivemos.

Neste processo permanente de re-significação, a experiência precisa, para

se tornar memória coletiva, desse espaço de produção de sentidos; espaço este

conseguido somente quando as histórias passadas se entrecruzam, permitindo um

diálogo com as histórias em produção no presente e onde uma “lógica de futuro”,

uma “memória de futuro” depende do sentido de “ética” que construímos para o

presente.( Geraldi, 2003)

3.2. Experiências que se desdobram...

Nosso estudo destaca o valor da experiência como fonte e possibilidade

da narrativa. As narrações, ao entrelaçarem diferentes tempos (passado/presente e

futuro) e lugares, questionam uma história linear e única, um tempo “homogêneo e

vazio”, impulsionando “um tempo saturado de agoras”. A narrativa configura-se

como movimento constante, como abertura e pluralidade. Ao contar suas histórias,

os sujeitos o fazem em conexão com as diferentes lembranças que vão sendo

elaboradas, sem uma direção e objetivos rígidos, sem um fim em si mesmo,

construindo outros significados nesse (re)contar.

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Responder a essa entrevista, por exemplo, me ajudou a organizar uma

parte de minha vida que nem eu mesma havia percebido como tão

importante. Ganhei muito com ela e agradeço imensamente a

oportunidade.(Lídia)

Acreditamos, ainda, que as narrativas são formas de estruturarmos nosso

pensamento e ação, de criarmos significados culturais que possibilitem o diálogo

entre os indivíduos, por estarem entrançadas às experiências do mundo vivido.

Supomos, portanto, que elas podem contribuir para organizar um conhecimento

múltiplo, não hierarquizado, mais conectado à vida cotidiana dos diferentes sujeitos

sociais, como dizia Benjamin, “O cronista que narra os acontecimentos, sem

distinguir entre os grandes e pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que

um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história.” (tese 3, 1994: 223)

As narrativas também podem se constituir no espaço de resgate de uma

linguagem que não se instrumentaliza; uma linguagem que nomeia, porque passa a

ser experiência que se intercambia, pluralizando sentidos e colaborando para a

dimensão criativa da linguagem que não se faz sem uma atitude crítica frente à

sociedade opressora de cada tempo. “(...) só a linguagem humana dos nomes, pela

qual o homem expressa sua relação com as coisas, pode alcançar expressão plena

e universal.” (MURICY, 1998: 103)

Palavra prima / Uma palavra só, a crua palavra / Que quer dizer / Tudo / Anterior ao entendimento, palavra / Palavra viva / Palavra com temperatura, palavra / Que se produz / Muda / Feita de luz mais que de vento, palavra (...) Palavra boa / Não de fazer literatura, palavra / Mas de habitar / Fundo / O coração do pensamento, palavra. 93

As narrativas construídas no processo de rememoração são

manifestações de memórias coletivas, uma vez que são vistas tanto como

expressões individuais - palavras, gestos, olhares, vozes, escritas - como produções

culturais. Possibilitam compreender que os sujeitos subjetivam a cultura, por terem a

93 Música “Uma Palavra” de Chico Buarque.

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capacidade da reflexão, da interpretação, significando e re-significando o mundo e

suas experiências nessas mediações.

Entendemos que as memórias dos participantes do movimento

cineclubista são importantes, porque significam a recuperação, através do processo

de rememoração que não é linear, nem cronológico, das experiências sociais vividas

pelos sujeitos da pesquisa, em outros tempos e espaços. Revelam que rememorar

envolve emoções, que instigam a capacidade de lembrar, de imaginar, de selecionar,

indicando que o resgate do passado comporta lacunas de lembranças, memórias do

esquecimento. O passado se apresenta neste momento re-significado pelo instante

presente.

Salientamos que as memórias narradas por estes sujeitos e os

conhecimentos produzidos por eles e suas significações estão implicados num

processo de construção social, que evidencia concepções de mundo, escolhas de

vida, mostrando que as histórias construídas passam pelo crivo dos interesses,

conveniências e sentimentos destes sujeitos em conexão com seus contextos sócio-

históricos.

Este complicado processo de rememorar depende de um trabalho de

“organização” e do momento presente expresso pela opinião. Como nos diz Bosi

(1994), lembrar é uma estrada longa, tortuosa e prazerosa, pois refazemos e

reconstruímos trajetórias, reconsiderando com o olhar de hoje as experiências do

passado. “A memória não é sonho, é trabalho.” (1994:55). A memória é também

esquecimento, reminiscência, narração, vestígio.

Entendemos, então, que a sociedade, através de suas instituições,

influencia de maneira decisiva o que será lembrado e como serão lembrados os

diversos acontecimentos que contribuem para a formação dos sujeitos sociais.

As lembranças, assim como as cenas de um filme, resultam de uma

montagem intencional; mas diferente dos filmes, as lembranças vêm à tona no

momento em que o presente necessita desencavá-las. Neste processo de

rememoração, selecionamos o que queremos lembrar, conservar, esquecer e

indagar, criando outros sentidos para as recordações.

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Neste momento comentamos o filme “”Narradores de Javé”94, que em

nosso entendimento descreve de forma instigante as relações entre memória e

narração. Ao contar a história dos habitantes do Vale do Javé, cidade que

desaparecerá em virtude da construção de uma hidrelétrica, o filme (através de um

narrador – Zaqueu) resgata a importância dos contadores de história e da narrativa,

na medida em que é preciso (re)inventar a história da cidade como única forma de

salvá-la da destruição. Como? Por quê?

De acordo com as autoridades, a cidade só não seria inundada se ela

provasse por escrito que teve um passado épico, justificando o seu tombamento

enquanto patrimônio nacional. Mas quem poderia escrever esta história, já que a

maioria da população era analfabeta?

Numa reunião dos moradores para tentar salvá-la, Zaqueu lembra de

Antonio Biá, ex-funcionário dos Correios que, para garantir seu emprego, escrevia

(inventava?) mexericos em nome dos moradores do vilarejo. Descoberta a tramóia,

Biá, escorraçado pela população local, é condenado ao “exílio”.

Na tentativa de recompor a(s) memória(s) do passado, Biá retorna

como um escrivão, um narrador que ao ouvir as histórias de cada um dos moradores

terá a tarefa de construir um passado “heróico” capaz de se contrapor ao “progresso”

que tudo inunda e não deixa rastro.

Em virtude de suas ações no passado, Zaqueu recomenda que Biá seja

o mais “fiel” possível aos relatos, “não dê ouvidos a sandices” nem “invente coisas de

sua cabeça”, porque as autoridades só reconhecerão uma história que possa ser

provada, que seja “científica”.

Percorrendo o vilarejo com o livro que irá registrar a história da cidade,

Biá – acompanhado por alguns moradores - e com o humor característico dos

contadores de histórias, nos mostra os diferentes sujeitos e suas histórias nas tramas

das memórias, revelando as experiências vividas, que compartilhadas podem

redundar em projeto coletivo.

94

Filme: Narradores de Javé da diretora Eliane Caffé. Brasil, 2003.

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Viajando com Biá, duas cenas chamaram nossa atenção: uma, quando

o primeiro morador, Vicentino, relata o passado guerreiro e heróico do povo de Javé

na figura de um herói, Indalécio. Neste momento, após ouvir a história, Biá –

transfigurado - reconta para Vicentino o que tinha acabado de ouvir, tornando o

relato uma epopéia mística e majestosa, uma narrativa.

Outra, em que dois outros moradores (um homem e uma mulher) contam

versões diferentes sobre Indalécio, sendo resgatada pela mulher moradora a história

de Maria Dinda, como sendo a heroína de Javé. São contadas como sendo as

verdadeiras, as que eles podem provar “cientificamente” e aí se instala uma grande

discussão. Qual é a verdadeira, a científica? Alguém responde: por que não pode

colocar as duas?

Aqui a narrativa tece a rede em que as várias histórias se articulam,

através do processo de rememoração, onde lembrar implica recuperar trajetórias,

repensando e reatualizando as experiências passadas.

No decorrer do filme, Biá ao viver a ambigüidade entre ter o poder da

escrita e a desconfiança dos moradores sobre a história que irá ser registrada, vai se

dando conta, com muita dor, solidão e sensibilidade, da situação trágica em que eles

estão envolvidos.

Assim, as reminiscências colhidas mostram que, se por um lado as

memórias não se separam das histórias, construindo uma identidade coletiva95 que

respeita as diferenças e permite construir um projeto de resistência, por outro,

explicita a fragilidade daquela cidade frente ao poder capitalista dominante.

Nossos personagens perdem suas terras e parte de suas vidas com a

inundação, mas não perdem suas memórias e narrações que lhe proporcionaram

constituir-se em sujeitos do seu próprio destino, não um destino profetizado, dado,

mas um destino peregrino, construído com dor, frustração, ironia e esperança.

Relembrando uma cena: Biá com olhos brilhantes e uma expressão de

êxtase diz para Vicentino: é melhor escrever com lápis do que com caneta, porque

95 O termo identidade comporta diferentes significados. Aqui trabalhamos com a idéia de que as identidades se constituem num processo contínuo de transformação e confronto entre o “nós” e o “outro”; identidade é co-produção.

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aquele não escorrega no papel, não borra, não faz “melê” e principalmente porque o

que foi escrito, pode ser reescrito.

Ressaltamos esta cena por entender que podemos aprender com os

narradores das sociedades sem escrita, com os repentistas e contadores de histórias

a dimensão mais livre e criativa da memória para captar a diversidade de nossa

cultura, possibilitando que as experiências tornem-se intercambiáveis e capazes de

criar uma narratividade ética e estética.

As investigações sobre memória têm demonstrado que é a linguagem que

nos permite partilhar e dar significado às nossas memórias. É através dela que nos

comunicamos com o “outro”, que nosso cotidiano adquire sentido. “O instrumento

decisivamente socializador da memória é a linguagem. Ela reduz, unifica e aproxima,

no mesmo espaço histórico e cultural a imagem do sonho, a imagem lembrada e as

imagens da vigília atual.” (BOSI, 1994: 56). A linguagem nos possibilita contar

nossas experiências, lapidar nossas lembranças, organizar as imagens e

recordações, muitas vezes opacas, fragmentadas, fugazes... Desse modo, ela é

fundamental na rememoração e na elaboração das histórias de vida.

É neste cenário que a linguagem se constitui no elemento básico e

permanente da memória. Ela proporciona a ampliação da capacidade de memória

para além dos nossos corpos, interposta quer nos outros, quer nas bibliotecas. (LE

GOFF, 1992).

3.3. Memórias e narrativas: construindo percursos

Escolhemos, num primeiro momento, como sujeitos de nossa pesquisa

alguns participantes do movimento cineclubista que direcionaram sua vida

profissional para o magistério. Esta opção, até então, buscava mostrar como as

experiências no campo da cultura podem contribuir para uma formação de

professores mais conectiva entre escola e vida - que enfatiza a “(...) integração

dialética do Logos, da Tecné e do Eros, este último reconciliando entre si os dois

primeiros, e indo além deles, como busca do humano como criação gratuita, que não

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obedece aos a priori do logos, nem à mera funcionalidade da tecné.” (TRIGUEIRO,

1973: 229)

No decorrer do trabalho de campo, porém, junto com nossos

interlocutores, percebemos a necessidade de alargar o universo inicial, na medida

em que as narrativas nos revelavam que a delimitação da opção profissional não se

constituía num critério relevante para nosso objetivo; ao contrário, a ampliação dos

sujeitos da pesquisa enriqueceu nosso estudo e confirmou a importância da

experiência cineclubista na formação e na vida dos diferentes sujeitos.

Buscar outros interlocutores a partir das narrações, reafirmou para nós, a

intrínseca relação teoria-prática. Colocou em relevo que teoria e prática constituem-

se no mesmo processo, explicitando a interdependência das diferentes dimensões

que constituem a produção do conhecimento.

Procuramos evidenciar o papel desempenhado pelo cinema na formação

destes sujeitos, indicando a potência da experiência estética96 para seu processo de

socialização. O trabalho com o cinema mostra a importância da dimensão afetiva,

sensível e reflexiva no processo de formação dos indivíduos.

Hoje, o que eu vejo é que o cinema me deu coisa muito interessante, porque eu aprendi muita coisa de dinâmica de grupo, que eu acho que foi útil para a prática pedagógica. Foi o caso ao lidar com pessoas diferentes, a diversidade, você ter algo como pretexto. Naqueles tempos, quando conduzíamos um debate tínhamos a preocupação de integração (das pessoas); se tinha inclusive normas de começar, porque tinham pessoas que num início de debate, faziam uma síntese tão “brilhante” que simplesmente inibiam toda a participação das outras pessoas. Isso é muito ruim e a gente tinha a preocupação de estimular que todos falassem, se colocassem, perdessem a timidez e isso foi muito importante pra minha experiência pedagógica, porque depois, ao longo da vida, também de professor e pesquisador, pude me fundamentar melhor, com leituras. (Roberto)

96

Concordamos com Leandro Konder ao lembrar-nos que: “(...) na origem, a palavra ‘estética’ não tem nada a ver com beleza: esthesia significava ‘sensação’ (daí ‘anestesia’, a anulação da sensação).” Jornal do Brasil, Maio de 2003. Ou ainda: “A percepção sensível”, Marx escreve nos Manuscritos econômicos e filosóficos (MEF), “deve ser a base de toda ciência. Só quando a ciência começa pela percepção sensível na sua forma dupla da consciência sensível e da necessidade dos sentidos - i.e. só quando a ciência começa pela natureza - ela é verdadeiramente ciência. Toda a história é uma preparação, um desenvolvimento, para que o homem se torne objeto da consciência sensível e para que as necessidades do ‘homem enquanto homem’ tornem-se necessidades (sensíveis)”. In: EAGLETON, Terry. A Ideologia da Estética. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1993, p.147.

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Eu acho que um filme, o filme em si, não muda a vida das pessoas. Eu vejo as vezes várias pessoas cobrando de diretores, de cineastas – Mas o seu filme sabe? Vai conseguir mudar? Eu acho que não, eu acho que é um somatório. Eu acho que é um somatório de informações e o que você faz com as informações, os sentimentos que podem alterar alguma coisa dentro de você. Não vejo assim, cinema, a literatura, porque tem muita gente que leu pra caramba entendeu? Depende do que leu, o que faz com isso e a forma que faz. Pode ajudar, mas... Não sei, também ouço relatos de pessoas que de repente leram um livro, assistiram a um filme e alguma coisa mudou dentro dela. Eu acho que isso pode acontecer também, mas acredito mais no processo cultural, que eu acho que o cinema, ele... Ele soma. Ele é um dos elementos. (Lucinha)

Na atividade cineclubista a narrativa cinematográfica constituiu-se numa

alternativa para a transmissão de experiências inter e intrageracionais. Ela permitiu

aos seus membros sentir e compreender a vida humana nas suas diferentes

dimensões, através de uma relação intersubjetiva mediada pela imagem. Experiência

que facilitou a produção de culturas e saberes e mostrou a possibilidade de dialogar

e alargar os saberes produzidos nos espaços educacionais, como nos conta uma de

nossas interlocutoras:

Bom, claro que na verdade o cineclube ele proporcionou não só a gente ficar lá vendo filme e etc né. A discussão era muito mais além do que isso, não só pelo intercâmbio com os outros cineclubes porque sempre havia palestras, discussões de cunho político né, sempre tentando fazer com que os lideres lá da comunidade levassem para as outras pessoas, que tentassem transmitir para os outros o que ele tava vendo ali, a questão da... principalmente a questão da desigualdade, da repressão, do que era importante pra vida. Enfim, esse cunho político sempre houve e através disso pode se formar grupos de estudo, que eram importantíssimos. Nós fazíamos assim: grupos de estudo com as pessoas, lideres de lá, em outros locais cedidos até pela igreja, também participava muito desse intercâmbio e a gente fazia grupos de estudo em outras escolas, escolas cedidas, como por exemplo, São Vicente de Paula, que cedia espaço para que nós da comunidade pudéssemos nos reunir ali para discutir realmente a literatura marxista, que era o caso que todos queriam conhecer e a discussão dessa obra eram realizadas... (...)Então pessoas também iam pra fazer seus debates e experiências, contar suas experiências. Discutíamos livros, Marta Hannek por exemplo, foi um livro que a gente discutiu muito, obra de Marx, (...) tinha muitos documentos que a gente discutia no grupo e uma coisa engraçada, não ficava um negócio assim pesado. E uma coisa que era engraçada porque realmente o colégio São Vicente ele cedia o espaço, sala de aula dos alunos sabe, uma escola de elite e aquele espaço uma coisa nobre, nós fazíamos assim um circulo e os representantes da comunidade, sempre três ou quatro representantes estavam conosco debatendo esses temas. Pessoas analfabetas (...)era impressionante a participação do grupo, apesar de ser uma leitura difícil, mas tentava se fazer de uma forma... que eles pudessem entender e eles davam opinião, eles participavam...Era bom porque eles eram da comunidade, eles podiam levar isso pra lá... (Cláudia)

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O cinema, nessa perspectiva, possibilita um encontro entre diferentes

sujeitos com histórias e culturas distintas; um encontro perpassado pelas emoções

vivenciadas na tela e que respingam em nós, espectadores, ampliando

concretamente aquilo que vemos e vivemos, proporcionando-nos um diálogo

subjetivo capaz de re-significar nossas relações culturais, que materializam nossas

vivências, e nos humanizam, tal como relembra uma das entrevistadas ao falar dos

filmes que marcaram sua história de vida:

“Morangos Silvestres”, de Ingmar Bergman, porque o vi com 13 anos sem saber de que se tratava. Eu e uma prima uns dois anos mais velha que eu entramos no cinema (o Caruso, no Posto Seis, Copacabana) pensando que íamos ver um filme com Ingrid Bergman. Por muitos anos, os relógios sem ponteiros voltavam à minha memória como uma das cenas mais angustiantes que tinha visto no cinema. Mas por aí se vê como o filme me impressionou. O impacto das imagens foi tal, que não saímos do cinema até o fim do filme. Muito mais tarde, muitos filmes do diretor sueco marcaram minha vida. (...) Os filmes de Einsentein vistos na cinemateca do MAM; pela revelação intelectual que representaram para mim; “Terra em Transe”, de Glauber Rocha, visto em detalhe num curso ministrado por Heloísa Buarque de Holanda, na Faculdade de Letras da UFRJ. Foi o acompanhamento perfeito para a efervescência política do tumultuado e maravilhoso (para mim) ano de 1969. (Lídia)

O cinema, nesta pesquisa, então, não foi tratado nem como objeto teórico,

mas como experiência social que marcou de forma definitiva a vida dos nossos

narradores/as. No cineclubismo, os sujeitos da pesquisa puderam aprender

coletivamente, e nesta aprendizagem mediada pela linguagem cinematográfica, suas

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vivências foram sensibilizadas pelas dimensões artística e afetiva. Puderam ainda,

desenvolver um olhar que buscava criar sentidos para os desafios e “enigmas da

vida”, como nos conta uma das interlocutoras:

(...) na verdade, a militância política na época ela era muito limitada, porque ela era clandestina. Então ela era alguma coisa que era feita com muito stress, com muito sufoco, muito limitadamente, que não podia vir à luz do dia. Ao contrário do movimento cineclubista, que era também o nosso lugar de viver, de estar com os amigos, de fazer festa. Então era assim a minha forma de viver, a minha juventude foi o cineclubismo, foi através dele que eu encontrei um espaço no mundo pra ser jovem, pra estar com meus amigos, pra estar fazendo coisas, pra ter uma utopia, ter um sonho, ter um projeto, que era uma coisa de época também, a gente sentia necessidade disso, eu não sei se hoje, os jovens ainda sentem, a gente sentia. Então onde é que a gente podia realizar essa sensação de que eu tenho um projeto, eu sei o que eu quero, tem uma coisa que eu quero, que eu gosto de fazer e não estou sozinha, tô com meus amigos, fazendo junto? Isso no partido era muito limitado, porque era muito preso, era muito perigoso, era muito... cerceado. E no cineclubismo, a gente podia desenvolver. (...) Eu acho que quem se sensibiliza pra arte, quem consegue ter essa experiência na vida, eu acho que se transforma, se abre, não sei... Se torna mais complexo (risos) e menos preconceituoso e mais disponível para o novo. Acho uma série de coisas assim, que quem vive a experiência estética, quem vive a experiência da arte, eu acho que se sensibiliza. (Aninha)

Para apreendermos as experiências cineclubistas, procuramos

estabelecer com os entrevistados um diálogo aberto que lhes permitisse desenvolver

pensamentos e idéias acerca de suas trajetórias, revelando as várias dimensões e

imbricamentos do fazer destes sujeitos.97

A história de vida, colhida através das entrevistas, demonstrou ser

fecunda ao trazer as diferentes experiências no movimento. Como já apontado

anteriormente, não pretendemos resgatar a história de toda uma vida, mas

estabelecer as interrelações entre narrativas, movimento cineclubista e experiências

de formação.

Nossa intenção também não é fazer generalizações, mas mostrar que

essas histórias exemplificam a possibilidade de experiências coletivas germinarem

ações políticas que elaborem novos modos de pensar e agir. Ao realçar as

97

Buscando coerência com nossos pressupostos teórico-metodológicos, depois de realizada a entrevista e feita a transcrição, a enviávamos para os nossos narradores para que pudessem corrigir possíveis equívocos, complementar, esclarecer, ampliar, enfim para que a narrativa expressasse suas memórias e experiências.

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narrativas, tivemos ainda o propósito, como já mencionado, de dar aos entrevistados

uma co-autoria neste trabalho, destacando o dialogismo das relações humanas.

É importante sublinhar que neste processo, os sujeitos da pesquisa

relatam suas histórias, discorrem sobre situações de suas vidas e argumentam sobre

problemas relevantes de suas trajetórias. Criam, assim, uma situação comunicativa e

dialógica que pode ser estendida a outras vozes, pois ao narrar sobre si mesmos,

posicionam -se quanto a outras narrativas, participando de um diálogo mais amplo

com outros tempos e lugares. “O pesquisador ao trabalhar sobre esse material,

também se torna ele mesmo mais um interlocutor, integrando o circuito dialógico da

produção do conhecimento.” ( Carvalho, 2003: 297).

Podemos dizer que as narrativas, são seguidamente, tocadas pela

interpretação, seja do próprio sujeito que a pronuncia, seja do pesquisador que

intervém enquanto mais um interlocutor. Nesta interação, as histórias não

representam o sujeito, mas os produzem.

Tentamos, então, nos colocar na posição de uma escuta atenta:

escutamos a fala do outro, o gesto do outro, as diferenças do outro, para que fosse

criada uma relação de confiança, que possibilitasse a comunicação 98 entre os

sujeitos, pois “O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria

experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência

dos seus ouvintes.” (BENJAMIN, 1994: 201)

No início de nossa conversação apresentávamos aos entrevistados as

motivações deste estudo e os eixos básicos que iriam nortear a entrevista: a questão

da trajetória pessoal e escolar - como entrou para o movimento cineclubista, se e de

que modo este se refletiu em suas vidas -; a importância ou não deste movimento

nas suas histórias enquanto estudantes e depois de formados; a relação com o

momento político (a ditadura militar); e o significado deste movimento para o cinema

e o país.

98 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa, São Paulo: Paz e Terra, 1996. (Coleção Leitura).

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Escolhemos, nessa situação, orientar as entrevistas de modo aberto,

porém com um certo direcionamento99, para que não perdêssemos o “fio da meada”,

e pudéssemos dar coerência aos relatos que iam sendo construídos. Como cada

pessoa tem sua forma própria de contar, cabe ao pesquisador saber o momento de

intervir na conversação e, posteriormente, organizar os relatos, buscando toda a

riqueza e singularidade dos mesmos.

Esta tarefa não é simples, pois envolve a recuperação da experiência de

narrador e ouvinte, no momento da entrevista; momento este que suscita dúvidas,

angústias e certezas diante da entonação das vozes, dos silêncios, reticências e

negações que configuram os relatos.

Na realização desta pesquisa, foi necessário que o pesquisador buscasse

observar os gestos, os olhares, o corpo, a entonação da voz, os silêncios, os risos, e

que soubesse “ouvir”, atentamente, na intenção de criar um ambiente de respeito

mútuo, para que as lembranças pudessem ir construindo um diálogo capaz de

desvendar sonhos, pensamentos, afetos, medos; pudessem ir (re)tecendo histórias

de vida, que possibilitassem aos sujeitos da pesquisa repensar trajetórias

imaginadas e vividas.

... desde pequena, desde os 13 anos eu comecei a me interessar por cinema, ler sobre cinema, acompanhar os filmes na televisão, primeiro como fã e depois já articulando uma relação de diretores e filmografias. Então o cinema desde cedo foi uma fonte de interesse meu mesmo paralelo aos estudos, e lá pelos 17 anos eu fiz inclusive um curso que o Cineduc (Cinema e Educação) dava de formação de professores. Eu fui aprender linguagem cinematográfica junto com as professoras primárias. Então pra mim o cinema sempre foi essa janela, digamos... da cultura humanista, das informações... de uma... janela pro mundo mesmo. E certamente naquele momento que nós entramos na faculdade, na década de 70, o bloqueio das ações políticas, das representações e de ação política mais evidente, o cineclubismo era um campo de atuação possível e prazerosa, por que se juntava amantes de cinema - isso era um ponto muito gostoso de você encontrar com pessoas que gostavam da mesma coisa que você - as afinidades eram muitas, então era fácil as pessoas se entenderem... Paralelo a isso você tinha uma ação social. Então você juntava um grupo de afinidades, com um grupo mesmo de apoio, você saber que no Rio de Janeiro você poderia interferir na formação e informação de pessoas dos outros estados. Nós tínhamos esta perspectiva muito clara do ponto que o cinema poderia ser um veículo de discussão de mentalidades. E eu não

99 Ver anexo I.

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tinha uma perspectiva política partidária não, a minha ligação com o partido comunista foi muito curta e foi mais na universidade. O cineclubismo ele tinha uma perspectiva mais cultural, era uma ação cultural nacional de rede. Os encontros nacionais eram coisas muito interessantes, eram muito mobilizadores... (Ana)

(...) Falando um pouco da influência dessa atividade cineclubista - que na minha vida durou de 10 a 15 anos mais ou menos - eu diria que foi fundamental na minha formação, na formação da minha pessoa, da minha compreensão da realidade brasileira, mundial, da política, dos regimes, de diferenciar um regime do outro, o que é um regime ditatorial, repressivo, democrático ou liberal, tudo isso eu aprendi muito mais através de cinema, de discussão, porque as discussões eram muito ricas. O cineclubismo, inclusive, interessava a muita gente por isso, porque não era simplesmente ir ao cinema. Era ir a um cinema mais ou menos proibido, dentro de um ambiente acolhedor e diferenciado do cinemão, eram ambientes próprios, cedidos, é como se fosse uma confraria ali, uma pequena confraria dentro de uma paróquia, dentro de uma sala de uma associação de imprensa, só gente nossa, éramos muitos parecidos, todo mundo mais ou menos na mesma direção. (Marisa)

As experiências revelaram que o poder criativo da história funda-se numa

memória polissêmica. Memória que é entretecida pelos afetos, razões e crenças de

cada sujeito da pesquisa, conectando-se a outros lugares e tempos, por onde

circularam mulheres e homens, que com suas experiências expressaram as lutas, os

conflitos, os desejos, as utopias, as paixões, os medos, as perdas - concepções de

mundo - constituindo conosco uma “experiência histórica”.

Em vez de reconstituirmos “a história”, desejamos “escová-la a contrapelo”

- para usar uma expressão benjaminiana - porque entendemos que mulheres e

homens fazem sua história, permeada por rupturas e “relampejos”, criando sentidos

que tanto podem construir avanços como retrocessos nas relações humanas, uma

vez que o devir não é uma sucessão linear, contínua, de um passado harmônico,

mas fruto de contradições e lutas; de ambivalências e complementaridades dos

diferentes projetos de sociedade.

