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5/28/2018 Livro+O+Leitor++Bernhard+Schlink(1)-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/livrooleitor-bernhardschlink-1 1/97 O LEITOR BERNHARD SCHLINK  ASA Digitalização e Arranjo  Agostinho Costa Este livro oi !igitaliza!o "ara ser li!o "or Dei#ientes $is%ais o Leitor & '( a!voga!o ale(ão )%e a(o% %(a e*& &g%ar!a !e %( #a("o !e #on#entração "o!e vir a a#%s+&la se( se trair a si (es(o, - a esta rele*ão. entre (%itas o%tras. )%e Bernhar! S#hlin/ nos #onvi!a e( O Leitor0 1i#hael Berg. %( a!oles#ente nos anos 23. 4 ini#ia!o no a(or "or Hanna S#h(itz. %(a (%lher (a!%ra. 5ela. sens%al e a%torit+ria0 Ele te( 67 anos. ela 820 Os se%s en#ontros !e#orre( #o(o %( rit%al9 "ri(eiro 5anha(&se. !e"ois ele l:. ela es#%ta e inal(ente aze( a(or0 Este "er;o!o !e eli#i!a!e in#erta te( %( i( a5r%"to )%an!o Hanna !esa"are#e !e re"ente !a vi!a !e 1i#hael0 1i#hael s< a en#ontrar+ (%itos anos (ais tar!e. envolvi!a n%( "ro#esso !e a#%sação a e*&g%ar!as !os #a("os !e #on#entração nazis0 Ini#ia&se então %(a rele*ão (et<!i#a e !olorosa so5re a legiti(i!a!e !e %(a geração. a 5raços #o( a vergonha. j%lgar a geração anterior. res"ons+vel "or v+rios #ri(es0 =ert%r5a!ora (e!itação so5re os !estinos !a Ale(anha. O Leitor 4. !es!e O =er%(e. o ro(an#e ale(ão (ais a"la%!i!o na#ional e interna#ional(ente0 >+ tra!%zi!o e( 8?

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O LEITOR

BERNHARD SCHLINK

ASA

Digitalizao e Arranjo

Agostinho Costa

Este livro foi digitalizado paraser lido por Deficientes Visuais

o Leitor - Um advogado alemo que amou uma ex--guarda de um campo de concentrao podevir a acus-la sem se trair a si mesmo? aesta reflexo, entre muitas outras, queBernhard Schlink nos convida em O Leitor.Michael Berg, um adolescente nos anos 60, iniciado no amor por Hanna Schmitz, umamulher madura, bela, sensual e autoritria.Ele tem 15 anos, ela 36. Os seus encontrosdecorrem como um ritual: primeirobanham-se, depois ele l, ela escuta efinalmente fazem amor. Este perodo defelicidade incerta tem um fim abruptoquando Hanna desaparece de repente davida de Michael.Michael s a encontrar muitos anos maistarde, envolvida num processo de acusaoa ex-guardas dos campos de concentraonazis. Inicia-se ento uma reflexo metdicae dolorosa sobre a legitimidade de umagerao, a braos com a vergonha, julgara gerao anterior, responsvelpor vrios crimes.Perturbadora meditao sobre os destinosda Alemanha, O Leitor , desde O Perfume, oromance alemo mais aplaudido nacional einternacionalmente. J traduzido em 39lnguas, os respectivos direitos para ocinema foram adquiridos pela prestigiadaprodutora norte-americana Miramax. Paraalm disso, este romance foi galardoado em1997 com os prmios Grinzane Cavour,Hans Fallada e Laure Bataillon. Em 1999venceu o Prmio de Literatura do Die Welt.

BERNHARD SCHLINK

O LEITOR

TRADUZIDO DO ALEMO PORFTIMA FREIRE DE ANDRADE

ASA

TITULO ORIGINAL

DER VORLESER

1995, Diogenes Verlag AG, Zuriq

Este livro foi composto por

Maria da Graa Samagaio, Porto,

e impresso e acabado por

EIGAL,

Rua D. Afonso Henriques, 7424435-006 Rio Tinto PORTUGAL

1 edio: Dezembro de 19983 edio: Setembro de 2007

Reservados todos os direitos

ASA Editores, S.A.

SEDE

Av. da Boavista, 3265 - Sala 4.1Apartado 1035 / 4101-001 PORTOPORTUGAL

Tel. 22 6166030Fax 22 6155346E-mail: [email protected]: www.asa.pt

Paginao - rodap

PRIMEIRA PARTE

1.

Aos quinze anos tive ictercia. A doena comeou no Outono e acabou na Primavera. Quanto mais frio e escuro se tornava o ano velho, mais eu enfraquecia. S melhorei com o novo ano. Janeiro foi um ms quente, e a minha me levou-me a cama para a varanda. Via o cu, o sol, as nuvens, e ouvia as crianas a brincarem no ptio. Em Fevereiro, num final de tarde, ouvi cantar um melro.Vivamos na Rua das Flores, no segundo andar de um grande prdio do comeo do sculo. O meu primeiro passeio levou-me Rua da Estao. Foi ali que, numa segunda-feira de Outubro, no caminho da escola para casa, vomitei. Havia j muitos dias que me sentia fraco, to fraco como nunca antes na minha vida. Cada passo era um esforo. Quando subia escadas, na escola ou em casa, quase no me sustinha nas pernas. Tambm no me apetecia comer. Mesmo quando sentia fome e me sentava mesa, depressa ficava com repugnncia pela comida. De manh acordava com a boca seca e com a sensao de que as minhas vsceras pesavam mais do que o costume e que estavam mal arrumadas dentro do corpo. Envergonhava-me de estar to fraco. E envergonhei-me sobretudo quando vomitei. Tambm isso nunca me acontecera na vida. A boca encheu-se de vmito, tentei engolir, apertei os lbios com fora e tapei a boca com a mo, mas aquilo jorrou atravs dos dedos. Depois apoiei-me parede de uma casa, olhei o vomitado aos meus ps e saiu-me ainda uma aguadilha clara.A mulher que me ajudou f-lo de uma maneira quase brutal.Agarrou-me o brao e conduziu-me pela escura entrada do prdio para um ptio. Em cima havia estendais com roupas penduradas de janela a janela. No ptio havia madeira empilhada; numa oficina com a porta aberta chiavauma serra e voavam estilhas. Ao lado da porta do ptio havia uma torneira. A mulher abriu-a, lavou-me primeiro a mo e depois recolheu gua na concha das mos e atirou-a para o meu rosto. Enxuguei a cara com o leno. Leva o outro! Ao lado da torneira estavam dois baldes, ela agarrou num e encheu-o. Peguei no outro e enchi-o, e depois segui-a pela entrada. A mulher balanou muito os braos, a gua caiu de chapa no passeio e arrastou o vomitado para o esgoto. Tirou-me o balde da mo e atirou outra chapada de gua sobre o passeio.Endireitou-se e viu que eu chorava. Mido disse, surpreendida , mido. Abraou-me. Eu era pouco mais alto do que ela, senti os seus seios no meu peito, no aperto do abrao cheirei o meu mau hlito e o suor fresco dela e no soube o que fazer com os braos. Parei de chorar.Perguntou-me onde morava, deixou os baldes na entrada e levou-me a casa. Corria ao meu lado, com a minha pasta da escola numa mo e a outra mo no meu brao. A Rua da Estao no muito longe da Rua das Flores. Caminhava depressa, e com uma determinao que me tornou mais fcil acompanh-la. Despediu-se diante da minha casa.Naquele mesmo dia, a minha me chamou o mdico, que me diagnosticou ictercia. Num momento qualquer falei daquela mulher minha me. No acredito que de outra maneira a tivesse visitado. Mas para a minha me era natural que, logo que eu pudesse, iria comprar com o meu dinheiro um ramo de flores, apresentar-me e agradecer-lhe. Por isso, num dia do final de Fevereiro dirigi-me Rua da Estao.

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2.

O prdio da Rua da Estao j no existe. No sei quando o demoliram nem qual foi o motivo. Estive muitos anos fora da minha cidade. O prdio novo, construdo nos anos setenta ou oitenta, tem cinco andares e uma mansarda, ficou sem sacadas e sem varandas e tem um reboco liso de cor clara. s inmeras campainhas correspondem inmeros apartamentos pequenos. Apartamentos para os quais nos mudamos e dos quais voltamos a mudar, da mesma maneira como vamos buscar e entregar um carro alugado. No rs-do-cho h agora uma loja de material informtico; antes houve uma drogaria, uma mercearia e um clube de aluguer de cassetes vdeo.O antigo prdio tivera a mesma altura mas apenas quatro andares, um rs-do-cho em cantaria de arenito biselado e, por cima, trs andares em tijolo, com balces e sacadas cujos lintis e ombreiras eram tambm de arenito. Entrava-se no rs-do-cho e no vestbulo por uma pequena escada, com degraus mais largos em baixo do que em cima, ladeada de muretes encimados por corrimos de ferro que terminavam em caracol. A porta era flanqueada por duas colunas, e dos cantos da trave mestra um leo olhava o alto da Rua da Estao e um outro o fim. A entrada pela qual a mulher me tinha levado at torneira do ptio era a de servio.J em criana reparara no prdio. Dominava a fileira de casas. Pensava que se ele se tornasse ainda mais pesado e largo, os prdios vizinhos teriam de se desviar para lhe darem o lugar. Imaginava que no interior havia uma escadaria com paredes estucadas, espelhos e uma passadeira com motivos orientais presa aos degraus por varas de lato polido. Esperava que nessa casa imponente tambm vivessem pessoas imponentes. Mas como os anos e o fumo das locomotivas tinham enegrecido a casa, imaginava os imponentesinquilinos tambm mais sombrios, estranhos, talvez surdos ou mudos, corcundas ou coxos.Anos mais tarde, sonhei muitas vezes com aquela casa. Os sonhos eram sempre parecidos, variaes de um sonho e de um tema. Andando por uma cidade estranha, vejo a casa: est numa fileira de casas, num quarteiro que no conheo. Continuo a caminhar, confuso porque reconheo a casa mas no o quarteiro. Depois lembro-me de j a ter visto. No a localizo na Rua da Estao da minha cidade, mas numa outra cidade ou num outro pas. Por exemplo, no sonho estou em Roma, encontro l o prdio e recordo-me de o ter visto j em Berna. Tranquilizo-me com esta lembrana sonhada; voltar a ver o prdio num cenrio diferente no me parece mais singular do que o encontro casual com um velho amigo num cenrio desconhecido. Volto para trs, regresso ao prdio e subo os degraus. Quero entrar. Toco a campainha.Quando vejo o prdio no campo, o sonho dura mais tempo, talvez porque me lembro melhor dos detalhes. Vou de carro. Vejo o prdio minha direita e continuo: primeiro fico apenas intrigado por deparar no meio do campo com um prdio que aparentemente deveria pertencer a um arruamento citadino; depois, recordo-me de j o ter visto, e ento a minha confuso redobra. Quando me lembro de que j o vi, fao inverso de marcha e volto para trs. No sonho, a estrada est sempre vazia, posso inverter a marcha com as rodas a chiar e voltar para trs a grande velocidade. Tenho medo de chegar tarde de mais, e acelero. Depois vejo-o. Est rodeado de campos: colza, cereais e vinhas se estiver na zona do Reno, ou alfazema se estiver na Provena. A paisagem plana, ou muito suavemente ondulada. No h rvores. O dia est luminoso, o sol brilha, o ar reverbera, e a estrada cintila de calor. As paredes laterais do prdio fazem-no parecer recortado, incompleto. Aquelas poderiam ser as paredes de qualquer prdio. A casa no ali mais sombria do que na Rua da Estao. Mas as janelas esto cobertas de p, no deixam adivinhar nada dentro das divises, nem sequer as cortinas. A casa cega.Estaciono junto berma e atravesso a estrada na direco da entrada. No se v ningum, no se ouve nada, nem to-pouco o rudo longnquo de um motor, nem o vento, nem um pssaro. O mundo est morto. Subo as escadas e toco a campainha.Mas no abro a porta. Acordo e sei apenas que atingi a campainha e a toquei. Depois vem-me memria todo o sonho, e que tambm j o havia sonhado muitas vezes antes.

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3.

