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PARTICIPAÇÃO SOCIAL NO BRASIL ENTRE CONQUISTAS E DESAFIOS

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  • PARTICIPAOSOCIAL NO BRASILE N T R E C O N Q U I S T A S E D E S A F I O S

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  • PARTICIPAOSOCIAL NO BRASILE N T R E C O N Q U I S T A S E D E S A F I O S

  • Esta obra licenciada sob uma licena Creative Commons - Atribuio- NoComercial-SemDerivaes. 4.0 Internacional.CC BY NC

  • BRASLIA, 2014

    PARTICIPAOSOCIAL NO BRASILE N T R E C O N Q U I S T A S E D E S A F I O S

  • INSTITUCIONAL

    Presidenta da Repblica Federativa do Brasil Dilma Rousseff

    Ministro de Estado-Chefe da Secretaria-Geral da Presidncia da RepblicaGilberto Carvalho

    Secretrio-Executivo da Secretaria-Geral da Presidncia da RepblicaDiogo de SantAna

    EDITORIALCoordenao editorialFernanda Machiaveli

    Equipe de pesquisa e elaborao Luciana Tatagiba, consultora do projeto de cooperao internacional BRA/12/018Fernanda Machiaveli Fernanda Marangoni

    Reviso de textoJanana Cordeiro de Morais Santos

    Assistentes Gabriela Garcia Raiane dos SantosDanilo Neiva

    Projeto grfico Aline Magalhes Soares

    DiagramaoBonach (Njobs Comunicao)

    Impresso Qualidade Grfica e Editora

    Colaboraram com essa publicaoDiogo de SantAna, Paulo Maldos, Selvino Heck, Pedro Pontual, Maria Victria Hernandez, Las Lopes, Helena Abramo, Carolina Fonseca, Fanie Ofugi, Regina Clia Oliveira, Liliane Alecrim e Inara Vieira.

    FotosRicardo Stuckert, Roberto Stuckert Filho, Marcello Casal, Claudia Ferreira, Jesus Carlos, Ennio Brauns, Antnio Cruz, Srgio Lima, Valter Campanato, Wilson Dias, Jos Cruz, Roosewelt Pinheiro, Sueli de Freitas, Eduardo Aigner, Humberto Santana, Martim Garcia, Mayson Albuquerque, Ricardo Domingos Tadeu, Roberto Barroso, Bruno Spada, Marcos Piovesan, Rodrigo Coca, Rubens Cavallari, Andr Borges, Eduardo Knapp, Avener Prado e Gabriela Bil.

    BRASIL.

    Participao Social no Brasil: entre conquistas e desafios / Secretaria-Geral da Presidncia da Repblica. Braslia, 2014.

    176 p : 23,5 x 31,7cm

    Ficha Catalogrfica

  • CONTEDO

    Apresentao

    Prefcio

    Introduo

    1. A luta contra a ditadura e em defesa da participao (1970-1988)

    2. As inovaes participativas nos anos 90 (1989-2000)

    3. A expanso da participao no plano federal (2001 2010)

    4. A consolidao da participao no plano federal (2011-2014)

    Reflexes Finais

    Anexos

    Bibliografia

    6

    8

    10

    16

    34

    54

    88

    146

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  • 6O Brasil feito por milhes de movimentos, de organizaes, de pessoas annimas que lutam para construir um processo de participao na defesa dos seus interesses. (...) Celebrar o dilogo e a participao social significa celebrar a democracia e significa tambm celebrar a possibilidade de transformaes profundas quando elas so requeridas por um pas.

    Se todos ns aqui acreditamos que chegada a hora do Brasil ter um arcabouo institucional e poltico que corresponda aos avanos obtidos nas lutas sociais, na afirmao da democracia em nosso pas; que corresponda s exigncias da nossa sociedade e dos nossos governos em relao a prticas transparentes; que contemple o uso adequado e absolutamente honesto do dinheiro pblico, eu quero dizer para vocs: sem participao social no h reforma poltica.

    Ento, quando eu digo que celebrar o dilogo significa celebrar a democracia, eu quero dizer, celebrar a nica condio de transformar. A participao social tem esse carter inerentemente transformador, porque ela mostra o rumo que o povo do pas quer trilhar. Quando [a participao social] se estrutura, ela no deixa pedra sobre pedra e nem dvidas nos coraes e nas mentes.

    Ns temos um compromisso democrtico com a participao social como mtodo de governar. Ela foi, continua sendo e ser sempre um processo de conquista da sociedade na sua relao com o governo. Uma conquista que tem de ser renovada cotidianamente pelo

    dilogo constante. E nesse processo de renovao de compromisso, o dilogo fundamental, a discusso fundamental, as manifestaes so fundamentais.

    O meu governo representa um projeto no de governo, mas um projeto de nao que nasceu a partir da postura da sociedade brasileira quando reagiu aos anos de ditadura. Junto com esse projeto de nao nasceu, simultaneamente, a necessidade de dilogo com a sociedade. O dilogo nos tem permitido construir e implementar polticas de incluso social e de promoo de direitos. Um dilogo que nos permitiu crescer, gerar oportunidades, entender as prioridades e o que devia ser o caminho principal para o nosso pas.

    (...) Com o dilogo e a participao poltica, nascemos enquanto projeto. E, por isso, ns fomos capazes de construir um novo tempo. O Brasil, hoje, reconhecido por suas prticas sociais e por suas polticas de participao e tido como um grande laboratrio de inovaes para aperfeioar a relao do Estado com a sociedade.

    Nos ltimos 12 anos, trabalhamos fortemente para aprimorar e fortalecer os nossos mecanismos de transparncia, de dilogo e de participao social. De 2003 a 2013, mais de sete milhes de brasileiros e brasileiras participaram de 97 conferncias nacionais para debater e definir polticas pblicas em diversas reas. Nesses debates, saram muitos dos projetos e objetivos que adotamos. No mbito do governo federal, temos

    APRESENTAO

    Discurso da presidenta da Repblica, Dilma Rousseff, na cerimnia de lanamento da Poltica Nacional de Participao Social

    Braslia, 23 de maio de 2014

  • 7vrios conselhos, conferncias, centenas de ouvidorias pblicas que auxiliam diretamente o cidado nas suas relaes com o governo. Ns adotamos um princpio como prtica de gesto: receber, com idntico respeito, representantes de todos os segmentos da sociedade.

    Temos muito orgulho de termos promulgado a Lei de Acesso Informao. Porque a Lei de Acesso Informao acaba com uma assimetria bsica, a assimetria entre o que sabe o governo e o que sabe o cidado. Alm disso, eu tenho muito orgulho de ter criado a Comisso Nacional da Verdade para virar uma pgina na histria desse pas. (...) As duas leis so condies fundamentais para o fortalecimento da democracia, da prestao de contas e da transparncia. (...)

    Toda a experincia que ns acumulamos nos ltimos anos justifica e d como base a deciso de implantar a Poltica Nacional de Participao Social. Com ela, ns vamos consolidar avanos conquistados nos ltimos 11 anos. Vamos elevar a um novo patamar a participao social nas polticas pblicas federais.

    Ns estamos definindo diretrizes claras para as instncias e os mecanismos de participao social em toda administrao pblica federal. E, por meio da adeso de estados e municpios ao Compromisso Nacional pela Participao Social, ns acreditamos que essas diretrizes sero adotadas em todos os cantos do Brasil.

    Uma das inovaes que muito nos orgulha, que tambm faz parte de um histrico de vrias iniciativas nessa direo, a incluso do ambiente virtual de participao social entre os mecanismos participativos existentes no governo. Por meio desse portal, que o Participa Brasil, temas relevantes podero ser debatidos numa plataforma aberta, interativa e construda em software livre e auditvel, de origem nacional.

    Ns [tambm] somos a favor do marco regulatrio das organizaes da sociedade civil. [Com] nossas novas regras, ns vamos garantir uma coisa importantssima, que mais clareza e mais segurana jurdica para os gestores das ONGs. Ns vamos reconhecer o papel das ONGs na execuo das polticas governamentais de uma forma explcita. (...)

    Antes de encerrar, eu quero citar o cineasta argentino Fernando Birri, que disse uma coisa muito bonita: A utopia est l no horizonte. Me aproximo dois passos e ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais a alcanarei. Para que, ento, serve a utopia? Serve para isso, para que eu no deixe de caminhar.

    Por isso, eu quero concluir aqui dizendo que ns temos de manter essa busca permanente por nossa utopia realizvel, que ns vamos correr atrs juntos. Continuo contando com vocs!

  • 8 com muita alegria que a Secretaria-Geral da Presidncia da Repblica lana a publicao Participao Social no Brasil: Entre Conquistas e Desafios. Aps 26 anos da promulgao da Constituio Cidad, o livro celebra o rduo caminho de construo da democracia no Brasil. Um caminho que conduziu construo de uma vasta e densa arquitetura participativa, composta de diversos canais de interao, dilogo e troca entre governo e sociedade civil. Uma trajetria marcada pela expanso das conquistas sociais e pela ampliao de direitos que nos conduzem, cada dia mais, a uma sociedade mais justa, solidria e fraterna.

    O protagonista desta narrativa no o Estado. , sim, a sociedade civil brasileira, que com sua imensa generosidade, luta diria e esforo incansvel, nos trouxe at aqui. Nesta publicao, buscamos resgatar parte dessa histria, trazendo a participao social para o centro, como o corao de um projeto de democracia que se associa a uma experincia coletiva de acesso a direitos.

    Comeamos o enredo na luta contra a ditadura no contexto dos anos 70 e 80. Ali, o que estava em jogo era no apenas a defesa das liberdades civis e polticas, mas tambm o direito de cada homem e de cada mulher participar ativamente das decises que influenciam suas vidas. Esse perodo instituinte engendrou um rico

    processo de mobilizao popular expresso nas ruas em vrios momentos ao longo dos anos, o que reflete a expectativa de parte significativa da sociedade brasileira de intervir nos rumos da histria.

    O desejo de participao tambm forou as portas da institucionalidade poltica, obrigando o Estado brasileiro a se democratizar e a construir, sobre outras bases, suas relaes com os diversos setores da sociedade civil. A luta pela democratizao do Estado foi travada no prprio ambiente institucional, com a criao dos conselhos, conferncias, oramentos participativos e uma diversidade de espaos de interao governo-sociedade. Assim, setores geralmente ausentes ganharam vez e voz para expressar demandas e reivindicar direitos.

    Alm do impacto evidente sobre as polticas pblicas, o livro apresenta outro saldo importante desse processo participativo: o fortalecimento do associativismo brasileiro, com o surgimento de organizaes capazes de incidir sobre polticas pblicas e de representar seus coletivos. A sociedade civil se qualificou para atuar nos espaos de participao, aprendeu a dialogar com o Estado e acumulou conhecimento em vrias reas de polticas pblicas, inovando e desenvolvendo solues que transformariam a realidade do Brasil.

    PREFCIO

    Gilberto CarvalhoMinistro-Chefe da Secretaria-Geral da Presidncia da Repblica

  • 9O ano de 2003 foi um marco nesse processo. A participao foi ampliada na esfera federal, com a criao de novos espaos de participao e o fortalecimento dos j existentes. Nesses ltimos 12 anos, o Estado se abriu participao dos movimentos sociais, das organizaes da sociedade civil, dos cidados e cidads, sobretudo dos segmentos historicamente excludos da populao.

