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LIVRO - SISTEMAS JURÍDICOS NA VISÃO DE JUSFILÓSOFOS Segunda edição revisada e ampliada; SUMÁRIO INTRODUÇÃO 6 CAPÍTULO 1 TEORIA DA NORMA JURÍDICA 7 1.1 Modelo de Pragmática 7 1.1.1 Pragmática linguística 7 1.1.2 Direito e linguagem 8 1.1.3 Pragmática jurídica 9 1.1.4 Discurso e situação comunicativa 9 1.1.5 Modelo da pergunta e da resposta 10 1.1.6 Delimitação do objeto da análise aos discursos fundamentantes 10 1.1.7 Estrutura do discurso racional (ou fundamentante) 10 1.1.8 Formas de discurso 12 1.1.9 Propriedades pragmáticas fundamentais do discurso 12 1.2 Situação Comunicativa e Discurso Normativo 13 1.2.1 Dificuldades preliminares quanto ao objeto de análise 13 1.2.2 Operadores pragmáticos, conteúdo e condições de aplicação da informação normativa 13 1.3 Organização da Comunicação Normativa 15 1.3.1 Questão de validade 15 1.3.2 Localização da questão 17 1.3.3 Validade e imunização 18 1.3.4 Técnicas de validação 19 1.3.5 Questão da efetividade 20 1.3.6 Relação entre validade e efetividade: problema da norma inválida 22 1.3.7 Imperatividade das normas jurídicas 23 1.3.8 Ordem normativa do sistema 24 1.3.9 Caráter ideológico dos sistemas normativos 25 CAPÍTULO 2 CONCEITO DE SISTEMA NO DIREITO 27 2.1 Sistema e Direito 27 2.1.1 Ciência do Direito como sistema de significações normativas 27 2.1.2 Sistema filosófico do Direito 29 CAPÍTULO 3 TEORIA PURA DO DIREITO 32 3.1 Direito e Ciência 32 3.1.1 Normas jurídicas como objeto da Ciência Jurídica 32 3.1.2 Teoria jurídica estática e dinâmica 32 3.1.3 Norma jurídica e proposição jurídica 32 3.1.4 Ciência causal e ciência normativa 33 3.1.5 Causalidade e imputação: lei natural e lei jurídica 34

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LIVRO - SISTEMAS JURÍDICOS NA VISÃO DE JUSFILÓSOFOS

Segunda edição revisada e ampliada;

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 6

CAPÍTULO 1 TEORIA DA NORMA JURÍDICA 7

1.1 Modelo de Pragmática 7

1.1.1 Pragmática linguística 7

1.1.2 Direito e linguagem 8

1.1.3 Pragmática jurídica 9

1.1.4 Discurso e situação comunicativa 9

1.1.5 Modelo da pergunta e da resposta 10

1.1.6 Delimitação do objeto da análise aos discursos fundamentantes 10

1.1.7 Estrutura do discurso racional (ou fundamentante) 10

1.1.8 Formas de discurso 12

1.1.9 Propriedades pragmáticas fundamentais do discurso 12

1.2 Situação Comunicativa e Discurso Normativo 13

1.2.1 Dificuldades preliminares quanto ao objeto de análise 13

1.2.2 Operadores pragmáticos, conteúdo e condições de aplicação da informação normativa

13

1.3 Organização da Comunicação Normativa 15

1.3.1 Questão de validade 15

1.3.2 Localização da questão 17

1.3.3 Validade e imunização 18

1.3.4 Técnicas de validação 19

1.3.5 Questão da efetividade 20

1.3.6 Relação entre validade e efetividade: problema da norma inválida 22

1.3.7 Imperatividade das normas jurídicas 23

1.3.8 Ordem normativa do sistema 24

1.3.9 Caráter ideológico dos sistemas normativos 25

CAPÍTULO 2 CONCEITO DE SISTEMA NO DIREITO 27

2.1 Sistema e Direito 27

2.1.1 Ciência do Direito como sistema de significações normativas 27

2.1.2 Sistema filosófico do Direito 29

CAPÍTULO 3 TEORIA PURA DO DIREITO 32

3.1 Direito e Ciência 32

3.1.1 Normas jurídicas como objeto da Ciência Jurídica 32

3.1.2 Teoria jurídica estática e dinâmica 32

3.1.3 Norma jurídica e proposição jurídica 32

3.1.4 Ciência causal e ciência normativa 33

3.1.5 Causalidade e imputação: lei natural e lei jurídica 34

2

2

3.1.6 Ciência social causal e ciência social normativa 35

3.1.7 Diferenças entre o princípio da causalidade e o da imputação 35

3.1.8 Problema da liberdade 35

3.1.9 Outros fatos, salvo a conduta humana, como conteúdo da norma jurídica 36

3.1.10 Normas categóricas 37

3.1.11 Negação do dever-ser; o Direito como ideologia 37

CAPITULO 4 TEORIA PURA DO DIREITO 38

4.1 Estrutura Escalonada da Ordem Jurídica 38

4.1.1 Constituição 38

4.1.2 Legislação e costume 39

4.1.3 Lei e decreto 40

4.2 Direito Material e Direito Formal 40

4.3 “Fontes de Direito” 41

4.4 Criação do Direito, Aplicação do Direito e Observância ao Direito 42

4.5 Jurisprudência 42

4.5.1 Caráter constitutivo da decisão judicial 42

4.5.2 Relação entre decisão judicial e norma jurídica geral a aplicar 43

4.5.3 “Lacunas” do Direito 44

4.5.4 Criação de normas jurídicas gerais pelos tribunais; juiz como legislador; flexibilidade do Direito e segurança jurídica

44

4.5.5 Negócio jurídico 45

4.5.5.1 Negócio jurídico como fato criador de direito 45

4.5.5.2 Contrato 46

4.6 Administração 47

4.7 Conflitos entre Normas de Diferentes Escalões 47

4.7.1 Decisão judicial “ilegal” 47

4.7.2 Lei “inconstitucional” 48

4.7.3 Nulidade e anulabilidade 50

CAPÍTULO 5 DIREITO E JUSTIÇA 51

5.1 Conceito de Direito Subjetivo 51

5.1.1 Conceito de Direito Subjetivo como ferramenta técnica de apresentação 51

5.1.2 Aplicação do conceito de Direito Subjetivo a situações típicas 51

5.1.3 Aplicação do conceito de Direito Subjetivo a situações atípicas 52

5.1.4 Estrutura de um direito subjetivo 53

5.1.5 Discussão 53

CAPÍTULO 6 ESTRUTURAS LÓGICAS E SISTEMA DO DIREITO POSITIVO 55

6.1 Sistema Jurídico: Continuidade Normativa 55

6.2 Unidade do Sistema como Unidade Formal 56

6.3 Direito como Sistema Empírico 56

6.4 Dois Níveis de Sistema 57

6.5 Conceito de Sistema em Nível de Objetos 57

6.6 Unidade do Sistema na Ciência e no Direito 58

6.7 Sistema como Categoria Gnosiológica 59

6.8 Unicidade do Sistema 59

6.9 Conjuntos e Subconjuntos 60

6.10 Extralógico na Relação entre Sistemas 61

CAPÍTULO 7 ESTRUTURAS LÓGICAS E SISTEMA DE DIREITO POSITIVO 62

7.1 Consistência no Sistema da Ciência do Direito 62

7.2 Sistemas Não-isomórficos 62

7.3 Pluralismo das Dogmáticas ou Ciências Positivas 63

7.4 Não contradição e Sistemas Científicos Empíricos 63

7.5 Contradições no Sistema do Direito Positivo 64

7.6 Leis Lógicas e Regras 64

7.7 Leis Lógicas como Metalinguagem 65

7.8 Um Aspecto do Logicismo 65

7.9 Contraditoriedade entre Normas 66

7.10 Unidade Gnosiológica e Unidade Empírica do Direito 67

CAPÍTULO 8 O CONCEITO DE DIREITO 69

8.1 Questões Persistentes 69

8.1.1 Perplexidade da teoria jurídica 69

8.1.2 Três questões recorrentes 70

8.1.3 Definição 72

8.2 Leis, Comandos e Ordens 72

8.2.1 Variedades de imperativos 72

8.2.2 O Direito enquanto ordens coercivas 73

8.3 A Diversidade das Leis 73

8.3.1 O conteúdo das leis 73

8.3.2 O campo de aplicação 74

8.3.3 Modos de origem 74

8.4 O Soberano e o Súdito 75

8.4.1 O hábito de obediência e a continuidade do Direito 75

8.4.2 A persistência do Direito 75

8.4.3 Limitações jurídicas ao Poder Legislativo 76

8.4.4 O soberano para além do Poder Legislativo 76

8.5 O Direito como União de Regras Primárias e Secundárias 77

8.5.1 Um começo renovado 77

8.5.2 A ideia de obrigação 77

8.5.3 Os elementos do Direito 78

8.6 Os Fundamentos de um Sistema Jurídico 79

8.6.1 Regra de reconhecimento e validade jurídica 79

8.6.2 Novas questões 80

8.6.3 A patologia de um sistema jurídico 81

8.7 Formalismo e Ceticismo acerca das Regras 82

8.7.1 A textura aberta do Direito 82

8.7.2 Variedades de ceticismo acerca das regras 83

8.7.3 Definitividade e infalibilidade na decisão judicial 84

8.7.4 Incerteza quanto à regra de reconhecimento 85

8.8 Justiça e Moral 85

8.8.1 Princípios de justiça 86

5

5

8.8.2 Obrigação moral e jurídica 87

8.9 Direito e Moral 90

8.9.1 Direito Natural e Positivismo Jurídico 91

8.9.2 O conteúdo mínimo do Direito Natural 92

8.9.3 Validade jurídica e valor moral 93

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 96

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7

INTRODUÇÃO

Esta obra objetiva apresentar a definição de Sistema Jurídico, com base nos

textos dos jusfilósofos Hans Kelsen, Tércio Sampaio Ferraz Júnior, Emil Lask, Lourival

Vilanova e Herbert L. A. Hart, por meio de relação dialógica, na qual o emissor pretende

que o assunto seja compreendido e assimilado pelo destinatário (juristas, jovens

advogados, magistrados, estudiosos de Direito) e não apenas pelos filósofos.

O Sistema Jurídico se diferencia do Ordenamento Jurídico: este é composto

por todo o arcabouço jurídico do Estado. Aquele depende da multividência, ou seja, do

posicionamento filosófico eleito.

A intenção é apresentar resumos dos textos dos jusfilósofos, respeitando

seu exato conteúdo.

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CAPÍTULO I - TEORIA DA NORMA JURÍDICA

Tércio Sampaio Ferraz Jr.

1.1 Modelo de Pragmática 1.1.1 Pragmática linguística

A pragmática constitui disciplina que, com a contribuição de outros ramos

do saber (Teoria Filosófica da Comunicação, Sociologia, Psicologia, Retórica, dentre

outros), vem ocupando espaço entre análises semânticas e sintáticas da comunicação

verbal, embora ainda lhe faltem tanto seu objeto quanto suas ferramentas metodológicas.

Ela é representada sob a consideração de fenômenos linguísticos não

classificáveis nem descritíveis pela semântica ou pela sintaxe. Publicação recente classifica

a pragmática em três tipos: Teoria do Uso de Sinais (Morris, Carnap, Klaus, Binse e Escola

de Praga); Linguística do Diálogo e Teoria da Ação Locucionária (ato de falar). O primeiro

tipo foi concebido como um dos elementos da Semiótica, ou Teoria dos Signos, que os

estuda na relação entre eles mesmos (sintaxe), na relação com os objetos extralinguísticos

(semântica) e na relação com seus intérpretes ou usuários (pragmática). Esta acepção se

encontra em parte ultrapassada, pois vê na pragmática procedimento analítico adicional

às análises semântica e sintática; ignora o diálogo, pois reduz o objeto da pragmática ao

uso de signos pelo emissor sem cuidar do receptor.

O segundo tipo abrange ampla análise do discurso do ponto de vista de

Saussure, o qual estabeleceu distinção entre langue e parole. Para Habermas e Appel, a

análise do diálogo representa disciplina filosófica a qual enfoca a determinação das

condições transcendentais do diálogo. O terceiro tipo, por sua vez, refere-se ao

afastamento da linguística sistemática, pois encara o falar como ação social.

Para Tércio Ferraz, a pragmática se relaciona a um tipo de linguística do

diálogo, mais do que a uma teoria do uso de signos, e a uma teoria do ato de falar – une,

assim, discurso e diálogo. Ocupa-se da relação discursiva, sob o ponto de vista do

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“principio da interação”, ou seja, do ato de falar como relação entre emissor e receptor

mediada por signos linguísticos.

1.1.2 Direito e linguagem

Para se propor certo modelo linguístico-pragmático, a fim de se analisar a

norma jurídica, é necessário refletir sobre a natureza metodológica, dada a

pluridimensionalidade do Direito, o que propicia distintas abordagens, ora conectadas por

nexos lógicos ou didáticos, ora integradas em formas sintéticas.

Soluções integradoras e sintéticas, como o tridimensionalismo concreto e

dinâmico, buscam fórmulas aptas a captar o fenômeno em seus múltiplos aspectos sem

perda de seu sentido unitário fundamental.

Em razão de tal complexidade, não se pretende definir o Direito e o seu

método de investigação e sim propor um modelo capaz de examiná-lo por seu ângulo

normativo – sem entendê-lo como reduzido a normas pelo ângulo linguístico-pragmático

nem afirmar que ele só possui tal dimensão.

Para discorrer sobre essa opção metodológica, relaciona-se Direito e

Linguística da seguinte forma:

a) o Direito, como fenômeno empírico, possui uma linguagem (usa-se

esta tanto para língua quanto para discurso) – a do Direito -, objeto de várias disciplinas

como a Semântica e a Hermenêutica;

b) a inversão dessa fórmula conduz à ideia de que se pode falar em

direito da linguagem, objeto de disciplinas jurídicas, pois se enfocam questões relativas à

própria disciplinação da língua, no aspecto jurisnormativo, como a linguagem processual,

protocolar;

c) o terceiro sentido fala no Direito como linguagem, tese filosófica,

não transcendentalidade da linguagem, pois o jurista não transcende os limites da língua

nas suas atividades.

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O Autor entende que o fenômeno jurídico possui sentido comunicativo

básico, colocado sempre no nível da análise linguística. O Direito existe por formulação em

linguagem imposta pelo postulado da alteridade, embora não se reduza à linguagem,

mesmo no sentido amplo de comunicação. A proposta é investigar o Direito como

existente por meio da linguagem – o estudo do Direito em nível de discurso, sem afastar a

teorização jurídica da norma em seus aspectos linguísticos, partindo da linguagem do

Direito.

Para tal, convém distinguir entre a linguagem como fato e a linguagem

como instrumento, isto é, entre uso (isto é um cavalo) e menção (cavalo é um

substantivo). Assim, questiona-se se, ao se afirmar que “isto é uma norma jurídica”, o

termo norma jurídica tem por material um fato linguístico. A resposta é afirmativa, pois a

declaração “isto é uma norma” remete materialmente a uma proposição ou a um tipo de

proposição. Logo, normas jurídicas são fatos linguísticos.

1.1.3 Pragmática jurídica

Ross apresentou significativa visão pragmática da norma, ainda que

bastante conectada à semântica e à sintaxe.

Além dele, Mainz realizou longa análise, baseada em Pierce e Morris, de

normas e decisões, com foco em suas possibilidades de interpretação. Tammelo ensaiou

igualmente uma teoria pragmática, com reflexões acerca do sentido pragmático da lógica

jurídica, referentes a problemas básicos da teoria da justiça.

Sampaio Ferraz almeja propor visão pragmática da norma jurídica, sem

menosprezar a semântica e a sintaxe, encarando-a como fato linguístico. Pretende

apresentar subsídios à formulação de uma semiótica da linguagem normativa.

1.1.4 Discurso e situação comunicativa

O discurso ou ato de falar é apenas aquele que pode ser entendido,

repetido e ensinado. A situação de ensinar e aprender é denominada “situação

comunicativa”, resultado de ações com certas regras identificáveis, quando ela funciona.

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Como não é sequência pré-estabelecida ritualmente, a ação ocorre por

meio do comportamento seletivo das partes que se relacionam em ensinar e aprender,

definindo alternativas, escolhendo caminhos, absorvendo incertezas, transformando

questões complexas em simples. Tais sequências, componentes das situações

comunicativas, são as ações entre homens.

Uma situação comunicativa, além disso, acontece em limites identificáveis:

o externo (mundo circundante) e o interno (estrutura da situação). O primeiro representa

conjunto de alternativas, possibilidades de ação, ações, conflitos, ausência de consenso,

que, reduzidos pelo estabelecimento de regras, estruturam a situação. Nesse sentido, a

situação comunicativa é um sistema, com ações e reações de emissor e receptor, com

troca de mensagens entre ambos - denominada interação.

1.1.5 Modelo da pergunta e da resposta

O princípio básico da teoria pragmática é a interação, a qual revela o

comportamento dos atores por meio da mensagem. O ser humano age, comporta-se,

orienta-se e reflete. Ao trazer para o presente uma atitude do passado, revela insegurança

quanto ao próprio futuro, estabilizando suas ações. A pergunta identifica esse estado de

espírito e permite definir algumas possíveis ações: dever, poder, querer, agir.

O perguntar, por sua vez, articula-se no mundo circundante e gera atitudes

consistentes - comportamento locucional denominado resposta. Nesse sentido, o modelo

pergunta/resposta é complexo: quem pergunta desafia alguém a dar uma resposta, e

quem responde desafia o inquiridor a fundamentar a própria pergunta. Logo, o ato de

falar é reflexivo, pois admite o aumento da complexidade em uma situação comunicativa.

1.1.6 Delimitação do objeto da análise aos discursos fundamentantes

A reflexividade da situação comunicativa pode ser controlada por regas, o

que resulta em discurso denominado racional. O discurso racional é fundamentante, isto

é, submete-se à regra do dever de provar – o orador se torna, então, na situação

comunicativa, aquele que detém o ônus da prova, o qual se submete a normas definidoras

de seu discurso. Regras que pertencem à situação comunicativa; logo, falar racionalmente

12

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é obedecer a elas; quem fala se obriga a provar o que diz, conforme a exigência crítica do

ouvinte.

O discurso irracional, por seu turno, não respeita o dever de prova, não

segue as regras da fundamentação, procura desqualificar o comportamento crítico do

ouvinte.

1.1.7 Estrutura do discurso racional (ou fundamentante)

O discurso racional se estrutura em obediência à regra do dever de provar e

a outras a ele conectadas. A primeira regra determina que todo ato de falar pode ser

posto em dúvida; o exercício limitado da crítica exige, porém, que haja diálogos parciais

entre emissor e receptor para se fixarem regras primárias tais como axiomas, postulados,

pressupostos, dentre outras.

A segunda regra define que dada ação linguística primária do orador não

pode ser atacada pelo ouvinte, pois aquele pode defendê-la. Pela terceira regra, o orador

não pode mais modificar suas ações linguísticas primárias.

As normas do diálogo estabelecem relações entre emissor, receptor e

mensagem. Esta pode ser posta em dúvida, segundo a 1ª regra, o que atribui funções

características ao discurso. Conforme a função sintomática, o discurso revela para o

ouvinte sentimentos, emoções, posições, filosofias de vida; o discurso exerce a função de

sinal, pois desperta, no receptor, reação que o transforma em emissor.

Quanto ao objeto do discurso, a função é estimativa, pois há relação de

convergência entre os comportamentos sintomáticos e de sinal sobre a questão.

O discurso, então, organiza-se em um jogo infinito de estratégias

elaboradas a partir de topoi (ou lugares comuns), fórmulas que buscam orientar a

argumentação. Os topoi, no discurso, o reflexibilizam e o abrem, pois sua função é antes

ajudar a construir um quadro problemático que resolver problemas. Na argumentação

jurídica, os topoi são a imparcialidade do juiz, a noção de boa fé, a presunção de

inocência, até prova em contrário, dentre outros.

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Do ponto de vista pragmático, contudo, o discurso não representa só

dialogicidade. Caso se disponha como norma básica do discurso em que nem todos os

atos de falar do orador podem ser atacados, eles se situarão em grupos opostos: os

atacáveis e os não atacáveis. Daí advém a terceira norma: se o ato for defensável, não

pode ser posto em questão; se for atacável, não pode ser proposto. Cria-se assim uma

estrutura monológica. Nesse caso, o orador e simples proponente não revela traço

pessoal, mas generalização, universalização.

Já o ouvinte se torna passivo, mero espectador, sem interferir no discurso.

Quanto ao objeto do discurso, revela-se como certo, com reflexibilidade interrompida e

restrito a duas possibilidades contraditórias: sim ou não, verdadeiro ou falso. O monólogo

só se desenvolve para frente, ao contrário do diálogo, que pode ir para frente ou para

trás. O monólogo admite axiomas, enquanto o diálogo é aberto e experimenta certa

historicidade.

1.1.8 Formas de discurso

O discurso pode ser homológico, sob o ângulo pragmático, quando emissor

e receptor discutem um com o outro, pois ambos possuem atributos não só para fazê-lo

como para verificar o que é enunciado; há competência comunicativa das partes e a

relação entre eles é simétrica. Quanto à fundamentação, o discurso homológico atende a

uma estratégia de convencimento, com convicções fundamentadas na verdade.

Já o discurso heterológico é aquele em que o emissor discute contra o

receptor; no caso, eventual consenso entre as partes não provém da verdade; o momento

não é para convicção e sim para persuasão, sentimento fundado no interesse –

procedimentos de controle de opinião. As ações e as reações de ambos são partidárias:

cada um defende suas opiniões. Aí, o objeto do discurso surge sob a forma de conflito. A

relação entre as partes é não simétrica, formada por alternativas incompatíveis – não se

pode afirmar que a adoção de uma exclua a outra. Esse discurso, por gerar conflito, pede

14

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uma decisão – ato de falar que resolve uma questão sem eliminá-la. O heterológico visa

não à demonstração, mas à justificação de decisões.

1.1.9 Propriedades pragmáticas fundamentais do discurso

As propriedades fundamentais do discurso sob o ângulo pragmático são as

seguintes:

- o ponto de partida da análise pragmática representa o principio da

interação;

- o discurso possui dois modos expressivos: digitais e analógicos.

Comunicações verbais são basicamente digitais: analógicos são pobres de recursos e

denotativos, ao passo que digitais (ou paradiscursivos) são cheios de recursos e

conotativos;

- quanto ao objeto do discurso, distingue-se a questão (dúbia ou certa)

entre relato e cometimento. Quem fala não transmite só uma informação (relato), mas

também como ela deve ser entendida (cometimento). O emissor informa e determina a

relação entre si e o ouvinte;

- o discurso pode ser homológico ou heterológico.

1.2 Situação Comunicativa e Discurso Normativo 1.2.1 Dificuldades preliminares quanto ao objeto de análise

A expressão genérica “norma” possui diferentes aplicações; a literatura

sobre ela é vasta e complexa para ser reduzida a uma unidade. A doutrina jurídica

tradicional parte em geral do caráter imperativo dos enunciados normativos.

Jhering adota o “modelo do comando”, segundo o qual a norma aparece na

condição de regra de natureza prática como orientação para os atos dos homens. Norma é

regra, cujo conteúdo é sua orientação. Tal conteúdo é expresso pela proposição jurídica,

indicação tanto de comportamento como de caráter vinculante (atua sobre a vontade

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alheia, obrigando-a ou proibindo-a). O imperativo é abstrato, porque estabelece um tipo

de ação para todos os casos de certo gênero.