Eu no conhecia o nome da mulher. Fiquei parado diante da porta, olhando indeciso as campainhas e com o ramo de flores na mo. Tinha vontade de voltar para trs. Mas nesse momento saiu um homem do prdio, perguntou-me quem que eu queria visitar e mandou-me para o terceiro andar, a casa da senhora Schmitz.Nem estuque, nem espelhos, nem passadeira. Toda a beleza modesta que originalmente a escadaria poderia ter tido, em nada comparvel com a sumptuosidade da fachada, desaparecera h muito tempo. A tinta vermelha dos degraus estava gasta no centro; o linleo verde estampado, colado na parede ao lado das escadas at altura do ombro, estava pudo; e onde faltavam as varas de lato havia cordes esticados. Cheirava a produtos de limpeza. Talvez tenha tido conscincia de tudo isto apenas mais tarde. Tudo isto tinha sempre o mesmo ar decrpito e o mesmo asseio e o mesmo cheiro a produtos de limpeza, por vezes misturado com o odor a couve ou a feijo, ou a cozido ou a roupas que ferviam. Dos outros inquilinos nunca conheci mais do que esses cheiros, as marcas dos ps nas soleiras diante das portas de casa e os letreiros com os nomes por baixo dos botes das campainhas. No me lembro de alguma vez ter encontrado qualquer outro inquilino nas escadas.Tambm j no me lembro de que maneira cumprimentei a senhora Schmitz. Terei dito, provavelmente, duas ou trs frases que antes preparara, referindo a minha doena, a ajuda dela e os meus agradecimentos. Ela levou-me para a cozinha.A cozinha era a maior diviso da casa. Ali estavam o fogo e o lava-loias, a tina do banho e a caldeira para aquecer a gua, uma mesa e duas cadeiras, um armrio de cozinha, um guarda-fatos e um sof. Por cima do sof

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estava estendida uma manta de veludo vermelho. A cozinha no tinha janelas. A luz passava pelos vidros da porta que abria para a varanda. No muita luz; a cozinha s era iluminada quando a porta estava aberta. Ouvia-se ento o chiar da serra na oficina do ptio e cheirava a madeira.O andar tinha ainda uma sala pequena e estreita, com um aparador, uma mesa, quatro cadeiras, um sof de orelhas e uma lareira. Essa sala quase nunca era aquecida durante o Inverno, e durante o Vero tambm quase nunca era utilizada. A janela dava para a rua e por ela via-se o terreno da antiga estao, que era revolvido e de novo mexido e onde, aqui e acol, j estavam feitas as fundaes dos novos edifcios do tribunal e dos servios administrativos. Finalmente, o andar tinha ainda uma casa de banho sem janelas. Quando l cheirava mal, o odor tambm invadia o corredor.J no me recordo tambm do que falmos na cozinha. A senhora Schmitz passava roupa a ferro; estendera um cobertor de l e um pano de linho por cima da mesa, e ia tirando do cesto peas de roupa, uma atrs da outra, passava-as, dobrava-as e colocava-as numa das duas cadeiras. Eu estava sentado na outra. Tambm passou a ferro a sua roupa interior, e eu no queria olhar e no conseguia desviar os olhos. Ela vestia uma bata azul sem mangas, com pequenas e plidas flores vermelhas. Tinha o cabelo loiro claro, apanhado na nuca com um travesso e que lhe chegava aos ombros. Os seus braos nus eram plidos. Os gestos com que agarrava, usava e voltava a pousar o ferro de engomar, e logo depois juntava a roupa, eram lentos e concentrados, e era do mesmo modo lento e concentrado que se movia, inclinando-se e voltando a endireitar-se. Sobre a minha memria do seu rosto de ento foram-se depositando, com o passar dos anos, os seus outros rostos. Quando a tenho diante dos olhos como ela era ento, vejo-a sem rosto. Tenho de o reconstruir. Testa alta, malares salientes, olhos azul-plidos, lbios grossos bem desenhados e sem sinuosidades, queixo enrgico. Um rosto largo, spero, de mulher adulta. Sei que era bonito. Mas no consigo lembrar-me da sua beleza.

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4.

Espera um momento disse ela quando me levantei e fiz meno de me ir embora , tambm tenho que sair e acompanho-te por um bocado.Esperei no corredor. Ela mudava de roupa na cozinha. A porta estava entreaberta. Tirou a bata e ficou vestida apenas com uma combinao verde clara. Duas meias pendiam nas costas da cadeira. Agarrou uma e arregaou-a alternadamente com as duas mos. Equilibrou-se numa perna, apoiou nesse joelho o calcanhar da outra, debruou-se, enfiou a meia enrolada na ponta do p, apoiou a ponta do p na cadeira, fez deslizar a meia pela barriga da perna, pelo joelho e pela coxa, inclinou-se para o lado e prendeu a meia liga. Endireitou-se, tirou o p da cadeira e agarrou a outra meia.No conseguia desviar dela o olhar. Das suas costas e dos seus ombros, dos seus peitos, que a combinao realava mais do que escondia, das suas ndegas, que repuxavam a combinao quando ela apoiava o p no joelho e o colocava na cadeira, da sua perna, primeiro nua e plida e depois, dentro da meia, envolvida pelo brilho sedoso.Ela sentiu o meu olhar. Deteve-se no momento de ir buscar a outra meia, voltou-se para a porta e olhou-me nos olhos. No sei o que havia no seu olhar; admirao, inquirio, saber, desaprovao. Corei. Fiquei parado por um instante e com a cara afogueada. Depois no consegui aguentar mais, precipitei-me para fora da casa, corri pelas escadas e sa do prdio.Caminhei devagar. Rua da Estao, Rua Hausser, Rua das Flores este foi, durante anos, o meu caminho de regresso da escola. Conhecia todas as casas, todos os jardins e todas as cercas, as que eram pintadas todos os anos, as que tinham a madeira to cinzenta e podre que a podia esmagar com a mo; as cercas de ferro, cujas barras percorria e fazia soar com um pau quando criana, e o muro alto de tijolo atrs do qual imaginei que existiam coisas maravilhosas e terrveis, at ao momento em que consegui trep-lo e ver as montonas filas

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de desmazelados canteiros de flores, de arbustos e de hortalias. Conhecia a calada e a camada de alcatro da estrada, e as junes entre as placas, o pavimento de basalto ondulado, o alcatro e o cascalho do passeio.Tudo me era familiar. Quando o corao comeou a bater mais devagar e a cara no me ardia, aquele encontro entre a cozinha e o corredor estava j muito longe. Aborreci-me. Tinha fugido como uma criana em vez de reagir com a maturidade que esperava de mim mesmo. J no tinha nove anos mas quinze. Na verdade, continuava a ser um enigma o que deveria ser essa reaco madura.O outro enigma era aquele encontro entre a cozinha e o corredor. Por que razo no tinha conseguido desviar os olhos? Ela tinha um corpo muito robusto e muito feminino, mais opulento do que as raparigas que me agradavam e que eu seguia com o olhar. Estava certo de que ela no me teria chamado a ateno se a tivesse visto na piscina. E ela tambm no se tinha desnudado mais do que as outras meninas e mulheres que eu vira na piscina. Para alm disso, era muito mais velha do que as raparigas com quem eu sonhava. Mais de trinta anos? Adivinha-se mal uma idade a que ainda no se chegou nem se est perto de chegar.Anos mais tarde, apercebi-me de que no tinha conseguido desviar o olhar no s por causa do seu corpo mas pelas suas posies e movimentos. Mais tarde, pedi s minhas namoradas que calassem meias, mas no queria explicar o motivo do meu pedido, revelar o enigma daquele encontro entre a cozinha e o corredor. Assim, o meu pedido aparecia como um desejo de ligas e rendas e extravagncias erticas e, quando era cumprido, era-o numa pose coquette. E isso no era aquilo de que eu no conseguira desviar os olhos. Ela no fizera pose, no tinha sido coquette. Tambm no me lembro de ela ter voltado a faz-lo. Lembro-me de que o seu corpo, a sua atitude e os movimentos resultavam por vezes rudes. No que ela fosse to rude. Parecia, sobretudo, que se recolhera no interior do seu corpo, que o entregara a si mesmo e ao seu prprio ritmo pausado, indiferente a alguma ordem do crebro, e que esquecera o mundo exterior. Foi esse mesmo esquecimento do mundo que eu vi na atitude e nos movimentos ao calar as meias. Mas nisso no era rude, tinha gestos fluidos, graciosos, sedutores; uma seduo que no seios e ndegas e pernas, mas sim o convite para esquecer o mundo dentro do corpo.Isto no sabia eu ento; nem estou certo de o saber agora, de que no estou apenas a tentar convencer-me. Mas ento, ao recordar o que me tinha excitado tanto, voltava-me a excitao. Para resolver o enigma, tornava a recordar aquele encontro, e ento desaparecia a distncia que eu criara ao transform-lo em enigma. Via tudo novamente diante de mim e, uma vez mais, no conseguia desviar os olhos.

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5.

Uma semana mais tarde voltei a estar diante da sua porta. Durante toda a semana tentara no pensar nela. Mas no tinha nada que me entretivesse ou distrasse; o mdico ainda no me deixava ir escola e, aps os longos meses de leituras, os livros enfastiavam-me; e embora os amigos me visitassem, j estava doente h tanto tempo que as suas visitas j no serviam de ponte entre o meu quotidiano e o deles, e tornavam-se cada vez mais curtas. Eu devia passear, ir cada dia um pouco mais longe, sem me esforar. Mas do que eu precisava era de me cansar.Que tempos aborrecidos os da doena durante a infncia e a juventude! O mundo exterior, o mundo do tempo livre no ptio ou no jardim, ou na rua, entra apenas em rudos abafados no quarto do doente. L dentro, cresce descontroladamente o mundo das histrias e das personagens das leituras que o doente l. A febre, que debilita a percepo e agua a fantasia, transforma o quarto do doente num novo espao, ao mesmo tempo conhecido e estranho; nos motivos das cortinas e dos tapetes, os monstros fazem caretas, e as cadeiras, as mesas, a estante e o armrio acumulam-se, transformando-se assim em montanhas, edifcios ou barcos, ao mesmo tempo to perto da mo e to remotos. Durante as longas horas da noite, acompanham o doente o toque do sino na torre da igreja, o rudo dos carros que passam de vez em quando e o reflexo dos seus faris, que tacteia pelas paredes e pelo tecto. So horas sem sono, mas no horas de insnia, no so horas de uma falta mas de plenitude. Melancolia, recordaes, medos e desejos organizam-se em labirintos onde o doente se perde e se encontra e volta a perder-se. So horas em que tudo possvel, tanto o mau como o bom.