    Esse foi um momento em que vontade e oportunidade convergiram, fazendo virar poltica pblica demandas histricas e ideias h muito defendidas e praticadas por organizaes e movimentos sociais. O resultado foi um processo de inovao institucional sem precedentes. Com o governo Dilma, assistimos consolidao desse processo expresso no firme propsito de fazer da participao um mtodo de governo.

    O processo de experimentao e inovao institucional prosseguiu com fora renovada com os protestos de junho

    de 2013. A presidenta Dilma respondeu ao desejo da juventude por mais democracia, mais participao, mais direitos e melhores servios. Poucos meses depois, foi implantado um conjunto de medidas que dialogava com as principais reivindicaes. Um exemplo foi a publicao da Poltica Nacional de Participao Social, que tem o objetivo de consolidar as instncias de participao existentes e, ao mesmo tempo, estimular novas formas de participao pelas redes sociais, inaugurando uma nova era no exerccio da cidadania.

    A partir do olhar da Secretaria-Geral da Presidncia da Repblica, esperamos oferecer aos leitores um estimulante passeio sobre os percursos da democracia participativa no Brasil. Um caminho de construo permanente, cujo ritmo e direo seguem embalados pelo desejo de milhes de brasileiros de fazer da democracia brasileira no apenas um regime poltico, mas uma forma de vida.

  • 10

    Em 23 de maio de 2014, a presidenta Dilma Rousseff publicou o Decreto n 8.243, que institui a Poltica Nacional de Participao Social (PNPS), articulando e organizando os mecanismos e as instncias democrticas de dilogo no mbito da administrao pblica federal. Construdo a partir de um longo processo de dilogos e consultas, o decreto afirma a participao como mtodo de governo e reconhece as organizaes da sociedade civil como parceiras dos processos de elaborao e implementao das polticas pblicas.

    O lanamento da PNPS durante a Arena da Participao Social foi um momento de comemorao dos setores progressistas da sociedade que, h dcadas, lutam para que a participao se consolide como trao permanente da configurao institucional do Estado brasileiro. No se trata de um ponto de partida e tampouco de chegada na trajetria da jovem democracia brasileira. A Poltica Nacional de Participao Social , sim, consequncia desse percurso de luta por ampliao de direitos e um esforo para consolidar a participao social como mtodo de governo.

    Como veremos ao longo dessa publicao, os anos 70 e 80 marcam um ponto de inflexo nos padres tradicionais de relao entre Estado e sociedade. Ainda na ditadura, assistimos emergncia de uma sociedade civil mais plural e complexa que buscava no apenas reivindicar o acesso a direitos j institudos, mas afirmar novos interesses e demandas como direitos a partir da disputa na esfera pblica. No decorrer da luta, os atores sociais buscavam afirmar sua autonomia em relao ao Estado, esquerda tradicional e aos seus aparelhos. Com isso, abriram espao para a emergncia de novos discursos e prticas que ampliaram o escopo do que se define como poltica e os atores aos quais se reconhece legitimidade de fazer poltica.

    O terreno da disputa, na cidade e no campo, foi o cotidiano: a qualidade do transporte pblico, o custo de vida, o acesso educao, sade de qualidade, creche, ao saneamento bsico, terra e moradia, entre outros. Se o Brasil no tinha um Estado de bem-estar social que garantisse os direitos bsicos da cidadania, era preciso cri-lo. E a luta se deu de vrias formas e em vrias frentes. Significou fazer presso direta sobre os equipamentos pblicos nos territrios, votar em candidatos da oposio nos pleitos municipais, realizar manifestaes e protestos nas ruas, ocupar cargos no interior da burocracia pblica, criar novos sindicatos e novos partidos polticos. Os movimentos foram construindo uma concepo de reforma democrtica das instituies que passava tambm pela ampliao dos espaos institucionais para o dilogo com o Estado, visando influenciar o processo de formulao das polticas pblicas.

    A luta teve seu ponto alto no processo constituinte, desdobrando-se em importantes inovaes institucionais na gesto pblica brasileira a partir dos anos de 1990. No corao do processo de reforma, estava o pressuposto de que a sociedade civil tinha o direito de ter sua voz ouvida na tomada de deciso, implementao e avaliao das polticas pblicas e que, dessa participao, iriam resultar polticas melhores e mais sustentveis. Alguns modelos se consagraram, como o oramento participativo, os conselhos de polticas pblicas e as conferncias. O xito da experincia pioneira do oramento participativo na prefeitura de Porto Alegre, seguido da disseminao da experincia para outras prefeituras, fez do Brasil um exemplo internacional no que se refere democracia participativa. Os conselhos se incorporaram aos principais sistemas de polticas pblicas, chegando a praticamente todos os municpios brasileiros, alm dos governos estaduais e federal.

    INTRODUO

  • 11

    A partir de 2003, o processo de inovao institucional se ampliou para a esfera federal, com a criao de novos conselhos e conferncias em diversas reas. Destaca-se ainda a construo participativa do oramento, com o Plano Plurianual, e a criao das chamadas mesas de dilogo, que produziram resultados importantes na pactuao e formulao de polticas pblicas. O aprofundamento da participao implicou em reformas institucionais em diversos setores da administrao pblica federal, assim como na ampliao da participao para grupos e organizaes da sociedade civil tradicionalmente ausentes do processo de tomada de decises. Mais recentemente, o governo federal investiu em novos formatos e instrumentos participativos, por meio de plataformas virtuais e linguagens mais prximas ao universo da juventude.

    Entremeado a esse rico processo, a sociedade civil brasileira j havia mostrado sua fora nas ruas em quatro importantes ciclos de mobilizao ao longo dessas quatro dcadas: a campanha pelas Diretas J, em 1983 e 1984; o Movimento Caras-Pintadas, em 1992; o Frum Social Mundial, realizado pela primeira vez em 2001; e as mobilizaes pela reduo da tarifa do transporte pblico, em junho de 2013.

    Tais ciclos de mobilizao constituram janelas polticas fundamentais para o avano da agenda progressista e para a ampliao dos canais de participao, acelerando o ritmo das mudanas sociais e institucionais. Pois, assim como a democracia participativa no a negao da democracia representativa, as grandes mobilizaes de rua no invalidam ou so invalidadas pelo esforo da construo de canais institucionais de mediao Estado-sociedade. So dimenses da luta poltica que, em sua especificidade e complexidade, fazem avanar a agenda dos direitos.

    O autoritarismo, o clientelismo e o populismo buscaram reduzir a sociedade ao Estado e negar o conflito consti-tutivo do processo de construo da democracia, silen-ciando o dissenso e deslegitimando a presena de certos atores e demandas na esfera pblica. Uma democracia viva em uma sociedade to plural como a brasileira precisa reconhecer no apenas a diversidade de vozes que constituem o Brasil, mas tambm os diferentes canais e espaos nos quais essas vozes buscam se fazer ouvir.

    A presente publicao celebra as conquistas e conta parte dessa histria da construo da democracia participativa no Brasil. Sabemos que celebrar apostar no futuro e para isso preciso coragem para reconhecer os desafios do presente e, assim, avanar. A publicao do Decreto n 8.243/2014 pela presidenta Dilma Rousseff e todo o esforo empreendido desde 2003 pelo governo federal confirmam a deciso de aprofundar os ganhos da participao social a partir da sua afirmao como mtodo de governo. Mas essa escolha tambm no isenta de desafios e contradies.

    Em primeiro lugar, preciso reconhecer que a sociedade civil e o Estado so internamente heterogneos e que a proposta de aprofundar a participao institucional como forma de efetivar direitos no encontra a mesma acolhida no conjunto de setores que os constituem. A agenda da participao precisa ser construda no apenas na relao entre Estado e sociedade, mas tambm nas disputas internas aos referidos campos. Por isso, a disposio ao dilogo e negociao so atributos essenciais queles comprometidos com o aprofundamento de uma cultura poltica participativa.

    Em segundo lugar, avanar na direo da conformao de um sistema de participao coloca sempre na mesa uma equao difcil de ser resolvida porque, de certa forma,

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    exige operar com princpios opostos: institucionalizar procedimentos sedimentar o institudo e, ao mesmo tempo, manter acesa e estimular a chama da inovao alimentando os processos instituintes. Ou seja, o desafio em jogo aprofundar o processo de institucionalizao e, ao mesmo tempo, no se burocratizar, no engessar, no se enredar nas malhas de um discurso tcnico e distante do cidado comum. No uma equao fcil e o xito da empreitada exige criatividade e muito investimento no dilogo com a pluralidade de setores que constituem a sociedade civil e o Estado brasileiro. preciso ajustar os radares para captar o novo e traz-lo como alimento para (des)ajustar discursos, consensos e rotas previamente definidas.

    Para a Secretaria-Geral da Presidncia da Repblica, que tem como misso organizar e estimular esse dilogo fecundo entre a sociedade civil e o Estado, superar esse desafio requer de certa forma ser um Estado em movimento, ou seja, em contnuo processo de experimentao institucional. Nessa direo, vale retomar as anlises do socilogo portugus Boaventura de Souza Santos: O novo Estado de bem-estar social um Estado experimental, e a experimentao contnua com participao ativa dos cidados que garante a sustentabilidade do bem-estar (Santos, 1998: 68).

    A capacidade de experimentao ainda mais essencial depois das mobilizaes desencadeadas a partir dos protestos de junho de 2013. Dentre as incertezas que esse novo ciclo de protestos imps anlise e ao polticas, est a forma como as manifestaes vo dialogar com a institucionalidade participativa construda como resultado dos ciclos anteriores. A presente publicao reconhece que as ruas de junho de 2013 tm desafiado os espaos institucionais de participao a se mostrarem como alternativa de mudana para uma gerao que no viveu o ciclo de protestos dos anos 80 e 90. Para a juventude, a participao precisa fazer sentido.

    As ruas explodiram o tempo da espera e trouxeram para a poltica o tempo da urgncia. O acesso aos direitos bsicos de cidadania se exige aqui e agora. Como os espaos de

    participao vo dialogar com essa fora que emerge nas ruas? At que ponto pode se fortalecer por meio dela? Os canais de participao existentes esto prontos para oferecer um caminho que conduza s mudanas desejadas? Essa publicao no tem a pretenso de responder a todas as perguntas, mas foi escrita sob tais questionamentos e espera trazer elementos para que se possa avanar no apenas em um bom diagnstico, mas tambm no esforo para pensar os prximos passos deste percurso.

    Por fim, importante esclarecer que no se pretende aqui esgotar a riqueza da histria da participao social no Brasil. Nosso foco mais limitado e modesto: buscamos construir uma narrativa em torno dos processos de inovao democrtica participativa que resultaram na proposio da Poltica Nacional de Participao Social. As prticas de governana participativa se disseminam por todo o governo federal, alm de estados, municpios e demais poderes da Repblica. Seria impossvel recuperar toda a riqueza dessas histrias aqui. E reconhecendo e respeitando essa diversidade que trazemos nosso relato, necessariamente parcial, a partir de um lugar institucional privilegiado, a Secretaria-Geral da Presidncia da Repblica, qual coube estimular e conferir efetividade participao, construindo seu lugar como mtodo de governo.