No encontro, como enfatiza Benjamin (1994), entre as gerações

anteriores e a nossa, as memórias - escolares, de idosos, de trabalho, políticas, entre

outras - corporificam-se nos fios que precisamos (re)tecer para que elas se traduzam

numa narrativa, em que o “narrar” reflita o potencial de criação humana, mostrando

os diferentes sujeitos e suas histórias nas tramas que envolvem memórias que

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possibilitem que as experiências, ao serem contadas e partilhadas, possam

transformar-se em projeto coletivo, possam vislumbrar:

O futuro, aqui, não (como) projeção grandiosa do tempo na linha evolutiva da história, mas o seu desvio em direção ao passado, para que um ato de justiça possa libertá-lo. A história é a tarefa nunca concluída, que toda geração precisa assumir, de libertar o futuro no passado, isto é, de retomar as possibilidades malogradas do passado, daquilo que poderia ter ganho vida, mas que foi soterrado nas ruínas do continuum da história. O compromisso de libertar o futuro, contido como apelo e promessa no passado, é a possibilidade de modificação do presente, subtraído do jugo da continuidade histórica. (MURICY, 1998:16)

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CAPÍTULO IV

NARRATIVAS DE VIDA: AS EXPERIÊNCIAS COMO FORMADORAS DOS SUJEITOS

Se quer seguir-me narro-lhe; não uma aventura, mas experiência, a que me induziram, alternadamente, séries de raciocínios e intuições. Tomou-me tempo, desânimos, esforços. Dela me prezo, sem vangloriar-me. Surpreendo-me, porém, um tanto à-parte de todos, penetrando conhecimento que os outros ainda ignoram. João Guimarães Rosa

Tempo: época histórica; movimento constante e irreversível através do

qual o presente se torna passado, e o futuro, presente; uma das categorias

fundamentais do pensamento filosófico, é considerado um dos elementos

constitutivos do real e de nossa forma de experimentá-lo; categoria histórica plena de

múltiplos significados; criação... ( Dicionário Houaiss).

Memória: capacidade de reter um dado da experiência ou um

conhecimento adquirido e de trazê-lo à mente; considerada essencial para a

constituição das experiências e do conhecimento - processo, processamento,

aprendizagem; lembrança; esquecimento; reminiscência; vestígio; seleção; narração

– linguagem; sonho; invenção... (Diconário Houaiss)

1964. Tempo de rememoração: tínhamos 10 anos. Das lembranças

opacas e fugidias, uma se destaca muito claramente, por ter marcado nossa história

de vida. Filha de um comunista, este ano significou o início de um período de receios

e medos. Corporificado na figura de um vizinho, homem pertencente aos aparelhos

de repressão do regime militar, sempre que passava por nós e pela nossa irmã, nos

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ameaçava através das perguntas: “Onde anda o pai de vocês? Olha que eu sei que

ele é comunista! Comunista come criancinha!”100 Sempre que vislumbrávamos a

figura deste homem e a possibilidade de cruzar com ele, entrávamos em pânico e o

medo tomava conta de nós.

Em casa, muitas vezes, chorávamos escondido e nos perguntávamos por

que nosso pai era comunista. Não sabíamos o que isto significava, mas vivíamos um

sentimento contraditório: para a maioria era algo ruim, mas ao mesmo tempo nosso

pai era “um cara legal”, “não comia criancinha...” Nos sentíamos muito tristes e

confusas, pois não tínhamos coragem de falar para nossa mãe. Mas

confidenciávamos entre irmãs...

Com o olhar de hoje vemos como aquele homem se comprazia em nos

amedrontar. Como práticas cotidianas de terror alimentam as políticas autoritárias,

infundindo medos e silêncios. Até hoje quando relembramos estes momentos

sentimos um certo mal estar...

1974. Tempos sombrios: tínhamos 20 anos. Remexendo nossa memória,

as lembranças vão surgindo de maneira prazerosa, apesar do momento de

silenciamento. Tempos de formação: Fundação do Cineclube Leme. A participação

neste cineclube significou um período de envolvimento numa experiência coletiva

que marcou definitivamente nossa história de vida. Espaço de compartilhamento de

jovens que buscavam de alguma maneira pensar para além do instituído; que

buscavam respirar numa época de repressão, contestando a ditadura militar numa

“política de pequenos passos”. Espaço de construção de nossas afetividades, de

nossas concepções de mundo, de amadurecimento - passagem para o mundo

adulto.

O cinema e a prática cineclubista foi nos formando, constituindo nossa

experiência de vida, mediando nossa relação com o mundo, com os outros e com

nós mesmos. Tal como a música ou a literatura, eles possibilitaram de diferentes

maneiras elaborarmos desejos, medos, paixões, afetos, tristezas, alegrias, sonhos...

100

Atualmente soa muito caricatural, mas era assim mesmo.

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Assistindo a filmes de diferentes países, íamos percebendo que mesmo

vendo mundos tão distantes do nosso, o cinema nos propiciava estabelecer pontes,

descobrir no “estranho”, no não familiar, um mundo que era nosso também, em que

nos reconhecíamos, em que nos estranhávamos. Começávamos a compreender que

as situações ou personagens não precisavam ter uma referência direta com a nossa

vida, pois o que podíamos trocar, dialogar com os filmes, eram nossos sentimentos.

Descobríamos nossa singularidade na mediação com os outros, quer fossem os

amigos, o público e/ou personagens e situações.

O cinema descortinava outros mundos, modos de vida, formas distintas de

pensar e falar sobre o cotidiano, outras tradições, tempos diversos, outras memórias,

outras narrativas, revelando semelhanças e diferenças nas experiências humanas.

Mostrava ainda, a potência da imagem na constituição das nossas vidas, uma vez

que passa a fazer parte de nosso imaginário, como ilustra a frase que ouvimos do

psicanalista Contardo Calligaris numa palestra: “nossa forma de beijar seria outra se

não fosse o cinema”.

O que esta citação evidencia é a relevância e a força que as imagens

adquirem em nossas vidas cotidianas, confeccionando uma forma de ser e estar no

mundo, produzindo experiências que reclamam um novo olhar para a sua

compreensão. Um olhar que possa refletir sobre o que as imagens nos incitam, no

intuito de percebermos como elas possibilitam apreender a cultura de nossa

sociedade.

(...) a abundância de imagens técnicas pode dificultar o funcionamento pleno de nossa capacidade de decifrar as cenas que se apresentam na forma de imagens como significados construídos. É o que acontece quando deixamos de compreender as imagens técnicas como produções culturais e subjetivas, assumindo-as como revelações objetivas do próprio mundo.” (Jobim e Souza, 2003: 78/79).

O cinema, neste sentido, pode resgatar nossa sensibilidade tão dilapidada

na sociedade capitalista de consumo e possibilitar um fazer e desfazer do cotidiano,

delineando narrativas que buscam nas experiências coletivas a palavra que nos

permite dialogar no mundo e com o mundo.

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4.1. Conhecendo nossos narradore (a)s: uma sinopse

A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão - no campo, no mar e na cidade - ,é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o “puro em si” da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim, se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. (...). (BENJAMIN, 1994: 205).

ANINHA

Na conversa com Aninha descobrimos sua paixão pelo cinema e cultura

italiana e sua admiração pelos filmes de Bergman, que provocavam estranhamento e

curiosidade: “ Que negócio é esse? Que mundo é esse? Que pessoas são essas tão

diferentes, tão estranhas?” Em relação ao cinema brasileiro considera que havia um

interesse em conhecer, divulgar e defender. Talvez mais uma postura ideológica do

que propriamente um gostar tal como era com o cinema italiano. Entende que

Bergman e o cinema italiano eram muito fortes dentro do movimento cineclubista.

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Entrou para o movimento com 16 para 17 anos, através de amigos do

bairro onde morava, Tijuca. Pertenceu ao Cineclube Glauber Rocha, localizado numa

Igreja do mesmo bairro e foi Presidente da Federação de Cineclubes do Estado do

Rio de Janeiro, no período 76/77.

O cineclubismo foi fundamental na sua formação, em relação a vários

aspectos da vida. Aprendeu a se organizar, a trabalhar, entrou para a militância

política (Partido Comunista Brasileiro/PCB), etc. Sua juventude foi o cineclubismo; o

lugar de viver, fazer amigos, fazer festa, um espaço no mundo para ser jovem,

imaginar uma utopia, ter um sonho, pensar um projeto coletivo. Ressaltou a

importância dos amigos que fez neste período, mantendo amizade com alguns até

hoje, além de ter sido o lugar onde conheceu seu marido. Como a repressão era

grande, não encontrou este espaço de crescimento no partido e sim no cineclubismo.

O cineclube Glauber Rocha tinha um clube organizado com sócios que

pagavam a mensalidade e tinham carteirinha. A equipe fazia a programação e

preparava a sessão, que envolvia pegar o filme, pesquisar e produzir material sobre

ele e fazer a divulgação. Morangos Silvestres, Os Companheiros, entre outros, foram

filmes que se repetiram diversas vezes. Realizava também ciclos: Fellini, Cinema

Italiano, Truffaut, Cinema Francês, Cinema Brasileiro, etc. Para a realização destes

ciclos era necessário um trabalho de pesquisa que envolvia a divisão de tarefas entre

a equipe do cineclube.

Uma experiência muito interessante, segundo Ana, era convidar os

cineastas brasileiros para irem ao cineclube debater seus filmes, trocar idéias,

conversar. A possibilidade de conhecer os diretores e de vê-los falar de seus filmes

era fantástico, ainda mais se pensarmos que naquela época não havia na televisão

programas de entrevistas como os que existem hoje. Então, esta experiência se

tornava única, ímpar.

Ela julga que havia um entrelaçamento entre o movimento cineclubista e

as organizações de esquerda clandestinas, em especial o PCB, que influenciou na

forma de organização do movimento: Cineclubes, Federações Regionais –

agregavam os cineclubes dos estados - e o Conselho Nacional de Cineclubes –

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congregava as federações - que se reunia anualmente, em Jornadas Nacionais,

onde eram definidas as diretrizes do movimento.

Acredita, ainda, que sua história familiar influenciou na sua aproximação

com o movimento cineclubista, pois seus pais sempre incentivaram o interesse, o

gosto pela cultura, pelo cinema.

Todo o aprendizado que teve, inclusive no que diz respeito aos estudos,

aprendeu no movimento. Achava a escola muito desinteressante, que nada

acontecia, apesar das diversas tentativas dos alunos em fazer alguma coisa, como

teatro, por exemplo, que acabou não tendo continuidade por conta de

desentendimentos com a direção da escola. Estudou em escola pública no ginásio,

hoje ensino fundamental e particular no antigo 2º grau, hoje ensino médio.

Formada em Sociologia, Ana trabalhou alguns anos na Rede Municipal de

Educação do Rio de Janeiro como professora de história e posteriormente, depois do

mestrado e doutorado, tornou-se professora da Universidade Federal do Rio de

Janeiro. Lamenta ter saído do ensino básico, mas as condições de trabalho,

principalmente os baixos salários a desestimularam a continuar neste nível de

ensino.

No entanto, relembrou o trabalho que fazia com os alunos e a

preocupação que tinha em valorizar a cultura, passando filmes para eles e realizando

passeios extra-escolares. Mencionou sua passagem pelo CIEP Manuel Maurício de

Albuquerque, onde pode ampliar o trabalho cultural. Acredita que esta sua

inquietação estava profundamente ligada a sua vivência no movimento cineclubista,

pois como este foi importante para abrir seus horizontes, para sua formação,

pensava e pensa que isto também poderia ser verdadeiro para seus alunos. Na

universidade continua procurando e se envolvendo nesta direção.

Destacou a importância do movimento cineclubista na luta contra a

ditadura, realçando o seu papel no renascimento cultural e artístico e suas

vinculações com outros movimentos de luta pelas liberdades democráticas. Lembrou

também a surpresa que o movimento causava junto às autoridades, que

“desinformadas”, não conseguiam encaixá-lo nos formatos tradicionais de

movimentos políticos de esquerda/resistência. Como exemplo nos contou a seguinte

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história: “...eu fui chamada para esse depoimento na Polícia Federal e chegando lá,

com meu pai né, morrendo de medo, chegando lá, o detetive que chamava-se

Paixão, conhecia meu pai do Colégio Pedro II, tinham sido amigos de escola... O que

aliviou um pouquinho o clima, foi ótimo meu pai ter ido comigo. E aí ele começou a

fazer perguntas e uma delas foi essa – Quem é esse Glauber?”

Por ter sido Presidente da Federação, percebia claramente a

heterogeneidade do movimento: cineclubes em Igrejas, Universidades, Cinemas de

cidade do interior, Cursos de línguas (Aliança Francesa, Cultura Inglesa),

Associações, Sindicatos. Percebia ainda que as mediações entre trabalho político e

trabalho cultural variavam muito, embora em geral, a luta pela liberdade de

expressão se constituísse numa referência comum.

Considerando que naquela época não existia vídeo, chama a atenção

para o papel dos cineclubes na formação de um público e de uma geração que pode

conhecer os clássicos, debater, ir além do que passava comercialmente, poder enfim

estabelecer uma relação mais reflexiva com o cinema.

Ao falar de seu interesse pelo cinema hoje, Ana nos disse que adora,

continua indo duas vezes por semana e quando não pode, sente falta de alguma

coisa. Gosta de ver o filme logo que é lançado, pois assim pode comentar com as

pessoas; de preferência ver de imediato com alguém para discutir depois. Hábito

este adquirido na atividade cineclubista.

Ao rememorar aquele momento, diz não ter a menor dúvida, nem medo de

afirmar que o cineclubismo foi um movimento cultural que marcou a sua trajetória e

talvez a de uma geração, tendo repercussão até hoje na vida das pessoas. Disse

ainda, que quem vivencia a experiência estética, quem se sensibiliza para a arte, tem

possibilidades de se transformar, se abrir, ser mais disponível para o novo...

Para ela é importante resgatar esta história, entender este movimento e o

momento histórico vivido, pois, quem sabe, pode nos ajudar a compreender um

pouco mais da complexidade de nossa sociedade atual.

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ANA

Em 1974, um pouco antes da fundação do Cineclube Leme, nos

conhecemos. Por termos amigos comuns, fomos nos tornando amigas;

acampávamos juntas e fazíamos parte de um grupo de estudo de filosofia. Depois de

algum tempo, o grupo de estudo se transformou no Cineclube Leme.

No início de nossa conversa Ana destacou a influência da família no seu

gosto pelo cinema, pela cultura em geral. Descendente de uma família italiana

progressista, as questões políticas e culturais eram discutidas em casa e o incentivo

à leitura e à informação constituíam-se em práticas corriqueiras no universo familiar.

Assim, desde pequena (aos 13 anos) se interessou por cinema, primeiro

como fã, posteriormente como “estudiosa”. Aos 17 anos fez um curso no Cineduc

(Cinema e Educação) que era destinado às professoras primárias sobre linguagem

cinematográfica. Na época da ditadura, com o bloqueio das ações políticas, o

cineclubismo se tornou uma oportunidade de atuação possível e prazerosa, pois

reunia quem gostava de cinema, com a possibilidade de uma ação social.

Fez estágio na Cinemateca do MAM e acabou se envolvendo com três

cineclubes: Studio 43, na Aliança Francesa de Copacabana (era aberto a

comunidade), o Cineclube Leme, que funcionava na igreja do Leme e o da

Faculdade de Arquitetura.

Ingressou no cineclubismo quando participou de uma reunião da

Federação de Cineclubes do RJ que acontecia no MAM. Acabou se tornando

tesoureira da Federação, o que implicava trabalhar na organização do movimento:

incentivar a criação de cineclubes, orientar os associados nas programações, no

aluguel dos filmes, nos debates realizados após a sessão, etc. Como forma de

incrementar o debate, convidavam cineastas para participarem das discussões,

visando reforçar o trabalho do cineclube e, concomitantemente, o cinema brasileiro.

Ana entende que a Federação de Cineclubes do RJ teve um papel muito

importante de apoio ao movimento cinematográfico carioca, ressaltando a criação do

“Mês do Cinema Brasileiro” (agosto), quando todos os cineclubes se comprometiam

a só passar filme brasileiro.

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Acredita que as discussões que aconteciam, a troca de conhecimentos

foram formadoras de todos os que participaram. Destaca que era um espaço

ideologicamente menos fechado que os partidos, pois havia posições políticas

diversas, e, portanto, os conflitos apareciam e geravam brigas, mas o “amor ao

cinema era maior que as divergências”. As pessoas podiam buscar informação,

refletir, conversar: “... sem sombra de dúvida, os cineclubes eram as janelas, o

respirador de todos os estados...” Neste processo muitos se profissionalizaram, se

envolveram com o trabalho cultural, dando um outro rumo às suas vidas.

Salienta o trabalho árduo para manter um cineclube, como por exemplo, a

preocupação constante em conseguir filmes para as sessões. A necessidade de

obtê-los a preços compatíveis para viabilizar a distribuição pelos estados era

fundamental para a própria sobrevivência do movimento. Havia, praticamente,

apenas duas cinematecas, a do Rio e a de São Paulo que emprestavam as cópias,

porém o estado das mesmas era precário e a disponibilidade era pouca, o que

acabava por comprometer uma programação mais diversificada.

Assim, quando a Embrafilme entra na distribuição de 16 milímetros, a

empresa passa a oferecer títulos de filmes brasileiros, o que foi fundamental para

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fortalecer a atividade cineclubista e ampliar o repertório, tornando-o mais variável e

moderno. Ressalta a importância da entrada de um cineclubista, Marco Aurélio

Marcondes na Embrafilme para a abertura da distribuidora, como fator de

fortalecimento da atividade.

Como exemplo da importância desta experiência na sua vida, enveredou

para a área cultural, apesar de ser formada em arquitetura.Trabalhou na Cinemateca

do MAM, na Embrafilme foi gerente cultural na área de cultura e hoje é diretora da

área de documentação e informação da Casa de Rui Barbosa.

CLÁUDIA

Cláudia nasceu em Fortaleza e como tantos outros migrantes nordestinos,

aos 8 anos veio com sua família para o sul “tentar a vida”. Foi para São Paulo, pois o

irmão de seu pai já morava lá e havia promessa de emprego. Logo que chegaram –

eram três filhos – o emprego prometido não existia, mas seu pai foi tentando e

acabou arranjando algum trabalho para sobreviver. Uma tia que morava no Rio e

vivia muito bem foi visitá-los e vendo a situação de sua mãe, que estava grávida,

convidou Cláudia para morar com ela, pois poderia garantir seus estudos. Nesta

época estava com 10 anos e com a concordância dos pais viajou, iniciando uma vida

bem diferente.

Formada em língua portuguesa e literatura brasileira pela antiga UEG

(hoje UERJ/Universidade do Estado do Rio de Janeiro), em 1976, tornou-se

professora, atuando tanto na escola pública como particular. Fez questão de frisar

que gosta muito da profissão, apesar dos muitos obstáculos, “... fazer com que meus

alunos aprendam a ler e escrever é meu objetivo, fico feliz.”

Dos diversos filmes que viu, lembra de dois – Dodeskaden e Amarcord -

que marcaram especialmente, apesar das diferenças entre ambos, principalmente

pela temática comum: a questão das relações humanas, da luta de mulheres e

homens pela sobrevivência.

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Cláudia se envolveu com o cineclubismo juntamente com seu marido e

sua cunhada já engajados politicamente. Como neste período a repressão estava

muito forte, encontraram na atividade cineclubista uma forma de continuar o trabalho

político.

Através de contatos, entre eles e com os padres do Colégio São Vicente,

fundaram o Cineclube Grande Otelo, na favela do Catumbi. Sua participação estava

voltada para o trabalho com as crianças e os jovens, atuando em várias atividades :

música, desenho, teatro e na divulgação das sessões do cineclube. Destaca que

antes das sessões, faziam reuniões para explicar o objetivo do filme, o porquê, etc.

Acredita que esta experiência, principalmente com as crianças, estimulou,

de certa forma, a vontade de ser professora, uma vez que entende que o magistério

traz consigo essa possibilidade de trabalhar o despertar das pessoas, contribuir para

uma visão de mundo, uma “consciência das coisas”.

Julga que o cineclube foi importantíssimo para a comunidade, pois

praticamente era o único espaço de diversão, lazer, informação e formação, tanto

para os adultos como para as crianças. No dia do filme as famílias se arrumavam e

iam para a igreja que ficava no morro, onde funcionava o cineclube que era

“paupérrimo”, mas a alegria das pessoas era contagiante. A sessão lotava.

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O cineclube pertencia a Federação e participava, através dos outros

componentes, das suas reuniões e das Jornadas Nacionais.

Lembra que teve a felicidade de estudar no Colégio Pedro II, que era uma

escola bastante engajada no movimento estudantil e participar do Grêmio. Passavam

filmes, porém, uma atividade que a marcou muito foi a encenação da peça Morte e

Vida Severina, lá pelos idos de 65... Lembra ainda das manifestações dos

estudantes contra a repressão, nas ruas...

Ressalta que uma atividade desenvolvida pelo cineclube e mais voltada

especificamente para a “formação política” foi a criação de um grupo de estudo sobre

literatura marxista. Os encontros aconteciam no Colégio São Vicente, uma vez por

semana e eram formados por ela, seu marido, sua cunhada, alguns líderes da

comunidade e outras pessoas ligadas ao PCB e MR-8. Os participantes relatavam

suas experiências e posteriormente fazia-se a leitura dos textos, tentando sempre a

articulação entre o momento político, a vida das pessoas e o que se lia. Um livro

muito lido foi o da Marta Hanneck. A idéia era que eles pudessem reproduzir estas

discussões na comunidade.

É importante destacar que os textos eram lidos juntos, pois a dificuldade

de leitura era grande, mesmo entre os que sabiam ler. Assim, lia-se e discutia-se

“parágrafo por parágrafo”. “... tinha uma líder que não sabia ler, mas era

impressionante. Não sabia escrever, só assinava o nome, mas era impressionante a

participação dela no grupo...”

Embora fossem pessoas “de fora” da favela, nunca tiveram grandes

problemas com o tráfico. Segundo Cláudia, havia uma certa “proteção” por parte de

alguns “bandidos”, pois estes achavam que o trabalho realizado era importante para

a comunidade. No início dos anos 80, a situação foi complicando, a guerra entre

facções se aprofundou e eles tiveram que sair. O cineclube acabou.

Considera que o cineclube foi um espaço que permitiu fazer política, no

período de repressão, visto que as autoridades não percebiam a atividade

cineclubista como um trabalho político. Salienta ainda, a importância do cinema na

formação crítica das pessoas.

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A experiência como professora de alunos surdos reforçou sua convicção

da importância do cinema no processo de ensino-aprendizagem, na formação dos

estudantes de uma maneira geral. Percebe que a imagem é extremamente

importante para assimilar conteúdos, idéias, pois as emoções que são vivenciadas

na mediação com o que se está vendo, muitas vezes supera “um texto frio”,

contribuindo para um maior envolvimento de quem vê. Frequentemente utiliza

o cinema para aproximar os alunos da literatura, pois crê “... que existem vários tipos

de linguagem, (...) o cinema é uma linguagem, como os quadros, a pintura, tudo isso

são leituras que você tem que fazer, (...) até para que o aluno se interesse mais pela

tua aula... (...) eles gostam muito disso...”

Continua gostando e indo ao cinema, apesar de constatar que se tornou

muito caro, principalmente no final de semana, quando as pessoas têm mais tempo.

DUDU

Iniciando nosso bate-papo, recorda que sua história de vida está muito

ligada ao cinema. Desde pequeno e não sabendo ler ainda, costumava acompanhar

sua mãe, pois como naquela época as mulheres não podiam ir ao cinema sozinhas,

ele era a companhia masculina que legitimava essa possibilidade. Frequentou muito

o Cinema Londres na Ilha do Governador.

Considera que a grande influência dos filmes americanos e os cowboys o

marcaram profundamente, mas as suas maiores referências não são eles. Gosta

muito de “Violência e Paixão”, “Morte em Veneza” e “Os Deuses Malditos” do

Visconti, de alguns do Bertolucci, Sidney Pollack, Sam Pechinpah, entre outros.

Destaca também “West Side Story” e “O Pequeno Grande Homem”.

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Relembra que sua mãe, embora já fosse mais velho, continuava lhe dando

“dicas” de filmes: “...olha tá passando aí um filme legal, que é o “Sete homens e um

destino”, com Yul Brynner, ótimo. (...) nós lá em casa gostávamos muito de cinema e

meu irmão e irmã eram ótimos narradores de cinema, ótimos. Então você via o filme

[também] pelo olhar deles entendeu? Então o cinema, ele não só orientou a minha

vida... ele me deu uma formação, uma cultura.”

A entrada no movimento cineclubista aconteceu de uma forma acidental.

Em 1968, ingressou no curso de medicina da Universidade Federal Fluminense/UFF,

num momento de total esvaziamento da universidade. Não era permitido ficar nos

corredores, o acesso às salas ficava restrito ao horário das aulas, enfim, havia todo

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um esquema para os estudantes não se reunirem. Um tempo depois, lembra que

alguém do Diretório Acadêmico sugeriu fazer um cineclube e ele pensou: “esse é

meu barato”. Envolveu-se completamente; havia alguns participantes ligados ao

PCB, mas ele não sabia ainda que se identificava com este pessoal. O seu interesse

era o cinema.

A atividade cineclubista na UFF era meio complicada; perpassada pelas

tensões do movimento estudantil, aos poucos foi ficando difícil permanecer. Em

1972, como era morador da Tijuca, alguns amigos da Praça Afonso Pena e ligados

ao PCB o chamaram para participar do Glauber Rocha. Por não ser ligado a nenhum

partido, logo se tornou presidente do cineclube, “protegendo” de alguma forma os

outros companheiros. Apesar da disputa pela programação, entre aqueles que só

queriam passar filmes de “esquerda” e aqueles que não faziam esta distinção,

entende que havia uma visão comum a todos: “discutir gente, os problemas dos

seres humanos, sejam eles políticos, existenciais, amorosos, filosóficos... A ditadura

não podia dizer para a gente que o mundo era dividido entre comunistas e não

comunistas”.

Escolheram homenagear Glauber Rocha pela sua obra, por ser um artista

brasileiro, obrigado a se afastar do seu país, da sua produção, da sua arte, e

também pela sua luta; em 1972 Glauber não tinha “aquele papo” de sair elogiando o

Geisel.

Depois de muitos percalços, Dudu conseguiu se formar em medicina, mas

nunca exerceu a profissão; já estava definitivamente envolvido com o trabalho social

e cultural. Nutria uma enorme paixão pelo cinema, mas com o cineclube, pela

primeira vez, pode ter uma experiência de convívio democrático adulto. Ressalta que

o fato de serem todos amigos foi extremamente importante para esta experiência; um

bom entendimento interpessoal foi o responsável por não querer ganhar todas as

discussões, por não levar vantagem sempre. Aprendeu a respeitar o outro. Julga que

o cineclube e o partido (se filiou ao PCB em 1974) foram fundamentais na sua vida.

Em meados dos anos 70 é convidado por Cosme Alves Neto para fazer a

programação de um Cinema na Tijuca e outro em São Cristóvão. Posteriormente,

junto com Tizuka Yamazaki e Marco Aurélio Marcondes, fez um programa na TVE

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chamado “Coisas Nossas”, sobre o cinema brasileiro. Depois foi para a Embrafilme.

Quis fazer cinema, mas como era uma atividade muito cara, acabou se voltando para

o vídeo.

Embora filiado ao PCB tinha uma posição crítica quanto a falta de uma

política cultural por parte do partido. Sabia de uma orientação política para o

movimento, mas considerava-a muito estreita, sensibilizando-o muito pouco. Achava

mais importante buscar realizar sessões tecnicamente perfeitas, evitar a quebra do

projetor na hora da sessão, não deixar de fazer a crítica dos filmes e distribuir para o

público, etc.; conquistar a platéia. Esta era a política que o interessava, a política de

pensar o cinema, de fortalecer o movimento, a política cultural.

Tem a sensação, hoje, que o movimento cineclubista, juntamente com

outros, fez o possível para interferir no combate à ditadura, mas não sabe dizer se

foram capazes de alterar de forma significativa aquela realidade. “Acho que houve

uma série de movimentos no mundo que fizeram com que “os caras” entendessem

que eles estavam saindo de moda, né?”

De qualquer forma, Dudu percebe que o cineclubismo contribuiu para criar

as bases do que existe atualmente: O Grupo Estação, O Grupo Unibanco Arteplex

aqui no Rio, num nível mais empresarial e de outros amadores, como o cineclube da

“Maré” e do “Nós do Morro”, entre outros.