Esse modelo, porém, tem de se ajustar aos casos que parecem escapar-lhe,

como as declarações de princípios das modernas constituições, nas quais o caráter de

comando é pouco visível, obrigando a doutrina a distinções como normas primárias ou

secundárias e dependentes ou independentes.

Outra dificuldade reside em que as formulações imperativas são

relativamente raras no Direito, o que pode levar à ideia que as normas possuiriam

formulados hipotéticos com sentido imperativo subliminar, o que reduziria a ciência do

Direito a enunciados sobre normas – as proposições da doutrina jurídica são enunciados

“paranormativos”, pois prolongam a reflexão, atribuindo-lhe sentidos “próprios”, justos.

O Autor toma o termo “norma” como sinal que representa a ligação entre

duas posições, como a expressão abreviada de uma forma particular de relação em curso.

1.2.2 Operadores pragmáticos, conteúdo e condições de aplicação da informação normativa

Normas jurídicas constituem, do ponto de vista da pragmática, discursos,

interações em que alguém dá a entender algo a outrem, estabelecendo-se relação entre

emissor e receptor. O discurso normativo representa não só uma mensagem, mas

também uma definição das posições de orador e ouvinte.

A lógica deôntica define as proposições normativas como prescrições,

construídas por operadores “obrigatório/proibido” e “permitido” aplicados a ações – sua

expressão linguística.

Segundo Wright, ações são interferências humanas no curso da natureza, as

quais podem ser positivas (ato) ou negativas (omissão), com relação a como poderia ou

deveria ter ocorrido.

A ação acarreta ainda a partida de um estado de coisas para outro –

necessita-se de condições lógicas da ação e de seu resultado. Wright acrescenta que as

normas são compostas de um operador normativo, uma descrição da ação e da condição

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da ação. O primeiro confere o caráter da norma; o segundo, seu conteúdo (atos e

omissões); o terceiro, sua condição de aplicação.

Pela pragmática, o aspecto “relato” da mensagem normativa compõe-se da

descrição da ação e da condição da ação. Os operadores possuem dimensão pragmática,

além da sintática, pelas quais é dado tanto caráter prescritivo ao discurso quanto

metacomplementar, ao qualificar a relação entre emissor e receptor.

Ao se estabelecer uma norma, o emissor define as posições de tal modo

que o destinatário assuma relação complementar (metacomplementaridade). Ele pode só

transmitir a mensagem ou também comentar sobre ela, para definir as relações entre as

partes.

A lógica deôntica trata tais fórmulas como juntores ou operadores

deônticos, pelos quais os comportamentos expressos nas normas adquirem status

deôntico, qualificam-se deonticamente. A autoridade determina a relação entre a norma e

o endereçado como complementar.

As reações possíveis do ouvinte podem ser três: confirmação (resposta pela

qual o ouvinte aceita a definição); rejeição (resposta pela qual o ouvinte nega a definição

– discorda); desconfirmação (resposta pela qual o ouvinte desqualifica a definição – não

compreende ou ignora). A distinção entre rejeição e desconfirmação é que, na 1ª, o

ouvinte reconhece o orador como autoridade para depois recusar a definição; na 2ª, ele

age como se o orador não existisse, o que não é suportado pela relação definida como

metacomplementar, pois equivale ao aniquilamento da autoridade como tal. Por isso, não

se admite nem se reconhece a alegação de ignorância da lei como justificativa para a

licitude do próprio comportamento.

O Quadro abaixo indica a combinação dos operadores, os comportamentos

e as relações:

Quadro 1 – Relações entre operadores e comportamentos

Operador Comportamento Relação Qualificação

1. Obrigatório que Obrigatório Complementaridad Obrigatoriedade

17

17

e imposta

2. Proibido que Proibido Complementaridade imposta

Proibição

3. Permitido que Permitido Pseudo - simétrica Permissão

4. Silêncio normativo

Indecidível Indeterminada Inqualificação

1.3 Organização da Comunicação Normativa

1.3.1 Questão de validade

O objetivo deste Capítulo é oferecer visão aperfeiçoada da situação

comunicativa, na qual a norma constitui o elemento central.

A questão genérica está em compreender como se interligam os

comunicadores em cadeias normativas. O problema da validade é central para a

compreensão do discurso normativo e da unidade do ordenamento normativo.

O tema da validade das normas jurídicas apresenta muitas facetas, com

questões referentes ao fundamento da ordem jurídica, bem como discussões sobre os

conceitos de legalidade e legitimidade. Além disso, a validade também é tida no sentido

de afetividade, cumprimento e aplicação das normas, bem como termo primitivo da lógica

deôntica ou sentido lógico transcendental do “valer” como categoria básica do pensar

normativo.

A dogmática jurídica costuma assumir as implicações práticas do termo,

discutindo sobre a capacidade da norma de resolver conflitos. Criam-se, assim, conceitos

como Direito vigente, Direito eficaz, normas em vigor, suspensão da vigência, da eficácia,

os quais procuram focar questões como o âmbito de aplicação, a retroatividade, a

nulidade, dentre outras.

Para a análise, cabe, todavia, encontrar o critério capaz de determinar

ordem na discussão – limitando o tema - e a sequência de seu tratamento. O interesse é a

norma como discurso normativo e a validade como qualidade linguística do discurso. Isso

significa que a própria linguagem, além de veículo de expressão, pode ser ela própria o

18

18

objeto; a validade é termo que se refere a propriedades de entidades linguísticas. Tal fato

pressupõe que as normas jurídicas, válidas ou inválidas, sejam entidades linguísticas.

Embora o termo “validade” possua muitos usos, a análise se refere apenas

à validade jurídica. A própria teoria jurídica propõe algumas classificações, em que, por

exemplo, tem-se a validade como termo “gênero” – eficácia como validade fática; vigência

como validade formal e, às vezes, legitimidade como validade ética ou fundamento ético

da norma. Outra afirma que a validade constitui um complexo, com aspectos de eficácia,

vigência e fundamento.

Do ponto de vista da Semiótica, pode-se falar em validade nas dimensões

sintática, semântica e pragmática com o fito de entender se o termo “validade”, para o

jurista, possui antes relevância sintática ou semântica ou pragmática.

Para Hans Kelsen, a “validade” representa o modo de existência específico

das normas; a norma só é válida se promulgada por ato legítimo de autoridade, sem ser

revogada a qualidade válida da norma; porém, é apenas fundamento de existência, não

sua condição. O fundamento de validade de certa norma repousa sempre em outra, até a

hipótese da norma fundamental. Pode-se deduzir então que a validade é qualidade

sintática da norma, pois com ela se designam propriedades das relações entre as normas,

ou seja, a norma é válida embora não tenha sido aplicada, ou seu editor não mais exista.

Alguns autores entendem que Kelsen reduz a noção da validade à de

vigência formal, posição insustentável. Kelsen entende o problema e ressalta que deve

haver o mínimo de eficácia para que uma norma seja válida – só é válida se eficaz, dando

ao termo efetividade sentido até certo ponto formal. Além disso, Kelsen, ao falar das

normas derivadas, sobretudo as individuais, parece introduzir o aspecto pragmático para

solucionar problemas como o da sentença ilegal.

Para Alf Ross, a norma é diretivo encontrado em relação de

correspondência com alguns fatos sociais. Para ele, a validade distingue-se da simples

“regularidade” do comportamento, ou seja, norma válida não é necessariamente a que é

regularmente obedecida com consciência de seguir uma regra e obrigação de fazê-lo.

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Nesse sentido, fala em “experiência de validade”. Não se trata, assim, de relação entre

norma e realidade jurídica, mas entre norma e aparelho sancionador. Normas são regras

sobre o uso da sanção; logo, norma válida prevê a atividade da “maquinaria jurídica”.

A concepção de Ross, como a de Kelsen, sofre limitações. Kelsen nota que a

“validade” de Ross tem pouca utilidade para o jurista, já que admite graus (normas podem

ser mais ou menos válidas), o que o impede de agir com segurança, para afirmar se há ou

não direito. Ademais, Ross admite a relação sintática entre normas derivadas e

constitucionais sem esclarecer como isso afeta a questão da validade.

Uma das soluções seria confirmar a impossibilidade de se reunirem, num

único conceito, os diversos problemas em que se articula a validade jurídica, embora essa

conclusão não resolva a questão: mesmo que não haja um só conceito de validade, é

complexo explicar como o emprego do termo na dogmática jurídica sobrevive sem

ocasionar confusão (pelo menos na atividade prática do jurista). É necessário, então,

encontrar conceito unitário, não nos níveis sintático ou semântico, mas no pragmático.

1.3.2 Localização da questão

Inicialmente, observa-se que a doutrina distingue validade e eficácia. Qual a

função de se estabelecer diferença entre elas? A validade é tida como relação de

conformidade entre o fato - tipo da norma - e a hipótese normativa superior, que a prevê

e a disciplina (qualidade sintática).

Já a eficácia é tomada como a relação entre a ocorrência concreta dos fatos

estabelecidos pela norma superior, os quais condicionam a produção do efeito e a

possibilidade de produzi-lo (qualidade semântica).

As razões da distinção são as seguintes: torna efetiva a imperatividade da

norma (no sentido de força, lei, imposição); permite que certas normas (inválidas se

rigorosamente tomadas) possam ser “salvas”, em conformidade com certos postulados de

justiça, ordem e segurança, e que o controle da norma emanada suspenda-lhe

temporariamente a eficácia. Tais motivos apontam para o controle das situações

normativas.

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A noção de controle, eminentemente pragmática, afeta a interação entre

emissor e receptor: a voz do emissor é dotada de força para dispor das regras que

disciplinam o comportamento, prevendo possíveis reações desencadeadas por sua ação.

A noção de controle postula que o discurso normativo é primordialmente

interação e que a validade designa uma propriedade dessa interação. Normas não são

entidades independentes e seus caracteres têm de ser examinados em seu sentido

interativo (editor, sujeito, informação, cometimento, caráter decisório da discussão –

contra).

O problema da validade envolve o discurso normativo como interação em

todos os seus caracteres.

1.3.3 Validade e imunização

Pragmaticamente, a noção de controle da situação comunicativa se conecta

a uma das qualidades centrais do discurso normativo como decisão: sua capacidade de

findar conflitos. A validade das normas se liga a essa qualidade; não é só propriedade

sintática dos discursos normativos, mas se revela como propriedade pragmática. Pela

expressão “norma válida”, faz-se referência à relação entre discursos normativos nos

aspectos relato e cometimento.

Como, todavia, o princípio que conduz a análise pragmática é o da

interação, a relação da validade inclui a provável reação do endereçado e tanto o aspecto-

relato como o aspecto-cometimento. Denomina-se essa conexão pragmática entre os

discursos normativos de imunização; assim, a validade é propriedade do discurso

normativo que exprime conexão de imunização, entendida esta como processo racional

que capacita o editor a controlar as reações do endereçado, eximindo-se de crítica, com

capacidade de garantir a prontidão para apresentar razões e fundamentos do agir

(sustentabilidade) da sua ação linguística.

A imunização contra a crítica pode ser alcançada de diversas maneiras, e o

discurso normativo não é o único válido nesse sentido. A imunização do discurso

normativo jurídico se caracteriza por ser conquistada a partir de outro discurso normativo,

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o que torna a validade relação pragmática entre normas, na qual uma imuniza a outra

contra as reações do endereçado, garantindo-lhe o aspecto-cometimento

metacomplementar.

Cada norma define a relação entre orador e ouvinte; considera-se válida a

norma cujo aspecto-cometimento não apenas está definido como metacomplementar,

mas também está imunizado contra críticas por outra norma. A posição de autoridade só

é obtida pelo editor normativo por meio da imunização (recurso racional do discurso

contrário, análogo ao estabelecimento de presunções, postulados, axiomas na discussão -

com).

Como uma norma imuniza outra e qual o fundamento do processo de

imunização? A primeira questão se refere aos modos de imunização, sendo tema técnico;

a segunda, mais complexa, remete à própria legitimidade dos ordenamentos. Em ambas, a

imunização representa a relação entre o aspecto-relato de uma norma e o aspecto-

cometimento de outra, ou seja, não se pode estabelecer entre as partes relação

metacomplementar. Dizer que a relação metacomplementar é imunizada significa que o

editor, o qual se define como superior, não precisa apresentar razões para tal definição,

pois ela já está fundamentada de antemão; nesse caso, o editor joga o ônus da prova da

recusa ao endereçado. Ele se exime até de ter de provar a possibilidade de transferir o

ônus da prova.

1.3.4 Técnicas de validação

Pela primeira técnica de validação, uma norma imuniza outra, disciplinando

lhe a edição, delimitando-lhe o relato, com a mesma noção de validade em ambas.

Para entendê-las, distingue-se entre programação condicional e finalista.

Uma decisão é programada condicionalmente na seguinte regra: estabelecem-se as

condições em que ela deve ocorrer ou os fins a serem atingidos, liberando-se a escolha

dos meios. No primeiro caso, a programação é condicional; no 2ª, é finalista. A 1ª é mais

elástica quanto aos efeitos procurados; a 2ª é mais elástica quanto à escolha dos meios,

vinculada aos fins buscados.

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Na decisão programada condicionalmente, o decididor é responsável pela

correta utilização dos meios, aos quais está ligado; na finalista, o decididor é responsável

pelo efeito a atingir, pela seleção de bons meios, sejam quais forem, pois o que importa é

o resultado.

Embora as técnicas sejam distintas, em ambas pode-se falar em norma

válida. A condicional ocorre com a disciplina de edição das normas por outras normas.

Como a validade é relação entre normas, denomina-se uma como norma imunizante e

outra, como imunizada. A imunização aí é condicional, pois a norma imunizante fixa o

antecedente a partir do qual o consequente é possível. Tal técnica de imunização é

apropriada para procedimentos de delegação de poderes, e o controle de validade se

resolve com a constituição de sistemas hierárquicos, os quais guardam entre si

coordenação vertical de superioridade e inferioridade. Pode-se dizer então que a norma

inferior tem fundamento de validade na norma superior.

Já a imunização finalista ocorre com a delimitação do relato; a validade

mantém a relação entre o aspecto-relato da norma imunizante e o aspecto-cometimento

da norma imunizada. A imunizante não se importa com a edição da imunizada, mas fixa-

lhe determinado relato. A distinção entre ambas se situa na posição do editor da norma

no sentido de sua imunização. Além disso, elas são utilizadas simultaneamente. Enquanto

a validade de certa norma não admite graus (ela não pode ser mais ou menos válida), a

invalidade admite graus.

Ademais, como as técnicas de validação são pragmaticamente

procedimentos imunizantes, o próprio produtor se sujeita a regras que determinam como

o editor executa aquilo que lhe compete.

A validade, de modo geral, constitui qualidade pragmática pela qual o

discurso do editor é imunizado contra eventuais críticas, no sentido de que dado

comportamento é exigível (validade como condição de exigência de atitudes). Há outra

qualidade pela qual o comportamento exigível é ainda a ser obedecido: a efetividade da

norma.

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1.3.5 Questão da efetividade

Enquanto a validade exprime relação entre o aspecto-cometimento de uma

norma e o aspecto-relato de outra que a imuniza, a efetividade exprime relação entre o

aspecto-cometimento e o aspecto-relato da mesma norma. Não é possível dizer se ela é

efetiva. A efetividade é relação de adequação entre o aspecto-relato e o aspecto-

cometimento da mesma norma.

No caso, a norma é como discurso decisório, como ação linguística na qual

alguém dá a entender algo a outrem. Inclui não só palavras pronunciadas, mas quem

pronuncia, quem ouve, as respectivas reações, consoante certas regras; logo, o discurso é

procedimento interacional, convencionado em uma relação de ensino e aprendizagem.

Assim, o discurso representa o procedimento em que certas pessoas em

dada situação pronunciam algumas palavras produzindo algum entendimento. Em

qualquer discurso, está em jogo o sucesso da comunicação, o qual depende do

procedimento empregado. O sucesso da comunicação, por sua vez, não interfere na

verdade ou na falsidade, embora constitua condição para que um discurso envolva

problema de verdade ou falsidade; se não houver homologia, não existem discursos

verdadeiros.

Na teoria jurídica, encontram-se, tradicionalmente, dois conceitos distintos

relativos à efetividade das normas: linguisticamente, há concepções sintáticas da

efetividade (a doutrina usa com relutância o termo “eficácia”, como aptidão para produzir

efeitos jurídicos pela norma, independentemente de sua efetiva produção).

Existem também concepções semânticas da efetividade, segundo as quais a

norma efetiva é aquela cumprida e aplicada concretamente em certo grau, estabelecida

como critério entre o relato da norma e o que acontece na realidade.

Pragmaticamente, ambos os sentidos se combinam. Efetiva é a norma cuja

adequação do relato e do cometimento garante a possibilidade de se produzir heterologia

equilibrada entre editor e endereçado. Observe-se que a efetividade, no sentido

pragmático, não se confunde com os sentidos semântico ou sintático. O sintático

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prescinde do nível cometimento e vê a efetividade como relação entre o relato de uma

norma e as condições por ela estabelecidas para a produção dos efeitos. Já o semântico

liga diretamente efetividade e obediência efetiva da norma e possibilidade de produção

de efeitos, sem prever os casos de desobediência a normas eficazes (no sentido técnico).

A questão mais complexa é indagar sobre a relação entre a noção de

efetividade e a de validade. Questiona-se se a norma ineficaz e regularmente

desobedecida perde sua validade; se a norma inválida possui efeitos próprios ou se existe

realmente norma inválida.

1.3.6 Relação entre validade e efetividade: problema da norma inválida

As concepções semânticas e sintáticas da efetividade dificultam determinar

a relação entre efetividade e validade da norma. Para Kelsen, o fato de a efetividade ser

aplicada e obedecida realmente e a validade, conceito formal, expressar relações formais

entre as normas prejudica o entendimento de como a inefetividade em certo grau

provoca a invalidade da norma.

Já a doutrina dominante vê a efetividade como algo independente da

validade, a qual exige que o conceito formal de validade seja dotado de certas

determinações cuja natureza formal é difícil de precisar.

Sob o ângulo pragmático, a validade não expressa simples relação entre

normas, mas entre elas como interações, pois a relação de imunização inclui

comportamentos comunicativos. Assim, a validade não se limita à relação linear entre a

norma A e a B, mas leva em conta o movimento oposto à relação da norma B sobre a A. A

interação exige que se observe a validade, não como cadeia linear progressiva com

começo e fim, mas como relação, cujo padrão é a circularidade. Desse modo, o princípio

interacional da pragmática permite que a validade (e a invalidade) se desprenda dessa

linearidade abstrata e seja observada no contexto situacional; daí decorre o sentido

discutível do conceito de “anormalidade”.

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Porque o principio da interação exige a circularidade (norma A afeta B, mas

a afecção de B afeta A), a invalidade não é mera quebra de elo da cadeia linear, nem

fenômeno marginal, mas configuração relacional específica, ao lado da validade. Pode-se

dizer, assim, que a relação de validade expressa um tipo de estado constante ou de

estabilidade de um conjunto normativo, o qual é mantido por mecanismos de

“retroalimentação negativa” no sentido da existência de procedimentos como anulação,

capazes de manter a estabilidade do conjunto.

Os discursos normativos, por sua vez, não expressam apenas relação de

estabilidade diante de perturbações, mas principalmente estabilidade de mudanças e

variações, não no sentido kelsiano (a validade de uma norma depende de outra, que

regula a possibilidade de revisão), mas no de que o discurso normativo incorpora outros

mecanismos de manejo das mudanças concernentes à coordenação de validade e

efetividade. Nesses termos, fala-se em imperatividade ou obrigatoriedade das normas.

1.3.7 Imperatividade das normas jurídicas

A efetividade representa qualidade da norma que exprime relação de

adequação de seus aspectos cometimento e relato. A validade é qualidade internormativa

que exprime relação de imunização entre o aspecto-relato da norma imunizante e o

aspecto-cometimento da imunizada.

A imperatividade, por sua vez, é qualidade igualmente pragmática da

norma que exprime relação entre o aspecto-cometimento de uma norma e o aspecto-

relato de outra. Kelsen identifica imperatividade e validade: uma norma que se relaciona

ao comportamento de um homem “vale”, ou seja, vincula que o homem deve comportar-

se do modo determinado pela norma. As normas que vinculam são válidas, fundamentais.

A obrigatoriedade das normas repousa na sua efetividade.

A dificuldade de se captar a imperatividade advém de que ela é relação

entre cometimento das normas sem referência aos aspectos-relato. É, portanto, relação

expressa em linguagem analógica e respeita as valorações ideológicas do discurso

normativo. A imperatividade reside na estabilização da definição dos aspectos-

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cometimento das normas, uma regulagem, uma calibração de enunciado das

possibilidades admitidas de variações em certo âmbito. A imperatividade designa uma

propriedade da interação do discurso normativo.

A imperatividade se revela, assim, como regulagem – um conjunto de

regras responsáveis pelas relações entre editores e endereçados, sem constituir um corpo,

no sentido de uma constituição. A noção de calibração pressupõe o padrão circular, o qual

não exclui o escalonamento, mas o relativiza como um dos relacionamentos possíveis. No

sistema normativo jurídico, sob o aspecto pragmático, não se pode determinar o sentido

do sistema por seu estado inicial ou sua origem apenas, mas também pela inter-relação

entre as normas que se acumulam e modificam continuamente o sistema.

Nesse sentido, deve-se romper o pressuposto de que o ordenamento

jurídico constitui sistema com ordem linear, unitária e hierárquica, culminando em dada

norma fundamental; ele admite a presença de várias cadeias, com diversas “normas-

origem”, até incompatíveis entre si.

1.3.8 Ordem normativa do sistema

Sistema constitui o conjunto de objetos e seus atributos, mais a relação

entre eles, conforme certas regras (estrutura do sistema). Os objetos são os componentes

do sistema, especificados por seus atributos, e as relações conferem coesão ao sistema.

Normas são tidas como discursos, interações em que alguém dá a entender

a outro alguma coisa, fixando-se a relação entre emissor e receptor, mediada por

mensagens.

Os discursos normativos configuram sistema interacional, pois

comunicadores normativos falam, num processo constante de definição de suas relações,

determinando suas falas como questões. Eles possuem componentes – orador, ouvinte,

questão – interligados por certas regras (do dever de prova), constituindo unidades. Os

sistemas normativos têm por objeto tais unidades discursivas, denominadas normas.

Normas jurídicas são discursos decisórios, estruturalmente ambíguos,

instauradoras da metacomplementaridade entre orador e ouvinte, com conflito decisório

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como questão, solucionado porque lhe põem um fim. Assim, o objeto dos sistemas

normativos são as normas, especificadas pelos atributos de validade e efetividade. As

relações entre elas dão coesão ao sistema: de imunização e de produção de certas

reações (exigência e obediência). As relações são definidas por certas regras – calibração

do sistema – que lhe dão seu parâmetro, a imperatividade.

O sistema normativo jurídico é aberto, em relação de importação e

exportação com outros sistemas, sendo ele parte do subsistema jurídico.

