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Carlos Diamantino Alkmim Crônicas Manga, um novo sabor

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O Livro de crônicas, Manga, um novo sabor, é o primeiro livro do escritor Carlos Diamantino Alkmim lançado em edição on-line. No 7º livro escrito e publicado, Diamantino relata a sua terra natal na última década do novo século 21, focalizando o seu patrimônio e sua gente entrelaçada à natureza exuberante do sertão mineiro e a beleza inspiradora do rio São Francisco.

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Carlos Diamantino Alkmim

Crônicas

Manga, um novo sabor

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Manga, um Novo Sabor

Carlos Diamantino Alkmim

1ª Edição / 2011

Crônicas

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Copyright © 2011 by Carlos Diamantino Alkmim

Ficha técnica

Edição: Carlos Diamantino Alkmim

Projeto gráfi co: Pedro Diamantino

Revisão: Cilene Regina Ramos De Santis

Foto capa: Daniel Esser

Fotos: Arquivo:

Taco Bandeira

JJ. Oliveira

Cleiton Lôpo

Velho Chico.NET

Francisco Antônio

Zé Carlos - Secom-MG

Direitos Autorais reservados ao autor.Não é permitido a reprodução total ou de parte dos textos, desta obra, sem citação de fonte.

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A vida me condena

- Serás pássaro

Somente em bico de pena.

Flávio Mota

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Ao sobrinho e afi lhado, Pedro Jorge, pela sua dedicação, e visão contemplativa, indispensáveis nas novas gerações que se dedicam à arte e as letras da nossa história.

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Aos amigos da minha infância na cidade de quintal (Carlópolis)

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Carlos Diamantino,

A leitura de suas crônicas me transportou a uma outra margem...de repente, estava eu também saboreando as brisas, as marolas,

o revoar das aves, o rio e todas as cores!Pude sentir o gosto do pão de queijo de dona Didi,

pude abrir as janelas dos casarões, andar pelos quintais, sentar nas praças!

Você consegue nos presentear com imagens tão vivas etão poéticas que até instigam a conhecer tia Lourdes,

as ruas e praças de Manga e, principalmente, a zarpar nesse vapor...o vapor imaginário que se ganha de brinde com a leitura do livro!

*Cilene Regina Ramos De Santis

(Revisora)

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Prefácio

A cidade de Manga, gostosamente aboletada nas barrancas do São Francisco, é o grande amor do escritor Carlos Diamantino Alkmim e, com seus moradores, sua personagem preferida. Passear pelos seus textos onde ele conta esta sua paixão é extremamente gratifi cante. Seu estilo elegante e pleno de metáforas poéticas leva o leitor a um verdadeiro mergulho espiritual nas águas do Velho Chico, na natureza exuberante da região e, principalmente, na alma da brava gente do Brasil profundo.

Afl oram, docemente, insinuações de amores mal resolvidos: (...) uma ou outra gaivota apenas revoa, revoa, revoa e retorna sem pousar no fi o. Não gostou? Não encontrou seu amor? Ciúmes? (...) Começo a voar nas asas da minha imaginação. “O meu coração toca forte, os sons se misturam à algazarra das gaivotas que esperam as estrelas, a lua, o sol de um novo dia a despertá-la”, diz o cronista-poeta.

Agilmente, em rápidas pinceladas, Carlos Diamantino traça com maestria o perfi l das fi guras humanas que povoam ou povoaram sua vida, como faz no texto “Encontros com Antero”.

Nele, não é difícil materializar-se à frente do leitor o farmacêutico Antero, velho amigo do autor. Após a leitura, basta fechar os olhos e surge na nossa imaginação um homem magro, ereto, cheio de histórias e sabedorias a que só um médico-farmacêutico de uma cidade como Manga tem acesso.

Aliás, a literatura do Carlos Diamantino é recheada de personagens fortes, das quais a região é sobeja. Principalmente de mulheres cheias de personalidade, certezas e vontade de lutar pelos seus sonhos e seus amores.

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Eu já tive contato com algumas delas em trabalhos anteriores do autor. São ou foram pessoas marcantes. Umas vivas, como dona Lourdes Alkmim, outras já desencantadas e morando em esferas superiores, como Dalva Lucas, a Iaiá, uma das fi guras de outro livro do Carlos - Recordações da Minha Tia. Uma existência rica em histórias de romances clandestinos, nas quais não faltam jagunços e fugas nas noites.

Tenho o prazer de conviver com uma delas, dona Lourdes, quando honrado, pelo amigo e irmão em espírito Sérgio Esser, cunhado do autor, com convites para ir a Manga. Mas quanto à Dalva, fi carei com a frustração de nunca poder conhecê-la, por mais que percorra, em giros pela madrugada, as ruas de Manga, tão bem descritas neste e noutros livros do autor.

Carlos Diamantino é um arguto repórter e como tal está sempre atento aos detalhes, que é onde mora a verdade. Sua vida profi ssional foi quase toda prestando serviços ao Governo do Estado, principalmente cobrindo jornalisticamente as viagens dos governadores. Sua prosa agradável enriquece as tardes doces no casarão mantido pela família às margens do São Francisco. E algumas destas divertidas e ilustrativas conversas, fazem parte deste livro, para deleite de seus leitores. Portanto, relaxe, abra-o e boa viagem.

Carlos PereiraJornalista

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Índice

Sabores do meu tempo_________________________________ 21O pão de queijo de dona Didi___________________________ 27Três fotos, três histórias_________________________________ 31Como se fosse ontem__________________________________ 35Encontros com Antero_________________________________ 41Uma página histórica__________________________________ 45Presenças que fi cam___________________________________ 49Um outro sinal do destino______________________________ 57“Um dedo de prosa”___________________________________ 61Minha Terra, Meu Rio! ________________________________ 69Iáiá Dalva contando sonhos!_____________________________ 72As Gaivotas__________________________________________ 75Porto Vazio__________________________________________ 81A Casa Amarela que virou cor de salmão____________________ 85Sombras dos sobrados__________________________________ 89Minas e os caminhos do carvão___________________________ 95Linhas que se desenrolam do carretel do tempo_______________ 99Palavras, meias palavras...quase palavras...___________________107Brasa dormida_______________________________________ 113Uma cidade grande___________________________________ 117Uma Festa de Recordações______________________________123 Manga, um outro sabor________________________________ 127Carta a um amigo de Montalvânia_______________________ 131Um olhar nas cores do rio______________________________ 134Como o correr das águas_______________________________ 137Nos tablados da escola_________________________________ 141

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Chuva nossa de cada dia_______________________________ 145 Volto a minha terra; volto ao meu rio!_____________________ 149 “Dia dos Gerais”_____________________________________ 153Um encontro de tantos encontros________________________ 157

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Sabores do meu tempo

Volto à cidade de Manga 20 anos depois. Sim, 20 anos se passaram quando comecei a escrever o manuscrito do livro de crônicas, em 1988: Sabor de Manga. Abro as páginas de um novo tempo – um outro tempo, bem diferente dos tempos em que vi, vivi e escrevi aquelas crônicas.

O rio, o Velho Chico, por sorte, se mantém caudaloso, belo, com suas margens verdes - inspirador. Mas não tem mais a navegação. Os vapores se foram. Ficaram os apitos graves na minha memória. Para sempre!

Hoje, nos primeiros anos do século 21, navegam minhas lembranças. Tudo passa, como passam as águas marrons que balançam nas pequenas marés jogadas ao barranco pelas grandes balsas lotadas de carros. Só elas restaram a navegar ao lado das pequenas lanchas a motor que trafegam levando e trazendo passageiros de uma margem a outra do rio.

Também não mais deslizam as canoas tocadas a remos, rompendo as correntezas pelas forças dos músculos dos homens que iam e vinham, num trilhar de águas doces arrastadas e vencidas na travessia do grande rio, a levar os passageiros. Os homens dos remos se foram. Ficaram algumas canoas solitárias com seus pescadores perseverantes na esperança de fi sgar os raros peixes no dançar das águas.

E as páginas abertas do Sabor de Manga se desencontram no meu triste olhar ao se dirigir ao cais do porto. Sobraram apenas nos seus degraus desgastados a nostalgia dos embarques e desembarques dos passageiros. Muitos imigrantes ali desceram sem destino e fi caram para sempre, adotando esta querida terra como sua. Restou um porto sem partidas e chegadas. Algumas lavadeiras ainda se encontram a bater as peças das roupas nas pedras.

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Até mesmo o grande hotel do porto, os casarões gêmeos do Hotel São Benedito ou da Hora não existem mais na Praça do Cais (Raul Soares/Cultura). Sobrou um solitário prédio, milagrosamente restaurado, como marca de uma força invisível que superou as marcas da destruição. Já não mais temos como registrar a mesma foto da capa do livro de crônicas em sua primeira edição no ano de 1999.

Na Rua do Bar (Pres. Getúlio Vargas) não tem mais bares nem as suas grandes lajes de pedra se encontram estendidas. A primeira rua calçada da cidade é, hoje, uma rua comum, sem o glamour dos anos sessenta. Elas que tanto serviram como passarela nas noites de lua cheia ou nas noites alegres da jovem guarda e de passagem obrigatória dos pedestres para apreciarem as chegadas e partidas dos vapores. Os amores paquerados daqueles distantes dias se foram também nos ventos mornos do sertão.

E nas páginas do Sabor de Manga, que são jogadas ao vento, não se encontram mais o casarão da antiga delegacia na subida da antiga ladeira, edifi cado no ano de 1935. Ele se desmoronou como um castelo de areia. A data, antes cravada em sua parede, tão visível aos meus olhos, virou pó.

