livro pierpaolo online 11

38

Upload: ademir-do-gas-pokemon

Post on 10-Sep-2015

9 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

“É preciso descriminalizar o usuário e construir uma política antidrogas racional que não o penalize”. A avaliação é do criminalista e professor de Direito Penal da Universidade de São Paulo (USP) Pierpaolo Cruz Bottini, autor do livro Porte de Drogas para uso próprio e o STF, que será lançado próxima segunda-feira (22), na Defensoria Pública do Rio de Janeiro.A publicação questiona a constitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/2006, que aborda a criminalização do usuário e a pena de privação de liberdade. O assunto é discutido no Supremo Tribunal Federal por meio de um Recurso Extraordinário (RE 635.659).No caso, um homem foi condenado a dois meses de prestação de serviço à comunidade por ter sido flagrado com três gramas de maconha. A Defensoria Pública de São Paulo, que recorre contra a punição, alega que a proibição do porte para consumo próprio ofende os princípios constitucionais da intimidade e da vida privada.Como o caso teve repercussão geral reconhecida, a decisão deve impactar outros processos em todo o país. Ainda seria preciso estabelecer regras sobre produção, venda e a quantidade que configura “uso pessoal”.O ministro Gilmar Mendes, relator, liberou seu voto nesta quinta-feira (18/6), mas a questão só será julgada no segundo semestre. Parte dos ministros do Supremo ainda não estudou detalhadamente o assunto, que é complexo.A discussão opõe o Ministério Público e a Defensoria Pública de São Paulo, mas despertou o interesse de diversas entidades, que ingressaram no processo como amici curiae (amigos da corte). Bottini, que também é colunista da ConJur, é o representante da ONG Viva Rio e da Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia (CBDD).Também estão envolvidos com o julgamento o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim); a Associação Brasileira de Estudos Sociais do Uso de Psicoativos (Abesup); o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD); a Conectas Direitos Humanos; o Instituto Sou da Paz; o Instituto Terra, Trabalho e Cidadania; e a Pastoral Carcerária.

TRANSCRIPT

  • Porte de drogas para uso prprio E o Supremo Tribunal Federal

  • Pierpaolo Cruz Bottini

    porte de drogas para uso prprio E o Supremo Tribunal Federal

  • Copyright 2015 Pierpaolo Cruz BottiniDireitos desta edio reservados ao Viva Rio

    Impresso no Brasil | Printed in Brazil

    Todos os direitos reservados. A reproduo no autorizada desta publicao, no todo ou em parte, constitui violao do copyright (Lei no 9.610/98).

    Os conceitos emitidos neste livro so de inteira responsabilidade do autor.

    1a edio 2015

    Coordenao editorial: Ronaldo LapaProduo editorial: Renata RodriguesTexto: Pierpaolo Cruz BottiniReviso: Ronald Polito Projeto grfico da capa: Carollina Bulco Miolo: Ana Cristina Secco

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Bottini, Pierpaolo Cruz Crime de porte de drogas para uso prprio : com a palavra, o Supremo Tribunal Federal / Pierpaolo Cruz Bottini. -- Rio de Janeiro : Viva Rio, 2015.

    1. Brasil. Supremo Tribunal Federal 2. Crimes (Direito penal) - Brasil 3. Direito penal - Brasil 4. Drogas - Leis e legislao - Brasil 5. Porte de drogas - Brasil 6. Txicos e crime I. Ttulo.

    15-04565 CDU-343.347(81)(094)

    ndices para catlogo sistemtico:

    1. Brasil : Lei de drogas : Direito penal 343.347(81)(094) 2. Leis : Drogas : Direito penal 343.347(81)(094)

  • Prefcio

    Prefaciar o livro de um grande amigo motivo de alegria. Prefaciar o livro de um grande amigo, que tambm um combativo advogado e destacado acadmico, motivo de honra e gratido. Alegria, honra e gratido so os sentimentos que me causaram o convite para apresentar ao leitor este Porte de drogas para uso prprio e o Supremo Tribunal Federal, por meio do qual o ilustre autor publica o memorial apresentado pelo Viva Rio, na qualidade de amicus curiae, nos autos do Recurso Extraordinrio n 635.659, em trmite na Suprema Corte desde o ano de 2011, da relatoria do Ministro Gilmar Mendes, na qual se discute a constitucionalidade do art. 28 da Lei n 11.343/06.

    A alentada argumentao, expendida pelo ilustre lente da velha e sempre nova Academia do Largo So Francisco, conduz inafastvel concluso de que a punio em questo no se afigura compatvel com a natureza fragmentria e subsidiria de um direito penal de cariz democrtico, que se caracteriza precisamente por no ser a prima, nem mesmo a unica ratio, mas sim a ultima et extrema ratio, a mais violenta e problemtica instncia de controle social, e que, por isso mesmo, deve ser reservada apenas e exclusivamente aos desvios capazes de ofender interesses essenciais vida comunitria.

    O tema foi objeto de deliberao em outros pases, com destaque para as decises recentes proferidas pelos rgos de cpula do Judicirio da Colmbia e da Argentina e, em ambos os casos, o resultado foi o mesmo, no sentido da inconstitucionalidade da incriminao da posse de drogas para uso pessoal.

  • No cabe ao Estado realizar a educao moral de pessoas adultas. Nas palavras do juiz paulista Bruno Cortina Campopiano, a possibilidade de fazer escolhas, por mais esdrxulas ou inexplicveis que possam parecer aos terceiros expectadores, deve ser encarada como uma prerrogativa inexorvel da espcie humana, umbilicalmente ligada autonomia da vontade que, antes e para alm de ser um direito, uma caracterstica que nos distingue das demais espcies (Juizado Especial de Cafelndia/SP, Autos n 183/2010, j. 26.01.2011, publicada em 26.01.2011, in Boletim IBCCRIM, edio especial, outubro de 2012).

    Na democracia, a diferena no que se refere a questes afetas ao ncleo intangvel da intimidade, como por exemplo as atinentes ao estilo de vida, cosmoviso, s formas enfim de busca e atingimento da felicidade, da realizao, do gozo e da transcendncia, no podem jamais ser criminalizadas, exceto quando houver concreta ameaa de leso a terceiro.

    A declarao de inconstitucionalidade um primeiro e importante passo na transformao da nossa poltica de drogas, afastando-a do sistema de justia criminal e aproximando-a de uma abordagem que privilegie a sade, o respeito aos direitos humanos e que possibilite a implantao efetiva de estratgias de reduo de danos e de preveno ao uso problemtico.