Trabalhando hoje no Observatório de Favelas, salienta a necessidade de

compreender o que os jovens estão fazendo para tentar estabelecer um diálogo mais

proveitoso entre as gerações. Atualmente vê o cineclubismo articulado com outras

linguagens, como música, teatro e com outras mídias, enfim, produzindo outras

formas de se relacionar com o mundo e mais ligado à cultura. “Então os cineclubes

hoje, eles também tem uma relação popular... existe muito cineclube, por exemplo, o

“Nós do Morro”, é um movimento de teatro que existe há 20 anos no Vidigal e eles

agora estão com um puta equipamento de vídeo, tão filmando adoidado, com

qualidade profissional e tem um cineclube”.

Reafirma que continua admirando o cinema, porém vai pouco, pois se

tornou uma pessoa “exageradamente caseira”. O cinema orientou sua vida e deu-lhe

muito mais formação, muito mais lastro cultural do que a Universidade; do que

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qualquer outra coisa. Talvez a música faça alguma concorrência com o cinema, mas

deixa claro sua preferência pela sétima arte.

LÍDIA

Aluna do Instituto de Educação do Rio de Janeiro, lembra que o curso

ginasial (hoje ensino fundamental) foi excelente. Teve professores interessantes,

alguns até autores de livros, mas considera que por ser naquela época uma escola

feminina, o aprendizado de vida ficava um pouco limitado. O curso normal foi “...

sofrível. Massificaram o curso, que pela necessidade de professores na cidade

(saíamos direto para o ensino primário), reduziu-se a dois anos. (...) Ainda éramos

muito “anos dourados”.

A relação com o cineclubismo teve início quando entrou para a

Universidade nos anos de 1960, mas apenas como freqüentadora. Sua participação

ocorreu, depois de formada em Letras, ao coordenar o trabalho de revitalização de

um cineclube junto com os estudantes do ensino médio do Colégio Estadual

Brigadeiro Schort, situado em Jacarepaguá.

No tumultuado período dos “anos 60”, este colégio tinha vivenciado

algumas inovações pedagógicas sob a direção da Professora Henriette Amado;

destas inovações fazia parte também um cineclube. Quando foi trabalhar lá nos anos

de 1970, a professora bibliotecária sugeriu que este fosse reaberto, uma vez que

havia sido fechado no auge da ditadura.

A re-inauguração se deu com um filme feito pelos antigos alunos sobre

Jacarepaguá. O cineclube se chamava C.A.S.A – Clube dos Amigos da Sétima Arte;

funcionava uma vez por semana e fazia parte das atividades extra-classe, apesar da

tentativa de inserir os filmes no horário das aulas regulares. Lídia considera que esta

foi uma experiência fundamental na sua vida, sobretudo pelo que aprendeu com os

professores remanescentes daquela vivência anterior.

Em 1980 mudou-se para Cabo Frio e junto com alguns amigos fundou o

Cineclube Gravatá, que exibia filmes em praças públicas, bairros de pescadores e na

periferia. Articularam-se com a Associação do Meio Ambiente da Região dos lagos

(AMARLA) e procuravam fazer um trabalho de conscientização ambiental. Passavam

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filmes também para as crianças. O nome do cineclube homenageava a região, uma

vez que “... gravatá é a planta mais corriqueira da região da restinga e, ao mesmo

tempo, muito útil e bonita: armazena água e dá flores”.

No período em que estava no Gravatá, Lídia nos relata como pode

perceber o poder do cinema: “... Apareceu por lá uma francesa que estava

documentando a luta dos camponeses contra um fazendeiro local, uma luta que já

durava uns vinte anos, pelos menos. A fazenda se chamava Campos Novos e ficava

na direção de Campos. O dono não morava lá e os camponeses brigavam com ele

através de advogados, luta sindical, etc. ( ainda não havia o MST). Pois bem: a

francesa filmou os dois lados: o dos camponeses e o do patrão. Quando o copião

ficou pronto, ela fez uma exibição pros camponeses: foi a primeira vez que eles

puderam ver a cara da pessoa contra quem estavam brigando fazia vinte anos!!! Ela

contava isso com muita emoção”. Hoje no local onde era a fazenda foi construído

um centro ecológico e cultural.

Este fato revelou novamente o sentido que a atividade cineclubista teve

para Lídia: “Como já disse Carlos Drummond de Andrade, “de tudo fica um pouco.”

Tive certeza de que os cinco anos da luta em que participei em Cabo Frio deixaram

um pouco, se não bastante, na preocupação com o meio-ambiente que vi por lá.”

Professora e escritora, sua grande paixão é a literatura. Admite, porém,

que o cinema e o cineclubismo possibilitaram um novo campo de ação, contribuindo

para alargar sua formação cultural e alicerçar sua ação política.

Pensa que o movimento cineclubista constituiu-se numa clara resistência

à ditadura militar, sendo responsável pelo engajamento de muitos jovens “órfãos de

lideranças”, que estavam presas ou desarticuladas. Observa que se por um lado, a

necessidade de profissionalização destes jovens, nos anos de 1980, comprometeu a

continuidade do movimento, por outro, abriu espaço para o surgimento de uma “rede

de cinemas de arte” mais independente do Estado e dos grandes circuitos

empresariais. “Sem o movimento cineclubista, não haveria o Estação Botafogo e

todos os outros desdobramentos que lhe seguiram”.

Professora de Literatura na Universidade de Yale/USA há onze anos, há

três ministra um curso sobre cinema brasileiro. Conta que no primeiro semestre de

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2006, a partir das avaliações dos alunos, percebeu que eles saíam com uma visão

mais profunda sobre o Brasil, algo que era mais difícil de obter nos cursos de

literatura, na medida em que esta arte é muito mais dependente do bom domínio da

língua portuguesa.

Mesmo vivendo numa cidade universitária importante, com bastante oferta

de filmes, constata que pela política americana de reserva de mercado, muitos filmes

estrangeiros “bons” não chegam lá. Mas, em geral, assiste a dois filmes por semana.

“O cinema é minha forma de estar em dia com o que se passa no mundo”.

Lídia tem clareza de que o cineclubismo lhe ensinou ver o cinema numa

perspectiva mais reflexiva, articulando técnica e teoria, o que ela faz em Yale, mas,

ressalta, principalmente, a contribuição do movimento para compreender a dimensão

cultural e política desta arte. “E é isso que faz a diferença da minha abordagem em

relação aos outros professores dessa universidade”.

Na verdade, o cinema teve uma relevância muito grande na vida de Lídia;

ela nos contou que os filmes de Bergmam a marcaram especialmente. “Cenas de um

Casamento” acompanhou as crises do seu primeiro casamento e a sequência inicial

de “Fanny e Alexander” é “... um dos mais poderosos ensaios sobre a paixão e a

perda de um ser amado”.

LUCINHA

Entra para o movimento cineclubista em 1976, ano em que ingressou na

UFES (Universidade Federal do Espírito Santo). Relembra que na infância e

adolescência adorava ir ao cinema, freqüentava todo domingo as matinês com os

amigos; fazia bagunça, enfim se divertia...

Na universidade participava tanto do cineclube como do movimento

estudantil que se reorganizava; era militante do PCB. Pertencia ao departamento

cultural, antigo Diretório Acadêmico (DA), depois Diretório Central dos Estudantes

(DCE). Considera que estas duas atividades foram fundamentais para sua formação,

salientando que o cineclubismo desempenhou um papel de resistência política e

cultural à ditadura. Proporcionou, portanto, a formação de uma cultura

cinematográfica para os seus participantes.

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O Cineclube da UFES funcionava na sub-reitoria comunitária. Havia um

auditório onde se realizavam as sessões: na hora do almoço, à noite e no final de

semana. Após as exibições acontecia o debate; era um espaço de discussão dos

filmes que acabava se transformando também no lugar onde as pessoas podiam se

expressar “livremente”, enveredando para as questões políticas, que afligiam todos

naquele momento. Lembra que os filmes “O Encouraçado Potenkin” de Eisenstein e

o “Homem que Virou Suco” de João Batista de Andrade, eram os mais passados.

Entende que o cineclubismo buscava criar uma relação diferenciada com

o público, que era visto não só como consumidor de cultura, mas principalmente

como sujeito. Para ela essa era a questão mais importante do cineclubismo.

Nesta vertente, destaca a experiência em um projeto de interiorização

cultural realizado pelo cineclube, coordenado pela Secretaria de Cultura do MEC

(SECMEC) e pela Embrafilme. O projeto tinha por objetivo montar cineclubes no

interior do Estado, incentivando a formação de uma cultura cinematográfica.

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Relata que havia cineclubes de vários lugares: em Igrejas, em

Universidades, em Escolas, na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no Instituo

de Arquitetos do Brasil (IAB), etc, em todo o Brasil e que foram se reorganizando em

torno de Federações. Articulando estas, existia o Conselho Nacional de Cineclubes,

que organizava junto com as federações, as Jornadas. Estas aconteciam anualmente

e era onde se percebia mais claramente as várias tendências e partidos políticos

clandestinos que militavam no interior do movimento.

Entende que o PCB teve uma influência muito grande dentro deste

movimento. “Eu lembro das divergências e brigas que tínhamos no movimento

estudantil e no movimento cineclubista. Eram basicamente as mesmas, eram

movimentos de resistência.”

Ressalta que a característica apontada acima, refere-se a um período

determinado do cineclubismo. Com as mudanças políticas ocorridas no final dos

anos 70 e início dos 80, esse papel vai mudar. O movimento passa por um certo

esvaziamento, perde seu caráter de resistência e em alguns casos se profissionaliza.

Esta profissionalização foi empreendida por vários grupos pertencentes

aos cineclubes, que partiram para um tipo de cinema diferente. Traziam elementos

do movimento cineclubista, porém sem a marca da resistência como característica

principal. É o caso do Cineclube Bexiga em São Paulo e o Estação Botafogo no Rio

de Janeiro.

Envolvida nesta trajetória, trabalhou durante oito anos no Espaço

Unibanco de Cinema/SP. Lá criou uma sessão cineclube com o seguinte formato:

uma sessão mensal, de parceria com o Jornal Folha de São Paulo, com a presença

de um convidado (escritor, poeta, diretor de cinema, entre outros), e a escolha de um

filme clássico para ser debatido com o público após a apresentação. “Isso aí é uma

coisa que vem do movimento”.

Diz ainda do interesse de algumas pessoas que ao participarem do

primeiro encontro, voltavam em busca de mais discussão, o que era curioso, pois os

temas eram os mais variados possíveis. Com o decorrer do tempo, o público foi

aumentando e pedindo que as sessões deixassem de ser mensais e passassem a

semanais. Conclui que mesmo vivendo numa democracia, as pessoas sentem falta

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de um espaço de discussão coletiva e mais uma vez vislumbra a semente do

cineclubismo na construção desse espaço de formação cultural.

Desde os tempos de secundarista já manifestava interesse por estas

atividades; participava de grupos de teatro e outras de formas de expressão. Julga

que o cineclubismo, o teatro e a sua participação nos departamentos culturais das

entidades foram fundamentais, na mudança de sua trajetória vida. Embora formada

em Economia, após alguns anos de dúvida, acabou se definindo pela área cultural

mesmo. “De certa forma o cineclubismo mudou o rumo até da minha profissão.

Quando trabalhei como economista, a minha escolha sempre foi na área sócio-

econômica e cultural, e com pesquisas”.

Uma outra influência muito importante do movimento foi em relação às

amizades que fez e, como outras participantes, conheceu seu marido numa Jornada

Nacional de Cineclubes.

Acha interessante resgatar a experiência cineclubista dos anos de 1970,

para entender a importância daquele momento e para pensar essa nossa época

atual. Vive-se hoje uma outra realidade, bem mais complexa, e não poderíamos

simplesmente transpor o que aconteceu para os dias atuais. “Podemos sim, criar

através do filme e do debate novas conversas, reflexões, convívio, compreender o

processo de criação artístico...”

LOURDINHA

Segundo Lourdinha, o cineclube entrou na sua vida pela porta da política e

esta pelo afeto, pois ela começava a namorar o Marco Aurélio, que era do PCB. Ela

acabou, assim, se envolvendo com o partido, quando ainda estudava no antigo 2º

grau. Ao ingressar no IFCS (Instituto de Filosofia e Ciências Sociais/UFRJ), para

cursar Filosofia, ensaiou uma militância no movimento estudantil, que não foi muito

adiante. Em 1972, junto com outros companheiros fundaram o Cineclube Glauber

Rocha.

Tem a sensação de que neste momento o cineclube passou a ter mais

peso na sua vida do que a Universidade. Em termos de sociabilidade, de visão de

mundo, o grupo que formava o Glauber Rocha superava as “militâncias” da época,

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ou seja, não era uma atividade dissociada de suas vidas. O cineclube fazia parte das

experiências de juventude. Era uma aluna estudiosa, se formou, mas o Cineclube era

o “tesão”, era a “vocação”.

É bastante claro para ela que o movimento cineclubista interferiu no

caminho que tomou profissionalmente. No entanto, o germe deste interesse pelo

cinema, localiza-se na sua infância, quando sua mãe dava dinheiro para as

“empregadas” a levarem ao cinema. Como elas não sabiam ler, acabavam vendo os

filmes brasileiros de Oscarito, Grande Otelo, etc.

Foi professora do Cineduc (Cinema e Educação), que surgiu de uma idéia

da CNBB ( Confederação Nacional dos Bispos do Brasil) e da OCIC (Oficina Católica

Internacional do Cinema). O objetivo era ensinar, principalmente nas escolas, o

básico de cinema para crianças; o que é um plano, o que é um corte, o que é ritmo,

etc.

Abriu um curso do Cineduc no Cineclube Glauber Rocha. Ele funcionava

aos sábados à tarde, era aberto a todos e chegou a formar turmas razoavelmente

grandes. Como havia um cineclube na favela do Borel, levaram esta experiência do

Cineduc para lá. O envolvimento e a participação das crianças eram sensacionais.

Crê que foram trabalhos interessantíssimos.

Menciona a existência de cineclubes em vários lugares do Brasil, mas

considera que o cineclube Glauber Rocha foi fundamental na reconstrução do

movimento, uma vez que ele deu o primeiro passo no sentido de reestruturá-lo.

Chama a atenção para o papel de Cosme Alves Neto neste processo de

reconstrução. Ex-cineclubista nos anos de 1960, diretor da cinemateca do MAM,

assessorava os cineclubes de várias formas.

A partir da fundação da Federação do RJ (1974), de SP, e das Jornadas

que reuniam em torno de 400 pessoas, de todos os vieses, partidários ou não, o

movimento foi se consolidando.

Acredita que esta reestruturação realizada por um grupo de jovens acabou

contaminando o movimento do cinema brasileiro, que estava meio disperso,

contribuindo para congregar novamente os cineastas, o que pode ser exemplificado

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na criação da ABD (Associação Brasileira de Documentarista) e da ABRACI

(Associação Brasileira de Cineastas).

Lourdinha conta que a união dos cineclubistas com os cineastas

possibilitou trazer à tona o debate sobre o cinema brasileiro, principalmente, sobre o

enorme preconceito que existia em relação a ele. De alguma forma, o cineclubismo

ajudou a redirecionar a discussão, na medida em que se abria um espaço para o

filme brasileiro: “...tinham sessões do Glauber Rocha, do Leme, iam o que? 100

pessoas? 150 pessoas? E ali, a gente começou a discutir isso – o que é

pornochanchada, o que é o cinema, como é que faz, distribuir filme, lembra da

experiência com o “Passe Livre do Caldeira”?(...) Então eu acho(...) que a gente

trouxe para a roda toda essa discussão sobre a questão do cinema brasileiro

passado, Cinema Novo que tinha ficado lá na década de 60, filmes incríveis ,

maravilhosos...”

Julga que o cineclubismo formou muita gente, além daqueles que

enveredaram para a área cultural e audiovisual, marcando definitivamente a vida de

todos os que passaram por esta experiência. Foi um movimento de resistência à

ditadura militar, “... acho que talvez dos mais eficazes, eu acredito piamente nisso”.

Chama a atenção para a sua diversidade; apesar do PCB ter sido

hegemônico por um período, nunca foi capaz de “aparelhar” o movimento, isto é, não

o transformou numa extensão ou braço do partido. Claro que havia disputas, mas

compreende que esta postura revelava um amadurecimento político do cineclubismo.

Tal como Aninha salienta o trabalho de pesquisa sobre os filmes realizado

pelo cineclube: confeccionavam cartazes para divulgar as sessões e organizavam

apostilas que eram vendidas não só no Glauber Rocha, como também, na porta dos

“cinemas de arte” (Studio Tijuca, etc.). Vendiam bem, o que ajudava na manutenção

do cineclube.

Nos anos de 1980 trabalhou na TV Educativa apresentando dois

programas: Cine Viagem e Cineclubinho. Todos os dois tinham uma preocupação em

educar o olhar para o cinema. O primeiro mais voltado para as crianças, procurava

mostrar desenhos animados de vários países, tentando quebrar um pouco com o

monopólio da Disney. Comentava as técnicas usadas, o conteúdo do filme, etc.

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O segundo programa dirigido para a divulgação do curta-metragem

brasileiro, ía às escolas, exibia o curta para determinada turma e depois, numa

rodinha debatia o filme. Privilegiava as escolas públicas, mas ia também às escolas

particulares.

Admite que gosta de relembrar esta época, apesar da repressão, pois

acha que esta experiência era impregnada de uma afetividade muito grande; era

uma referência para aquelas pessoas. Fazer parte de uma organização, de um

movimento, ordenou a sua vida, mostrou “uma luz no fim do túnel”, deu uma

perspectiva, ajudou no seu crescimento e amadurecimento; ajudou a tornar-se

adulta.

Continua gostando de cinema; é seu lazer preferido; acha que observar

vivências distintas na tela colabora para que as pessoas reformulem seus conceitos,

agreguem informações, enfim, compreende que é um instrumento “fenomenal” para

a formação dos indivíduos.

MARIALVA

Estudante de Filosofia na PUC/RJ, nos anos 60, entrou para o Diretório

Acadêmico, que naquela época vivia como o resto do país uma efervescência

política muito grande, um momento muito rico; momento em que muitos e,

principalmente, os estudantes acreditavam que iriam mudar o mundo. Ajudou a

fundar o Cineclube Nelson Pompéia, homenagem a um colega do curso de direito,

apaixonado por cinema e que faleceu assitindo a um filme no antigo Cinema Veneza,

localizado em Botafogo.

Aos poucos foi fazendo parte do movimento estudantil e logo estava

trabalhando com Cosme Alves Neto, que naquela época dirigia o GEC (Grupo de

Estudos Cinematográficos) da UME (União Metropolitana dos Estudantes). Naquele

tempo não havia Cinemateca, nem Museu de Arte Moderna, mas havia o restaurante

Calabouço, onde ficava a sede do “Metropolitano”, que era o jornal da UME e onde

eram passados os filmes. Diz que o cineclube era bem atuante, lembrando que foi

um tempo muito bom e importante para ela.

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No final dos anos 60 e início dos anos 70, envolveu-se com o CINEDUC

(Cinema e Educação), pois na época fazia um trabalho voluntário na CNBB

(Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), na Central Católica de Cinema. Ao

participar de um Congresso em Lima sobre cinema e subdesenvolvimento, conheceu

Luis Campos Martinez, que desenvolvia um projeto de cinema para crianças na

arquidiocese de Lima. Encantada com o trabalho de Luis, que entendia que “... a

criança deveria aprender a ver juntamente quando aprendia a ler...”, sugeriu a CNBB

que o trouxesse para dar um curso no Brasil. Foi a partir de então que surgiu o

CINEDUC, em 1970.

Inicialmente começaram com as escolas católicas que tinham ligação com

a CNBB. A proposta era que o cinema servisse também para a questão da

consciência crítica, estímulo aos valores humanos, etc. Para isso usavam filmes com

temáticas voltadas para esses valores. O curso tinha uma duração de três anos e

funcionava como uma oficina, isto é, fora da grade curricular; ensinava a linguagem

cinematográfica. Os alunos iam ao cinema e ao término produziam filmes em super

8. O Cineduc posteriormente abriu outros espaços, aproximando-se do cineclubismo.

Inicialmente com o Glauber Rocha, depois Aliança Francesa de Copacabana, entre

outros, onde promoveu o curso de formação para o pessoal do cineclube trabalhar

com as crianças, produzindo vários filmes. Entende que este contato com o

cineclubismo, mostra como naquela época havia uma preocupação com a formação.

Diz ainda que as mudanças ocorridas na década de 1980 nas escolas

particulares “atendidas” pelo Cineduc enfraqueceram sua atuação. Os trabalhos por

ele realizados – passar o filme, interpretar as cenas, dramatizar, desenhar, criar

histórias em quadrinhos, etc. – foram substituídos por atividades extra-classe (judô,

balé, natação).

Na procura de outros espaços, passou a atuar em diferentes lugares: TVE,

projetos como “Escola vai ao Cinema”, da Rio Filme, convênio com o Sesc,

assessoria no “Oficina Cine Escola”, do Grupo Estação, coordenação da Mostra

Geração do Festival do Rio, participação no Programa Educativo da área audiovisual

do Centro Cultural Banco do Brasil, etc.

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No final de 2004, num Festival de Cinema Infantil Internacional, em

Buenos Aires, houve um encontro de especialistas de audiovisual do Mercosul e

Marialva conheceu Gabriela, uma chilena, que estava fazendo um trabalho

interessante: cineclube dentro da sala de aula. Seu funcionamento iniciava com um

curso de dez dias para os professores que a partir do quarto dia já começavam a

montar o cineclube. Ela cita esta experiência, pois acha que além desta ser uma

forma de romper o círculo vicioso do filme na escola servir sempre para ilustrar a

matéria, revela uma importante característica do cinema: proporcionar o diálogo com

outro; nele você se vê e vê o outro.

Revendo esta época, considera que sua opção pelo cinema foi um

facilitador para trabalhar sua preocupação com os valores humanos, reunindo prazer

e reflexão.

MARISA

Oriunda de família mineira, pai bancário, Marisa nasceu no Rio de Janeiro,

morando muitos anos na Ilha do Governador. Estudante de escola pública, já no

primário era liderança de turma. No ensino médio, entre 68/69, estudou na CENG

(Companhia Nacional de Educandários Gratuitos) e na Fundação Getúlio Vargas.

Participava da diretoria do Grêmio, no momento de ebulição do movimento

estudantil, sofrendo sanções pela direção da escola.

Nos anos 70, iniciou o Curso de Economia na UFRJ, mas um ano depois

transferiu-se para Administração à noite, pois precisava trabalhar e Economia

funcionava só na parte da manhã. Neste período, entrou para o PCB e para o

Grêmio da Faculdade. As atividades permitidas naquele momento eram: cinema,

esportes, saraus literários e musicais, em horário diferenciado das aulas.

Considera que teve uma faculdade medíocre, o que a levou a freqüentar

pouco as aulas, o suficiente para passar de ano. Na verdade, sua vida na

Universidade constituiu-se de ações desenvolvidas no Grêmio e assim, o

cineclubismo foi despontando como a “...atividade possível dentro daquela realidade

de muita repressão estudantil...”

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Conta que aproveitavam todos os espaços para projetar filmes. Lembra

que naquela época as grandes distribuidoras não percebiam o caráter político do

cineclubismo, o que facilitou este movimento, pois elas tinham um acervo bom de

filmes em 16mmm que atendia as escolas em geral: neo-realismo italiano, cinema

alemão, entre outros. Foi nesta brecha que os cineclubes entraram. “Aqui não

podemos deixar de mencionar a ajuda que Cosme Alves Neto nos deu, através da

Cinemateca do MAM...”

Destaca que a reorganização do movimento cineclubista no início dos

anos 70 está associada à Jornada de Curta Metragem de Salvador. Esta era apoiada

por verbas internacionais do ICBA (Instituto Cultural Brasil-Alemanha) e contava

também com o apoio do Instituto Goethe de Salvador e da Universidade Federal da

Bahia/UFBA, através do cineasta e professor de cinema Guido Araújo.

Durante a Jornada que durava uma semana, eram realizados diversos

encontros: dos cineastas, de pesquisadores do cinema brasileiro e dos cineclubes. A

partir desses encontros, o movimento ia se rearticulando em nível nacional. Relata

que pode ver muitos filmes latino-americanos, tendo acesso a uma filmografia muito

pouco difundida no Brasil daquela época.

Entende que a Jornada de Salvador foi um espaço importante para o

cineclubismo, principalmente pelas trocas e discussões que possibilitava, ampliando

o movimento. Ainda hoje vê a articulação entre a Jornada de Curta Metragem da

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Bahia e o cineclubismo: “E os cineclubistas hoje, o Centro de Cineclubes de São

Paulo, alguns cineclubes isolados do Rio de Janeiro, da Bahia, do Nordeste, do

RGS, do Paraná, todos vão aparecer [ na Jornada deste ano de 2004]”.

Compreende que atualmente os cineclubes são diferentes dos daquela

época, mas acha que a motivação é a mesma, isto é, discutir cinema, conhecer a

nossa realidade e de outros países, uma vez que o cinema tem esta capacidade de

ensinar e politizar as pessoas.

No período da ditadura, entende que o cineclubismo foi um “movimento

revolucionário”, pois abria aquela brecha para que as pessoas pudessem se

movimentar e debater, principalmente sobre a situação política da época,

configurando-se em uma atividade de resistência através do “bom cinema, do cinema

mundial, inclusive brasileiro”.

Recuperar filmes brasileiros de Humberto Mauro, Mário Peixoto, da

Atlântida – as chanchadas -, da Vera Cruz; clássicos como Mazzaroppi para um

público mais intelectualizado, além das outras filmografias já citadas, constituiu-se

num elemento de riqueza muito grande para a sua formação.

A sua atividade no Cineclube da FEA/UFRJ (Faculdade de Economia e

Administração) estava totalmente imbricada com a sua militância no PCB. Percebe

que neste caso a atividade partidária sobrepunha-se a do cineclube. “Os interesses

partidários eram muito mais de conseguir adeptos que pudessem lutar contra a

ditadura mesmo na ilegalidade, do que culturais”.

Recorda que a sua participação no cineclubismo acabou sendo mais

efetiva no Cineclube Leme, que ficava no bairro onde morava. Este funcionava no

final de semana (aos domingos), no salão paroquial cedido pela Igreja dos

dominicanos. Aqui talvez tenha conseguido conciliar atividade partidária e

cineclubista, pois interessava também ao partido atuar em qualquer frente.

Sabe que o cineclubismo foi fundamental na sua formação, na sua

compreensão do Brasil e do mundo. Sabe também que por ser um espaço de

discussão, acabava agregando pessoas com interesses diversos, mas gerando um

sentimento de pertencimento a um determinado grupo. “Nós compreendíamos que

estávamos numa época de ditadura militar e a gente tinha material, bagagem através

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do cinema...” Foi também no cineclubismo que conheceu seu marido, de quem ela

hoje está separada.

Acredita que o trabalho desenvolvido no cineclube para preparar as

sessões – consultar uma bibliografia para conhecer melhor a obra do diretor,

distribuir uma crítica para o público, debater após o filme, entre outros, – contribuiu

para a formação não só dos membros do cineclube, como também do público que

freqüentava.

Marisa, como outros cineclubistas, trabalhou na Embrafilme, um tempo no

Rio de Janeiro e outro em São Paulo. Julga que a pressão dos cineastas foi

importante para a criação desta empresa. Eles queriam financiamento, regularização

da atividade cinematográfica brasileira, figurar no cenário internacional de cinema,

concorrer a prêmios, apresentar trabalho fora, etc.

Pensa que houve muita polêmica e desentendimento em relação às

questões de financiamento; como não havia dinheiro para todo mundo, era difícil

selecionar, definir quem recebia, pois os critérios acabavam sendo muito subjetivos e

a disputa política era acirrada. No entanto, entende que a Embrafilme desempenhou

um papel importante para o cinema brasileiro, realizando vários filmes de peso e

resgatando cineastas que estão produzindo até hoje.

Depois de alguns anos na Embrafilme saiu e foi trabalhar nos estúdios do

Maurício de Souza, que produziu alguns longas da Mônica e Cebolinha, mas que não

foi muito adiante, pois não havia público, não havia garantia para a exibição. Então

ele não teve como manter e voltou-se para outras atividades mais rentáveis, como o

Clube da Mônica, etc.

Em 1987, grávida de sua filha Eva, deixa São Paulo e vai para Machado,

interior de Minas, cidade de seus pais. Nesta cidade, onde morou por dez anos, foi

professora numa fundação educacional de nível superior e no ensino médio, onde

lecionou Economia, Administração e Marketing. Coordenou também um programa

social ligado à Prefeitura chamado Curumim, destinado a tirar crianças da rua e

apoiar as famílias. Participou ainda da fundação de um núcleo do PT, que diz ter sido

muito bom e produtivo, já que conseguiram eleger um vereador numa cidade que era

dominada pelos partidos tradicionais.