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Isto desvanece-se quando o doente melhora. Mas se a doena durou o tempo bastante, o quarto fica impregnado e o convalescente, ainda que j no tenha febre, continua perdido no labirinto.Eu acordava todos os dias com m conscincia, por vezes com as calas do pijama hmidas ou manchadas. As imagens e as cenas que eu sonhava no eram convenientes. Eu sabia que nem a me, nem o padre que me tinha preparado para a confirmao, a quem estimava, nem a minha irm mais velha, a quem tinha confiado os segredos da minha infncia, me iriam ralhar. Mas admoestar-me-iam de um modo carinhoso e preocupado, o que seria muito pior do que um ralhete. Era especialmente injusto quando eu no sonhava passivamente com as imagens e cenas e as fantasiava ento activamente.No sei onde encontrei a coragem para ir a casa da senhora Schmitz. A educao moral revoltou-se de algum modo contra si prpria? Se o olhar vido era to mau como o acto de satisfao do desejo, e a fantasia activa tanto como o feito em si mesmo, ento por que negar-se a satisfao e o acto? Dia a dia, apercebia-me de que no conseguia afastar de mim os pensamentos pecaminosos. At que chegou o momento em que desejei tambm o pecado.Houve um outro raciocnio. Ir l poderia ser perigoso. Mas na realidade era impossvel que o perigo se concretizasse. A senhora Schmitz cumprimentar-me-ia admirada, ouvir-me-ia enquanto eu me desculpava pelo meu estranho comportamento e despedir-se-ia de mim amavelmente. Era mais perigoso no ir l; corria o perigo de no conseguir livrar-me das minhas fantasias. Por isso, ao ir l, fiz o que era correcto. Ela comportar-se-ia normalmente, eu comportar-me-ia normalmente, e tudo voltaria a ser to normal como sempre.Eram estes, ento, os meus raciocnios; converti o meu desejo num estranho factor de raro clculo moral e assim calei a minha pesada conscincia. Mas isso no me dava a coragem para ir a casa da senhora Schmitz. Uma coisa era convencer-me a mim prprio de que a minha me, o padre admirado e a minha irm mais velha, se pensassem bem, no me impediriam de ir a casa dela, e outra coisa completamente diferente era ir na verdade a casa da senhora Schmitz. No sei por que o fiz. Mas hoje reconheo, naquilo que ento aconteceu, o esquema por meio do qual o pensamento e a aco se conjugaram ou divergiram durante toda a minha vida. Penso, chego a um resultado, fixo-o numa concluso e apercebo-me de que a aco algo independente, algo que pode seguir a concluso, mas no necessariamente. Durante a minha vida, fiz muitas vezes coisas que no tinha decidido fazer, e no fiz outras que tinha firmemente decidido fazer. Algo que existe em mim, seja l o que for, age; algo que me faz ir ter com uma mulher que j no quero voltar a ver, que

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faz ao superior um reparo que me pode custar o emprego, que continua a fumar embora eu tenha decidido deixar de fumar, e que deixa de fumar quando me resignei a ser um fumador para o resto dos meus dias. No quero dizer que o pensamento e a deciso no tenham alguma influncia na aco. Mas a aco no decorre s do que foi pensado e decidido antes. Surge de uma fonte prpria, e to independente como o meu pensamento e as minhas decises.

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6.

Ela no estava em casa. A porta do prdio estava encostada, subi as escadas, toquei campainha e esperei. Tornei a tocar. Dentro de casa as portas estavam abertas, vi-o atravs do vidro da porta de entrada e distingui o espelho, o guarda-fatos e o relgio no vestbulo. Podia at ouvi-lo tocar.Sentei-me nas escadas e esperei. No me sentia aliviado, como pode acontecer quando tomamos uma deciso com medo do que possa acontecer, e logo nos alegramos por a termos cumprido sem que nada nos acontecesse. Tambm no me sentia decepcionado. Estava decidido a v-la, e a esperar at que chegasse.O relgio da entrada tocou o quarto de hora, a meia hora. Tentei seguir o suave tiquetaque e contar os novecentos segundos entre uma batida e outra, mas distraa-me sempre. No ptio chiava a serra da oficina, de uma casa brotavam vozes ou msica, abria-se uma porta. Ouvi depois algum subir as escadas com um passo regular, lento e pesado. Esperei que a pessoa ficasse no segundo andar. Se me visse, como iria eu explicar o que estava ali a fazer? Mas os passos no pararam no segundo andar. Continuaram a subir. Levantei-me.Era a senhora Schmitz. Trazia numa mo uma cesta com carvo de coque, e na outra uma de briquetes. Tinha vestido um uniforme, saia e casaco, evidentemente que era revisora dos elctricos. No me viu at chegar ao patamar. Olhou-me, no me pareceu zangada, nem admirada, nem trocista nada do que eu temera. Parecia apenas cansada. Pousou o carvo, e enquanto procurava a chave no bolso do casaco, algumas moedas tiniram no cho. Apanhei-as e entreguei-lhas. L em baixo, na cave, h ainda mais duas cestas. Podes ench-las e traz-las para cima? A porta est aberta.

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Corri pelas escadas abaixo. A porta da cave estava aberta, a luz da cave estava acesa, e ao fundo da comprida escadaria encontrei um compartimento de tabiques de madeira, com a porta apenas encostada e a fechadura no trinco. O compartimento era grande, e o carvo de coque fora empilhado at a uma fresta abaixo do tecto, pela qual tinha sido atirado da rua. De um dos lados da porta estavam os briquetes empilhados ordeiramente, e do outro as cestas para o carvo.No sei o que que fiz de errado. Em casa tambm ia buscar carvo cave e nunca tive qualquer problema. Na verdade, em casa o carvo de coque nunca chegava quela altura. Encher a primeira cesta correu bem. Mas quando agarrei a asa da segunda cesta e quis tambm apanhar do cho o carvo de coque, a montanha ps-se em movimento. De cima saltaram pequenos pedaos em grandes saltos e grandes pedaos em pequenos saltos; entretanto, mais abaixo era um escorregar, e no cho um rolar e empurrar. Formou-se uma nuvem de p preto. Fiquei aterrorizado e imvel, levava com um ou com outro pedao, e em breve estava com carvo at aos tornozelos.Quando o monte ficou quieto, sa do carvo, enchi a segunda cesta, procurei e encontrei uma vassoura, varri outra vez para dentro do compartimento os pedaos que tinham cado no cho da cave, fechei a porta e levei as duas cestas para cima.Ela tinha tirado o casaco, desapertara o n da gravata e abrira o primeiro boto; estava sentada mesa da cozinha, com um copo de leite na mo. Ao ver-me, comeou a rir-se, primeiro contendo-se e depois s gargalhadas. Enquanto me apontava o dedo, batia com a outra mo na mesa. Como tu ests, mido, como tu ests!Ento vi tambm a minha cara negra no espelho por cima do lava-loias e comecei a rir com ela. No podes ir assim para casa. Vai tomar um banho e eu sacudo as tuas roupas.Foi at banheira e abriu a torneira. A gua comeou a cair, fumegante, na banheira. Tem cuidado ao despires-te, no quero que a cozinha se encha de p preto.Hesitei, despi a camisola e a camisa, e voltei a hesitar. A gua subia depressa, e a banheira estava j quase cheia. Queres tomar banho com os sapatos e as calas? Eu no te olho, mido.Mas quando fechei a torneira e tirei tambm as cuecas, ela ficou a olhar-me

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calmamente. Corei, meti-me na banheira e imergi-me todo. Quando voltei com a cabea tona da gua, ela estava na varanda com as minhas coisas. Ouvi-a bater com os sapatos um contra o outro e sacudir as calas e a camisola. Gritou qualquer coisa para algum que estava em baixo, qualquer coisa acerca do p do carvo e da serradura; l de baixo gritaram-lhe, e ela riu-se. Voltou cozinha e deixou as minhas coisas na cadeira. Lanou-me uma olhadela. Tens a champ, lava tambm o cabelo. Eu j trago uma toalha. Tirou algo do guarda-fatos e saiu da cozinha.Lavei-me. A gua da banheira ficou suja, e deixei correr outra gua para tirar, debaixo do jorro, o sabo da cara e da cabea. Depois fiquei deitado; ouvia o fogo do banho, sentindo na cara o ar fresco que entrava pela frincha da porta da cozinha, e no corpo a gua quente. Sentia-me bem. Era um bem-estar excitante, e o meu sexo ps-se teso.No levantei a cabea quando ela entrou na cozinha, apenas quando ficou parada junto da banheira. Segurava um toalho aberto com os braos estendidos. Anda!Quando me levantei para sair da banheira, voltei-lhe as costas. Ela envolveu-me no toalho, da cabea aos ps, e esfregou-me at me secar. Depois deixou cair o toalho no cho. No me atrevi a mover-me. Estava to perto de mim que sentia os seus seios nas minhas costas e a sua barriga nas minhas ndegas. Ela tambm estava nua. Ps os braos minha volta, uma mo no meu peito e a outra no meu membro entesado. por isso que aqui ests, no? Eu...No soube o que devia dizer. Nem que sim nem que no. Voltei-me. No via muito do seu corpo. Estvamos demasiado juntos. Mas fiquei subjugado pela proximidade do seu corpo nu. s to bonita! Ora, mido, o que ests para a a dizer.Ela riu-se e ps os braos em volta do meu pescoo. Tambm eu a abracei.Tive medo: dos afagos, dos beijos, que no lhe agradasse e que no lhe bastasse. Mas depois de nos termos abraado durante algum tempo, e de eu ter aspirado o cheiro dela e sentir o seu calor e a sua fora, tudo se tornou natural. A descoberta do corpo com as mos e com a boca, o encontro das bocas, e por fim ela em cima de mim, olhos nos olhos, at que me vim e fechei os olhos com fora: primeiro esforcei-me por me controlar, mas depois gritei to alto que ela afogou o meu grito pondo a mo na minha boca.

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7.

Na noite seguinte apaixonei-me por ela. No dormi profundamente, ansiava por ela, sonhava com ela, parecia que a sentia, at que me apercebi de que apertava a almofada ou o cobertor. A boca doa-me dos muitos beijos. O meu sexo ficava teso outra vez, mas no queria masturbar-me. Nunca mais queria masturbar-me. Queria estar com ela.Ter-me-ei apaixonado por ela como prmio por ter aceitado dormir comigo? At hoje, depois de passar a noite com uma mulher, tenho o sentimento de ser premiado com demasiado mimo e de ter de a compensar por isso compens-la, fazendo um esforo por me apaixonar por ela, e tambm compensar o mundo a que me ofereo.Uma das minhas poucas recordaes vivas da primeira infncia a de uma manh de Inverno quando tinha quatro anos. O quarto em que eu dormia no era aquecido e muitas vezes estava frio durante a noite e ao comeo da manh. Lembro-me do calor da cozinha e do fogo quente, uma pesada pea de ferro, no qual estava sempre pronto um alguidar de gua quente e no qual se via o fogo quando se tirava com um gancho as placas e os aros dos seus lugares. A minha me colocava uma cadeira diante do fogo, onde eu me punha de p enquanto ela me lavava e me vestia. Lembro-me da boa sensao do calor e do prazer que tinha em ser lavado e vestido nesse calor. Sempre que esta imagem me chegava memria, lembro-me tambm de me interrogar por que razo a minha me me tinha mimado tanto naquele dia. Estaria doente? Tinham dado aos meus irmos alguma coisa que eu no recebera? Haveria algo desagradvel, difcil, que eu teria que ultrapassar durante o resto do dia?Tal como a mulher, que ainda no nomeara em pensamentos, me mimara tanto naquela tarde, senti que tinha de pagar por isso e decidi voltar para

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a escola no dia seguinte. Alm disso, queria exibir a masculinidade que eu tinha adquirido. No que quisesse gabar-me disso. Mas sentia-me cheio de fora, e superior, e queria confrontar os meus colegas e professores com essas recm-adquiridas fora e superioridade. Apesar de no ter conversado com ela sobre isso, achava que, sendo revisora dos elctricos, trabalharia muitas vezes at ao fim da tarde ou da noite. Como poderia v-la todos os dias se tivesse que ficar em casa e s pudesse fazer os meus passeios de convalescente?Quando regressei a casa, os meus pais e irmos j estavam sentados a jantar. Por que vens to tarde? A tua me ficou preocupada por tua causa. O meu pai soava mais arreliado do que preocupado.Disse que me tinha perdido; planeara passear desde o cemitrio de Ehren at Molkenkur, mas tinha-me perdido at finalmente chegar a Nussloch. No tinha dinheiro e tive que vir a p de Nussloch at casa. Podias ter pedido boleia.A minha irm mais nova s vezes apanhava boleia, mas os meus pais no aprovavam.O meu irmo mais velho fungou com desprezo. Molkenkur e Nussloch ficam em direces totalmente diferentes. A minha irm mais velha olhou-me com curiosidade. Amanh volto para a escola. Ento presta muita ateno na aula de Geografia. H o Norte e o Sul, o sol levanta-se...A minha me interrompeu o meu irmo. O mdico disse que eram mais trs semanas. Se ele consegue ir pelo cemitrio de Ehren at Nussloch e voltar para casa, tambm pode ir para a escola. No lhe falta fora, faltam-lhe miolos.Quando era pequeno, eu e o meu irmo lutvamos muitas vezes, mais tarde verbalmente. Com mais trs anos do que eu, ele era bastante superior das duas maneiras. A certa altura deixei de ripostar e fiz ouvidos moucos aos seus ataques verbais. Desde ento, limitava-se a irritar-me. O que que achas?A minha me dirigia-se ao meu pai, que pousou a faca e o garfo no prato, reclinou-se e cruzou as mos no colo. Ficou calado e pensativo, como sempre fazia quando a minha me lhe dirigia a palavra por causa de um dos filhos ou da lida da casa. Como todas as outras vezes, perguntei-me se ele estava realmente a pensar na pergunta da minha me ou no trabalho. Talvez tentasse tambm pensar na pergunta da minha me; uma vez mergulhado em pensamentos,