    A questo que se abre, a partir da perspectiva de reconhecimento da ilegitimidade da interveno penal dada a ausncia de alteridade, diz respeito modulao dos efeitos da deciso na direo da autorizao para autocultivo de cannabis e possibilidade de criao de cooperativas e clubes sociais, nos moldes do que j existe em algumas provncias espanholas e no Uruguai.

  • Nesse mesmo diapaso, ser necessrio estipular limites objetivos baseados em quantidades definidas para cada substncia, como forma de garantir segurana jurdica, evitando que usurios sejam enquadrados como traficantes, como acontece hoje. Na fixao desses limites quantitativos, abaixo dos quais a presuno ser de uso (e no de trfico), h que se levar em conta a realidade das ruas; caso contrrio, definindo-se limites excessivamente modestos e que no levem em conta a peculiaridade dos padres de consumo de cada substncia, colheremos resultados opostos aos pretendidos, notadamente no que se refere ao superencarceramento retroalimentado pela guerra s drogas.

    Pases que descuraram dessa necessria adequao normativa vida real de pessoas que usam substncias, como parece ser o caso do Mxico, onde os parmetros quantitativos foram fixados em patamares excessivamente baixos, no diminuram, ao contrrio, agravaram o fenmeno de priso de consumidores de drogas.

    O movimento que pressiona por reformas na poltica

    global de drogas cresce em todo o mundo e a UNGASS 2016, uma reunio especial sobre a questo das drogas da Assembleia das Naes Unidas pode ser um marco formal da mudana do fracassado modelo proibicionista. O detalhado e refinado trabalho que Pierpaolo Bottini apresenta ao debate tambm um marco no campo jurdico brasileiro e , desde j, contribuio de referncia para que o Brasil se alinhe ao movimento global que busca modelos de polticas de drogas justos, responsveis e racionais.

    Cristiano MaronnaAdvogado e Secretrio-Geral da Plataforma

    Brasileira de Polticas de Drogas

  • Sumrio

    Introduo ................................................................

    Da questo central: o art. 28 da Lei 11.343/06 .........................................

    Da incompatibilidade do art. 28 da Lei11.343/06 com os arts. 1, III e V, 5, caput e X, todos da Constituio Federal .............................................

    Da Proteo da Sade Individual ........................

    Da Experincia Internacional .............................

    Concluso ..................................................................

    7

    8

    10

    15

    27

    29

  • IntroduoO debate sobre a criminalizao do porte de drogas

    ilcitas para uso prprio ganha espao na mdia e nos tribunais. Per-sonalidades, autoridades pblicas, estudantes e representantes da so-ciedade civil tm tratado o tema em diversos foros, colocando em pau-ta a reflexo sobre a legitimidade do uso do direito penal para reprimir escolhas pessoais de conduo de vida.

    O Viva Rio tem participado ativamente do debate. Entre suas iniciativas, destaca-se o pedido de ingresso no Supremo Tribunal Federal (STF) para colaborar nos debates do Recurso Extraordinrio 635659, que discute a constitucionalidade do crime de porte de drogas ilcitas para uso prprio.

    Os argumentos jurdicos e polticos apontados pelo Viva Rio ao STF so agora reproduzidos para que sejam conhecidos e debatidos em outros setores, de forma a contribuir para a expanso da reflexo sobre um tema importante, premente e sensvel.

    Porte de drogas para uso prprio E o Supremo Tribunal Federal

    13

  • 14

    Da questo central: o art. 28 da Lei 11.343/06

    A questo jurdica central que se pretende analisar inconstitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006, sob a tica dos princpios da dignidade humana (CF, art. 1o, III), do pluralismo (CF, art. 1o, V), da intimidade (CF, art. 5, X) e da isonomia (CF, art. 5o, caput).

    A Lei 11.343/06 que institui o Sistema Nacional de Polticas Pblicas sobre Drogas alterou o tratamento penal para o porte de drogas ilcitas para consumo pessoal, substituindo a priso de 6 meses a 2 anos (e o pagamento de 20 a 50 dias-multa) prevista no art. 16 da revogada Lei 6.368/76, pelas penas de advertncia, prestao de servios comunidade ou medida educativa obrigatria, dispostas no art. 28 da Lei 11.343/06.

    Ainda que o novo tipo penal abrande as consequncias penais para os usurios de drogas ilcitas, afastando em definitivo a pena privativa de liberdade, mantm o desvalor penal do comporta-mento, no retira sua natureza delitiva, nem o carter estigmatizante da incidncia da norma penal1.

    Vale destacar que a lei comentada prev, dentre as sanes para o usurio de drogas, a prestao de servios comunidade. A pena restritiva de direitos destinada a crimes com pena privativa de liberdade superior a seis meses (CP, art. 46)2, fato que distancia o comportamento mesmo na seara material de uma mera infrao administrativa, no que concerne s consequncias jurdicas do ato.

    1. Nesse sentido, KARAM, Maria Lucia. A Lei 11.343/06 e os repetidos danos do proibicionismo. Boletim Ibccrim, So Paulo, v. 14, n. 167, p. 6-7, 2006.

    2. Embora a lei estabelea o prazo mximo de 5 meses de pena para os rus primrios, a meno Parte Geral se faz apenas para estabelecer parmetros de gravidade dentro de uma suposta sistematicidade do ordenamento jurdico.

  • 15

    A natureza penal do porte de drogas para consumo mantm a chamada junkyzao do usurio, uma caracterizao pejo-rativa que, ampliada pelos meios de comunicao, produz uma intensa reao social informal sobre os consumidores de entorpecentes3, difi-cultando sua recuperao e submetendo-os a tratamentos degradantes por parte de autoridades policiais e pela prpria Justia4.

    Assim, parece claro que o art. 28 da Lei 11.343/06, apesar de abrandar o tratamento penal para o usurio de drogas, no retira o carter delitivo do comportamento. Esta a razo pela qual o dispositivo merece uma anlise de sua compatibilidade com os pre-ceitos constitucionais que pautam o uso do direito penal pelo Estado.

    3. CARVALHO, Salo de. A poltica criminal de drogas no Brasil (do discurso oficial s razes de descriminalizao). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1997, p. 200.

    4. A iniciativa da Comisso Brasileira de Drogas e Democracia (CBDD) e da Associao Nacional de Defensores Pblicos (Anadep) de criar o Banco de Injustias, um cadastro de relatos sobre injustias praticadas na seara do combate s drogas, em especial em relao aos usurios, demonstra a realidade do tratamento policial ao consumidor de drogas, mesmo na vigncia da nova lei. Disponivel em . Acesso em: 24 jan. 2013.