Nem mesmo o Escritório da Usina construído no ano de 1888 existe mais. Foi simplesmente em um golpe bruto jogado ao chão. Restou no seu lugar um imenso muro que nos cerca de medo, pavor e desprezo. Um quarteirão de fantasmas se formou a sua volta. Uma esquina que nos mete medo.

Mas nem tudo se foi com o tempo. Ainda se vê ao longe, no horizonte ao pôr do Sol, a beleza da arquitetura ovalada do antigo Mercado Municipal restaurado. Palmas, muitas palmas e se ouve o eco ao pé da cruz do Cruzeirinho, que também se encontra fi rme no seu topo da fé, como um milagre, localizado na Rua Coronel Joaquim Lôpo.

E o tempo passa, como passa. Outra grande descoberta no sabor

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desse novo caminhar são os traços panorâmicos do Grupo Escolar Olegário Maciel. Ele que resiste na sua plenitude mesmo cercado de outros prédios mais arrojados no concreto armado. Mesmo espremido, marca um outro tempo. Edifi cam nossa história rumo às novas gerações - por sorte!

E o campo do futebol? Não se joga mais o Eca e a Associação Manguense, o saudoso AMA. Sobrou o descampado de um pedaço de terra batida em frente do velho cemitério. O campo se ergueu em outro lugar, se modernizou. Mas os craques não são os mesmos no trato da bola, na presença da alegria do gol, com seus toques mágicos: Deminha, Alencar, Betu, João Boca Rica, João Pezão, Plínio, Zé Augusto, Zé Marinho, Toninho de Furtuoso, Birão, Gui, Chicão e muitos outros...

Também não se ouve mais o som do saxofone do maestro João Moreira a comandar a Banda de Música - a Filarmônica Arthur Bernardes -, pelas ruas da cidade. Moreira se foi e, ao partir para sempre, deixou nossa querida Manga com um sabor diferente, não doce, um sabor de saudade de um tempo que não volta mais. Uma Manga quase muda, sem os sons do outrora.

Nesse reabrir das folhas do Sabor de Manga vê-se refl etido nas páginas escritas entre letras e fotos a memória de nossa terra e nossa gente esparramada às margens do Velho Chico.

Mas precisamos fi car alertas para não termos uma cidade sem memória nas suas edifi cações, apenas registros escritos ou fotografados em papéis, em quadros nas paredes - sem as referências da história concreta como testemunha de um tempo.

É preciso cultuar a memória da nossa cidade, não se pode renegar o passado e, simplesmente, jogá-lo na lata do lixo.

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O porto não é mais o mesmo, como nos anos sessenta,

mas o Velho Chico continua belo e inspirador

O cais na primeira metade do século 20, com suas grandes escadas de pedra que dava aceso

até Praça Raul Soares, foi modifi cado

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O tempo passa e os sobrados desabam, assim como aconteceu com o casarão da subida da

ladeira, frente ao Fórum

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O pão de queijo de dona Didi

Um trecho literário, ou até mesmo uma palavra, nasce como uma semente, muitas vezes sem sabermos como, ela germina e cresce. Assim nasceu e germinou o título deste livro de crônicas: Manga, um novo sabor!

Foi a partir do título – que quase sempre é a última decisão do ato de se criar uma obra literária que surgiram aqui, em primeiro lugar, cravou-se nas minhas ideias, bem antes de serem escritas, as novas crônicas.

Passei, então, a garimpar temas, formas, situações, momentos, estórias e histórias, ouvir mais, fi car atentos aos atos do destino desses novos tempos que vivo, dez anos depois da edição do livro de crônicas Sabor de Manga.

Foi assim que chegou até minhas mãos, que se colou no meu olhar, com emoção, a página especial do jornal Estado de Minas – Mineiridades, de 26 outubro de 2008, com a receita do autêntico pão de queijo mineiro da conterrânea manguense dona Didi. “Que de cor e salteado” ditou os segredos de como fazer o pão de queijo com a receita trazida da sua terra natal – Manga.

E a dona Didi, a Maria do Livramento Lima Pastor, 78 anos, nascida e criada em Manga, vivendo há 35 anos em Belo Horizonte, matriarca de uma família de sete fi lhos, 15 netos e um bisneto, apresenta os segredos culinários do mais saboroso pão de queijo. Assim ela passou a receita: “Usar polvilho doce de qualidade, de preferência da roça. Os ovos também devem ser caipiras e o queijo canastra, curado ou meia cura, precisa ser ralado bem fi no, para a massa fi car pronta (...)”

Fujo das letras do jornal e passo a olhar as fotos de dona Didi,

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ali estampadas, com seu sorriso cativante. Nas fotos coloridas seus movimentos, seu olhar carinhoso, sua dedicação, sua precisão, com as palavras e gestos que nos emocionam.

Ela mostra à repórter os pães de queijo já prontos e diz: “Sirva bem quente, ao gosto mineiro, com um cafezinho coado na

hora. É bom demais da conta!”Como fi caram presentes aquelas palavras. Como voltei à minha rua

na cidade de Manga, rua também que morava dona Didi, seu esposo Pedro Pastor, os fi lhos e fi lhas amigos - Amarante, Gertrudes, a Tudinha, Pedro, o Doca, Dominiciano, o Chano, e a Maria Alice. Como voltei a sentir o cheiro daqueles dias felizes da minha infância. Nesse cheiro também se encontravam os sabores do pão de queijo de dona Didi.

Volto à página “Mineiridades” e leio mais profundamente as informações da conterrânea. Orgulhosa sob o olhar de admiração das fi lhas Gertrudes e Maria Alice, e da neta Laura, dona Didi descreve à repórter do jornal, ao servir uma fornada de pão de queijo:

“Em qualquer residência ele está sempre presente. É uma delícia. E é bom lembrar que, quanto mais quente, melhor para consumir, Em Manga, assávamos em enormes fornos a lenha, no quintal. O sabor era outro”.

Sim, dona Didi, são os sabores do nosso tempo que não nos deixam nunca.

Tenho vivas as imagens na minha lembrança daquela casa da família Pastor, com seu estilo colonial, bem na esquina, com suas oito janelas abertas aos ventos da beira do rio. Do outro lado, o escritório do empresário Pedro Pastor, localizado no mais antigo prédio da cidade, edifi cado em 1888, com toda sua pompa, sua história.

Como tenho presentes esses sabores do passado, que hoje com a receita do pão de queijo de dona Didi se revigoram, se entrelaçam como em sonhos à beira rio.

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Três fotos, três histórias

No meu olhar, três fotos perfi ladas na vertical que me fazem mergulhar na história da minha família. Como em todo mergulho as surpresas se afl oram. Fico retido, a segurar o fôlego nesse mergulho profundo. Não posso me afogar nas lembranças.

Vou olhando fi xamente uma a uma, com todas as suas cores. Começo pela primeira, em que se encontra o sobrinho André, com seus 13 anos de idade. Ao seu lado, minha tia Lourdes. Pelas aparências, com 75 anos - bem saudável e feliz!

Sobre a mesa da copa da sua casa, na cidade de Manga, uma gamela de madeira talhada a mão em uma única peça. Dentro, a massa bruta amarelada do pão de queijo. Sob o olhar prazenteiro do sobrinho, como a passar em detalhes a receita, assim como uma lição de vida, minha tia tem em suas mãos os pedaços da massa que se envolvem no malabarismo, como de uma artesã a erguer a sua arte.

Em seguida, nesse ritual do alimento nobre, os pedaços da massa são colocados na bandeja de alumínio. As massas arredondadas são perfi ladas sobre a manteiga derretida. Finalmente são levados ao forno do fogão que já se encontra aquecido à espera dos pães.

No sorriso meigo da minha tia se encontram as respostas prontas ao sobrinho.

Será que ele aprendeu a fazer os saborosos pães de queijo, genuinamente mineiros?

Não sei. Mas estou seguro de que ainda quentes os pães serão colocados carinhosamente em sacos plásticos separados com os nomes, lacrados na parte de fora, destinados à sua irmã Ostênia, a sobrinha Sandra e aos sobrinhos Chico e Barão - todos morando em Belo Horizonte.

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Os pães de queijo são desses sabores da terra natal que não me deixam nunca. Tenho no apreciar dessa foto seu sabor!

Passo para a segunda foto. Essa eu tenho bem latente. Resultado dos meus encontros quando escrevia o manuscrito Os Tabaréus na Cidade Grande. Nessa espreguiçadeira de listas coloridas minha tia se sentia livre, forte, empreendedora. Ela me ditava palavra por palavra com seu olhar pequeno e penetrante.

Jogava seu vestido entre as pernas, naquele gesto ousado, descontraído, sem perder a seriedade das palavras, sem perder a expressão da leveza do sorriso. A espreguiçadeira, uma lembrança deixada na varanda da casa da minha tia, era para ela o mais seguro e confortável trono para suas conversas sob o vento morno jogado nos seus jardins.

Na última foto se encontra o ioiô Paulo em conversa com meu irmão caçula Chico. O local não poderia ser outro: bem em frente ao seu curral fi ncado na localidade da Boa Vista.

Ali, bem ali, nos seus caminhos de todos os dias, das suas terras, das suas plantações, das suas criações... da sua vida.

Nesses caminhos, nesse caminhar, o velho Paulo viveu 102 anos. Uma foto que é a história da sua querida terra – a cidade de Manga com todas as suas cores.

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Como se fosse ontem

Chego a Montes Claros numa noite de quarta-feira, mês de junho, temperatura amena, e me hospedo em um hotel, em frente da Catedral.

Abro a janela do pequeno quarto e fi co estonteado com beleza das colunas góticas, daquela mesma igreja que tanto admirei, tanto rezei, que tanto acompanhou meus olhares e minhas preces no distante ano de 1969.