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s conseguia pensar no seu trabalho. Era professor de Filosofia, e a sua vida era pensar, pensar e ler e escrever e ensinar.Por vezes eu tinha a sensao de que ns, a sua famlia, ramos para ele como os animais de estimao. O co que levamos a passear, o gato com que brincamos, e tambm o gato que, enroscando-se no nosso colo e ronronando, se deixa afagar podem despertar algum afecto e, de uma certa maneira, podemos mesmo ter necessidade deles; e contudo, a compra da comida, a limpeza da areia do gato e o caminho para o veterinrio so uma grande maada. Pode ser que a verdadeira vida esteja a acontecer algures, noutro stio. Eu gostaria que ns, a sua famlia, fssemos a vida dele. Por vezes, tambm gostaria que o meu irritante irmo ou a minha insolente irm mais nova fossem diferentes. Mas naquela noite, de repente, cheguei concluso de que os amava muito. A minha irm mais nova. provvel que no fosse fcil ser a mais nova de quatro irmos, e no conseguia afirmar-se sem uma certa insolncia. O meu irmo mais velho. Tnhamos um quarto em comum, o que certamente era mais difcil para ele do que para mim e, alm disso, desde que eu adoecera, teve que deixar o quarto s para mim e dormir no sof da sala. Como poderia ele no resmungar? O meu pai. Por que razo deveramos ser ns, os filhos, a sua vida? Estvamos a crescer e em breve estaramos crescidos e sairamos de casa.Tive a impresso de que estvamos todos sentados mesa redonda pela ltima vez, debaixo do candeeiro de lato com cinco braos e cinco lmpadas de velas, como se comssemos uma ltima vez dos velhos pratos de bordas decoradas com gavinhas verdes, como se falssemos uns com os outros pela ltima vez. Parecia-me estar num jantar de despedida. Estava ali mas j tinha partido. Tinha saudades da me e do pai e dos irmos e, ao mesmo tempo, ansiava estar com a mulher.O meu pai olhou-me. Amanh voltas para a escola: disseste isto, no verdade? Sim.Reparara, portanto, que eu lhe dirigira a pergunta a ele e no me, e tambm que no estava disposto a voltar atrs na minha deciso. Assentiu com a cabea. Vamos deixar-te voltar para a escola. Se vires que no aguentas, ficas ento de novo em casa.Senti-me feliz. Ao mesmo tempo, fiquei com a sensao de que, agora, o adeus estava consumado.

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8.

Nos dias seguintes, a mulher trabalhava no turno da manh. Ela chegava a casa ao meio-dia, e eu faltava todos os dias ltima aula para a esperar no patamar das escadas, frente da porta. Tomvamos banho e amvamo-nos e, pouco antes da uma e meia da tarde, vestia-me apressadamente e saa a correr. Em minha casa almoava-se uma e meia. Ao domingo, o almoo era logo ao meio-dia, mas o turno dela tambm comeava e terminava mais tarde.Eu teria evitado tomar banho. Ela era de uma limpeza exasperante, tomava um duche todas as manhs, e eu gostava dos cheiros que ela trazia consigo do trabalho: do perfume, do suor fresco e do elctrico. Mas gostava tambm do seu corpo molhado e ensaboado; gostava de me deixar ensaboar por ela e ensaboava-a com prazer, e ela ensinou-me a faz-lo sem pudor, mas com uma mincia natural e possessiva. Tambm quando nos amvamos, possua-me com naturalidade. A boca dela tomava a minha, a sua lngua brincava com a minha, dizia-me onde e como a deveria tocar, e quando me montava at se vir, eu estava apenas presente para lhe dar prazer e no para o partilhar. No que no fosse terna e no me desse prazer. Mas fazia-o pelo prazer de jogar, at que aprendi tambm a possu-la.Isso foi mais tarde. Nunca o aprendi completamente. De facto, durante muito tempo tambm no me fez falta. Eu era jovem e vinha-me depressa, e depois disto, quando tornava lentamente vida, era com prazer que a deixava possuir-me. Observava-a quando estava sobre mim; a barriga, que fazia uma grande dobra sobre o umbigo, os seus seios, o direito um tudo nada maior que o esquerdo, a cara, a boca aberta. Apoiava as suas mos no meu peito e, no ltimo momento, levantava-as bruscamente, agarrava a cabea e emitia um

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grito soluante e estrangulado, que me assustou da primeira vez e que mais tarde eu aguardava com ansiedade.Depois ficvamos esgotados. Ela adormecia muitas vezes em cima de mim. Eu ouvia a serra no ptio, o chiar abafado pelas vozes altas dos marceneiros. Quando a serra emudecia, o barulho do trnsito na Rua da Estao entrava debilmente na cozinha. Ao ouvir crianas a gritar e a brincar, sabia que as aulas tinham terminado e que passava da uma hora da tarde. O vizinho, que voltava para casa por volta do meio-dia, espalhava na varanda comida para os pssaros, e as pombas vinham e arrulhavam. Como te chamas?Perguntei-lhe no sexto ou no stimo dia. Ela tinha adormecido sobre mim e acabava de acordar. At ento, evitara dirigir-me a ela na terceira pessoa, ou por tu.Ela sobressaltou-se. O qu? Como te chamas? Por que que queres saber? Olhou-me, desconfiada. Tu e eu... Sei o teu apelido, mas no o nome prprio. Quero saber o teu nome prprio. Qual o mal de...Ela riu-se. Nenhum, mido, no tem mal nenhum. Chamo-me Hanna. Continuou a rir-se, no parava, contagiou-me. Olhaste-me de um modo to estranho. Ainda estava meia-adormecida. Como te chamas tu?Pensava que ela j o sabia. Na altura, ainda no era usual levarmos as coisas da escola numa pasta; estava na moda lev-las debaixo do brao, e quando as pousava na mesa da cozinha, o meu nome estava escrito nas capas, nos cadernos e tambm nos livros, que aprendi a forrar com papel de embrulho e a colar-lhes uma etiqueta com o ttulo e o meu nome. Mas ela no tinha reparado nisso. Chamo-me Michael Berg. Michael, Michael, Michael. Ela experimentava o nome. O meu mido chama-se Michael, anda na universidade... No liceu. ...no liceu. Tem... dezassete anos?Fiquei orgulhoso pelos dois anos a mais que ela me dava, e assenti.

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...tem dezassete anos e, quando for grande, quer ser um famoso... Hesitou. No sei o que quero ser. Mas s um bom estudante. Pois sim.Disse-lhe que ela era mais importante para mim do que o estudo e a escola. Que gostaria tambm de vir mais vezes a casa dela. De qualquer maneira, vou chumbar. Vais chumbar que ano?Ela ergueu-se. Era a primeira conversa a srio que tnhamos um com o outro. O sexto ano do liceu. Faltei tempo de mais nos ltimos meses, quando estive doente. Ainda que quisesse passar de ano, teria que trabalhar como um estpido. Neste momento deveria estar na escola.Contei-lhe das minhas faltas. Fora. Atirou o cobertor para trs. Fora da minha cama. E no voltes nunca mais se no fizeres o teu trabalho. O teu trabalho estpido? Estpido? O que pensas que vender bilhetes e pic-los?Levantou-se, ficou nua, de p na cozinha, e imitou uma revisora. Abriu com a mo esquerda a pequena pasta com os maos de bilhetes e retirou, com o polegar da mesma mo em que tinha uma dedeira de borracha, dois bilhetes, balanou a direita para agarrar no punho da tenaz pendente do pulso, e furou duas vezes. Dois para Rohrbach.Largou a tenaz, estendeu a mo, agarrou numa nota, abriu, diante da barriga, a bolsa do dinheiro, guardou a nota, voltou a fechar a bolsa do dinheiro e tirou o troco da mquina das moedas. Quem que ainda no tem bilhete? Olhou-me. Estpido? Tu no sabes o que ser estpido.Eu estava sentado na beira da cama. Sentia-me atordoado. Lamento. Vou esforar-me. Mas no sei se vou conseguir, dentro de seis semanas acaba o ano lectivo. Vou tentar. Mas se no puder voltar a ver-te, no vou conseguir. Eu...Ia a dizer: Amo-te. Mas depois mudei de ideias. Ela talvez tivesse razo; com certeza que tinha. Mas no tinha o direito de exigir que eu estudasse e fazer com que isso fosse uma condio para tornar a v-la. No aguento deixar de te ver.

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O relgio no corredor deu a uma e meia. Tens que ir. Hesitou. A partir de amanh tenho o turno principal. At s cinco e meia. Nessa altura venho para casa e tambm podes vir. Se trabalhares antes.Estvamos de p, nus, frente um do outro, mas ela no me teria parecido mais severa vestida com o uniforme. Eu no compreendia a situao. F-lo-ia por mim? Ou por ela? Se o meu trabalho era estpido, o seu era extremamente estpido teria ficado ofendida com isto? Mas eu nem sequer tinha dito que o meu trabalho, ou o dela, eram estpidos. Ou ser que ela no queria um falhado como amante? Mas ser que eu era amante dela? O que que eu significava para ela? Vesti-me devagar e esperei que dissesse qualquer coisa. Mas ela no disse nada. Quando acabei de vestir-me, ainda estava nua; e quando na despedida a abracei, no reagiu.

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9.

Por que que fico to triste quando recordo aqueles tempos? Ser que a nostalgia da felicidade passada e eu fui feliz nas semanas seguintes, em que realmente trabalhei como um estpido e consegui passar de ano e nos ammos como se nada mais importasse no mundo. Ou ser pelo que soube depois, e que s mais tarde veio luz, mas j existia ento?Porqu? Por que razo, quando olhamos para trs, o que era bonito se torna quebradio, revelando verdades amargas? Por que razo se tornam amargas de fel as recordaes de anos felizes de casamento, quando se descobre que o outro tinha um amante durante todo aquele tempo? Por que no era possvel ter sido feliz numa situao assim? Contudo, fomos felizes! Por vezes, quando o final doloroso, a recordao trai a felicidade. Por que que a felicidade s verdadeira quando o para sempre? Por que que s pode ter um final doloroso quando j era doloroso, ainda que no tivssemos conscincia disso, ainda que o ignorssemos? Mas uma dor inconsciente e ignorada uma dor?Por vezes penso naqueles tempos e vejo-me a mim mesmo. Vestia os fatos elegantes que herdara de um tio rico, assim como vrios pares de sapatos de duas cores, pretos e castanhos, pretos e brancos, de camura e de couro liso. Tinha os braos demasiado longos e as pernas demasiado compridas, no para os fatos que a minha me se encarregara de me arranjar, mas para coordenar os meus prprios movimentos. Os meus culos eram um modelo barato, da Segurana Social, e o meu cabelo uma escova desgrenhada, fizesse o que fizesse. Na escola, no era bom nem mau aluno; penso que muitos professores nem sequer notavam a minha presena, e os alunos que davam o tom na turma tambm no. No gostava do meu aspecto, da minha roupa, da maneira como me movia, do que conseguia alcanar e do que valia. Mas

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estava cheio de energia, cheio de confiana em que um dia seria bonito e inteligente, superior e admirado, cheio de ansiedade por enfrentar pessoas e situaes novas.Ser isto aquilo que me entristece? O fervor e a crena, que ento me preenchiam, e o empenho em arrancar da vida uma promessa que jamais seria cumprida? Por vezes, vejo nos rostos das crianas e dos adolescentes o mesmo fervor e a mesma crena, e vejo-os com a mesma tristeza com que me recordo ento de mim. Ser esta tristeza mais do que a tristeza pura? ela que nos invade quando as boas recordaes se tornam quebradias ao vermos que aquela felicidade no se alimentava apenas da situao de momento, mas antes de uma promessa que no se cumpriu?Ela devia comear a chamar-lhe Hanna, tal como ento comecei a nome-la , ela no vivia, decerto, apenas de uma promessa, mas da situao do momento, nica e exclusivamente.Perguntei-lhe acerca do seu passado, e o modo como me respondeu foi como se remexesse numa arca poeirenta. Tinha crescido em Siebenburgen, viera para Berlim aos dezassete anos, tornara-se trabalhadora na Siemens e fora parar ao Exrcito com vinte e um anos. Depois do final da guerra sobrevivera custa de diferentes trabalhos. Do seu trabalho como revisora em elctricos, que j exercia havia alguns anos, gostava do uniforme, da paisagem que mudava constantemente e do cho que se movia debaixo dos ps. No gostava de mais nada. No tinha famlia. Tinha trinta e seis anos. Tudo isto foi contado por ela como se no falasse da sua prpria vida, mas da vida de outra pessoa que no conhecesse bem e que no lhe interessasse. Quando eu queria saber mais pormenores, muitas vezes j no se recordava, e no compreendia tambm por que razo eu me interessava em saber o que tinha acontecido aos seus pais, se tivera irmos, como tinha vivido em Berlim e o que fizera na tropa. Tanto o que queres saber, mido!O mesmo se passava com o futuro. Naturalmente, eu no tencionava casar e ter filhos. Mas identificava-me mais com o Julien Sorel da Madame de Renal do que com a Mathilde de La Mole. Preferia ver, no final, Flix Krull nos braos da me do que nos da filha. A minha irm, que estudava Filologia e Germnicas, falou uma vez, mesa, da polmica acerca do romance entre Goethe e a Frau von Stein, e eu defendi-o com nfase, para espanto de toda a famlia. Imaginava como seria a nossa relao daqui a cinco ou dez anos. Perguntei a Hanna como a imaginava. Ela nem sequer queria pensar na excurso de bicicleta que lhe propusera fazer durante as frias da Pscoa.