  • 16

    Da incompatibilidade do art. 28 da Lei 11.343/06 com os arts. 1o, III e V, 5o, caput e X, todos da Constituio Federal

    Ao criminalizar o porte de droga para uso pessoal, o dis-positivo em discusso afronta no apenas a norma constitucional que protege a intimidade e a vida privada (art. 5o, X) tida como paradig-ma para o reconhecimento da repercusso geral do recurso em tela , mas primordialmente aquela que prev as bases sobre as quais se sus-tenta todo o modelo poltico e jurdico nacional: a dignidade da pessoa humana e a pluralidade (CF, art. 1o, III e V).

    Dignidade humana pode ser definida como a capaci-dade de autodeterminao do ser humano para o desenvolvimento de um modo de vida autnomo, em que seja possvel a reciprocidade5. E pluralidade significa a tolerncia, no mesmo corpo social, de diferentes modos de vida, estilos, ideologias e preferncias morais, respeitadas as fronteiras do modo de vida dos outros.

    Essa concepo liberal da Constituio no significa a aceitao de um Estado mnimo, pois a materializao da dignidade humana exige mais que a garantia da liberdade de cada indivduo. Exige o desenvolvimento de polticas sociais positivas de promoo de direitos e de cidadania. No por acaso, a Constituio indica diretrizes para a promoo de justia social (CF, art. 193 e ss.), exigindo empenho do setor pblico (e privado) para assegurar desenvolvimento econmi-co e humano, sade, educao, cultura, previdncia e assistncia social, entre outros direitos essenciais para a construo do espao de desen-volvimento de cada indivduo.

    5. Nesse sentido, PAWLIK, Michael. La libertad institucionalizada. Estudios de filosofia jurdica y derecho penal. Madri: marcial Pons, 2010 e GRECO, Luis. Posse de droga, privacidade, autonomia: reflexes a partir da deciso do Tribunal Constitucional argentino sobre a inconstitucionalidade do tipo penal de posse de droga com a finalidade de prprio consumo. Rbccrim, So Paulo, v. 18, n. 87, nov./dez. 2010.

  • 17

    No entanto, os princpios da dignidade e da plurali-dade desenham limites ao uso do direito penal como instrumento de controle social ou de promoo de valores funcionais. Sendo essa a faceta mais grave e violenta da manifestao estatal, sua incidncia se restringe punio de comportamentos que violem esta liberdade de autodeterminao do indivduo, que maculem este espao de criao do modo de vida6.

    A definio do espao de legitimidade do direito penal exige do intrprete da Constituio o reconhecimento de que com-portamentos praticados dentro do espao de autodeterminao do indivduo, sem repercusso para terceiros ou seja, que no afetem a dignidade de outros membros do corpo social , no tm relevn-cia penal.

    Com base nessa assertiva, so estranhos ao direito pe-nal comportamentos religiosos, sexuais, ideolgicos, nsitos liberdade individual, que possam ser praticados com reciprocidade, ou seja, cujo exerccio mtuo seja possvel por todos os demais membros da socie-dade. Em suma, que no afetem a autodeterminao de outros com-ponentes do corpo social. No por acaso, a criminalizao do homos- sexualismo, da opo religiosa, do incesto rechaada pelo direito penal

    6. ROXIN, Claus. Derecho penal. Parte General. 2. ed. Madri: Thomson, 2006, p. 51; SCHNEMANN, Bernd. O direito penal a ultima ratio de proteo de bens jurdicos! Sobre os limites inviolveis do direito penal em um Estado de Direito liberal. Revista Brasileira de Cincias Criminais, So Paulo, ano 13, n. 53, p. 18, mar./abr. 2005; HASSEMER, Winfried. Histria das ideias penais na Alemanha do ps-gerra. Revista Brasileira de Cincias Criminais, So Paulo, ano 2, n. 6, p. 52, abr./jun. 1994, NESTLER, Cornelius. El principio de proteccin de bienes jurdicos y la punibilidade de la posesin de armas de fuego y de substancias estupefacientes. In: ROMEO CASABONA, Carlos Maria. La insostenible situacin del derecho penal, Granada: Comares, 2000, p. 63, MIR PUIG, Santiago. La perspectiva ex ante em derecho penal. Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, Madri, v. 36, fasc. 1, p. 9, jan./abr. 1983; Id. e Derecho penal. Parte General. 4. ed. Barcelona: Reppertor, 1996, p. 91; ZAFFARONI, Eugnio Ral; PIERANGELI, Jos Henrique. Manual de direito penal brasileiro Parte geral 3. ed. So Paulo: RT, 2001, p. 466; TOLEDO, Francisco de Assis. Princpios bsicos de direito penal 5. ed. So Paulo: Saraiva, 1994, p. 14; SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito penal supraindividual: interesses difusos. So Paulo: RT, 2003, p. 35 e ss.

  • 18

    brasileiro e duramente criticada nas legislaes estrangeiras7. Como ensina Roxin, la proteccin de normas morales, religiosas o ideolgi-cas, cuya vulneracin no tenga repercusiones sociales, no pertenece em-nabsoluto a los cometidos del Estado democrtico de Derecho, que por el contrario tambin debe proteger las concepciones discrepantes de las minoras y su puesta en prctica8.

    No foi outro o entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao julgar o conhecido caso Ximenes Lopes x Brasil - primeira condenao do pas na Corte:

    10. Desde luego, el desenvolvimiento del ser humano no queda sujeto a las iniciativas y cuidados del poder pbli-co. Bajo una perspectiva general, aqul posee, retiene y desarrolla, en trminos ms o menos amplios, la capaci-dad de conducir su vida, resolver sobre la mejor forma de hacerlo, valerse de medios e instrumentos para este fin, seleccionados y utilizados con autonoma - que es prenda de madurez y condicin de libertad - e incluso resistir o rechazar en forma legtima la injerencia indebida y las agresiones que se le dirigen. Esto exalta la idea de au-tonoma y desecha tentaciones opresoras, que pudieran ocultarse bajo un supuesto afn de beneficiar al sujeto, establecer su conveniencia y anticipar o iluminar sus de-cisiones.9

    Vlida aqui a lio de Pawlik, professor da Universidade de Regensburg (Alemanha), para quem a funo do direito penal

    7. Vide o intenso debate sobre a constitucionalidade do crime de incesto na Alemanha em GRECO, Luis. Tem futuro a teoria do bem jurdico? Reflexes a partir da deciso do Tribunal Constitucional Alemo a respeito do crime de incesto, Rbccrim, 82, p. 165-182.