Naquela mesma praça, agora mais de pedra, sem jardins, morei numa casa colonial durante um ano. Uma casa que não existe mais, mas tenho viva aquela placa de madeira com letras coloridas pendurada por uma corrente enferrujada no canto do telhado: Pensão Paulo VI. Tudo como se fosse ontem – pensei!

Embarco na rodoviária no ônibus da Transnorte e vou pela estrada que também viajei há 40. As cidades perfi lam e vão acendendo as minhas lembranças com suas luzes: Lontra e Mirabela - com suas carnes-de-sol estendidas -, Pedra de Maria da Cruz, que corre o Velho Chico, sinalizando um novo caminho, mas que hoje corre lentamente debaixo de uma ponte de concreto. Não há mais o saudosismo das balsas, que metia medo com suas cargas de ferro.

Chego a Januária e busco os caminhos dos ontens e eu não encontroos caminhos. Até mesmo o grande rio se distanciou do porto da cidade. A terra invadiu o porto.

Mas tenho outros caminhos que se iluminam como se não houvesse passado tantos ontens. Hoje, não temos mais a terra batida, os atoleiros, os córregos de águas límpidas. Temos, sim, o asfalto que corta aqueles

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caminhos, com os mesmos nomes: Fabião, sem os seus córregos abertos, mas ainda com os grandes pés de mangueiras esparramados à beira da estrada, até que me reencontro nas curvas com o lugarejo de Riacho da Cruz.

Como olhei aquele mundo! Como me envolvi com as águas que rasgam as terras como milagres, nascendo dos mananciais ainda intocáveis. De repente, vejo o rio apontar nos caminhos, assim que chego à rodoviária da cidade de Itacarambi: o São Francisco tão belo e inspirador nos seus horizontes de águas correntes.

E o coração acelera, repica mais forte, como a arremedar os pulos e sons nervosos do velho ônibus sobre a estrada de terra rumo à cidade de São João das Missões. Como parecia com a jardineira do Nelson, dos anos sessenta. Os sacolejos eram os mesmo na estrada de terra esburacada.

Respiro fundo ao ver a grande igreja de paredes brancas ainda rodeadas de bandeirolas coloridas estendidas sobre cordões. Olho para o céu que se movimenta com seu espetáculo de estrelas e vejo, no meu olhar de ontem, o estandarte de São João fi ncado no mastro. Faço o Nome do Pai e lamento só ter passado ali três dias depois da mais tradicional festa do sertão mineiro que homenageia o padroeiro da cidade São João. Procuro ouvir os sons dos acordeões, dos pandeiros, dos atabaques, dos cantadores sertanejos...

As estrelas agora me acompanham. Aliás, todo um céu me acompanha até minha cidade natal, Manga. E vejo da janela empoeirada as crianças que correm, brincando de pegador, outras pulando corda, cantarolando em roda, chutando a bola sobre a terra seca.

Assim, como se fosse ontem, olho as portas abertas das casas, sem trancas, com as cadeiras estendidas na porta, e o prosear da noite, como se não existisse o amanhã...

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As cadeiras na porta da casa para um “dedo de prosa” são costumes das famílias manguenses

como antigamente. Na Foto: Minha mãe, dona Ostênia e Telma, sogra do mano Chico

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A BR-135, no ano de 2009, entre os municípios de Manga e São João das Missões (ponte)

continua estrada de terra, com muita poeira, assim como na foto dos anos 60

Igreja de São João localizada na praça principal da cidade de Missões. Aqui se realiza uma das

mais tradicionais festas juninas do Estado de Minas Gerais

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Cais do portoF. C. Lopo

O Rio São Francisco continua, como antes, inspirador

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Encontros com Antero

Hoje, faço uma viagem no tempo. No tempo da minha infância. E nessa viagem tenho a companhia de um amigo da família: o farmacêutico Antero. Ele é o mirante de mais de meio século da minha rua na cidade de Manga.

Abro a janela da minha casa à beira do Velho Chico e vejo o vizinho (que testemunhou o meu nascer), nos mesmos passos, nos mesmos gestos, nos mesmos olhares nas barrancas do grande rio como nos meus tempos de criança, de adolescência e, agora, adulto.

Volto a ser o menino peralta a acompanhá-lo. O vizinho de parede-meia, do quintal, das janelas e portas abertas para as prosas.

Ele olha, hoje, as árvores da nossa rua com uma presteza, como a olhar seus fi lhos. Umas são grandes árvores que já estendem sombra sobre a terra quente, outras, pequenas ou médias, que exigem a dedicação daquele mestre para crescerem. O verde vai se formando em uma imensa alameda para felicidade daquele homem simples, como sua própria existência, sempre marcada pela fé, pela perseverança, e o amor à sua gente, à sua terra e sua dedicação completa para com sua querida família.

Com seus braços cruzados para trás, com suas mãos entrelaçadas entre veias verdes irrigadas, seu Antero é o tempo que não quer passar. Porque não precisa passar! Ele é o tempo latente da nossa história. Da história manguense.

Ele continua a descer a grande Rua Coronel Joaquim Lôpo até a esquina do Beco da Usina, onde se localizava o antigo casarão secular, em frente ao Cruzeirinho. Seus passos cadenciados se envolvem com os raios do sol do sertão a iluminar seu caminho até a farmácia da família,

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bem próximo ao Mercado Municipal. Lembro-me, agora, nessa curta viagem do pensar, do nosso conversar

sem pressa, das duas portas abertas da farmácia na esquina da Rua do Bar, em frente da casa da professora Maria Pereira. Ouço meus gritos de dor e sinto a delicadeza e a precisão do tocar das mãos salvadoras do médico-farmacêutico. As mesmas mãos que hoje aprecio na segurança dos seus passos – mesmo passados 40, 50 anos.

Uma rotina aumenta o saudosismo nos nossos encontros à beira do rio, duas ou até três vezes ao ano. De longe, não muito longe, se vê a balsa sempre carregada de carros. Alguns perdidos pescadores estendem a rede ao entardecer e uma ou outra canoa desliza como um sonho no meio do rio. Um marreco voa rumo ao pôr do sol. Seu Antero vai alinhavando cada momento do dia, como um poeta a alinhavar versos. Eu procuro decorá-los, retê-los para sempre na minha memória.

No seu olhar, no seu falar, muitas vezes lento, sob o peso dos anos, a sua paixão por aquele mundo é desenhada nas cores fortes com o pincel da solidariedade amiga, da fraternidade, da fé, do amor à vida. É nesses quadros de nossos encontros no espelhar do rio de mil cores ao entardecer que também vou moldando meus caminhos.

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Rua Coronel Joaquim Lôpo, ano 1948, com as residências das famílias do farmacêutico Antero Chaves, do

seu Zé Vieira e do comerciante Francisco Diamantino Neto (casa à direita), ao fundo, o prédio do “Escritório da

Usina”, antiga casa do coronel Lôpo, construída em 13 de março de 1888

Antero Chaves atento a leitura da dedicatória do Carlos Diamantino, durante lançamento do livro “Os

Tabaréus na Cidade Grande, na “Casa dos Diamantinos, no dia 28 de dezembro de 2007, em Manga

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Uma página histórica

Os sinais do destino vão deixando suas marcas nos caminhos da nossa existência. Assim, registro no passar dos tempos um momento histórico na minha vida, ao abrir um livro de honra, no gabinete do prefeito de Manga, o Quinquinha, momentos antes da visita do vice-governador do Estado de Minas Gerais, Antonio Augusto Junho Anastasia, numa agenda ofi cial em solenidade no salão nobre da Câmara Municipal.

Nas letras desenhadas, nas páginas amareladas do tempo, abriu-se um registro na história daquela cidade - um livro -, desconhecido dos manguenses, dos bancos escolares, dos doutores, dos proseadores, de toda a sua gente. Esse livro, com as características daqueles pergaminhos do início do século 20, era mais um documento nascido nas inesquecíveis viagens dos vapores pelo rio São Francisco, que por mais de um século ancoraram no porto manguense entre os anos de 1870 a 1980.

Num desse vapores, autoridades importantes de Minas e do Brasil deixaram suas caligrafi as naquele retangular livro de páginas frágeis, que por milagre se encontrava intacto, preservado, desde o ano de 1936. Uma caneta de bico de pena, tinta preta, acredita-se, registrou a presença dessas autoridades políticas que desembarcaram no porto dessa meiga e pequena cidade. Um vapor que aportou naquela terra do extremo Norte de Minas.

Algumas daquelas personagens que participaram da solenidade na Prefeitura Municipal, naquele distante ano, possivelmente apenas por algumas horas, pois, certamente, partiriam rumo às cidades de Juazeiro ou Pirapora, já eram ou se tornaram os mais renomados políticos brasileiros. Entre eles, ali se encontrava, Juscelino Kubitschek (prefeito de Belo Horizonte no período de 1940 a 1945; governador do Estado

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de 1951 a 1955 e presidente da República de 1955 a 1961- o construtor de Brasília, Distrito Federal).

Também Benedito Valadares (governador de Minas Gerais de 1933 a 1945), Washington Luís (presidente do Brasil de 1926 a 1930), Otávio Negrão de Lima (prefeito de Belo Horizonte por dois mandatos. O primeiro de 1935 a 1938 e o segundo mandato no período de 1947 a 1951) e, ainda, Carlos Luz (presidente interino da República de 8 a 11 de novembro do ano de 1955, deste modo, tornando-se o presidente do Brasil que ocupou a cadeira da presidência por menos tempo).