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Poderamos fazer-nos passar por me e filho e alugar um quarto para os dois e ficarmos juntos a noite inteira. curioso que esta ideia e esta sugesto no me tivessem parecido ridculas. Se viajasse com a minha me, teria lutado para ter um quarto s para mim. Ir com a minha me ao mdico, ou comprar um casaco novo, ou ela ir-me buscar quando regressava de uma viagem, parecia-me j pouco prprio para a minha idade. Quando eu ia com ela na rua e encontrvamos camaradas da escola, tinha medo que eles achassem que eu era um filhinho da mam. Mas se me vissem com a Hanna, que podia ser minha me embora fosse dez anos mais nova do que ela, no me importava nada. Tinha mesmo orgulho nisso.Hoje em dia, quando vejo uma mulher de trinta e seis anos, acho-a jovem. Mas quando vejo um rapaz de quinze, vejo uma criana. Fico espantado com a confiana que a Hanna me deu. O meu sucesso escolar fez com que os professores me notassem e deu-me a segurana do seu respeito. As raparigas que encontrava, notavam e gostavam que eu no tivesse medo delas. Sentia-me bem no meu corpo.A recordao que ilumina e fixa com preciso os primeiros encontros com Hanna, faz com que as semanas entre a nossa conversa e o fim do ano lectivo se confundam. Uma razo para isso a regularidade com que nos encontrvamos. Um outro motivo que, at ento, eu nunca tivera dias to intensos, a minha vida nunca tinha decorrido to rpida e densa. Quando me lembro do trabalho durante aquelas semanas, como se me tivesse sentado escrivaninha e l tivesse ficado at recuperar tudo o que tinha perdido durante o tempo da ictercia, aprendendo todos os vocbulos, lendo todos os textos, demonstrando todos os teoremas matemticos e combinando todas as frmulas qumicas. J tinha lido muito sobre a Repblica de Weimar e o III Reich quando estivera de cama. Tambm os nossos encontros se converteram, na minha recordao, num nico e longo encontro. Depois da nossa conversa, vamo-nos sempre tarde: quando ela tinha o turno da noite, das trs s quatro e meia; caso contrrio, s cinco e meia. Em minha casa jantvamos s sete horas, e de incio a Hanna obrigava-me a ser pontual. Mas, depois de algum tempo, a hora e meia parecia-nos curta, e comecei a inventar desculpas para no ir jantar a casa.E isto por causa da leitura em voz alta. No dia que se seguiu nossa conversa, a Hanna quis saber o que eu estudava na escola. Falei acerca dos poemas de Homero, dos discursos de Ccero e contei-lhe a histria de Hemingway sobre o velho e a sua luta com o peixe e com o mar. Ela queria ouvir como soavam o latim e o grego, e fiz-lhe leituras de A Odisseia e das Catilinrias.

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Tambm aprendes alemo? O que que queres dizer com isso? S aprendes lnguas estrangeiras, ou tens ainda alguma coisa a aprender da tua prpria lngua? Lemos textos.Enquanto estive doente, a turma tinha lido Emlia Galotti e Intriga e Amor, de Schiller, e em breve teria de entregar um trabalho acerca dos dois livros. Por isso tinha que l-los, mas deixava isso sempre para o fim. E ento era demasiado tarde, eu estava cansado, e no dia seguinte j no me recordava do que lera e tinha que comear outra vez. L-me em voz alta! L tu mesma, eu trago-tos. Tens uma voz to bonita, mido, gosto mais de te ouvir ler do que ser eu prpria a ler. Ora, no sei.Mas quando cheguei no dia seguinte e quis beij-la, desviou a cara. Primeiro, tens que ler em voz alta.Estava a falar a srio. Tive que lhe ler alto Emlia Galotti durante meia hora antes de me meter no duche e me levar para a cama. Agora, at gostava de tomar banho. O desejo com que chegava, esvaa-se durante a leitura. Ler desta maneira um texto, de maneira a conseguir diferenciar minimamente os diferentes personagens e dar-lhes vida, requer uma certa concentrao. Debaixo do duche, voltava-me o desejo. Ler alto, tomar banho, amar e ficar ainda um bocadinho deitados ao lado um do outro, tornou-se ento no ritual dos nossos encontros.Ela era uma ouvinte atenta. O seu riso, o seu fungar de desprezo e as interjeies indignadas ou aprovadoras, no deixavam nenhuma dvida de que ela seguia o enredo com interesse e que considerava, tanto a Emlia como a Luise, duas garotas tontas. A impacincia com que por vezes me pedia que continuasse a ler, vinha da esperana que os disparates delas em breve terminassem finalmente. Parece mentira!Por vezes, entusiasmava-me e apetecia-me continuar a ler. Quando os dias se tornaram mais longos, lia durante mais tempo, de modo a estar com ela na cama ao crepsculo. Quando ela adormecia sobre mim, e a serra se calava no ptio, os melros cantavam e das cores das coisas na cozinha apenas restavam tons mais claros e mais escuros sentia-me completamente feliz.

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10.

No primeiro dia das frias da Pscoa, levantei-me s quatro horas. A Hanna tinha o turno da madrugada. Ia de bicicleta s quatro e um quarto para o depsito dos elctricos, e s quatro e meia saa com o elctrico para Schwetzingen. Tinha-me dito que, na ida, o carro elctrico ia muitas vezes vazio. Apenas se enchia na volta.Entrei na segunda paragem. A segunda carruagem estava vazia, a Hanna estava na primeira ao lado do condutor. Hesitei, no sabendo se deveria sentar-me na carruagem da frente ou na de trs, e decidi-me pela de trs. Prometia mais privacidade, um abrao, um beijo. Mas Hanna no veio. Certamente viu-me espera na paragem e a entrar. Era o motivo pelo qual o elctrico parara. Mas ficou ao lado do condutor, a falar e a gracejar. Via-os perfeitamente.Paragem aps paragem, o elctrico continuava. No havia ningum em p espera. As ruas estavam vazias. O sol ainda no tinha nascido, e debaixo do cu branco tudo era banhado por uma luz plida: as casas, os carros estacionados, as rvores carregadas de folhas verdes e os arbustos floridos, os depsitos do gs e, ao longe, as montanhas. O elctrico ia devagar; certamente porque o horrio tinha sido feito contando com os tempos de paragem, e o condutor tinha que reduzir a velocidade para no chegar ao destino antes de tempo. Senti-me preso naquele lento carro elctrico. Primeiro continuei sentado, depois fui para a plataforma da frente e tentei fixar o olhar em Hanna, para que ela sentisse o meu olhar nas costas. Passado algum tempo, virou-se e fixou-me casualmente. Depois continuou a falar com o condutor. A viagem prosseguiu. Aps Eppelheim, os carris no iam pela estrada, mas paralelamente sobre uma barreira de cascalho. O elctrico comeou a andar mais depressa, com o constante e caracterstico chiar. Eu sabia que o caminho

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ia passar por vrias aldeias at chegar a Schwetzingen. Mas sentia-me excludo, expulso do mundo normal em que todas as pessoas viviam, trabalhavam e amavam. Como se tivesse sido condenado a uma viagem sem rumo nem fim, numa carruagem vazia.Vi ento uma paragem, um pequeno abrigo em campo aberto. Puxei o cordo com que se d ao condutor o sinal para parar ou para andar. O elctrico parou. Nem Hanna nem o condutor tinham olhado para mim ao ouvirem a campainha. Quando sa, pareceu-me v-los troarem de mim. Mas no tinha a certeza. Depois o elctrico continuou, e fiquei a olh-lo at desaparecer primeiro numa depresso e depois atrs de uma colina. Estava entre a barreira e a estrada, rodeado de campos, rvores de fruto e, mais ao longe, estufas. Soprava uma aragem fresca. O ar estava cheio com o cantar dos pssaros. Por cima das colinas, o cu branco brilhava em tons rosados.A viagem no elctrico fora um pesadelo. Se eu no recordasse de uma maneira to ntida o que aconteceu depois, certamente sentir-me-ia tentado a pensar que tinha sido um pesadelo. Estar em p na paragem, ouvir os pssaros e ver o sol nascer foi como que um despertar. Mas despertar de um pesadelo nem sempre significa alvio. Pode mesmo acontecer que, ao despertarmos, nos apercebamos de quo terrvel era o que se sonhou, de que o sonho nos revelou uma pavorosa verdade. Pus-me a caminho de casa, as lgrimas corriam-me, e s consegui parar de chorar quando cheguei a Eppelheim.Fiz a p o caminho para casa. Tentei apanhar boleia, sem xito. Quando tinha percorrido j metade do caminho, passou por mim o elctrico. Estava cheio. No vi a Hanna.Esperei-a ao meio-dia no patamar das escadas, triste, receoso e irado. Faltaste outra vez escola? Estou de frias. O que que se passou hoje de manh? Ela abriu a porta e eu segui-a at cozinha. O que que se deveria ter passado hoje de manh? Por que que fingiste que no me conhecias? Eu s queria... Eu que fingi que no te conhecia?Ela voltou-se e olhou-me friamente nos olhos. Tu que no me quiseste reconhecer. Entras na segunda carruagem quando vs perfeitamente que eu estou na primeira. E por que razo pensas que no primeiro dia de frias apanho o elctrico das quatro e meia para Schwetzingen? Apenas porque queria surpreender-te, porque pensei que irias ficar feliz. Subi para a segunda carruagem porque...

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Pobrezinho... J levantado s quatro e meia da manh, e ainda porcima nas frias.Nunca a tinha sentido to irnica. Ela abanou a cabea. Sei l por que razo querias ir a Schwetzingen. Sei l por que que no querias reconhecer-me. um problema teu, no meu. E agora, importas-te de te ires embora?No consigo descrever quo indignado eu estava. No justo, Hanna. Tu sabias, tu tinhas de saber que eu s apanhei o elctrico por tua causa. Como que podes acreditar que no queria reconhecer-te? Se no quisesse reconhecer-te, no teria apanhado o elctrico. Ora, deixa-me em paz. J te disse, o que fazes problema teu e nomeu.Tinha-se colocado de tal maneira que a mesa da cozinha estava entre ns; o seu olhar, a sua voz e os seus gestos tratavam-me como um intruso e obrigavam-me a ir embora.Sentei-me no sof. Ela tinha-me tratado mal, e eu tinha ido pedir-lhe explicaes. Mas nem sequer conseguira comear a explicar-me. Em vez disso, era ela que me atacava. E comecei a ficar inseguro. Talvez ela tivesse razo, no objectiva mas subjectivamente. Ser que ela me interpretara mal? T-la-ia magoado, ainda que sem inteno; ou, antes pelo contrrio, t-la-iarealmente magoado? Lamento, Hanna. Correu tudo mal. No quis ofender-te, mas pareceque... Parece? Achas ento que parece que me ofendeste? Tu no conseguirias ofender-me mesmo que quisesses. E vais-te finalmente embora, ou no? Venho do trabalho, quero tomar um banho, quero descansar.Olhou-me de um modo imperativo. Como no me levantei, encolheu os ombros, abriu a torneira da banheira e despiu-se.Ento levantei-me e fui-me embora. Pensei que me ia embora para sempre. Mas meia hora mais tarde estava outra vez diante da sua porta. Ela deixou-me entrar, e eu assumi a culpa de tudo. Reconheci ter agido de uma maneira inconsciente, sem considerao, egosta. Compreendia que ela no estivesse ofendida por que eu nunca a conseguiria ofender, mesmo que quisesse. Compreendia que, ainda que eu no conseguisse ofend-la, o meu comportamento tinha sido intolervel. Por fim, at fiquei feliz quando confessou que eu a magoara. Ou seja, que no lhe fora to indiferente nem to insignificante como ela pretendia. Perdoas-me?