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Mora atualmente( 2004) em Poços de Caldas e “está aposentada”, na

medida em que não consegue arranjar emprego. Já tentou várias áreas, sem

sucesso. “Com toda a experiência que eu tenho eu já estou fora, já estou fora, sou

carta fora do baralho.”

Recentemente, numa Pré-Jornada Nacional de Cineclubes, realizada em

Rio Claro/SP em 2004, Marisa foi homenageada. A placa comemorativa diz o

seguinte: “O movimento cineclubista brasileiro nessa altura da abertura dos trabalhos

aqui da pré-jornada nacional homenageia Marisa Anoni de Souza pela contribuição

ao cinema e ao cineclubismo brasileiro”.

MARCUS

Quando entrou para o cineclubismo, Marcus já estava formado em

Engenharia. Junto com um grupo de amigos organizou o Cineclube Barravento,

nome dado em homenagem a Glauber Rocha( seu primeiro longa metragem), no

final de 78. Funcionava numa Igreja, na rua Senador Muniz Freire, no bairro da

Tijuca. Era aquele esquema bem mambembe e teve uma duração de três anos.

Como outros cineclubes, procuravam realizar o debate após as sessões.

Para incrementar as discussões, levavam convidados. A equipe era constituída de

quatro a cinco pessoas e como todos trabalhavam, produziam apenas pequenos

folhetos com informações sobre o filme ou alguma mostra que estavam realizando.

Recorda que um filme que dava muito “ibope” era “Os Companheiros”.

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Apaixonado por cinema, destaca os filmes “Amarcord” de Fellini, “2001,

uma odisséia no espaço” de Stanley Kubrick, “O Sétimo Selo de Bergman”, como

marcantes em sua vida. Conta que na adolescência tinha gostado muito de “Romeu

e Julieta”, de Franco Zefirelli, mas já adulto ao rever o filme, o achou comum, nada

demais. Pensa que talvez tenha sido conquistado mais pelo texto de Shakespeare do

que pela forma como foi contada no cinema.

Relembra que a história do cineclubismo veio com um amigo que

conheceu num curso de inglês em 75, que também gostava de cinema, tornando-se

“ratos” de cinema. Como trabalhava e estudava, aproveitava o final de semana para

botar os filmes em dia: as vezes via 2, 3, 4 filmes por dia. Via de tudo, desde os que

hoje se chamam de blockbuster até os filmes “cabeça”, de arte e política. Passou a

freqüentar a Cinemateca do MAM, vendo Eisenstein, assistindo a filmes antigos,

podendo então conversar sobre cinema e outros assuntos: política, arte e música.

A escola e a faculdade foram lugares comuns. Fez seu curso de

Engenharia na Veiga de Almeida, tendo uma formação puramente técnica. Como era

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época de ditadura, não tinha atividade política, associativa, etc. Era uma escola que

na sua história não tinha tradição de luta.

Para ele, o movimento cineclubista foi muito importante, pois fez

numerosas amizades, começou a viajar, conhecer outros estados, outras pessoas,

inclusive sua esposa, que também era do cineclubismo no Espírito Santo. “Então

arranjei minha vida pessoal e afetiva, política, cultural, dentro do movimento

cineclubista, discutindo cinema, discutindo cultura, discutindo música, enfim...”

A característica do seu cineclube é que eram pessoas que tinham uma

visão política da sociedade e da vida, mas não eram militantes de nenhuma

organização clandestina. Sabe que a rearticulação do movimento em 1974, foi muito

incentivada pelo PCB, que vislumbrava neste, um espaço de atuação coletiva. Na

primeira Jornada de Cineclubes em Santa Tereza/ES, percebeu as disputas internas

do movimento, tomando contato com a “militância política”.

Foi administrador da distribuidora do movimento – Dinafilmes – no Rio de

Janeiro. Criada em 77/78, possuía um acervo razoável, mas a falta de recursos

impedia a sua expansão. Também integrou, no início dos anos 80, a diretoria da

Federação do RJ e do CNC. Nesta época foi percebendo a fragilidade do movimento,

tanto pela sua estrutura interna de funcionamento, que se tornava cada dia mais

difícil de ser mantida, como pela abertura política, que proporcionava outras áreas de

atuação para os envolvidos no cineclubismo. Em 84 se desligou do movimento.

Considera que o movimento cineclubista, na época em que participou,

gerou muito mais mão-de-obra para o circuito de exibição, do que para a criação de

um mercado paralelo que escoasse uma produção independente. Como exemplo,

ressalta que os grandes exibidores, nacionais e internacionais, têm egressos do

movimento cineclubista em seus quadros dirigentes. Para ele, o movimento produziu

também poucos cineastas e realizadores, diferente dos anos 50 e 60 que revelaram

Glauber Rocha, Leon Hirshman, Eduardo Coutinho, Cacá Diegues, etc.

Mesmo seu cineclube vivendo o período de redemocratização, chama a

atenção para a continuidade de práticas arbitrárias. No final da sessão sempre

aparecia alguém para perguntar: “quero participar, vocês participam de alguma

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organização clandestina? Vocês têm alguma finalidade política? Recebe dinheiro do

exterior?”

Julga-se “um espectador qualificado, se é que isto existe”. Depois que saiu

do movimento, estudou cinema mais profundamente e continua assistindo a muitos

filmes; é uma atividade muito prazerosa. Vê no cinema a possibilidade de conhecer o

mundo de uma outra forma, que não seja a visão oficial estabelecida pela grande

mídia em todas as suas expressões.

Acredita que o mercado ainda é o grande detentor do que pode ou não ser

exibido, visto que o critério principal para a comercialização de um filme é a

probabilidade de grandes bilheterias. Salienta, no entanto, que a situação estaria pior

sem a presença da cadeia Estação e Arteplex. Até mesmo os filmes do Woody Allen

encontram dificuldades de exibição aqui no Brasil.

Atribui à cadeia Estação, o renascimento de nosso cinema nos anos 90,

após a tragédia “Collor”, com o lançamento de “Carlota Joaquina”, no momento em

que os grandes exibidores não mostravam filmes brasileiros, nem outras

cinematografias (iraniana, indiana, etc.) consideradas pouco rentáveis. Pensa no

cinema digital como uma maneira de baratear custos, caso haja esforço conjunto dos

exibidores nacionais e dos governos para “democratizar” a exibição.

Sobre o movimento cineclubista atual, entende que eles têm

características distintas da época da ditadura. Por exemplo: dois cineclubes fazem

sua programação no Cinema Odeon. Um, é o Cachaça Cinema Clube, que exibe

uma vez por mês curtas-metragens. Paralelamente, há um show na madrugada e

distribuição de cachacinha para os espectadores. O público é, predominantemente

de estudantes de cinema. As sessões ficam lotadas.

O outro, é a Sessão Cineclube, organizada por uma revista de crítica de

cinema chamada “Contracampo”, toda quarta-feira. Exibem filmes fora de circuito,

distribuem um folheto explicativo e realizam debate após a sessão.

Lembrou ainda de um cineclube no Beco do Rato, que funciona na

Travessa Moraes, onde morou o Manuel Bandeira, na Glória. É organizado por

estudantes de cinema e exibe curtas-metragens.

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Admite que, talvez, o ideal para a manutenção do movimento hoje seja

uma forma auto-sustentável com a valorização das culturas locais. Teríamos, então,

a diversificação das verbas e dos pontos de exibição e a infraestrutura financiada e

operacionalizada pelas pessoas nos locais de exibição.

NELSON

O “papo” com Nelson começou pelas suas lembranças da situação política

do final dos anos 60 e início dos 70. Adolescente, entre 13 e 15 anos, encontrou no

cinema a possibilidade de “sair de casa”, escapar do controle dos pais, na medida

em que o cinema era um lazer muito barato naquela época. Lembra que convidava

os amigos para irem juntos, mas a maioria preferia a praia, o futebol, e ele acabava

indo sozinho. Atribui à cidade do Rio de Janeiro, que considera uma cidade

cinematográfica, o ambiente propício para um garoto gostar de cinema. Havia muitos

cinemas na cidade.

Revendo os filmes, identifica que muitos o marcaram, mas cita

“Chinatown” de Roman Polansky, por ter alargado sua visão sobre o cinema: “...

quando saí do cinema Metro Boavista, onde fui ver esse filme, eu disse, puxa, tem

filmes de Hollywood muito bons, tem filme não politizado excepcional.” Nesta época

via muita comédia também e cinema brasileiro. Achava as pornochanchadas muito

chatas, mas elogia outras produções - “Dona Flor e seus dois maridos”, “Os

Inconfidentes”, Macunaíma – ótimas. Gostava muito.

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Estudante de uma escola judaica – Liessin - foi lá o seu primeiro

cineclube. Mexendo nos guardados da escola achou uma máquina IEC portátil

(projetor), nova, conversou com uns amigos e juntos inauguraram o cineclube com o

filme “Isadora Duncan”, com Vanessa Redgraves. Toda a escola aprovou a iniciativa;

o sucesso viabilizou a atividade.

O cineclube era incipiente; não havia grêmio, devido à situação brasileira e

ao fato de ser uma escola judaica. Mas o grupo conseguia de alguma forma criar

uma atividade extra-escolar e burlar algumas regras: ultrapassava o horário do

recreio, que era de 40 minutos e passava o filme que tinha uma hora e meia, por

exemplo, “... porque todo mundo queria perder a aula também e os filmes eram

bons”.

Com o cineclube, descobriu que o “grande barato” do cinema é as

pessoas poderem se programar. Diferente da relação autoritária da televisão, que

impõe a programação. Julga o cineclubismo uma experiência muito importante.

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Pensa que a questão do audiovisual nas escolas, hoje, está muito ruim, pois não vê

incentivos às atividades desta natureza.

Quando entrou na UERJ em 1974, ficou “chocado”. Nada acontecia; era

um deserto em termos de movimentação estudantil. Tinha clareza do estrago

causado pelo 477, mas como percebesse algum movimento, ainda que subterrâneo,

em outros locais, sua impressão inicial da Universidade foi impactante.

Tal como na escola, junto com outros colegas, começou a procurar e

acabou encontrando. Com um projetor desativado num canto resolveram montar um

cineclube (CICE-UERJ/Cineclube das Ciências Econômicas da UERJ), agora

articulado ao movimento cineclubista. Após percorrerem todos os trâmites exigidos

pela Universidade, estrearam com o filme “O Passe Livre” sobre o jogador de futebol

Afonsinho, pois havia uma cópia disponível para o movimento. Um filme muito

passado neste cineclube foi “O Grande Ditador” de Charles Chaplin.

Entrar no cineclubismo significou “descobrir o mundo”. Viu toda a

organização do movimento, encontrou pessoas pensando como ele, em outras

Universidades, bairros, associações, etc. Todos de uma certa forma alojados no

MAM.

Entende que a Cinemateca do MAM, através do Cosme, exerceu um

papel fundamental para a existência do movimento. Além de sediar a Federação do

RJ, emprestava filmes, possibilitando a permanência da atividade e formando uma

geração, que pode conhecer os clássicos mudos e desenhos animados da Bulgária,

Polônia, Canadá, entre outros. Faz questão de registrar que os filmes faziam um

sucesso extraordinário e que esta Cinemateca era a única do mundo que difundia os

seus filmes.

Nelson engaja-se no movimento, participando de um outro cineclube, do

Leme; torna-se diretor da Federação do RJ e, posteriormente, presidente do CNC.

Faz questão de dizer que o Cineclube Leme foi o responsável por trazer à cena o

Cinema Alemão, através de ciclos, principalmente, para a cidade do Rio de Janeiro.

Nomes como Herzog, Fassbinder, etc., tornaram-se conhecidos do público, graças

ao Leme.

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Chama atenção para a relevância deste movimento numa época de

grande repressão. Relembra que se não houvesse o cineclube na Faculdade, não

teria conseguido permanecer até o final “... não faria sentido eu ficar naquela

Universidade ouvindo professores lerem livros, repetir, não sabendo dar aula,

despreparados, alunos despreparados, tudo despreparado, tudo caindo aos

pedaços, tudo sucateado, não tendo uma luz naquele túnel. Eu não ia ficar naquela

Universidade, ou ia até abandonar, cheguei a pensar, o que me salvou de continuar

a vida foi o cineclube, o cineclube da Universidade”.

Salienta que a Federação de Cineclubes do RJ era uma entidade muito

democrática, congregando cineclubes de diversos matizes políticos e de

configurações sociais distintas. Entende que a Federação conseguiu dialogar com

outros movimentos sociais que naquela época eram muito visados, como os

sindicatos, ajudando inclusive na sua reorganização.

A relação iniciava-se da seguinte maneira: a Federação fomentava a

atividade cineclubista, nos locais onde os movimentos eram incipientes e dava

suporte organizativo. Sem uma atividade cultural, ficava difícil mobilizar as pessoas.

Declara, no entanto, com alguma tristeza, que tão logo o objetivo principal era

atingido – reorganizar a instituição – o cineclube acabava. “Enfim, fazia parte da vida,

do processo”.

Compreende que o CNC, através das Jornadas Nacionais, colaborou,

assim como outras entidades para o fim da censura; esta continuava mesmo quando

a ditadura já “estava caindo de podre, mas a censura não caía”. Recorda ainda que

em 82/83, quando já havíamos conquistado eleições diretas para governadores e a

Campanha das Diretas tornava-se uma realidade, continuava existindo “certificado

de censura” para os filmes. “Então essa luta contra a censura aí sim formou um

caráter libertário”.

Julga que a criação da Embrafilme (1969) foi muito importante para a

indústria cinematográfica brasileira; talvez a melhor estatal brasileira. Era uma

empresa pequena, com 300 ou 400 funcionários e relativamente democrática, pois

mesmo seguindo “as regras do mercado”, no que diz respeito ao financiamento,

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contemplou vários cineastas como Luis Carlos Barreto, Cacá Diegues, Zelito Viana,

Arnaldo Jabour, entre outros.

Acredita que a relação do cineclubismo com a Embrafilme foi difícil, porém

muito importante. Esta empresa, que tinha dotação orçamentária para atividades

culturais, possibilitou que o movimento organizasse Mostras, Festivais e Eventos. No

entanto, não havia um consenso em relação a esta questão. Muitos consideravam

que aceitar dinheiro da Embrafilme era avalizar o governo militar, ser conivente com

a ditadura.

Na visão de Nelson o cineclubismo foi uma atividade que, embora com

caracterísitcas amadoras, muitas vezes “capenga”, formou um público. Conseguia,

através de debates após as sessões, favorecer uma leitura crítica das obras e

despertar nos participantes um interesse pelo cinema. Além disso, formou, também,

cineastas, conforme nos diz: “vários cineastas que eu encontro hoje me dizem que

eram público de cineclube nos anos 70”.

Reconhece, entretanto, que só vieram a formar platéias mais numerosas,

com a profissionalização da atividade cineclubista, em meados dos anos 80; quando

alguns participantes do movimento se uniram para tentar explorar um viés mais

comercial e de maior público.

Nesta esteira surgem o Grupo Estação no RJ, o Projeto Bexiga em SP, os

Clubes de Cinema no Nordeste. “O Grupo Estação é filho, não é neto, filho direto do

movimento cineclubista. (...) o movimento cineclubista, que é um movimento cultural

de cunho social, criou mão-de-obra, criou escola, criou informação, que hoje você

não tem na faculdade”.

Atualmente, diretor do Grupo Estação, acredita que a profissionalização

procura manter a idéia de cineclube dos anos 70 com o pragmatismo de mercado.

Recuperaram vários cinemas, inclusive o Odeon que ia virar Casa&Vídeo, ampliando

as possibilidades de programações diferenciadas e contribuindo para revitalizar as

áreas onde se instalam. “Talvez em 1970 você só tivesse a idéia na cabeça, hoje se

você tiver a idéia na cabeça e não tiver algum recurso, a idéia vai continuar na

cabeça”.

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Através do “Projeto Escola” do Estação, observa que os professores

apresentam muitas dificuldades em lidar com a linguagem cinematográfica. Esta

dificuldade, ele atribui à pouca intimidade desses profissionais com o cinema. Não

tiveram uma formação voltada para o audiovisual, de uma maneira geral, nem a

oportunidade de debater ou discutir cinema. Conclui então, que fica difícil para eles

“passar a idéia de um filme para seus alunos”.

Retornando ao início de nossa conversa, não localiza um ou mais filmes

que tenham marcado sua história. Percebe a relevância da experiência estética na

vida das pessoas e na sua, quando muitas vezes “se vê” pensando, falando,

repetindo frases e situações a que assistiu na Tela. Considera de grande importância

a influência do cinema para ele e para os que participaram dessa aventura.

Sobre o renascimento do movimento cineclubista, entende que, hoje, a

preocupação maior é em produzir, fazer filmes e vê aí uma diferença grande em

relação ao período da ditadura militar. O barateamento dos custos de produção e o

surgimento das faculdades, facilitaram a atividade cinematográfica: longa-metragem,

vídeo, documentário, curta-metragem. Não é o que desejava, mas “... é melhor ter

um grupo de jovens querendo fazer cineclube do que não querendo fazer nada. Nem

se preocupando, achando isso chato. Que para mim é mortal. Para mim é o niilismo,

ou seja, um “Blow Up”, aquele filme do Antonioni. Ah, não quero saber e tal, isso não

é comigo”.

Revela-se esperançoso, porém, quando nos diz que há ainda cineclubes

que só passam filmes e promovem debates.

NEWMAR

Formado em Jornalismo, lembra que, desde a infância, o cinema

despertava nele encanto e curiosidade. Após a primeira vez, aos nove anos de

idade, esse programa passou a se constituir num hábito e paixão. Como todo mundo,

cresceu vendo filme americano na televisão, mas o Cinema Brasileiro sempre

chamou a sua atenção, pois possibilitava conhecer, ver o Brasil. “O Brasil era curioso

para mim. É uma loucura, mas você vê a dimensão da dominação”.

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Tinha entre 11 e 12 anos, quando viu o primeiro filme brasileiro para

adultos. O título era “Floradas na Serra”, de Luciano Salce. Era um drama choroso,

mas ficou muito impressionado. Outros que o marcaram também foram “Amuleto de

Ogum”, de Nelson Pereira dos Santos e “Assalto ao Trem Pagador”. Com exceção

de “Amuleto”, os outros dois foram vistos na televisão.

Descobriu que nas madrugadas, a televisão passava filmes diferentes.

Nessa época, anos 70, ainda não havia TV por assinatura. Foi dessa forma que

tomou conhecimento de diretores como Bergman, Chabrol, De Sicca, Visconti, entre

outros. Declara que foi o Cinema Italiano foi o responsável por fazê-lo pensar e ver o

cinema de uma outra maneira. “Tudo muito intuitivo, sem nenhuma leitura intelectual.

O ponta pé inicial para entender o cinema como arte. Eu não tinha esse conceito na

cabeça. Era um cinema diferente e, paralelamente, o estar aberto ao cinema

brasileiro. O cineclubismo amarrou isso”.

Em fevereiro de 1977, aos 15 anos, fazia recuperação em Física, quando

entraram dois estudantes na sala, divulgando uma reunião e chamando os

interessados para participarem do Cineclube Lemos Cunha. Fundado em dezembro

de 1976, pelos alunos do hoje Ensino Médio, funcionou no Colégio Capitão Lemos

Cunha, na Iha do Governador, de 1976 a 1979.

Newmar interessou-se e passou, então, a freqüentar as sessões e a

primeira a que assistiu no Lemos Cunha foi “Sagarana O Duelo”, de Paulo Thiago e a

última foi em 1978, com o filme “O Amuleto de Ogum”, quando saiu do cineclube

porque mudou de bairro e de escola. Continuou, porém, freqüentando cineclubes:

Macunaíma na ABI, Barravento, Jean Renoir, o MAM...

Como relatado anteriormente, ele não tinha nenhuma resistência ao

Cinema Brasileiro, mas não se sentia à vontade para comentar com os colegas, pois

o preconceito era muito grande. Encontrou, então, no movimento cineclubista a sua

“turma”, os interlocutores para os seus anseios.

Considera que sua experiência escolar privilegiou as ciências exatas o

que provocou um esvaziamento de toda e qualquer discussão que refletisse sobre

aquele momento político. Achava a escola muito chata, embora gostasse de ler, e o

que aliviava era saber da possibilidade do encontro com os amigos do cineclube.

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Entende que o movimento cineclubista contribuiu imensamente para sua

formação, pois vendo os filmes e debatendo, foi definindo coisas na sua vida e

amadurecendo. A aquisição de um entendimento melhor sobre política e arte, sobre

o que é trabalhar em grupo, localiza-se a partir dessa experiência.

Repassando esta história, pensa que no período de redemocratização

(final dos anos 70 e início dos 80) houve um descenso do movimento, por conta do

esvaziamento político; e na virada dos anos 80 para 90, pela afirmação do

videocassete e o fortalecimento da televisão como uma mídia audiovisual poderosa.

Paralelamente, entende, também, que algumas lideranças do movimento

ainda estavam voltadas para o contexto pré 68, o que é evidenciado na programação

dos cineclubes que ainda privilegiavam Glauber, Bertolucci, Nelson Pereira... Era o

camponês, o operário, enfim havia ícones. No seu cineclube procurou romper um

pouco com esta “tradição”. “Muita gente achava que com a democratização a gente

iria retomar algo que foi bloqueado em 68. E na realidade, não foi necessariamente

isso que aconteceu, porque a despeito da repressão, a despeito do corte violento, o

mundo mudou, a fila andou...”

Acredita que a arte é importante para qualquer ser humano, por oferecer

condições para o entendimento da vida, embora dependendo de sensibilidade “...

meus pais não eram pessoas com formação sofisticada intelectualmente, eu morava

num bairro de classe média baixa [Brás de Pina], exclusivamente residencial, não

tinha livraria e cinema, não tinha um ambiente de cultura me cercando, e eu via

filmes brasileiros e ficava fascinado”.

Comparando aquele momento com o que acontece hoje, avalia que

atualmente os cineclubes atraem mais as pessoas pelo gosto do cinema; o foco é o

cinema. Nos anos 70 a necessidade do debate, significava respirar, lutar contra a

ditadura militar, hoje é refletir sobre uma outra “ditadura, a do mercado”. Newmar

finaliza revelando sua preocupação com o que chama de “ditadura da

pseudopraticidade”: “Hoje, a princípio, não há mais censura política, mas há a

ditadura da pseudopraticidade em que a gente vive. Quando você quer anular o

argumento do teu interlocutor, você não diz que ele é subversivo, diz que ele é

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jurásssico, porque é mais eficiente do que chamar a Polícia Federal pra te prender,

porque você desqualifica o outro”.

ROBERTO

O bate-papo com Roberto teve início falando sobre filmes que

marcaram nossas histórias de vida. Ele cita Queimada de Gillo Pontecorvo, pela

temática histórica sobre a América Latina e pela estética do filme. Outros lhe

despertaram a atenção, mas a memória...

Atribui o envolvimento com o cineclubismo a dois motivos. Primeiro, por

gostar de cinema desde pequeno e segundo, nos anos de 1970, a necessidade de

fazer alguma coisa, agir, resistir diante daquela repressão toda. Então, no

cineclubismo pode reunir as duas coisas: lutar contra a censura e fazer alguma coisa

com gosto, com prazer.

Filho de professor, Roberto não tinha naquela época esta vocação. No

entanto, no início dos anos 80 fez um concurso, passou e assim tornou-se professor

de desenho para estudantes de arquitetura, na Universidade Federal do Rio de

Janeiro/UFRJ.

Revendo este tempo, conclui que aprendeu muito com o cinema e o

cineclube. Naquela época, quando se conduzia um debate havia a preocupação em

estimular a discussão. Lembra que uma “regra básica” era evitar que alguém

monopolizasse a fala logo no início do debate, inibindo a participação das outras

pessoas. Diz que esta prática foi muito importante para a sua experiência

pedagógica, tornou-o mais atento e aberto às diferenças dos seus alunos, aos

diferentes pontos de vista.

Já estava na Faculdade de Arquitetura/UFRJ, quando ingressou no

Cineclube Leme em meados da década de 70. A possibilidade de entender melhor

os filmes, compartilhar dúvidas, trocar idéias, foi essencial para procurar um

cineclube. “Para mim, foi muito importante, no sentido inclusive pedagógico, auto

pedagógico, pelo ato de compartilhar a discussão de um filme. (...) Naquele tempo

havia menos canais de comunicação e expressão”.

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Acha, de uma maneira geral, que o Cineclube Universitário era

complicado, pois havia muita dependência das articulações do movimento estudantil,

que na época encontrava-se bastante desarticulado, dificultando, muitas vezes, o

ritmo da atividade. “... eu acho que o próprio perfil do movimento estudantil é um

pouco mais voltado para a agitação. (...) Então o filme às vezes tinha que ser muito

mastigado, explícito... mais para mobilizar as pessoas... era mais difícil de manter”.

Vice-presidente da Federação de Cineclubes do RJ, no mesmo período

que Aninha foi presidente, entende que esta foi uma experiência interessante, já que

reunia participantes de cineclubes e bairros distintos, tentando articular política e

cinema. Naquele momento era importante encontrar pessoas que tivessem as

mesmas afinidades; era preciso se fortalecer.

Considera que o movimento cineclubista trouxe o Cinema Brasileiro para a

cena, ainda que muitas vezes as discussões se limitassem às questões de mercado;

de formar o mercado para o Cinema Nacional, ofuscando um pouco o debate, mais

especificamente, cultural e estético.

Julga que nosso cinema, hoje, colhe os frutos, de certa forma, desta

época. Cresceu, possui alta qualidade técnica e é diversificado. “De minha parte,

continuo vendo filme brasileiro e gostando”.

Depreende que na conjuntura política dos anos 70, o cineclubismo estava

perpassado pelas disputas entre um “aparelhamento” (para fins político-partidários)

do movimento e uma perspectiva da atividade mais autônoma, frente às

organizações políticas clandestinas ou não. Nas Jornadas Nacionais, a tensão

interna se manifestava de forma mais contundente, pois era o momento em que se

definiam as orientações da política cultural.

Tem clareza que esta tensão era muito questionada, pois a maioria dos

cineclubistas entendia que o movimento não deveria ser “aparelhado”, na medida em

que, se o cineclube virasse “aparelho” de tendência, de partido, ou de grupo, a

perspectiva era ele se esgotar, desaparecer, perder a sua especificidade.

Acha, entretanto, que em algum lugar deve ter sido “aparelhado” mesmo,

uma vez que não era possível se manter um controle, pois os cineclubes, algumas

vezes, eram estruturas bem voláteis, abriam, fechavam, por vezes ao sabor de

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contextos locais e/ou geográficos ou ainda circunscritos às dinâmicas sociais de

outras entidades.

No nível micro, esta tensão era vivida de acordo com o perfil de cada

cineclube, expressando as diferentes dimensões que este conflito alcançava.

Contudo, de uma maneira geral, “... o cineclubismo naquele momento cumpriu um

papel histórico de mobilização das pessoas pela via cultural. (...) tiveram um perfil

acentuadamente político e não tinha como ser diferente. (...) foi um momento de

força, de resistência, com todas essas tensões que eu coloquei antes, que são

inevitáveis, não tinha como não ser político”.

Faz questão de frisar, que a crítica que se fazia, em relação ao

“aparelhamento”, era com a intenção de manter a autonomia da atividade

cineclubista, já que a maioria de nós também estava ligada a partidos clandestinos.

Acha que a política – mais explícita e direta - não estava fora da vida da gente.

Entende, no entanto, que o cineclube não deveria vir a “reboque” de outras

organizações ou demandas sociais, por mais louváveis que fossem, ante um estado

de liberdades restritas e controladas pela ditadura e seus agentes.

Considera também, que o movimento criou uma vertente interessante no

que diz respeito às discussões estéticas das obras. Entende que evidenciou-se uma

questão importante, qual seja, a interpretação de uma obra de arte não depende

exclusivamente das intenções autorais, do diretor ou realizador de um filme. O autor

pode ter a intenção que quiser, mas na hora em que ela é interpretada

coletivamente, ela sofre outra leitura, “... e eu acho isso uma coisa legal que o

movimento proporcionava.