Políticos que no dia 7 de dezembro de 1936 viabilizaram, mesmo em viagem de vapor pelo Velho Chico, uma agenda ofi cial com o prefeito na época, Domiciano Pastor, na sede da Prefeitura de Manga. Nas letras da mensagem de uma caligrafi a fi na e delicada, o elogio à “hospitalidade e ao civismo do povo manguense, na primeira cidade que instala à margem do S. Francisco uma usina de benefi ciar algodão e arroz”.

A minha ansiedade com a chegada do vice-governador do Estado se somou à emoção daquele momento inédito de minha passagem por Manga. Os atônitos olhares das pessoas que lotavam o gabinete do prefeito me questionavam, admirados e perplexos com meu silêncio, com aquele livro preso às minhas mãos. Fiz um mergulho profundo na história, como a encontrar um peixe raro, um surubim de uns 30 quilos, nas águas correntes do grande rio. Ali, naquelas letras perfi ladas, as assinaturas de homens que marcaram a história do meu país. Eles, para meu orgulho, também pisaram naquele porto, subiram aqueles degraus de pedras – o primeiro porto que cantei, que brinquei, que nadei, que sorri. O primeiro porto que parti!

Naqueles segundos que antecipavam a chegada do vice-governador, reencontrei-me nas lembranças, como foram as primeiras horas da noite anterior, ao reaver a leveza das águas do rio São Francisco, navegando no meu olhar. O rio, naquela noite, se vestia de prata com as vestes da

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lua. No alto do barranco, avistei a minha casa, o meu primeiro mundo, entre os ramos verdes de uma grande árvore.

Um reencontrar que hoje, ao escrever esta crônica, se explica: aquele livro precisava ser reaberto para registrar a presença de uma fi gura política que nasce com os sinais do nosso tempo - o vice-governador de Minas, Antonio Anastasia.

Reviver aqueles momentos é edifi car o futuro, a partir do passado da minha terra. A casa da minha tia Lourdes, localizada na praça, logo em frente da Prefeitura Municipal – local do desembarque -, era o ponto mais estratégico para acompanhar todo o movimento da cidade e medir as emoções. Ouvir o pipocar dos foguetes; o fi xar das faixas de boas vindas entre as árvores; o ir e vir dos transeuntes, principalmente, políticos e lideranças que se aglomeravam com o passar dos minutos com suas roupas de domingo.

Todo aquele movimento festivo, alegre, da cidade e da sua gente, tinha um calor efervescente, que me revigorava, ativando as minhas energias e o sangue nas artérias. Até aquelas bolas coloridas de soprar, coladas nos carros, tinham um sabor de festa, um despertar de um porvir.

A minha tia Lourdes (mais uma vez ao meu lado) testemunhava mais esse acontecimento histórico, como dezenas de outros em seus 85 anos, todos eles vividos na cidade de Manga.

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Presenças que fi cam

A história é construída de fatos, ideias, lutas, esperanças, desilusões, sonhos e, quase sempre, só com passar dos tempos é que vêm à luz seus rastros, seus sons, suas cores, suas formas e seus nomes. Assim apareceu o “Livro de Honra”, das prateleiras empoeiradas de alguma sala da repartição pública, após 75 anos do seu surgimento na primeira metade do século 20.

Mas a história também tem suas retas, curvas, seus aclives e seus declives, muitas vezes nos assusta, nos enobrece, nos emociona, nos engrandece, como aconteceu comigo, esse manguense da gema, que após o cumprimento caloroso do prefeito Quinquinha recebe a incumbência memorável: redigir a mensagem de manifestação de apreço e hospitalidade da população ao vice-governador Antonio Anastasia, no mesmo “Livro de Honra” em que políticos renomados, no ano de 1936, assinaram. Data em que o futuro presidente da República, Juscelino Kubitschek, o JK, desembarcou no porto da cidade de Manga.

Não me contive de emoção. Nada fácil segurar as lágrimas. Recuei um pouco até o centro da grande praça. Após recuperar o fôlego, fui surpreendido com o secretário do prefeito à minha procura, para que eu me dirigisse até o gabinete. Assim que cheguei, envolvido pelo movimento das pessoas, ainda tive tempo de lhe entregar um exemplar do livro de minha autoria, o Sabor de Manga. Autografei-o com letras trêmulas e comecei a rascunhar a mensagem de boas-vindas ao vice-governador do Estado.

A minha letra era inelegível. Solicitei a presença de uma secretária. Naquele momento, a tensão aumentava com o aproximar da comitiva governamental, que já se deslocava na estrada de terra entre os municípios

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de São João das Missões e Manga. Os minutos eram engolidos pelos puxões históricos daquele tempo.

Finalmente, a mensagem fi cou pronta. A secretária leu em voz alta, como num ensaio de uma peça cênica, enfatizando a presença marcante na história manguense, no ano de 1936, de Juscelino Kubitschek, então chefe da Casa Civil do governador de Minas, Benedito Valadares. JK, que cinqüenta anos depois se tornou um dos maiores estadistas da América Latina.

“Hoje - assinala a mensagem - dia 3 de julho de 2009, o vice-governador de Minas, Antonio Augusto Junho Anastasia, que em 2010 assumirá o Palácio da Liberdade, com a desincompatibilização do então governador Aécio Neves, que deixará o Governo para se candidatar à presidência da República ou ao Senado. No poder executivo municipal, o prefeito Joaquim de Oliveira Sá Filho, o Quinquinha (...)”

Ao fi nalizar a leitura sintetizada para oferecer espaço para a assinatura dos presentes na cerimônia, os foguetes pipocavam pelas ruas da cidade com maior intensidade. Deixei mineiramente o gabinete ao lado do prefeito. Naquele momento, desembarcava diante da sede da prefeitura o vice-governador, após uma viagem cansativa pela estrada de terra batida, com seus torrões de pedras - a rodovia federal BR-135 -, nos seus 50 quilômetros entre os municípios de Itacarambi, São João das Missões e Manga.

Ao abraçar Antonio Anastasia, assim como nos nossos encontros nas agendas do Palácio da Liberdade, durante quase sete anos, ele disse com uma sinceridade ímpar:

“Não medi esforços, caro Diamantino, em chegar a essa querida e hospitaleira terra. Sua terra - agora também minha!”

Ainda não sei como encontrei palavras para saudá-lo, agradecê-lo. Nada fácil também segurar a informação de que ele assinaria, naquela terra do sertão mineiro, um livro histórico. Mas, me contive. Nada

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adiantei. Disse-lhe: “Sinta-se em casa, governador e seja bem-vindo!” Subimos as escadas de pedra até o segundo andar da sede da prefeitura,

ao lado do prefeito anfi trião, do vice-prefeito Adalberto Pereira, de cerca de dez prefeitos da região Norte, três deputados, secretários municipais, vereadores e dezenas de manguenses até o salão nobre da Câmara.

Acompanhar aquela sessão solene, ouvir os pronunciamentos, assistir às assinaturas dos convênios e protocolos administrativos entre o Estado e o Município, que a partir daquele instante contemplava a população manguense com indispensáveis obras, foram os minutos mais contidos da minha vida pública e como fi lho daquela terra.

No meu olhar, desenhava-se uma cidade com meus conterrâneos. Ali, presentes naquele salão solene, tantas faces, das mais antigas, contemporâneas, com todos os sabores dos seus tempos. Na minha memória, o navegar numa cidade distante, de miniatura, construída com os cacos de telhas no quintal da minha infância no longínquo ano de 1966.

Como se movimentavam aquelas imagens retidas pelos anos com todas as suas cores e sons. Como resplandecia nas minhas lembranças todo aquele cenário - agora concreto - como num espelho a refl etir os mais felizes dias da minha vida naquelas paragens. Momentos inesquecíveis da infância que se entrelaçavam, sob o olhar dos conterrâneos, com os daquele momento, que, também, não irão me deixar nunca, assim como aquelas assinaturas no “Livro de Honra”, que se enlaçavam com a passagem dos homens que marcaram nossa história, do agora e do outrora.

Anastasia foi reeleito governador em 3 de outubro de 2010. Tomou posse em 1º de janeiro de 2011, no Palácio da Liberdade.

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Mensagem assinada pelos políticos ao desembarcarem em Manga, entre eles, o governador Benedito

Valadares e o futuro presidente do Brasil, Juselino Kubitschek, no ano de 1936.

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Durante a solenidade na sede da Câmara Municipal, Antonio Anastasia e o prefeito de

Manga, Quinquinha, assinam o Livro de Honra.

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O vice-gorvenador , Antonio Anastasia, recebe os cumprimentos em Manga

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Um outro sinal do destino

Mas o destino ainda reservava um outro sinal na página da história da minha vida naquela inesquecível viagem no mês de julho, quando o vice-governador atravessa a praça - em minha companhia - e chega até a casa da minha tia Lourdes, que desde as primeiras horas da manhã já se encontrava vestida com sua roupa de festa, cabelos de corte curto, penteados, brincos e anéis brilhantes. Assim que empurrei com difi culdade aquele pesado portão de ferro que protegia a varanda do jardim da rua, o abraço caloroso do vice-governador em minha tia, sob o meu olhar, prendeu-me a respiração.

Um cumprimento que levou às lágrimas aquela mulher genuinamente manguense, barranqueira da gema, que marcou para sempre como um acontecimento memorável na primeira década do século 21 na querida cidade.

“Fotos, fotos!”

Os fl ashs da máquina fotográfi ca registravam mais um momento histórico naquele dia, não só para toda a família Alkmim/Diamantino, mas,simbolicamente, para todas as famílias manguense, representadas pela octogenária dona Lourdes Alkmim – a primeira coletora estadual, mulher, nos anos 50, do século 20, em Minas Gerais, no distante tempo dos coronéis.