    8. ROXIN, Claus. Derecho penal. Parte General. 2. ed. Madri: Thomson, 2006, p. 63.

    9. Sentencia de 4.06.06. Disponvel em:

  • 19

    respetar y garantizar el deseo de que cada uno pueda conducir su vida de acuerdo con su propio entendimiento, sempre observando evidente-mente uma condio de reciprocidade dos espaos de autodeterminao entre os membros da sociedade, em condies de igualdade10.

    Tal percepo no afasta a discusso sobre a necessi-dade de tutela penal em casos extremos de leso irreversvel de bens jurdicos indisponveis, mesmo com consentimento de seu titular, como no caso da vida ou da integridade fsica (em casos graves). No entanto, mesmo nessas hipteses, o uso do direito penal no se afasta do pre-ceito constitucional da dignidade. Ao contrrio, a represso usada para proteger a autodeterminao, impedindo a violao do substrato que permite seu exerccio.

    No entanto e isso fundamental para esta discusso , mesmo nestes extremos casos de afetao da vida ou da integridade fsica em graus exagerados, a norma penal no incide sobre os titulares do bem jurdico, mas sobre terceiros que pratiquem ou colaborem com a leso. Ainda que se tutele a vida com a determinao da irrelevncia do consentimento nos casos de sua leso, o ato criminoso ser sempre o do terceiro causador da morte ou da tentativa e no do titular do bem jurdico. Pune-se o induzimento, a instigao ou o auxlio ao suic-dio, mas no a tentativa do suicdio em si11.

    A Constituio Federal ao consagrar a dignidade hu-mana e a pluralidade como vrtices do sistema jurdico limita ma-terialmente a produo da lei penal queles comportamentos que afetem, ou tenham potencial de afetar, bens jurdicos relevantes para a autodeterminao do indivduo. Rechaa, portanto, a criminalizao da

    10. PAWLIK, Michael. La libertad institucionalizada. Estudios de filosofa jurdica y derecho penal. Madri: Marcial Pons, 2010.

    11. Nesse sentido, nosso As drogas e o direito penal na sociedade de risco. In: REALE JR., Miguel Reale (Coord.). Drogas: aspectos penais e criminolgicos. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 81.

  • 20

    autoleso ou da autocolocao em perigo12, o que nos leva novamente questo central: a inconstitucionalidade da criminalizao do porte de entorpecentes para consumo prprio.

    O uso do direito penal para inibir o uso de drogas so-mente seria legtimo do ponto de vista do sistema constitucional ptrio se justificado pela necessidade de proteger algum bem jurdi-co imprescindvel garantia da dignidade humana. No o que parece ocorrer, como indicado a seguir.

    12. O que no quer dizer que autorize ou legitime tais comportamentos.

  • 21

    Da Proteo da Sade IndividualNo que concerne sade individual, no h duvidas de

    que impedir o acesso do usurio droga relevante para a preservao de sua integridade fsica e psquica, ou seja, para a preservao de seu espao de dignidade.

    No entanto, como j exposto, a proteo de um bem jurdico no pode passar pela criminalizao de seu prprio titular. A incidncia da sano penal sobre algum retira uma parcela de sua au-todeterminao, em operao apenas autorizada para assegurar um pa-tamar de dignidade de terceiros, afetados pelo crime. No parece fazer qualquer sentido a subtrao da liberdade de algum com o objetivo de proteger essa mesma liberdade sob outro prisma.

    Por isso, o uso do direito penal contra o usurio de drogas ilcitas com a justificativa de proteg-lo carece de legi- timidade. No outro o entendimento de inmeros juristas que se dedicaram ao estudo do tema, como Hassemer13, Ripolles14, Reale Jr.15, Nilo Batista16, Luis Greco17, Salo De Carvalho18, Abra-

    13. HASSEMER, Winfried. Descriminalizao dos crimes de droga. In: Direito penal.Fundamentos, estrutura, poltica. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008, p. 321.

    14. DIEZ RIPOLLES, Jose Luis. Alternativas a la actual legislacion sobre drogas. Cuadernos de Poltica Criminal, Madrid, n. 46, p. 73-115, 1992.

    15. REALE JR. Miguel. Caminhos do direito penal brasileiro. Rbccrim, n. 85, p. 67, 2010.

    16. BATISTA, Nilo. Introduo crtica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1990, p. 91.

    17. GRECO, Luis. Posse de droga, privacidade, autonomia: reflexes a partir da deciso do Tribunal Constitucional argentino sobre a inconstitucionalidade do tipo penal de posse de droga com a finalidade de prprio consumo. Rbccrim, So Paulo, v. 18, n. 87, nov./dez. 2010.

    18. CARVALHO, Salo de. A poltica criminal de drogas no Brasil (do discurso oficial s razes de descriminalizao). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1997.

  • 22

    movay19, Silveira20, Boiteux21, Karam22, Toron23, Cavaliere24, entre mui-tos outros. No mesmo sentido, decises judiciais ptrias25 e de outros pases26 apontam a incompatibilidade entre o tipo penal em discusso e a dignidade humana.

    Vale destacar, dentre os ltimos, a Colmbia, onde a Corte Constitucional afastou a constitucionalidade da criminalizao do uso de drogas, com o seguinte fundamento:

    Si a la persona se le reconece esa autonoma (esfera de liberdade individual) no puede limitrse sino en la me-dida en que entra en conflito con la autonoma ajena. El considerar a la persona como autnoma tiene sus con-secuencias inevitables e inexorables, y la primera y ms importante de todas consiste en que los asuntos que slo a la persona ataen, slo por ella deben ser decididos.

    19. ABRAMOVAY, Pedro. A poltica de drogas e a marcha da insensatez. Diponvel em: , Acesso em: 22 jan. 2013.

    20. SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Drogas e politica criminal: entre o direito penal do inimigo e o direito penal racional. In: REALE JR., Miguel Reale (Coord.). Drogas: aspectos penais e criminolgicos. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 41.

    21. BOITEUX, Luciana. Breves consideraes sobre a poltica de drogas brasileira atual e as possibilidades de descriminalizao. Boletim Ibccrim, So Paulo, v. 18, n. 217, dez. 2010.

    22. KARAM, Maria Lucia. A Lei 11.343/06 e os repetidos danos do proibicionismo. Boletim Ibccrim, So Paulo, v. 14, n. 167, p. 6-7, 2006.

    23. TORON, Alberto Zacarias. A proteo constitucional da intimidade e o artigo 16 da Lei de Txicos. Fascculos de Cincias Penais. Porto Alegre, v. 4, n. 3, passim, jul./set. 1991.