Por motivos claramente afetivos, relembra a Jornada Nacional de Santa

Teresa no Espírito Santo em 1979, quando conheceu sua atual mulher, Lucia. Julga

que todas as Jornadas foram importantes porque mostravam a dimensão política e

cultural do movimento em todo o Brasil, além de possibilitarem encontros de novos

participantes.

Tem a sensação de que as pessoas possuem poucos instrumentos

críticos para lidar com um mundo cada vez mais audiovisual. Acha que a escola

deveria trabalhar com o cinema como material de reflexão crítica. Orientar gerações

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para conviver com a presença avassaladora de imagens é algo muito importante.

Para ele, ao persistirem as tendências atuais, de uma certa passividade frente ao

mundo fantasioso do consumo e da publicidade e a ausência de espaços de

discussão, as perspectivas de um pensamento mais plural fica comprometido.

Conclui destacando que pode ser um caminho profícuo refletirmos sobre

as experiências contemporâneas e pensarmos, talvez, o “espírito” das décadas de 70

e 80. Vale dizer, nos atualizarmos; compreendermos nosso momento histórico que

pode estar mascarado por uma liberdade, que não possuíamos, escondendo, porém,

outras formas de aprisionamento.

UBIRATAN

Relembra que era freqüentador, na infância, daquele cinema que havia no

subúrbio, chamado “poeira”, que passava dois filmes por sessão. Assistia a todos,

mas destaca “Vinte mil léguas submarinas” e filmes de “ação” como seus prediletos.

Já adulto gostava dos que falavam dos problemas sociais do Brasil, e se recorda

bem de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” e “Vidas Secas”...

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Na infância morava em Deodoro, depois Engenho Novo e estudou sempre

em escola pública e tradicional. Foi aluno também do Colégio Militar, que entende ter

sido, por um lado, uma experiência pesada, pela disciplina exigida, por outro,

importante, pois lhe deu uma boa formação. “Foi a vida que eu levava com aquele

grupo de pessoas mais ou menos pobres que iam por ali; ia a escola, ia pra casa,

jogava bola, enfim, não tenho nenhum registro de coisa ruim”.

Sua entrada no movimento cineclubista passou pela relação que ele e sua

irmã tinham com a Igreja Católica. Eles davam aulas num supletivo que funcionava

na Igreja da Salete, no Catumbi, freqüentado por pessoas que moravam nas favelas

próximas: São Carlos, Catumbi... Havia ainda, para os que já tinham sido

alfabetizados, um supletivo no Colégio São Vicente de Paula no Cosme Velho.

Em uma assembléia no morro do Catumbi, por volta de 73/74, com a

presença de um padre do São Vicente, de pessoas da comunidade e algumas outras

ligadas à Igreja e que faziam trabalhos comunitários, sua irmã lançou a idéia de

montar um cineclube com o que todos concordaram.

Deixa claro que não eram católicos, mas sabiam que para fazer qualquer

trabalho na favela, teriam que contar com o apoio da Igreja, que naquele momento

era a instituição com espaço para uma ação comunitária. A partir de então, descobriu

a Federação de Cineclubes do RJ no MAM, que passou a freqüentar, tornando-se

um cineclubista.

Por sugestão de Marco Aurélio Marcondes, presidente da Federação,

homenagearam Grande Otelo, colocando seu nome no Cineclube. Na inauguração,

passaram “Rio Zona Norte” com a presença do ator, que não gostava de ser

homenageado sem recompensa financeira. “Subir numa favela não era exatamente o

principal negócio da vida dele. Mas felizmente aceitou, abrindo uma exceção apesar

de ser uma favela. Foi um grande dia. Imagina o Grande Otelo na favela, os

garotinhos, os pequenininhos adoravam ficar do lado dele, dar um toque na cabeça

dele pra mostrar que eram mais altos que ele, porque ele era muito baixinho

mesmo...”

O cineclube funcionou, durante uns cinco ou seis anos, num galpão onde

ficava a Igreja e a Escola. Relata que um grupo trabalhava com as crianças e outro

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com os adultos. Para as crianças, talvez, tenha sido o melhor e mais organizado

lazer naquela época. Após as sessões elas desenhavam, representavam, enfim

havia um trabalho bonito. A presença do cineclube proporcionou a existência de uma

atividade de cinema pelo pessoal do Cineduc, junto à escola pública que havia na

comunidade.

No que diz respeito aos adultos, considera que havia alguns problemas

para montar a programação: filmes “rebuscados”, com uma linguagem hermética ou

que tivessem cenas de sexo explícito eram rejeitados pelos moradores. Os filmes

que mais chamavam a atenção eram os que apresentavam uma relação com a

realidade deles: “Mineirinho Vivo ou Morto”, “Assalto ao Trem Pagador”, “Amuleto de

Ogum”, “Garrincha, Alegria do Povo”, entre outros.

Lembra que o debate após a sessão era um objetivo importante para o

trabalho comunitário e político, mas havia muita dificuldade em fazer com que as

pessoas ficassem após o filme. No “Grande Otelo” foram raros esse momento.

Pensa que o cineclube propiciou ao grupo que participava desta atividade uma

“consciência” mais coletiva, mais comunitária; envolviam-se com outros trabalhos,

como a feitura do jornal, com a associação de moradores...

Conta que como a equipe ficava muito atarefada na realização das

sessões – cobrando o ingresso, projetando o filme.- acontecia muitas vezes de não

poderem assistir ao filme. A solução era vê-lo antes e neste momento ocorria, então,

o debate entre a equipe. Esta prática permitiu ampliar as discussões para além do

filme, para a realidade vivida, tornando-se um espaço de formação.

Vale registrar que o apoio ao Cineclube Grande Otelo era muito grande

por parte dos demais e da Federação. Sabedores das dificuldades por estar situado

na favela, os que podiam emprestavam filmes sem cobrar ou davam dicas de como

obter cópias em embaixadas, o que praticamente mantinha a programação infantil.

Esse procedimento revelava a solidariedade do movimento.

Salienta que ser filiado à Federação foi imprescindível para a existência e

a manutenção legal do cineclube, que precisava se resguardar do “assédio” da

polícia. No contato com outros encontrou afinidades com um pessoal que atuava em

Nova Iguaçu, e que também trabalhava com a população carente, com a população

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da periferia. Ainda hoje acredita, como naquela época, que se a gente não trabalhar

com o “povo de verdade”, não vê como alterar a realidade do país.

Era um momento de repressão muito forte, mas o movimento existia e

teve o mérito de tentar discutir, chamar a atenção para o debate, principalmente para

o Cinema Brasileiro. Recorda: “você lembra do mês do cinema brasileiro?” Era um

mês em que todos os cineclubes só passavam filmes brasileiros, numa época em

que isso quase não acontecia nos circuitos comerciais. Não sabe se o cineclubismo

contribuiu efetivamente para o cinema nacional, mas diz que houve um forte

empenho. Tem clareza que foi um movimento importante de resistência cultural à

ditadura: “...que outro movimento, nas suas Jornadas, conseguia reunir tantas

pessoas numa cidade, especialmente naquela época, como o cineclubismo fazia?

Qual foi o outro que reuniu? Se teve, não lembro.”

Rememorando aqueles momentos, sente que viveu uma relação

dicotômica com o cinema. Por um lado era um cara de classe média, morador da

zona sul, com hábitos culturais desta classe. Por outro, tinha uma prática política

numa atividade com pessoas com outra visão de mundo. Preocupado em fazer uma

programação que considerasse os interesses deles, acredita que desenvolveu um

certo preconceito em relação aos filmes que não fossem lineares, que fossem

herméticos e alegóricos. Ao ver um filme imaginava, se poderia passar no cineclube

ou não. Acabou se empobrecendo intelectualmente, pois reagia a qualquer filme que

não tivesse uma temática social e política e que não tivesse início, meio e fim. Hoje

vê o cinema de uma forma mais leve, descompromissada.

Economista, atualmente trabalha em áreas de finanças e projetos. Crê que

o aprendizado adquiridc com aquela experiência trouxe-lhe senso de

responsabilidade e respeito no relacionamento em grupo, que considera uma

contribuição para sua postura profissional, hoje.

Várias foram às razões para o fim do cineclubismo, mas no caso do

“Grande Otelo”, uma crescente animosidade com a Igreja tornou inviável a sua

existência. Conhecedora de que aquela atividade ia além de um “simples” lazer,

começou a fazer pressão exatamente no momento em que a equipe do cineclube já

participava de outras atividades na favela. A equipe reagiu e fez um abaixo assinado

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contra o padre que liderou a pressão. Lembra que conseguiram colher mais de mil

assinaturas. No entanto, esta movimentação não foi capaz de manter o cineclube. O

grupo permaneceu ainda algum tempo na favela participando principalmente da

associação de moradores.

4.2. Por que uma sinopse?

Este capítulo teve a intenção de proporcionar aos leitores “conhecer”

nossos narradores/personagens para que percebam a dimensão que a atividade

cineclubista desempenhou em sua formação no período da ditadura militar.

Sublinhamos que sabemos do risco ao fazer uma sinopse. Às vezes, a riqueza da

vida das pessoas pode nos escapar, dando a impressão de lugar-comum. Porém,

consideramos que trazer as narrativas sob a forma de sinopse - ampliando os

fragmentos que se imiscuem no decorrer do texto - possibilita “sentir” o testemunho

de quem viveu aquela época, não como “celebridade”, mas como “gente comum” –

protagonista - que pode nos revelar uma outra visão do mundo histórico do cotidiano.

Temos clareza que a história de vida dos sujeitos está perpassada pelo

contexto social e cultural em que estão inseridos, produzindo e sendo produzidos por

ele. Compreendemos, portanto, que os relatos biográficos nos permitem visualizar a

singularidade destes entrelaçamentos, expressando como cada sujeito testemunha e

vivencia fatos marcantes de sua trajetória em tempos e espaços distintos.

Realçamos que nossa sinopse não pretendeu ser uma transcrição literal

das entrevistas, visto que apesar do respeito à fala, à entonação e ao modo dos

sujeitos se expressarem, sabemos que a intervenção traz a marca de nossa

subjetividade, de nossa leitura, de nossos valores. Como nos diz Bourdieu (2003:

709), “...é claro que a transcrição muito literal (a simples pontuação, o lugar da

vírgula, por exemplo, podem comandar todo o sentido de uma frase) já é uma

verdadeira tradução ou até uma interpretação.”

Além do mais, nesta pesquisa, estivemos conversando com a nossa

geração, com companheiros e amigos sobre momentos relevantes de nossas

histórias. As conversas despertaram, memórias, surpresas, (re)significando o

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momento vivido. O distanciamento, muitas vezes nos escapuliu, e algumas vezes,

fomos surpreendidos fazendo parte desta rede de comunicação criada entre nós.

Nessa rede, o contar e o escutar recuperaram memórias que nos levaram

para ilimitados encontros que foram acontecendo, na medida em que as histórias

eram narradas. Assim, escrever sobre o que nossos narradores/as nos relataram

constituiu-se numa tessitura de sentidos do que o outro nos diz sobre sua vida e do

que nós dizemos sobre a nossa, instituindo diálogos e reconhecendo o caráter de

produção social dos discursos.

Nenhum signo cultural, quando compreendido e dotado de um sentido, permanece isolado: torna-se parte da unidade da consciência verbalmente constituída. ... A palavra está presente em todos os atos de compreensão e em todos os atos de interpretação. (...) A palavra é o fenômeno ideológico por excelência... A palavra é o modo mais puro e sensível de relação social. (Bakhtin, 1988, p.38/36)

Realçamos, ainda, que ao optarmos pelas sinopses, escrevemos um texto

de nossa autoria, pois a montagem que elaboramos pauta-se em nossos

referenciais, revelando uma dose de discricionariedade em que se orienta o

pesquisador. Ao trazer as narrativas através do nosso olhar, de nossa escuta e de

nossa escrita, explicitamos o imbricamento de nossos discursos e também nosso

interesse teórico que neste instante se particulariza (é apenas nosso), instaurando

um distanciamento.

As histórias de vida aqui apresentadas e o diálogo estabelecido com elas

nos permitiram desvendar como estes sujeitos, no tempo da ditadura militar foram se

constituindo, estruturando suas relações com o mundo e com os outros; foram

elaborando sentidos para as suas existências.

Existências marcadas por experiências que possibilitaram aos nossos

narradores/as uma forma de estar no mundo coletivamente; experiências que

proporcionaram, ainda, a criação e o fortalecimento de um espaço público na luta

contra a ditadura, por meio de uma prática político-cultural de resistência. Prática

esta, que delineou experiências de formação e de transformação.

(...) É experiência aquilo que ‘nos passa’, ou que nos toca, ou que nos acontece, e ao passar-nos nos forma e nos transforma. Somente o sujeito da experiência está, portanto, aberto a sua própria transformação. (Larrosa, 2001, p.7).

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A partir das memórias dos nossos narradores/as tivemos condições de

contar suas experiências no movimento cineclubista, procurando descortinar

vivências, aspirações, inquietações...

Esperamos que os leitores estabeleçam um diálogo com elas,

despertando-lhes outras histórias, gerando outros sentidos, outras relações, outros

vínculos.

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CAPÍTULO V

CINECLUBISMO: HISTÓRIAS QUE NOS TOCAM...

(...) Fonte de mel, bicho triste, pátria minha Amada, idolatrada, salve, salve! Que mais doce esperança acorrentada O não poder dizer-te: aguarda... Não tardo!

Quero rever-te, pátria minha, e para Rever-te me esqueci de tudo Fui cego, estropiado, surdo, mudo Vi minha humilde morte cara a cara Rasguei poemas, mulheres, horizontes Fiquei simples, sem fontes.

Pátria minha... A minha pátria não é florão, nem ostenta Lábaro não; a minha pátria é desolação De caminhos, a minha pátria é sedenta E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular Que bebe nuvem, come terra E urina mar. (...)

Vinicius de Moraes101

“BRASIL: AMEO-O OU DEIXE-O”! E “PRA FRENTE BRASIL”! Eram

slogans que simbolizavam o clima vivido numa década de adversidades: medo,

clandestinidade, prisão, tortura, mortes, exílios, ditadura...

101

Fragmentos do Poema: Pátria Minha.

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Como a experiência cineclubista - numa “pátria desolada, mas sedenta por

caminhos”102 - foi produzindo ações políticas que germinaram um movimento de não

aceitação da ditadura militar como um dado inevitável/de contestação a ditadura

militar; um movimento instituinte de práticas democráticas? Como a luta pela

liberdade foi tecendo a unidade do movimento, sem, no entanto, apagar a sua

diversidade?

Vivendo uma época de arbítrio, de repressão cotidiana, o medo se agrega

á vida das pessoas, em particular àquelas envolvidas em atividades “clandestinas”

ou até mesmo nas “permitidas” ou “toleradas”. Esta sensação de viver “sob o

domínio do medo”,103 devia-se aos abusos cometidos não só contra todos aqueles

que se opunham claramente à repressão, como também contra os que de forma

indireta, expressaram pensamentos e ações diferentes daquelas previstas pelo

estado autoritário.

(...) Ai começa a se formar uma coisa que nos anos 70, quer dizer, início dos anos 70, o que o Gramsci fala muito claramente da capilaridade da sociedade civil, a importância dos organismos na sociedade civil, principalmente na luta contra o facismo ou contra a ditadura. (...) Então a gente vivia uma ditadura pesada, que não era brincadeira, era uma coisa, que depois que acabou a guerrilha, e lendo muito, muito tempo, eu me lembro que o regime parece que não tinha mais o que reprimir, então ele reprimia tudo. E uma das coisas que era mais visível era a cultura. Então, os filmes eram censurados; o dia inteiro você ouvia falar que você não podia ver isso, não podia ver aquilo, não podia chegar ao Brasil [certos filmes]... (Nelson)

102 Parafaseando Vinicius de Moraes no Poema: Pátria Minha. 103

Título em português do filme “Straw Dogs” do diretor Sam Peckinpah. EUA, 1971.

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Sabemos que logo após o golpe de 64, o aparato policial-militar instalado

pela ditadura perseguiu, prendeu e, muitas vezes, matou dirigentes sindicais,

militantes políticos, estudantes, intelectuais, “dando visibilidade” aos principais

inimigos do regime. Este procedimento procurava justificar um discurso de “salvação”

da democracia, que se encontrava ameaçada diante de uns poucos “desordeiros”

que queriam tornar o Brasil um país comunista. Era preciso, então, fechar os canais

de participação política, para “limpar” as instituições destes “elementos perigosos” e,

assim, reorganizar a democracia.

Com as reações e os embates frente à nova ordem ditatorial, a

perseguição intensificou-se e estendeu-se a outros segmentos sociais de oposição.

Neste quadro, com a prisão das principais lideranças políticas e sindicais, os

movimentos culturais e estudantis catalisaram as resistências ao novo regime,

contestando-o, através de diversas ações, conforme constatamos nos relatos que se

seguem:

A MPB, naquele contexto, galvanizou um conjunto difuso de expectativas da sociedade civil, passando a concentrar as atenções de uma “cultura de oposição” que, timidamente, começava a se formar também em setores da imprensa liberal. O triunfo da MPB era, num certo sentido, o triunfo do

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“povo-nação”, símbolo da resistência política, que ressurgia nos discursos apologéticos da imprensa e de alguns profissionais. O triunfo da MPB era também a materialização da articulação entre as falas dos intelectuais e do “povo”, categorias que deram sentido ao imaginário político entre 1964 e 1968. (Napolitano, 2004: 211) 104 Foi notável a presença de estudantes nos grupos de esquerda em geral (24,5% dos 3.698 processados, com ocupação conhecida, por ligação com grupos de esquerda), e particularmente naqueles que pegaram em armas (30,7% dos 1.897 denunciados por vinculação com organizações guerrilheiras urbanas típicas). Isso reflete a extraordinária mobilização estudantil, sobretudo nos anos entre 1966 e 1968 (p.115). Dossiê dos Mortos e desaparecidos, p.45. (Ridenti, Marcelo)105

É importante ressaltar que este movimento também se identificava com a

movimentação estudantil internacional, em especial com a francesa, lutando contra

as injustiças, as guerras, os colonialismos e ditaduras presentes em várias partes do

mundo. Exemplos deste espírito eram as manifestações de apoio à Revolução

Cubana, à luta pela libertação do Vietnã, às guerras de independência dos países

africanos, o apoio e acolhida aos presos políticos do Brasil, entre outros. O slogan

“Seja Realista: Peça o Impossível”, propagandeado pelos estudantes franceses em

maio de 1968, expressava o sonho de transformar a vida, ou seja, de criar uma

sociedade “socialista”, apesar de todas as divergências e dissidências no seio do

movimento de esquerda mundial.

Por volta de 1968, o simples fato de alguém ser universitário já era considerado suficiente para ser suspeito, especialmente se fosse aluno de ciências sociais, filosofia ou física. A grande maioria dos estudantes secundaristas de esquerda foi vítima da violência política dos militares porque se politizara enormemente, chegando a constituir um fator de resistência à ditadura. (Moraes, 2004: 307)

Com o AI-5, os movimentos de resistência foram brutalmente reprimidos,

iniciando-se os chamados “anos de chumbo”; anos de acirramento das contradições

e paradoxos. De um lado, um país “oficial”, que “celebra”; com crescimento 104

NAPOLITANO, Marcos. Os festivais da canção como eventos de oposição ao regime militar brasileiro (1966-1968). In: REIS, Daniel Araão, RIDENTI, Marcelo, MOTTA, Rodrigo Patto Sá (orgs.). O Golpe e a Ditadura Militar: quarenta anos depois (1964 – 2004). Bauru, SP: Edusc, 2004. 105 Citado em MORAES, Maria Lygia Quartim de. O Golpe de 1964: Testemunho de Uma Geração. In: REIS, Daniel Araão, RIDENTI, Marcelo, MOTTA, Rodrigo Patto Sá (orgs.). O Golpe e a Ditadura Militar: quarenta anos depois (1964 – 2004). Bauru, SP: Edusc, 2004, p. 306

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econômico, do chamado “milagre brasileiro”, que causava entusiasmo e alegria, na

medida em que propiciava a mobilidade social, a estabilidade e a prosperidade. “(...)

anos de ouro para os que se beneficiaram – e não foram poucos – com as benesses

proporcionadas pelo progresso material.” (Reis, 2004: 42). De outro, uma país que

“silencia”; aos opositores restava o “emudecimento” ou em muitos casos, a prisão,

tortura e morte. Aos descontentes, o “Brasil: ame-o ou deixe-o”, slogam que

sinalizava de forma contundente o tratamento dado a não “adesão” à nova ordem.

O filme “Pra Frente Brasil”106 retrata bem o ambiente em que se vivia, ao

narrar a história de um indivíduo de classe média confundido com um militante

político, sendo preso e torturado.

O diretor ao mostrar um Brasil que torce e vibra com a seleção de futebol

de 1970, enquanto prisioneiros políticos são torturados, segundo nossa visão, nos

convida a refletir sobre a profunda cisão vivenciada por nossa sociedade, uma vez

que o personagem do filme era um “cidadão comum” não envolvido politicamente.

Naquele momento o país dividia-se entre os que tinham consciência das atrocidades

cometidas, rotulados de “subversivos” e os “alienados” que se consideravam

“apolíticos” - como o cidadão classe média do filme - não queriam saber do que

acontecia. Expõe, ainda, a dimensão arbitrária contida nos atos de governos

ditatoriais que podem atingir qualquer um que lhe pareça “suspeito” gerando temor,

desespero... Ilustra também, como a omissão se constitui numa força aliada de

reprodução da arbitrariedade.

106

Filme: Pra Frente Brasil do diretor Roberto Farias. Brasil, 1983.

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Diante desta situação, os que tiveram que se “calar” e permanecer no

país, experimentaram o medo, a insegurança e a desconfiança, responsáveis por

nosso isolamento, nos enfraquecendo e nos afastando do “outro”. Desse modo, nos

tornávamos mais vulneráveis e imobilistas frente ao poder autoritário.

Entretanto, como diz uma das entrevistadas, as resistências iam aos

poucos sendo (re)tecidas e insurgiam nos mais diferentes espaços. Um deles, em

nosso entendimento, eram os cineclubes.

(...) Houve uma ruptura em 68, quando uma Jornada de Cineclubes iria acontecer em Brasília, mas a polícia entrou de cavalaria dentro da universidade, não deixou que ocorresse nada. Houve então um período, entre 68 e 70 mais ou menos, que a organização nacional de cineclubes se retraiu, mas não demorou muito, no começo da década de 70, a gente conseguiu ir articulando e fomos a Belo Horizonte/BH para saber o que é que tinha lá e vimos que o cineclubismo também estava acontecendo: organizado dentro da UFMG e também em algumas associações de classe, como no RJ, associações de bairro. Então houve um núcleo de BH que juntou-se conosco e não demorou muito veio o pessoal do NE, porque a gente tinha um fórum de encontros que acontecia, mesmo antes de nós (a Jornada de Curta Metragem lá em Salvador). E como era uma Jornada meio financiada, meio apoiada por verbas internacionais do ICBA (Instituto Cultural Brasil-Alemanha), existia até - existe ainda hoje - o Instituto Goethe lá em Salvador que sempre apoiou as manifestações do cinema brasileiro e

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até latino-americano, (dentro do mesmo nível de repressão, de dificuldade, de muita censura a esses materiais audiovisuais), mas a Jornada, através de Guido Araújo, cineasta e professor de cinema na UFBA, proporcionou a entrada de muitos filmes latino-americanos e do Caribe, guatemaltecos, chilenos, bolivianos, cubanos e a gente viu muita filmografia, de primeira qualidade, assim avançada, revolucionária, através dessa Jornada. E eu falei da Jornada de curta metragem - que acontecia durante 7 ou 8 dias - porque ela abrigava só filme, filme e muita discussão. Ela abrigava um encontro de cineclubes, enquanto acontecia a exibição de filmes e outros encontros de cineastas e pesquisadores do cinema brasileiro. Representações da organização do cineclubismo brasileiro (Rio, SP, BH, Brasília, Norte, Nordeste e Sul) todo mundo aparecia por lá de algum jeito e a gente fazia um fórum à parte, fazendo um balanço de atividades e tal. Então a Jornada de curta metragem foi muito importante. (...) (Marisa)

O medo, naquela época, desencadeado por um poder ditatorial, estava

profundamente imbricado com a falta de liberdade política, com a inexistência de um

estado de direito, que impunha medidas coercitivas em todas as dimensões da vida

social, impedindo a livre expressão das idéias. Neste cenário, o cotidiano é

perpassado por atitudes despóticas que vão sendo difundidas por toda a sociedade,

reforçando condutas autoritárias em diferentes escalas, e, portanto, com o

permanente exercício da violência física, psíquica, política, social, moral e simbólica.

O filósofo Michel Foucault nos alerta para o risco de engano presente na idéia de que o poder se limita apenas a uma instância separada, encarnada no Estado e com papel puramente repressivo ou relativo. O poder, diz Foucault, é produtivo e criativo. Inventa formas para seu exercício e acha-se difundido pelo interior das relações sociais, irradiando-se em todas as direções, suscitando sempre novas formas de sujeição e novas possibilidades de dominação. Será mais adequado, por isso, distinguirmos o poder (como esfera da lei e da ação coletiva) das disciplinas, isto é, os modos sociais de exercer a dominação no interior da sociedade e da política. As práticas disciplinadoras estabelecem normas de mando e obediência, domínio e sujeição em todas as relações sociais. (Chauí, 2006: 140/141)

Reafirmamos então, que o poder ditatorial ao praticar a tortura como uma

forma de coação, exacerbou a violência estrutural da sociedade brasileira,

consolidando a cultura do medo. Frisamos, porém, que esta exacerbação esteve

perpassada pelas diversas lutas que, a partir de meados dos anos 70, se

intensificam e se ampliam contra o projeto ditatorial.

... eu acho que o que é importante a gente registrar é que a partir do movimento cineclubista, não só, é claro, mas ele teve um papel muito

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importante numa espécie de renascimento cultural do cinema, das artes em geral. Eu acho que foi um movimento, que pela sua organização, e aí talvez ele deva essa organização ao fato de ter essa associação com partidos políticos, acho que isso a gente pode imaginar que essa associação favoreceu essa organização do movimento. Ele não ficava a deriva, ele tinha ali uma direção realmente, e eu acho que ele contribuiu muito, muito, com o renascimento cultural, que foi uma coisa muito importante na derrubada da ditadura. Os movimentos de luta pelas liberdades democráticas, a gente estava em todos... onde tinha uma manifestação pelas liberdades democráticas ou pela liberdade de expressão, a gente tava lá, organizadamente, jovens, em números expressivos, nunca era um ou dois, era sempre número grande, então eu acho que isso teve uma importância, teve um papel que não se pode desprezar, nada, nem na resistência, nem na construção das condições da abertura. (Aninha)

Neste período, a conjuntura política expressava a tensão entre o

crescente movimento de oposição, que reunia amplos setores sociais, com destaque

para as organizações de esquerda, e o projeto de “abertura” do governo. Neste

embate, a oposição, apesar dos conflitos e divergências, construía uma unidade de

ação, que buscava ampliar e subverter os limites programados pelo projeto

governamental, que também vivia suas contradições e impasses. Daí em diante,

começava a desenhar-se um cenário onde a expansão do público, do político e do

legal adquiria centralidade na luta contra a ditadura. Este processo, porém, foi

marcado permanentemente por atos bastante repressivos do governo:

Em 1974, no mesmo ano da posse de Geisel, as prisões, seguidas de morte nas dependências do II Exército, do jornalista Wladimir Herzog e do líder sindical Manuel Fiel Filho (...) em 1976, a invasão de uma reunião do Comitê Central do PCdoB, no bairro da Lapa em São Paulo, resultou na morte, no próprio local, de dois de seus dirigentes, Pedro Pomar a Ângelo Arroyo... [entre muitos outros] (Araújo, 2004: 167)107 (...) e aí começa realmente um movimento no Brasil de redemocratização. Em 77/78, forte redemocratização que evidentemente envolveu a gente; caímos no turbilhão (...) a gente queria mesmo militar no movimento cineclubista. Não tinha aquela de agora está abrindo, vai um para sindicato, vai outro pra faculdade, a gente ficou, manteve uma coesão interna e tornou o movimento muito forte, inclusive com interlocução. No meu caso específico, eu acabei me tornando presidente do Conselho Nacional de Cineclubes, que era a entidade maior que tinha dentro do movimento, que agregou todos os cineclubes do Brasil. Chegamos a ter cerca de 200 cineclubes filiados, mas filiados mesmo, uns mal funcionando, outros funcionando bem. Reorganizamos ele em todo o Brasil (...) Organizamos

107

ARAÚJO, Maria Paula Nascimento. A luta democrática contra o regime militar na década de 1970. In: REIS, Daniel Araão, RIDENTI, Marcelo, MOTTA, Rodrigo Patto Sá (orgs.). O Golpe e a Ditadura Militar: quarenta anos depois (1964 – 2004). Bauru, SP: Edusc, 2004.