Falaram daqueles tempos, assim como dos tempos do agora. Tia Lourdes, com sua vivacidade no olhar, na plenitude da consciência, como se os anos passados fossem apenas história, registrava sua mensagem ao autografar o livro da sua vida, o Recordações da Minha

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Tia, presenteando-o ao vice-governador.Ao deixar a varanda da casa, apreciei o comboio de veículos se

distanciando com Antonio Anastasia, rumo a BR-135. Ele deixava as ruas da cidade de Manga pela estrada de terra, com seus buracos e poeira, sob o sol efervescente do sertão mineiro. No meu pensar, o distante ano de 1936, com as visões imaginárias de um vapor que zarpou do porto manguense pelas águas do Velho Chico. A bordo, as autoridades maiores deixaram também seu olhar e suas lembranças nesta cidade barranqueira.

Vapores que não mais ancoram no porto. JK, Benedito Valadares, Carlos Luz, assim como Anastasia, marcaram a história desta terra com suas assinaturas no “Livro de Honra”. Nesse livro à aprova de bala, à prova de fogo, de furto e do esquecimento.

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O vice-governador, Antonio Anastasia e o prefeito Quinquinha recebem o livro autografado da dona Lourdes

Alkmim, em sua casa na Praça da Prefeitura

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“Um dedo de prosa”

Em outra passagem por minha cidade natal, por mais alguns dias, apreciei o navegar do rio em suas águas mansas do período da vazante, estação do inverno. Proseei com os conterrâneos, como naquele café da tarde com os amigos Taquinho Bandeira e Conceição; as gargalhadas do Zé de Nilsa, durante o almoço na casa da minha tia, a preparar um frango com quiabo e angu, e da conversa descontraída com o primo Edílson Saruga, sobre sua defesa em tribunal de um criminoso do município de Jaíba, como advogado da Defensoria Pública. Segundo ele, para meu espanto, o assassino comeu, como um canibal, “o coração e o fígado da vítima”. Uma revelação enervante que me deixou temeroso.

Saruga falava sobre a tragédia, sem alterar seu bom humor, como um advogado criminal a cumprir uma missão:

“Tenho fotos e posso mostrar... são terríveis!”.

Foram as últimas palavras que ouvi. Não sei se me despedi do primo, mas lembro que atravessei a Praça Costa e Silva em passos largos em direção à padaria. Lá, por sorte, encontrei um café fumegante, acompanhado de um pão com manteiga. A prosa do Saruga me fez lembrar as do tio Philemon. Mas eram bem menos macabra.

Também não posso deixar de relatar a cobrança de aumento salarial das professoras Nildinha e Socorro, da Clara, durante encontro com o vice-governador. Além da costumeira conversa amiga de dona Guiomar e seu Antero sobre o rio, sobre a nossa rua e suas árvores, sobre as nossas famílias; os cumprimentos ligeiros do primo Serginho, do vizinho Remington, do comerciante Bruno, do amigo Hamilton

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Costa, com sua confortável barriga, ao falar das intermináveis raízes das famílias manguenses; do seu irmão Roberto, sempre atencioso entre livros e boleros; dos conterrâneos Raimundão, do Joaquim Mendonça, com sua política comunitária; Toninho Furtuoso, o da Copasa, sobre os inesquecíveis jogos de futebol dos anos sessenta. Ainda, do caminhoneiro Renero, que se dizia aliviado em não mais transportar carvão do Cerrado, até a boca das caldeiras das siderúrgicas de ferro gusa, localizadas nas cidades da grande Belo Horizonte.

Fiquei mais esperançoso, ao saber que não seguiriam naqueles sacos encardidos, estufando as carrocerias dos caminhões, os frutos do Cerrado, como os tamarindos, os jenipapos, os pequis, os umbus, assim como as preás, as codornas, os micos, os jacus, os tatus, os carcarás - pelo menos, não no caminhão do Renero.

Recordo-me do prosear com Ari, do Hotel das Marianas, com sua barriga avantajada, que num impulso poético declama, para minha surpresa, a Tampa do Estojo - minha primeira poesia rabiscada na sala de aula do Olegário Maciel, na década de sessenta. O encontro com o octogenário Afonso Ribeiro, na Praça da Prefeitura, que me falou com entusiasmo dos tempos da fertilidade das terras dos pandeiros, o pantanal do sertão no Município de Januária, nos anos 50, quando “se plantava arroz em abundância, como nunca se viu nessas paragens.” dizia Afonso, esbanjando saúde e lucidez, com seus mais de 80 anos.

Ah!, muitos encontros que fi cam, muitas prosas que marcam meus caminhos, como a visita à casa do Paulo Pastor, fi lho do Bembem. Uma casa cercada por tijolos na esquina da Rua Olegário Maciel com a Praça Melo Viana. Adentrei pelo portão de ferro – o mesmo de cinqüenta anos atrás. Ao cumprimentar o fi lho caçula do Bembem, emocionei-me com sua lucidez, com seu entusiasmo, principalmente ao falar de computação, como um mestre, citando livros de informática, entre eles, o best Seller, do escritor Dan Brown, Fortaleza Digital. “Este é meu

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livro, hoje, de cabeceira, meu caro Carlos”, apresentou-me Pastor. Como foi afável seu cafezinho morno, suas pitadas de cigarro,

nos seus 70 anos de idade, com as brancas fumaças sendo jogadas nas dependências daquela imensa casa, que fez história política no Município de Manga, na primeira metade do século 20. Ali, muitas importantes decisões foram tomadas e voltadas ao destino da nossa terra e da nossa gente, pelos caciques políticos da época, principalmente do PSD, sob a batuta de João Pereira, Bembem, Anfrísio Lima, entre outros.

A casa não era a mesma, assim como os móveis não eram os mesmos. Não encontrei ali a cristaleira de mogno envernizado, os guarda-louças com as peças de porcelana, as cômodas, os criados e as adegas, com os mais valiosos vinhos da estação da época. Naquela casa onde morava o solitário Paulo Pastor -, com suas paredes internas de arquitetura moderna - havia móveis simples, mas de madeira bem talhada, com design contemporâneo. Em cima da grande mesa de madeira de lei, um moderno notebook.

Não falamos de política e nem das coisas tristes do passado, mas da nossa cidade naquela época e, até mesmo, das algazarras até altas horas que aprontavam os jovens nas noites na Praça Mello Viana. “Sabe-se lá se drogados, pois o som é ensurdecedor”, alerta Pastor, ao justifi car todas as janelas da casa - que dão frente para a praça - vedadas com tijolos empilhados. Janelas que não tinham mais as madeiras de lei como antigamente. Os tijolos descaracterizavam toda a fachada centenária, como se fosse uma fortaleza. Uma casa que testemunhou a história do município se escondia, agora, entre tijolos de alvenaria.

No silêncio das grandes salas, Paulo Pastor revelava-me, com um sorriso matreiro, o local em que ele fazia seu cooper matinal.

“Não preciso mais sair para caminhar pelas ruas, aqui mesmo nestas áreas da casa faço meus exercícios físicos diários - inclusive o cooper”.

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Contou Pastor, após amassar mais uma sobra de seu cigarro no cinzeiro de louça branca, estrategicamente localizado ao lado do segundo computador no canto da sala. Antes de nos despedirmos, falou-me com autoridade de um professor de informática sobre a elaboração de uma tese na área de computação. Na sua mineiridade, não se aprofundou no tema.

Foram nossas últimas palavras. Nosso último encontro.Deixei aquela casa e aquele conterrâneo, com certo saudosismo. Mas antes, olhei pelas janelas abertas da sala onde proseávamos. Busquei o jardim que se encontrava abandonado, seco, sem fl or. Um jardim que precisava ser irrigado...

Tantos outros encontros aconteceram em minha passagem em Manga. Trago-os na memória como uma bagagem valiosa, que precisa ser preservada – muitas a sete chaves.

Assim foi o prosear com o Bertoldo, do Clodoaldo Ribeiro, que me falou com alegria sobre a leitura do livro Sabor de Manga. Hoje, o Bertoldo adulto, voltando nas lembranças das letras, seus tempos de criança na Rua do Bar, onde moravam seus pais. Também Cremilda, sempre assentada em sua cadeira à porta, ao anoitecer, na Rua do Tomba (7 de Setembro), a comentar os capítulos do livro Os Tabaréus na Cidade Grande.

Não posso esquecer dos encontros na festa junina da Escola Olegário Maciel. Ali, conversei com o vereador Leo Pinheiro, com os deputados Virgílio Guimarães e Paulo Guedes, os pais do amigo Cleiton, Otílio e Áurea, com Maria do Carmo, esposa do Saruga, e com a irmã do amigo Motinha, Fátima Mota, que narrou com entusiasmo seus investimentos no setor imobiliário na cidade. Manga começava a se verticalizar.

Como me senti feliz naquela minha primeira Escola, com seu moderno prédio sob o estrelado céu do sertão. Lembrei-me dos felizes dias da infância ao ver as crianças com seus chapéus de palha, suas calças

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remendadas, suas botas de orelha, todos a dançar e cantar as músicas do São João na roça. Aquela mesma Escola das minhas primeiras letras, que mantinha sua fachada intacta, como nos meus tempos de aluno, com seus degraus de pedra que dão acesso ao grande portão oval.

Também participei do tradicional almoço na casa do compadre Paulinho. Aquele peixe com pirão, acompanhado de arroz, temperado pela comadre Fátima, e o doce amarelado do buriti. Na festiva mesa, além do compadre Paulinho e da comadre Fátima, tia Lourdes, Serafi m, o afi lhado Igor, seu irmão Ítalo, e sua vovó Maria. Ainda tenho comigo os sabores – e que sabores!