A partir do entendimento de que os sistemas normativos guardam entre

seus objetos relações de validade e efetividade conforme regras de calibração, podem-se

distinguir dois tipos de normas: originais e derivadas. Normas-origens são as que guardam

entre si, eventualmente, relações de invalidade, mas que, em si, não são válidas nem

inválidas, apenas efetivas, segundo as regras de calibração do sistema.

Normas derivadas são, relativamente a suas normas-origens, válidas,

podendo ser inválidas em relação a outras normas-origens; entre si, são efetivas ou não;

enquanto a validade das normas derivadas não depende de sua efetividade, a das normas-

origens depende da efetividade de suas normas derivadas. Logo, certa norma derivada

inefetiva não perde sua validade, mas, ao afetar a norma-origem, pode tornar-se inválida

em função da inefetividade de sua norma-origem.

Além disso, toda norma-origem é imunizante, mas nem toda imunizante é

norma-origem; logo, há normas derivadas imunizantes, imunizadas em relação a outra

imunizante, a qual pode ser norma-origem. Criam-se assim cadeias normativas as quais,

no sistema, podem assumir formas hierárquicas, embora tais cadeias guardem entre si

formas circulares de competência cruzadas, mútuas limitações.

1.3.9 Caráter ideológico dos sistemas normativos

Quanto ao aspecto axiológico do discurso normativo, ele se refere tanto a

seu caráter valorativo (valores) quanto ao ideológico (problemas da ideologia). A tese é

que a imperatividade do discurso está ligada à noção de ideologia e que as regras de

calibração do sistema são expressas em linguagem ideológica.

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Na situação comunicacional normativa, o discurso se enquadra no

denominado discurso heterológico ou discussão-contra, a qual é persuasória (persuasão

como sentimento fundado em interesses). Interesses são vinculações intersubjetivas e

surgem como disposições de interagir, podendo ser reforçados, modificados, suprimidos.

Eles se manifestam mediante valores, considerados estes como entidades compondo um

sistema com função interacional. Em razão do valor, comportamentos são selecionados, e

controladas as possíveis reações do ouvinte. O valor possui duas funções seletivas: a

modificadora (as informações se adaptam ao valor) e a justificadora (o valor se adapta às

informações).

No discurso normativo, a função seletiva do valor mostra-se como

instrumento de controle do comportamento persuasório, que visa conquistar um ouvinte

reativo. A presença de valores no discurso normativo não torna a norma juízo de valor,

mas não a deixa axiologicamente neutra. Para exercer sua função na norma, entretanto,

os valores são neutralizados – processo pelo qual perdem suas características dialógicas,

pois se interrompe sua reflexibilidade. Esse processo, no discurso normativo, possui

caráter ideológico. Na acepção axiológica, ideologia é linguagem valorativa e ideológica,

tendo por objeto imediato os próprios valores. Ademais, a valoração ideológica é rígida,

limitada.

Assim, do ângulo pragmático, a norma possui imperatividade porque se lhe

garante a possibilidade de impor comportamento, independentemente da colaboração do

endereçado. Isso equivale a uma valoração ideológica, global e estabilizadora da relação

autoridade/sujeito. Ela torna rígida a relação estabelecida, dando-lhe limites de variação,

mas garantindo-a contra possíveis desqualificações.

A ideologia significa então uma pauta de segundo grau, pressupondo a

existência das próprias normas. Ela calibra o sistema normativo, pois só por ela é possível

determinar que tipo de afetividade ele deve possuir, como um todo, para que suas

normas constituam cadeias válidas e, como efeito, que tipo de autoridade deve ser

assumida como legítima.

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CAPÍTULO II - CONCEITO DE SISTEMA NO DIREITO Tércio Sampaio Ferraz Jr

2.1 Sistema e Direito 2.1.1 Ciência do Direito como sistema de significações normativas

A ciência do Direito, ou jurisprudência, apresenta-o em sua conexão

sistemática, entendida esta como material, a ser imediatamente conhecida,

representando a realidade jurídica tomada não em sua totalidade, mas em um de seus

elementos constitutivos.

Nesse sentido, considera-se o Direito um complexo de significações,

distintas do fator formal, da norma, mas representando o “valer para” de dada “forma

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teorética” em direção a um material, em uma relação entre norma, como material, e

categoria, segundo Lask. Ele denomina a isso “significação jurídica”, obtida com auxilio do

“valor jurídico”

Não se pode aceitar inicialmente, como Lask, que a ciência empírica se

iguale à do empírico. A ciência da realidade é caracterizada basicamente não por ter um

“real”, um “ente sensível” como material, mas sim proceder de forma não-fundante. A

Ciência do Direito, como a Filosofia, possui como objeto um “mundo de significações”,

com “validez absoluta”, sem qualquer autoridade empírica, enquanto para a

jurisprudência o fundamento formal reside na ordenação positiva da vontade da

comunidade. Por isso, para Lask, a ciência jurídica se aproxima do método de operar

puramente empírico com um mundo pensado de significações.

Não se deve esquecer, além disso, que a realidade jurídica, como estrutura

dualística, pode estar contida de dois modos diversos: de modo fundante (Filosofia) e não-

fundante (empirismo); para Lask, o dualismo metódico. Tal dualismo, porém, deve ser

entendido em função da “teoria dos dois elementos”, não da “teoria dos mundos”; ou

seja, a norma jurídica, “forma da realidade jurídica”, separa-se de seu material e se torna

“material formal de uma categoria” – a significação jurídica -, constituindo o objeto da

ciência jurídica, com um “não sensível” como material, pertencendo à esfera do “valer”.

Logo, do ponto de vista da ciência jurídica, o Direito constitui um sistema de

“significações normativas”, o qual não pode ter primordialmente a coerência lógica como

principio básico, embora Lask não menospreze a relevância da dedução, da indução e da

redução; para ele, o diferenciador de todo sistema continua sendo o “princípio material”.

A significação jurídica (espécie de conceito de Direito) equivale ao material

(à norma), o qual adere a um “material alógico” – princípio diferenciador de todos os

conceitos jurídicos, em um processo de “abstração e isolamento”. Ele é denominado por

Lask de “função desagregante” do Direito, processo conduzido pelo “princípio

teleológico”, com “dogmas finalísticos” imanentes à vida jurídica e dela constitutivos;

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unidade independente, pensada conjuntamente graças a relações finalísticas, como

unidade tanto unitária quanto coletiva.

Nesse sentido, “pessoa” não significa em nenhum caso “ficção”, mas

“abstração científica”, “objeto teorético” (relação categoria – material); para o Direito, só

há pessoas jurídicas, devendo substituir-se a dicotomia pessoa física e pessoa jurídica pela

oposição entre individual e supraindividual.

Assim, a multiplicidade material responde pela constituição do sistema, em

parte, de conexões vitais (Direito de família, do trabalho), em diferenças estruturais

lógico-reais (direito das obrigações, das coisas), em princípios tipicamente jurídicos. Tal

sistema de Lask é mais amplo que o dedutivo, pois se refere a uma ordem instaurada em

função de pontos de vista significativos, uma soma de significações originadas

historicamente, cuja conexão se baseia em sua relação com um campo determinado da

vida que se desenvolve continuamente nesse contato.

Em tal concepção, fala-se em sistematização prévia da própria vida jurídica,

como tarefa auxiliar e preparatória, embora secundária, considerando-se aí o Direito no

âmbito da “Teoria Social do Direito”. O Direito é visto tanto como complexo de

significações quanto como fator cultural real, processo de vida social. No primeiro,

constitui sentido teórico (a forma categorial é significação jurídica e a material é o viver

finalístico).

2.1.2 Sistema filosófico do Direito

Lask considera como problema a questão do Direito como expressão de

unidade de sentido. Ao se admitir que o sistema jurídico represente um conjunto de

significações históricas, admite-se também que cada norma não pode ser entendida por

princípios abstratos; tem seu sentido na totalidade da vida jurídica, da realidade jurídica.

Para entender tal pensamento, necessita-se compreender que Lask

distingue, na teoria do valor, um sentido amplo e um estrito de valor. Ele identifica “valor”

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e “valer”: “valor” equivale a tudo que não existe, sem ser igual a nada; “valor” é tudo que

vale. Logo, todas as formas são valorativas – com qualidades valorativas, categorias -;

“valor” então é forma no sentido de “valer-para”. Esse é o sentido amplo de “valor”.

Em sentido estrito, “valor”, apesar de ter em comum com o anterior a

noção de “valer-para”, possui uma nuance significativa, presente no “valer” em geral,

quando este se refere a um reconhecimento a ele devido pela subjetividade. A validez

surge então como o caráter do que é digno de ser reconhecido como valor.

O verdadeiro valor é um “valer” transubjetivo; como o verdadeiro objeto, o

verdadeiro valor é supraoposicional, transcende a atividade desagregadora da

subjetividade. O “valor” não nasce do juízo; transcende-o, sendo uno. Lask afirma que há

uma única qualidade valorativa com diferentes determinações significativas. Assim, valor

em sentido amplo é o “supraoposicional”, “o valer absoluto”, segundo Lask, que se divide

em uma pluralidade de significações axiológicas (valores da personalidade, por exemplo)

Há ainda o “valor interoposicional”, que se diferencia do

“supraoposicional”. O último poderia ser considerado como o “divino”, para George Pick,

identificando-se com o próprio Deus acima das significações axiológicas, um absoluto.

Para Lask, no entanto, o “valer absoluto” não possui sentido de ato puro, divino; segundo

ele, o “valer supraoposional” é o único e legitimo valer; as outras formas válidas resultam

do contato deste com um “material”. Assim, as significações axiológicas são iluminadas

pelo “valer absoluto”, o qual as valida (a beleza, a bondade, a justiça, por exemplo, apesar

de iluminadas, não se confundem com o “valer absoluto”). Quanto maior o papel da

subjetividade, como substrato material, mais baixo é o grau ocupado pela significação

axiológica.

Além disso, a sistematização de valores em Lask é processo dinâmico, com

relacionamento entre o “valer absoluto” e o “material”. Essa relação é qualificada por Lask

de “realização dos valores”, em movimento temporal constante. As significações

axiológicas surgem e desaparecem, historicamente, pois o “valer absoluto” muda seu foco

continuamente, com a constituição de novos valores, sem subjetivismo relativista.

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A significação axiológica conhecida torna-se imanente, sem qualquer

processo de criação de valores, mas apenas a descoberta destes. Lask considera a

realidade jurídica do ponto de vista de sua “forma axiológica absoluta”, não do ponto de

vista do valor absoluto. Assim, “valor”, no sentido da “filosofia do Direito”, corresponde a

uma estrutura objetiva, cujos componentes são “forma” e “material” e correspondem à

estrutura chamada de “significação axiológica”. É consideração valorativa, no sentido da

“validade absoluta”, a qual se une a outra como categoria pela qual se constitui o “objeto

jusfilosófico”, significação axiológica.

Não se pretende conhecer o “valer absoluto”, o qual funda o Direito como

“validez absoluta”, mas conhecer a significação axiológica mediante aquele “valer”. As

significações axiológicas, por serem objetivas, são dotadas de sentido teorético, cujos

elementos têm de ser realidade jurídica (como material especifico referido a uma

“forma”) e justiça como forma específica, já referida a um material. Tal relação Lask

chama de “valor jurídico”, valor oposto. Os valores interoposicional são aqueles da justiça,

especificamente, enquanto as significações axiológicas são notadamente as do “valor

jurídico”.

Então, numa hierarquia, os valores se situam, dentro do sistema filosófico

de Lask, em três esferas: “supraoposicional”, em primeiro lugar; “interoposicional”, em

segundo, e “significações axiológicas”, em terceiro. Por tal relação “oposicional”, pode-se

entender que o sistema jusfilosófico se apresenta como “ordenação do direito em

conexão de cosmovisão”. Lask não desenvolve um sistema de valores jurídicos, mas

aponta caminhos para fazê-lo. Segundo ele, só a admissão de um “tipo especial de valor

social” possibilitaria a sistematização do direito num mundo de valores (concepção

transpersonalista). Caso se aceite a “realidade jurídica” como “realidade social”, o

processo diferenciador conduziria a um modelo transpersonalista, com atributos

positivos, formações valiosas da vida humana em comum, presentes no Direito.

34

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CAPÍTULO III - TEORIA PURA DO DIREITO Hans Kelsen

3.1 Direito e Ciência

3.1.1 Normas jurídicas como objeto da Ciência Jurídica

As normas jurídicas representam o objeto da ciência jurídica; a conduta

humana também o é desde que determinada em norma jurídica, isto é, a conduta de

normas jurídicas. As relações entre os homens constituem igualmente objeto da ciência

jurídica, quando constituídas mediante normas jurídicas. A ciência jurídica busca

apreender seu objeto do ponto de vista do Direito, ou seja, apreender algo como Direito –

conteúdo da norma jurídica definido por uma norma jurídica.

3.1.2 Teoria jurídica estática e dinâmica

Consoante as regras reguladoras da conduta humana ou a conduta humana

definida pelas normas, podem-se distinguir duas teorias relativas à aplicação ou à

observância às normas jurídicas: a estática e a dinâmica.

A teoria estática do Direito trata-o como sistema de normas em vigor, no

seu momento estático. A dinâmica, por sua vez, considera o processo jurídico, no qual o

Direito é produzido e aplicado, como Direito em movimento, embora seja esse processo

regulado pelo próprio Dzireito. Desse modo, o Direito regula a própria produção e

aplicação.

O processo jurídico é definido pela Constituição, ao passo que as leis

formais ou processuais normatizam a aplicação das leis materiais por tribunais e

autoridades administrativas.

3.1.3 Norma jurídica e proposição jurídica

A conduta jurídica, por se limitar a apreender o comportamento humano

como conteúdo de norma jurídica, constitui representação normativa desses fatos.

Descreve as normas jurídicas a serem aplicadas e observadas também por atitudes. As

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normas jurídicas são produzidas por órgãos jurídicos para serem por eles aplicadas e

observadas pelos destinatários do Direito. Elas possuem, assim, natureza imperativa, pois

são mandamentos, comandos, além de permissões.

Já as proposições jurídicas representam juízos hipotéticos os quais

enunciam ou traduzem que, conforme o sentido de uma ordem jurídica (nacional ou

internacional), certas consequências definidas pelo ordenamento jurídico devem nele

intervir.

O Direito não ensina nada e sim prescreve, permite, define poder ou

competência. Desse modo, a norma jurídica se distingue da proposição jurídica: a primeira

produz o Direito, enquanto a segunda o descreve, assim como são distintas a função do

conhecimento jurídico e a da autoridade jurídica - representada pelos órgãos da

comunidade jurídica. Aquela possui função cognoscitiva; esta, normativa.

A ciência jurídica visa conhecer o Direito para descrevê-lo baseada em seu

conhecimento; os órgãos jurídicos almejam produzir o Direito para que ele seja conhecido

e descrito pela ciência jurídica. O conhecimento, contudo, significa o estágio preparatório

de sua função, a qual é, simultaneamente, produção jurídica e fixação da norma jurídica

individual.

Para Kant, a ciência jurídica, como conhecimento do Direito, possui caráter

constitutivo – produz seu objeto, pois o apreende como todo significativo. Só por meio do

conhecimento da ciência jurídica, o material dado à ciência do Direito se torna norma

jurídica. A ciência jurídica não pode, porém, prescrever, apenas descrever o Direito.

Além disso, as proposições normativas podem ser verídicas ou inverídicas,

enquanto as normas, estabelecidas pela autoridade jurídica, podem ser válidas ou

inválidas; já os fatos existem ou não – só as afirmações sobre eles podem ser verídicas ou

inverídicas.

Quanto à norma definida pela autoridade jurídica, não pode ser verídica ou

inverídica, pois não constitui enunciado nem descrição, mas prescrição cujo objeto é

descrever pela norma jurídica.

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36

3.1.4 Ciência causal e ciência normativa

A ciência causal descreve a conduta humana segundo o princípio da

causalidade, isto é, entende que a natureza dos atos do homem representa determinada

ordem das coisas, sistema de elementos ligados entre si como causa e efeito. Esse é o

objeto da ciência natural.

A ciência social, por sua vez, concebe a conduta humana também pelo

princípio da causalidade, mas acrescenta outro, sem designação geralmente escrita,

segundo o qual a sociedade é entendida como ordem normativa da conduta dos homens

entre si, contrapondo-se assim à ciência natural.

3.1.5 Causalidade e imputação: lei natural e lei jurídica

Na descrição de uma ordem normativa da conduta humana, é aplicado o

princípio da imputação, o qual, na descrição do Direito pela ciência jurídica, embora

análogo ao da causalidade, dele difere pela característica. Ele é análogo ao da causalidade,

pois nas proposições jurídicas as funções de ambos os princípios são semelhantes. Tanto a

lei natural quanto a proposição jurídica ligam dois elementos entre si, embora com

significados distintos. Na proposição jurídica, quando A é, B deve ser, mesmo que não

seja; na lei natural, por sua vez, quando A é, B é.

As proposições jurídicas formuladas pela ciência do Direito só podem ser

normativas; porém, com emprego da ideia do “dever-ser”, elas não assumem significação

autoritária da norma jurídica que descreve o “dever-ser”; detém caráter somente

descritivo. A proposição não constitui imperativo, mas juízo, afirmação acerca de um

objeto para conhecimento. Não acarreta qualquer aprovação da norma jurídica descrita

por ela. Como a proposição exprime conexão funcional, pode ser designada por lei

jurídica.

A lei jurídica consiste em enunciado ou afirmação descritiva do Direito e

não o objeto a descrever, ou seja, a norma jurídica, o Direito. A proposição jurídica, como

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lei jurídica, possui caráter geral: descreve as normas gerais da ordem jurídica e as relações

por meio delas constituídas.

Com respeito à imputação, designa-se ela como a ligação de pressuposto e

consequência expressa na proposição jurídica. Imputável é aquele que pode ser punido

por sua conduta, por ser por esta responsável; inimputável é o que não pode ser

responsabilizado nem punido por suas condutas. Logo, inimputáveis não podem cometer

ilícitos. A imputação, expressa no conceito de imputabilidade, demonstra a conexão de

determinada conduta (um ilícito) com a consequência dela.

3.1.6 Ciência social causal e ciência social normativa

As Ciências Sociais causais possuem como objeto determinado a conduta

humana por leis causais, processam-se no domínio da natureza ou da realidade natural.

As Ciências Sociais normativas interpretam a conduta recíproca entre os

homens, não pelo princípio da causalidade, mas pelo da imputação; descrevem o processo

da conduta humana por normas positivas, como esfera de valores, regras impostas no

tempo e no espaço mediante ações humanas. Expressam uma realidade social. Embora

chamadas de normativas, não necessariamente regulam normas sobre a conduta humana;

descrevem certas normas e as relações entre os homens criadas por aquelas.

3.1.7 Diferenças entre o princípio da causalidade e o da imputação

O princípio da causalidade assevera que, quando A é, B também é (ou será);

o princípio da imputação afirma que, quando A é, B deve ser. A distinção entre ambos é

que a relação entre o pressuposto, como causa, e a consequência, como efeito, expressa

na lei natural não se produz do mesmo modo numa lei moral ou jurídica, mediante norma

imposta pelos homens, mas independente de qualquer intervenção dessa espécie.

Outra diferença entre causalidade e imputação reside em que toda causa

concreta pressupõe, como efeito, outra causa, e todo efeito concreto deve ser

considerado como causa de outro efeito, de tal modo que a cadeia de causa e efeito é

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infindável nos dois sentidos. Disso resulta que todo evento concreto seja a intercepção de

um número em tese ilimitado de séries causais, sem ponto terminal.

Na imputação, por seu turno, o pressuposto a que se imputa a

consequência, numa lei moral ou jurídica, não é necessariamente consequência a ser

atribuída a outros pressupostos. E as consequências imputadas não têm necessariamente

de ser pressupostos a que se atribuem novas consequências. O número de elos de série

imputativa é limitado; há um ponto terminal na imputação.

3.1.8 Problema da liberdade

Sobre as distinções entre causalidade e imputação, repousa a oposição

entre a necessidade e a liberdade. O homem, como parte da natureza, não é livre, pois

sua conduta, como fato natural, advém de uma lei da natureza, resultante de fatos

naturais e determinada por ele.

O homem, como personalidade moral e jurídica, é livre e responsável,

possui sentido distinto da relação anterior. Quando ele é moral ou juridicamente

responsabilizado por sua conduta (moral ou imoral, jurídica ou antijurídica, aprovada ou

não), interpretada como ato meritório, pecado ou ilícito, segundo uma lei moral ou

jurídica, e lhe é imputada consequência (ou pena em sentido amplo), essa imputação

encontra o ponto terminal nessa conduta. Essa questão é de fato: é responsável por essa

conduta.

Desse modo, a questão da responsabilidade moral ou jurídica está

essencialmente conectada à retribuição, e esta é imputação de recompensa ao mérito, da

penitência ao pecado, da pena ao ilícito. Esse é o verdadeiro significado da ideia de que o

homem, sujeito de ordem moral ou jurídica, como membro de uma sociedade, com

personalidade moral e jurídica, é livre, já que é ponto terminal de uma imputação só

possível com base nessa ordem normativa. Diz-se livre o que não se sujeita à lei da

causalidade; somente porque ele é livre, pode ser responsabilizado por sua conduta,

recompensado por seu mérito, penitenciado por seus pecados.

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Assim, para se realizar a imputação ético-jurídica, deve-se considerar o

homem como se fosse livre na sua vontade, capaz de sentir arrependimento ou remorso

ao praticar ações moral ou juridicamente más, embora nem todo homem sinta

arrependimento ou exame de consciência ao agir mal. De todo modo, uma pessoa é moral

ou juridicamente responsável por evento provocado por ato de sua vontade ou por

omissão de ato de vontade que evitaria tal evento. Ser livre implica sua consciência de agir

como quer ou deseja, de saber que a ação é causada pela vontade da pessoa.

3.1.9 Outros fatos, salvo a conduta humana, como conteúdo da norma jurídica

As normas de dada ordem social não se referem necessariamente apenas à

conduta humana, mas também a outros fatos, como a norma moral do amor ao próximo,

ou a norma jurídica, ou a indivíduos (e não a sua conduta).

3.1.10 Normas categóricas

Há normas sociais que prescrevem certa conduta humana sem fixar

pressupostos em todas e quaisquer circunstâncias. Nesse sentido, são normas categóricas,

em contraposição às hipotéticas. Nas normas categóricas, não cabe o princípio da

imputação, que liga pressuposto e consequência, nem se pode prescrever simples

omissão, pois não podem ser reguladas incondicionalmente, caso contrário poderiam ser

observadas ou violadas também incondicionalmente. Apenas normas individuais podem

ser categóricas, já que prescrevem, autorizam, ou positivamente, permitem certa conduta

de determinado indivíduo sem a vincular a um pressuposto.

3.1.11 Negação do dever-ser; o Direito como ideologia

A ciência jurídica é possível apenas como sociologia jurídica, não como

ciência jurídica normativa, dirigida ao conhecimento das normas, pois o conceito de

“dever ser” é sem sentido ou constitui apenas uma ilusão ideológica.

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A sociologia do Direito situa o homem com relação a outros fatos da ordem

do ser, como causas e efeitos, e não na relação com normas válidas. A Teoria Pura do

Direito, por sua vez, como ciência do Direito, concentra-se nas normas jurídicas e não nos

fatos da ordem do ser, ou seja, não foca o querer ou o representar das normas, mas estas

como conteúdo do sentido, das normas jurídicas determinadas pelos fatos.