    A publicao est dividida em quatro captulos, alm desta introduo. No primeiro captulo, faz-se um voo panormico pelas dcadas de 1970 e 1980, com o objetivo de localizar as origens recentes a partir das quais se construram as bases da democracia participativa no Brasil. No captulo seguinte, a anlise se volta para a experimentao em torno das novas institucionalidades democrticas nos nveis subnacionais, no decorrer da dcada de 1990. No terceiro captulo, o foco o desenvolvimento das experincias de participao no governo federal entre 2003 e 2010. No quarto captulo, fazemos uma anlise mais detida do perodo de consolidao da participao institucional no governo de Dilma Rousseff, entre 2011 e 2014. Na concluso, busca-se indicar caminhos possveis no trajeto de ampliao da participao social, abertura do Estado e aprofundamento da democracia no Brasil.

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    Participao Social no BrasilEntre conquistas e desafios

    Captulo 1A luta contra a ditadura e em defesa da participao (1970-1988)

    MOVIMENTO PELAS DIRETAS J NO VALE DO ANHANGABA (SP), 1984

    Foto: Ennio Brauns/Foto&Grafia

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    CAPTULO 1

    A LUTA CONTRA A DITADURA E EM DEFESA DA PARTICIPAO (1970-1988)

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    Nos anos 70 e 80, a sociedade brasileira lutava contra a ditadura militar ao mesmo tempo em que construa um sentido forte de democracia, que tinha como centro a ideia do direito participao popular. O que os movimentos reivindicavam naquele momento no era apenas o fim do regime de exceo. A bandeira pelo retorno democracia se combinava luta por viver com dignidade no exerccio dos direitos bsicos: educao, sade, moradia, trabalho, alimentao e transporte pblico, entre outros.

    No decorrer dessa empreitada, foi construda uma nova gramtica poltica que passaria a orientar a partir de ento os anseios por novos padres de relao entre Estado e sociedade. Tal desejo se expressava tanto nas vigorosas manifestaes de rua quanto no esforo por reformar as instituies polticas.

    Nesse captulo, vamos contar parte desse processo. Iniciamos com a discusso sobre os movimentos sociais e a criao de novos direitos da cidadania. Na sequncia, o texto recupera dois importantes momentos da histria brasileira recente: a campanha pelas Diretas J, em 1983 e 1984, e a participao popular no processo da Assembleia Nacional Constituinte, entre 1987 e 1988. A mobilizao popular gerada nesses eventos ajudou a disseminar uma concepo de democracia que combinava participao e representao e que, por fora da presso popular, encontrou abrigo na Constituio Federal de 1988.

    CAPTULO 1: A LUTA CONTRA A DITADURA E EM DEFESA DA PARTICIPAO (1970-1988)

    ASSEMBLEIA DE METALRGICOS DO ABC, DURANTE A INTERVENO FEDERAL NO SINDICATO DOS METALRGICOS DE

    SO BERNARDO (SP), 1980

    Foto: Ennio Brauns/Foto&Grafia

  • 17

    1.1 OS MOVIMENTOS POPULARES E A INVENO DE NOVOS DIREITOSNesse processo, o que se destaca com mais centralidade o apelo a uma noo do direito como inveno, que tem como base de legitimidade o cotidiano das lutas populares nas periferias urbanas. Ou seja, alm de se apresentarem para exigir os direitos que a lei lhes garante, os movimentos sociais usaram a esfera pblica para demandar o reconhecimento de novos direitos. Ao se referir a esse momento, Evelina Dagnino fala da emergncia de uma nova cidadania que no est limitada ao acesso a direitos previamente definidos. A nova cidadania inclui fortemente essa inveno de novos direitos como uma estratgia dos excludos, uma cidadania de baixo para cima (Dagnino, 1994). Uma edio da revista Proposta, produzida pela Fase

    Entendendo-se como direitos no apenas os reconhecidos em leis de natureza liberal ou corporativa mas, essencialmente, os reconhecidos pelas aspiraes populares e legitimadas pela maioria. Nesse sentido, essa cidadania coletiva e orgnica das massas pressupe a conquista de um direito essencial (que deve ser inalienvel) pelos movimentos populares: o direito de conquistar (e gerir) direitos (Revista Proposta, n 29, 1986).

    MANIFESTAO DO MOVIMENTO PELA ANISTIA AMPLA GERAL E IRRESTRITA EM SO PAULO, 1979

    Foto: Jesus Carlos/Imagemglobal

    Solidariedade e Educao, organizao da sociedade civil que desde os anos 60 presta assessoria aos movimentos sociais, mostra a fora mobilizadora dessa concepo:

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    A NOVA CIDADANIA

    A nova cidadania trabalha com uma redefinio da ideia de direitos, cujo ponto de partida a concepo de um direito a ter direitos. No se limita s conquistas legais ou ao acesso a direitos previamente definidos; mas inclui fortemente a inveno/criao de novos direitos, que emergem de lutas especficas e de sua prtica concreta. uma estratgia dos no cidados, dos excludos, uma cidadania de baixo para cima, cujo foco est na difuso de uma cultura de direitos no conjunto das relaes sociais. O que est em jogo no a apenas a incluso no sistema poltico, mas o direito de participar efetivamente da prpria definio desse sistema, o direito de definir aquilo no qual queremos ser includos, a inveno de uma nova sociedade (Dagnino, 1994).

    MANIFESTAO DO MOVIMENTO CONTRA A CARESTIA NA PRAA DA S, 1978

    Foto: Ennio Brauns/Foto&Grafia

    Dois livros, hoje clssicos, contaram parte dessa histria. O primeiro, com o sugestivo ttulo Quando novos personagens entram em cena (1988), de Eder Sader, fala das experincias dos trabalhadores da Grande So Paulo nas dcadas de 1970 e 1980, e outro, de Ana Maria Doimo, sob o ttulo A vez e a voz do popular (1995), analisa a participao poltica dos movimentos sociais no Brasil. Os dois mostram a diversidade da configurao das classes populares que se expressava nas suas formas organizativas, nas demandas e nas diferentes formas de relao com o Estado: o Movimento do Custo de Vida, os movimentos de moradia, de luta contra o desemprego, o movimento de sade, o movimento de transporte coletivo, os Clubes de Mes da periferia, o Sindicato

    MANIFESTAO DO 1 DE MAIO EM SO BERNARDO DO CAMPO (SP). METALRGICOS EM GREVE E POLCIA MILITAR

    EM FRENTE DA IGREJA DA MATRIZ, 1980

    Foto: Jesus Carlos/Imagemglobal

  • 19

    dos Metalrgicos de So Bernardo, entre outros. O ciclo de greves de meados dos anos de 1970 conformou um captulo importante dessa histria, com destaque para as greves do ABC que, ao mesmo tempo em que mostravam a fora da nova configurao social dos trabalhadores, construam na prtica da luta contra o desemprego e o arrocho salarial uma nova forma de relao entre os sindicatos, os empregadores e o Estado. No rastro dessas mobilizaes, fortaleceram-se as oposies sindicais urbanas e rurais, como espaos de engendramento de uma

    MANIFESTAO DE FUNCIONRIOS PBLICOS NA PORTA DO PALCIO DOS BANDEIRANTES, EM SO PAULO, 1979

    Foto: Ennio Brauns/Foto&Grafia

    GREVE DOS METALRGICOS DE SO PAULO, 1979

    Foto: Jesus Carlos/Imagemglobal

    concepo sindical combativa, cujo principal resultado em termos poltico-institucionais foi a criao da Central nica dos Trabalhadores (CUT). Os sindicatos, as comisses de fbricas, as pastorais sociais, entre outros, foram espaos de socializao poltica nas quais se forjou um novo sentido de cidadania e um forte sentimento de solidariedade entre os excludos, que acabou por pautar os rumos da transio.

    Em todas essas experincias, os autores destacam um desejo comum de ser sujeito da prpria histria e de criar novas formas de relao social e poltica, fundadas nos valores da solidariedade, justia social, dignidade e, talvez a principal delas, a ideia de que s com a luta se conquistam direitos (Sader, 1988; Doimo, 1995). As Comunidades Eclesiais de Base e a educao popular, fundamentada no trabalho de Paulo Freire, ajudaram a fomentar essa ideia da participao e da luta como estratgia para concretizar direitos, ao apostar no saber popular como algo que deveria ser valorizado. Esse aprendizado produzido na base, a partir do investimento na educao popular e na comunicao popular (Doimo, 1995), foi fundamental para a dinmica mobilizatria presente no ciclo de transformaes poltico-sociais subsequente.

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    MANIFESTAO DA UNIO NACIONAL DOS ESTUDANTES EM SO PAULO, 1979

    Foto: Ennio Brauns/Foto&Grafia

    MULHERES UNIDAS PELOS 120 DIAS DE LICENA GESTANTE, NO RIO DE JANEIRO, 1989

    Foto: Claudia Ferreira

    PASSEATA CONTRA O RACISMO DURANTE AS MANIFESTAES DO DIA INTERNACIONAL DA

    MULHER NO RIO DE JANEIRO, 1989

    Foto: Claudia Ferreira

    O PAPEL DAS PASTORAIS NA MOBILIZAO POPULAR

    As aes das pastorais da Igreja Catlica, no campo e na cidade, foram fundamentais na conformao do protagonismo popular, base da resistncia e da luta dos setores populares pela democracia e pela digni-dade da pessoa humana. Inspiradas pela Teologia da Libertao e pela Pedagogia do Oprimido, as pastorais sociais e juvenis ligadas Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) desempenharam papel fundamental na mobilizao de base.

    J na dcada de 60, antigos militantes da Juventude Operria Catlica e da Ao Cat-lica Operria comeavam a organizar peque-nos grupos de trabalhadores e trabalhadoras catlicas em suas comunidades, ampliando os espaos de dilogo e reflexo sobre as in-justias cotidianas, ao mesmo tempo em que fortaleciam sua organizao em sindicatos, o que levaria a criao da Pastoral Operria (PO) na dcada de 70.

    Da mesma forma, a Comisso Pastoral da Terra (CPT), instituda em 1975, em plena ditadura militar, foi um importante espao de resistncia contra a represso do Estado no meio rural. Indgenas, mulheres, pees, posseiros e migrantes eram os sujeitos que, na disputa pela terra, foram construindo um sentido prprio de luta pela democracia.

    Tambm vinculado CNBB estava o Con-selho Indigenista Missionrio (Cimi), criado em 1972 em oposio poltica indigenista vigente, com a misso de fortalecer o prota-gonismo indgena por meio da articulao das aldeias e de suas lideranas. A partir das mobilizaes indgenas e das organiza-es de apoio, a Constituio de 1988 aca-bou por conferir um tratamento indito aos povos indgenas, reconhecendo seu direito diferena e rompendo com a tradio as-similacionista que prevalecera at ento.

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    No bojo desses processos, a expresso o povo como sujeito da prpria histria foi ganhando vida em movimentos populares Brasil afora. Ana Maria Doimo recupera com preciso os discursos por meio dos quais se conformou o conceito de poder popular e a importncia que a ideia de participao de baixo para cima assume:

    Estava, pois, fundado o tempo da vez e voz do povo. A partir da, no haveria mais lugar para qualquer tipo de diretividade, partisse ela do Estado, dos partidos polticos, dos sindicatos, das vanguardas de esquerda, dos intelectuais, ou mesmo das lideranas locais. (...) Tudo deveria vir de baixo para cima. Agora, em nome da diluio da dicotomia dirigente-dirigido, todos deveriam participar integralmente do processo de tomada de decises (Doimo, 1995: 124).