    24. Antonio. Il controlo del traffico di droghe tra politica criminale e dogmtica: lesperienza italiana. Rbccrim 99, n. 99, p. 155-169, nov./dez. 2012.

    25. 6 Cmara Criminal do TJ-SP. Apelao 01113563.3/0-000-00, relator Jos Henrique Rodrigues Torres, j. 03/08/2010.

    26. Item 06 infra.

  • 23

    Decidir por ella es arrebatarle brutalmente su condicin tica, reducirla a la condicin de objeto, cosificarla, con-vertirla en mdio para los fines que por fuera de ella se eligen. Cuando el Estado resuelve reconocer la autono-ma de la persona, lo que ha decidido, no ms ni menos, es constatar el mbito que le corresponde como sujeto tico: dejarla que decida sobre lo ms radicalmente hu-mano, sobre lo bueno y lo malo, sobre el sentido de su existencia 27.

    O paternalismo penal, caracterizado pela crimina- lizao de comportamentos inerentes ao espao de autonomia do in-divduo28, incompatvel com um sistema pautado pela dignidade hu-mana, elemento que como dito norteia a aplicao do direito penal e fundamenta os princpios da interveno mnima, da subsidiariedade e da fragmentariedade, que indicam seu uso apenas em situaes into- lerveis de agresso a bens jurdicos que no possam ser inibidos por meios menos gravosos29.

    A supracitada Corte Constitucional colombiana, em interessante passagem, aproxima o Estado paternalista do Estado to-talitrio, apontando que o primeiro, ao tentar proteger o cidado de si mesmo pela via do direito penal, chega ao mesmo resultado do segun-do, qual seja: la negacin de la libertad individual, en aquel mbito que

    27. Sentena C-221/94 da Corte Constitucional Colombiana, de 05 de maio de 1994.

    28. FEINBERG, Joel. Harm to self. Nova York/Oxford, 1986, p. 09, apud GRECO, Luis. Posse de droga, privacidade, autonomia: reflexes a partir da deciso do Tribunal Constitucional argentino sobre a inconstitucionalidade do tipo penal de posse de droga com a finalidade de prprio consumo. Rbccrim, So Paulo, v. 18, n. 87, p. 94, nov./dez. 2010.

    29. FRANCO, Alberto Silva. Cdigo Penal e sua interpretao: doutrina e jurisprudncia. 8. ed. So Paulo: RT, 2007, p. 48; REALE JR., Miguel. Instituies de direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 25.

  • 24

    no interfiera con esfera de la libertad ajena30.

    Mas no s. A proteo dignidade humana e ao pluralismo irradia-se pela Constituio e se manifesta em outros pre-ceitos, como no art. 5o, X, que protege a intimidade e a vida privada do indivduo, tambm afetado pelo dispositivo legal em discusso.

    Trcio Sampaio Ferraz Jr. diferencia intimidade da vida privada, indicando o primeiro como o mbito do exclusivo que algum reserva para si, sem nenhuma repercusso social e o segundo como for-mas exclusivas de convivncia (...) em que a comunicao inevitvel31. Parece-nos que o consumo de drogas, enquanto comportamento exclu-sivo do indivduo, sem afetao de terceiros, encontra-se no campo da intimidade, daquilo que exclusivo, que passa pelas opes pessoais, afetadas pela subjetividade do indivduo e que no guiada nem por normas nem por padres objetivos. Por isso, esse espao indevassvel. Assegurar esse campo de intimidade , nas palavras de Hannah Arendt, garantir ao indivduo a sua identidade diante dos riscos proporciona-dos pela niveladora presso social e pela incontrastvel impositividade do poder poltico32. Jakobs reconhece que sem um mbito de privacidade no existe o cidado33.

    Esse crculo dentro do qual o cidado exerce sua liber-dade de pensamento e de ao no pode sofrer qualquer ingerncia do Poder Pblico ou de terceiros. Sendo o conjunto de modo de ser e

    30. Corte Constitucional da Colombia, Sala Plena, sentena C-221/94, Bogot, 05 de maio de 1994, ponente Carlos Gaviria Diaz, p. 14.

    31. FERRAZ JR. Trcio Sampaio Ferraz. Sigilo de dados: o direito privacidade e os limites funo fiscalizadora do estado. Cadernos de Direito Tributrio e Finanas Pblicas, So Paulo, n. 1, p. 141-154, 1992.

    32. Ibid.

    33. JAKOBS, Gnther (1985) p. 755, apud PAWLIK, Michael. La libertad institucionalizada. Estudios de filosofia jurdica y derecho penal. Madri: Marcial Pons, 2010, p. 101.

  • 25

    viver, o direito de o indivduo viver sua prpria vida34, a intimidade no outra coisa que no a concretizao de uma parcela da dignidade.

    bem verdade que em situaes-limite possvel rela-tivizar uma parcela do espao privado do indivduo. Mas no esse o caso do consumo de drogas, porque o ato se limita esfera individual, ao j indicado mbito de autonomia do usurio. Pode-se considerar a intimidade pelo aspecto positivo, como um comportamento cuja prti-ca no exclui que outros indivduos tambm o pratiquem35, ou pelo aspecto negativo, como ato de exerccio de liberdade individual inca-paz de afetar bens jurdicos alheios36. Use-se a primeira ou a segunda definio. O resultado, para os fins almejados na presente discusso, ser o mesmo: o consumo individual de drogas integra-se no crculo de privacidade do indivduo, intangvel pelo ius puniendi a no ser que se entenda que o comportamento incentiva o trfico ou outros crimes, argumento enfrentado a seguir.

    Merece transcrio trecho do voto do e. ministro Enrique Santiago Petracchi, da Corte Constitucional argenti-na, por ocasio da prolao da sentena no Recurso de Hecho A. 891. XLIV (25.08.09), que declarou inconstitucional a crimina- lizao do porte de drogas ilcitas para consumo pessoal com base dentre outros argumentos no princpio da intimidade (art. 19 da Constituio argentina):

    En este cometido, corresponde reiterar que el artculo 19 de la Constitucin Nacional ha ordenado la convivencia

    34. SILVA, Jos Afonso. Curso de direito constitucional, 6a ed. So Paulo: Malheiros, 1991, p. 188.

    35. GRECO, Luis. Posse de droga, privacidade, autonomia: reflexes a partir da deciso do Tribunal Constitucional argentino sobre a inconstitucionalidade do tipo penal de posse de droga com a finalidade de prprio consumo. Rbccrim, So Paulo, v. 18, n. 87, p. 91, nov./dez. 2010.