Prosas, ou como se diz no sertão mineiro, jogar conversa fora. Assim debruço nas letras como a mergulhar profundamente nos sinais da natureza latente naqueles caminhos, naqueles sotaques, naqueles olhares barranqueiros daquelas águas correntes.

Redescubro, através dos sinais do destino, que tudo passa, assim como as águas do Velho Chico, caudaloso e inspirador.

Ah! Mas como fi cam a lembrança e a história – Sim! Só nos resta conservá-las, como o Livro de Honra.

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Casa do Coronel Bembem (Domiciano Pastor - prefeito de Manga na década de 30) na Praça Mello

Viana, esquina com a Rua Olegário Maciel – na primeira metade do Século XX -, durante as comemorações do

aniversário da cidade. Na foto, Bembem, ao lado do futuro prefeito de Manga (1960) e fundador do município

de Motalvânia, Antônio Montalvão (terno branco)

Com a fachada restaurada no ano de 2002

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Portão de ferro da entrada principal da casa do cel. Bembem na Rua Olegário Maciel no ano de 2009

Fachada da casa descaracterizada com suas janelas lacradas com tijolos no mês de julho do ano de 2009

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Minha Terra, Meu Rio!

Lá pras bandas do sertão mineiro, onde o Sol parece querer pousar na terra, em que o forte calor de ouro ferve a alma...

Naquele distante mundo, onde as águas desmaiam em sonhos, correm milhões de vidas, milhões de saídas.

Lá na terra seca que espera sem desesperar os pingos caírem do céu;Lá onde o céu se aproxima da terra com suas estrelas a beijar o

chão;Lá nas fl ores roxas, amarelas, brancas, retorcidas nos ventos;Lá... eu nasci!Nos caminhos dessa terra, nos caminhos desse rio, descubro a cada

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dia meus caminhos.E lá vou eu à procura das raízes molhadas.E a saudade dos tempos molha também a face.Nos pés descalços a fi rmeza do partir, a certeza do chegar.No deslizar das águas rumo ao longínquo martambém navegam meus sonhos no brilho do olhar.Solto todo meu corpo e me deixo mergulhar na profundeza da

alma.Levanto as mãos ao céu imensamente azul e contando estrelas navego

na lua que nasce prateada entre as águas.Doce fruto da Manga que me alimenta no seu sabor de querer mais

envolvido em grande semente.São Francisco, que me protege no passado, futuro e presente.

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Iáiá Dalva contando sonhos

Nessa brincadeira de vida, de luta bruta, de festa, de forças resolutas, que puxa e repuxa, ceder aos atropelos da idade – jamais!

Nesse longo tempo do seu viver fi caram seus pequenos passos a marcar caminhos; o delicado tato a amaciar suas vestes, como a tatear ninhos; seus grandes sonos de pequenos sonhos.

Com o passar do tempo seu amanhecer não tinha mais a companhia da Estrela Dalva no horizonte. Ela, então dizia, como a declamar uma poesia: Não vejo mais a estrela, pois estou mais próxima do céu...

Em síntese, essas são as palavras que melhor defi nem o comportamento do dia-a-dia da minha Iaiá Dalva ao chegar aos seus 88 anos de idade.

A sua vaidade não tinha idade. Ainda se pintava os fi os brancos com cor de ouro. Ainda se lambuzava de creme as malhas da face. Assim se ressaltava seu brilho.

Ah! Até seu amor virou música. Cantarolava aos sons do seu inseparável radinho de pilhas como num palco de vidas.

E segue Iaiá seus caminhos decorados com seus passos medidos que parecem escondidos. Em suas mãos trêmulas o tocar do terço, a rezar baixinho, sempre a conversar com Deus. Ao seu lado, a sua inseparável companhia: sua fi lha Ostênia.

No seu olhar de cores distantes, já tão cinzas, hoje tem as cores também da saudade e da presença dos netos e bisnetos a refl etir.

O seu mundo, que se limita a cantos demarcados, mantém a luz da esperança com seus movimentos leves de criança, como a brincar de voltar,porque Iaiá não quer ir – ela vive e insiste - aqui fi car!

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Iáiá Dalva, aos 70 anos, ao lado da sua inseparável fi lha, Ostênia, 57 anos

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As gaivotas

Sempre que vou à minha terra e que navego nas águas do saudoso rio São Francisco procuro caminhos do turismo, assim como aconteceu em julho de 2002. Um olhar nos horizontes, quase sempre coloridos nos passeios do Sol do sertão. Vejo duas ilhas que estendem seu verde a beijar os bancos de areia, as pequenas praias no inverno que se formam na estação.

Também o embarque nas pequenas lanchas que deslizam suavemente nas águas leves, sem ondas, oferece a oportunidade ímpar de retratos de pássaros brancos, canoas com seus pescadores solitários, lavadeiras a estender as peças de roupas nas barrancas, os verdes ramos das matas ciliares que se abraçam ao correr do rio ou o sabor único do navegar – sem pressa, sem prosa – apenas o olhar!

Manga, com seu nome tão pitoresco, com seus sabores, ainda oferece, então, aos que procuram o novo, o belo, o sadio, a paz, a interiorização do saber... a liberdade da existência, o soltar das amarras, o desatar dos nós do cotidiano maçante da cidade grande, os caminhos do rio. Assim, vou navegando nos pedaços das minhas lembranças nesses caminhos.

Mas o meu olhar insiste, resiste ao acomodar e navega ligeiramente ao céu azul das cinco horas da tarde, que se transforma em um palco de cores das misturas das nuvens, do azul celestial com os raios do sol até o imenso fi o de eletricidade de alta tensão esticado sobre o grande rio.

Agora, do meu barranco, após desembarcar, encontro-me sob a sombra das árvores do meu jardim, que se esparrama diante de minha casa - testemunha dos meus primeiros passos, dos meus primeiros gritos. Vejo, então, as gaivotas pousarem após seu bailar de asas esbranquiçadas sobre o longo fi o de alta tensão. Nenhum choque! Apenas o choque da

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minha emoção no meu olhar!E os minutos passam, passam, e dezenas e dezenas de asas claras e

bordas escuras continuam a buscar os espaços num bailar sobre as águas. As algazarras do canto das gaivotas são como alunos infantis nos pátios das escolas na hora do recreio – uma festa de chegadas e partidas!

Espaços tão estreitos para seu pousar que exigem a perícia dos pequenos e delicados pares de pés a se fi xarem. Um cantar de festa é jogado ao ar fresco do entardecer. São 18 horas: agora são mais de cem asas, centenas de bicos e pezinhos delicados que se tocam, se aprumam, se acomodam. Até o sono sob um céu de estrelas.

De onde vieram aquelas gaivotas? Por que vieram? Por que ali pousar com tamanho malabarismo e algazarra?

As perguntas também voam e como voam! O rio desce e se movimenta nas sombras de centenas de pássaros

que balançam como um espelho de ouro e prata. Uma gaivota, mais afoita, mais arisca, lança-se em mergulho nas águas profundas. Outros a acompanham a pescar o último peixe do cair da noite, ou apenas brincam com as marolas do rio.

Daqui do meu barranco (não mais no navegar do barco de madeira), também busco no mergulho da minha alma barranqueira um cardume imaginário.

Uma ou outra gaivota, apenas revoa, revoa, revoa, e retorna, sem pousar no fi o.

Não gostou? Não encontrou seu amor? Ciúmes? Fico a enfi leirar perguntas sobre o barranco ancorado ao rio, numa

gargalhada interior nas minhas imaginações. Eu, também, estou em festa! Mas não tenho asas!

Não tenho pressa, também, nesse meu passeio na natureza latente da minha terra. Começo a voar nas asas da minha imaginação. O meu coração toca forte, os sons se misturam à algazarra das gaivotas que

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esperam as estrelas, a lua, o sol de um novo dia a despertá-las.

Para onde vão?

Volto a perguntar. Mas sei que ao entardecer do outro dia voltarão. Mas, não sei até quando!

Enfi m, descubro nos caminhos do rio as novas cores e os novos sons que tanto procurei para mostrar ao mundo: o novo retrato da natureza no bailar das asas das gaivotas que se espelham nas águas do Velho Chico. Um convite a ser navegado no silêncio desse rio!

Um dia, no ano de 2004, em uma outra viagem no mês de julho, olhei com esperança para aqueles imensos fi os que cruzavam o rio, mas não havia mais gaivotas. Nenhuma! Elas voaram, voaram, voaram e não voltaram. Ficaram os fi os a balançar ao vento morno. Apenas os fi os e o vento e o meu olhar vazio. O meu olhar sem pássaros. Um imenso fi o sem graça a balançar ao vento, nada mais do que um fi o de condução de eletricidade! Um fi o sem asas!

No meu silêncio, redescobri que as gaivotas tinham asas – sim, asas! E voaram, voaram, voaram...

Não sei se voaram para sempre e nem sei se voltaram! Ainda não sei se um dia – sei lá que dia -, voltarão ao meu olhar das misturas do rio... Rio São Francisco.

Então, só me resta escrever, escrever e escrever sobre as coisas belas desse rio...

Ao nascer do sol no horizonte do rio, as gaivotas batem suas asas e voam , voam, voam...

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Sobre os fi os de alta tensão que atravessam o rio São Francisco dezenas de gaivotas pousam para sua

pernoite

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Sol nascente no Velho Chico

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Porto Vazio

Ancoro-me no balaústre de pedraÀ margem do Velho ChicoE olho o porto sem navio...Apenas corre lentamente a água do doce rio no meu olhar sombrio.

No horizonte – não mais se vê as cores do grande barcoQue se perdeu no navegar da saudade.Passo a contar os degraus desgastados pelo tempo – também de

pedra!