    MANIFESTAO DO MOVIMENTO CONTRA A CARESTIA NO CENTRO DE SO PAULO, EM 1980

    Foto: Jesus Carlos/Imagemglobal

    MANIFESTAO CONTRA A POLTICA SALARIAL EM SO PAULO, 1983

    Foto: Ennio Brauns/Foto&Grafia

    MANIFESTAO DO MOVIMENTO DE MULHERES PELA ANISTIA DURANTE O 8 DE MARO DE 1989, EM SO PAULO

    Foto: Jesus Carlos/Imagemglobal

    Entre o final de 1970 e todo o decorrer dos anos de 1980, a sociedade foi se tornando mais diversificada e complexa, gerando novas estruturas de mobilizao cujo foco estava na articulao das lutas. Como exemplo, podemos citar: Central de Mulheres Brasileiras (CMB) 1975; Movimento de Defesa do Favelado (MDF) 1978; Movimento Negro Unificado (MNU) 1978; Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) 1980; Articulao Nacional dos Movimentos Populares e Sindicais (Anampos) 1980; Conferncia Nacional da Classe Trabalhadora (Conclate) 1981; Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR) 1982; Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH) 1982; Confederao Nacional das Associaes de Moradores (Conam) 1982; Central nica dos Trabalhadores (CUT) 1983; Frum Nacional pela Reforma Urbana (FRNU) 1987, entre muitos outros.

    Em dois momentos, esse associativismo diverso e vigoroso mostrou a sua fora na cena pblica: na campanha pelas Diretas J, em 1983 e 1984, e no processo constituinte, entre 1987 e 1988. A agenda poltica colocada em curso nessas campanhas tem no seu cerne a institucionalizao de uma democracia participativa.

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    Entre novembro de 1983 e abril de 1984, trabalhadores, donas de casa, estudantes, militantes partidrios e as mais diversas organizaes tomaram as ruas das pequenas e grandes cidades exigindo Diretas J, na maior mobilizao da histria poltica brasileira. O livro Diretas J: o grito preso na garganta (2003), de Alberto Tosi Rodrigues, recupera o ciclo de protestos de sada do regime autoritrio.

    1.2 O CICLO DE PROTESTOS PELAS DIRETAS J

    COMCIO PELAS DIRETAS J NO RIO DE JANEIRO, 1984

    Foto: Claudia Ferreira

    CICLO DE PROTESTOS

    Sidney Tarrow, autor de referncia nos estudos dos movimentos sociais, define ciclo de protesto como uma fase de intensificao dos conflitos e da confrontao no sistema social, que inclui uma rpida difuso da ao coletiva dos setores mais mobilizados para os menos mobilizados; um ritmo de inovao acelerado nas formas de confrontao; significados novos ou transformados para a ao coletiva; uma combinao de participao organizada e no organizada; e uma sequncia de interao intensificada entre dissidentes e autoridades que podem terminar em reforma, represso e, s vezes, numa revoluo (Tarrow, 1997: 263-264. Livre traduo).

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    MOBILIZAO PELAS DIRETAS J NA RUA BOA VISTA, CENTRO DE SO PAULO, 1984

    Foto: Ennio Brauns/Foto&Grafia

    MANIFESTAES PELO VOTO DIRETO NO RIO DE JANEIRO, 1984

    Foto: Claudia Ferreira

    LEONEL BRIZOLA EM COMCIO NA CINELNDIA (RJ) , 1982

    Foto: Claudia Ferreira

    No processo de mobilizao em prol das Diretas J, os comits pr-Diretas desempenharam papel destacado como instncias de organizao popular autnomas que, ao congregar movimentos populares, religiosos, partidos de esquerda, servidores pblicos e intelectuais, geravam uma teia de organizao a favor das eleies diretas, atin-gindo no apenas as capitais, mas tambm pequenas ci-dades no interior do pas. Foi essa dinmica descentrali-zada e territorialmente referida que transformou o desejo pela democracia em um movimento nacional de massa (Rodrigues, 2003).

    No auge das mobilizaes pelas Diretas J, o mega comcio do dia 10 de abril de 1984, no Rio de Janeiro, levou s ruas um milho e cem mil pessoas, segundo dados da imprensa. O comcio, que contava com a presena de vrios artistas, governadores, parlamentares, lderes sindicais e representantes de organizaes da sociedade civil, teve discursos, msica e muita descontrao. Chacrinha, com seu jeito caracterstico, divertia o pblico com Al Valdemar, o povo quer votar; al Anacleta o povo quer a direta, enquanto Faf de Belm emocionava a multido ao cantar Menestrel das Alagoas, em homenagem a Teotnio Vilela. Ao final do comcio, artistas e o pblico cantavam o Hino Nacional e a msica Caminhando e Cantando..., de Geraldo Vandr.

    Alguns trechos de discursos proferidos no comcio:

    Ou a gente se acovarda e morre de cabea baixa ou a gente toma coragem e morre lutando pelo direito do nosso povo.

    Luiz Incio Lula da Silva

    Esto querendo fazer desse pas uma democracia sem povo e sem votos. E a nica maneira de impedir que essa vontade da minoria dominante prevalea sobre a vontade da maioria usurpada atravs de demonstraes como essas.

    Tancredo Neves

    Vamos preparar nossos ttulos que as eleies diretas no esto longe.

    Leonel Brizola(Rodrigues, 2003)

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    Embalado pela fora das ruas, Dante de Oliveira, autor da emenda das Diretas, proclamava no dia seguinte: Que as eleies diretas sejam a luz vislumbrada ao fim do tnel. Venham conosco, cidados dignos desse pas. O povo que se organiza, que se une, dificilmente se verga e se deixa vencer.

    MOVIMENTO PELAS DIRETAS J NO VALE DO ANHANGABA (SP), 1984

    Foto: Ennio Brauns/Foto&Grafia

    Vamos juntos at o dia da vitria! (Folha de S. Paulo, Diretas J, 11 de abril de 1984).

    No dia 16 de abril, foi a vez de So Paulo exibir a maior manifestao popular de sua histria. No jornal Folha de S. Paulo, a narrativa do grande comcio ganhava tons picos:

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    As grandes manifestaes expressavam o consenso vigente na opinio pblica em apoio s Diretas J, ao mesmo tempo em que construam fatos polticos que influenciavam a dinmica das interaes no interior do Congresso. Mas se o recado das ruas era o desejo de ruptura, representado pela quebra do principal mecanismo institucional de reproduo poltica do regime, o Colgio Eleitoral, a sada que acabou prevalecendo foi a superao do regime com base na prpria institucionalidade vigente

    SO PAULO FAZ O MAIOR COMCIO

    Mais de um milho de pessoas em silncio, mos entrelaadas, braos para cima. Ao sinal do maestro Benito Juarez, da Orquestra Sinfnica de Campinas, a multido cantou o Hino Nacional. Do cu caa papel picado, papel amarelo, a cor das diretas, brilhando luz dos holofotes. No Vale do Anhangaba, muita gente chorou.

    (...) Mas a alegria superou o choro. Enquanto a passeata avanava pelo centro da cidade, pequenos grupos se destacavam e danavam forr, faziam humor ("Figueiredo para ex-presidente", dizia um cartaz: "Pois eu prefiro cheiro de cavalo", lembrava outro), puxavam novas palavras de ordem: "No, no, no / ao colgio do Joo". Em nome da festa das diretas, os professores se privaram de vaiar o governador Franco Montoro; PT e PMDB evitaram a costumeira troca de estocadas e trabalham juntos na organizao da passeata; PCB, PC do B e MR-8 aceitaram pacificamente uma escala de oradores que no os inclua.

    Quantas pessoas foram passeata? Montoro falou em quase dois milhes, Osmar Santos anunciou 1 milho e 700 mil, a PM calculou 1 milho e meio, o secretrio do Planejamento da Prefeitura, Jorge Wilheim, cita 1 milho. (...) No importa: o que vale que jamais houve concentrao desse nvel e sem nenhum incidente a prejudic-la, nenhuma briga, nenhum batedor de carteira, nenhuma ocorrncia policial sequer, a multido unida na alegria, na emoo e na luta pelas diretas (e, ainda por cima, qualquer dos nmeros citados maior e mais expressivo do que 686, nmero de integrantes do Colgio Eleitoral). O leitor pode fazer as contas: quantos de seus conhecidos foram passeata?

    A multido em marcha lotou a S, a Benjamim Constant, o Viaduto do Ch, a praa Ramos, a Conselheiro Crispiniano, a So Joo, o Anhangaba; muitos bares do caminho ficaram abertos e no tiveram problemas apenas lucros (...).

    A vtima favorita, porm, foi o Colgio Eleitoral. Lula se transformou no orador mais aplaudido da noite ao afirmar, em resposta ao general Rubem Ludwig, que aquela manifestao no era baderna: "Baderna o Colgio Eleitoral".

    s 20h30, no horrio do final do comcio, o presidente Figueiredo surgia em rede nacional de TV para anunciar sua proposta: diretas mais tarde, em 1988. O delegado Romeu Tuma, da Polcia Federal, informava Braslia de que "o verde do Anhangaba foi coberto pelo vermelho das bandeiras dos partidos de esquerda". E, enquanto a multido se retirava calmamente, os fogos de artifcio escreviam no cu de So Paulo a mensagem do comcio: "Diretas j".

    (Folha de S. Paulo, 17 de abril de 1984)

    (Rodrigues, 2003: 160). No dia 25 de abril de 1984, a Emenda Dante de Oliveira (a emenda das Diretas J) foi derrotada no Congresso por 22 votos, e os brasileiros tiveram que esperar at 1989 para votar para presidente. Aps a decepo, seguiu-se o esforo para influenciar os rumos do processo constituinte e, como veremos, o aprendizado poltico propiciado pelos comits pr-diretas se transformou em recursos de mobilizao na nova fase.

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    1.3 A PARTICIPAO POPULAR NA CONSTITUINTE

    Em junho de 1985, o presidente Jos Sarney encaminhou mensagem ao Congresso Nacional propondo a convocao da Constituinte, que resultou na Emenda Constitucional n 26. O livro Cidado Constituinte: a Saga das Emendas Populares (Michiles et al, 1989) conta o processo de mobilizao da sociedade para participao nos trabalhos da Assembleia Constituinte e avalia seus resultados.

    Michiles e outros autores relatam que a princpio foi difcil superar o ceticismo j que, para alguns, um assunto to distante da vida cotidiana das pessoas, como os assuntos constitucionais, tornaria invivel a popularizao da campanha. Foram vrias as formas encontradas para gerar mobilizao em torno do tema e, nesse sentido, cabe destacar o Projeto Educao

    Esses meses demonstraram que o Brasil no cabe mais nos limites histricos que exploradores de sempre querem impor. Nosso povo cresceu, assumiu o seu destino, juntou-se em multides, reclamou a restaurao democrtica, a justia e a dignidade do Estado1 (Ulysses Guimares, 1987).

    1 Instalao da Assembleia Nacional Constituinte completa 25 anos, disponvel no arquivo da Cmara dos Deputados.

    PROMULGAO DA CONSTITUIO FEDERAL NO CONGRESSO NACIONAL, 1988

    Foto: Acervo Agncia Brasil (ABr)

    Popular Constituinte, idealizado por entidades de assessoria ao movimento popular e s pastorais sociais que, por meio da produo de vdeos e cartilhas, buscava sensibilizar comunidades rurais e urbanas sobre a importncia do tema constitucional para a vida das pessoas e estimul-las a tomar parte no processo (Michiles et al, 1989).