    36. Corte Suprema de Justicia de la Nacin. Recurso de Hecho A. 891. XLIV (25.08.09).

  • 26

    humana sobre la base de atribuir al individuo una esfera de seoro sujeta a su voluntad y esta facultad de obrar vlidamente libre de impedimentos, conlleva la de reac-cionar u oponerse a todo propsito de enervar los lmites de aquella. En este contexto vital, puede afirmarse que en una sociedad horizontal de hombres verticales, en la que la dignidad es un valor entendido para todo individuo por su sola condicin de tal, est vedada toda medida que menoscabe aquella prerrogativa (artculo 19 de la Consti- tucin Nacional)37.

    Pode-se atacar o raciocnio exposto apontando que legtimo ao Estado tambm afastar a intimidade quando o bem jurdi-co do prprio titular deste direito est exposto a risco de leso. Seria o caso da invaso de domiclio para salvar a vida de algum que tenta o suicdio, autorizado pelo art. 5o, XI, da Constituio Federal.

    No entanto, retornamos ao raciocnio anterior. A vio-lao da intimidade representa uma afetao da dignidade, possvel de ser usada diante de casos extremos de autoleses vida ou inte- gridade fsica em determinados nveis. Assim, possvel a inter-veno na intimidade diante do uso de drogas em situaes de risco de morte ou de leso corporal grave. E, evidentemente, que tal atuao do Estado pode se dar pela violao do domiclio (por ex., para salvar algum em overdose) ou por outras condutas similares, mas jamais atravs da imposio de sano criminal quele que se exps ao risco pelo uso da droga.

    Assim, fica afastada a legitimidade do uso do direito pe-nal para inibir o consumo de drogas, pela perspectiva da sade indivi- dual, pela violao ao art. 1o, III e V e do art. 5o, X. Isso no significa au-torizar o entorpecente ou legalizar sua posse. funo do Poder Pblico desenvolver programas para proteger a sade dos cidados, alertan-

    37. Corte Suprema de Justicia de la Nacin. Recurso de Hecho A. 891. XLIV (25.08.09), p. 284.

  • 27

    do-os para o risco do uso de drogas, criminalizando do trfico de dro-gas (CF, art. 5o, XLIII), promovendo atividades pedaggicas, ofere-cendo estruturas de tratamento38 e mesmo adotando medidas de proteo diante dos efeitos colaterais do consumo de entorpecentes para a sade, como a distribuio de seringas descartveis para usu- rios de drogas injetveis, com o escopo de reduzir contaminaes por HIV.

    Em suma, a descriminalizao do uso de drogas pode e deve ser substituda por uma poltica de reduo de danos, defendida por especialistas em sade pblica como mais eficaz e til na proteo da sade do usurio39.

    Assim, por mais clara que seja a afetao da sade pro-duzida pelo consumo de drogas, e por mais legtima que seja a uti-lizao de polticas pblicas para reduzir sua difuso, inclusive por meio do direito penal, parece evidente que os princpios constitucio-nais apontados impedem a represso criminal do consumidor.

    O argumento de que a criminalizao do consumo pro-tege a sade pblica porque se trata de estratgia de inibio do trfico de drogas peca pela ilegitimidade e pela indemonstrabilidade.

    No que concerne ilegitimidade, preciso notar que o

    38. Sobre a justia teraputica, ver SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Drogas e poltica criminal: entre o direito penal do inimigo e o direito penal racional. In: REALE JR., Miguel Reale (Coord.). Drogas: aspectos penais e criminolgicos.

    39. RIBEIRO, Maurides de Melo. A reduo de danos e a legislao penal. In: NIEL, Marcelo; DA SILVEIRA, Dartiu Xavier. Drogas e reduo de danos: uma cartilha para profissionais de sade. So Paulo, 2008. Programa de Orientao e Atendimento a Dependentes (PROAD). Universidade Federal de So Paulo (UNIFESP). Ministrio da Sade, p. 53-58. Vale anotar que a OMS e a UNAIDS recomendam o modelo de reduo de danos como poltica mais adequada para a proteo da sade do usurio de drogas, em BOITEUX, Luciana; CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer de; VARGAS, Beatriz; BATISTA, Vanessa Oliveira; PRADO, Geraldo Luiz Mascarenhas. Trfico de drogas e Constituio. Pensando o Direito. Ministrio da Justia. Brasilia, n. 1, p. 23, 2009.

  • 28

    pragmatismo da eficcia no pode levar restrio da liberdade do ci-dado para combater comportamentos de outros, sobre os quais ele no tem domnio. Tratar-se-ia de uma afronta clara e evidente ao princpio da culpabilidade, pelo qual s punvel o comportamento controlvel pelo autor, e da admisso de uma espcie de responsabilidade objetiva na aplicao da norma penal40. Como ensina Rudolphi, a pena slo es apropiada para evitar o propiciar aquellas acciones corporales que le son posibles al autor individual, sobre la base de su capacidad de conducir su comportamiento externo41.

    Ora, o usurio de drogas no tem qualquer controle sobre o comportamento do traficante. E, ainda que se admita a pos-sibilidade de o usurio evitar o consumo de drogas o que no ver-dadeiro em inmeros casos , impossvel atribuir a ele o controle ou a conduo do comportamento doloso do comerciante de drogas. A aplicao da pena com essa motivao seria punir algum pelo ato do outro. Uma punio fundada na incapacidade do Estado de contro-lar o verdadeiro comportamento danoso. Em suma, aplica-se a sano no usurio diante da dificuldade de encontrar, investigar e condenar o verdadeiro culpado no sentido dogmtico pela violao sade pblica: o comerciante de produtos ilcitos.

    Aqui cabe a crtica de Kant ao utilitarismo penal, para quem o indivduo no pode ser utilizado como meio para as intenes de outrem, nem misturado com os objetos do direito das coisas, contra o que o protege sua personalidade natural42. Nesse sentido, completa

    40. MARONNA, Cristiano vila. Drogas e consumo pessoal: a ilegitimidade da interveno penal. Boletim Ibccrim, So Paulo, v. 20, p. 4-6, out. 2012.

    41. RUDOLPHI, Hans Joachin. El fin del derecho penal del Estado y las formas de imputacin juridico-penal. P. 95. In: SCHUNEMANN. Bernd (Coord.). El sistema moderno del derecho penal. 2. ed. Buenos Aires: IB de F, 2012.

    42. KANT, Immanuel. Metaphysik der Sitten, 49, EI, Studienausgabe, p. 453, apud ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. 2. ed. Lisboa: Univ. Direito e Cincia Jurdica, 1993, p. 24.