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Assentiu com a cabea. Amas-me? Voltou a assentir. A banheira ainda est cheia. Vem, eu lavo-te.Mais tarde, perguntei-me se ela tinha deixado a gua na banheira porque sabia que eu voltaria. Se teria tirado a roupa porque sabia que a sua imagem no me sairia da cabea e que isso me traria de volta. Como se ela tivesse apenas querido ganhar um jogo de poder. Quando acabmos de nos amar, deitados na cama um ao lado do outro, contei-lhe por que entrara na segunda carruagem e no na primeira, e troou de mim. At no elctrico queres faz-lo? Ai, mido, mido!Era como se, na realidade, o motivo da nossa discusso no tivesse qualquer importncia.Mas o seu resultado foi importante. Eu no tinha apenas perdido essa discusso. Rendera-me aps uma breve luta, quando ela ameaou repelir-me, privar-me dela. Nas semanas seguintes, nem sequer fiz meno de lutar. Cada vez que ela me ameaava, eu rendia-me imediatamente sem condies. Assumia todas as culpas. Confessei erros que no tinha cometido, assumi intenes que nunca tivera. Quando ela se tornava fria e dura, suplicava que voltasse a ser boa para mim, que me perdoasse, que me amasse. Tinha por vezes a sensao de que ela prpria sofria com a sua frieza e dureza. Como se ansiasse pelo calor das minhas desculpas, protestos e splicas. Por vezes tinha a sensao de que ela s queria impor-se. Mas, de qualquer maneira, eu no tinha escolha.No conseguia falar com ela acerca disso. Falar das nossas discusses s levava a novas discusses. Uma ou duas vezes escrevi-lhe longas cartas. Mas ela no reagia, e quando lhe perguntava se as tinha lido, ela replicava: J comeas outra vez?

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11.

No aconteceu que eu e a Hanna, depois do primeiro dia das frias da Pscoa, no tivssemos continuado a ser felizes. Pelo contrrio, nunca fomos to felizes como durante aquelas semanas de Abril. Por mais deslocada que fosse a nossa primeira discusso e todas as outras discusses, o certo que tudo o que nos distrasse do ritual da leitura em voz alta, do banho, do amarmo-nos e do ficarmos deitados um ao lado do outro, fazia-nos bem. Alm disso, ao acusar-me de ter feito como se no a conhecesse, comprometera-a. Agora, se eu queria mostrar-me com ela, no tinha o direito de me impedir. Ela no poderia sujeitar-se a ouvir: Ento tu no querias mesmo ser vista comigo. Por isso, na primeira semana depois da Pscoa fomos passear de bicicleta quatro dias a Wimpfen, Amorbach e Miltenberg.J no sei o que disse aos meus pais. Que faria a viagem com o meu amigo Matthias? Com um grupo? Que ia visitar um antigo companheiro da escola? Suponho que a minha me ficou preocupada, como sempre, e o meu pai achou, como sempre, que no havia motivo para preocupaes. No acabara eu de passar de ano, coisa que ningum esperara de mim?Durante a doena no tinha gasto a mesada, mas no era suficiente para pagar tambm a despesa da Hanna. Por isso decidi vender a minha coleco de selos na loja de filatelia perto da Igreja do Esprito Santo. Era o nico estabelecimento cuja montra anunciava a compra de coleces. O vendedor percorreu os meus lbuns e ofereceu-me sessenta marcos. Fiz-lhe notar o meu tesouro, um selo egpcio sem bordo dentado, com uma pirmide, que tinha um preo de catlogo de quatrocentos marcos. Ele encolheu os ombros. Se eu estava to agarrado coleco, era melhor que ficasse com ela. Teria autorizao para a vender? O que diziam disso os meus pais? Tentei negociar. Se o

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selo com a pirmide no era assim to valioso, eu ficaria com ele. Ento ele s poderia dar-me trinta marcos. Ento o selo da pirmide era valioso? No fim, recebi setenta marcos. Senti-me enganado mas isso no me importava.No era s eu que tinha febre de viajar. Para meu espanto, tambm a Hanna estava impaciente dias antes da viagem. No parava de pensar no que deveria levar e enchia e esvaziava os alforges da bicicleta e a mochila que lhe arranjara. Quando quis mostrar-lhe no mapa o caminho que tinha pensado fazer, no quis ouvir nem ver nada. Agora estou excitada de mais. Confio em ti, mido.Partimos na segunda-feira de Pscoa. O sol brilhava, e brilhou durante quatro dias. De manh estava fresco, durante o dia ficava calor, no demasiado para pedalarmos mas suficientemente quente para comermos ao ar livre. As florestas eram tapetes verdes, com tufos raiados de verde-amarelado, verde-claro, verde-garrafa, verde-azulado e verde escuro. Na plancie do Reno algumas rvores de fruto floriam j. As flores tinham acabado de abrir na floresta de Oden.Muitas vezes pedalvamos ao lado um do outro. Ento mostrvamos um ao outro o que amos vendo: um castelo, um pescador, um barco no rio, uma tenda, uma famlia caminhando em fila indiana na margem, um carro americano descapotvel. Quando eu queria mudar de direco ou de estrada, tinha de passar para a frente; ela no queria preocupar-se com direces nem com estradas. Quando no havia muito trnsito, umas vezes ela ia atrs de mim, outras ia eu atrs dela. Ela tinha uma bicicleta com raios, pedais e cremalheira tapados, e usava um vestido azul, com uma ampla saia que flutuava ao vento. Demorei um bocado at deixar de temer que a saia ficasse presa nos raios ou na cremalheira, e que ela casse. Depois, passei a gostar de a ver pedalar minha frente.Antes de partirmos, alegrara-me com a antecipao das noites que nos esperavam. Imaginara que nos amaramos, adormeceramos, acordaramos, amar-nos-amos outra vez, adormeceramos outra vez, acordaramos outra vez e assim sucessivamente, noite aps noite. Mas acordei apenas na primeira noite. Ela estava deitada com as costas viradas para mim, inclinei-me sobre ela e beijei-a, e ela deitou-se de costas, acolheu-me dentro dela e abraou-me. Meu mido, meu mido.Logo a seguir adormeci em cima dela. Nas outras noites dormimos de um sono s, cansados de viajar, do sol e do vento. Amvamo-nos de manh.Hanna no me deixou apenas a escolha das direces e das estradas. Encarregou-me de procurar as penses em que ficvamos, de nos inscrever

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como me e filho ela limitava-se a assinar e de escolher a comida nas ementas, no apenas para mim mas tambm para ela. Gosto de no me preocupar com nada.A nica discusso, tivemo-la em Amorbach. Acordei muito cedo, vesti-me em silncio e sa furtivamente do quarto. Queria trazer o pequeno-almoo para cima e procurar uma florista aberta e comprar-lhe uma rosa. Deixara-lhe um bilhete na mesinha de cabeceira: Bom dia! Fui buscar o pequeno-almoo, volto j ou algo parecido. Ao regressar, ela estava em p no quarto, meio-vestida, a tremer de raiva, com a cara branca. Como que pudeste ir simplesmente embora sem dizeres nada! Pousei o tabuleiro com o pequeno-almoo e a rosa e tentei abra-la. Hanna... No me toques.Ela tinha na mo o delgado cinto de couro com que cingia o vestido, deu um passo atrs e f-lo correr na minha cara. O meu lbio rebentou e senti um sabor a sangue. No me magoou. Eu estava muitssimo assustado. Ela voltou a levantar a mo.Mas no tornou a bater-me. Deixou pender a mo e o cinto e comeou a chorar. Nunca a tinha visto chorar. O seu rosto ficava todo deformado. Olhos abertos, boca aberta, lbios inchados depois das primeiras lgrimas, manchas vermelhas nas faces e no pescoo, sons guturais, semelhantes ao grito surdo que emitia quando nos amvamos. Ela estava ali em p e olhava-me por entre as lgrimas.Deveria t-la abraado. Mas no conseguia. No sabia o que fazer. Em minha casa no se chorava assim. No se batia, nem com a mo e nunca com um cinto de couro. Falava-se. Mas o que deveria eu dizer?Ela deu dois passos em direco a mim, atirou-se ao meu peito, bateu-me com os punhos fechados, agarrou-se a mim. Pude ento abra-la. Os seus ombros tremiam, ela batia com a testa no meu peito. Depois, suspirou profundamente e aninhou-se nos meus braos. Vamos tomar o pequeno-almoo? Afastou-se de mim. Meu Deus, mido, como tu ests!Foi buscar uma toalha hmida e limpou-me a boca e o queixo. E a tua camisa est cheia de sangue.Tirou-me a camisa, depois as calas e depois despiu-se, e ammo-nos. O que que realmente se passou? Por que que estavas to furiosa?

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Estvamos deitados ao lado um do outro, to satisfeitos e contentes que pensei que agora tudo iria esclarecer-se. O que que se passou, o que que se passou... Fazes sempre perguntas to tolas! Tu no podias simplesmente ir-te assim embora. Mas eu at te deixei um papel... Um papel?Sentei-me. J no estava ali, na mesa de cabeceira, onde eu o tinha deixado. Levantei-me, procurei-o ao lado e debaixo da mesa de cabeceira, debaixo da cama, dentro da cama. No o encontrei. No compreendo. Eu escrevi-te um recado num papel dizendo que ia buscar o pequeno-almoo e que voltava logo. Sim? No vejo nenhum papel. No acreditas em mim? Gostaria muito de acreditar em ti. Mas no vejo nenhum papel.E assim acabou a discusso. Teria o papel sido levado por uma corrente de ar para algum lado, ou para nenhum lado? Teria sido um mal-entendido: a sua ira, o meu lbio rebentado, a sua cara convulsa, o meu desamparo?Deveria ter continuado a procurar o papel, a causa da ira da Hanna, a causa do meu desamparo? L-me um bocadinho, mido! Ela encostou-se a mim, e eu peguei no Taugenichts de Eichendorff e continuei onde ficara da ltima vez. Taugenichts era um livro fcil para ler alto, mais fcil do que Emlio, Galotti e Intriga e Amor. Hanna seguia outra vez com um interesse tenso. Gostava dos poemas intercalados na narrativa. Gostava dos disfarces, dos equvocos, do enredo e das ciladas em que o heri se envolve em Itlia. Ao mesmo tempo, levava-lhe a mal que fosse um vagabundo, que no fizesse nada, que no soubesse fazer nem quisesse aprender nada. Oscilava entre esses sentimentos e, mesmo horas depois de eu ter terminado a leitura, poderia fazer perguntas: Qual o mal de ser empregado da Alfndega?.Uma vez mais, tornei a espraiar-me tanto no relato da nossa discusso que tambm quero falar da nossa felicidade. A discusso tornou a nossa relao mais ntima. Eu tinha-a visto chorar, a Hanna que chorava era-me mais prxima do que a Hanna que apenas era forte. Comeou a mostrar um lado mais doce, que eu desconhecia. No parou de observar e de tocar suavemente o meu lbio rebentado, at que sarou.Comemos a amar-nos de outra maneira. Durante muito tempo tinha-me deixado levar por ela, pela sua maneira de me possuir. Depois aprendi

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tambm a possu-la. Durante, e depois da nossa viagem, comemos a amar-nos de uma maneira que ultrapassava a simples posse um do outro.Tenho um poema que escrevi ento. Como poema, no vale nada. Nesse tempo, gostava muito de Rilke e de Benn, e reconheo que queria imitar ambos ao mesmo tempo. Mas reconheo tambm como estvamos prximos. Aqui est o poema:

Quando nos abrimos tu a mim e eu a ti,quando mergulhamos tu em mim e eu em ti,quando perecemos tu em mim e eu em ti.Apenas ento eu sou eu e tu s tu.