O sentido de um ato no qual a autoridade jurídica prescreve, determina,

permite ou autoriza dada conduta humana só pode ser descrito como tentativa de

produzir nos indivíduos certas representações que os induzem a adotar determinadas

posturas. Os juízos jurídicos do “dever” ou do não fazer algo se reduzem ao fato de se

tentar conduzir os outros a não praticarem algumas ações, caso contrário serão punidos.

Desse ângulo, não há quaisquer normas nem sentido no “dever-ser”, nem

qualquer sentido jurídico-positivo diferente do sentido moral; considera-se tão-somente o

nexo causal, no qual se insere o acontecer natural e os atos jurídicos apenas na faticidade.

Assim, sociologicamente, o “dever-ser” não pode ser expresso numa descrição científica

do Direito, como ilusão ideológica.

CAPITULO IV - TEORIA PURA DO DIREITO Hans Kelsen

4.1 Estrutura Escalonada da Ordem Jurídica

4.1.1 Constituição

O Direito regula a própria criação, de modo que uma norma só determine o

processo porque outra norma é produzida. Logo, o Direito possui caráter dinâmico, pois

uma norma é válida porque foi produzida de determinado modo por outra, esta

representando o fundamento de validade daquela.

No escalonamento de normas no Direito (supra e infraordenação), a norma

fundamental é o fundamento de validade último que constitui a unidade dessa

interconexão. Na ordem jurídica estadual, a Constituição representa o escalão mais

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elevado do Direito Positivo, entendida no sentido material – as normas positivas pelas

quais é regulada a produção das normas jurídicas gerais.

A Constituição pode ser produzida por via consuetudinária ou por ato de

um ou vários indivíduos dirigido a esse fim – um ato legislativo. No 2º caso, a Constituição

é sempre escrita, o que a distingue da consuetudinária, não-escrita. As normas desta

podem ser codificadas e, quando escritas por um órgão legislativo, transformam-se em

Constituição escrita.

Distingue-se também a Constituição formal da material: na formal, há

normas que regulam a produção de normas gerais (legislação) e referentes a outros temas

politicamente relevantes e preceitos os quais não podem ser revogados ou alterados,

apenas por processo especial submetido a severos requisitos.

Já a Constituição em sentido material possui caráter de legislação na ordem

jurídica estadual moderna; a regulamentação das normas jurídicas gerais compreende a

determinação do órgão ou dos órgãos competentes para sua produção – leis e decretos. É

preciso que a Constituição institua o costume – conduta habitual dos indivíduos sujeitos à

ordem jurídica estadual – como fato gerador de Direito.

No caso da Constituição consuetudinária, as normas com caráter material

podem ser revogadas ou alteradas por leis simples ou pelo Direito Consuetudinário.

4.1.2 Legislação e costume

As escalas da produção constitucional seguem ao Legislativo e a este os

processos judiciário e administrativo. As Constituições dos Estados modernos instituem

órgãos legislativos competentes para produzir normas gerais a serem aplicadas por

tribunais e autoridades administrativas.

Só na legislação democrática se necessita de determinações que regulem o

processo legiferante, a participação do povo na eleição do parlamento, o número de

membros, o processo de deliberações pertinentes à Constituição material.

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As normas jurídicas gerais criadas por via legislativas são normas estatuídas

(conscientemente postas) – seu sentido subjetivo é um “dever-ser”, alçado a um objetivo

dado pela Constituição. O sentido subjetivo do fato que constitui o costume é um “dever-

ser” – devemos nos comportar conforme o costume.

Segundo a jurisprudência tradicional, os atos constitutivos do costume têm

de ser praticados com a convicção de que devem ser praticados – elemento essencial do

fato consuetudinário.

Se o Direito Consuetudinário é positivo, deve haver um ato de vontade

individual ou coletivo cujo sentido subjetivo seja o “dever-ser” interpretado como norma

objetiva válida.

Se a Constituição jurídico-positiva, reguladora da produção de normas

gerais, pode ser produzida por via consuetudinária, pressupõe-se que o costume é fato

produtor de Direito, pressuposição que só pode ser a norma fundamental – a Constituição

em sentido lógico-jurídico.

O Direito legislado e o Consuetudinário revogam-se um ao outro, pelo

principio da lei posterior. O Consuetudinário possui eficácia derrogatória relativamente a

uma lei constitucional formal, até de uma que exclua a aplicação do Direito

Consuetudinário.

Há pensadores, porém, que não afirmam ser o costume fato produtor de

direito; consideram-no fator com caráter apenas declaratório e não constitutivo. Para

eles, o direito constatado – e não criado – pela lei ou pelo costume pode aspirar à

validade somente porque reproduz um direito preexistente. Só o órgão aplicador do

Direito pode decidir se existe o fato de um costume criador de direito; logo, as normas do

Direito Consuetudinário só podem ser criadas por tribunais.

A determinação da existência da norma a aplicar, ou seja, a verificação de

sua criação constitucional, é função do órgão aplicador do Direito e é constitutiva com

eficácia retroativa.

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Outra diferença entre Direito legislado e Consuetudinário consiste em que

aquele é produzido por processo relativamente centralizado e este, por processo

relativamente descentralizado. As leis são criadas por órgãos instituídos para esse fim que

funcionam pelo princípio da divisão do trabalho.

4.1.3 Lei e decreto

O escalão da produção de normas gerais é geralmente subdividido em

outros escalões, dentre os quais leis e decretos, relevantes onde a Constituição atribui a

produção de normas jurídicas gerais a um parlamento eleito pelo povo, mas permite a

elaboração pormenorizada das leis por meio de normas gerais editadas por certos órgãos

da administração ou pelo próprio governo, em casos excepcionais.

As normas gerais que provêm de autoridade administrativa são

denominadas decretos, que podem ser regulamentares ou decretos-lei (ou decretos com

força de lei).

Fala-se em lei em sentido formal em contraponto à de sentido material.

Esta compreende toda a norma jurídica geral em forma de lei; aquela abrange toda e

qualquer norma jurídica geral surgida em forma de lei – a emitida pelo parlamento

publicada por determinada maneira, com todo o conteúdo surgido dessa forma.

4.2 Direito Material e Direito Formal

Há duas categorias de normas jurídicas:

Direito Material Direito Formal

- normas gerais que determinam o conteúdo dos atos judiciais e são em geral designadas como Direito Civil, Direito Penal e Direito Administrativo; – representado pelo escalão da criação jurídica subordinado imediatamente à Constituição

- normas por meio das quais são regulados a organização e o processo das autoridades judiciais e administrativas (processo civil, penal e administrativo); – representado predominantemente pela Constituição pelo escalão de criação jurídica a ela sujeito.

Ambos estão, porém, inseparavelmente conectados somente por sua

ligação orgânica; eles constituem o Direito, que regula a própria criação e aplicação. Toda

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proposição jurídica que pretenda descrever esse direito deve conter ambos os elementos

(material e formal). Numa disposição de Direito Penal, por exemplo, há a determinação do

delito e a da sanção, por um lado, e a determinação do órgão aplicador do direito e a do

seu processo, por outro.

Tanto as normas produzidas por via legislativa ou consuetudinária são

determinadas formal e até materialmente pelas normas da Constituição, quanto as

normas individuais, criadas por atos judiciais e administrativos, são determinadas formal e

materialmente pelas normas gerais legislativas ou consuetudinariamente por normas de

escalão superior.

4.3 “Fontes de Direito”

Legislação e costume são comumente tratados como “fontes do Direito”,

mas, se as normas jurídicas são tanto parte integrante da ordem jurídica como as normas

jurídicas gerais com base nas quais são produzidas e se tomar em conta o Direito

Internacional, as fontes serão apenas o costume e o tratado.

Além disso, “fontes de direito” é expressão figurada com mais de uma

significação; pode-se também entender o fundamento de validade de dada ordem

jurídica, sobretudo a norma fundamental, como fonte de direito. Nesse sentido, a

Constituição representa a fonte das normas gerais criadas por via legislativa ou

consuetudinária; uma norma geral é a fonte da decisão judicial que a aplica representada

por norma individual. A decisão judicial também pode ser entendida como fonte dos

deveres ou dos direitos das partes litigantes.

No sentido jurídico – positivo, contudo, “fontes do Direito” só podem ser o

Direito. Outras fontes distintas desse direito podem ser princípios morais ou políticos,

teorias jurídicas, pareceres de especialistas e outros. As fontes do Direito Positivo são

vinculantes, ao passo que as outras não, até que certa norma jurídica positiva as considere

vinculantes, quando assumem caráter de norma jurídica superior que determina a

produção de uma inferior.

4.4 Criação do Direito, Aplicação do Direito e Observância ao Direito

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Determinada norma só pertence a uma ordem jurídica porque é

estabelecida conforme com outra norma dessa mesma ordem jurídica, o que reconduz à

norma fundamental pressuposta. Como a norma jurídica estadual é criada por um órgão

da respectiva comunidade jurídica, isto é, o Estado, pode-se dizer que é o Estado que cria

o Direito.

A aplicação do Direito é simultânea à sua produção, sem oposição absoluta.

Todo ato jurídico é concomitantemente aplicação de norma superior e produção de

norma inferior. A aplicação do Direito é então a criação de norma inferior com base em

superior ou execução do ato coercivo estatuído por uma norma. Todo ato criador de

direito deve ser ato aplicador de direito: deve ser aplicação de norma preexistente para

valer como ato da comunidade jurídica.

Criação e aplicação do Direito devem ser diferenciadas da observância ao

Direito. Essa é a conduta a que corresponde aquela ligada ao ato coercitivo da sanção. É a

conduta que evita a sanção, é o cumprimento do dever jurídico constituído pela sanção.

Os três constituem funções jurídicas em sentido mais amplo.

4.5 Jurisprudência

4.5.1 Caráter constitutivo da decisão judicial

A jurisprudência tradicional vê a aplicação do Direito principalmente nas

decisões de tribunais civis e penais, os quais aplicam uma norma geral de Direito criada

por via legislativa ou consuetudinária.

A aplicação do Direito, todavia, ocorre tanto na produção de normas

jurídicas gerais como nas resoluções das autoridades administrativas e nos atos jurídico-

negociais.

Quanto à dinâmica do Direito, o estabelecimento de norma individual por

um tribunal representa estágio intermediário do processo, que inicia com a Constituição e

segue pela legislação e pelo costume até a decisão judicial e a execução da sanção. Tal

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processo parte do geral (ou abstrato) para o individual (ou concreto) e é chamado

processo de individualização ou concretização (sempre crescente).

Para individualizar a norma geral por ele aplicada, o tribunal deve verificar

se existem os pressupostos em concreto de uma consequência do ilícito determinados

ambos por uma norma geral. Essas averiguações são as funções essenciais da decisão

judicial.

Uma decisão não necessariamente possui simples caráter declaratório;

pode possuir caráter constitutivo, precisa decidir, o juiz, sobre a questão da

constitucionalidade da norma que vai aplicar: se é vigente, se torna esta norma aplicável

ao caso e se cria, por meio dela, uma situação jurídica inexistente antes da decisão. Logo,

a imposição da sanção concreta possui caráter constitutivo.

Também a averiguação do fato delitual é função plenamente constitutiva

do tribunal, que precisa determinar o órgão pelo qual e o processo no qual o fato

condicionante é verificado no caso concreto.

4.5.2 Relação entre decisão judicial e norma jurídica geral a aplicar

O ato pelo qual é posta a norma individual da decisão judicial é quase

sempre predeterminado por normas gerais tanto do Direito Formal como do Material.

Então, há duas decisões e serem adotadas pelo tribunal: ou dá provimento

à demanda ou à acusação, ordenando sanção estatuída em norma geral, ou rejeita a

demanda ou absolve o culpado, ordena não haver qualquer sanção.

Em ambos os casos, a decisão se pauta como aplicação da ordem jurídica

vigente ou não existe norma jurídica vigente que ligue a conduta à sanção. A ordem

jurídica regula o comportamento do homem tanto positiva – obriga certa conduta – como

negativamente – permite certa conduta, pois não a proíbe.

Há alguns conflitos de interesse resultantes dessa regulação; nenhuma

ordem jurídica, entretanto, pode prevenir todos os tipos de conflitos de interesses. Nesse

caso, pode o tribunal, por receber poder ou competência, produzir uma norma jurídica

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individual cujo conteúdo não é definido por norma geral de Direito Material. No caso,

exerce a função de legislador e essa norma jurídica individual é posta com eficácia

retroativa.

4.5.3 “Lacunas” do Direito

O fato de dada conduta ser regulada negativamente pela ordem jurídica, ou

seja, não ser proibida, ser permitida, é entendido como “lacuna” da ordem jurídica.

Uma “lacuna” é identificada quando o Direito vigente não é aplicável em

caso concreto, pois nenhuma norma jurídica geral se refere a esse caso. O raciocínio é

errôneo, porquanto, quando a ordem jurídica não estatui o dever de um indivíduo de

praticar determinada conduta, ela permite tal conduta. Logo, a aplicação do Direito não se

encontra logicamente excluída.

A “lacuna” só é presumida quando a ausência de norma jurídica é

considerada pelo órgão aplicador do Direito como indesejável do ponto de vista da

política jurídica, quando a aplicação do Direito é afastada por razão político-jurídica,

considerada não equitativa ou desacertada. Tal juízo de valor é bastante relativo, pois

pode gerar juízo de valor oposto. O tribunal, porém, não pode decidir a aplicação de uma

ordem jurídica qualquer sempre que houver inexistência de norma jurídica geral para o

caso concreto.

Além de “lacunas” próprias, há as técnicas, consideradas possíveis. A lacuna

técnica ocorre quando o legislador omite normatizar algo que deveria ser, isto é, diferença

entre um direito positivo e um ideal.

4.5.4 Criação de normas jurídicas gerais pelos tribunais; juiz como legislador;

flexibilidade do Direito e segurança jurídica

Um tribunal pode receber competência para criar, por decisão, não só

normas individuais, vinculantes para o caso em questão, bem como normas gerais. Tal

ocorre quando a decisão cria o precedente judicial, vinculante para a decisão de casos

idênticos, quando não há predeterminação da norma por ela estabelecida, ou quando a

determinação não é unívoca (diferentes possibilidades de interpretação).

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No 1º caso, o tribunal cria Direito Material novo; no 2º, a interpretação

contida na decisão assume o caráter de norma geral. A generalização pode ser realizada

pelo próprio tribunal que cria o precedente ou por outros tribunais vinculados por esse

precedente, embora estes possam generalizar de modo diferente a decisão que constitui

o precedente. Para que a decisão seja uniforme, deve-se considerar que os casos

concretos possuam entre si certos pontos essenciais coincidentes, para serem

considerados “iguais”.

Essa função criadora de direito dos tribunais surge com evidência em

tribunais de última instância, já que estes recebem competência para criar também

normas gerais por decisões com força de precedentes, o que pode consistir em

descentralização da função legislativa.

Quanto à relação entre o órgão legislador e os tribunais, podem se

distinguir dois sistemas jurídicos: a produção de normas gerais está centralizada,

reservada a um órgão legislativo central, e os tribunais se limitam a aplicar aos casos

concretos, nas normas individuais que produzem, as elaboradas pelo órgão legislativo.

Esse sistema apresenta falta de flexibilidade, mas há segurança jurídica, pois a decisão é

até certo ponto previsível e calculável, o que leva os indivíduos a orientar sua conduta

pelas previsíveis decisões dos tribunais. A segurança jurídica também se estende à função

dos órgãos administrativos.

No segundo sistema, não há órgão legislativo central: os tribunais e os

órgãos administrativos decidem os casos concretos segundo sua livre apreciação, pois se

considera não haver dois casos perfeitamente iguais. Esse sistema foi proposto por Platão

na sua ideia de Estado ideal. Nele há total flexibilidade, mas se renuncia à segurança

jurídica. Não há como prever as decisões; logo, não se sabe de antemão o que é proibido

ou permitido.

4.5.5 Negócio jurídico

4.5.5.1 Negócio jurídico como fato criador de direito

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A norma jurídica individual, que representa sanção judicial, estatui sanção

com caráter de pena ou execução, cujo fim é o ressarcimento.

A conduta pela qual se causa prejuízo é contrária ao Direito (antijurídica), é

delito civil, porque é condição de execução civil. Há dois modos de provocar prejuízos, o

primeiro é causado por conexão com um negócio jurídico precedente ou

independentemente dessa conexão. O prejuízo do segundo tipo ocorre quando alguém

causa prejuízo a outrem por delito penal; nessa hipótese, à sanção civil se acresce a penal.

A lesão do primeiro tipo ocorre quando um dos contratantes causa prejuízo

a outro por não cumprir sua obrigação contratual: a realização de negócio jurídico e a

conduta contrária a ele. Certa postura é tida como contrária ao negócio jurídico, já que o

sentido subjetivo do ato ou dos atos que compõem o negócio jurídico é uma norma, pois

este é fato produtor de normas. O termo é usado tanto para significar o ato produtor da

norma quanto a norma produzida pelo ato. O negócio jurídico típico é o contrato, no qual

as partes acordam que devem conduzir-se de certo modo. Esse “dever-ser” é o sentido

subjetivo do ato jurídico-negocial, mas também seu sentido objetivo, isto é, este ato é

fato produtor de Direito porque a ordem jurídica lhe concede tal qualidade, tornando-o

pressuposto de sanção civil.

Por ser fato produtor de Direito, o negócio jurídico confere às partes o

poder de regular suas relações mútuas, dentro do quadro das normas gerais criadas por

via legislativa ou consuetudinária, mediante normas geradas pela via jurídico-negocial.

4.5.5.2 Contrato

Há distinção entre atos jurídicos unilaterais ou bilaterais, ou plurilaterais,

conforme o fato jurídico-negocial é composto pelo ato de um ou dois ou mais indivíduos.

O negócio jurídico mais relevante no Direito moderno é o contrato –

bilateral ou plurilateral. Este consiste na declaração de vontades concordantes de duas ou

mais pessoas dirigidas a determinada conduta delas. A ordem jurídica pode definir de que

modo essa vontade é expressa, embora as partes tenham, de alguma maneira, de

exteriorizá-la numa aparência.

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50

Pode, todavia, haver discrepâncias entre a vontade de uma das partes e a

sua declaração dela, com efeitos a serem explicados pela ordem jurídica. Esta pode definir

que não se concluiu um contrato criador de direito quando uma das partes demonstra que

o sentido por ela pretendido diverge do da declaração. A ordem jurídica, contudo, pode

determinar que tal divergência não incide sobre a validade da norma contratualmente

criada, é juridicamente irrelevante. A ordem pode atribuir mais peso à vontade real que à

declaração.

O contrato consiste numa proposta ou numa oferta e na sua aceitação, pelo

qual passa a vigorar uma norma que regula a conduta recíproca dos contratantes,

constituindo a denominada “autonomia privada”, pois possui caráter individual.

Os contratos criadores de normas gerais que instituem um estatuto

associativo ou uma organização internacional são denominados convenções.

4.6 Administração

As três funções essenciais do Estado são legislação, jurisdição e

administração. As duas primeiras representam funções jurídicas em sentido estrito, pelas

quais são criadas e aplicadas as normas da ordem jurídica estadual, desempenhadas por

órgãos jurídicos.

Já a função administrativa, atividade chamada de administração estadual, é

da mesma natureza que as outras duas – função jurídica no sentido estrito da criação e da

aplicação das regras jurídicas. A função do governo, órgão administrativo superior,

consiste na participação da atividade legislativa a ele adjudicada pela Constituição, para

concluir tratados internacionais, publicar decretos e dar ordens administrativas aos órgãos

da administração a ele sujeitos e aos súditos.

Quanto às autoridades administrativas ligadas ao governo, têm elas de

aplicar normas gerais que estatuem sanções penais, função que não difere da jurisdição

dos tribunais. A diferença entre função judicial e administrativa surge quando o ato

coercivo não possui caráter de sanção, trata-se da aplicação de normas jurídicas que não

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se apresentam como reação contra a conduta de um indivíduo definida pela ordem

jurídica.

As funções atribuídas a indivíduos qualificados como “funcionários do

Estado” não são a eles conferidas, mas ao Estado.

4.7 Conflitos entre Normas de Diferentes Escalões

4.7.1 Decisão judicial “ilegal”

Em razão do escalonamento de normas, pode haver conflitos entre uma

norma de escalão superior e uma de inferior. Tal conflito parece ocorrer quando se

tomam ao pé da letra algumas expressões usadas na jurisprudência tradicional, que fala

sobre decisões jurisdicionais “ilegais” e leis “anticonstitucionais”, como se tal fato pudesse

suceder.

No entanto, uma “norma contrária às normas” representa contradição dos

termos; uma norma jurídica que não corresponde à norma que a criou não pode ser

considerada válida; é nula, nem sequer seria norma jurídica. O que é nulo não pode,

portanto, ser anulado pelo Direito. Anular uma norma, porém, não pode anular o ato do

qual a norma é o sentido: o que de fato aconteceu não pode se transformar em “não-

acontecido”. Se a ordem jurídica pretende anular uma norma, precisa antes considerá-la

como norma jurídica objetivamente válida, conforme com o Direito.

Além disso, dizer que uma decisão judicial ou uma resolução administrativa

são contrárias ao Direito só pode significar que o processo em que ela foi produzida (ou o

seu conteúdo) não corresponde à norma geral criada por via legislativa ou

consuetudinária, a qual determina esse processo ou esse conteúdo. Se dado tribunal

decide um caso concreto e afirma ter aplicado determinada norma jurídica geral, a

questão está decidida enquanto não for anulada pela decisão de um tribunal superior;

logo, a decisão de Primeira Instância não pode ser considerada “nula”, mas anulável,

embora considerada como “antijurídica” pelo tribunal competente para decidir. Só pode

ser anulada por processo previsto pela ordem jurídica.

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Nesse caso, as partes podem questionar a juridicidade (legalidade) da

decisão, o que não pode ocorrer quando a decisão parte de um tribunal de última

instância, o qual pode criar, quer norma jurídica individual com conteúdo predeterminado

em norma geral, quer norma jurídica individual cujo conteúdo será fixado pelo próprio

tribunal de última instância, com validade definitiva. Assim, uma ordem jurídica não pode

ser ilegal, contrária ao Direito, enquanto for válida

4.7.2 Lei “inconstitucional”

Afirmar que certa lei válida é contrária à Constituição (anticonstitucional)

parece contradição, pois ela só pode ser válida com fundamento na Constituição, seu

fundamento de validade precisa residir na Constituição. Se ela é considerada inválida, não

pode sequer ser tida como lei, pois não é juridicamente existente, não comporta qualquer

afirmação jurídica.

Logo, a ideia da jurisprudência tradicional de que uma lei é inconstitucional

não pode ser tomada em sentido literal. Seu significado pode ser apenas que a lei em

questão, conforme a Constituição, pode ser revogada não só pelo processo usual – por

outra lei – ou por processo especial, previsto pela Constituição. Se não for revogada, é

considerada como válida; se é válida, não é inconstitucional.