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sede, organizamos Jornadas Nacionais, que colaboraram, contribuiram enormemente para o fim da censura, que isso era muito sério, ou seja, a censura era velada, ou seja, o governo militar estava caindo de podre, mas a censura não caía. Eu me lembro que praticamente fim do governo militar em 82/83 ainda tinha certificado de censura, uma coisa que foi ficando... No final de 82, a pressão, ou seja, o Brizola já tinha ganho eleição, o PT já tinha ganho eleição, o Figueiredo já estava indo embora... As Diretas eram uma questão de tempo, mas a censura estava lá, bonita e tal reprimindo e especificamente o cinema, porque era mais fácil censurar cinema. Teatro eles não entendiam, música Chico Buarque dava volta e tal e era uma coisa que... Então essa luta contra a censura aí sim formou um caráter libertário. Esse grupo, esses cineclubistas desse período, do qual eu e você nos incluímos é muito honrado nessa luta contra a ditadura porque a gente não ficou gritando, não chegou a jogar pedra, não chegou a levantar faixa literalmente, ficamos lá, combatendo de fato e o fato era a censura, o fato era a repressão completa e conseguimos dar a volta. Eu me lembro já no governo Sarney, em 85, numa reunião que já vão 20 anos, no Teatro Casa Grande, Fernando Lyra, Ministro da Justiça, pediu desculpa em nome do Estado brasileiro para o movimento cineclubista pelo número de apreensão de filmes que tinha feito da Dinafilmes, que ía se comprometer com a devolução, a devolver em cima do entulho autoritário e tal. Então me lembrei: Teatro Casa Grande, Fernando Lyra já Ministro e falando aquela frase, eu falei - a gente catucou, a gente preocupou, porque quando ele assumiu leu alguma coisa lá que a gente deu dor de cabeça. (Nelson)

5.1. Contando histórias de uma formação

Compreendemos que a experiência no movimento cineclubista possibilitou

aos nossos narradores/as a condição de romper o isolamento, o medo e a

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vulnerabilidade. Ações coletivas criadas, então, por laços fabricados e inventados108

diminuíam o peso destes sentimentos. Entravam em cena outras vivências referentes

a saberes, afetos e valores, que escapavam à lógica do poder ditatorial, colaborando

para o enfraquecimento e posteriormente fim da ditadura, materializando

experiências que sonharam uma outra sociedade.

Quando eu fui para o movimento de cineclube (...) a intenção não era fazer nenhum trabalho intelectual propriamente dito com a classe média, como acredito que fosse a maioria do trabalho dos cineclubistas. A idéia era fazer um trabalho comunitário na favela e o cineclube era o instrumento desse trabalho. A participação na Federação de Cineclubes tinha por objetivo aprender sobre o funcionamento dos cineclubes, onde conseguir filmes e dar uma característica oficial ao Cineclube Grande Otelo, o que era importante até do ponto de vista da legalidade, para evitar problemas com a polícia. A ligação do cineclube da favela com o restante do movimento coube a mim. Eventualmente uma pessoa da favela participava de reunião na Federação, um deles chegou a ir a Jornada de Cineclubes de Juiz de Fora, mas normalmente esse trabalho ficava comigo, como uma tarefa. (Ubiratan) Era uma época de ditadura militar e muita gente fazia cineclubismo porque não podia fazer outra coisa. Queria fazer associação de bairro, mas não podia. Queria fazer política partidária, mas era complicado. Então acabava fazendo um trabalho político via cinema, via cineclubismo. O movimento cineclubista reunia pessoas com os mais diversos tipos de interesse. Era bom e ruim. Bom no sentido de que te dava acesso a pessoas com os mais diversos perfis, e isso para um adolescente foi muito enriquecedor. Era ruim no sentido de que você desviava o foco de uma discussão, de uma preocupação específica com cinema. Naquela época esse foco ficava mais complicado, na medida em que a repressão jogava todo mundo ali dentro e, mesmo assim, era difícil. (Newmar) Bom, quando o movimento começou, na verdade eu já tava na faculdade, meu primeiro ano de faculdade. No primeiro ano que eu entrei pra faculdade, acho que foi o ano de fundação do Cineclube [Glauber Rocha, 1972]. Olha, sem dúvida, eu acho que o Cineclube nesse momento, no momento que a gente fundou, que ele começou a funcionar, eu acho que ele passou a ter mais peso do que a universidade, entendeu? Em termos de sociabilidade, de visão de mundo, tinha mais peso. Eu era uma aluna estudiosa, estudava, me formei, mas o Cineclube era assim... era o tesão, era... a vocação. (...) Eu acho que, não só a militância política, que deu uma certa ordenação na vida da gente naquela época, com aquela idade que a gente tinha. E o movimento cineclubista, eu acho que sem dúvida, ele definitivamente interferiu no caminho que eu vinha a tomar profissionalmente depois, sem dúvida nenhuma. (...) mais do que um grupo

108 Por exemplo, nos vários momentos em que os cineclubes eram visitados por censores “disfarçados” ou não, e mesmo quando alguns participantes eram procurados nominalmente para comparecem ao Departamento da Ordem Política e Social - DOPS. Momentos estes que exigiam o posicionamento de todos, revelando medo, compromissos e solidariedades.

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que estava ali pra cumprir uma missão, que era a característica das militâncias na época, nós éramos um grupo que tinha uma relação afetiva, que se criou até talvez a partir da atividade... nós gostávamos de tá ali, juntos, conversando, discutindo, grupo de muito humor, brincávamos muito, fugíamos até, de uma certa maneira, ao padrão que o partido [PCB], era muito moralista né, com a sua juventude. (Lourdinha)

Percebemos, a partir dos fragmentos dos narradores/as, que a

constituição do movimento cineclubista, neste período, estava estruturada nos

diferentes interesses e projetos políticos dos seus participantes, tendo na diversidade

a sua marca. Esta diversidade estava presente no seu espírito, na dinâmica de seu

funcionamento, e no exercício permanente do debate - experimentados no cotidiano

do movimento: nos Cineclubes, nas Federações, no Conselho Nacional de Cineclube

e nas Jornadas Nacionais.

Neste cenário, é importante realçar que na atividade cineclubista, o

vínculo indispensável entre cultura e política representou a maneira pela qual o

movimento pode ir construindo sua própria lógica e significado. Ao criar práticas

alternativas de “fazer política”, acabou por revelar e (re)inventar uma outra forma de

atuação destes sujeitos no período de autoritarismo, embora com divergências,

conforme narram nossos interlocutores/as:

(...) eu acho que a gente até subestima um pouco a importância do que significou o movimento cineclubista na abertura política, porque eu acho que naquele momento em que nada acontecia, em que as universidades estavam com muita dificuldade, não tinha praticamente nenhum movimento dentro da universidade, nós de certa forma, pegamos a repressão desprevenida, entendeu? Porque eu acho que a repressão não imaginava que... não sabia lidar com aquilo, não entendia, porque com o movimento estudantil ela sabia lidar, ela já tinha aprendido isso no início dos anos 60, na época do golpe e tal, depois 68. Quando começou a aparecer aquilo – O que é que é aquilo? Eles não sabiam bem. E não era mesmo muito fácil de compreender, pra uma pessoa até limitada, como muitas vezes eram os agentes da repressão. Eles ficavam nos perguntando, perdidos assim, mas o que é que é, mas quem é? Mas quem é seu Glauber? (...) Depois que o movimento cresceu, se tornou um movimento regional e nacional, é claro que as diferentes tendências políticas, formas de pensamento começaram a se refletir dentro dele, e aí a gente viveu desencontros... [nas] Jornadas, em que tinha disputa e que por trás desta disputa estavam grupos políticos diferentes. Tinha os trotkistas, tinha o pessoal do partidão. Até com visões, realmente, diferente da cultura. Entendiam a manifestação cultural e o movimento cultural de forma diferente naquele contexto de ditadura militar. Então tinha uma disputa, tinha um debate que juntava, misturava um pouco as coisas. (Aninha)

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(...) eu achei que a minha colocação dentro dessa situação era a seguinte: eu não vou ficar aqui nesta universidade com meus amiguinhos no movimento estudantil, que estava começando, que tinha um papelzinho... eu sempre achei que o papel do movimento estudantil foi auxiliar e essa era uma briga total , porque eu já era uma meia liderança lá dentro da escola e eles não conseguiam entender como eu não me engajava no movimento estudantil e aí eu descobri que várias pessoas estavam nessa situação (...) A gente não se inseria naquele movimento estudantil, que era um saco. Papel fundamental, sem a menor dúvida, inclusive depois já no final dos anos 70. Foi um papel fundamental na luta pela anistia. Mas, naquele momento o papel dentro da universidade era cultural, era mais importante, fazer cultura: fazer Teatro, Cinema, Artes plásticas, e tal, tava claro. Então fiquei naquilo e comecei a me envolver nas atividades organizacionais do cineclube que por sua vez estavam imbricadas com a Federação, que era uma entidade extraordinária, era uma entidade muito democrática, a Federação de Cineclubes do Rio. Participavam pobres, participavam ricos; de todas as tendências. (...) todo mundo estava lá, tinha maluco de Santa Tereza, tinha comunista bacana de Copacabana, de Ipanema... tinha comunista radicalizado Pecezão como a galera do Glauber Rocha, tinha uns praia esquerda do Leme, tinha de tudo, tinha também o incipiente movimento gay, que era um negócio que a gente tinha em discussão também, tinha incipiente movimento de trabalhadores organizados, sindicatos, professores... Então entrando na Federação naquele tempo... Na Federação me chamou muito a atenção: estavam todos lá. (Nelson)

Podemos, então, dizer que este movimento provocou uma redefinição da

relação entre política e cultura, apesar das contradições, fragilidades e

desentendimentos. Acreditamos que ao entrelaçar estas duas dimensões, ele

permitiu aos seus participantes vivenciar uma outra experiência política que tinha

como centro a cultura, e no caso específico, o cinema. A cultura, neste sentido,

passa a ser entendida não como apêndice e/ou reflexo da política ou da economia,

mas como um processo através do qual criamos significados, pensamos concepções

de mundo, que estão enraizados historicamente, e, portanto, em constante

elaboração, engendrando experiências coletivas e delineando relações sociais.

A minha experiência em cineclubes foi uma maneira de fazer política também. (...) [Havia] uma tensão que se dava porque o movimento cultural não usava a “aparelhagem” (de cunho político-partidário), quer dizer, outros movimentos (e grupos) partidários gostavam de “aparelhar”, formar lideranças, disputar, e no movimento cultural existia menos esse tipo de coisa, não tinha que chegar a um objetivo, era uma coisa diferente. (...) No âmbito do movimento de cineclubes isso foi bem discutido, no nível nacional, nas Jornadas. Afinal, todo mundo (que participava de cineclubes) também participava do movimento social, em associação de moradores, eventualmente em partido político, associações feministas, mulheres,

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enfim... E todo mundo discutia muito essa tensão, quando as pessoas tentavam controlar: passa esse filme que vai ser interessante pro (...) meu grupo ou agrupamento político, e isso é que criava a citada tensão. Enfim, visava-se certa autonomia do movimento cineclubista e não um “isolamento completo” dos aspectos políticos. A política está ligada em tudo, não era uma coisa a margem, a margem da atividade “cultural”. (Roberto) (...) o cineclube... Ele tinha uma independência, ele era uma coisa diferente, no caso que eu vivi, pelo menos no cineclube Glauber Rocha. O cineclube, ele não era um apêndice do partido, a gente tinha uma separação muito grande, muito profunda dessas duas coisas. Eu era militante do partido comunista e eu era cineclubista. Tinha muita gente que era do nosso cineclube e não era do partido e tinha gente que era do partido e não era do nosso cineclube. Então não tinha uma ligação necessária, mas é claro que tinha uma ligação, eram as mesmas pessoas, tinha todo um sentido libertário, de valorização da cultura, de fazer alguma coisa no meio da ditadura militar, de achar um caminho possível pra agir, pra pessoas se encontrarem, então... Claro que tinha ali um impulso que a gente pode dizer que era o mesmo, mas tinha uma certa independência entre as duas coisas. (Aninha)

[ O cineclubismo] tinha desde esquerdinha, como a gente chamava, até aqueles que só queriam saber de cinema.Tinha gente de colégio de freira, tinha um pouco de tudo. E essa convivência sempre foi muito interessante, porque eu acho que o grupo que sempre dominou, foi meio hegemônico ali durante um certo tempo, foi o do Partidão (PCB). E eu acho que esse grupo independente de ser do Rio, de São Paulo, do Espírito Santo, de Minas, de onde fosse, ele tinha muito claro que não podia aparelhar o movimento entendeu? Ou seja, não podia aparelhar. O mais importante ali era aquele movimento que conseguia reunir 400 pessoas [numa Jornada], ter aquela discussão etc e tal, do que propriamente transformar todo mundo em militante ou transformar aquilo numa extensão, num braço do partido. Então eu acho que isso foi uma compreensão que até hoje eu tenho uma grande admiração por isso... se você pensa que a gente tinha, sei lá, entre 19 e 25 anos, poucos eram os que tinham 30 anos naquela época, eu acho isso fantástico, ter essa compreensão da vida política né? Da res pública. Eu acho isso muito interessante... (Lourdinha) Falando um pouco do cineclube da Faculdade de Economia e Administração (FEA/UFRJ) que foi a primeira atividade que a gente pegou com a mão, arregaçou a manga e pegou o filme, colocou o projetor para funcionar e tal e tentava interessar os estudantes num outro horário, num horário alternativo para ver um filme; eu não tenho muita lembrança de ter insistido muito nesta atividade na FEA. Eu logo precisei realizar tarefas de direção dentro da célula do Partido Comunista e a nossa atividade era mais de interessar pessoas em se filiar, se juntar a nós para realizar outro tipo de atividades, políticas por excelência, como, por exemplo, distribuir a Voz Operária, que era o veículo do PC na ilegalidade, contribuir para aqueles artigos de alguma maneira, comparecer a determinadas reuniões da cúpula do PC, pelo menos dentro da célula da universidade para discutir metas de alto nível, porque elas passavam longe da chamada... atividade cultural, passavam longe. Os interesses partidários eles eram muito mais de conseguir adeptos que pudessem lutar contra a ditadura mesmo na ilegalidade, do que culturais. O Partido achava que aquilo era só o que

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sobrou para se fazer e ele queria fazer mais, ele queria fazer melhor, ele queria mobilizar pessoas politizadas para desenvolver atividades na ilegalidade mesmo, de resistência contra a ditadura. Então, eu me lembro do cineclube da FEA, mas a minha atividade de cineclubista mesmo se deu mais no Bairro onde eu morava que era o Leme... (Marisa)

Depreendemos dos depoimentos acima que a relação do movimento com

as organizações de esquerda, em especial o PCB, estava atravessada pela tensão

entre aqueles que viam a cultura como meio de mobilizar ou engajar pessoas para

fins estritamente político partidários, conforme destaca Marisa, e aqueles que

percebiam que a cultura estava envolvida pela dimensão política, mas não poderia

ser instrumentalizada por esta. A tensão assinalada revela a importância deste

debate nos movimentos culturais e sociais dos anos 70, e sua contribuição para o

questionamento de uma concepção política de instrumentalização da cultura.

A verdade é que a política suprime a cultura como campo de interesse a partir do momento em que aceita uma visão instrumental do poder. O poder se constitui dos aparatos, das instituições, das armas, do controle sobre os meios e os recursos, das organizações. Tributária dessa visão de poder, a política não pode levar a cultura a sério, exceto onde ela se encontra institucionalizada. A partir daí, a conversão da cultura em gestão burocrática, monopólio de agentes especializados, é apenas uma conseqüência lógica. (Barbero, 2003: 298)

Assim, quando Roberto e Lourdinha sublinham o “amadurecimento” do

cineclubismo, ao falar da luta pelo não “aparelhamento” do movimento, ou quando

Aninha destaca a independência entre as duas atividades, entendemos que eles

apontam para a capacidade que o movimento teve na elaboração de sua autonomia,

reinterpretando relações historicamente construídas, e revelando novos sentidos no

vínculo entre cultura e política. Ainda nesta direção, Dudu relembra outro aspecto:

Acabei entrando em 74 para o Partidão. Mas nós não éramos em hipótese alguma idiotizados. A gente já tinha muita liberdade frente ao partido. Nós éramos absolutamente irreverentes, eu falava na maior que eu não sabia se eu era do PCB ou do PC do Cineclube Glauber Rocha – PCCGR - que era muito pertinente mesmo. Porque o partido não tinha política cultural e nós falávamos que era um absurdo. Se nós tínhamos o Vianinha, o Paulo Pontes e tantos outros, Leon Hirshman e essa porra desse partido não tem política cultural, isso é um absurdo, não tem uma ditadura que justifique isso, temos que ter. Então a gente fez um cineclube e fomos convidando outros colegas, que foram fazendo um movimento que dependia da gente e foi crescendo por conta própria. Fizemos o CNC (Conselho Nacional de Cineclubes)... E, nesse aspecto, até hoje, eu vivo disso. (Dudu)

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Nesta relação, o aspecto político da cultura era, então, forjado na própria

ação cotidiana do movimento. Nas reuniões para a apresentação e debates dos

filmes eram gerados espaços públicos propiciadores de interlocuções, expandindo as

fronteiras do permitido. Desse modo, colocava em prática uma política cultural109

que, mesmo incipiente e com eventuais divergências e fragilidades, provocava

fissuras nas concepções políticas das organizações de esquerda, bem como na

visão dominante, concorrendo para a criação de alternativas à ordem vigente.

Referindo-se a uma série de acontecimentos ocorridos nos últimos anos

na América Latina, Barbero (2003) destaca como eles puderam indicar uma nova

visão na relação apontada:

a experiência dos países sob regimes autoritários, de que os modos de resistir e opor-se procederam em boa parte de espaços outros que não os considerados pela análise tradicional, como as comunidades cristãs, os movimentos artísticos, os grupos de direitos humanos; a compreensão de que mesmo o autoritarismo mais brutal nunca se esgota nas medidas de força nem responde somente a interesses do capital, e de que há sempre uma tentativa de mudar o sentido da convivência social transformando o imaginário e os sistemas de símbolos; e, por último, o fato de que, graças à dinâmica da escolarização e à dos meios massivos, a cultura se colocou no centro do cenário político e social. (Idem, ibdem)

Neste processo de re-significação da cultura e da política, os meios de

comunicação passaram a desempenhar um papel fundamental na mediação entre os

sujeitos e suas relações sociais. Para compreender este processo, é preciso situar

historicamente como a transformação nas condições de produção se relaciona com

109 “(...) Na América Latina, a expressão “política cultural” designa normalmente as ações do Estado ou de outras instituições com relação à cultura, considerada um terreno específico e separado da política, muito frequentemente reduzido à produção e consumo de bens culturais: arte, cinema, teatro, etc. Aqui, utilizamos “política cultural”, para chamar a atenção para o laço constitutivo entre cultura e política, e a redefinição de política que essa visão implica. Esse laço constitutivo significa que a cultura entendida como concepção de mundo, como conjunto de significados que integram práticas sociais, não pode ser entendida adequadamente sem a consideração das relações de poder embutidas nessas práticas. Por outro lado, a compreensão da configuração dessas relações de poder não é possível sem o reconhecimento de seu caráter “cultural” ativo, na medida em que expressam, produzem e comunicam significados. Com a expressão “política cultural” nos referimos então ao processo pelo qual o cultural se torna fato político.” In: ALVAREZ, Sonia E., DAGNINO, Evelina, ESCOBAR, Arturo. Cultura e política nos movimentos sociais latino-americanos: novas leituras. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2000, p.17.

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as alterações no espaço da cultura, isto é, as mudanças “do sensorium dos modos

de percepção, da experiência social”. (Barbero, idem, p. 84)

Em seu ensaio “A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica”,

entendemos que Benjamin (1994) antecipava o debate que se intensificou e se

complexificou nos anos seguintes sobre o modo de percepção dos sujeitos na

sociedade moderna. Ao salientar que a percepção humana se modifica

paralelamente ao seu modo de existência, ressalta que no capitalismo esta

modificação está estreitamente vinculada ao processo de reprodução técnica das

obras de arte. “(...) com a reprodutibilidade técnica, a obra de arte se emancipa, pela

primeira vez na história, de sua existência parasitária, destacando-se do ritual”. (p.

171).

Esta reprodução permite que se produzam em série objetos artísticos,

desfazendo a diferença entre original e cópia. Neste novo modo de produção, o valor

de exposição supera o valor de culto, alterando de forma significativa o conceito de

arte e a maneira como mulheres e homens passam a se relacionar com a arte e a

cultura.

(...) assim como na pré-história a preponderância absoluta do valor de culto conferido à obra levou-a a ser concebida em primeiro lugar como instrumento mágico, e só mais tarde como obra de arte, do mesmo modo a preponderância absoluta conferida hoje a seu valor de exposição atribui-lhe funções inteiramente novas, entre as quais a “artística”, a única de que temos consciência, talvez se revele mais tarde como secundária. (Idem, 173)

Neste sentido, o autor destaca que o cinema possibilita o desenvolvimento

de habilidades, por parte dos seres humanos, nas novas percepções e reações

exigidas pelos processos técnicos cada vez mais sofisticados. Promove, então, o

aprendizado de nossas sensibilidades, incentivando a imaginação criadora, isto é, a

capacidade de inventar um mundo imaginário, que dialoga com o mundo concreto.

Em toda cultura humana, praticar essa ação criativa tem sido um instrumento para

experimentações, realizações, perplexidades e encantamentos fundamentais para o

crescimento. (Oliveira, 2005)

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Eu acho o seguinte: a arte... eu tô tentando encontrar a palavra... burilar ... Ela burila, ela melhora. Veja bem: todos nós temos preferências em relação a tudo na vida. No nosso caso particular, somos mais ligados ao cinema, mas tem gente que é mais ligada em teatro, tem gente que é mais ligada em circo, tem gente que é mais ligada em música. Eu acho que toda pessoa que é particularmente ligada em arte, ela tem um plus, tem uma percepção mais apurada. A arte apura nossa sensibilidade, nossa formação. Essas pessoas mais particularmente afeitas à arte, têm uma coisa mais apurada, que necessariamente não significa uma cultura vastíssima, uma bagagem, do ponto de vista formal, enorme; mas que têm uma coisa mais apurada. A arte é importante pra qualquer ser humano, porque ela apura os sentidos, ela burila a percepção, abre horizontes, trabalha a sensibilidade, e, a partir daí, ela te permite construir uma série de coisas: o entendimento político, o entendimento da vida, das relações humanas, no sentido mais amplo da palavra. Quando você tem interesse específico por arte, esse processo é maior, é mais intenso. Arte é bom, é super saudável, faz bem, não tem contra-indicação. (Newmar)

Sabemos que Benjamin nas suas observações sobre o significado político

e social do cinema, frisava a sua condição de mercadoria e sua utilização nas

práticas ideológicas de alienação e manipulação, “... enquanto o capitalismo

continuar conduzindo o jogo...” – conforme foi praticado pelo nazifascismo. Porém,

aqui, estamos realçando a sua dimensão reflexiva. Dimensão esta, profundamente,

entrelaçada à experiência do espectador. Olhando um filme, observando seus

personagens, sua narrativa, seus movimentos, seu tempo e espaço, enfim... nesse

momento de admiração e revelação, estabelecemos uma conversa e um encontro

que nos proporciona produzir significados a partir de nossas vivências, inquietações,

desejos...

(...) Eu acho que você ver experiências refletidas sempre colabora pra que você reformule seus conceitos, agregue informação ao que você pensa, enfim. (...) Quando você vê refletida numa tela, porque tem todo esse clima mesmo no cinema. Você chega lá, tudo escuro, tá focado naquilo ali. (...) Imagina você vê ali refletido experiências e .... claro que isso é devolvido pra você em termos de formação, de educação, de informação. Sei lá, você vê um filme sobre o nazismo tá? Você vai ver a Lista de Schindler é impossível você sair dali sem uma reflexão sobre o que foi aquele período na história da humanidade. Você vai ver um filme como “Cinemas, Aspirinas e Urubus”, é impossível... eu saí de lá com uma informação a mais que eu não tinha desse período do Brasil na guerra etc e tal. Você sai com uma visão do homem brasileiro... Então, é impossível, claro que é um instrumento, é um instrumento fenomenal pra formação de gente, de individuo. (Lourdinha) Eu diria pra você que isso [influência do cinema na vida das pessoas] é cem por cento. Isso daí é a chamada verdade universal. É provável que a vida

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de muitas pessoas, minha, a sua e de outras pessoas que a gente conhece, tenham sido moldadas a partir daquela imagem de 24 quadros por segundo. Eu de vez em quando me pego pensando, como se estivesse pensando em um filme... me pego falando, repetindo frases que eu vi em filmes. De vez em quando eu faço situações de vida e eu me comporto como situações que eu vi em alguma película cinematográfica da minha vida. Isso é que retoma aquela discussão do primeiro momento que você me perguntou qual é o filme da tua vida. É difícil porque eu de vez em quando me vejo nessa situação, eu falo frases que eu pergunto pra mim de onde eu tirei isso? Ah... Claro está lá naquele filme policial, naquela comédia ou em “Morte em Veneza” do Visconti ou em “O Leopardo” (Il Gattopardo). Outro dia eu falei em “Gattopardo”, que a gente mostrou na Mostra Visconti no Festival que ele fala uma frase extraordinária: “é preciso que se mude tudo pra que tudo fique como está “. Isso para o momento atual é perfeito. Outro dia eu falei essa frase e todo mundo me olhou como se eu tivesse falado uma coisa genial, mas eu não falei nada genial, simplesmente clonei a história do Visconti que já clonou do Tomazo de Lampedusa que escreveu o livro “O Leopardo” e que é atualíssima. (Nelson)

Numa outra direção, Benjamin vislumbrava que a reprodutibilidade técnica

das obras de arte, facultava a um grande número de pessoas conhecer e usufruir

das criações artísticas que até aquele momento estavam restritas a um pequeno

grupo. Esta situação abria novas perspectivas na relação que os indivíduos

estabeleceriam com a arte e a cultura. Mesmo sem menosprezar o poder da indústria

cultural, ele percebeu que a experiência dos sujeitos era fundamental, pois revelava

“... o modo como se produzem as transformações na experiência e não só na

estética...” (Barbero, 2003:85).

O cineclube possibilitava... relativizar um pouco o poder da obra... Estudiosos da indústria cultural, como a Escola de Frankfurt, por exemplo, enfatizaram (na produção de mensagens) muito o campo do emissor. Nos dias de hoje os estudos ampliaram-se em outras direções – nas relações entre emissor, mensagens e receptor – abrindo investigações diversas para o campo do receptor. Acho hoje que, na verdade, a gente tava lidando naquela época com o campo do receptor, sem saber rigorosa e teoricamente disto, claro. Assim, importava menos se um filme era de “esquerda”, se era de “direita”, ou se era “conservador”. (...) a interpretação de um filme, assistido por um grupo, ficava sujeita à troca de impressões posteriores a sua projeção. Troca essa que possibilitava clarear a trama para uns e modificar opiniões de outros, que eventualmente, antes do bate-papo, tivessem tido idéias “fechadas” a respeito. (...) Acho que essa mudança possível de perspectiva... faz parte da dinâmica que acontece depois de instalada a discussão, porque eu ouço outras opiniões, eu divido a minha e ela também influi e é influenciada. Acontece uma troca. (...) Acho inclusive que essa experiência se aproximava da idéia original da rede católica francesa de cineclubes, de discutir, de decifrar mensagens... Aprimoramento humano, estético e ético também. (Roberto)

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Alongando as reflexões de Roberto, acreditamos que o cineclubismo,

ainda que de forma subjacente, fraturava com a idéia predominante de que a

indústria cultural impõe condicionamentos homogeneizantes a seus “consumidores”,

através dos valores veiculados pelas diferentes mídias, que destroem e/ou capturam

outras formas de expressão que não estejam sintonizadas com o modelo cultural

dominante. Demonstrava, assim, no seu fazer cotidiano, que a relação estabelecida

com o cinema era mediada pela prática coletiva/política, explicitando que o espaço

da recepção, é espaço de acordos e desacordos - espaço de recriação - revelando

as possíveis interpretações e usos de uma obra.