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12.

No tenho memria das mentiras que contei aos meus pais por causa da viagem com a Hanna, mas lembro-me do preo que tive de pagar para poder ficar sozinho em casa durante a ltima semana de frias. J no sei para onde viajaram os meus pais, a minha irm mais velha e o meu irmo mais velho. O problema era a minha irm mais nova. Ela tinha que ir para casa de uma amiga. Mas se eu ficasse em casa, ela tambm quereria ficar em casa comigo. Isto no o queriam os meus pais. Por isso, eu tambm teria que ir para casa de um amigo.Hoje, acho notvel que os meus pais estivessem dispostos a deixar que um rapaz de quinze anos ficasse sozinho em casa durante uma semana. Teriam eles notado a auto-suficincia que nascera em mim ao conhecer a Hanna? Ou limitaram-se a registar que eu passara de ano apesar dos meses da doena, tendo concludo que me tornara mais responsvel e digno de confiana do que at ento deixara transparecer? Tambm no me lembro de alguma vez ter sido obrigado a prestar contas das muitas horas que ento passava com a Hanna. Os meus pais pareciam acreditar que eu, novamente saudvel, queria passar muito tempo com os amigos, que estudava e preenchia o meu tempo livre com eles. Para alm disso, ter quatro filhos obra, no podendo os pais estar atentos a todos ao mesmo tempo, mas concentrando-se naquele que cria mais problemas num determinado momento. Eu criara problemas durante demasiado tempo; os meus pais estavam aliviados por me verem curado e com o ano aprovado.Quando perguntei minha irm mais nova o que que ela queria em troca de ter que ir para casa da amiga enquanto eu ficava em casa, exigiu calas de ganga, dizamos ento blue jeans ou calas cravadas, e um nicki,

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um pullover aveludado. Pareceu-me razovel. Naquele tempo, os jeans ainda eram algo de especial, estavam muito na moda, e para alm disso prometiam a libertao da roupa com padro de espinhas de peixe e de vestidos de tecidos estampados com grandes flores. Tal como eu tinha que usar a roupa do meu tio, a minha irm mais nova tinha que vestir a roupa da mais velha. Mas eu no tinha dinheiro. Ento rouba-os! exclamou a minha irm mais nova, olhando-me indiferente.Foi incrivelmente fcil. Experimentei vrios jeans, levei para o gabinete de prova tambm um par com o tamanho dela, e sa da loja com eles enrolados em volta da barriga, por debaixo das largas calas de fazenda. O nicki, roubei-o num dos grandes armazns. Um dia, a minha irm e eu vaguemos na seco de moda feminina, de quiosque em quiosque, at encontrarmos o quiosque certo e o nicki certo. No dia seguinte, atravessei a seco com passos largos e apressados, agarrei no pullover, escondi-o por debaixo do casaco e sa. Um dia depois, roubei uma camisa de dormir de seda para a Hanna, mas fui visto pelo segurana e corri como se defendesse a minha vida safei-me com muito esforo. Estive anos sem voltar a entrar naqueles grandes armazns.Depois daquelas noites, as que passmos juntos durante a viagem, todas as noites ansiava por a sentir ao meu lado, aninhar-me nela, a minha barriga no seu rabo e o meu peito nas suas costas, pr a mo nos seus peitos, procur-la com o brao ao acordar de noite, encontr-la, passar uma perna por cima das suas e pressionar o meu rosto no seu ombro. Uma semana sozinho em casa significava sete noites com a Hanna.Uma tarde, convidei-a e cozinhei para ela. Lembro-me dela em p na cozinha quando eu acabava de dar os ltimos retoques na comida. Diante da porta de correr, entre a sala de jantar e a sala de estar, quando eu trazia a comida. Sentada mesa redonda, no lugar onde o meu pai habitualmente se sentava. Observava tudo em redor.O seu olhar tocava tudo, os mveis de estilo Biedermeier, o piano de cauda, o velho relgio de p, os quadros, as estantes com os livros, os pratos e os talheres na mesa. Deixei-a sozinha para acabar de fazer a sobremesa, e quando voltei no estava sentada mesa. Tinha ido de um quarto para o outro e estava em p no escritrio do meu pai. Encostei-me silenciosamente ombreira da porta e observei-a,. Ela deixou vaguear o olhar pelas estantes que forravam as paredes, como se lesse um texto. Depois dirigiu-se para uma estante, passou lentamente o indicador da mo direita, altura do peito,

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pelas lombadas dos livros, foi para a outra estante, continuou a passar o dedo, lombada a lombada, e percorreu toda a diviso. Ficou parada janela, olhou para a escurido, para o reflexo das estantes e para o seu reflexo. uma das imagens que me ficaram da Hanna. Memorizei-as, consigo project-las numa tela interior e olh-las, imutveis, sem desgaste. Por vezes no penso nelas durante muito tempo. Mas acabam sempre por me voltar ao pensamento, e pode ento acontecer ter de as projectar repetidamente umas atrs das outras na minha tela interior, e ter que as olhar. Uma delas a Hanna que cala as meias na cozinha. Outra a Hanna em p diante da banheira, segurando o toalho com os braos afastados. Uma outra a Hanna de bicicleta, com a saia flutuando ao vento. Depois, a imagem da Hanna no escritrio do meu pai, com um vestido de riscas azuis e brancas, o que se chamava na altura um vestido camiseiro. F-la parecer mais nova. Passou o dedo pelas lombadas dos livros e olhou para fora da janela. Agora volta-se para mim, suficientemente depressa para que a sua saia baile por um breve momento em volta das pernas, antes de tornar a ficar pendurada, direita. Tem um olhar cansado. Todos estes livros foram escritos pelo teu pai, ou ele apenas os leu? Eu sabia de um livro escrito pelo meu pai sobre Kant, e de um outrosobre Hegel; procurei-os, encontrei-os e mostrei-lhos. L-me um bocadinho. No queres, mido? Eu...No me apetecia, mas tambm no queria contrari-la. Peguei no livro do meu pai sobre Kant e li alto uma passagem acerca de analtica e dialctica, que nem eu nem ela compreendemos. Chega?Olhou-me como se tivesse compreendido tudo, ou como se no importasse o que se compreende e o que no se compreende. Um dia tambm irs escrever este tipo de livros? Abanei a cabea. Irs escrever outro tipo de livros? No sei. Vais escrever peas de teatro? No sei, Hanna.Assentiu com a cabea. Depois comemos a sobremesa e fomos para casa dela. Gostaria muito de ter dormido com ela na minha cama, mas ela no quis. Sentia-se uma intrusa em minha casa. No o disse por palavras, mas pela maneira como estava em p na cozinha ou perto da porta de correr, como foi

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de quarto em quarto, como percorreu os livros do meu pai e como estivera sentada mesa de jantar.Ofereci-lhe a camisa de dormir de seda. Era da cor das beringelas, tinha mangas curtas, deixava os ombros e os braos livres e chegava aos tornozelos. Brilhava e refulgia. Hanna gostou muito, riu-se e ficou feliz. Olhou-se de alto a baixo, voltou-se, danou alguns passos, olhou-se no espelho, contemplou brevemente o seu reflexo e continuou a danar. Tambm esta uma imagem que me ficou da Hanna.

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13.

Sempre senti o comeo de um ano lectivo como um corte no tempo. A mudana do sexto para o stimo ano trouxe uma modificao especialmente incisiva. A minha turma foi desfeita e distribuda por trs turmas. Muitos alunos no tinham conseguido passar o fosso do Ciclo para o Liceu e, assim, quatro pequenas turmas foram concentradas em trs grandes.O liceu que eu frequentava, fora exclusivamente masculino durante muito tempo. Quando comeou a admitir tambm raparigas, estas eram to poucas que no foram distribudas igualmente pelas turmas paralelas, mas concentradas numa s; mais tarde, em duas ou trs, at que constituram um tero do total de alunos. Nesse ano no havia raparigas suficientes para que algumas fossem destinadas minha antiga turma. ramos a quarta turma paralela, uma turma exclusivamente masculina. Por essa razo, foi dissolvida e dividida, o que no aconteceu a nenhuma das outras trs.Apenas soubemos disso no princpio do novo ano lectivo. O reitor reuniu-nos numa sala de aulas e explicou-nos que a nossa turma fora extinta e a maneira como tnhamos sido distribudos. Juntei-me a seis companheiros e dirigi-me pelos corredores vazios para a nova sala de aula. Ficmos com os lugares que sobravam; eu sentei-me na segunda fila. Eram lugares separados, mas dois a dois, e divididos em trs filas. Fiquei sentado na do meio. minha esquerda tinha um colega da minha antiga turma, Rudolf Bargen, um rapaz calmo, bastante entroncado, jogador de xadrez e de hquei, em quem se podia confiar e com o qual pouco contacto tivera antes, mas que em breve iria tornar-se um bom amigo. minha direita, do outro lado do corredor, estavam sentadas as raparigas.A minha vizinha era a Sophie. Cabelos castanhos, olhos castanhos, bronzeada pelo sol, com pelinhos dourados nos braos nus. Quando me sentei e olhei em volta, ela sorriu-me.

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Retribu-lhe o sorriso. Sentia-me bem, alegrava-me com o incio das aulas, com a minha nova turma, e com as raparigas. Tinha observado os meus companheiros do sexto ano: com ou sem raparigas na turma, eles tinham medo delas, evitavam-nas e gabavam-se frente delas, ou adoravam-nas. Eu conhecia as mulheres e sabia como comportar-me e ser amigo. As raparigas gostavam disso. Na nova turma, eu iria entender-me bem com elas, e por isso iria ser bem recebido pelos rapazes.Sentir-se-o todos assim? Quando era novo, sentia-me sempre demasiado confiante ou demasiado inseguro. Ou achava que era um ser totalmente incapaz, insignificante e intil, ou acreditava que era um ser sobredotado, a quem tudo saa obrigatoriamente bem. Quando me sentia seguro, ultrapassava as maiores dificuldades. Mas bastava o mais pequeno fracasso para me convencer da minha inutilidade. O recuperar da segurana nunca era resultado do sucesso; todo o sucesso ficava lastimavelmente muito aqum de tudo o que esperava do meu rendimento e esperava sempre que os outros me reconhecessem. E, dependendo do modo como me sentia, assim o meu sucesso me dava orgulho ou me parecia insuficiente. Com a Hanna, senti-me bem durante semanas apesar das nossas discusses, apesar de ela me evitar e de me humilhar repetidamente. E assim, tambm aquele Vero comeou bem na nova turma.Revejo a sala de aula: frente, direita, a porta; na parede do mesmo lado, a rgua de madeira com os cabides; esquerda, uma srie de janelas com vista para o Heiligenberg, e, quando estvamos janela durante o recreio, vamos em baixo a estrada, o rio e os prados da outra margem; frente o quadro, o cavalete de suporte dos mapas e os diagramas e a mesa e a cadeira do professor sobre um estrado com um p de espessura. As paredes estavam pintadas com tinta de leo amarela at altura da cabea, e por cima de branco; do tecto pendiam duas lmpadas esfricas, leitosas. A sala no tinha nada de suprfluo, nem quadros, nem plantas, nem um lugar sobrante, nem um armrio com livros e cadernos esquecidos ou giz de cor. Quando o olhar vagueava, vagueava para fora da janela ou furtivamente para a vizinha ou para o vizinho. Quando Sophie notava que eu a observava, encarava-me e sorria-me. Berg, o facto de o nome Sophia ser grego, no motivo para estudar a sua vizinha durante as aulas de Grego. Traduza!Estvamos a traduzir A Odisseia. Tinha-a lido em alemo, adorara-a e ainda hoje a adoro. Quando chegava a minha vez, precisava apenas de segundos para me situar e comear a traduzir. Quando o professor fez troa de mim e da Sophie e a turma acabou de rir, gaguejei por causa de outra coisa. Nausica, igual aos imortais em conhecimento e aparncia, virginal e com os braos plidos deveria ver nela a Hanna ou a Sophie? No podia ser as duas ao mesmo tempo.