Como a Constituição regula órgãos e processos legiferantes, o legislador

constitucional não pode esperar que as normas constitucionais sejam sempre respeitadas

e totalmente. A Constituição deve conferir competência a determinado órgão jurídico

para decidir se, em caso concreto, foram cumpridas as normas constitucionais, se um

instrumento cujo sentido subjetivo é ser uma lei no sentido da Constituição valerá

também do mesmo modo segundo seu sentido objetivo. Só ao próprio órgão legislativo ou

a um órgão distinto dele, como um tribunal especial, pode ser conferida competência para

decidir a questão da inconstitucionalidade de uma lei. Se a Constituição não o preceitua,

os órgãos que aplicam as leis não se tornam competentes para efetuar tal controle. Um

mínimo de poder tem de ser a eles delegado.

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53

Em outro caso, pode o órgão legislativo exercer tal função, ficando em

situação análoga à de um tribunal de última instância cuja decisão tem força de caso

julgado. A Constituição confere ao legislador competência para, por processo diferente do

determinado pelas leis constitucionais, criar normas jurídicas gerais e dar-lhes conteúdo

diferente daquele determinado pelas normas da Constituição.

Assim, a Constituição que não transfere para um órgão diferente do

legislativo o controle da constitucionalidade das leis terá regulação direta e indireta de

legiferação, cabendo ao órgão legislativo a possibilidade de optar entre as duas.

Quando, porém, a atribuição de competência é dada a todos os tribunais,

eles têm a faculdade de, quando consideram a lei inconstitucional, anular sua validade

somente no caso concreto, permanecendo ela em vigor para todos os outros casos.

Caso o controle de constitucionalidade seja reservado a um único tribunal,

este pode ser competente para anular a validade da lei tida como inconstitucional em

relação a todos os casos a que a lei se refira e ainda punir os responsáveis pela produção

desta pela chamada “inconstitucionalidade de uma lei” criada com a participação deles.

Conclui-se que, entre a lei e a decisão jurisdicional, a Constituição e o

decreto, entre uma norma superior e uma norma inferior de uma ordem jurídica, não é

possível existir qualquer conflito que destrua a unidade desse sistema normativo,

impossibilitando quaisquer proposições jurídicas contraditórias entre si.

4.7.3 Nulidade e anulabilidade

Conclui-se que, numa ordem jurídica, não pode ocorrer nulidade: uma

norma pertencente a uma ordem jurídica não pode ser anulada, mas anulável em

diferentes graus.

Só pode ser anulada, em regra, com efeitos para o futuro; os passados

permanecem intocados, embora possa ser anulada com efeito retroativo, permitindo que

os efeitos passados sejam destruídos. Ela, porém, foi válida durante certo tempo, até sua

anulação.

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Logo, não é concreta a afirmação de “declaração de nulidade” quando há

decisão anulatória da lei, quando o órgão que anula a lei a declara, na decisão, como “nula

desde o início”. A declaração não tem caráter só declarativo, mas constitutivo.

A ordem jurídica apenas pode conferir a certo órgão poder para anular

norma criada por outro; pode, porém, atribuir poder a quem quer que seja para decidir se

a norma foi produzida conforme com a ordem jurídica e com o conteúdo por esta

estabelecido, se é vinculante para ele. Dentro da ordem jurídica, a nulidade é somente o

grau mais alto da anulabilidade.

CAPÍTULO V - DIREITO E JUSTIÇA

Alf Ross 5.1 Conceito de Direito Subjetivo 5.1.1 Conceito de Direito Subjetivo como ferramenta técnica de apresentação

Os enunciados aparentemente teóricos sobre criação de deveres, direitos,

presentes nas normas jurídicas, devem ser interpretados como diretivas ao juiz, podendo

ser reformulados.

A tarefa do pensamento jurídico consiste em conceituar as normas jurídicas

para reduzi-las a um ordenamento sistemático, mediante o emprego da técnica de

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apresentação. Cabe ao pensamento jurídico proceder a esse processo de simplificação, o

que já foi antecipado pelo pensamento pré-científico.

Assim, a função do conceito de Direito Subjetivo, segundo um esquema,

pode ser explicada em três contextos: na apresentação abstrata do Direito vigente, a

expressão Direito Subjetivo é destituída de referência semântica; nas argumentações dos

advogados perante os tribunais e nos fundamentos das decisões, pode ser explicada pelo

mesmo sistema, com omissão da propriedade intermediária; o conceito é também

empregado em enunciados os quais parecem descrever fatos puros e não regras de

Direito.

Logo, em todos os contextos considerados, os enunciados referentes a

direitos subjetivos descrevem o Direito vigente ou a sua aplicação a situações específicas

concretas, sem, entretanto, qualquer referência semântica; não designa fenômeno de

nenhum tipo inserido nos fatos condicionantes e nas consequências condicionadas.

5.1.2 Aplicação do conceito de Direito Subjetivo a situações típicas

A expressão “Direito Subjetivo” não designa qualquer fenômeno existente

em certas condições específicas; é possível expor o Direito vigente sem recorrer ao

conceito de Direito Subjetivo. Tal conceito é usado para designar aquele aspecto de certa

situação jurídica vantajoso a uma pessoa; ela é contemplada pela perspectiva da pessoa a

quem favorece.

Como o conceito de Direito Subjetivo precisa indicar algum conteúdo

jurídico, as liberdades, distintas das contagens decorrentes do regulamento jurídico, estão

excluídas desse conceito. Daí, as vantagens para determinado indivíduo a que se refere

esse conceito devem surgir como consequência de um regramento jurídico, com efeito

restritivo, o que implica ser o Direito Subjetivo sempre correlato de um dever, uma

restrição ao próximo.

Além disso, esse conceito pressupõe que o titular do direito possui dada

faculdade em relação à pessoa obrigada e que nenhuma outra pessoa pode mover

processos, exceto o proprietário. Ou seja, o titular de um direito detém poder absoluto de

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56

conservar ou abandonar sua posição vantajosa de gozo passivo. Assim, a máquina jurídica

é acionada segundo a vontade do detentor do direito.

Pode-se dizer então que o conceito de Direito Subjetivo é usado

exclusivamente para indicar situação na qual o ordenamento jurídico deseja assegurar a

uma pessoa a liberdade de poder se comportar como lhe agrade para proteger os próprios

interesses. O conceito indica a autoafirmação autônoma do indivíduo, que não representa

individualismo desenfreado nem antítese do caráter social de qualquer ordenamento

jurídico.

5.1.3 Aplicação do conceito de Direito Subjetivo a situações atípicas

Atualmente, concebe-se o Direito, como concepção metafísica, tal qual uma

força espiritual, pois um direito subjetivo é uma entidade simples e indivisa a qual precisa

existir num sujeito específico, e este sujeito tem de ser ou um ser humano ou uma

organização de seres humanos. Tais teses, contudo, podem conduzir ao erro.

A ideia de que o Direito Subjetivo é entidade simples e indivisa presente

num sujeito específico cabe em situações típicas as quais apontam todas ao mesmo

objeto e constituem a situação jurídica. Caso surjam situações em que as várias funções

não se referem ao mesmo sujeito, o contexto é inteiramente diferente. Nesse caso,

quando há mais de uma propriedade, considera-se que cada parte pode, em certos

sentidos, ser considerada como sujeito do direito. Ou talvez não caiba falar em

propriedade dupla no sentido típico, pois as funções combinadas no proprietário típico

estão divididas entre indivíduos diferentes; não há então um deles ocupando a posição de

proprietário típico. Há outras situações atípicas, quando o sujeito do direito é substituído

em sua posição, como, por exemplo, na transferência de propriedade.

Quanto ao conceito metafísico do Direito Subjetivo como força moral e

espiritual, ele conduz a um postulado dogmático de que somente seres humanos e

pessoas jurídicas podem ser sujeitos do direito. Esclarece-se que apenas eles podem atuar

como sujeitos de processos ou disposições. Nada obriga, entretanto, que sejam interesses

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apenas humanos aqueles conhecidos pelas normas jurídicas como protegidos por um

direito subjetivo.

5.1.4 Estrutura de um direito subjetivo

O conceito de direito subjetivo descreve uma situação jurídica e contém os

seguintes elementos constitutivos da estrutura desse direito:

- sujeito do direito subjetivo (em situações típicas, os sujeitos coincidem

num sujeito geral simples; em atípicas, estão separados);

- conteúdo do direito subjetivo (inclui tanto a faculdade do titular do direito

de dispor contra outros quanto seu poder de fazer valer tal faculdade pela instauração de

processos);

- objeto do direito subjetivo;

- proteção do direito subjetivo (a proteção processual de um direito

representa apenas outro aspecto do conteúdo dele; uma faculdade nada é sem a tutela do

aparato jurídico). Pode haver proteção dinâmica – expectativa de um sucessor de ser

colocado numa posição jurídica – e proteção estática – relação entre o direito substantivo

e os procedimentos jurídicos. Na proteção dinâmica, a relação é com problemas internos

do direito substantivo;

- elementos estruturais indicados nos itens acima, sobretudo a divisão

fundada no conteúdo.

5.1.5 Discussão

Os autores Leon Duguit (francês) e A. V. Lundstedt (sueco) discutem as

conceituações de direito subjetivo e denunciam as ideias metafísicas nelas presentes.

Afirmam que qualquer opinião que veja no direito subjetivo força espiritual criada por

certos fatos carece de sentido e que a única realidade demonstrável nas situações de

direito subjetivo consiste na função da maquinaria jurídica.

Asseveram ainda que o direito subjetivo não existe: Duguit postula que a

expressão direito subjetivo só pode significar poder inerente a uma vontade individual

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58

para se afirmar perante outras; para ela, não há nas vontades tais diferenças iminentes;

não há, portanto, direitos subjetivos.

Lundstedt, por sua vez, crê no sentido imanente das palavras. Assegura que

não há direitos no sentido conceitual, embora admita haver certas realidades por trás do

conceito. Não vê razões para deixar de usar a expressão “direito subjetivo” para designar

tais realidades.

Ambos confundem os pontos de vista jurídico e sociológico. O conceito de

direito subjetivo, como jurídico, deve ser analisado como instrumento para descrever

certo conteúdo jurídico, ferramenta de apresentação. Os autores não percebem também

as diversas relações jurídicas distinguíveis numa situação de direito subjetivo.

Os pioneiros na percepção de que esse conceito engloba funções distintas e

mutuamente independentes - as do gozo e da administração – foram Demogue, Nékam e

Bekker.

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CAPÍTULO VI - ESTRUTURAS LÓGICAS E SISTEMA DO DIREITO POSITIVO Lourival Vilanova

6.1 Sistema Jurídico: Continuidade Normativa

Sob o prisma jurídico, cada Estado é um sistema; daí haver o pluralismo de

seus sistemas jurídicos. Como a norma fundamental constitui a proposição básica, ela é,

logicamente, postulado que inicia o sistema normativo proporcional. Antes dela, existe

somente o factual – físico ou social – ainda não juridicizado.

Para que o sistema exista como proposições normativas, o passado é

dogmaticamente irrelevante, história pré-jurídica. O sistema se origina empiricamente

quando determinado suporte factual é elevado a fato jurídico fundamental; aquele,

sociologicamente, condiciona a proposição fundamental; formalmente é esta que

juridifica o dado de fato (distinção kantiana entre os pontos de vista genético ou empírico

e lógico ou sistemático).

O sistema se compõe de proposições normativas cuja origem é outra

proposição normativa, a qual só pertence ao sistema se puder ser reconduzida à

proposição fundamental desse mesmo sistema. O método de construção de proposições é

estipulado por outras normas.

Segundo Kelsen, o sistema de proposições normativas contém, como parte

integrante, regras de formação e transformação de suas proposições, presentes no

interior dele, não metas sistemáticas, embora constituam nível de metalinguagem.

Desse modo, a posição que dada norma ocupa na escala do sistema é

relativa: ela pode ser tanto sobrenorma quanto norma-objeto. A relatividade está

expressa nos conceitos de criação e aplicação de normas. A última norma no regresso

ascendente é a fundamental, de construção, a qual não provém de outra.

Nesse sentido, o que confere homogeneidade às regras de Direito Positivo

é sua normatividade. Tal homogeneidade estrutural consiste no modo constante de

relacionar dados ou elementos da experiência (fatos e condutas). Caso a relação seja de

causa/efeito, tem-se natureza; se é de dever-ser, tem-se imputação.

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Além disso, o sistema do Direito Positivo caracteriza-se pela unicidade do

ponto de partida. A pertinência a um sistema existe quando se pode relacionar a forma

normativa com as fontes de criação do Direito e estas conduzem à norma fundamental

(fonte última).

6.2 Unidade do Sistema como Unidade Formal

As proposições normativas do sistema jurídico possuem diversos conteúdos

e se saturam com referências a fatos do mundo. A unidade dele é formal; não advém da

homogeneidade de uma região de objetos, os quais se encontram no sistema do Direito:

um fato geográfico, um fenômeno biológico, dentre outros. O que conecta proposições

normativas tão variadas em conteúdos é o fundamento de validade de cada uma; as

proposições não derivam umas das outras por inferência.

Na norma fundamental, não é possível sacar as proposições da Constituição

positiva ou as leis ordinárias ditadas nos preceitos da Constituição por inferência. A

decisão judicial extrapola a mera dedução silogística, pois a norma individual da sentença

ultrapassa o âmbito da premissa maior, como constatação referencial nova, nela está

presente potencialmente todo o sistema. O juiz é órgão em virtude de normas e decide

segundo o Direito substantivo e o adjetivo aplicável.

6.3 Direito como Sistema Empírico

Quando o Direito Positivo é objeto de conhecimento como sistema,

independente dos conteúdos empíricos que o preenchem, faz-se teoria formal do Direito

em sentido lógico. A forma global de sistema é forma sintática que o Direito adquire e não

sistema formal lógico-dedutivo. Se o fosse, haveria um sistema de linguagem com o

mínimo de interpretações para conferir-lhe natureza de sistema lógico.

O sistema de proposição normativa já contém uma quantidade de

interpretações - ser normativo. Suas proposições são prescritivas sobre a conduta e não

quaisquer umas aplicáveis às células, aos astros, dentre outros. Por isso, o sistema jurídico

é empírico, não formal-lógico; é sistema sobre uma região material. Possui de formal a

estrutura da linguagem, a composição sintática interior, a qual não é vista sem sair do

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61

plano empírico. O Direito não usa a linguagem para falar sobre ele mesmo, como

linguagem; se o fizesse, seria um discurso sobre um discurso.

Ademais, a ciência do Direito não se reduz a uma análise em nível de

metalinguagem formal sobre o Direito Positivo; constitui um sistema cognoscente sobre

outro sistema prescritivo, tomando o sistema-objeto – o do Direito Positivo – seu aspecto

formal.

6.4 Dois Níveis de Sistema

O Direito, como experiência, tomado na totalidade integrada de sentido,

encerra dois sistemas: um, cognoscitivo; outro, prescritivo. Separam-se por um corte

abstrato no dado da experiência: o sistema da ciência do Direito insere-se no próprio

Direito, como fonte material sua. Nesse aspecto, representa metassistema – um sistema

sobre outro, supraordenado.

Tanto o conhecimento jurídico quanto o Direito Positivo podem ser

denominados sistemas lógicos: são constituídos de linguagem, embora seja uma descritiva

e outra prescritiva. Ambas se manifestam sintaticamente pela proposição. É esta uma

entidade lógica; não se confunde nem com a oração, nem com a sentença, nem com o ato

de quem emite ou recebe a sentença. A proposição consta de partes e compõe um todo

relativamente a elas.

Os dois sistemas - o da ciência do Direito e o do Direito Positivo – são

formalizáveis, pois contêm estruturas proposicionais: uma descritiva, da ciência jurídica;

outra, normativa, do Direito Positivo. Umas implicam as outras; umas são partes de outras

e todas ingressam numa forma mais abrangente – a do sistema. O sistema é a forma das

formas, para Husserl.

O que se denomina ordenamento jurídico representa sintaticamente o

sistema; logo, o Direito é sistema lógico de proposições, tanto o Direito – ciência -, como o

Direito Positivo.

6.5 Conceito de Sistema em Nível de Objetos

62

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Na área do Direito, o termo sistema é empregue em dois planos: o da

ciência e o do objeto. Este contém as proposições, entes lógicos cujo veículo de expressão

é a linguagem. Então, a forma de sistema reside no Direito-objeto, bem como na ciência

do Direito, pois o logos proposicional está presente nos dois planos.

O sistema consiste em haver partes de um todo, vínculo que as interliga.

Assim, no sistema se encontram elementos e relações dentro de uma forma de todo que

corresponde ao sistema, para Husserl. Implica ordem das partes constituintes

relacionadas entre si. Tais relações, porém, não são partes do sistema; fixam sua forma de

composição interior, sua modalidade de estrutura.

Para existir sistema empírico, inexiste, em sentido estrito, compatibilidade

ou incompatibilidade entre fatos ou coisas dele constituintes. Compatíveis ou

incompatíveis são as proposições mediante as quais os fatos do mundo ingressam na

ordem do conhecimento. O sistema existe quando as partes são proposições e entre elas

há relações que as agrupam num todo consistente e coerente.

Também aí se pode confirmar tanto a ciência do Direito quanto o objeto

desse conhecimento normativo: em ambos os níveis, está a linguagem e o dado lógico – a

proposição. O objeto jurídico diz algo sobre si – saber-se componente do todo.

Além disso, o sistema de proposições da ciência jurídica não se dirige aos

fatos sem a mediação das proposições jurídicas que os qualificam; sem elas, nenhum fato

do mundo pertence ao universo jurídico.

6.6 Unidade do Sistema na Ciência e no Direito

O Direito Positivo e a ciência que o tem por objeto tendem à forma-limite

de sistema. Há um sistema sobre outro, um metassistema e um sistema-objeto. O

princípio de uma unidade no sistema do Direito Positivo é semelhante ao do

conhecimento jurídico-dogmático.

O sistema da ciência jurídica tem na norma fundamental a condição de

conhecimento do objeto (o Direito Positivo). Essa norma, como condição da possibilidade

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63

do conhecimento dogmático do Direito, é sintaticamente proposição situada fora do

sistema de Direito Positivo; não é norma posta, mas pressuposta, proposição de

metalinguagem.

Se a norma fundamental representa a proposição que confere unidade ao

sistema-objeto, essa unidade se comunica à ciência, de certo modo. Mas há unidade da

ciência, como teoria, com fundamento nas estruturas formais, nas proposições e nas suas

articulações no todo de um sistema.

O sistema do Direito Positivo inclina-se à sistematização da ciência, tendo

em vista a ordenação do material empírico em formas lógicas – a pluralidade de norma

positiva. É a forma lógica pura (não as formas sintáticas) que confere integridade ou

completude ao sistema do Direito. É forma pura do pensamento jurídico, compondo a

teoria pura do Direito.

Para Kelsen, todo modo puro de conhecer tem fundamento no objeto. Se

se aplicam os conceitos fundamentais de causalidade ou imputabilidade, é porque há

fundamento nas coisas, índices objetivos nos dados da experiência.

6.7 Sistema como Categoria Gnosiológica

Segundo Kelsen, assim como o caos de sensações se converte em natureza

como sistema unitário (cosmos) por meio do conhecimento ordenado da ciência, a

pluralidade das normas gerais e individuais postas pelos órgãos (material dado à ciência

do Direito) se transforma em sistema unitário isento de contradições, isto é, ordem

jurídica por meio da ciência jurídica.

O positivismo crítico kelsiano não pode converter a ciência em fonte técnica

de produção do sistema jurídico. A sistematização do Direito é inacabada e decorre de

processo de racionalização do sistema da cultura. O conhecimento científico do Direito

Positivo não produz normas jurídicas nem a totalização delas como sistema. A

sistematização provém do legislador ou das fontes indicadas no ordenamento para

produzir regras de conduta como um todo de regras jurídicas.

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O sistema, como forma transcendental-gnosiológica de síntese, não se

coloca no interior do ordenamento. Não reside no nível da linguagem do Direito Positivo,

mas na linguagem da ciência do Direito e na da teoria da ciência do Direito – lógico-

transcendental jurídica, conforme Kant. Assim, o sistema encontrado no Direito Positivo

representa construção normativa imperfeita, não teorética ou epistemológica.

6.8 Unicidade do Sistema

Segundo Kelsen, há, de um lado, a teoria da pluralidade dos sistemas

normativos (estatais); de outro, a da unicidade de um sistema global. Empiricamente, a

evolução histórica do Direito tem conduzido a um sistema de Direito Internacional, que

corresponde a uma comunidade universal das nações, embora seja apenas unidade

cognoscitiva.

O fechamento do sistema ocorre só do ponto de vista do conhecimento

dogmático levado a termo pela ciência do Direito. O sistema jurídico é aberto, em

intercâmbio com subsistemas sociais, criando seu conteúdo de referência destes, os quais

entram no sistema-direito por esquemas hipotéticos, descritores de fatos linguísticos e

esquemas sequenciais.

A unidade de um sistema de normas decorre de um superior fundamento

de validade desse sistema – a norma fundamental ou a Constituição positiva. A unidade

advém da possibilidade, também gnosiológica, de se poder conceber todo o material

jurídico com um só sistema. No pluralismo de sistemas, cada um o é porque repousa em

um único fundamento, de validade. O pluralismo de normas fundamentais corresponde a

cada Estado, com morfologia política historicamente diversificada.

O Direito Positivo estatal já possui, como constituinte ontológico, certa

unidade, que conduz a certa homogeneidade, cujo limite é um único sistema de normas

jurídicas positivas – o sobressistema -, perante o qual os sistemas jurídicos nacionais são

de certo modo sistemas – partes ou subconjuntos de um conjunto.

6.9 Conjuntos e Subconjuntos

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Em linguagem formal, há conjuntos e subconjuntos. O sistema do Direito

das gentes é conjunto, cujos subconjuntos são os sistemas normativos estatais, os quais se

excluem entre si (por precisarem de igualdade) e se incluem como partes ou membros do

superconjunto – Direito Internacional Público. O conteúdo normativo diversificado dos

sistemas parciais não deriva, porém, do sistema total.

Semelhante situação ocorre no Direito Público federal: da Constituição

federal não se obtém toda a diferenciação normativa das leis federais, das Constituições

estatais e das leis estaduais: há um tanto de homogeneidade e heterogeneidade numa

estrutura federal de Estado. A simetria não pode, contudo, extrapolar certo ponto sem o

Estado federal desfazer-se em unitário, assim como a dissimetria não pode ultrapassar

certo ponto sem o Estado federal desfazer-se em vários estados soberanos.

6.10 Extralógico na Relação entre Sistemas

Nas relações entre sistemas normativos parciais e o sistema do Direito das

gentes (relações de subordinação e supraordenação), tanto se pode tomar um ou outro

termo de referência: o sistema normativo estatal ou o de Direito Internacional. Pelas duas

vias se obtém a construção unitária do universo jurídico.

Isso ocorre porque extralógico é critério de validade para fundamentar um

sistema de normas. A categoria de unificação tanto pode ser a norma fundamental de

dado sistema de Direito estatal, como a norma fundamental do Direito Internacional

Público. Em outras palavras, ou a fonte de validade dos sistemas estatais e do Direito

Internacional deriva da Constituição positiva e da norma fundamental relativa do Estado,

ou o fundamento de validade de todos os sistemas estatais deriva do Direito Internacional

Positivo, no qual reside a absolutamente última norma fundamental de todo o universo

jurídico. Nas duas soluções, há a construção gnosiologicamente una.