    Em novembro de 1986, mais de 69 milhes de eleitores escolheram os 559 parlamentares que compuseram a Assembleia Nacional Constituinte, instalada formalmente em fevereiro de 1987. Na abertura dos trabalhos, o presidente eleito da Assembleia, deputado Ulysses Guimares, destacou que a Constituinte estava de costas para o passado e, referindo-se crescente mobilizao social, acrescentou:

    Os comits pr-participao popular na Constituinte foram um importante instrumento de mobilizao, entre 1987 e 1988. Os comits eram compostos por militantes polticos, sindicais, agentes de pastoral, associaes de moradores, movimentos populares e associaes profissionais que, com capacidades e recursos diferenciados, se envolveram no difcil e longo processo de negociao constitucional, ajudando a criar pontes e ampliar dilogos em torno dos interesses populares. Com o apoio dos partidos, mas sob uma chave suprapartidria, os comits realizaram encontros nos estados com parlamentares de diferentes siglas em apoio s propostas populares (Michiles et al, 1989: 39).

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    Nesta fase, na qual se realiza uma espcie de auditoria do Brasil real (...) por vrias vias, gente de diversas categorias sociais, profissionais, tnicas e raciais surge no centro do palco e assume o papel de agente, de senhor da fala. Um indgena, um negro, um portador de defeito fsico, um professor modesto, saem da obscuridade e se ombreiam com os notveis (...). O lobbysmo encontra, assim, um antdoto e os constituintes so devolvidos ao dilogo com o povo (...). Essas pessoas atravessam as portas do Parlamento como paladinos de causas particulares de alto significado nacional. (...) Desfraldam a bandeira das grandes esperanas e das grandes iluses, combatem por utopias e lutam pelo nosso futuro (...). Enfim, vemos o mundo pelo avesso. O povo inunda a ANC [Assembleia Nacional Constituinte] e abarrota as subcomisses de propostas, de informaes e de sonhos. (...) Permitiram que os cidados invadissem a cidadela dos polticos profissionais e desempenhassem, pelo menos por um curto perodo, os papis de representantes do povo. O dito est dito. Toneladas de papis desabaram sobre as subcomisses e, agora, no h como ignorar o seu contedo. O desafio est lanado. No h como ignorar o que a maioria espera dos constituintes. (...) A Constituio se definiu concretamente como uma arma na luta contra o arbtrio, uma resposta ditadura e tutela militar. (...) Existe o empenho coletivo de partir-se de uma posio avanada na prtica de uma democracia de participao ampliada (Folha de S. Paulo, 8 de maio de 1987. Invaso e desafio, de Florestan Fernandes).

    2 Regimento Interno da Assembleia Nacional Constituinte, disponvel no arquivo da Cmara dos Deputados.3 O texto integral das emendas encontra-se no Anexo III.4 Os anais e a ntegra das emendas populares, com justificativas, esto disponveis no Portal da Cmara dos Deputados.

    visavam assegurar instrumentos de participao popular (Soares, 2007).

    Em relao s emendas voltadas aos instrumentos de participao, Michiles e outros autores relatam que havia o temor de no se conseguir chegar a 30 mil assinaturas, visto que no eram demandas que tratavam de um setor especfico ou que pudessem estar diretamente associadas a interesses materiais. A demanda pressupunha, continua os autores, um nvel de conscincia poltica mais elevada mas, especialmente, uma boa dose de esperana nas possibilidades de aperfeioamento do sistema democrtico (Michiles et al, 1989: 93). E a esperana resultou em 402.266 assinaturas, fato que situou essa emenda entre as mais subscritas, ficando em nono lugar no nmero de assinaturas (Michiles et al, 1989: 93)4.

    Outra importante forma de participao eram as caravanas para Braslia para acompanhar os trabalhos dos parlamentares no Congresso. Em artigo escrito no calor dos acontecimentos, o professor Florestan Fernandes narrava a invaso da poltica institucional pela sociedade e, com esperana e realismo, apontava os desafios do novo momento, cujo desfecho ainda estava em aberto.

    A primeira vitria foi a conquista do instrumento da iniciativa popular, conhecida como emenda popular. A iniciativa popular foi includa no artigo 24 do regimento interno da Constituinte2, no qual se l: Fica assegurada (...) a apresentao de proposta de emenda ao Projeto de Constituio, desde que subscrita por 30.000 (trinta mil) ou mais eleitores brasileiros, em lista organizada por, no mnimo, 3 (trs) entidades associativas, legalmente constitudas, que se responsabilizaro pela idoneidade das assinaturas.

    Conquistado o instrumento, tratava-se ento de investir na mobilizao para a apresentao dos projetos e coletas de assinaturas. Os resultados foram expressivos: entre maro e agosto de 1987, foram apresentadas 122 emendas populares, reunindo mais de 12 milhes de assinaturas. As emendas versavam sobre temas variados, entre os quais podemos citar: salrio mnimo e salrio famlia; contra a violncia; saneamento bsico; poltica habitacional; reforma agrria; populaes indgenas; dvida externa; direito de greve; democratizao da comunicao; discriminao racial; e direitos humanos. Destacamos a emenda n 50, que versava sobre o sistema nacional de sade e a emendas n 21, 22 e 563, que

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    A participao popular conquistou a participao popular. (...) Pela primeira vez na histria o povo esteve realmente presente e participou das decises num momento de elaborao constitucional. Essa foi uma conquista da participao popular. A partir de agora inicia-se uma nova luta, em outras condies, mas com o mesmo objetivo de conquistar para o povo o direito de participar das decises polticas fundamentais (Dalmo Dallari, 1989: 387).

    5 Art. 6 So direitos sociais a educao, a sade, o trabalho, o lazer, a segurana, a previdncia social, a proteo maternidade e infncia, a assistncia aos desamparados, na forma desta Constituio.

    6 Art. 183. Aquele que possuir como sua rea urbana de at duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposio, utilizando-a para sua moradia ou de sua famlia, adquirir-lhe- o domnio, desde que no seja proprietrio de outro imvel urbano ou rural. 1 O ttulo de domnio e a concesso de uso sero conferidos ao homem ou mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil. 2 Esse direito no ser reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez. 3 Os imveis pblicos no sero adquiridos por usucapio.7 Art. 191. Aquele que, no sendo proprietrio de imvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposio, rea de terra, em zona rural, no superior a cinquenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua famlia, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe- a propriedade. Pargrafo nico. Os imveis pblicos no sero adquiridos por usucapio.

    Foram apresentadas seis emendas populares tratando do tema da reforma agrria, subscritas por 1.562.332 assinaturas. Mas, dada a correlao de foras desfavorvel, a emenda popular da reforma agrria no foi includa no texto constitucional. Na redao final, o artigo 185 definiu como insuscetveis de desapropriao para fins de reforma agrria a propriedade produtiva, deixando para regulamentao a definio dos requisitos relativos funo social da terra.

    Segundo Lucas Brando, o conjunto de leis onde as emendas populares tiveram o maior grau de influncia foi o captulo da criana e do adolescente. Relata o autor: O

    COMEMORAES EM BRASLIA APS A PROMULGAO DA CONSTITUIO FEDERAL DE 1988

    Foto: Acervo ABr

    contedo do captulo foi o resultado da unio das duas emendas populares escritas sobre o tema: a de n 064 e a de n 096 que, juntas, reuniram 123.355 assinaturas. (...) No texto final, boa parte do captulo VII, emendado em 2010 para contemplar tambm a categoria jovens, tem a sua origem nas duas emendas (Brando, 2011: 167). O autor tambm destaca a mobilizao social em defesa da reforma urbana, que obteve 133.068 assinaturas para a emenda popular n 63. Alm de assegurar o direito moradia, o movimento de moradia (art. 6)5 tambm conquistou o usucapio urbano (art. 183)6 e rural (art. 191)7 (Brando, 2011: 174).

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    Os atores articulados na ampla campanha popular pela Constituinte foram decisivos para os avanos da participao incorporados na Constituio de 1988, entre os quais podemos citar: o reconhecimento expresso da democracia direta, ao lado da democracia representativa, e o exerccio da soberania popular no apenas atravs do voto, mas tambm do plebiscito, referendo e iniciativa popular. Importante tambm foi o espao que a Constituio de 1988 abriu para a participao popular nas reas de polticas pblicas, principalmente no que se refere sade, assistncia social, criana e adolescente e polticas urbanas. A nova Constituio harmonizava, assim, os preceitos da representao e da participao numa arquitetura legal inovadora que reconhecia o papel do cidado nas decises nacionais, muito alm do seu papel como eleitor.

    ULYSSES GUIMARES E A CARTA DE 1988

    Foto: Acervo ABr

    A participao social um preceito que aparece diversas vezes na Constituio Federal de 1988:

    DOS PRINCPIOS FUNDAMENTAIS. Pargrafo nico do Art. 1: Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou DIRETAMENTE, nos termos desta Constituio.

    DIREITOS SOCIAIS. Art. 10: assegurada a participao dos trabalhadores e empregados nos colegiados dos rgos pblicos em que seus interesses profissionais ou previdencirios sejam objeto de discusso e deliberao.

    DIREITOS POLTICOS. Art. 14: A soberania popular ser exercida pelo sufrgio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos e, nos termos da lei, mediante: I - plebiscito; II - referendo; III - iniciativa popular.

    SEGURIDADE SOCIAL. Pargrafo nico do Art. 194: Compete ao poder pblico, nos termos da lei, organizar a seguridade social, com base nos seguintes objetivos: (...) VII. Carter democrtico e descentralizado da gesto administrativa, com participao da comunidade.

    SADE. Art. 198: As aes e servios pblicos de sade integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema nico, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: (...) III. Participao da comunidade.

    ASSISTNCIA SOCIAL. Art. 204: As aes governamentais na rea de assistncia social sero (...) organizadas com base nas seguintes diretrizes (...) II. Participao da populao por meio de organizaes representativas, na formulao das polticas e no controle das aes em todos os nveis.

    A PARTICIPAO SOCIAL NA CONSTITUIO DE 1988

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    EDUCAO. Art. 206: O ensino ser ministrado com base nos seguintes princpios (...) VI. Gesto democrtica do ensino pblico, na forma da lei.

    CRIANA E ADOLESCENTE. Art. 227, 1: O Estado promover programas de assistncia integral sade da criana e do adolescente, admitida a participao de entidades no governamentais. 7: No atendimento da criana e do adolescente levar-se- em considerao o disposto no art. 204.

    CULTURA. Art. 216-A, 1: O Sistema Nacional de Cultura (...) rege-se pelos seguintes princpios: X - democratizao dos processos decisrios com participao e controle social; 2 Constitui a estrutura do Sistema Nacional de Cultura, nas respectivas esferas da Federao: II - conselhos de poltica cultural; III - conferncias de cultura (Includo pela Emenda Constitucional n 71, de 2012).

    FUNDO DE COMBATE E ERRADICAO DA POBREZA. Art. 79, pargrafo nico do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias: O fundo previsto neste artigo ter Conselho Consultivo e de Acompanhamento que conte com a participao de representantes da sociedade civil, nos termos da lei (Includo pela Emenda Constitucional n 31, de 2000).