  • 29

    Roxin, mesmo quando seja eficaz a intimidao, difcil compreender que possa ser justo que se imponha um mal a algum para que outros omitam cometer um mal43.

    Por outro lado, ainda que se afastasse a questo tica inerente argumentao exposta, permaneceria o problema da de- monstrao da eficcia da diretriz poltico-criminal. No existem es-tudos suficientes ou incontroversos que revelem ser a represso ao consumo o instrumento mais eficiente para o combate ao trfico de drogas. Corroboram tal assertiva os nmeros referentes ao aumento do trfico de drogas e do crime organizado a ele ligado no mundo nos anos recentes, nos quais a tnica legislativa foi a criminalizao do consumo de entorpecentes44. Apenas para exemplificar, o consumo de opiceos no mundo aumentou em 35% entre os anos de 1998 a 2008. No mesmo perodo o consumo de cocana foi incrementado em 27%45. Nos Esta-dos Unidos segundo Araujo o uso corrente de drogas ilcitas entre pessoas maiores de 12 anos aumentou 46% entre 1998 e 200746.

    Estudos demonstram que a poltica proibicionista fra-cassou aos fins que se props, alm de no ter conseguido proteger a sade pblica, ainda serviu de agravante na pandemia da AIDS e ou-tras doenas, alm de ter agravado a situao social dos pases perifri-cos47. Em suma, a criminalizao falhou na proteo da sade pblica

    43. ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. 2. ed. Lisboa: Univ. Direito e Cincia Jurdica, 1993. p. 24.

    44. DROGAS e democracia: rumo a uma mudana de paradigma. Declarao da Comisso Latino Americana sobre drogas e democracia. Sobre o tema, ver MAGALHES, Mariangela. Notas sobre a inidoneidade constitucional da criminalizao do porte e do comrcio de drogas. In: REALE JR., Miguel Reale (Coord.). Drogas: aspectos penais e criminolgicos. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 98, fls. 4.

    45. WAR on drugs. Repport of the global commision on drug policy, junho. 2011.

    46. ARAUJO, Tarso. Almanaque das drogas. So Paulo: Leya, 2012, p. 232.

    47. BOITEUX, Luciana; CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer de; VARGAS, Beatriz; BATISTA,

  • 30

    e contribuiu para intensificar o dano sade individual, uma vez que impede o desenvolvimento das j mencionadas polticas de reduo de danos, como a distribuio de seringas descartveis e o aparelhamento de um sistema de sade atrativo para o usurio.

    Isso no significa que o reconhecimento da inconsti-tucionalidade da norma ter o condo de automaticamente diminuir o consumo ou o trfico de drogas, uma vez que tais resultados dependem do desenvolvimento de polticas alternativas de orientao e tratamen-to dos cidados usurios.

    No entanto, tais dados demonstram a inadequao emprica de legitimar a poltica repressiva em uma suposta preveno ao comrcio de entorpecentes custa da liberdade de suas principais vtimas: os usurios.

    Por fim, o argumento de que a criminalizao do porte para uso prprio de entorpecentes protege a segurana pblica e bens jurdicos individuais como o patrimnio e a vida, em razo da peri- culosidade do viciado e sua potencialidade de cometimento de delitos em razo da droga seja para obter recursos para sua aquisio, seja em razo da incapacidade de autocontrole decorrente de seu uso , tambm no procede em um modelo penal de culpabilidade, baseado no princpio da ofensividade.

    Da mesma forma que o consumidor no tem culpabili-dade em relao ao traficante, tambm no a possui em referncia aos seus prprios atos futuros, ao menos no momento em que porta ou usa o entorpecente.

    Poder-se-ia fundamentar a punio do uso de drogas em um suposto desvalor do comportamento do usurio em se tornar voluntariamente incapaz de autocontrole (espcie de actio libera in cau-

    Vanessa Oliveira; PRADO, Geraldo Luiz Mascarenhas. Trfico de drogas e Constituio. Pensando o Direito. Ministrio da Justia. Brasilia, n. 1, p. 25, 2009.

  • 31

    sa), em situao propensa ao cometimento de crimes futuros.

    Porm, ainda que o direito penal admita a punio daquele que voluntariamente se tornou inimputvel (CP, art. 28, II), isso apenas ocorre quando praticado efetivamente um ato criminoso posterior. Assim, se algum se embriaga e pratica um crime posterior como leses corporais , ser punido por este, independentemente de sua capacidade de autocontrole no momento do ato. Mas no haver sano criminal pelo ato de se embriagar. Da mesma forma, no se justifica a punio do uso de drogas pela possvel prtica de crimes pos-teriores, o que no impede a punio por estes ltimos, se cometidos, independentemente da imputabilidade do agente.

    Ademais, se admitidas tais razes para a crimina- lizao do consumo de drogas ilcitas, imperiosa seria sua extenso para o uso de outras substncias tambm (ou mais) associadas leso de bens jurdicos, como o de lcool, uma vez que as estatsticas reve-lam sua ntima ligao com crimes dolosos e culposos (65% dos aci-dentes de trnsito so causados por motoristas que dirigem sob efeito do lcool)48.

    Por fim, poder-se-ia discutir, nesse contexto, a legiti-midade de lanar mo do direito penal nos casos de uso pblico das substncias em discusso. Nesse caso, a liberdade de ao estaria li- mitada pela necessidade de proteo diante da limitao do compor-tamento, em especial por parte de crianas e adolescentes49. Mas tal uso do direito penal enfrentaria um problema de justificao, diante do princpio da igualdade (CF, art. 5o, caput), uma vez que o uso de

    48. Fonte: Acesso em: 24 jan. 2013. Nesse sentido, SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Drogas e politica criminal: entre o direito penal do inimigo e o direito penal racional. In: REALE JR., Miguel Reale (Coord.). Drogas: aspectos legais e criminolgicos. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 41.

    49. SANGUIN, Odone. inconstitucional a incriminao do porte de txicos para uso pessoal? Fascculos de Cincias Penais, Porto Alegre, v. 1, n. 3, p. 64, maio 1988.

  • 32

    substncias/prtica de comportamentos to ou mais prejudiciais sade como o lcool, o tabaco, ou mesmo a prtica de esportes perigosos no tem relevncia penal50.