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14.

Quando os motores dos avies param por avaria, isso no o fim do voo. Os avies no caem do cu como pedras. Os enormes avies de passageiros, com vrios motores, continuam a deslizar durante meia hora ou trs quartos de hora para depois se esmagarem ao tentarem aterrar. Os passageiros no notam nada. Voar com os motores parados no parece diferente de voar com eles a funcionar. mais silencioso, mas s um pouco mais silencioso: mais barulhento que os motores o vento que se quebra na fuselagem e nas asas. Num momento qualquer, ao olhar pela janela, a terra ou o mar esto ameaadoramente prximos, a no ser que as hospedeiras e os hospedeiros tenham fechado as cortinas para pr um filme a correr. Talvez os passageiros sintam que esse voo, um pouco mais silencioso, especialmente agradvel.Aquele Vero foi o voo planado do nosso amor. Ou melhor, do meu amor pela Hanna; no sei nada sobre o amor dela por mim.Mantivemos o nosso ritual de leitura, duche, amar e ficarmos deitados ao lado um do outro. Li Guerra e Paz, com todas as exposies de Tolstoi sobre a Histria, os grandes homens, a Rssia, o Amor e o Casamento devem ter sido quarenta ou cinquenta horas. Como sempre, a Hanna seguiu tensamente o desenrolar do livro. Mas j no era como antes: ela calou-se com os seus juzos, no tornou Natacha, Andrej ou Pierre em parte do seu mundo como havia feito com Luise e Emlia; agora era ela que entrava no mundo das personagens, com o assombro com que se faz uma viagem para longe ou se percorre um castelo onde nos permitido entrar, onde nos podemos demorar, com o qual nos familiarizamos sem contudo perdermos totalmente o receio. At ento, tinha-lhe lido o que eu j conhecia antes. Mas Guerra e Paz tambm era novo para mim. Fizemos juntos a longa viagem.

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Pensmos em nomes carinhosos um para o outro. Ela comeou por no me tratar apenas por mido, mas tambm por r ou por sapo, cachorrinho, seixo ou rosa, com diversos atributos e diminutivos. Eu continuei a chamar-lhe Hanna, at que ela um dia me perguntou: Em que animal pensas quando me tens nos braos? Fecha os olhos e pensa num animal.Fechei os olhos e pensei em animais. Estvamos deitados muito juntos, a minha cabea no seu pescoo, o meu pescoo nos seus seios, o meu brao direito debaixo dela e das suas costas e o esquerdo sobre o seu rabo. Acariciei com os braos e com as mos as suas costas largas, as suas coxas duras, as suas ndegas firmes, e senti os seus seios e a sua barriga no pescoo e no peito. Sentia a sua pele lisa e macia e debaixo dela adivinhava-se o seu corpo enrgico e familiar. Quando a minha mo pousou na sua ndega, senti um estremecimento dos msculos. Fez-me pensar no tremer da pele com que os cavalos tentam enxotar as moscas. Num cavalo. Num cavalo?Separou-se de mim, endireitou-se e encarou-me. Olhou-me horrorizada. No gostas? Cheguei a essa concluso porque to bom sentir-te lisa e macia e, ao mesmo tempo, firme e familiar. E porque a tua ndega estremece.Expliquei-lhe a minha associao de ideias. Ela observou o estremecer das suas ndegas. Um cavalo... ela abanou a cabea ...no sei...Isto era estranho nela. Ela era normalmente muito clara; as coisas, ou lhe pareciam bem ou lhe pareciam mal. Sob o seu olhar horrorizado, estive pronto, se isso fosse necessrio, a voltar atrs em tudo, a acusar-me e a pedir-lhe desculpa. Mas daquela vez tentei reconcili-la com a ideia do cavalo. Eu podia chamar-te cheval ou arre, cavalinho ou eguinha ou Bucefalazinha. Quando penso em cavalo, no penso em dentes de cavalo ou em cabea de burro ou em qualquer outra coisa que no te agrade, mas sim em algo bom, quente, macio, forte. Tu no s nenhuma coelhinha ou gatinha, ou tigre: a est algo, algo mau, que tu tambm no s.Ela deitou-se de costas, os braos debaixo da cabea. Endireitei-me e olhei-a. O seu olhar estava perdido no vazio. Depois de um bocado, virou a cara para mim com uma expresso de singular ternura. Sim, eu gosto que me chames cavalo, e tambm dos outros nomes de cavalos. Explicas-me os nomes?

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Uma vez fomos juntos ao teatro a uma cidade prxima e vimos Intriga e Amor. Era a primeira vez que a Hanna entrava num teatro gostou de tudo, da representao e do champanhe no intervalo. Coloquei o brao volta da sua cintura e no me importei com o que as pessoas pensassem de ns. Tive orgulho em no me importar. Mas ao mesmo tempo sabia que no teatro da minha cidade isso no me seria indiferente. Sab-lo-ia ela tambm?Ela sabia que durante o Vero a minha vida j no girava apenas em torno dela, da escola e do estudo. Passava cada vez com mais frequncia pela piscina antes de ir ter com ela ao fim da tarde. Encontrava-me ali com os companheiros e companheiras da escola, fazamos juntos os trabalhos de casa, jogvamos futebol e voleibol e s cartas e namoriscvamos. Ali se desenrolava a vida social da turma e, para mim, isso tinha muita importncia: estar presente e participar nela. O facto de, dependendo do trabalho da Hanna, eu chegar mais tarde do que os outros ou ir-me embora mais cedo, no era prejudicial para a minha imagem; antes pelo contrrio, tornava-me interessante. Eu tinha conscincia disso. Tambm sabia que no perdia nada; contudo, tive muitas vezes a sensao de que iria passar-se algo sabe Deus o qu exactamente quando eu no estivesse presente. Durante muito tempo no me atrevi a formular a pergunta: ser que eu preferia estar na piscina em vez de estar em casa da Hanna? Mas em Julho, no meu dia de anos, fizeram-me uma festa na piscina e tive que insistir muito para me deixarem ir embora. E quando cheguei a casa da Hanna, fui acolhido por uma Hanna esgotada e muito mal disposta. No sabia que eu fazia anos. Quando lhe perguntei pelo seu aniversrio e ela me respondeu que era no dia 21 de Outubro, no me perguntou quando era o meu. Tambm no estava mais mal disposta do que era o seu costume quando estava exausta. Mas a mim arreliava-me a sua m disposio, e apeteceu-me estar longe, na piscina, com os colegas de turma, com a ligeireza das nossas conversas, gracejos, jogos e namoricos. Tambm eu reagi com m disposio, e acabmos por discutir. Ento, a Hanna adoptou novamente a tctica de me ignorar. Voltou o medo de a perder e humilhei-me e pedi-lhe que me desculpasse at que se dignou aceitar-me. Mas sentia-me cheio de rancor.

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15.

Foi quando comecei a atraio-la. No que tivesse revelado os seus segredos ou a tivesse comprometido. No contei nada que devesse ter calado. Pelo contrrio, calei o que deveria ter contado. Soneguei a Hanna. Sei que sonegar algum uma variao discreta da traio. Por fora, no possvel ver se se est a sonegar algum, ou apenas a usar de discrio, a ser respeitador, a evitar situaes delicadas e aborrecimentos. Mas aquele que sonega sabe muito bem o que est a fazer. E do mesmo modo, o sonegar to grave numa relao como outras formas mais espectaculares de traio.J no sei quando soneguei a Hanna pela primeira vez. Da camaradagem nas tardes de Vero na piscina desenvolveram-se amizades. Alm do meu vizinho de carteira, que j conhecia da antiga turma, gostava muito de Holger Schluter, que tambm se interessava como eu por Histria e Literatura e com quem estabeleci rapidamente uma relao de confiana. O mesmo aconteceu com Sophie, que vivia a poucas ruas da minha casa e com a qual percorria parte do caminho para a piscina. Primeiro disse a mim mesmo que a confiana que tinha nos amigos ainda no era suficiente para que pudesse falar-lhes de Hanna. Depois, nunca surgia a ocasio apropriada, a hora apropriada, a palavra apropriada. Por fim, era j demasiado tarde para falar acerca dela, apresent-la juntamente com outros segredos de juventude. Dizia para mim mesmo que, se falasse agora sobre ela, iria despertar uma impresso errada; eu havia calado durante tanto tempo a nossa relao que os outros pensariam que era porque me envergonhava de Hanna e por ter a conscincia pesada. Mas eu sabia que estava a iludir-me, sabia que a atraioava ao fingir que contava aos amigos tudo o que era importante na minha vida, e sonegava a Hanna.

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Eles apercebiam-se de que eu no era totalmente sincero, o que no melhorava a situao. Uma tarde, durante o regresso a casa, eu e a Sophie fomos surpreendidos por uma chuvada e abrigmo-nos no Neuenheimer Feld debaixo do alpendre de uma casa de arrumos; nesse tempo ainda no existiam ali os edifcios da Universidade, mas sim campos e hortas. Caam raios e trovejava, choviam gotas espessas, grossas. Ao mesmo tempo, a temperatura desceu uns cinco graus. Estvamos cheios de frio e eu pus o brao em volta dela. Ouve!Ela no estava a olhar para mim, mas para fora, para a chuva. Sim? Estiveste doente com ictercia durante muito tempo. isso que te d tanto que fazer? Tens medo de nunca mais voltares a estar totalmente so?. Os mdicos disseram-te alguma coisa? E tens que ir todos os dias clnica para purificar o sangue ou para receberes transfuses?A Hanna como doena. Envergonhei-me. Mas no podia falar dela. No, Sophie. J no estou doente. Os valores do meu fgado so normais, e dentro de um ano at posso beber lcool se quiser, mas no quero. O meu...No queria referir-me a Hanna como um problema: o meu problema a Hanna. O motivo por que chego mais tarde ou me vou embora mais cedo outro. No queres falar sobre isso, ou queres falar mas no sabes como? No queria, ou no sabia como? Eu prprio no o sabia dizer. Masenquanto estvamos ali, debaixo do barulho da chuva, dos raios, dos troves claros e muito prximos, ao estarmos ali, ambos com frio e aquecendo-nos um pouco um ao outro, tive a sensao de que teria de falar a Sophie, precisamente a Sophie, acerca da Hanna. Talvez consiga falar sobre isso num outro dia. Mas esse dia nunca chegou.

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16.

Nunca soube o que a Hanna fazia quando no estava a trabalhar nem estava comigo. Se lhe perguntava, ignorava a pergunta. No tnhamos uma vida em comum; limitava-se a conceder-me no seu mundo o lugar que ela escolhia. Tinha de me conformar com isso. Se queria ter mais ou apenas saber mais, era um atrevimento. s vezes, quando nos sentamos particularmente felizes juntos, e eu perguntava, levado pela impresso de que agora tudo era possvel e permitido, ento poderia acontecer que ela evitasse a minha pergunta em vez de a repelir. Tanto que queres saber, mido!Ou pegava na minha mo e colocava-a sobre a sua barriga. Queres que ela fique furada?Ou contava pelos dedos. Tenho de lavar a roupa, tenho de passar a ferro, tenho de varrer, tenho de lavar, tenho de fazer compras, tenho de cozinhar, tenho de sacudir as ameixas, cont-las, traz-las para casa e coz-las rapidamente, seno o pequeno come-as agarrava no dedo mindinho da esquerda entre o polegar direito e o indicador ...seno o pequeno come-as sozinho.Tambm nunca a encontrei por acaso na rua ou numa loja ou no cinema onde, como contava, ia com prazer e com frequncia, e onde eu quis ir com ela nos primeiros meses, mas ela no. Por vezes falvamos acerca de filmes que ambos tnhamos visto. Estranhamente, ela ia ao cinema sem escolher o filme e via tudo, desde filmes alemes de guerra e folclricos at nouvelle vague, e eu gostava do que vinha de Hollywood, tanto m