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Sou o tempo da espera!

Apenas a maré, também lenta, toca a terra vermelha...Na dança do vento morno...

Eu, aqui, do outro lado, sem pressa,Espero o navio de casco de ferro negro,Que nunca vem!

Nem mais ouço o apito da partida,Apenas encontro o cinza da distância -Nesse porto vazio do meu olhar!

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A Casa Amarela que virou cor de salmão

Levei alguns bons minutos para iniciar esta crônica, por uma razão muito simples: ela se intitularia Casa Amarela ou Casa dos Diamantinos - a casa em que eu nasci na Rua do Coronel Joaquim Lôpo. Fico com Amarela – cor do sol!

Essa casa em que nasci, em 1954, mantém a mesma fachada dos dias da minha infância, com suas três janelas de madeira, seu portão lateral, seus frisos brancos salientes. Hoje, ela não está mais ancorada num parque de gramas, mas se encontra sólida, às bordas de uma rua de pedras, por milagre, rodeada de árvores verdes. Lá, adiante, não muito longe, corre o grande rio.

A Casa Amarela é o porto seguro e moderno da minha família. Há cinco ano, a feliz iniciativa da união da família recuperou por completo este casulo de sonhos, realizações e saudades que revivemos a cada dia do presente e do passado em nossas estadas.

A casa nos trouxe de volta à terra natal. O seu aconchego entre altas paredes, que faz circular um vento morno; seu quintal estendido de galhos a sombrear a terra batida que se harmoniza com as árvores nobres de ipês amarelos. Nos cantos dos pássaros e nos voos das borboletas com suas asas de mil cores e formas a colorir nossos caminhos, vai nos revitalizando de energias puras para nosso retorno à metrópole.

Hoje, não mais corro com os meus pequenos pés sobre a terra vermelha. As forças físicas se foram, assim como a infância. Hoje, percorro os olhos nos riscos saudosos de um novo brilho, fi tando na retina os retratos desse novo tempo, rascunhando poesias.

A rede balança na varanda com suas cores berrantes entrelaçadas de

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ramos verdes entre ramalhetes de fl ores roxeadas e rosadas, envolvidas de ninhos de rolinhas brancas, sobre meu olhar, enquanto a água leve se espalha em sua dança sobre o verde, que brota em cada canto, com seus Na porta da rua, as cadeiras se estendem sobre a calçada ao anoitecer, como antes, à espera da lua cheia que ilumina de prata as águas do Velho Chico. Uma taça de vinho brinda os encontros da noite sob um céu de estrelas que cai como uma rede de prata sobre nós. Até mesmo se ouvem os sons do saxofone dourado do jornalista Carlos Pereira e da viola do primo Deniston.

Os vizinhos, os conhecidos, os novos e antigos, como a redescobrir os antigos caminhos do outrora, chegam um a um e vão recontando os sons alegres do passado nos sotaques misturados dos baianeiros, belorizontinos e candangos. Nossos cabelos grisalhos e nossas faces retorcidas, riscadas pelo tempo, reencontram o brilho latente da vida do sertão, a irrigar o coração barranqueiro de prosas e versos, como se o fi m fosse o começo, como se o começo não tivesse fi m. Naquela calçada, o tempo não tinha pressa. Sim! Tínhamos a pressa do rio!

E nesse navegar da vida, a Casa Amarela - como la nave que vá do meu destino - foi um dia pintada de cor salmão. Uma homenagem, quiçá, ao nobre peixe do mar que passou a navegar também com sua alegre cor no meu olhar à beira-rio, assim como o amarelo do sol, antes das pinceladas do tempo.

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Antes, no ano de 2005, a casa amarela resplandecia o sol. No ano de 2009, virou cor de salmão a beira rio

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Sombras dos sobrados no correr do rio

Hoje, mês de julho, ano 2007, nesse dia de inverno morno, quase quente, volto a caminhar pelas ruas da minha cidade natal, às margens do rio São Francisco. Ele, o rio, navega como à minha sombra, a refl etir o passado. Sombra de um tempo que não me deixa nunca.

Ao meu lado, o sobrinho e afi lhado Pedro, com seus 17 anos, que apenas acompanha o meu olhar. Ele, o silêncio do presente. Ouve-se solenemente o clicar digital do celular que tudo registra, como se tudo fosse magia.

Paro naquela esquina de muros altos, que antes tinha um prédio secular, o Casarão do Escritório da Usina, construída com pinceladas de sonhos, que um dia foi derrubado pelo pesadelo de um ato impensável e desumano. Apenas uma ordem, um impulso nervoso, um mando, que num segundo medonho fez tudo desmoronar. Janelas e portas de madeira nobre que se fecharam para sempre, que viraram escombros, na mistura do barros dos adobos e das telhas centenárias.

Ficaram os muros, armados nas esquinas, impenetráveis, sem cor, sem harmonia, duros, pregados no meu olhar como um tampão avermelhado que me cega. Não existe mais passado naquele patrimônio de pedra e barro construído no ano de 1888. Nem futuro, apenas o presente de massa e tijolos alinhados, sem nenhuma arte, nada criativo nem romântico, mas, sim, que agride e que mete medo, que me assombra. Pedro, assim como os jovens que chegam naquelas paragens nesse novo tempo, não tem mais o privilégio de revivenciar esse pedaço patrimonial da história. Nada, nada mesmo a contar para outras gerações. Não, não existe mais história ali. Para as gerações futuras, fi caram apenas muros.

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Diziam que no sobrado havia fantasmas. Não, não, ali não havia fantasmas, mas, sim, história edifi cada. Hoje, sim! Os fantasmas rondam! Espantam-nos dia e noite. Como são feios, como rosnam, como nos amedrontam, nos entristecem, nos fazem chorar. Ficou naquele grande espaço dos tijolos de cem anos encravados no alicerce, que não cedeu, um mundo sem janelas, sem portas, sem memória. O vazio!

Caminho mais alguns passos no grande quarteirão da minha rua. A Rua do Coronel. Arregalo meus olhos nas feridas abertas como chagas a escorrer na ladeira do prédio da esquina da Rua Coronel Joaquim Lôpo. Uma cor marrom que desce do barro, que, como sangue sujo, mancha a terra: Casarão da Esquina da Ladeira se desmorona...

O abandono pelo tempo e depois pelos golpes das picaretas escavaram para sempre do meu olhar sua plenitude arquitetônica. Marco de um tempo. Não existe mais a fachada edifi cada nos primeiros anos do século 20. Uma construção inaugurada em 1935. Um outro clicar e de repente aparece na tela de cristal um buraco negro que me assusta, querendo me engolir. Não tenho também como mostrar aquele prédio ao sobrinho Pedro. Conto sua história, retrato seu desmoronar...escrevo.

Olho adiante, não muito distante, na pequena brecha que por milagre deixaram no espaço da praça de pedra entre as paredes da modernidade do Fórum - escorado no barranco como uma muleta de luxo -, a sombra esverdeada do Rio São Francisco, e sinto um vento morno correr no meu corpo, como a rasgar minha pele, minha mente, minhas artérias, com mais um golpe que força minha memória a voltar à realidade, deixar o saudosismo por completo, como se não existisse passado. Um tempo que não é mais meu, mas que insiste em fi car, assim como as sombras das águas do velho rio que deságuam em mim a irrigar meu destino, minhas viagens.

Volto a navegar, como tocado por uma vela desbotada, esfarrapada, sem a força do vento. Sopro o olhar e deparo com os escombros de um

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dos Casarões Gêmeos do Hotel São Benedito, do Hotel do Porto...da Hora... o Hotel do Gentil, dos anos 50 e 60, que, nos dias do agora, se escondem atrás do grande palanque de ferro e aço agarrado na praça, como uma carcaça de um navio clandestino, desgovernado, sem timoneiro, sem porto e sem mar a agredir o brilho do meu olhar. O mesmo olhar que ainda busca os vapores ancorados, prontos para partirem para outras viagens nos horizontes da terra.

Só me resta esticar a corda do presente, amarrá-la no mourão da memória, não deixá-la escapar, por mais forte que sejam as ventanias do agora. Ainda me resta clicar as sombras do rio que dançam nas águas latentes da minha vida, antes que alguém ouse apagá-las, ou cercá-las com muros.

Paro no presente, como se fosse possível. Olho nos olhos do sobrinho Pedro, na idade das conquistas adolescentes, como muitos jovens manguenses que se aportaram naquele porto, e descubro que o meu passado nos caminhos da minha terra, estão se transformando em escombros e muros. Não tenho mais, como lhe apontar a história concreta - sobrinho Pedro. O que resta, hoje, é clicar o Velho Chico, com seu moderno aparelho digital. Por sorte, temos as mais belas imagens das águas que ainda navegam por aqui caudalosas e inspiradoras.

Hoje, Pedro, persisto em ser um rascunhador de histórias desse mundo barranqueiro que tanto amo nas sombras do presente e do passado. Deixo as letras nessas folhas que voam, quiçá, sirvam como testemunhas desses tempos.

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O grande Hotel São Benedito ou da Hora, o mais importante da cidade nos anos 50/60, localizado na

praça do cais do porto, com suas duas “torres gêmeas”. Uma delas se perdeu no tempo, restando apenas uma

restaurada

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Rua do Bar, nos anos 50, passagem obrigatória dos manguenses ao porto dos vapores

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Minas e os caminhos do carvão

Há quase trinta anos tenho viajado pelas Minas Gerais. Posso comprovar que Minas são muitas – como disse o escritor Guimarães Rosa.

São as “Minas” das indústrias das regiões Sul, Triângulo, Zona da Mata e da Central.