    O CONGRESSO NACIONAL COMEMORA A PROMULGAO DA CONSTITUIO FEDERAL DE 1988

    Foto: Acervo ABr

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    Um dos ganhos da Constituio de 1988 foi a incorporao da dimenso participativa na concepo de democracia. De fato, como demonstrou a experincia do perodo ps-Constituinte, representao e participao so complementares e se reforam mutuamente. Ao analisar a influncia das conferncias nacionais na produo legislativa do Congresso Nacional, Thamy Pogrebinschi constata que quanto maior o grau de institucionalizao das prticas participativas e deliberativas, maior a estabilidade das instituies representativas (Pogrebinschi, 2010: 40).

    Isso porque os mecanismos e instncias de participao contribuem com informaes relevantes para os legisladores, ao trazerem demandas e propostas que poderiam no chegar agenda poltica pela mediao partidria tradicional. Isso fica claro principalmente nos casos dos grupos sociais minoritrios, como idosos, jovens, crianas e adolescentes, mulheres, negros, indgenas e LGBT, que conseguiram, por meio das conferncias, organizar uma agenda de propostas setoriais tanto de carter administrativo quanto legislativo (Pogrebinschi, 2012).

    Assim, os espaos de participao operam para aproximar os representantes legislativos das preferncias dos cidados sobre temas especficos, ajudando a formar a agenda e embasar a tomada de decises no Congresso Nacional e no Poder Executivo, fortalecendo, portanto, a prpria representao.

    Ampliar os espaos nos quais o cidado comum pode influenciar as decises coletivas e garantir novos espaos de socializao poltica essencial para uma democracia vibrante. A participao do cidado nas decises polticas aprimora as instituies democrticas e favorece a construo de polticas pblicas mais inclusivas e eficientes, uma vez que:

    a) A participao oferece aos poderes Executivo e Legislativo subsdios informacionais que permitem construir desenhos de polticas pblicas mais prximas realidade e expectativas dos cidados, o que amplia as chances de sucesso nos processos de implementao;

    b) A participao permite sociedade no apenas influenciar a aplicao dos recursos pblicos, como tambm zelar pela sua correta utilizao. Ao envolver as comunidades com os processos oramentrios estimula-se a transparncia e a responsabilizao;

    c) A abertura de novos canais de participao particularmente importante para que grupos historicamente excludos possam ter sua voz ouvida e seus interesses considerados nos processos de deliberao pblica;

    d) Estimular a juventude a ter voz nos assuntos pblicos e construir canais alternativos de socializao poltica fortalecer a democracia como resposta aos desafios do presente e do futuro.

    DEMOCRACIA PARTICIPATIVA E REPRESENTATIVA

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    MANIFESTAO DOS CARAS-PINTADAS EM FRENTE AO CONGRESSO NACIONAL,

    EM BRASLIA (DF), 1992

    Foto: Mrcio Arruda/Folhapress

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    CAPTULO 2

    AS INOVAES PARTICIPATIVAS NOS ANOS 90 (1989-2000)

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    CAPTULO 2: AS INOVAES PARTICIPATIVAS NOS ANOS 90 (1989-2000)

    As conquistas constitucionais deram vida, na dcada seguinte, a um intenso processo de inovao institucional no nvel subnacional de governo. Em vrias prefeituras brasileiras, governos e sociedade experimentaram novos formatos de discusso e deliberao, por meio de uma diversidade de mecanismos e instrumentos de participao, com destaque para os conselhos de polticas pblicas e o oramento participativo. Nos anos de 1990, o desafio era comear a construir essa institucionalidade democrtica pela qual se lutara. Ou seja, era preciso tirar as conquistas do papel. E vrias foram as organizaes e indivduos que se apresentaram para realizar essa tarefa. Ao final da dcada de 90, o nmero de conselhos criados e em funcionamento evidenciava o xito da empreitada.

    Este captulo comea lembrando o primeiro ciclo de protestos do perodo democrtico, nas mobilizaes dos caras-pintadas a favor do impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello. Na sequncia, aborda-se as experincias de participao no plano subnacional, com os dados que mostram a ampliao da cobertura dos conselhos pelo territrio nacional e a consolidao das experincias de oramento participativo em vrios municpios brasileiros. A narrativa prossegue com a anlise das relaes entre governo e sociedade no plano federal, com foco na instituio de instncias participativas e os novos instrumentos de parcerias. Na seo final, so apresentados os desafios que se colocam na agenda da participao no incio dos anos 2000.

    MOBILIZAO DE ESTUDANTES EM FRENTE AO CONGRESSO NACIONAL PELO IMPEACHMENT DO PRESIDENTE FERNANDO COLLOR, 1992

    Foto: Srgio Lima/ABr

    MOBILIZAO DE ESTUDANTES EM FRENTE AO CONGRESSO NACIONAL PELO IMPEACHMENT DO PRESIDENTE FERNANDO COLLOR, 1992

    Foto: Srgio Lima/ABr

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    Em 1989, os brasileiros elegeram o seu primeiro presidente, Fernando Collor de Mello, depois de 25 anos de regime de exceo. Pouco tempo depois, em 1992, a populao voltava s ruas para exigir o impeachment do presidente com base nas denncias de corrupo contra o seu governo.

    Em meados de 1991, comeavam a aparecer na imprensa denncias de corrupo envolvendo vrios setores do governo. A sucesso dos escndalos levou instaurao, no comeo de junho de 1992, de uma Comisso Parlamentar de Inqurito (CPI) para investigar as denncias. At aquele momento, embora houvesse forte descontentamento popular e articulao entre partidos de oposio e organizaes da sociedade civil, no havia sinal de mobilizao social mais ampla.

    Contudo, no final de junho, novos depoimentos na CPI implicaram diretamente altos funcionrios do governo. No mesmo dia, 25 de junho, a Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Central nica dos Trabalhadores (CUT) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), junto aos partidos de oposio, realizaram uma manifestao intitulada Viglia pela tica na Poltica para pressionar os congressistas a checar devidamente os fatos e punir os envolvidos. Nesse contexto surgiu o Movimento pela tica na Poltica que, em seu auge, reuniu cerca de 900 entidades, envolvendo setores da Igreja, centrais sindicais, organizaes da sociedade civil e novas organizaes empresarias. No dia 30 de junho, em nome da governabilidade, os jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo pediam a renncia do presidente.

    MOBILIZAO DOS CARAS-PINTADAS NO RIO DE JANEIRO, 1992

    Foto: Claudia Ferreira

    8 Para a anlise do ciclo de manifestaes dos caras-pintadas foram utilizadas como referncias o livro O Brasil de Fernando a Fernando. Neoliberalismo, corrupo e protesto na poltica brasileira de 1989 a 1994, de Alberto Tosi Rodrigues, e a dissertao de mestrado Dos significados da tica na poltica: articulao e discurso no contexto pr-impeachment, de Luciana Tatagiba

    2.1 OS ESTUDANTES VOLTAM S RUAS: A MOBILIZAO DOS CARAS-PINTADAS8

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    MOBILIZAO A FAVOR DO IMPEACHMENT, ORGANIZADA PELA SOCIEDADE CIVIL EM SO PAULO, 1992

    Foto: Jesus Carlos/Imagemglobal

    No incio de julho, comearam as mobilizaes de rua. No dia 15, partidos, entidades sindicais e estudantis realizaram ato pblico em favor do impeachment, reunindo em torno de duas mil pessoas no centro de Belo Horizonte. Nos dias seguintes, outras manifestaes semelhantes ocorreram em Belm, Braslia, So Paulo, Joo Pessoa e Rio de Janeiro, entre outras cidades. Lideradas por partidos, organizaes da sociedade civil e sindicatos de esquerda, essas mobilizaes eram ainda esparsas e localizadas. Foi em agosto que uma onda mais efetiva de mobilizaes deu novo tom dinmica da luta poltica, trazendo de volta cena o movimento estudantil. Era a primeira vez, desde as manifestaes contra a ditadura, que a juventude voltava s ruas na proa do processo de mobilizao. Pesquisa realizada pelo Datafolha, na manifestao realizada no dia 18 de setembro, traava um perfil dos participantes: a maioria dos presentes passeata tinha entre 16 e 20 anos, cursava o ensino mdio com empate entre instituies pblicas e privadas e no trabalhava (Folha de S. Paulo, 28 de setembro de 1992).

    No dia 8 de agosto, no ato mais importante at ento, dez mil pessoas participaram de uma mobilizao em favor do impeachment, organizada por OAB, CUT, Associao Brasileira de Imprensa (ABI), Unio Nacional dos Estudantes (UNE), Pensamento Nacional das Bases Empresariais (PNBE), Comisso Justia e Paz de So Paulo (CJP-SP), Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia (SBPC) e Central Geral dos Trabalhadores (CGT). No dia 11 de agosto, nova manifestao, dessa vez convocada pelas entidades estudantis UNE e Unio Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), reuniu dez mil pessoas, segundo a Polcia Militar (PM). Os estudantes, com os rostos pintados de verde e amarelo, seguiam pela Avenida Paulista ao som de Alegria, Alegria, msica de Caetano Veloso, que era ento tema da minissrie Anos Rebeldes, exibida pela TV Globo. Ao final, lideranas partidrias discursaram defendendo o impeachment.

    No dia 13 de agosto, durante uma solenidade, Collor convocou a populao a sair s ruas, no domingo 16, vestindo verde e amarelo em defesa do seu mandato. Como resposta, no dia 14, entre 25 mil (avaliao da PM) e 50 mil

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    pessoas (avaliao dos organizadores) tomaram as ruas do Rio de Janeiro. Nenhum lder poltico compareceu ao evento e os slogans, roupas e msicas se caracterizavam pelo bom humor.

    No dia seguinte, editorial de primeira pgina da Folha de S. Paulo sugeria que as pessoas usassem preto no domingo 16, em sinal de luto. E foi o que ficou conhecido como o Domingo Negro, com manifestaes em vrias cidades brasileiras. A partir da as manifestaes, sob a palavra de ordem Fora Collor, assumiram um ritmo mais forte, influenciando decisivamente no rumo dos eventos. Destaca-se nos atos o protagonismo do movimento estudantil com a Unio Municipal dos Estudantes Secundaristas (Umes), Diretrios Centrais dos Estudantes (DCEs) e UNE, e a hostilidade em relao aos partidos polticos.

    No comcio que encerrou a grande manifestao no Rio de Janeiro, o ento presidente da UNE, Lindbergh Farias, disse que os estudantes no deixariam as ruas at que o impeachment fosse aprovado.

    Em 24 de agosto, era lido o relatrio final da CPI que abria espao para o impeachment do presidente. Com o resultado do relatrio, as mobilizaes se tornaram mais fortes. Em 25 de agosto, ato convocado pela UNE em So Paulo reuniu 350 mil pessoas; em Recife, 200 mil pessoas; em Salvador, 100 mil; no Rio de Janeiro, 60 mil. No dia 26 de agosto, o relatrio foi aprovado sob presso de mais de 100 mil manifestantes que tomaram o gramado em frente ao Congresso Nacional.