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CAPÍTULO VII - ESTRUTURAS LÓGICAS E SISTEMA DE DIREITO POSITIVO Lourival Vilanova

7.1 Consistência no Sistema da Ciência do Direito

Quando o sistema de proposição relativo a certo universo de objetos é

científico, ele deve apresentar critérios que permitam decidir se dada proposição pertence

ou não a ele: coerência interna e completude (ele possui proposição ou contradição).

O sistema formalizado da ciência do Direito deve apresentar esses

requisitos como condição para sua cientificidade, pois uma ciência jurídica sem

possibilidade de decidir se certa proposição pertence ou não a seu sistema fica à mercê de

proposições oriundas de várias origens. Quando a teoria pura do Direito define o domínio

deste como normativo, só permite como pertinentes proposições normativas.

Sobre a consistência interna, a ciência jurídica a entende como requisito

essencial, pois a ciência a qual permite fundamentar ou a proposição ou a sua

contraditória (um sistema que abriga tanto “p” como “não-p”) não pode pretender o valor

verdade. A inconsistência impede formalmente a verdade sobre o universo de objetos

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antes de atingi-lo. Quando se deseja testar se dado sistema de ciência positiva do Direito é

lógico, regride-se ao nível da formalização e constata-se que, para toda interpretação das

variáveis, estas não podem pertencer a um só sistema – são mutuamente excludentes ou

reciprocamente impossíveis. Se tal ocorre, elas destroem a estrutura formal do sistema.

Assim, caso a ciência do Direito aspire sê-lo, deve delimitar seu campo de

conhecimento; ter unidade metodológica; possuir “teoreticidade” em sua finalidade e

possuir sistema ou estrutura formal, articulando as proposições constituintes desse

conhecimento.

A montagem de proposições formadoras de certo sistema se condiciona à

não contraditoriedade entre elas – caso haja contradição entre proposições, ambas não

podem ser verdadeiras e não se trata de sistema científico.

7.2 Sistemas Não-isomórficos

Caso dois sistemas (como o da Ciência do Direito e o do Direito Positivo)

difiram entre si só pelas significações concretas de seus termos, mas apresentem mesma

estrutura formal-lógica, são chamados isomórficos. Possuem modelos – pontos de partida

e aferimento de todo sistema formal. Caso isso não ocorra, serão sistemas não

isomórficos.

7.3 Pluralismo das Dogmáticas ou Ciências Positivas

Segundo Felipe Somló, a Dogmática ou Ciência Positiva do Direito, como

exposição sistemática de sistema jurídico positivo, representa ciência de conteúdo e se

relaciona a um dado histórico, sem corresponder a uma ciência geral. Logo, tantas

dogmáticas correspondem a tantos sistemas jurídicos. A dogmática constitui ciência

individualizadora e se propõe a tomar as ordens jurídicas para entendê-las em sua

individualidade.

Desse modo, a pluralidade de ciências jurídicas não repousa somente no

ponto de vista adotado diante do conteúdo do Direito, mas também na própria

jurisprudência dogmática - exposição sistemática do conteúdo das normas de Direito. O

que torna cada exposição dogmática de dado sistema jurídico uma ciência é a presença de

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um sistema de conceitos e proposições universais os quais funcionam como “conceitos

fundamentais”, explicáveis, evidenciados pela teoria geral do Direito (denominada por

Somló de Teoria Fundamental do Direito), componentes necessários em toda exposição

dogmática de um dado positivo.

7.4 Não contradição e Sistemas Científicos Empíricos

Todo sistema formal requer coerência formal entre suas proposições, sem o

que será inconsistente e demandará revisão de suas proposições. Em sistemas empíricos

de conhecimento (ciências naturais ou cultura), a consistência formal é aspecto lógico

necessário ao alcance do objetivo do conhecimento.

Para ser considerada ciência, a ciência dogmática do Direito necessita ser

um todo isento de contradições, satisfazer à forma de sistema e exprimir-se em linguagem

suscetível de valor-de-verdade, positivo ou negativo (linguagem apofântica).

Pontes de Miranda afirma, sobre o tema, que “[...] o que ficou de fora da

incidência de regra jurídica é objeto de julgamento da política, da moral ou do cientista” e

“nenhuma influência pode ter na dogmática jurídica”.

Ademais, se a Ciência do Direito for um complexo de enunciados

declarativos e prescritivos, faltar-lhe-á um critério para decidir sobre o valor de tais

enunciados – o primeiro pode ser verdadeiro ou falso (confirmação ou não pelo objeto da

experiência); o segundo (prescritivo) pode ser válido ou não válido, eficaz ou não eficaz,

justo ou injusto.

7.5 Contradições no Sistema do Direito Positivo

Na ciência jurídica, o sistema representa a articulação consistente de

proposições teóricas, com estrutura formal global que conecta as partes (proposições) na

composição de um todo unitário dirigido a um domicílio homogêneo. O sistema é ainda

uma forma do objeto, além de forma na ciência desse objeto (forma típica ideal, modelo

ideal de ciência).

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A experiência, porém, demonstra que pode haver contradições entre

proposições normativas, entre normas de mesmo nível, entre leis constitucionais ou

ordinárias, entre regulamentos e outros atos normativos. Tais contradições só podem ser

eliminadas pelo princípio extralógico da norma de nível mais elevado sobre a norma de

nível inferior, ou pelo critério de sucessão temporal.

Se o sistema de Direito Positivo fosse científico, seguiria a lógica da não

contradição; como não o é, como é sistema homogêneo de proposições prescritivas, não

pode conter necessariamente a lei lógica, teorética, ao lado das demais normas positivas.

Pode, de outro modo, converter leis lógicas em normas.

7.6 Leis Lógicas e Regras

Um sistema de normas jurídicas é sistema de linguagem, com conotação

normativa, denotativamente referente a um seguimento do mundo de fatos. Como as

normas, ou significações, possuem como suporte a linguagem, inserem-se as leis lógicas.

Assim, a linguagem do Direito Positivo procura evitar o sem-sentido: o legislador, ou juiz,

ao emitir norma individual, evitam atropelar categorias de significação que resultem em

construções sem sentido ou categorias sintáticas que conduzam a estruturas cheias de

contrassentido. A Lógica, então, se encontra no interior do sistema de proposições do

Direito Positivo.

Caso as leis lógicas fundamentais (como a de não contradição, a de

exclusão de terceiro) fossem normas, seriam reconduzíveis à fonte formal última de todas

as normas do sistema. Proviriam da norma fundamental, como fonte técnica ou

normativa. As leis lógicas, como regras, decorreriam de normas e, em último caso, da

norma originária, postulada – ou da Constituição Formal, ou da Material, ou da

Constituição em sentido lógico-jurídico – norma fundamental.

Além disso, se as leis lógicas fossem normas, junto às leis jurídicas,

procedentes de fontes normativas, seriam possíveis de ser ab-rogadas por normas de

Direito Positivo. Caso contrário, seriam normas válidas, vinculantes, com separação

sancionadora e estrutura sintática de toda norma de Direito Positivo.

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As leis lógicas estruturam o Direito Positivo em sua linguagem: a linguagem

do Direito Positivo evita o sem-sentido e o contrassentido, o que não o impossibilita,

frequentemente, de converter uma lei lógica em conteúdo de regra jurídica.

O sistema jurídico, perante uma lei lógica, pode adotar duas posições:

permitir que duas proposições normativas contraditórias sejam válidas ou determinar

que, em caso de contradição, ocorra anulação recíproca ou preferência pela norma de

maior nível na escala normativa ou mais justa ou oportuna para solucionar o conflito.

7.7 Leis Lógicas como Metalinguagem

A lógica representa uma linguagem sobre a linguagem legal e sobre a da

ciência dogmática do Direito. Logo, as leis lógicas são formuladas em nível de

metalinguagem, distinto do nível da linguagem do Direito Positivo, das proposições

normativas desse Direito. A lógica pressupõe símbolos abstratos e primitivos, cânones

prescritivos – regras de combinação abstrata dos símbolos.

7.8 Um Aspecto do Logicismo

Leis lógicas são proposições descritivas, enquanto regras são prescritivas.

Como estrutura articulada de linguagem significativa, o Direito é sistema com

contradições, embora não devesse contê-las. A contraditoriedade arruína a estrutura do

Direito.

Embora Kelsen recuse a existência de contradições lógicas entre normas,

não se pode descartar a experiência a qual comprova que as há entre enunciados

descritivos. Existem conflitos, não estruturais, mas de natureza material: umas normas

permitem, outras vedam a mesma conduta nas mesmas condições de aplicação.

7.9 Contraditoriedade entre Normas

Conforme Kelsen, a lei de não contradição reflete relação de

impossibilidade entre enunciados do mesmo tipo sintático ou enunciados que contenham

propriedades jurídicas de validade e não validade.

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Desse modo, um comportamento efetivo relatado em enunciado descritivo

em nada afeta o valor jurídico do enunciado prescritivo. Tanto o enunciado apofântico,

que descreve a conduta real desviante da devida, quanto o que preserva a conduta,

podem ser simultaneamente válido – este - e verdadeiro, aquele. Verdade/falsidade,

validade/ invalidade são valores de enunciados (ou proposições) entre os quais não pode

haver conflitos contraditórios. Tal não exclui possível combinação de proposições

descritivas (da ciência jurídica) com proposições prescritivas do Direito Positivo.

Além disso, não pode haver contradição lógica entre enunciado ou

proposição descritiva com proposição normativa, objeto. Entre ambas o termo formal não

as converte em reciprocamente excludentes. A existência da norma é fato, e a proposição

descritiva da norma é verdadeira ou falsa, conforme esta exista ou não. O que é

verdadeira ou falsa é a proposição descritiva sobre a proposição – norma, não ela própria

como norma.

Assim, é impossível, em princípio, excluir a contradição normativa no

interior de um sistema de Direito Positivo. Há normas implícitas ou explicitas do sistema

destinadas a eliminar as antinomias, mas não se consegue extinguir todas elas.

Há dois modos de excluir contradições normativas: uma dada pelo sistema

jurídico; outra, pela ciência jurídica. A proposição de maior nível elimina a correspondente

contraditória de menor nível, caso o sistema de normas se constitua hierarquicamente

(em níveis proposicionais), em níveis de diferentes valias definidos por critérios

extralógicos.

Se forem do mesmo nível, o critério extralógico de sucessão temporal

determina que a proposição posterior revogue a anterior. A eliminação ocorre via

extralógica, não via critério lógico-formal, porém do sistema, da vontade constituinte do

sistema, das decisões como atos de vontade estratificadores do universo de normas: umas

são mais valiosas que outras, em prevalência axiológica ou ontológica.

A outra via de eliminação de contraditório em um sistema positivo de

normas é realizada pela ciência. Conhecer cientificamente é reduzir à unidade a

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multiplicidade de dados da experiência. Unir é reduzir a um principio ordenador, o que

exige coerência interna nos enunciados mediante os quais se recolhem os dados. A

causalidade é principio ordenador no universo dos fatos naturais. A norma fundamental

de um sistema é principio de unidade e forma do nexo ou do relacionamento feito entre

os dados.

Kelsen reconhece que há formas contraditórias; apesar da contradição

lógico-formal, ele recusa a aplicação da lei de não contradição, já que não admite

contradições normativas no interior do sistema do Direito Positivo. Elas, porém, existem.

7.10 Unidade Gnosiológica e Unidade Empírica do Direito

É possível que um sistema de normas abrigue contradições. Os

ordenamentos não se constroem como sistemas de proposições científicas; as normas,

formuladas em proposições, originaram de situações sociais diversas, fontes normativas

distintas; a racionalização da manifestação do Direito é etapa madura nas altas culturas;

nas primitivas, as normas jurídicas e outras formam um conjunto de ditames no qual o

sistema jurídico não se destaca como relativamente autônomo. A partir dessa

constatação, pode-se deduzir que nenhum sistema de normas é autoconsistente, isento

de incompatibilidades de significação, coerente internamente.

Se a ciência jurídica não admitir a existência de contradições normativas,

posiciona-se em função diversa da descritiva ou cognoscente, como emitente de

proposições prescritivas. Desfaz o contraditório, ou refaz o sistema por não tolerar nem

suportar contradições.

Fundado na lei lógica da não contradição, o jurista científico emite a norma

da não contraditoriedade, pois, se há normas conflitantes, na espécie da antinomia

contraditória, eliminar uma das duas conflitantes só é possível mediante regras. Normas

são eliminadas por normas; proposições prescritivas por proposições prescritivas.

Além disso, a lei lógica declara que duas normas contraditórias não podem

ser ambas válidas nem falsas. Como lei lógica, é analiticamente verdadeira, embora fale

sobre proposições que precisam de valores veritativos, que possuem valores deônticos.

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73

Como lei lógica, não é norma mostrando incompatibilidade de normas reciprocamente

contraditórias.

Há, então, diferença entre lei de não contradição sobre proposições

descritivas em sistemas científicos e lei de não contradição sobre proposições normativas

em sistemas normativos como o do Direito Positivo. Um sistema científico que infringe lei

lógica é formalmente falso antes de alcançar o objeto do conhecimento - um sistema

normativo, como o do Direito Positivo, que infringe lei de não contradição sobre

proposições normativas continua válido; a incompatibilidade interna não compromete sua

existência, a qual repousa na validade e na eficácia global dele.

CAPÍTULO 8 O CONCEITO DE DIREITO

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74

Herbert L. A. Hart

8.1 Questões Persistentes 8.1.1 Perplexidade da teoria jurídica

A indagação sobre o que é o Direito tem inquietado pensadores de modo

paradoxal, diverso e estranho, ainda que nos fixemos nos estudos de teoria jurídica

realizados nos últimos 150 anos e desconsideremos conjecturas clássicas e medievais

acerca da essência do termo.

Com relação ao Direito, em contraste com outras áreas do conhecimento,

são feitas afirmações apaixonadas e despropositadas à primeira vista, como revelações

sobre a verdade referentemente ao Direito, as quais, porém, têm encoberto a natureza

essencial do Direito por meio de sérios equívocos. Dentre essas várias assertivas se

encontram “As leis são fontes do Direito”; “O Direito constitucional é apenas a moral

positiva”.

Tais afirmativas inicialmente contraditórias parecem conflitar com crenças

refutáveis e enraizadas, de sorte que o primeiro impulso é assegurarmos que as leis são

uma espécie de direito. Elas não foram, entretanto, formuladas por filósofos ou

visionários para questionar meras expressões do senso comum. Essas ideias provêm da

consciência crítica de juristas, tanto professores quanto operadores do Direito, como

juízes.

O que podemos, sim, asseverar é que elas nos auxiliaram a melhor

entender o Direito, uma vez que, concomitantemente, nos esclarecem e nos deixam

perplexos; em alguns casos, correspondem a exageros sobre a verdade, embora nos

propiciem clara visão do todo.

Destacamos que existe oposição entre o infindável debate teórico e a

disposição inata da maioria dos homens de enumerar exemplos de direito. Mas é unânime

a ideia de que existem similaridades entre distintos sistemas jurídicos: a existência do

Legislativo, que elabora as leis e extingue as antigas; a existência de tribunais que

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75

analisem os casos nos quais a lei é violada, desrespeitada; as regras que permitem ou

proíbem atitudes; as normas que determinam compensação aos que forem ofendidos ou

lesados de algum modo; as regras que definem a feitura de contratos, testamentos e

outros instrumentos que atribuem direitos e obrigações.

Mesmo com tantos pontos em comum, ainda se questiona o que é o Direito

e variadas respostas são produzidas. Pode-se argumentar que tal ocorre, pois há modelos

de sistemas jurídicos de Estados modernos, mas existem igualmente os duvidosos, os

quais intrigam tanto juristas como pessoas comuns, sobretudo os de Direito Internacional

e Primitivo. Esse fato gerou infindáveis divergências e debates, um tanto improdutivos,

uma vez que não legitimam os questionamentos a respeito do que é o Direito.

As dúvidas, porém, procedem, porquanto há situações, como no Direito

Internacional, nas quais países não podem ser conduzidos a tribunais, e existem

circunstâncias em que também casos-padrão originam uma gama de indagações – eles se

situam em um limite o qual não permite asseverar se constituem paradigma ou não.

Assim, a pergunta sobre o que é o Direito não pode ser interpretada como

ignorância ou ingenuidade ou desconhecimento do sentido do termo “direito” e dos

fenômenos a ele conectados.

8.1.2 Três questões recorrentes

A fim de definir o que é Direito ou qual sua essência, estudiosos recorrem a

três questões: uma delas se refere à ideia que a peculiaridade mais relevante do Direito é

que determinados comportamentos do homem são obrigatórios em certa medida,

embora a obrigatoriedade se expresse de diversas formas. Então, uma atitude não é

facultativa quando alguém é obrigado a fazer o que não deseja, pois, caso se recuse a não

fazê-lo, as consequências a enfrentar serão desgostosas. Austin parte desse ponto para

explicar o que é o Direito, embora se reconheça que essa representa simplificação do

fenômeno, muito mais complexo.

Outro aspecto respeita a uma situação em que dada atitude é obrigatória,

não facultativa, como os deveres morais, os quais impelem o ser humano a agir de

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determinado modo e a não agir de outro, retirando-lhe o livre arbítrio. Nesse sentido,

direito e moral se confundem, compartilham léxico. Direitos e deveres, ou jurídicos, ou

morais, bem como sistemas jurídicos internos exibem demandas morais essenciais,

basilares. Em tal contexto, pode-se melhor entender o Direito como “ramificação” da

moral ou da justiça. Esse pensamento caracteriza as doutrinas escolásticas do Direito

Natural, assim como de algumas da contemporaneidade, as quais se opõem ao

positivismo jurídico de Austin.

Tal compreensão do Direito e da moral pode, todavia, gerar alguma

confusão, já que se pode confundir um comportamento obrigatório com outro, sem

considerar as distinções em essência entre os preceitos morais e os jurídicos.

Quanto ao terceiro ponto, pode-se considerá-lo mais geral, pois em tese

não se questiona que os sistemas jurídicos constituem regras – seja fundadas em ameaças

(como propugnam alguns), seja relacionadas à moral e à justiça. Daí se origina outra

pergunta – o que é uma regra? Uma regra existe? Os tribunais aplicam regras ou só

aparentam fazê-lo?

Não se pode refutar que há regras de todos os tipos, não apenas as

jurídicas; por isso, elas resultam de maneiras distintas da realidade, até na esfera do

Direito, na qual certas normas derivam de leis ao passo que outras não; algumas são

imperativas, outras determinam condutas. Dadas condutas sociais podem ser respeitadas

pela maioria dos integrantes de mesma comunidade sem que haja qualquer regra a

obrigá-las, apenas a tradição, o senso comum, o hábito.

A diferença, então, entre uma norma jurídica e uma ditada pelo hábito, por

exemplo, é que a primeira (oficial, organizada, previsível) condena e pune determinados

desvios de comportamento, enquanto a segunda não implica qualquer tipo de castigo ou

censura, ainda que possa haver reações negativas com relação àquele que a desrespeitou.

Encontram-se, entretanto, posicionamentos contrários a essas ideias,

especialmente de uma teoria jurídica da Escandinávia, segundo a qual a previsibilidade de

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ambos os efeitos das normas não pode ser plenamente justificada, dado que ser previsível

não constitui componente da norma.

Esbarra-se em outra questão – como distinguir entre uma norma jurídica e

uma decorrente de hábito do grupo. Os estudiosos defendem que os homens pensam, e

essa faculdade os leva a realizar certas coisas, justificando-as, e a não realizar outras; em

ambas as situações, o que os move são sentimentos de compulsão, levando-os a agir

conforme as normas ou contra os que não obedecem a elas. De todo modo, não se

encontra esclarecida a distinção entre regras sociais e comportamentos habituais.

Além disso, ainda prevalece de alguma forma o ceticismo quanto à

natureza das regras jurídicas, uma vez que, mesmo que o sistema jurídico seja

compreendido como um conjunto de normas, o juiz, ao analisar um caso, pode optar

entre diferentes sentidos e interpretações dados às leis ou às palavras de uma lei. Em tal

conjuntura, somente a tradição pode transmitir a ideia de que os juízes descobrem a lei,

não a fazem, sem qualquer traço de subjetividade na escolha por essa ou aquela dedução.

Destaca-se que as leis possuem um núcleo significativo indiscutível; entretanto, as regras

possuem um lado obscuro, de incerteza, em meio ao qual o juiz tem de decidir.

Assim, pode-se afirmar que as normas representam fontes do Direito, mas

não o integram.

8.1.3 Definição

As três questões recorrentes são então as seguintes: o Direito se distingue

de ordens fundadas em ameaças e com estas se relaciona; existem ou não distinções

entre a obrigação moral e a jurídica e o Direito representa uma questão de normas e de

como se pode defini-las. Tais indagações permeiam os estudos e os debates acerca da

natureza do Direito.

8.2 Leis, Comandos e Ordens 8.2.1 Variedades de imperativos

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Aquilo que é proibido, ou desejado, ou ordenado, pode ser expresso por

distintos modos, utilizados segundo a vontade da pessoa ou o contexto social em que se

encontra. Quando se recorre às ordens para expressar um desejo, diz-se que ocorreu um

imperativo. Se usamos o tom imperativo para nos comunicarmos, ele nem sempre será

compreendido como comando, a depender da forma como falamos; assim, ao dizermos

“passe-me o sal, por favor”, a intenção é solicitar e não ordenar.

Ademais, se o propósito é realmente dar uma ordem, ela não representa

necessariamente ameaça ou tem conotação negativa; pode simplesmente indicar relação

de subordinação ou diferenças hierárquicas.

Conclui-se que o imperativo pode significar diferentes tipos de mensagem e

expressão do homem. Ordens podem ser tanto coercitivas ou ameaçadoras, como no caso

de um ladrão, ou de obediência, ao se reconhecer uma relação de subordinação ou de

autoridade.

8.2.2 O Direito enquanto ordens coercivas

O Direito usa as leis para exercer controle mediante diretivas geralmente de

duplo sentido. Modernamente, o Estado promulga leis – ordens de natureza perene -

direcionadas a todos os cidadãos subordinados a ele que vivem no território demarcado

por aquele Estado.

Desse modo, constata-se que elaborar normas se distingue de dar ordens,

pois ordenar constitui forma de comunicação e legislar representa definir

comportamentos de caráter geral, abrangente, coletivo e não particular, individual. O

objetivo é que todos obedeçam às normas sem a necessidade de que alguém chame

atenção para isso. Os comandos de modo geral possuem cunho transitório e podem até

consistir em ameaça, ao passo que as leis expressam ideia de duração, permanência,

repetição.

8.3 A Diversidade das Leis

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Embora algumas leis determinem que se deva ou não fazer algo, ter

determinado comportamento, há as que concedem poderes com variadas finalidades,

como proferir decisões, celebrar contratos, outorgar testamentos, dentre outras.

Nos Estados contemporâneos, as leis se agrupam conforme o conteúdo, o

modo de origem e a aplicação, diferindo do paradigma de ordens coercitivas.

8.3.1 O conteúdo das leis

No Direito Penal, por exemplo, as normas devem ser respeitadas,

obedecidas, já que significam uma obrigação, um dever. Caso sejam infringidas, ocorre

delito, ilícito. Desse modo, o papel das leis criminais é prescrever, estabelecer regras de

conduta a serem exercidas por toda a sociedade; caso contrário, a consequência é a pena,

o castigo. Em tal caso, as normas podem equivaler em alguma medida às ordens

coercitivas, às ameaças.