    Tal assertiva no significa autorizar o uso de entor-pecentes em pblico. Pode o estado proibir no mbito administrativo o consumo de entorpecentes fora do espao de intimidade do indivduo, ou restringi-lo a/em determinados lugares, sob pena de multa ou sanes no penais ao descumprimento de tais regras, como ocorre em Portugal ou na Espanha. Mas a criminalizao, mesmo do uso em locais pblicos, afeta a isonomia, como j mencionado, e a subsidia- riedade, pois a inibio ao consumo pode ser alcanada por meio de polticas menos gravosas j mencionadas, como o combate ao trfico, aes educativas, vedao de propaganda e proibio administrativa do consumo em locais pblicos.

    50. Nesse sentido, PEREIRA, Rui. A descriminalizao do consumo de drogas. In: ANDRADE: Manuel da Costa. Librer discipulorum para Jorge de Figueredo Dias. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 1164.

  • 33

    Da Experincia InternacionalAinda que as experincias internacionais no sejam

    o argumento central na discusso sobre a compatibilidade de lei or-dinria brasileira com a Constituio nacional, parece oportuno ex-por que inmeros pases de matiz constitucional semelhante ao nosso afastaram a legitimidade do direito penal diante do porte de drogas para consumo prprio.

    Portugal aprovou em 29 de novembro de 2000 a Lei no 30, dispondo que o consumo, a aquisio e a deteno para consumo prprio de plantas, substncias ou preparaes caracterizadas como drogas deixa de ser crime e passa a ser contraordenao (ilcito admi- nistrativo). Ainda que o comportamento esteja sujeito coima (esp-cie de prestao pecuniria) ou a outras sanes (art. 17o), trata-se de medidas de limitao de direitos que no impem obrigaes positivas51, como de prestao de servios comunidade ou comparecimento a cur-sos educativos, previstas na legislao brasileira (Lei 11.343/06, art. 28).

    Na mesma linha, o legislativo espanhol52, o chileno53, o uruguaio, o italiano deixaram fora da seara penal o consumo de dro-gas, ainda que considerem a conduta ilcita sob o prisma administra-tivo. Tambm a legislao da ustria, Frana, Mxico, Noruega e Ale-manha, dentre outras, dispe que o porte de drogas s tem relevncia penal quando esteja destinado ao trfico ilcito54.

    51. Com exceo do disposto no item e do art. 17o: apresentao peridica em local a ser designado pela comisso.

    52. BOITEUX, Luciana; CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer de; VARGAS, Beatriz; BATISTA, Vanessa Oliveira; PRADO, Geraldo Luiz Mascarenhas. Trfico de drogas e Constituio. Pensando o Direito. Ministrio da Justia. Brasilia, n. 1, p. 20, 2009.

    53. Ley 20.000, de 16 de fevereiro de 2005 (art. 4o).

    54. Passagem de Fernando Velasquez, mencionada na sentena da Corte Suprema de Justia da Colmbia, processo 31531, j.08.07.2009, Ponente Yesid Ramrez Bastisdas. Boletim Ibccrim, n, 241, p. 1610, dez. 2012.

  • 34

    Em outros pases, o Judicirio foi o protagonista da des- criminalizao do consumo de drogas.

    A Corte Constitucional colombiana, em 1994 (Sen-tena C-221), caracterizou inconstitucional a criminalizao do con-sumo de entorpecentes. Tambm na Argentina a descriminalizao do consumo de drogas decorreu de deciso da Corte Constitucional. Em 25 de agosto de 2009 aps inmeras decises conflitantes o rgo supremo da Justia daquele pas reconheceu a incompati-bilidade da norma penal com a garantia da intimidade prevista no art. 19 da Carta Magna daquele pas, bem como diante da ineficcia da poltica de criminalizao55.

    Em suma, em inmeros pases nos quais a dignidade humana e a intimidade pautam o modelo constitucional, o uso de dro-gas tornou-se matria estranha ao direito penal, seja pela ao legis-lativa, seja pela judicial, indicando a perfeita convivncia de Estados democrticos, voltados para o combate ao trfico de drogas e inibio do consumo, com um ordenamento penal que respeite a dignidade do usurio de entorpecentes.

    55. Corte Suprema de Justicia de la Nacin. Recurso de Hecho A. 891. XLIV (25.08.09).

  • 35

    ConclusoSabe-se que a declarao de inconstitucionalidade de

    uma norma produzida regularmente pelo Poder Legislativo um ato delicado e reservado a situaes excepcionais, onde exista uma clara incompatibilidade entre o texto legal e as normas magnas.

    Mas sabe-se, tambm, que onde a incongruncia se faz evidente como o caso em tela , deve o Judicirio afastar a vigncia da norma, reconhecendo limites materiais produo legislativa com o escopo de preservar o sistema poltico/jurdico desenhado pela Cons- tituio Federal.

    O presente artigo que foi apresentado na forma de pe-tio ao STF - tem o escopo de contribuir para que a Suprema Corte se pronuncie definitivamente sobre a autntica diretriz constitucional acerca da questo das drogas no Pas.

    No se pretende aqui discutir os efeitos prejudiciais das substncias entorpecentes, nem minimizar as preocupaes de amplos setores da sociedade civil e do governo com os problemas inerentes ao trfico e ao consumo de drogas.

    O objetivo das ponderaes tecidas ao longo do pre-sente documento apenas identificar a inconstitucionalidade de uma poltica de combate ao trfico de drogas apoiada na criminalizao de uma das vtimas de tais organizaes, o usurio.

    So legtimos os diversos instrumentos e polticas desenvolvidas pelo Poder Pblico para assegurar a sade individual e coletiva diante do srio e grave problema das drogas. No entanto, o uso do direito penal ultima ratio do controle social, destinado aos com-portamentos mais graves e agressivos para coibir comportamentos individuais, praticados na esfera ntima do indivduo, sem capacidade para afetar por si terceiros, atenta contra a dignidade humana, a pluralidade, a intimidade e a isonomia, todas previstas na Constituio

  • 36

    Federal (CF, arts. 1o, III, V, e 5o, caput, e X).

    Como afirmou Friedman: as drogas so uma tragdia para os viciados. Mas criminaliz-las converte essa tragdia em um de-sastre para a sociedade, para usurios e no usurios igualmente56.

    56. Na open letter to Bill Bennett. The wall street journal. 07.09.2006, p. 20, apud, ARAUJO, Tarso, Almanaque das drogas. So Paulo: Leya, 2012, p. 227.

  • Pierpaolo Cruz BottiniAdvogado, professor de Direito Penal da Universidade de So Paulo, diretor de Direito Penal Econmico do Instituto Brasileiro de Cincias Criminais, foi secretrio de Reforma do Judicirio do Ministrio da Justia e membro do Conselho Nacional de Poltica Criminal e Cro-nologia.