    21 de agosto. No Rio de Janeiro, novo recorde de pblico: uma multido de 25 mil (para

    a PM) ou cem mil (segundo a UNE) reuniu-se no centro (...). Saudados por chuva de papel

    picado, embora sem contar, mais uma vez, com a presena de nenhuma liderana nacional

    de expresso, predominaram no ato estudantes muitos de cara pintada ou com roupas

    pretas, verdes e amarelas. Desfilaram fantasmas, cachorros vestidos de preto, palhaos,

    uma gaiola com bonecos de Collor e PC e um caixo para mais um enterro. Representantes

    de partidos e candidatos foram recebidos com frieza e hostilidade. (...) A manifestao

    terminou (...) com um comcio na Cinelndia, que teve direito ao Hino Nacional cantado

    por Faf de Belm (Rodrigues, 2000: 223).

    MOVIMENTO PELA TICA NA POLTICA NAS RUAS DE BRASLIA, EM 1992

    Foto: Centro de Memria OAB

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    Enquanto no chega o inglrio e vergonhoso fim, quem fala pela nao so as ruas. O que impressiona no a idade dos manifestantes em grande parte eleitores de primeira viagem mas o contedo de seu protesto. (...) A sociedade civil, nas ruas, nas praas nas grandes e pequenas cidades, presente em todos os comcios proclama sua emancipao do poder poltico (...). Que ningum se engane: o povo no est a pedir a ao dos congressistas para que decretem o impeachment do presidente da Repblica. O povo est, por sua conta (...) decretando, inapelavelmente, o impeachment que os polticos confirmaro ou no (Revista Isto Senhor, de 2 de setembro de 1992. Decretando o impeachment, de Raimundo Faoro).

    Ao final da votao, o plenrio e as praas pblicas explodiram em comemorao. Cerca de quinhentas mil pessoas, segundo a PM, saram s ruas nas 17 principais cidades do pas para acompanhar a votao. A maior concentrao foi a de So Paulo, no Vale do Anhagaba, onde 300 mil pessoas (organizadores) ou 120 mil (PM) se reuniram (Rodrigues, 2000: 242).

    As manifestaes continuaram nas semanas seguintes at que, no dia 29 de setembro, o plenrio da Cmara aprovava o pedido de impeachment do presidente Fernando Collor. Trs meses depois, o presidente renunciava.

    MANIFESTAES PELO IMPEACHMENT NO CENTRO DE SO PAULO, 1992

    Foto: Jesus Carlos/Imagemglobal

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    O Movimento pela tica na Poltica se extinguiu com o renncia do presidente Collor, mas as articulaes que ele propiciou entre sociedade civil, sociedade poltica e setores empresariais abriram caminho para Ao da Cidadania contra a Fome e a Misria e pela Vida, surgida em 1993. A campanha, liderada por Betinho propunha a participao, a solidariedade e as parcerias como os alicerces das aes de combate fome, a partir da atuao dos comits locais nos bolses de pobreza. Entre 1993 e 1994, os comits se espalharam por todo o Brasil, envolvendo cerca de 30 milhes de pessoas (Telles, 2001).

    A campanha foi alm do alvio imediato por meio da arrecadao de alimentos na direo da formulao de uma poltica pblica de segurana alimentar. Um dos resultados desse processo foi a criao do Conselho Nacional de Segurana Alimentar (Consea), em 1992, e a realizao da 1 Conferncia Nacional de Segurana Alimentar e

    VAMOS NOS UNIR CONTRA A FOME

    BETINHO ENTRE CESTAS BSICAS DOADAS NA CAMPANHA AO DA CIDADANIA CONTRA A FOME E A MISRIA E PELA

    VIDA, NO RIO DE JANEIRO, 1997

    Foto: Acervo Ao e Cidadania

    Nutricional, em Braslia, em julho de 1994, na qual se produziu a Carta da Terra, articulada pelo Betinho para mobilizar a sociedade e pressionar o governo pela realizao da reforma agrria. O Consea foi desativado em 1995 e recriado em 2003, indo ao encontro da mobilizao de organizaes da sociedade civil ligadas luta pela segurana alimentar.

    A luta contra a misria tambm e essen-cialmente uma questo tica e poltica. ti-ca porque a misria no cai do cu como um fenmeno natural, como se fosse um vrus que ataca determinadas sociedades do Terceiro Mundo. Ela produzida por uma sociedade num determinado tempo e por grupos dirigentes com nome e apelido que, at prova em contrrio, tm consci-ncia do que fazem. () Cabe ao Conselho de Segurana Alimentar a tarefa de propor, mobilizar, pressionar e viabilizar aes go-vernamentais e no governamentais efe-tivas. (...) A segunda proposta da Ao da Cidadania contra a Fome, a Misria e pela Vida vai depender da ao da sociedade civil. Se a Ao da Cidadania for capaz de criar comits em todas as cidades e mobi-lizar a energia que existe latente ou ativa em cada pessoa, entidade, projeto, pro-posta, o Brasil corre o risco de ficar dife-rente para sempre. (...) isso que a Ao da Cidadania pretende: erradicar a mis-ria e gerar uma nova sociedade (Revista de Estudos, Informaes e Debates, ano II, n 3, de junho de 1993. Educao a Distncia).

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    Com a posse do vice-presidente Itamar Franco em 15 de maro de 1990, a vida retornava normalidade e, com ela, seguiam os esforos para ampliar as margens de participao, contando com o novo ambiente institucional conformado pela Constituio de 1988. Tratava-se agora de garantir a regulamentao dos artigos constitucionais, o que resultou em importantes legislaes infraconstitucionais: a Lei Orgnica da Sade, o Estatuto da Criana e do Adolescente e a Lei Orgnica da Assistncia Social.

    Tais conquistas legais traduzem a capacidade de articulao dos movimentos sociais e suas redes de apoio nos partidos, na academia e no Parlamento. As novas leis e suas bases sociais assumiram o papel de grandes impulsionadoras das instncias de participao no plano local e nacional. O encontro da agenda da participao com a agenda da poltica pblica resultou no redesenho institucional de diversas reas da atuao governamental, evidenciando trao caracterstico do processo de redemocratizao brasileiro (Avrizter, 2007). Um percurso que foi e ainda permeado de desafios, como afirma Ana Cludia Teixeira:

    2.2 AS EXPERINCIAS DE PARTICIPAO NOS NVEIS SUBNACIONAIS

    No caminho aberto pela Sade, essas reas [assistncia e criana e adolescente] vo transformando a forma de conceber seus modus operandi, incluindo a participao da sociedade como dimenso constitutiva do processo de produo da poltica pblica. So mudanas difceis e complicadas pelo prprio histrico dessas reas, muito associado filantropia (caso da assistncia e da rea de criana e adolescente) e a um campo de operao no mais das vezes associado ao mundo privado. uma ruptura importante que se afirma nesse momento que, como sabemos, encontraria ao longo dos anos seguintes imensas dificuldades de operacionalizao (Teixeira, 2013: 85).

    REUNIO DO CONSELHO DO ORAMENTO PARTICIPATIVO EM PORTO ALEGRE (RS), 1995

    Foto: Arquivo ONG Cidade

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    A sociedade civil foi capaz de fazer avanar a participao nos sistemas de polticas pblicas, desenvolvendo modelos institucionais que se tornariam referncia nas dcadas seguintes. Um dos principais instrumentos de participao dos sistemas de polticas pblicas foram os conselhos, posteriormente criados, inclusive, em reas que no constituram sistemas. Inaugurados no contexto de democratizao do regime, os conselhos se difundiram a partir dos anos de 1990 em vrias reas, em muitos casos constituindo-se como obrigatrios para o repasse de recursos federais para estados e municpios. Desse modo, tornaram-se instncias fundamentais no processo de descentralizao e democratizao das polticas pblicas.

    REUNIO DO CONSELHO ESTADUAL DOS DIREITOS DA MULHER (CEDIM/RJ), EM 1990

    Foto: Claudia Ferreira

    PARTICIPAO E SISTEMAS DE POLTICAS PBLICAS

    Um sistema de polticas pblicas define como atribuir responsabilidades e distribuir recursos entre os entes federativos, delineando o modo da descentralizao em determinada rea (Teixeira, 2013). Nos anos 90, trs reas de polticas pblicas constituram sistemas descentralizados e participativos que se transformaram em parmetros para as lutas sociais dali em diante.

    Lei Orgnica da Sade SUS (Lei n 8.080, de 19 de setembro de 1990): dispe sobre a participao da comunidade na gesto do SUS, instituindo conselhos de carter deliberativo e as conferncias como parte do sistema descentralizado da sade. A lei define que aos conselhos cabe a atribuio de formulao de estratgias e controle da execuo da poltica de sade na instncia correspondente, inclusive nos aspectos econmico e financeiro. A lei foi o resultado da luta pela criao de mecanismos de participao nas polticas pblicas e sua importncia est tambm no fato de ter servido de modelo para outras polticas pblicas.

    Estatuto da Criana e do Adolescente ECA (Lei n 8.069, de 13 de julho de 1990): dispe sobre a proteo integral criana e ao adolescente como sujeitos de direitos. O sistema de garantias de direitos prev a descentralizao com participao da sociedade civil atravs dos conselhos de direitos da criana e do adolescente e conselhos tutelares. O Conselho Nacional da Criana e do Adolescente (Conanda) criado em 1991 pela Lei n. 8.242.

    Lei Orgnica da Assistncia Social Loas (Lei n 8.742, de 7 de dezembro de 1993): na Constituio de 1988 a assistncia social ganhou status de poltica pblica passando a integrar a seguridade social, com descentralizao das aes e participao da sociedade civil na gesto da poltica. A Loas afirma os conselhos como instncias deliberativas do sistema descentralizado e participativo da assistncia social.

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    Os conselhos so instncias colegiadas permanentes de participao social voltadas ao dilogo e negociao entre os diferentes setores envolvidos com a produo da poltica pblica. Neles, Estado e sociedade devem negociar e pactuar o contedo dos programas e projetos e os recursos a serem investidos. Em sua composio, os conselhos congregam um conjunto diversificado de atores da sociedade organizada em particular sindicatos, entidades patronais, universidades, organizaes da sociedade civil, movimentos populares, organizaes filantrpicas e agentes governamentais direta ou indiretamente responsveis pela gesto de determinada rea de poltica pblica.

    De acordo com Antnio Ivo de Carvalho, entre 1991 e 1993 foram constitudos mais de dois mil conselhos de sade por todo o pas, uma mdia de praticamente dois novos por dia. Em meados da dcada, pesquisa de Carvalho j apontara o fenmeno da proliferao dos conselhos: em julho de 1996, uma estimativa (...)

    sugere que cerca de 65% do universo dos municpios brasileiros dispem de conselhos (...) isso significa a existncia de algumas dezenas de milhares de conselheiros, nmero equivalente ao de vereadores (Carvalho, 1997: 153-154).

    Dados do Conselho Nacional de Sade, em documento produzido no final da dcada de 1990, apontava para a existncia de cerca de 45 mil conselheiros de sade nas trs esferas de governo. A Pesquisa de Informaes Bsicas Municipais (Munic) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE) apontam que, em 2001, existiam no Brasil mais de 22 mil conselhos municipais, com destaque para os de sade (5.426), assistncia social (5.178), defesa de direitos da criana e adolescente (4.306) e de educao (4.072). Uma dcada depois, a Munic confirma a extraordinria evoluo dos conselhos por todo o territrio nacional, chegando perto de cem por cento de cobertura em algumas reas, como no caso da sade, assistncia social, direitos da criana e adolescente, conselhos tutelares e alimentao escolar, em grande parte graas induo da esfera federal9.