Esse tipo de regras difere de outras, as quais aspiram regulamentar dada

postura social, possibilitar a faculdade de recorrer a dispositivos legais a fim de concretizar

desejos, como a celebração de casamentos. As pessoas não são obrigadas a se portarem

em conformidade com elas, pois se referem ao livre arbítrio que cada ser humano tem em

algumas situações. Ele tem o poder de decisão, de fazer valer a vontade individual.

Em tal contexto, não há sanções, punições, se cumpridos os requisitos

normativos, mas outros tipos de efeitos, como a anulação de um testamento, caso a

pessoa que o outorgue não disponha de poder para tanto.

Ademais, as normas ainda estipulam a duração mínima e a máxima no

âmbito de direitos e deveres de cada pessoa envolvida na relação.

O poder de legislar está igualmente atrelado a regras – o exercício do poder

jurídico eficaz e competente na produção de leis que definirão direitos e obrigações

jurídicos; caso contrário, a lei será ineficaz, nula. A nulidade, aí, decorre da ausência de

condição essencial ao exercício do poder.

8.3.2 O campo de aplicação

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No âmbito das leis, as pessoas podem exercer dado poder conferido

mediante regras; estas foram criadas a fim de que os compromissos assumidos entre as

partes sejam respeitados reciprocamente – assim, assumem-se deveres e garantem-se

direitos.

Quanto às leis penais, manifestam o modelo coercitivo, com ordens

fundamentadas em ameaças; revelam comportamentos proibidos e outros obrigatórios,

sob pena de se aplicarem penalidades caso se desobedeça a elas.

8.3.3 Modos de origem

Tanto a promulgação de leis quanto a emissão de comandos constitui um

ato deliberado, realizado conscientemente. Os legisladores obedecem a procedimentos

no momento de legislar, de criar direito, enquanto aquele que ordena utiliza determinado

tipo de comunicação, com palavras que indiquem seus objetivos. Pode parecer existir

certa analogia entre ambas, mas a ideia de costume repudia tal semelhança.

Questiona-se se o costume pode ser compreendido como um direito. A

resposta é que isso só ocorre quando o costume integra um sistema jurídico privado e ao

mesmo tempo é inerente à sociedade em que o indivíduo vive. Caso não se preencham

esses dois requisitos, então o costume não é direito. E ele só terá o reconhecimento

jurídico a partir do momento em que os tribunais nele se baseiem para decidir.

8.4 O Soberano e o Súdito

Em dada sociedade, em que há soberano, os dogmas da soberania se

dividem consoante dois fatos havidos na sociedade – o hábito de obediência e a posição

do soberano acima do direito. A mesma doutrina prega que, onde existe o direito e as leis

são determinadas pelo soberano, estas podem ser evidenciadas de modo negativo ou

positivo com relação ao ato de obediência.

8.4.1 O hábito de obediência e a continuidade do Direito

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Existem determinadas leis as quais vedam algum comportamento que não

seria de todo modo praticado mesmo se a norma não existisse. Nesse sentido,

distinguem-se as normas respeitadas porque se tornaram hábito das que não são

executadas por obediência, que representa a relação existente entre a autoridade e as

ordens fundadas em ameaças.

Há similaridades entre hábitos e normas sociais, pois em ambas as

situações a atitude deve ser coletiva, geral e repetida pela maioria do grupo social, ainda

que este não considere como justo tal comportamento. Essa unidade determina a

configuração de um Estado. Mas ocorrem ainda distinções entre eles: a primeira é que as

pessoas não precisam se preocupar com o comportamento geral se ele é hábito, se se

comportam como os outros membros.

A segunda é que podem acontecer desvios de dado comportamento

habitual sem que essa postura seja criticada ou penalizada, pois o desvio padrão é aceito;

a terceira é que pode haver normas habituais desrespeitadas que conduzam a críticas, já

que o desvio não é aceito.

8.4.2 A persistência do Direito

A persistência do direito ocorre sempre que certa lei promulgada há muito

(séculos atrás até) continua a ser direito hoje, mesmo que o legislador não mais exista. Tal

assertiva está correta, uma vez que não é adequado restringir a efetividade de uma norma

à expectativa de vida de quem a elaborou, porquanto a lei possui caráter de perenidade e

subsiste a seus criadores e aos indivíduos que a ela obedeciam quando de sua

promulgação.

Assim, leis produzidas por certo soberano podem ser executadas pelo

soberano que sucede aquele e aplicadas pelos tribunais em circunstâncias concretas.

As normas permanecem, ainda que as leis promulgadas por dado soberano

sejam dessemelhantes das de outro.

8.4.3 Limitações jurídicas ao Poder Legislativo

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O Poder legislativo só pode sofrer algum tipo de limitação jurídica caso o

legislador estiver sob o comando habitual de outro legislador. Aí ele não será mais um

soberano, pois este não se subordina a nenhuma pessoa.

Outro tipo de restrição jurídica ao legislador ocorre quando as regras

definem, delimitam e conferem-lhe poderes para legislar. Nesse sentido, a autoridade

legislativa está atrelada à de outros, bem como à das leis criadas por diferentes

legisladores.

8.4.4 O soberano para além do Poder Legislativo

Atualmente, o órgão legislativo supremo de vários sistemas jurídicos se

sujeita a restrições jurídicas com respeito ao poder de legislar; mesmo assim, considera-se

haver direito em tal conjuntura. Aí, deve-se buscar o soberano além desse órgão

juridicamente limitado, a fim de manter a teoria de que onde existe direito há também

um soberano.

Geralmente, as Constituições escritas definem a qualificação dos

legisladores e a forma de legislar, especificando o corpo legislativo, bem como

delimitando e detalhando juridicamente os poderes legislativos. Em alguns Estados, como

na África e nos Estados Unidos, a Constituição define direitos individuais que não podem

ser modificados por meio de processos legislativos ordinários. Caso sejam questionados,

os tribunais garantem a manutenção de tais prerrogativas aos indivíduos, pois uma de

suas funções é preservar princípios constitucionais.

Apesar disso, em quase todas as Constituições, há disposições que preveem

revisões de princípios constitucionais, realizadas ou por um grupo específico da

assembleia ordinária ou por membros do Legislativo mediante procedimentos especiais.

Nesses casos, o soberano se distingue da assembleia legislativa. Em tais composições, não

são os constituintes os soberanos e sim os eleitores. Essa teoria considera o eleitorado,

presente em uma Democracia, como o soberano e o órgão legislativo como limitado; aí o

eleitorado é entendido como “corpo legislativo extraordinário e último”.

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Há, porém, teorias que contemplam a noção de um monarca como rei,

embora este desfrute poderes legislativos limitados e simultaneamente supremos dentro

desse sistema.

8.5 O Direito como União de Regras Primárias e Secundárias

8.5.1 Um começo renovado

O modelo do Direito idealizado como ordens coercitivas do soberano não

foi suficiente para representar aspectos relevantes de sistemas jurídicos.

Na nova formação do sistema jurídico se encontram combinações de regras

primárias e secundárias, uma vez que os diversos casos, embora pareçam heterogêneos,

se conectam por algum tipo de uniformidade e interação.

8.5.2 A ideia de obrigação

Pode-se afirmar que, quando existe o Direito, estão presentes normas que

regulam a conduta humana, determinando atitudes obrigatórias e outras proibidas. Nesse

sentido está presente a ideia de obrigação jurídica ou dever, Existe, no entanto, a

percepção de que há distinção entre ter o dever de realizar algo ou ser obrigado a fazer

algo. No segundo caso, a obrigação de fazer algo pode levar o indivíduo a agir em razão do

temor de ocorrerem efeitos desagradáveis caso não obedeça ao comando; é, portanto,

proveniente de crenças e justificativas psicológicas, como o medo de desobedecer às

ordens de um assaltante.

Já a ideia de ter o dever de realizar algo se insere em outra perspectiva. No

caso do ladrão, por exemplo, a vítima não tinha a obrigação de fazer algo, mas foi coagida

a fazê-lo. Quanto ao fato de ter o dever de fazer algo, cita-se o exemplo da prestação de

serviço militar; o indivíduo tem essa obrigação, mas não é a ela coagido, embora esteja

sujeito a receber alguma punição, isto é, o castigo funciona como probabilidade, como

possibilidade.

Há críticos a esse pensamento, pois o fato de existirem leis, regras a serem

respeitadas, cumpridas, traz embutida a ideia certa de punição ou castigo em caso de

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desvios de comportamento. Então, não se pode falar em previsibilidade de sanções, mas

em certeza delas. Mesmo assim, não é possível afirmar que, em todas as situações nas

quais ocorra desobediência a determinada norma, haverá punição, uma vez que o infrator

pode, por qualquer motivo, não ser identificado ou castigado.

Nesse sentido, os dois entendimentos são verdadeiros. Existem ainda regras

que, se desrespeitadas, não implicam qualquer tipo de punição, como as de etiqueta; o

que ocorre é a pressão social pela realização de certos comportamentos.

Em todo caso, quando há grupos sociais, as normas são essenciais à

convivência harmoniosa entre seus membros. Logo, a noção de dever, de obrigação é

inerente às sociedades, ainda que a noção de sentir-se obrigado é diferente da de ter

obrigação. Na primeira, a pressão é psicológica, enquanto na segunda a pressão é do

grupo, é social.

8.5.3 Os elementos do Direito

Pode-se conceber um grupo social sem a presença de funcionários, juízes e

legisladores, como em sociedades primitivas, nas quais há certa espécie de controle social

com respeito aos comportamentos dos membros da comunidade, o qual pode ser

denominado como “regras primárias de obrigação”. Há sociedades em que as normas são

ditadas apenas pelos costumes – modos de comportamento padronizados, ou seja, regras

primárias de obrigação.

Uma das primeiras regras se relaciona à restrição à violência, ao furto, pois

são duas atitudes pelas quais muitos são tentados, mas são coagidos a reprimir. A

ineficácia dessa simples vida social é que a pressão da comunidade é difusa e incerta, pois

se devem considerar ainda as relações de parentesco, que impedem muitas vezes a

aplicação das regras primárias. Nessa constituição, a maioria segue as normas e pressiona

a minoria que deseja subvertê-las.

Nesse caso, a incerteza impera, porque nem sempre as normas são

respeitadas. Outro problema reside na estaticidade das regras, as quais só se alteram com

o desenvolvimento da comunidade.

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O meio mais simples de superar tais obstáculos é a inclusão de regras

secundárias, que conviverão com as regras primárias. As normas primárias se referem às

atitudes que as pessoas devem ou não ter, ao passo que as secundárias concernem às

regras primárias. Uma das secundárias é a “regra do conhecimento”, a qual identifica a

existência real, indubitável, de regras primárias, desfazendo todo tipo de possível

incerteza. Elas, no sistema jurídico, confirmam a autoridade das leis primárias.

Com referência à questão da estaticidade das normas, criam-se as “regras

de alteração” – ela concede a indivíduos ou órgãos o poder de alterar as normas primárias

ou acrescentar outras, ou ainda de extinguir algumas. Elas podem ser simples ou muito

complexas, dependendo da complexidade do grupo social. Estão atreladas às “regras de

reconhecimento”, dado que estas devem validar as novas normas.

Quanto à ineficácia da pressão social, criam-se as “regras de julgamento”,

que atribuirão a alguns indivíduos ou a um conjunto de indivíduos autoridade e poder

para julgar infratores, estabelecer o processo de julgamento e definir-lhes sanções. Elas

contemplam relevantes conceitos, como juiz, tribunal, jurisdição e sentença. Depois

dessas, outras são criadas, fixando deveres e poderes judiciais a juízes.

A conjunção das regras primárias com as secundárias compõe o cerne do

sistema jurídico.

8.6 Os Fundamentos de um Sistema Jurídico 8.6.1 Regra de reconhecimento e validade jurídica

Para que se reconheça um sistema jurídico, é essencial que um de seus

fundamentos seja que a maioria dos membros de dada comunidade obedeça a ordens

ditadas por soberanos. O Direito só existe em tal conjuntura social, embora ela não

explique modernos sistemas jurídicos.

Em tais sistemas, existem diversas fontes de direito; a regra de

reconhecimento, nesses casos, torna-se mais complexa, pois há diferentes e variados

meios de se identificar o Direito, como Constituição escrita, precedentes judiciais e

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aprovação por uma assembleia legislativa. Esses critérios são organizados em uma

hierarquia de subordinação e superioridade, a fim de se solucionarem conflitos.

Ademais, a regra secundária de reconhecimento deve ser aceita e usada para

identificar e validar regras primárias de obrigação, as quais precisam ser igualmente

aceitas e utilizadas pelo grupo social. De todo modo, raramente a regra de

reconhecimento está explícita – mas é identificada no momento em que outras normas o

são, por tribunais ou funcionários públicos, bem como por particulares. No ambiente

jurídico, a regra de reconhecimento é similar à pontuação de um jogo, pois em ambas as

circunstâncias as declarações das autoridades (árbitro, juiz, ministro) possuem peculiar

estatuto de autoridade a elas conferido por outras normas, ainda que possam surgir

conflitos relativos à compreensão acerca do que a regra demanda.

A aceitação partilhada de regras pode ser entendida sob duas perspectivas: a

afirmação interna, em que a pessoa aceita internamente aquela regra e a aplica,

assumindo-a como válida para o sistema jurídico, e a afirmação externa, na qual certo

observador externo ao sistema jurídico reconhece a existência de determinada regra e a

sua aceitação e a sua aplicação por outras pessoas.

Estabelecer que certa norma é válida implica identificá-la como regra do

sistema, como regra de reconhecimento a qual passou por todas as provas de aceitação.

Então, a validade jurídica parte do princípio de que certa regra é aceita e mais respeitada

do que o oposto, demonstrando sua eficácia. Tal regra é também válida se utilizada por

um tribunal e se reconhecida como regra do sistema.

8.6.2 Novas questões

Com a nova noção de que uma regra de reconhecimento permite um conjunto

de normas com requisitos de validade, cria-se um mundo de significativas e complexas

questões. A primeira delas diz respeito à classificação – as normas empregadas para

determinar o Direito não se prestam a categorizar certo sistema jurídico, ainda que sejam

limitadas. Daí a dificuldade de se comprovar que os princípios de uma Constituição são, na

verdade, direito. Nesse caso, a ideia é que uma “regra de reconhecimento”, por ensejar os

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requisitos os quais identificam as outras regras do sistema pode, sim, ser denominada

também de “direito”, uma vez que ela própria existe.

A segunda questão se refere tanto à complexidade quanto à imprecisão da

afirmativa que certo sistema jurídico existe em um país ou no âmago de um grupo social.

Pode-se explicar isso, pois o sistema jurídico passa por diversas etapas, desde não ter sido

ainda criado até ser efetivamente extinto. As fases intermediárias, ao mesmo tempo em

que desarticulam a maneira de enxergar os fenômenos jurídicos, esclarecem a

complexidade do que se considera como adquirido, como a real existência de um sistema

jurídico.

Conforme Austin, quando a lei determina deveres e obrigações, eles devem

ser geralmente respeitados, isto é, quase nunca descumpridos. Em tal situação,

estabelece-se relação de obediência com o Direito. Mesmo os legisladores, ao criar regras,

obedecem de alguma forma às leis que lhes conferiram autoridade para legislar, salvo se

houver outras que determinem o dever de cumpri-las.

Assim, um sistema jurídico existe quando simplesmente ocorre a habitual

obediência dos cidadãos às leis, aceitando uma “regra de reconhecimento”. Nesse caso, a

Constituição seria simples, pois aceita por funcionários, juristas, indivíduos. Tal realidade

não comporta, porém, a estrutura de Estados modernos e complexos, porquanto grande

parte dos cidadãos comuns ignora a organização jurídica e os critérios de validade. Eles

obedecem, porque é “direito”, “norma” e porque sabem que estão sujeitos a sofrer

punições caso não o façam. Desse modo, o cumprimento às normas não decorre

necessariamente da compreensão de que essas refletem determinados padrões de

comportamento aceito pelos outros membros do grupo social.

8.6.3 A patologia de um sistema jurídico

Prova-se a existência de certo sistema jurídico quando as regras identificadas

como válidas são em geral cumpridas em âmbito oficial e quando o são igualmente pela

sociedade. Caso haja discrepâncias entre o que é respeitado por funcionários públicos,

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como juízes, e por cidadãos comuns, instala-se uma patologia no sistema jurídico. Na

maioria dos casos em que tal ocorre, como em uma guerra, pode haver ainda sistema

jurídico, mesmo que com alterações, pois um sistema jurídico novo pode recorrer a

normas de um sistema jurídico antigo.

Pode existir ainda patologia sempre que se rompe parcialmente a unidade

entre autoridades, com divisões no ambiente oficial, conduzindo a uma separação no

poder judicial. Por exemplo, quando atos do Legislativo são considerados inválidos pelo

Judiciário. Estariam quebradas as relações de harmonia no âmbito oficial.

8.7 Formalismo e Ceticismo acerca das Regras 8.7.1 A textura aberta do Direito

Regras, padrões e critérios de comportamento devem estar presentes em todo

grande grupo social; caso contrário, não poderia existir o Direito. Este se refere tanto a

categorias de atos como a de pessoas.

Duas ferramentas são utilizadas para difundir essas normas, uma que emprega

o máximo de palavras gerais e outra, o mínimo – a legislação usa o padrão máximo e o

precedente, o mínimo. O exemplo, como precedente, pode funcionar como meio de

transmissão de condutas. O uso jurídico do precedente pode ocorrer quando o exemplo é

seguido, porquanto se entende que quem tem determinada atitude é considerado como

autoridade a qual se tornou adepta de modelos convencionais de comportamento. No

momento em que o exemplo é entendido, age-se com base no senso comum e na

importância conferida pelos outros a certas posturas.

Em oposição à imprecisão dos exemplos, encontra- se a comunicação

efetivada por meio de formas explícitas de linguagem – a legislação, embora atualmente

muitos especialistas considerem a possibilidade de haver algum tipo de incerteza das leis

ao serem aplicadas a alguns casos específicos. Tal sucede uma vez que a língua é limitada

por natureza e que a interpretação de certo fato pode ser múltipla e, por isso, incerta.

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Em tal contexto, tanto a linguagem dotada de autoridade quanto o exemplo

dotado também de autoridade atuam de modo impreciso. Assim, o poder discricionário

concedido pela linguagem pode ser amplo de tal sorte que, ao se empregar uma norma, a

conclusão reflete uma escolha. O indivíduo adiciona um caso novo a casos antigos, em

razão da similaridade presente entre eles; de todo modo, em certo ponto, serão

indefinidos quando a questão é sua aplicação. Nessa situação, possuem a denominada

“textura aberta”, pois o emprego de termos classificatórios gerais os quais se relacionam a

questões de fato convive com a incerteza inerente à linguagem humana; por conseguinte,

das leis.

Além disso, há outro limite para os legisladores – como seres humanos, não

conseguem prever nem adivinhar todas as possíveis situações que o futuro trará. A

incapacidade de previsão implica imprecisão de finalidades, como preservar a paz, por

exemplo.

Assim, conclui-se que sistemas jurídicos distintos e mesmo sistema jurídico em

momentos diferentes necessitam reconhecer que a escolha pautará a atribuição de

normas gerais a contextos particulares. Tal realidade tenta ser minimizada pelas teorias

do formalismo (ou conceptualismo), ao definir de tal modo o sentido da norma que os

termos gerais possuem o mesmo sentido em todo caso ao qual será aplicada. No entanto,

a medida de certeza e previsibilidade dessa ideia desconsidera a formação de novas

questões futuras.

8.7.2 Variedades de ceticismo acerca das regras

Em função da textura aberta do Direito, um sistema jurídico pode permitir que

normas antes vagas, imprecisas, e leis anteriormente incertas possam se transformar em

precisas pelo uso do poder discricionário de tribunais e outros servidores. Podem

igualmente qualificar normas comunicadas apenas por precedentes de autoridade.

Algumas delas podem, inclusive, ser aplicadas pelas pessoas em cada situação, sem

necessidade de recorrer a um poder discricionário.

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De todo modo, a existência de regras secundárias acarreta a existência de

tribunais e indivíduos dotados de autoridade e jurisdição suficientes para decidir. As

normas secundárias, ao instituírem um árbitro cujas decisões são definitivas, não indicam

a inexistência de normas primárias por ele utilizadas. Caso ele atuasse sem leis ou

restrições prévias, ocorreria o caos, haveria outra realidade.

A abertura, porém, acaba por criar sentimentos de ceticismo e

desapontamento sobre as regras, quando um indivíduo constata que elas não são tudo o

que seriam em um mundo formalista e que nem sempre conseguem exaurir todas as

situações apresentadas a juízes e tribunais. Tal postura é no mínimo irreal e precisa

considerar a textura aberta das normas – nenhum legislador tem a capacidade de

engendrar todas as possíveis circunstâncias referentes a um caso, nem todos os futuros

casos que possam surgir. Há certamente alguma previsibilidade das normas, que cria

determinadas vinculações entre os acontecimentos; caso contrário, os tribunais estariam

praticamente impedidos de decidir com base nelas.

Quando tal não ocorre, cabe ao intérprete da lei preencher, por meio da

interpretação, as possíveis e prováveis lacunas presentes no Direito. Para agir assim, deve

ele primeiro estar consciente de que falhas realmente existem e que o preenchimento

delas ocorre mediante princípios da Hermenêutica, bem como dos Princípios Gerais do

Direito. Em alguns casos, a textura aberta do Direito impede que todos os sentidos

possíveis estejam explicitados nas normas; nesses casos, a significação resulta da

interpretação.

8.7.3 Definitividade e infalibilidade na decisão judicial

Os supremos tribunais têm autoridade para dar a última palavra acerca do que

é o Direito, e essa decisão, embora possa ser questionada e considerada como equívoca,

não muda deveres e direitos dos indivíduos. A única possibilidade de se invalidar

juridicamente uma decisão é por meio de legislação. Isso conduz à ideia de que as

decisões desses órgãos são definitivas e infalíveis. Essa teoria revela a ambiguidade

presente em assertivas como “o Direito precisa explicar a relação entre afirmações de

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direito não oficiais a aquelas emitidas por tribunais” e “o Direito (ou a “Constituição”) é o

que os tribunais dizem que é”.

Ao se instituir determinada autoridade para executar aplicações definitivas e

munidas de autoridade, o risco relativo a essa atitude é intrínseco. Em tal caso, quaisquer

afirmações feitas por pessoas não dotadas de autoridade não interferem na decisão de

quem tem o poder e a autoridade para deliberar. Estas não podem desautorizar quem

decide, uma vez que ele se baseia em regras anteriormente definidas; por isso, as decisões

da autoridade instituída são definitivas, pois, ainda que exista uma área aberta em que

essa autoridade tenha poder de escolha, há um núcleo definido de conteúdo, de

significado. Desse modo, as deliberações são definitivas, mas não infalíveis, se, por

exemplo, a autoridade persistir em desconsiderar as normas estabelecidas.

Os tribunais e os juízes se prendem a regras com núcleos significativos

perfeitamente determinados a fim de disporem de corretos padrões de decisão judicial.

Nesse sentido, suas deliberações são definitivas. A textura aberta do Direito, entretanto,

concede-lhes espectro de criação de direito expressivamente amplo; mesmo assim, as

decisões são mantidas, salvo se alguma legislação regular em contrário.