Ubiratan - (...) E é até interessante, que às vezes alguns filmes – Eu não me lembro o nome do filme... com Sean Conery, que ele faz um papel de um líder operário de minas de carvão, tá lembrada do filme? Rose –Acho que eu sei. Ubiratan – Pois é. Esse filme passou lá e passou a portas fechadas antes, para nós do cineclube. E tem um personagem, parece-me representado pelo Richard Harris, que faz papel de espião e trai o movimento. E nós falávamos que ele traía o movimento e tinha um cara do cineclube que dizia: não, mas ele é um espião, então ele não é traidor, espião não é traidor, espião é espião. Um negócio impressionante, mas que possibilitava conversa interessante, então, teve essas... Rose – Pra essas pessoas foi um espaço de formação também. Ubiratan – Pra essas pessoas era. E a questão de existir o encontro, possibilitava sempre que a coisa deslanchasse. Como convivi com públicos diferentes, pude comprovar que os significados variavam. Ou seja, não era uma mesma coisa (filme, personagem ou assunto) para um público da zona sul da cidade, morador de Copacabana , Leme, Laranjeiras; ou Tijuca. Podia, noutro canto da mesma cidade, assumir outras conotações. (Roberto)

O cineclubismo modificava, ainda, a idéia de uma subordinação absoluta

do receptor frente às mensagens - de um espectador passivo - realçando que os

sujeitos ao lidarem com as mensagens/informações, as decifram produzindo sentidos

a partir de suas histórias e heranças culturais. Desse modo, Barbero (2003) salienta

que os meios de comunicação de massa precisam ser compreendidos como um

processo social incorporado às práticas culturais vividas no cotidiano, e não como

imposição arbitrária.

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As narrativas acima e as que se seguem apontam para o papel do

cineclubismo na formação de audiências “críticas”. O debate entre as equipes que

faziam parte dos cineclubes e o debate com o público após a sessão era um espaço

de produção de conhecimento e fabricação e troca de sensibilidades.

Eu acho que... pelo menos num grupo que participou um pouco mais próximo, acho que essa experiência é inesquecível. Eu acho que o seu olhar para o filme, para o cinema e a indústria é outro. Não é só aquele olhar de - vou me entreter, vou me divertir – quer dizer, você se diverte, mas não é só essa relação de que vou lá consumo e saio. Eu acho que isso o movimento cineclubista deixou, pelo menos nas pessoas que participaram mais próximas, eu acho que ficou algo mais. Não foi um movimento massivo. Eram cineclubes formados com 2,3,4 pessoas e o público participava das sessões, dos debates. Eu não teria como medir, ter idéia disso, mas pelo menos pra aqueles núcleos, eu acho que o olhar mudou. (Lucinha) A questão de você poder passar um filme diferente num cineclube, numa sala diferente, em condições ruins, e manter um público para depois discutir aquilo, os gatos pingados que ficavam, adoravam. E esses gatos pingados que ficavam acabavam sendo reprodutores dessa informação que tinha no filme. Então formou-se platéia, não só pelo debate, pela apresentação do filme e da discussão, ou seja, uma análise crítica daquela obra. Na universidade isso foi muito importante porque se passava o filme e todo mundo ficava para discutir alguma coisa a respeito do que tratava aquela obra, então aquilo se reproduzia em escala geométrica. As pessoas saiam dali para procurar ver outros filmes com mais debates ou sem debates, mas se preocupar com isso. (Nelson)

Um outro aspecto que pode ser acrescido ao da formação de platéias

vinculava-se à questão da programação. Esta constituía-se no ponto nodal do

funcionamento. Primeiro, porque evidenciava as discussões em torno do perfil de

cineclube que se desejava construir. Segundo, porque o acesso aos filmes estava

vinculado a uma série de dificuldades (financeira, de distribuição, etc.) para obtê-los.

Entre interesses e condições de circulação das películas, consideramos que a

programação exprimia/representava a multiplicidade dos projetos envolvidos,

conforme contam nossos narradores/as:

Eu acho que nos anos 70, no Brasil, a gente não tinha muito entendimento de que o mundo já não era mais o que era ... o que tinha sido nos anos 50/60. Eu acho que essas pessoas que tinham as chamadas articulações políticas, elas ainda tinham um pouco a cabeça muito presa ao contexto pré-68. (...) eu sei que no Cineclube Lemos Cunha, havia uma valorização desse cinema que enfocava as grandes questões sociais, mas a gente

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passou Sem Destino e lotou. Eu confesso que adorei e todo mundo gostou, [risos]. Foi ótimo e Sem Destino é um filme maravilhoso. Diz muito de uma época, uma mudança de comportamento no mundo a partir dos EUA, com toda sua influência na formação de outras sociedades. Me lembro dos desenhos do Still, que a gente passou... O cineclube não seguiu essa cartilha rígida não. Eu confesso que estimulava muito esse tipo de coisa. (Newmar) Nosso problema era nos abastecermos de filmes e fazer com que aqueles filmes pudessem chegar a preços compatíveis, viabilizar a distribuição pelos estados, então isso a gente batalhava. De certa maneira tinha um repertório já comprometido com uma experiência dos anos 60, que era um pouco antiga, os filmes tchecos, quer dizer, um repertório politicamente engajado, que tinha sido herança, mas o quadro realmente muda e muda radicalmente quando a Embrafilme entra na distribuição de 16 milímetros. O Marco Aurélio Marcondes, que era um dirigente do movimento cineclubista implementa na Embrafilme uma distribuidora 16 e começa então a empresa oferecer títulos de filmes brasileiros, o que foi um fator diferencial, fundamental, fortaleceu muita a atividade. Eu acho que a sobrevida que o movimento teve foi porque aquela distribuidora conseguiu fazer com que o repertório fosse mais eclético, mais variável e até mais moderno, por que nós só tínhamos filmes preto e branco, haja Fonte da Donzela, haja Mulheres de Areia, haja Paisà, as cópias todas rasgadas já, então... porque tinha uma precariedade da coisa...(risos) (Ana) Eu acho que de alguma maneira (...) quando os cineclubes estavam no auge (...) era a época das pornochanchadas, então havia assim um enorme preconceito com o cinema brasileiro, não só das camadas intelectualizadas, como do público também. (...) o cineclubismo ajudou a redirecionar essa discussão... a gente trouxe de volta essa discussão, quer dizer, não era uma coisa pronta e acabada que o cinema brasileiro não presta, que é uma droga, não. Então eu acho que foi importante e formamos platéia. E hoje... eu acho engraçado... tem uma geração incrível de jovens fazendo cinema, indo por esse lado de novo, parece uma onda. (...) Você pode olhar e vai ver que por traz ali da escola de cinema da UFF, com certeza tem alguém convivendo com um cineclubista. (Lourdinha) Os Companheiros passava muito, Morangos Silvestres passava muito, é... Quê mais? Não sei, mas a gente fazia assim, ciclos. Então por exemplo, ciclo Fellini, cinema italiano, ciclo Truffaut, cinema francês, eram coisas que a gente repetia periodicamente né? Os clássicos, os chamados clássicos e o cinema brasileiro, tava sempre passando cinema brasileiro, sempre, chamando os nossos diretores para irem lá, isso era uma experiência muito legal, porque, eu particularmente era muito jovem e aí aquele tete – a – tete com pessoas já mais velhas e importantes que tinham feito um filme... Eu acho que a gente não pode superestimar, mas eu acho que foi importante [na formação de um público] toda uma geração ligada nisso, teve oportunidade de conhecer os clássicos, que de outra forma não teria. Antes não existia o vídeo, é bom a gente lembrar disso. (Aninha) Olha, eu acredito que os cineclubes influenciaram um público, mas não massivamente até 84. Que é a época que eu participei deste tipo de cineclubismo mambembe, assim... Mas a ABI tinha uma freqüência razoável e acredito que antes, o Glauber Rocha, Leme e os cineclubes mais

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tradicionais, eu me lembro de ter ido a sessões do Leme cheias, bastante concorridas. Eu acredito que tenha realmente influenciado um público num outro tipo de cinematografia diferente da chamada comercial. (Marcus)

Ainda nesta direção, salientamos que mesmo impregnados da herança

cultural dos anos 60 do século passado, que privilegiava um cinema “engajado

politicamente”, o cineclubismo dos anos 70, ao tomar contato com outras

cinematografias e estilos, ampliou a visão de cinema e colaborou para uma formação

estética mais “reflexiva” dos cineclubistas.

Então nós víamos... este cinema da Atlântida, da Vera Cruz, as chanchadas, tudo parado na prateleira e nós tiramos estes filmes da prateleira e conhecemos as primeiras iniciativas do cinema brasileiro (...) Vimos Mazaroppi que é um clássico, muito Mazaroppi foi mostrado para nós. Era filme para grandes platéias, mas a época que a gente pegou ele estava abandonado na prateleira, então nós recuperamos também Mazaroppi para o público mais intelectual, de maior formação, que éramos nós. Éramos universitários e estudantes secundaristas engajados na luta política de resistência contra a ditadura. Então foi um momento muito rico na nossa vida sem dúvida. (Marisa) A minha relação com o cinema hoje é... Relacionando os filmes com sua época, com o conjunto da obra do autor, procurando novas cinematografias, etc. Percebendo os mecanismos de lançamento dos filmes, as questões estéticas, etc. Depois que eu saí do movimento, passei a estudar cinema: montagem, direção, essas coisas e vejo muitos filmes. A minha ligação com o cinema hoje é meramente... prazerosa pra mim. Eu vou ver filmes as vezes desagradáveis de se ver, como eu vi um filme recente chamado “Invasão de Privacidade”. É um filme que se passa na Palestina, onde os israelenses invadem uma casa de um palestino. E é um filme triste de se ver, tenso, mas é uma informação a respeito de um problema que não sai nos jornais. Eu fui ver Kandahar... Eu vejo filmes com este tipo de temática. Rose – Então o cinema possibilita as pessoas conhecerem de uma outra forma? Marcus – O mundo de uma outra forma, que não a visão oficial estabelecida pela grande mídia em todas as suas expressões. (Marcus)

As narrativas nos instigaram a pensar sobre a importância da experiência

coletiva na mediação com as diferentes mídias, no sentido de potencializar os

sujeitos sociais para lidarem de forma crítica com os novos modos de comunicação

da sociedade, que desenham as experiências contemporâneas. Instigaram-nos

ainda, a refletir sobre a possibilidade do espaço educacional, tornar-se um espaço

efetivamente coletivo; de debate e interação entre os diversos sujeitos do processo

pedagógico, impulsionando o desenvolvimento e a ampliação do pensamento crítico,

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que contribui para a compreensão dos mecanismos de manipulação empreendidos

pelos grandes conglomerados do setor informacional. Neste sentido, destacamos

(...) a necessidade de uma crítica capaz de distinguir entre a indispensável denúncia da cumplicidade da televisão com as manipulações do poder e dos mais sórdidos interesses mercantis – que seqüestram as possibilidades democratizadoras da informação e as possibilidades de criatividade e de enriquecimento cultural, reforçando preconceitos racistas e machistas e nos contagiando com a banalidade e mediocridade apresentada pela imensa maioria da programação – e o lugar estratégico que a televisão ocupa nas dinâmicas da cultura cotidiana das maiorias, na transformação das sensibilidades, nos modos de construir imaginários e identidades. (Barbero, 2004: 26) (...) eu acho muito importante a escola lidar com o cinema, porque cada vez mais o mundo é extremamente audiovisual. E acho que as pessoas têm poucos instrumentos pra lidar criticamente com isso. A escola de uma maneira geral devia lidar cada vez mais com o cinema como um instrumento de formação critica. (...) Eu trabalho com idades entre 17 e 21 anos, há mais ou menos 22 anos. Eles são alvos maiores da publicidade. A publicidade em geral, não visa objetivos muito humanísticos, mas sim perseguir a formação contínua de consumidores... Enfim, personagens descartáveis...Então, eu acho que preparar gerações para um convívio crítico e sistemático com essa avassaladora presença de imagens é algo importante. (...) O fato é que se persistirem as tendências passivas da maioria das pessoas ante ao mundo fantasioso (do consumo e da publicidade), os instrumentos críticos não serão criados ou desenvolvidos pra fazer assim, esse tipo de debate que se fazia há 30 anos atrás, no tempo da ditadura. E elas acabam tendo uma perspectiva meio robótica em relação as coisas, que são apresentadas pra elas como boas, clarificadas, cada vez mais com rapidez, não só pela publicidade como pela internet e ainda uma infinidade de instrumentos visuais, que tendem a embrutecer as pessoas, embotá-las. Não sou otimista. É algo que merece muito estudo, reflexão e ação. Acho que é fundamental que a escola lide com isso cada vez mais, mas não pode ser uma forma massiva (ou consumista). Terá de haver primeiro uma consciência e depois ações – pedagógicas, no caso – que dêem instrumentos críticos a todos que são submetidos a estes estímulos. (Roberto)

Acreditamos que atualmente, ainda persiste um fosso entre a forma como

a escola produz e transmite conhecimentos e os “processos de comunicação, que

hoje dinamizam a sociedade”.110 Este fosso tem impedido a escola de incorporar

estes processos em suas práticas educativas de forma criativa, distanciando-se das

necessidades e interesses dos estudantes, caracterizando-os muitas vezes como

desinteressados ou inaptos para a vida escolar. Verificamos que esta postura

110

BARBERO, 2004, p.58.

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reafirma a centralidade da cultura letrada nos processos de ensino-aprendizagem,

secundarizando a multiplicidade e “heterogeneidade de textos, relatos, escrituras

(orais, visuais, musicais, audiovisuais, telemáticos) que circulam na sociedade”111,

aumentando a exclusão cultural e política da maioria de nossa população.

Estão às escolas e faculdades, em especial, os cursos de formação de

professores atentos aos novos modos de percepção de nossos jovens? Estão

atentos a maneira como experimentam e lidam com as informações e imagens que

nos bombardeiam diariamente? Que experiências culturais estão sendo produzidas

em nossa sociedade?

Recorremos a uma citação um pouco longa, mas em nosso entendimento

importante, porque nos desafia e exige mudanças em nosso olhar sobre a educação.

Pela maneira como se apega ao livro, a escola desconhece tudo o que de cultura se produz e circula pelo mundo da imagem e das oralidades: dois mundos que vivem, justamente, da hibridação e da mestiçagem, do revolvimento de memórias territoriais com imaginários des-localizados. (...) Ao reivindicar a presença da cultura oral e da audiovisual, não estamos desconhecendo, de modo algum, a vigência da cultura letrada, mas desmontando sua pretensão de ser a única cultura digna desse nome e o eixo cultural de nossa sociedade. (...) estamos diante de uma mudança nos protocolos e processos de leitura, que não significa, nem pode significar, a simples substituição de um modo de ler por outro, senão a articulação complexa de um e outro, da leitura de textos e da de hipertextos, da dupla inserção de uns em outros, com tudo o que isso implica de continuidades e rupturas, de reconfiguração da leitura como conjunto de modos muito diversos de navegar pelos textos. Pois é por essa pluralidade de escritas que passa, hoje, a construção de cidadãos, que saibam ler tanto jornais como noticiários de televisão, videogames, videoclipes e hipertextos. (Barbero, 2004: 61/62)

5.2. Experiências e afetos

O documentário “Nascidos nos bordéis”,112 nos transportou ao universo de

uma zona de prostituição de Calcutá (Índia), que relata a história dos filho (a)s das

prostitutas, vistos sob um olhar mais estigmatizado do que o dirigido às próprias

mães. Em face da pobreza abjeta e do conformismo, essas crianças têm poucas

111 Idem. 112Tíltulo em português do filme Born into Brothels: Calcuta’s rede lights kids dos diretores Zana Briski e Ross Kauffman, EUA, 2003.

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possibilidades de escapar do destino de suas mães, de criar um novo tipo de vida,

conforme revela uma das meninas: “tenho medo de me tornar uma delas”.

Os diretores fizeram uma crônica da vida cotidiana dessas crianças,

mostrando as transformações experimentadas por elas, a partir das aulas de

fotografia. Para nós, este momento foi capaz de despertar desejos silenciados

naquelas sensibilidades adormecidas, envolvidas num mundo sórdido e sem

esperança, revelando as potencialidades do espírito criativo, como nos diz um dos

meninos: “eu pinto para colorir o pensamento”.

Vivendo com essas crianças, a “professora de fotografia” construiu uma

experiência que estremeceu esses “destinos anunciados”. Neste processo de ensinar

e aprender, o conhecimento transcendeu os horizontes existentes e produziu

sentidos nos envolvidos.

No contato cotidiano das aulas de fotografia, nos passeios ao jardim

zoológico, à praia, ao entorno de suas moradias, ao centro da cidade, os meninos e

meninas foram re-significando suas vidas, construindo um outro sentido para sua

existência, constituindo e constituindo-se em processos coletivos resultantes de

experiências que se cruzaram e se singularizaram.

Fotografia e cinema entrelaçaram-se nas múltiplas possibilidades

experimentadas pelas crianças participantes do projeto, pelos diretores e

espectadores envolvidos afetivamente com a obra. No filme as fotografias tiradas

pelas crianças expressaram a capacidade de observação e talento, mas

principalmente, a força da dimensão estética no processo de desvelar o mundo,

reinventando-o e criando outros valores e significados.

Tal como no filme apresentado, em que as aulas de fotografia criaram

condições de produção de uma existência diferenciada para algumas daquelas

crianças, no cineclubismo, o trabalho com o cinema possibilitou aos nossos

narradores/as experimentar as dimensões da sensibilidade, das diferentes

linguagens, da produção do conhecimento e de um olhar sensível sobre a vida.

Meu trabalho de mestrado teve um pouco a ver com comunicação, então, eu mexi um pouco com isso (campo da recepção). Pude então melhorar a compreensão teórica (desses assuntos) quando eles se entrelaçaram com a

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experiência prática do cineclubismo, dos anos setenta e oitenta. Então até pro trabalho de pesquisa teórica em meio acadêmico, isso foi importante, porque eu usei muito a minha experiência de cineclube, minha experiência de conviver, discutir. (Roberto)

Entendemos que possibilitou, ainda, a esses sujeitos vivenciar uma

experiência estética, uma vez que provocou desdobramentos em suas vidas. A cada

sessão do cineclube, eles encontravam pontes que permitiam construir significados

nos trechos da estrada que tinham de percorrer; no trabalho arriscado, mais

consciente, sistemático e prazeroso; um momento de construção de suas

“contrapalavras”.

Voltando um pouco ao que eu disse a respeito da minha formação, eu devo muito ao cineclubismo, atividade prática do cineclubismo, o conhecer tantos filmes, desde o mudo, passando pelo cinema internacional, europeu, até asiático, que nós também vimos, alguma coisa. Nós vimos também filmes japoneses, chineses, coreanos, da chamada cortina de ferro: Hungria, Bulgária, Thecoslováquia. Nós vimos tudo isso. Pensando sobre tudo o que a gente aprendeu, tudo o que a gente conseguiu se educar, através do cinema... No nosso caso a influência do cineclubismo na nossa formação foi fundamental. O cinema foi fundamental para a gente compreender as realidades brasileiras e internacionais. (Marisa) Eu gosto muito de cinema e eu sinto falta quando eu não vou. E aí eu fico muito curiosa com os filmes. Então tem um filme que alguém disse que é legal e eu não vi, aí eu digo: ai, perdi esse filme, queria ver, e eu não vejo vídeo e não vejo DVD, sei lá porque entendeu? Eu não gosto, eu não tenho vontade. (...) Eu gosto de ver o filme assim, novo, quando ele chegou e todo mundo está vendo pra comentar com as pessoas. Então minha relação é muito essa, é de troca. Ver um vídeo sozinha dentro de casa, que ninguém viu, que eu não vou poder conversar com ninguém, eu não tenho muito saco. Eu gosto de sair, ir ao cinema de preferência com mais alguém, depois que acabar o filme ficar falando sobre ele, depois encontrar as pessoas no trabalho – Você viu tal filme? Vi, gostei, não gostei, é ótimo, é ruim. Eu gosto disso. E no trabalho, o que eu consegui trazer para o trabalho é isso. Sempre que eu posso, eu passo vídeo para os meus alunos. (Aninha)

É provável que, nessa experiência, a paixão pelo cinema seja a

responsável pelo entendimento dos desafios colocados em nossas vidas, como nos

diz Carrière (1995):

(...) Como qualquer experiência do mundo, o cinema nos faz ficar cara a cara conosco mesmo. Pensávamos que ele ficava fora de nós, mas, na realidade ele se gruda a nós como pele. Supúnhamos que o cinema era mera diversão, mas ele é parte do que vestimos, de como nos comportamos, de nossas idéias, nossos desejos, nossos terrores. (p. 218)

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Consideramos relevante destacar que a educação destes indivíduos

aconteceu profundamente enraizada no movimento cineclubista. Os conhecimentos,

valores e atitudes, eram elaborados no mesmo instante em que se compreendia a

situação vivida e criavam-se estratégias para transformá-la. Em outras palavras, a

formação era vivenciada no processo de participação política, social e cultural, que

ao suscitar questões oriundas da prática cotidiana, exigia dos sujeitos ações capazes

de criar sentidos para o momento vivido.

Entendemos que a atividade cineclubista, percebida como luta política e

cultural, ligava-se a outros movimentos sociais, envolvendo seus protagonistas nos

processos cotidianos de luta pela transformação do poder dominante e

estabelecendo elos com o movimento histórico mais amplo, conforme nos relatam os

interlocutores/as:

(...) o fato de existir uma Federação, um movimento organizado, fez com que vários outros movimentos sociais se valessem do cineclube para começar a se organizar em sua incipiente organização. Tranquilamente eu posso dizer que várias associações de moradores começaram a partir do cineclube que existia lá ou “da coisa” que passava filme lá. Leme é o caso, a Amaleme foi criada dentro do Cineclube Leme, a partir do núcleo do cineclube Leme. (...) Me lembro também do CEP - Centro Estadual dos Professores - (não podia ter sindicato naquela época) nos pedia e a gente levava filme para passar e dali nascia um núcleo, num instante... (...) a gente iniciava a atividade de cineclube nos locais onde os movimentos estavam incipientes, fazia o cineclube e muitas vezes a gente descobria que a atividade social do metalúrgico, do professor, continuava e o cineclube tinha acabado, ou seja, serviu como uma extraordinária ferramenta de alavancar o movimento social que por si só não estava dando conta... era impossível você reunir donas de casa para criar uma associação de moradores se não tivesse uma atividade cultural. (Nelson) (...) Eu ia nas reuniões, a gente tinha uma coisa institucional....com outros movimentos artísticos. Tínhamos uns encontros na casa do estudante universitário, na CEU, que era um escombro na época, alíás, ainda é. E, então tinha sempre gente de teatro, poetas... Chamava-se de Movimento de Luta pela Liberdade de Expressão... tinha uma sigla... era uma grande organização de gente da cultura e nós estávamos sempre lá. Éramos muito importantes nesse movimento. O fortalecimento disso, de tá lá, de tá organizando, de tá dando força e tal. Tinha gente de várias áreas: teatro, cinema, literatura, poesia, tinham aqueles... Esses poetas hoje famosos, todos aí, alguns até que já morreram, me lembro que iam, freqüentavam, como era o nome deles? Enfim, tinham grupos assim... Um grupo de poesia famoso na época era o Nuvem Cigana, pessoal que veio dar, depois no Circo Voador, freqüentava também. Então era um lugar assim de encontro mesmo, das pessoas da cultura, esse encontro no CEU, na Casa do

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Estudante. E vários outros momentos que a gente inventava, a gente fazia coisas ou os outros faziam e a gente ia, dava força. (Aninha) (...) então eu acho que o cineclubismo foi muito importante, até pra uma reestruturação do próprio movimento de cinema em geral. A ABD (Associação Brasileira de Documentarista), algumas jornadas que já existiam, mas que eu acho que... essa onda cineclubística...(...) a gente reunia gente, levava pra jornada nomes que estavam atuando no cinema mesmo, o Guido lá da Bahia que eram pessoas que tinham alguma articulação também em termos de movimento no cinema e que estavam meio disperso. Acho que a gente conseguiu... o cineclubismo conseguiu congregar todas essas pessoas.... acho que teve uma participação efetiva na fundação da ABD, da Associação Brasileira de Cineastas (ABRACI) . (Lourdinha)

Percebemos que a atividade cineclubista dos anos 70, trabalhou

comportamentos que acabaram por caracterizar, talvez, sua singularidade. Ao

mesmo tempo em que era mantido o desejo e a utopia de protagonizar movimentos

de transformação de uma sociedade mais justa, a realidade vivida, diferenciada da

década de 60, possibilitou a via sócio-afetiva como caminho, tornando a luta política

e cultural mais plural e menos “sectária”.

Como nós tínhamos... naquela época tão jovens, essa garra, essa utopia, essa vontade de fazer alguma coisa e que eu não consigo ver muito na juventude, pelo menos no meu grupo social que é a juventude que eu conheço, dos nossos filhos. Eu sinto uma coisa assim, uma atitude mais conformista do que era a nossa, menos empreendedora. Eu acho que aquele jeito empreendedor que nós tínhamos, empreendedor no bom sentido, de fazer coisas, entendeu? De deixar uma marca no mundo – O que é que eu tô fazendo aqui? Eu acho uma coisa muito legal, que é sempre boa, e que eu acho que se perdeu um pouco, eu não sei se é uma visão velha isso, uma visão de quem não está entendendo nada da nova geração. As vezes eu acho isso também – Não, você é que não está sabendo das coisas. Não está sacando. Pode ser também, pode ser. Mas a minha impressão é essa... (…) no cineclubismo eu aprendi a desenvolver muitíssimo a minha sociabilidade, a minha capacidade de ter amigos, porque quando eu comecei a freqüentar o cineclube eu tinha 16 anos pra 17, estava assim, realmente chegando ao mundo. Aí conheci muitos amigos, fiz muitas amizades e até hoje a maior parte dessas amizades eu mantenho, continuam sendo meus amigos. Nós mantivemos essa amizade e aprendi a trabalhar. Eu acho que a palavra é essa mesma, porque nós tínhamos que fazer muita coisa. A gente tinha que botar pra funcionar um cinema, era um cinema amador, mas era um cinema. Tínhamos um clube organizado, com sócios, que pagavam mensalidade, que tinha carteirinha. Tínhamos que fazer a programação, que pegar o filme, etc. Em certas ocasiões em que a censura apertava mais, tinha que ir na polícia federal levar o filme, pegar autorização, levar papel, trás papel, antecipar as coisas, porque senão, nada acontecia. Cumprir os horários, estar lá, fazer

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distribuição de tarefas e cumprir as tarefas, porque senão as coisas não aconteciam. Então isso foi um aprendizado que eu não tive em nenhum outro lugar, por exemplo, na escola. (Aninha) (...) eu não sei se é delírio meu, eu enxergo, acredito piamente nisso, que essa reestruturação do movimento cineclubista por um grupo de jovens, que é óbvio, hoje olhando desde aqui do alto dos nossos 50 anos, que a gente olha pra lá pra trás, a gente vê que só sendo jovem pra fazer aquilo tudo que a gente fazia. (Lourdinha)

É indispensável acentuar que, junto com outros autores113, entendemos

que uma das características importantes dessa luta e ao mesmo tempo a sua

especificidade foi a diversidade dos modos de oposição e a multiplicidade dos atores

políticos no combate à ditadura e no processo de redemocratização vivido nos anos

de 1970 e 1980.

Acreditamos que pertencer a um grupo, construir referências, fazer

amizades, sentir-se “útil”, participar e poder influir nos rumos do país foi fundamental.

Pertencer – fazer parte de – é uma necessidade de todos nós, pois que é neste

pertencimento que construímos nossa relação com o outro - nos constituímos -que

elaboramos nossas relações políticas e culturais, participando de uma coletividade e

germinando vínculos que nos permitem vislumbrar “horizontes de possibilidades”.