    Outra importante inovao participativa dos anos 90 que se espalhou por vrias cidades brasileiras foi o Oramento Participativo (OP). Assim como os conselhos se desenvolveram no processo de fortalecimento dos municpios brasileiros, tambm o oramento participativo teve nos processos de descentralizao um contexto favorvel inovao e experimentao institucional. Diferente de boa parte dos conselhos de polticas pblicas que so exigncia da legislao federal, a criao do oramento participativo deve-se iniciativa dos governos locais. O OP foi introduzido em Porto Alegre a partir de 1989, e em Belo Horizonte a partir de 1993. Sua inovao foi colocar a questo do oramento pblico como objeto de disputa pblica entre as diversas foras polticas locais (Avritzer, 2003). Referindo-se primeira experincia do Oramento Participativo de Porto Alegre e ao intenso aprendizado que a iniciativa propiciou tanto para o governo quanto sociedade, Srgio Baierle analisa:

    9 Dados completos sobre o nmero atual de conselhos municipais encontram-se da tabela 6 no captulo 4.

    CONFERNCIA NACIONAL DE SADE, EM BRASLIA (DF), 1992

    Foto: Acervo Presidente F. H. Cardoso/Fundao iFHC

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    Apesar da grande diversidade de experincias de Oramento Participativo Brasil afora, estudos mostram que podemos falar em um Ciclo do OP que, com pequenas variaes, composto pelas seguintes fases: a) construo da metodologia do OP para o municpio; b) divulgao e mobilizao da populao para participar; c) realizao de reunies com moradores dos bairros para discusso das prioridades para o investimento pblico e escolha dos representantes do conselho do OP; d) negociao entre representantes da populao e do governo em torno das prioridades oramentrias a serem executadas no ano seguinte; e) envio da proposta de oramento para a Cmara de Vereadores; e f ) execuo oramentria por parte do governo com acompanhamento da populao (Teixeira; Albuquerque, 2006: 186-187).Mais recentemente, o conhecimento gerado nas experincias do OP em Porto Alegre tem permitido avanos no sentido da integrao do OP em um sistema estadual de participao popular.

    O OP no o apndice de uma tecnocracia supostamente eficiente, muito menos uma mgica instrumental para o sucesso eleitoral. No se trata de carimbar um selo popular, ou populista, numa grade de opes decidida de cima para baixo. Ao contrrio, o OP , de um lado, o desdobramento de lutas populares de mais de 30 anos, que agora encontraram um espao pblico para seu processamento poltico; de outro, um instrumento de justia social, em trs dimenses: tributria, distributiva e poltica (Baierle, 2000: 198).

    ASSEMBLEIA DO OP EM PORTO ALEGRE (RS), 2000

    Foto: Arquivo ONG Cidade

    Embora o oramento participativo tenha sido, nas suas origens, associado agenda poltica do Partido dos Trabalhadores, ao longo do tempo ele passou a ser implementado por municpios governados por um espectro mais amplo de partidos, mostrando a difuso do modelo:

    At 1997 havia 53 experincias de oramento participativo no Brasil, 62% concentradas em administraes do Partido dos Trabalhadores (...). Entre 2000 e 2004, passou a haver 170 experincias de OP no Brasil, 47% delas concentradas no Partido dos Trabalhadores (...). O principal fenmeno observado nesse perodo o crescimento do nmero de experincias feitas no espectro poltico centrista, isto , partidos como PMDB e PSDB. Assim, o que possvel perceber em relao s experincias de participao como o OP que elas tm se ampliado no Brasil tanto no seu nmero quanto em sua influncia poltica. No entanto, a questo que vale a pena avaliar o impacto dessas formas de participao no sistema poltico como um todo, ou seja, se de fato ocorreu no Brasil ps-88 a combinao entre representao e participao almejada pelo legislador constitucional (Avritzer, 2007: 415).

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    Ainda que fossem os modelos de participao mais difundidos ao longo dos anos de 1990, os conselhos e oramentos participativos no esgotavam a riqueza da experimentao em curso no pas. A ttulo de exemplo vale mencionar a radiografia desse intenso processo de inovao captado pelo programa Gesto Pblica e Cidadania que, entre 1996 e 1999, premiou e divulgou experincias inovadoras de gesto, em diversas cidades brasileiras. Fazendo uma leitura dos 629 programas e projetos inscritos no primeiro ciclo de premiaes, em 1996, Marta Farah destacava como eixo de inovao mais importante dos programas a participao da sociedade civil: 42% dos programas resultam de aes conjuntas do governo e de entidades da sociedade civil comunidade organizada, organizaes no governamentais e setor privado empresarial. Embora sob direo de uma entidade governamental, vrios projetos se estruturam como redes de entidades e instituies, mobilizadas e

    REUNIO DO CONSELHO COMUNIDADE SOLIDRIA EM BRASLIA, 1997

    Foto: Observatrio Poltico

    articuladas em torno de um problema de interesse pblico (Farah,1999).

    Assim, o Brasil dos anos de 1990 ia se tornando um celeiro de experincias inovadoras de gesto no nvel local. Esse estmulo s parcerias entre Estado e sociedade teve impactos nos padres associativos com o surgimento de novas organizaes da sociedade civil em diversas reas temticas. Em livro que trata do surgimento e atuao das redes emancipatrias de luta contra a excluso e por direitos humanos, a professora Ilse Scherer-Warren chama a ateno para a diversidade de articulaes e fruns pela cidadania surgidos na dcada de 1990 (Scherer-Warren, 2012: 95). Entre os exemplos que ilustram a profuso de iniciativas articuladas da sociedade civil na luta por ampliao de direitos, citamos o Frum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (FBOMS) 1990; o Frum Nacional pela Democratizao da Comunicao (FNDC) 1990; a Associao Brasileira de ONGs (Abong) 1991; o Movimento de Atingidos por Barragens (MAB) 1991; a Central dos Movimentos Populares (CMP) 1993; a Articulao das Mulheres Brasileiras (AMB) 1994; o Frum Nacional de Preveno e Erradicao do Trabalho Infantil (FNPETI) 1994; o Frum Nacional pela Reforma Agrria e Justia no Campo (FNRA) 1995; a Associao Brasileira de Lsbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) 1995; o Frum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos (FENDH) 1996; o Frum Nacional do Lixo e Cidadania (FLC) 1998; a Articulao do Semirido Brasileiro (ASA) 1999; o Frum Brasileiro de Soberania e Segurana Alimentar e Nutricional (FBSSAN) 1999; e o Frum Internacional do Software Livre (FISL) 1999, entre tantos outros.

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    2.3 A PARTICIPAO SOCIAL NO PLANO FEDERAL

    Ao mesmo tempo, no plano nacional, a institucionali-zao dos espaos de participao dava seus primeiros passos. At o final da dcada de 80, eram poucos os conselhos de polticas pblicas com participao signifi-cativa da sociedade civil. De acordo com o mapeamento realizado pela Secretaria-Geral da Presidncia da Rep-blica, existiam 15 conselhos de polticas pblicas parti-cipativos na administrao pblica em 1989. Entre eles, destacam-se o Conselho Nacional de Sade (CNS), de 1937; o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), de 1964; o Conselho Nacional de Imigrao (CNIg), de 1980; o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), de 1981; e o Conselho Na-cional dos Direitos da Mulher (CNDM), de 1985.

    Entre 1990 e 1994, foram criados 10 conselhos e duas comisses de polticas pblicas com participao da sociedade, entre os quais o Conselho Nacional dos Direitos da Criana e do Adolescente (Conanda), de 1991, e o Conselho de Assistncia Social (CNAS), de 1993, constitudos de forma concomitante com o Estatuto da Criana e do Adolescente e a Lei da Assistncia Social. Tambm se destacam o Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador (Codefat) e o Conselho Curador do FGTS (CCFGTS), ambos criados em 1990, responsveis pela gesto de vultosos fundos de recursos dos trabalhadores. Paralelamente, nesse perodo foram realizadas oito conferncias nacionais, sendo sete delas sobre temas relacionados rea da sade10 e a primeira conferncia sobre segurana alimentar e nutricional, em 1994 (Pogrebinschi, 2010).

    Entre 1995 e 2002, durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, o nmero de conselhos aumentou significativamente. De acordo com o mapeamento da Secretaria-Geral da Presidncia

    10 Sade, Sade mental, Sade bucal, Sade indgena, Sade do trabalhador, Gesto do trabalho e educao na sade e Cincia, tecnologia e inovao na sade.11 Deste total, um conselho j existia e se tornou participativo: Conselho Nacional de Arquivos: CONArq

    da Repblica, foram criados 22 conselhos e duas comisses de polticas pblicas na administrao direita e indireta11. Entre eles, merecem meno: o Conselho Nacional de Educao (CNE), de 1995; o Conselho Nacional de Cincia e Tecnologia (CCT), de 1996; o Conselho Nacional de Recursos Hdricos (CNRH), de 1997; o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficincia (Conade), de 1999; o Conselho Nacional do Esporte (CNE), de 2002; o Conselho Nacional dos Direitos do Idoso (CNDI), de 2002; e a Comisso Nacional de Erradicao do Trabalho Infantil (Conaeti), de 2002. A lista completa dos conselhos criados por governo, encontra-se no Anexo IV e a sistematizao de colegiados criados, reformulados e atuantes encontra-se no Anexo V.

    4 RODADA DE INTERLOCUO POLTICA: CRIANA E ADOLESCENTE, REALIZADA EM BRASLIA, 1997

    Foto: Observatrio Poltico

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    MOVIMENTO DO FRUM FEMINISTA DO RIO DE JANEIRO NA PASSEATA DO DIA INTERNACIONAL DA MULHER, EM 1993

    Foto: Claudia Ferreira

    PRIMEIRA PARADA DO ORGULHO GAY, AO FINAL DA 17 CONFERNCIA MUNDIAL DE GAYS, LSBICAS E TRAVESTIS NO

    RIO DE JANEIRO, EM 1995

    Foto: Claudia Ferreira

    Nesse mesmo perodo, foram realizadas 19 confern-cias nacionais, sobre seis temas diferentes, sendo os mais frequentes sade12 (quatro conferncias); assis-tncia social (trs conferncias); e direitos da criana e do adolescente (quatro conferncias). Entre as con-ferncias do perodo, esto sete de direitos humanos, organizadas pela Comisso de Direitos Humanos da Cmara dos Deputados e pelo Frum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos.

    12 Sade, sade indgena e sade mental.

    CONFERNCIAS NACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS

    As Conferncias Nacionais de Direitos Hu-manos, realizadas desde 1996, tm sido importantes instncias de participao social na construo de diretrizes de po-lticas pblicas de defesa e promoo dos direitos humanos.

    Entre 1996 e 2003, oito Conferncias de Direitos Humanos foram realizadas anual-mente pela Comisso de Direitos Humanos da Cmara dos Deputados e pelo Frum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos. As conferncias tiveram como objetivo con-tribuir para a construo, implementao, avaliao e aprimoramento do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH). Pau-taram tambm a discusso de estratgias para a criao e fortalecimento de organis-mos nacionais e internacionais de direitos humanos, aes de combate violncia e discriminao em suas distintas manifesta-es, a criao de um sistema nacional de proteo dos direit