8.7.4 Incerteza quanto à regra de reconhecimento

O formalismo e o ceticismo com respeito às normas de Direito constituem

exageros saudáveis, pois a verdade se situa no meio deles, quando se corrigem

reciprocamente.

O ceticismo se impõe em função da incerteza com relação à regra de

reconhecimento, e não às regras jurídicas concretas, bem como à atuação dos tribunais no

momento de identificar normas de Direito válidas. Não está, porém, clara em todos os

casos a diferença entre a incerteza de uma regra concreta e a do critério para definir uma

norma como pertencente ao sistema. A clareza se faz presente quando as normas são leis

promulgadas, com texto dotado de autoridade, embora esteja um tanto obscura a ideia

de se o legislador detém poder para assim legislar.

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Para solucionar esta dúvida, cabe recorrer à interpretação de outra norma de

Direito que confere o poder legislativo, sobre o qual não pairam questionamentos.

8.8 Justiça e Moral

Não é possível asseverar, apenas pelo exame da história, que o Direito tem

recebido influência da moral ou dos ideais de determinadas sociedades. Pode haver tanto

deveres como direitos jurídicos sem justificativa expressa pela moral.

Para se esclarecerem os aspectos distintivos do Direito e elucidar o

pensamento jurídico, é essencial distinguir regras primárias de obrigação e regras

secundárias de reconhecimento, alteração e julgamento.

Além disso, a fim de se tratar da essência do Direito, é necessário falar sobre a

asserção de que existe conexão indispensável entre justiça e moral; caso contrário,

persistirão nebulosos casos de Direito discutíveis e controversos. Esse vínculo entre os

termos “necessário” e “moral” possui diferentes interpretações, tanto de defensores

como de críticos. A mais clara remete ao pensamento de São Tomás de Aquino sobre

Direito Natural, segundo o qual têm origem divina certos preceitos de verdadeira moral e

justiça a serem identificadas pela razão humana e não pode ser considerado válido o

Direito em que as leis não respeitam tais princípios.

Outras visões defendem que a moral exprime os comportamentos do homem

com respeito à conduta, a qual pode se alterar de pessoa para pessoa ou de sociedade

para sociedade. Nesse caso, os conflitos entre o Direito e as predições da moral não

bastam para privar uma norma de seu estatuto de direito; interpretam diferentemente a

relação entre moral e Direito. Entendem que a existência de dado sistema jurídico

pressupõe que se reconheça obrigação moral de obedecer ao Direito, ainda que esta

possa, em alguma medida, ser suplantada por um dever mais forte de desobedecer a leis

moralmente perversas.

A fim de esclarecer tais teorias, cabe examinar a diferença entre a ideia

específica de justiça e sua estreita relação com o Direito, além das peculiaridades

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distintivas entre as regras e os princípios gerais – não só de normas jurídicas -, bem como

de todas as regras sociais ou modelos de conduta.

8.8.1 Princípios de justiça

Muitos juristas, ao falar sobre a aplicação do Direito, costumam recorrer aos

vocábulos “justo” e “injusto”. Embora a justiça ocupe relevante espaço nas soluções

jurídicas, ela consiste em um dos componentes da moral, representados por distintos

juízos morais. Como exemplo, seria considerado como errado, e até perverso, o

comportamento de um pai que maltratasse o filho, uma vez que não exerceu seu dever

moral, sua obrigação para com este. Não seria, porém, ajustado chamar tal atitude de

injusta, tanto porque o conceito de injustiça não demonstraria com exatidão a situação,

quanto porque a crítica moral com respeito a justiça ou injustiça é de modo geral mais

diversa e específica que outras espécies de crítica moral, a qual nesse caso é expressa por

termos como cruel, perverso, mau. A palavra “injusto” seria aplicável, caso o pai tivesse

castigado o filho por algum ato sem confirmar se fora ele que realmente o praticara, ou se

tivesse punido arbitrariamente um dos filhos, ainda que todos tivessem cometido a falta.

Então se pode dizer que as palavras “justo” e “injusto” representam com mais

adequação a crítica moral que “bom” ou “mau”; por analogia, pode-se deduzir que uma

lei é boa pois é justa, ou má pois injusta; no entanto, não é justa por ser boa ou injusta por

ser má.

As características da justiça e sua relação com o Direito se conformam caso se

note que os termos “equitativo” e “não equitativo” podem equivaler aos conceitos de

“justo” e “injusto”. A ideia de equidade está presente, quando se refere à conduta de

classes de indivíduos e não apenas a um deles, para lhes conceder algum benefício ou

cobrar algum dever, ou quando é estipulada indenização ou reconstituição decorrente de

dano. Nesse contexto, pode-se também considerar a decisão de um juiz como justa ou

injusta, ou um julgamento como equitativo ou não equitativo.

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De modo geral, a justiça funciona para restaurar o equilíbrio ou a proporção,

apoiada no princípio de que se devem tratar casos iguais de modo igual, bem como tratar

diferentemente situações distintas, mesmo que tais pensamentos sejam incompletos,

porquanto é necessário atentar ao fato de que as pessoas diferem e se assemelham em

variados aspectos. Assim, é fundamental definir quais diferenças e semelhanças são

significativas, senão tais ideias caem no vazio.

É possível concluir que a ideia de justiça é complexa – consiste de um aspecto

constante, uniforme, ao tratar igualmente casos iguais, e de um mutável ou variável, ao

tratar casos iguais ou distintos, dependendo de certa finalidade. Pode-se igualmente

afirmar que há leis justas e leis injustas.

Ademais, existe a justiça substantiva e procedimental, que cuida igualmente

dos casos iguais e de modo diferente dos desiguais, ainda que seja complexa a tarefa de

definir o que são situações distintas, e a justiça reparatória ou distributiva, a qual reparte,

distribui bens e ônus e repara danos de modo imparcial, condição mínima de qualquer

escolha jurídica e legislativa.

8.8.2 Obrigação moral e jurídica

A justiça, como segmento da moral, preocupa-se com a forma como é tratada

a conduta de classes de pessoas e não com a de uma pessoa, o que lhe confere relevância

na crítica ao Direito e às instituições político-sociais. Os preceitos de justiça não esgotam,

porém, o sentido de moral. Podem-se criticar determinadas leis, por serem consideradas

moralmente ruins, pois exigem dos indivíduos posturas condenadas pela moral ou os

proíbem de agir de forma exigida pela moral.

Assim, enfrentam-se dois problemas: identificar o significado de “moral”, ou

“ética”, cuja imprecisão é real (conferindo-lhe textura aberta), e lidar com as divergências

relativas ao estatuto da moral e sua conexão com o restante da experiência e do

conhecimento humanos. A fim de tentar elucidar a questão, existem quatro características

que conjugam padrões, normas e condutas normalmente entendidas como morais,

conquanto haja interpretações e diferentes explicações sobre cada uma delas:

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“importância”, “imunidade à mudança deliberada”, “caráter voluntário dos delitos

morais” e “formas de pressão moral”.

Primeiramente, considera-se a ideia de moral como fenômeno social aceito

como convenção por determinado grupo social – paradigmas de comportamento

partilhados pelos membros dessa comunidade, como regras primárias de obrigação. O

sistema jurídico é estabelecido quando essas normas, sempre que o controle social é

realizado mediante a constituição de regras de reconhecimento, de julgamento e de

alteração, oficialmente reconhecidas. Alguns cientistas do Direito, todavia, entendem

como “moral” as regras não jurídicas. Tais normas são similares, pois vinculativas, na

medida em que sua observância se baseia na pressão social e não no consentimento de

cada um, como obrigações.

Em tal contexto, tanto a moral quanto o Direito abarcam princípios que

delimitam a atitude dos homens em circunstâncias as quais se repetem ao longo da vida.

Há, contudo, certas peculiaridades que não podem ser compartilhadas pelo Direito e pela

moral, estabelecendo distinções entre eles, ainda difíceis de serem formuladas. Uma delas

consiste em que as regras jurídicas demandam só atitudes exteriores sem cuidar das

razões, das intenções que motivaram tal conduta, ao passo que a moral se preocupa

basicamente com a motivação interior, a boa vontade, a justificativa ajustada para certo

comportamento. Essa distinção entre Direito e moral é, entretanto, confusa.

As quatro características citadas podem explicar a diferença entre a moral e as

regras jurídicas: a “importância” se revela no fato de que os padrões morais se conservam

independentemente das paixões que delimitam e dos interesses particulares; no fato de

que as pressões sociais funcionam como garantia de que os paradigmas morais serão

comunicados, ensinados como aceitos pela sociedade; no fato de que ocorreriam

significativas mudanças na vida das pessoas se os padrões não fossem aceitos.

Com respeito à “imunidade à alteração deliberada”, pode-se dizer que regras e

preceitos morais não podem ser criados, alterados ou extintos da mesma forma que novas

regras jurídicas podem ser incluídas, e outras ser alteradas ou eliminadas em um sistema

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jurídico. Seria então incoerente que padrões morais de conduta fossem vistos do mesmo

modo que normas jurídicas, passíveis de sofrer modificações. A moral existe sem

necessidade de haver intenção ou opção de criá-la, embora só isso não explique essa

característica, pois a tradição social não pode também ser reformulada, alterada ou

extinta por motivação humana.

Referentemente ao “caráter voluntário dos delitos morais”, ele afasta a ideia

de que a moral atenta apenas ao que é interno, enquanto o Direito, ao que é externo. Isso

pode ser comprovado com a ideia do crime por “dolo”; se fica definido que certo

individuo cometeu um delito com intenção, com má fé, com consciência do erro de sua

atitude, sua pena será maior do que aquela infligida a alguém que agiu sem intenção, sem

consciência, por impulso. Assim, a norma jurídica leva em conta também o interior, a

motivação interna, o sentimento, embora tal conjuntura tenha limitações, pois depende

de provas físicas. Mesmo assim, o Direito pune o resultado, não as intenções que o

acarretaram; por isso, o sistema jurídico pode, em algumas situações, aplicar a

responsabilidade objetiva e afastá-la do dolo. Ocorrem ainda circunstâncias nas quais o

delito, como o ato de matar em defesa da própria vida, é justificado; aí o sistema jurídico

não impede, conquanto o assassinato seja em regra proibido.

No que concerne à “forma de pressão social”, essa característica se

correlaciona com a anterior e auxilia o exame da ideia de que a moral está ligada

intrinsecamente ao que é interno, ao interior. As regras morais refletem a pressão

exercida sobre a natureza moral do ato praticado; os desvios são respondidos com

determinados comportamentos sociais, como o desprezo, o corte no relacionamento e

até a repulsa. A pressão também implica sentimentos de remorso e culpa naquele que se

desviou da conduta aceita e defendida pela sociedade como boa, correta.

As qualidades morais, exaltadas e defendidas pela pressão social, constituem a

opção por ter atitudes que se encontram além da obrigação, que demonstram

preocupação com o bem-estar do outro, revelam disposição de abrir mão de certos

interesses pessoais em favor dos da coletividade.

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Já a pressão jurídica recorre a ameaças, punições, como argumento para

persuadir os indivíduos a se comportar de certa maneira, ou não agir de outra. Nesse

caso, não há como considerá-la constituinte da moral da sociedade, embora ela possa ser

entendida como parte do Direito da mesma sociedade. De todo modo, tanto as normas

jurídicas quanto as morais atentam mais às atitudes rotineiras do grupo social que às

específicas.

8.9 Direito e Moral 8.9.1 Direito Natural e Positivismo Jurídico

Há variadas conexões entre Direito e moral a serem enfocadas; não se pode,

porém, asseverar que o Direito tem sido significativamente influenciado, em todos os

lugares e todos os tempos, por preceitos e críticas morais de determinados grupos de

pessoas. Ainda assim, um sistema jurídico deve evidenciar certa identidade com dada

obrigação moral jurídica a ser respeitada ou com a justiça e a moral da sociedade. Tal não

significa que os requisitos de validade jurídica das leis utilizadas em dado sistema jurídico

introduzam referências à moral e à justiça.

Para estabelecer a relação entre Direito e moral, pode-se recorrer às questões

sobre Direito Natural e Positivismo Jurídico. O Positivismo Jurídico será aqui tomado no

sentido de que não é necessariamente verdade que as leis atendem a algumas demandas

morais, conquanto o façam frequentemente.

O Positivismo, todavia, tem sido criticado e até recusado pelos que defendem

as teorias clássicas do Direito Natural – o Direito idealizado pelos homens deve identificar-

se com alguns ditames da conduta humana a serem identificados pela razão dos

indivíduos. Tal asserção tem sido negada e defendida desde a época de Platão, doutrina

apoiada em uma concepção geral da natureza como viva ou inanimada, contrária ao

sentido de natureza o qual compõe a organização do pensamento secular moderno.

Muitos críticos a esse pensamento argumentam que o posicionamento se

deve a uma ambiguidade concernente ao termo direito; segundo eles, logo que tal

problema fosse resolvido, o Direito Natural seria severamente afetado, junto com as

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ingênuas indagações de Montesquieu sobre as leis naturais – por que o ser humano, ao

desrespeitar as leis da natureza, as quais os animais respeitam, comete pecado.

A confusão de Montesquieu pode ser solucionada com a explicação de que

existe distinção entre as normas que descrevem, definem o curso da natureza (descritivas)

e as que determinam que as pessoas devam se comportar dessa ou daquela forma

(prescritivas). As primeiras são descobertas pelo cientista por meio da observação, do

raciocínio; as outras são prescrições, determinações sobre como os homens devem agir.

Estas podem ser descumpridas, mas se mantêm como leis; aquelas não são passíveis de

ser ou não violadas – caso certa lei científica a qual defina um movimento, uma

regularidade da natureza não seja mais observada, significa que deve ser refeita, pois

perdeu sua categorização de “lei”.

De acordo com as recentes teorias, o mundo dos seres, de modo geral,

representa um palco onde diversos fatos e transformações ocorrem, seguindo dadas

conexões regulares. Os homens, ao perceberem algumas delas, definiram-nas como leis

da natureza, a partir de formulações abstratas, conduzindo a generalizações referentes

aos eventos observados. Já a doutrina do Direito Natural pertence a antigos conceitos

acerca da natureza, segundo os quais não há apenas o conhecimento das regularidades,

mas também a noção que cada ser se mantém em existência e se dirige a um estado

ótimo, um fim teleológico apropriado, o qual pode ser expresso mediante generalizações

descritivas.

Com relação aos homens, pode-se entender que é uma conduta considerada

“natural” que durmam, comam, bebam e desejem viver (pois são necessidades

fisiológicas, básicas), a qual difere da atitude prescrita, indicando o comportamento a ser

realizado ou proibido. Pode-se afirmar que, de fato, é contingência, necessidade natural,

fim último, os homens desejarem sobreviver.

8.9.2 O conteúdo mínimo do Direito Natural

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Como se julga o desejo de sobrevivência como obviedade, verdade

incontestável, ou um fim em si, é aconselhável incluir um conteúdo próprio ao Direito e à

moral. Sem ele, a moral e o Direito não estariam aptos a proteger o intuito de

sobrevivência do ser humano, o qual os compele a associar-se mutuamente, respeitar as

regras e sustentá-las, bem como a coagir e punir os que assim não agirem.

Ao enfocar a questão desse modo, é factível conectar fatos naturais a normas

jurídicas. Certas conexões entre sistema de regras jurídicas e condições naturais não

podem, contudo, decorrer de razões, uma vez que a existência de algumas normas não se

refere aos propósitos e às finalidades racionais dos indivíduos aos quais elas são aplicadas

e não conflitam com as que decorrem de objetivos conscientes.

O Direito Natural considera como ponto de partida o fato de os homens terem

propósitos conscientes, fundados nas seguintes verdades: vulnerabilidade humana (o

Direito e a moral determinam em geral abstenções, proibições, porque o homem está

sujeito, em alguma medida, a ataques físicos, violência; assim, são vulneráveis, sobretudo,

a serem mortos pelos da mesma espécie). Outra verdade evidente é a igualdade

aproximada (embora se distingam na força, na inteligência e em outras características, as

pessoas são aproximadamente iguais, por exemplo, na necessidade de dormir). Outra

ideia óbvia é o altruísmo limitado (os seres humanos não são anjos nem demônios, mas se

encontram no meio termo entre ambos os conceitos; por isso, as normas (sistema de

abstenções) são necessárias).

Outro aspecto banal consiste nos recursos limitados – os recursos de que o

homem precisa, como alimento, roupa, abrigo, não se encontram à mão nem são

ilimitados. Desse modo, é essencial haver qualquer forma mínima de direito de

propriedade, mesmo que não seja individual, e de respeito a ele. Tais normas são

estáticas, porquanto os deveres impostos bem como a incidência deles não podem ser

alterados pelas pessoas. Logo, é indispensável se criem regras dinâmicas, com obrigações

passíveis de ser transformadas pelos indivíduos.

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Além disso, observa-se igualmente como verdade evidente a compreensão e a

força de vontade limitadas, pois a maioria dos seres humanos é capaz de identificar os

eventos que tornam essenciais à vida em grupo as normas de conduta, propriedade, cujos

benefícios são simples e visíveis. Nesse sentido, o homem consegue reconhecer que os

sacrifícios e a renúncia a seus interesses representam ganhos em prol do bem-estar

coletivo, ou então que o cumprimento da lei merece devoção por parte dele. As

motivações não são, no entanto, partilhadas por todos; muitos priorizam interesses

pessoais e se entregam às tentações, principalmente se não houver um sistema coercivo

que os puna em caso de transgressões.

As verdades expostas desvendam o cerne da doutrina do Direito Natural;

constituem ideias relevantes para o entendimento da moral e o do Direito, pois

esclarecem o motivo pelo qual a definição delas vem se mostrando tão inadequada, caso

se desconsiderem carências sociais ou conteúdo específico.

Em tal contexto, torna-se fundamental delimitar e discriminar qual espaço as

sanções ocupam em um sistema jurídico, a partir da definição de necessidade natural, o

que pode responder à tese do Positivismo de que “o Direito pode ter qualquer conteúdo”.

8.9.3 Validade jurídica e valor moral

As vantagens obtidas pelo sistema de abstenções recíprocas subjacentes ao

Direito e à moral podem, a depender da sociedade, abranger distintas categorias de

indivíduos, pois sua restrição contrariaria os preceitos morais e jurídicos dos Estados

modernos que a elas se conformam. Os homens detêm o direito de ser tratados de modo

igual; quando houver distinção no tratamento, esta precisa estar totalmente justificada

por argumentos que vão além dos interesses dos outros.

Em contrapartida, a moral e o Direito não necessitam (nem conseguem)

propagar seus benefícios e proteções a todos, tal qual ocorria em sociedades escravagistas

e em circunstâncias similares ainda hoje, por intermédio de discriminações de raça,

gênero e opção sexual.

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Para que o poder coercivo do Direito e da moral seja eficaz, é imprescindível

que a maioria das pessoas o aceite voluntariamente, respeitando o sistema de regras e

sanções imposto e com ele concordando. A fim de que o poder de coerção subsista, é

fundamental que a maioria das pessoas submetidas às normas colabore para o

cumprimento destas. Esse poder pode ser utilizado de dois modos – ou é aplicado apenas

a malfeitores egoístas ou é usado com grupos dominados, para garantir e manter a

submissão e o domínio deles. Entre os dois extremos podem-se verificar diversas

combinações das atitudes para com o Direito, constantemente na mesma pessoa.

A presença de certo sistema jurídico representa fenômeno social com dois

aspectos – comportamentos e atitudes envolvidos na aceitação consciente de normas e

atitudes e comportamentos contidos na obediência a elas. Caso o sistema seja justo e

garanta os direitos de todos a quem pede obediência, consegue ser estável, pois assegura

a lealdade dos indivíduos.

Com esse cenário, constata-se a passagem da sociedade cujo único meio de

controle social consiste nas regras primárias de obrigação para o universo jurídico, com

poder legislativo, tribunais, leis, sanções, juízes e outros funcionários, cuja estrutura é

centralizada e tem custos e benefícios.

Para asseverar a correlação entre moral e Direito nesse mundo, é essencial

citar diferentes modos de conexão: o primeiro é o poder e a autoridade: dado sistema

jurídico se apoia na obrigação e na convicção do valor moral do sistema, pois não cabe sua

sustentação no simples poder do homem sobre o homem, consideradas como

inadequadas regras fundadas em ameaças e costumes de obediência na condição de

pressuposto para entender a validade jurídica

Outro aspecto é a influência da moral sobre o Direito, segundo a qual a moral

aceita pelas pessoas já foi absorvida pelo Direito dos Estados modernos. Além disso, eles

abraçam mais amplos ideais morais. Quanto à interpretação, pode-se assegurar que a

textura aberta do Direito possibilita a juízes, magistrados, vasta área de interpretação das

leis, o que lhes permite não acatar desmedidamente todas as leis nem admitir deduções

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mecanicistas das regras. Os julgadores podem optar por determinado posicionamento,

nem arbitrário, nem mecânico; eles podem, ao analisar as alternativas, recorrer às

“virtudes judiciais”, que refletem preocupação com dado preceito geral admitido como

racional para a tomada de decisão; neutralidade; consideração de interesses dos

envolvidos e imparcialidade.

Com relação à crítica do Direito, é possível afirmar que um bom sistema

jurídico necessita, em alguma medida, configurar-se às demandas da justiça e da moral

aceita pelo grupo, independentemente de em quais critérios esta se baseia. A ideia de que

certo sistema jurídico precisa tratar todos os homens como sujeitos de determinadas

liberdades fundamentais e proteções é admitida como confirmação de um ideal e possui

significativa importância para a crítica do Direito.

Já com respeito aos princípios de legalidade e justiça, pode-se sustentar que o

âmago de tais preceitos se situa na aplicação de regras gerais de Direito. Ocorre o mínimo

de justiça quando a atitude humana sofre controle mediante normas publicamente

definidas e aplicadas pela via judicial. É necessário garantir a imparcialidade, denominada

por juristas americanos e ingleses de princípio de “Justiça Natural”.

Acerca da validade jurídica e da resistência ao Direito, muitos teóricos

positivistas defendem que é fundamental esclarecer as implicações teóricas criadas por

leis morais iníquas moralmente, embora ajustadamente legisladas. De todo modo, não se

considera adequado excluir do sistema jurídico tal tipo de normas – ainda que preencham

todas as condições para serem entendidas como Direito, não o são com referência à

validade moral. Quando se assume o conceito mais amplo de Direito, examinam-se tanto

as reações da sociedade às leis perversas, quanto todos os possíveis ângulos especiais que

elas detenham.

Evidencia-se que as formas do Direito, como uma de suas ferramentas, são

empregadas pelos que têm suficiente colaboração para subjugar outros. Deve ficar claro,

entretanto, que as demandas do sistema jurídico oficial necessitam estar subordinadas a

análise moral. As doutrinas positivistas defendem, porém, que mesmo normas

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moralmente iníquas podem ser ainda entendidas como Direito, embora resultem em

malefícios a alguns indivíduos quando aplicadas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Teoria da Norma Jurídica. Rio de Janeiro, Companhia Editora Forense, 1978.

HART, Herbert L. A. Trad. de A. Ribeiro Mendes. O Conceito de Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 4ª edição. Coimbra: Armênio Amado Editor, Sucessor, 1976.

ROSS, Alf. Direito e Justiça. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2008.

VILANOVA, Lourival. Estruturas Lógicas e Sistema de Direito Positivo. 3ª ed. São Paulo: Noeses, 2005.