Olha, eu gosto muito de falar sobre isso [o cineclubismo]. Porque eu acho (...) que tem uma afetividade muito grande nessa experiência, entre todos nós entendeu, que vivemos aquele momento, talvez pela especificidade... daquele momento, da repressão, tal e tal. Mas eu acho que nós tivemos o privilégio de viver isso. (...) Acho que teve a experiência da ditadura, mas... Claro que fazer parte de uma organização, de um movimento, isso de alguma maneira ordenou a nossa vida, de alguma maneira mostrava uma luz no fim do túnel... que a gente acreditava que ia mudar o mundo (...) Isso dava uma perspectiva... A gente vira adulto, né? Isso era um ... fazer a gente virar adulto... Acho que isso dava um alento ao nosso crescimento, ao nosso amadurecimento. Eu acho que caminhamos um pouco junto, amadurecemos com isso, depois se desiludiu. Mas... eu tenho muito afeto por essa época, eu acho que ela marcou definitivamente a gente, todos nós. (Lourdinha)

As experiências de nossos narradores/as fecundaram e fortaleceram este

processo de “enraizamento humano” imprescindível para qualquer ação humana,

113

ARAÚJO, Maria Paula Nascimento. A luta democrática contra o regime militar na década de 1970. In: REIS, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (orgs.). O golpe e a ditadura militar: quarenta anos depois (1964-2004). Bauru, São Paulo: Edusc, 2004.

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principalmente em momentos de repressão violenta, visto que foram capazes de criar

um movimento solidário, não sem conflitos e contradições, mas que ofereceu

condições para este sentimento de pertencimento, fundamental para a ação

coletiva/política.

Vale aqui registrar que o apoio ao Cineclube Grande Otelo era muito grande da parte dos demais cineclubistas. Ciente das dificuldades do cineclube, os que podiam emprestavam filmes sem cobrar. Davam dicas de como obter filmes em embaixadas, que praticamente mantinham a programação infantil, etc. Eu tentava ver como é que eu poderia adaptar as experiências daquele movimento pra favela, que era o objetivo principal do trabalho né? Mas sobre o movimento do cineclube em si, eu entendo o seguinte: eu acho que o movimento existiu de fato e que teve a sua importância em manter vivo um grupo de pessoas com avidez intelectual, jovens interessados em fazer algum trabalho, numa época em que não se podia fazer trabalho nenhum. E neste particular acho que o cineclube foi um espaço verdadeiro, já que não se tinha muita coisa a fazer, dada a repressão política. Ainda que com as limitações próprias de um movimento ligado a uma atividade intelectual, era um movimento de resistência à ditadura, de incentivo ao cinema brasileiro, o que é importante e deve ter tido influência na melhoria técnica dos filmes nacionais. Porque existia uma repressão grande naquela época, bastante forte. Teve até comigo, na favela. De vez em quando a gente enfrentava o padre (...) O padre até folheto me chamando de subversivo usou na favela uma vez. Só que não tinha como me vincular a subversão nenhuma, então não aconteceu nada. Na verdade a gente passava filme na favela, coisa possivelmente transparente. Então não tinha como ninguém criar nenhuma dificuldade, mas houve a tentativa de fazer isso né? Na época em que o padre começou a contestar o cineclube, não sei se é muita pretensão minha de supervalorizar a equipe do cineclube, mas acho que o padre contestou exatamente porque começou a existir uma força real, não do cineclube em si, mas das pessoas que estavam no cineclube. Os integrantes do cineclube concorriam para a Associação dos Moradores, Comissão de Luz da Favela, tinha também o jornal. Passou a ser uma força que se contrapunha à força tradicional da favela, que era dominada por pelegos. Se não fosse por isso, porque o padre combateria o cineclube, que talvez fosse a única atividade de lazer cultural da favela? Então, na minha experiência particular, a existência do cineclube e os desdobramentos que ele possibilitou, teve uma importância, teve sua relevância. Voltando ao movimento cineclubista em si, no geral, enquanto movimento cultural que existia na época foi um movimento válido. Existiu, reuniu pessoas... (Ubiratan)

∞∞∞∞

Os depoimentos abaixo apontaram algumas razões para o descenso do

movimento sofreu em meados da década de 1980. Nossa intenção ao trazê-los, vem

no sentido de ampliar as reflexões sobre a experiência estudada e as possíveis

contribuições ao momento atual.

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Estamos falando de um período determinado do cineclubismo com pessoas de formações diversas e diferentes paixões pelo cinema. Eu acho que com... o tempo, o amadurecimento dele, as mudanças na sociedade, esse papel muda. Ele cai de uma certa forma num esvaziamento e em alguns casos se profissionaliza. Em São Paulo, o caso do Bexiga e no Rio, o caso do Estação Botafogo. Várias pessoas que foram de cineclube, partiram para um tipo de cinema diferente, trazendo elementos do movimento cineclubista, mas sem ser aquele cineclube de resistência. Porque quando vem a abertura, eu acho que aparece o vazio em relação ao seu papel anterior, como várias entidades e grupos também sentiram o vazio. Então, alguma coisa nova tem que ser colocada. Eu acho que a primeira experiência, se eu não me engano foi com o Bexiga (SP), de transformar o cineclube num esquema um pouco mais profissionalizado, ou alguma coisa desse tipo, um mix de empresa cultural com elementos do cineclubismo. Depois o movimento retrai, mas hoje você já vê surgindo novos cineclubes, com outras perspectivas diferentes daquela. (Lucinha) Agora, eu fico às vezes observando, fico comparando muito com o movimento cineclubista hoje. Hoje percebo que as pessoas vão para o cineclube porque elas gostam de cinema, o foco é o cinema, e a partir do cinema, de ver filmes, discutir filmes e fazer filmes. O cinema, ele intermedia a sua relação com o mundo sob todos os aspectos. Naquela época, em função da ditadura, muita gente com interesses mais diversos acabava fazendo cineclubismo como uma única possibilidade de uma prática política, tanto que com a democratização o movimento meio que se esvaziou e na virada dos anos 80 pra 90, pelo menos a nível de Brasil.... houve um descenso total. É claro que eu acho que não é só isso, eu acho que a virada ... a segunda metade dos anos 80 e o início dos anos 90 coincide com a chegada e a afirmação do videocassete, o cinema perdeu pra televisão muito espaço como uma mídia audiovisual poderosa. Quer dizer, já estava sofrendo isso havia algum tempo… (Newmar) Eu me lembro que em Piracicaba... era eleição da Diretoria, acabei entrando como tesoureiro do Conselho Nacional de Cineclubes, junto com várias outras lideranças, de vários Estados. Passado dois anos, restaram três de nove. E... Nem bem durou dois meses muitas lideranças tinham abandonado o barco. Enfim, isso mostrava já então uma fragilidade do então cineclubismo no Brasil. Uma necessidade de você ter outras estruturas para passar filmes, que não fosse aquela estrutura mambembe, irregular, até porque no momento, o país já tinha outras áreas de atuação política, que não mais só cineclubismo. Então já não tinha mais uma militância disponível para ser colocada como mão de obra né? Então as pessoas começaram a se repetir e a esgotar a sua paciência e a não ver o seu trabalho render. Enfim, eu acho que foi esse um dos motivos que me levou uns seis anos depois de entrar no movimento de me desligar dele. Isto foi em 84, que foi o ano que eu terminei meus mandatos na Federação do Rio e no CNC. (Marcus) Em resposta anterior desta entrevista eu observei o fato de considerar o cineclubismo como um movimento de resistência cultural à ditadura, inclusive com organização suficiente para fazer congressos e eventos que ultrapassavam o âmbito estadual. Infelizmente, com o advento da democracia, existe uma tendência à desmobilização de todos esses movimentos de enfrentamento à ditadura. Suponho que algo semelhante tenha ocorrido com os cineclubes. Talvez o funcionamento dos partidos

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políticos, a maior facilidade de trabalho sindical, a ilusão de que com a democracia tudo está bem, a falta do “inimigo” personificado, tudo isso leve a um afrouxamento dos movimentos não oficiais. Fica parecendo que o tipo de trabalho que era feito na época da ditadura não vale para o momento atual. Quando eu falo isso fica parecendo saudosismo, mas não é não, é crítica mesmo. (Ubiratan)

Tais relatos nos suscitaram o seguinte questionamento: Até que ponto

esta experiência pode nos convocar a ter um olhar mais sutil, aguçado para os

movimentos sociais que buscam os desvios e descontinuidades, como forma de

escapar das argúcias e armadilhas colocadas cotidianamente pelo capitalismo, que

tenta cooptá-los, deformando-os e enquadrando-os? Como potencializá-los na busca

de outra sociedade mais justa e menos desigual?

∞∞∞

Consideramos importante dar a palavra a alguns narradores/as, que ao

serem instigados/as, falaram sobre o (re)nascimento do cineclubismo hoje, porque

acreditamos que elas trazem contribuições para o debate sobre o momento

complexo que vivemos.

- As informações que eu tenho é que hoje, exatamente os cineclubes, eles são muito diferentes entre si, me parece assim, isso ai também são informações não muito profundas,... A Fundição Progresso tem um cineclube, que é um tipo de cineclube. Que é diferente de cineclubes de alguns bairros. Parece que hoje não tem um modelo, assim com nos organizamos no passado. As pessoas, hoje, se organizam em torno do cinema e seu processo de criação - do curta metragem - , de festas com filmes. Você vê pessoas preocupadas com a política, então acho que tem hoje uma diversidade, diferente (...) Em São Paulo,no Espaço Unibanco, eu criei uma sessão cineclube: acontecia uma vez por mês junto com o jornal Folha de São Paulo. Convidávamos um escritor, um poeta, um diretor de cinema, que escolhiam um filme clássico para apresentar e esse convidado debatia, após a sessão, com o público. Isso aí é uma coisa que vem exatamente do movimento. Era interessante você notar, que as pessoas que participavam no primeiro dia continuaram vindo, querendo discutir. É muito interessante, porque os temas eram os mais variados possíveis. Um dia veio um psicanalista, o Contardo Calligaris, que escolheu o filme O Sopro no Coração. Outro dia participou o escritor e roteirista o Marçal Aquino, escolhendo O Touro Indomável. O público foi aumentando e já falava: pô, mas não dá pra ser toda semana? (…) tinha um público que vinha de acordo com o tema. Quando convidamos o Marçal Aquino, que é roteirista, veio uma garotada louca, pra escrever roteiro, queriam discutir o roteiro. Quando era um psicanalista, você tinha uma platéia maior de pessoas ligadas a psicanálise, mas você notava que tinha um núcleo de pessoas que estavam presentes em todas as sessões. Que é a questão da formação do público né? É a formação cultural, o debate, que eu acho que isso é o que o cineclube deixou de muito bom. (Lucinha)

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- (...) os jovens (eu tive um contato com eles lá em Rio Claro), que estão tentando fazer cineclube hoje, eles pensam em pegar na câmera, eles querem fazer cinema. É lógico que a atividade começa exibindo, mas não se exibe mais em projetor 16mm. Você pega em locadora de filme cult para ter uma noção de cinema anterior, alguns filmes cult em locadoras de VHS. Alguns já estão munidos de DVD, mas eles querem filmar, pegar uma câmera portátil desse tipo digital, avançado, que é pequena, que carrega pra qualquer lugar, que não tem todo aquele peso que tinha uma câmera de cinema e todo aquele aparato que precisava para filmar. Eles pegam uma câmera dessa e vão fazer cinema. Querem mostrar a realidade do seu bairro, da sua escola, querem entrevistar pessoas na rua, querem questionar que tipo de arte está sendo realizada. O cineclube de hoje, quer ser o que movimenta a foto, ele quer ser o realizador, ele quer trazer o documentário para dentro da casa e quer discutir essas visões de arte, de vida sem desprezar o cinema que tem por base a cinematografia mundial. Mas, eles estão interessados em fazer cinema, gente moça querendo fazer cinema, discutir cinema sim, mas fazer cinema, registrar realidades, acontecimentos, dar registro. Mas o que senti é que existe uma vontade de estudar cinema, fazer oficina de cinema, filmar mesmo e fazer roteiro, definir entre os participantes do cineclube que filmes eles vão fazer, que idéias vão brotar dali, que registros eles vão realizar. Eles têm outra característica. Acredito que uma característica mais avançada do ponto de vista tecnológico e da idéia mesmo de cinema, de participar com a mão na massa mesmo. A mão na massa nossa era pegar o projetor, botar o filme no projetor, fazer a crítica, rodar no mimeógrafo, acertar os lugares, iluminação, fazer o debate. Hoje existe mais essa tendência, de fazer cinema. Mesmo que seja um cinema marginal... (Marisa) – Quando eu fui procurado, teve várias reuniões, a intenção era reorganizar os cineclubes, refundar as instâncias representativas regionais e nacionais do movimento. Até porque tinha uma perspectiva de financiamento do MINC para dotar de infraestrutura material, coisa que acabou não se concretizando, mas como hoje tudo se relaciona de maneira formal, ou seja, por empresas constituídas e não... por movimentos. Então era preciso que houvesse uma entidade representativa, com CGC, digo, juridicamente constituída pra poder receber verba pra financiar as atividades. Eu depois acabei não me interessando mais em participar. Organizaram novamente jornadas, encontros nacionais, regionais, o CNC foi recriado. Aqui no Rio foi criado uma instância chamada Associação do Cineclubista, ASCINE. E acompanho pela Internet, através de um grupo de discussão que eu acabei me inscrevendo e pelo menos me mantenho atualizado das noticias. (Marcus) - (...) eu ouvi falar de algumas coisas. Existem movimentos de reorganização, mas eu fiquei um pouco... assim, arredio na verdade, porque eu vi muita ligação com o governo... Então uma das coisas que a gente falava no movimento de cineclubes, naqueles heróicos tempos, onde pegávamos dinheiro do Estado, da EMBRAFILME - os congressos eram bancados oficialmente -, mas a gente falava o tempo todo que tinha que ter autonomia do Estado. Então eu não vou dizer que é isso que esse novo grupo anda fazendo, de se atrelar ao Estado, mas eu vi alguns sinais preocupantes disto. (...) Assim, fiquei um pouco desconfiado. Até porque meu envolvimento como professor universitário, nos últimos tempos, no movimento sindical, onde me envolvi bastante, mostraram isto, da falta de autonomia em relação ao Estado, quer dizer, um tipo de peleguismo... Então, não estou dizendo que é isso, o movimento cineclube não é, mas eu senti muitas vinculações e dependências de esquemas de governo. O que interessa ao governo também fingir que está ajudando o movimento social e eu não gosto desse tipo de coisa, eu gosto de deixar muito claro essa coisa toda. Agora é verdade também que eu tava muito ocupado também nesse período e também não dava pra acompanhar e aí deixei de lado. (Roberto)

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- Eu tenho participado de alguns debates. O que tem acontecido é o seguinte. Tem uns cinco anos que houve uma eclosão de cineclubes baseados em dois fatos básicos. Não há mais a necessidade do projetor químico, ou seja a película química. Hoje vários cineclubes são em video. Isso daí é um adianto total em termos de operação. E esses cineclubes são formados a partir de produtores de cinema, essa é que é a diferença, ou seja, muitos dos cineclubistas atuais, pelo menos aqui do Rio de Janeiro querem fazer filme. Então eles estão embrionariamente se reunindo junto aos cineclubes e dali surgirão os curta metragistas e depois surgirão os cineastas brasileiros. Muito entusiasmo nisso. Porque pelo menos esse embrião está sendo discutido. Esses cineclubes em muitas áreas suburbanas do Rio estão sendo feitos com condições razoáveis porque inclusive tem preocupações até mesmo de conforto do público e as coisas estão mais fáceis de se obter hoje em termos de tecnologia. Você pode comprar hoje, alugar um equipamento que tem uma condição razoável, passar e você tá tendo uma preocupação muito grande com o documentário e esses cineclubistas hoje se preocupam muito em difundir documentário. Porque? Hoje você faz muito documentário, hoje uma câmera de 3 mil reais faz documentários extraordinários e que são passados nesses cineclubes. Então não fica se preocupando em passar um grande filme para chamar um grande público. Deixa isso para a cadeia Cinemark, para o Ribeiro, etc... E também não estão muito preocupados em exibir o deja vú e não vão exibir outra vez o Pasolini, é uma pena, que talvez já esteja muito... você pega uma coleção, você compra na banca, olha a situação, você pode comprar o filme na banca hoje. Antigamente você tinha que montar um cineclube e combater a censura para passar um filme do Pasolini. Hoje você compra na banca. Então eles estão exibindo documentários e é essa questão embrionária muito séria, já vários desses cineclubes e cineclubistas estão se formando ótimos cineastas. Uma dessas experiências extraordinárias são os atores do filme “Cidade de Deus” que formam pequenos cineclubes nesses locais, montam, apresentam, chamam gente para debater e está ali trazendo atores, gente que está fazendo filmes. Então esse movimento meio que embrionário, ele não tem organicidade, não tem a Federação, não tem conselho, a distribuidora, que era uma linha orgânica que ligava todos eles a objetivos políticos. Combater a ditadura, desenvolver idéias políticas, etc e tal, não tem. É máximo também, mas não estão organizados desta forma, mas pipocam com muita insistência e alguns já estão migrando. O cineclube Ponto Cine de Santa Tereza já virou um cineminha, já está se apresentando nos jornais como cinema, já está no quadrinho do Globo. Do caramba isso, ou seja, seguindo uma trajetória nossa. Entendeu. E, aliás acho que tem até equipamentos que a gente cedeu, que a gente também tem essa capacidade de que os equipamentos que vão ficando obsoletos a gente vai repassando, entregando e tal . (Nelson)

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Diálogos Inacabados

Há tantos diálogos

Diálogo com o ser amado o semelhante o diferente o indiferente o oposto o adversário o surdo-mudo o possesso o irracional o vegetal o mineral o inominado Diálogo consigo mesmo com a noite os astros os mortos as idéias o sonho o passado o mais que futuro Escolhe teu diálogo e tua melhor palavra ou teu melhor silêncio Mesmo no silêncio e com o silêncio dialogamos.

Carlos Drummond de Andrade114

114

Poema: O constante diálogo.

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Nesta tese procuramos escolher o nosso “melhor diálogo” na intenção de

compartilhar com outros uma experiência que ensejou, e esperamos, ainda, possa

ensejar processos sociais geradores de esperanças. Não esperanças vãs, mas as

que potencializam movimentos que cotidianamente (re)afirmam a vida em toda sua

plenitude.

Nas entrevistas com os/as narradores/as, vivemos alegrias, trocamos

idéias e afetos, discordamos e concordamos sobre nossa história, sentimos

saudades. Esta nossa travessia, algumas vezes solitária, então, pode ser suavizada

e partilhada pela companhia de nossas conversas “... mesmo no silêncio e com o

silêncio dialogamos.”

Buscamos, neste trabalho, realçar que mesmo em momentos de

repressão política violenta, os sujeitos sociais criam atos que instituem outras formas

de viver, porque entendemos que na invenção da liberdade, somos capazes de viver

a tensão dialética entre ações instituintes e instituídas, lutando constantemente para

escapar dos aprisionamentos.

Como confrontar os aprisionamentos atuais?

Julgamos que a forma como se caracterizou a atividade cineclubista

naquele período, ajudou a semear práticas democráticas mesmo na época da

ditadura. O cinema possibilita “ver junto”, compartilhar idéias, refletir, ter desejos,

emoções... Através dele nos conectamos com o outro “... não posso vê-lo mais

devagar ou menos devagar do que as pessoas à minha volta. Estamos viajando no

mesmo trem.”115

Esta experiência histórica nos convida também, a ver sua dimensão

educacional em ações cotidianas. Ela teceu estímulos a sentimentos de liberdade,

despertou a vontade de confrontar, de arriscar, de ser responsável e solidário,

mesmo sob um governo ditatorial. Contribuiu, enfim, para a formação de sujeitos

mais comprometidos com o devir humano. “Especificamente humana a educação é

115 CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995, p.11.

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gnosiológica, é diretiva, por isso política, artística e moral, serve-se de meios, de

técnicas, envolve frustrações, medos, desejos.”116

A especificidade humana da educação apontada por Freire (1996) nos

remete para a compreensão de que mulheres e homens, conscientes de seu

inacabamento histórico, tornaram-se seres educáveis, seres da procura, da opção,

da decisão; seres políticos e éticos. Aqui evidencia-se o caráter de intervenção da

educação, da sua não neutralidade, do seu compromisso com o mundo social e

histórico. Cientes de nossa incompletude, de nosso condicionamento em relação às

estruturas dadas, descobrimos nossa capacidade de ruptura e percebemos que a

criação de nossos devires não pode se dar fora das diferentes experiências culturais

produzidas por nós num contexto sócio-histórico.

Nos remete também ao entendimento de que, neste processo, temos na

palavra a possibilidade de pronunciar e prenunciar o mundo, ou seja, transformá-lo.

Compreendemos que o processo educativo, enquanto narrativa das experiências

humanas, envolve uma relação dialógica entre narradores e ouvintes, no momento

da troca de conhecimentos, construindo sentidos e identidades.

Consideramos que este estudo, como citado anteriormente, ao destacar o

valor da experiência como fonte e possibilidade da narrativa, aponta para o

necessário enlace entre os movimentos culturais e a educação. Por entendermos a

narrativa não apenas como mera expressão, mas como portadora de uma

capacidade comunicável e transformadora, é que podemos pensá-la como uma

forma de contraposição à mera instrumentalidade que hoje predomina nas

instituições educativas. Desse modo, experiência e narrativa, para nós, é que

possibilitam a criação de práticas culturais e educacionais nas quais os sujeitos

sociais sejam produtores do seu pensar e fazer.

Ao resgatar a potencialidade política e estética do movimento cineclubista,

no decorrer do seu processo de resistência à ditadura militar, esperamos contribuir

para o tensionamento de afirmativas generalizantes sobre o esvaziamento das

experiências políticas vividas na sociedade atual, mais especificamente a brasileira.

116

FREIRE, Paulo, 1996, p.78.

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Ao apresentar a especificidade e a diversidade das experiências coletivas,

ele nos revela que a política é invenção permanente e as experiências são criações

históricas que respondem às necessidades postas pelo momento vivido. Convoca-

nos ainda a (re)inventar o sentido coletivo do político.

Pretendemos, também, colaborar para o debate atual sobre a importância

e o poder das imagens na constituição das relações sociais e da sua relevância no

processo de aprendizagem e formação dos sujeitos sócio-históricos. Reafirmamos

com Benjamin (1994), que no decorrer da história humana os modos de sentir e

perceber se modificam, tal como nossa existência. “(...) O modo pelo qual se

organiza a percepção humana, o meio em que ela se dá, não é apenas condicionado

naturalmente, mas também historicamente.” (p.169)

Desejamos, ainda, que os leitores deste trabalho possam (tal como

fazíamos nos debates após as sessões) encontrar palavras que criem diálogos e

sentidos que nos entrancem cada vez mais em nosso mundo para poder transformá-

lo. Transformar não mais com uma postura desvinculada da vida, mas

profundamente entranhada nela. “E quem vai mudar o mundo? A resposta vem de

uma operária, num longo primeiro plano, olhando para a câmera: aqueles a quem o

mundo não agrada”.117

Para nós, esta pesquisa possibilitou recuperar uma experiência que teceu

afetos; que fortaleceu sujeitos em suas ações instituintes.

Gostaríamos então, que ela germinasse e florescesse sementes,

frutificando movimentos contrários à “terceirização” dos afetos, à “terceirização” da

vida contemporânea, que destitui os sujeitos da capacidade de estar consigo e com

os outros; de construírem sua autonomia coletiva e individual.

Terceirização revelada em comportamentos e atitudes, cada vez mais

comuns, quando abdicamos de nossas responsabilidades sociais, políticas,

econômicas, culturais, ecológicas, éticas, frente aos desafios colocados diariamente

em nossas vidas. Ao delegarmos “a outros”, por diferentes razões, tarefas nossas 117

ESPERANÇA, Ilma. O cinema operário na República de Weimar. São Paulo: Editora da Unesp, 1993, p.115. In: RAMOS, Alcides Freire. Bertold Brecht e o Cinema Alemão dos Anos de 1920. Revista de História e Estudos culturais, vol.3, Ano III, no.3, julho/agosto/setembro de 2006, p13. Disponível em: www.revistafenix.pro.br

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admitimos nossa “incompetência” para pensar a economia, a política, a cultura, a

educação, o amor... até que nossas vidas sejam reguladas por especialistas;

especialistas que nos desautorizam, tornando-nos sujeitos destituídos de saberes e

afetos, contribuindo para a criação de relações sociais e inter-pessoais incapazes de

gerar vínculos mais duradouros, e, fortalecendo, então relações efêmeras e

indiferentes.

Estas reflexões nos remeteram a Brecht, que com seus poemas iluminam

nossos olhares e nossas escutas:

Nada é impossível de mudar

“Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo.

E examinai, sobretudo, o que parece habitual.

Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de

Hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem

Sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente,

De humanidade desumanizada, nada deve parecer natural

Nada deve parecer impossível de mudar”

Privatizado

“Privatizaram sua vida, seu trabalho, sua hora de amar e seu direito de pensar.

É da empresa privada o seu passo em frente,

Seu pão e seu salário. E agora não contente querem

Privatizar o conhecimento, a sabedoria,

O pensamento, que só à humanidade pertence.”

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REFERÊNCIAS DE IMAGENS

Fotos e ou cartazes:

1) Morangos Silvestres 2) O Grande Ditador 3) Macunaíma 4) Os Companheiros 5) Corações e Mentes 6) Os Companheiros 7) Macunaíma 8) Vidas Secas 9) X Jornada Nacional de Cineclubes 10) A Greve 11) Passe Livre 12) O Grande Ditador 13) Encouraçado Potenkin 14) Morangos Silvestres 15) Amarcord 16) Noites de Cabíria 17) V Mês do Cinema Brasileiro 18) Dodeskaden 19) Morte em Veneza 20) O Homem que Virou Suco 21) Ladrões de Bicicleta 22) Os Companheiros 23) Macunaíma 24) Deus e o Diabo na Terra do Sol 25) Pra frente Brasil 26) Pra Frente Brasil 27) 1900

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ANEXO I Roteiro das Entrevistas

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Questões/Entrevista

1. Quais foram os filmes que marcaram sua história de vida? Por que? 2. Você teve alguma relação com o cineclubismo na infância e adolescência? 3. Como foi sua experiência escolar neste período? 4. Como o movimento cineclubista refletiu na sua história de vida? Quanto tempo

você participou do cineclube? 5. Qual era o nome do seu cineclube? Você lembra porque escolheram este

nome? 6. Você lembra qual era o filme mais passado no seu cineclube? 7. Qual a importância (política, cultural, etc...) deste movimento no período de

sua formação escolar/profissional/social/política? 8. Você vê alguma relação entre a sua trajetória no movimento e posterior opção

profissional/magistério? Você percebe algum vínculo entre esta experiência e o campo educacional?

9. Como você entende que funcionava o movimento? Quais as articulações que você identificava naquela época?

10. Olhando hoje, como você vê o movimento cineclubista naquele momento político? Quais foram os limites e possibilidades do movimento naquele período?

11. Você percebeu ressonâncias do movimento em outras esferas sociais? Isto é, você percebia relações entre o movimento cineclubista e os movimentos sociais, artísticos e críticos da época? Qual o sentido que você via nestas relações? (avanços, recuos, impedimentos, dependências, independências, solidariedades, etc).

12. Como você acha que os cineclubes influenciaram as platéias? Em que medida?

13. Como é a sua relação hoje com o cinema? 14. Como você vê hoje a relação cinema/educação? Na sua perspectiva quais as

relações que a escola/universidade estabelece com o cinema? 15. Você usa o cinema nas suas aulas? Em que circunstâncias? Com quais

objetivos? Que resultados têm observado? 16. Você acredita que o cinema, enquanto uma experiência estética é capaz de

influir na história de vida dos sujeitos sociais? Como? 17. Você vê alguma importância em se resgatar a experiência cineclubista deste

período para pensar o momento atual? Isto é, que contribuições esta experiência pode nos dar para pensarmos nossas ações políticas, culturais, sociais, educacionais, etc.

18. Você sabe alguma coisa sobre o cineclubismo hoje? Se sim, que relações faz com o da década de 1970?

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ANEXO II Cineclube Leme

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ANEXO III Cineclube Barravento

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ANEXO IV Cineclube Glauber Rocha

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ANEXO V Federação de Cineclubes do Rio de Janeiro

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