Outras “Minas” da fartura, das lavouras do café, das plantações da cana-de-açúcar, que geram a produção do álcool e do açúcar, assim como as “Minas” da miséria e da esperança presente no Norte de Minas e Nordeste do Estado, mais particularmente nos vales do Jequitinhonha, do Mucuri e São Mateus . Regiões marcadas pelo sol causticante e pelas chuvas raras, incertas e ocasionais.

Nesse caminhar que parece não ter fi m, muitas vezes me surpreendem não só os seus contrastes, mas o fi m da natureza viva, exuberante das nossas matas. Assim se comprova nas estradas do sertão mineiro, rumo ao extremo Norte do Estado, pelos municípios de Curvelo, Bocaiúva, Montes Claros, Lontra, Mirabela, Januária, Manga, Juvenilha, Montalvânia, entre outros, como os municípios localizados na margem direita do Rio São Francisco: Janaúba, Jaíba e Matias Cardoso. São todos eles os caminhos borrados de carvão.

Nesses caminhos, o que se vê são caminhões com suas cargas estufadas, com os milhares de sacos de carvão a marcar as estradas, a cegar de negro nossos olhos. Naqueles caminhões, com seus sacos encardidos, estão centenas, milhares, quem sabe, milhões de árvores nativas do Cerrado. Matéria-prima fl orestal.

Como mete medo àqueles caminhões imensos, truncados, com seus faróis de fogo jogados em minha direção, como a intimidar meus questionamentos, a expressar sua arrogância: “Fique calado, caladinho,

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você, assim como ninguém, vai impedir de continuar a queimar o cerrado e levar os restos da natureza da sua terra. Estamos levando energia para produzir o aço e construir o Brasil do futuro nas grandes caldeiras das siderúrgicas!”.

E passam, como passam os caminhões rasgando o vento com seus sons estridentes a deslizar impunemente sobre o asfalto, jogando o pó negro nos nossos olhos, levando nossos bem-te-vis, nossas codornas, preás, pacas, rolinhas, nossos sofrês. Também os frutos do jenipapo, do tamarindo, do pequi, do buriti e do nosso umbu.

Vejo nessas viagens sob um calor sufocante, até mesmo ardente, uma outra “Minas” – uma “Minas” que morre torrada, que vira cinza, levada pelos ventos da impunidade, da crueldade, da fome insana pelo lucro fácil, da indiferença ao meio ambiente, ao clima, à nossa fauna e fl ora até então, exuberante do Cerrado, com sua fl ores amarelas, roxas, vermelhas, embelezando, como um milagre, nas folhas secas o mundo do Cerrado. Mas a cada dia se acentua em minha face um vento quente, que também queima minha retina pelas estradas do sertão.

Um basta! Sim, um basta a essa “Minas” que não preza o desenvolvimento sustentável, o verde, à vida. Essa “Minas” dos caminhos do carvão que não pode e não deve nunca pertencer à nossa Minas Gerais!

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Primeiro caminhão chevrolete emplacado na cidade de Manga na década de 60 carregado de sementes

do algodão. Não se carregava naquela época carvão do cerrado. Na foto, Joaquim Sedan e seus fi lhos

Caminhões de carvão estacionados frente à porta de uma siderúrgica. Em 2008, segundo dados do IEF, foram

consumidos 23 milhões de metros cúbicos de carvão vegetal em Minas, 45% originados de fl orestas nativas

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Linhas que se desenrolam do

carretel do tempo

Sempre tive a curiosidade de conhecer o que se passava na cabeça daquele rapaz moreno, de olhos castanho-claros, cerca de 1,80m, vestido com roupas extravagantes. Muitas vezes sentado à porta da sua casa entre faixas de protesto “do além”: madeiras rachadas com riscos indecifráveis, entre “outras arapucas” que tanto me agrediam, ou me faziam sorrir, até mesmo gargalhadas escondidas. Mas ele era indiferente a tudo e continuava a divulgar suas mensagens, inclusive com potente megafone, que mais tarde foi proibido pelo Juiz da Comarca manguense.

Ele não se encontrava aqui, como nós, mas como se apresentava como um sonhador, um defensor do meio ambiente, da paz, da equidade, da justiça, do amor – do seu amor!

Muitas dessas mensagens tinham uma linha-dura de protestos que despertavam a atenção da sociedade manguense. Outras, o chamamento do além, da música erudita, dos poemas sem rima. Algumas dessas falas, que o deixavam rouco, com suas veias do pescoço estufadas, como lagartas verdes, atingiam as autoridades, sejam elas públicas ou privadas. Sejam elas proferidas contra o prefeito, o médico, o governador do Estado, o presidente da República, assim como, o Juiz. Ele tinha uma missão: assim, cumpria o “desiguino do Deus, aqui na terra, na colônia,” como ele se referia em suas justifi cativas, sem pé e nem cabeça, para quem quisesse ouvir.

A bicicleta também era um dos meios usados por ele para expor seus protestos pelas ruas da cidade. Num desses passeios a pedalar a bicicleta, toda ela decorada com sacos de carvão, pendurados em galhos secos, aquele homem indecifrável conseguia emitir, mesmo não tendo a razão em perfeito estado da sua consciência, o seu repúdio contra o

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desmatamento do Cerrado da região. Afi nal, o recado foi dado em prol do meio ambiente. Naqueles galhos, os frutos eram os carvões: “um dia só restarão árvores secas, queimadas pelo fogo, tendo como frutos o carvão”. O seu recado foi dado.

Mais uma motivação para me aproximar daquele inusitado jovem. Num certo dia, mês de verão, encontrei-o entre as árvores da minha rua – a saudosa Coronel Joaquim Lôpo, bem próximo ao Cruzeirinho. A temperatura na cidade de Manga chegava aos 38 graus. Ele era um corpo no gelo. Vestia-se como se estivesse sob um frio, um frio de congelar ossos.

Apresentou-se solenemente, mas com pressa, como se uma apertada agenda de trabalho o esperasse.

Aquele rapaz, que se aproximou dos meus olhares de espanto – para matar minha ansiedade -, vestia-se, por volta do meio dia, com um capote de lã marrom. Usava luvas de algodão brancas, como se estivesse se protegendo de um frio do polo Norte. Ao mesmo tempo, calçava sandálias havaianas – num pé verde, noutro preta. A desarmonia se iniciava nos pés e era levada até a sua cabeça. Seus cabelos eram negros. Negros e lisos. Troquei um olhar irônico com meu irmão caçula que se encontrava ao meu lado. Olhares de ironias.

Eu, perplexo - ele, o jovem barbudo, prosseguia com as palavras seguras no expressar, com pouco sotaque, com concordâncias verbais impecáveis, mas que se desencontravam com os absurdos sem nexo, sem rumo que, a princípio, me amedrontavam.

Ouvi, com a nitidez dos sons que corriam no vento morno do sertão, ele dizer que tinha 25 mil anos. Também tinha uma boa nova para divulgar: “A colônia fi nalmente se libertou e conseguiu sua independência”, mas que estava com difi culdades de falar com o presidente Lula, “porque o fuso horário era de 30 dias...”.

A expressão da sua face era de um jovem encurralado, visivelmente

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preocupado com o fenômeno do seu tempo. Seus olhos eram duas bolas negras, brilhantes, que rodavam, rodavam. Eu ali parado à beira do grande rio, quase estático, suando em bicas, ouvindo aquele barranqueiro encapotado em pleno meio-dia. O Sol nos mirava como o fogo dos infernos. Ele indiferente a tudo, até mesmo ao tempo. Que tempo?

Tentei por várias vezes me situar, dirigi-lo para algo que tinha fundamento, que a razão se reinstalasse. Mas o jovem, com seus grandes olhos arregalados, com um brilho de felicidade e perplexidade, soltava mais uma aberração que me atordoava a cada instante, que me “enlouquecia”. Ele, ao mostrar os alvos e perfi lados dentes, disse-me: “Uso creolina, Carlos, para proteger os dentes dos micróbios... a carne apodrece os dentes e precisamos combater esses micróbios. São mortais!”

Eu e o mano Chico rimos, rimos mas para dentro. Não podíamos faltar como o respeito. Isso, sim seria a maior de todas as loucuras.

Ouvi. Ouvi por longos minutos, intermináveis, como se estivesse à boca de uma caldeira. Pensei em deixar aquele belo rapaz no deserto daquele sol escaldante, causticante, enervante. Ele, na sua indiferença, não suava, não se apresentava nem mesmo cansado, não tinha sede. Seus lábios se encontravam intocáveis, com um brilho natural, quase rosado, sem a secura daqueles que exageram nas palavras. Era uma matraca a matracar o inusitado.

Passou as mãos sobre seus negros cabelos. Cerimoniosamente como os monges, ele cofi ou sua barba negra. Dirigiu seu olhar sério, compenetrado, ao meu olhar fugitivo. Como passava fé em suas palavras. Parece que me convencia – ou vencia-me!

Ele tinha a segurança de um profeta. Fiquei perplexo com suas informações sobre as coisas do Brasil e do mundo, mesmo nas misturas sem pé, nem cabeça. Disse-me ao cofi ar mais uma vez sua barba agarrada

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ao pescoço, como um pacote de bombril, que precisou apará-la porque ele estava sendo confundido com o presidente do Iraque, Saddam Hussein ou um dos seus irmãos. Poderia ser sequestrado. Ele era uma autoridade. Tinha muito poder. De repente, para meu espanto, olhou para os quatro cantos do mundo, como a se proteger do inimigo que o espreitava – sabe-se lá de que lugar!

Pensei em gritar, em sair correndo pelas barrancas do rio São Francisco. Senti na desordem das palavras daquele jovem que o louco era eu. Eu não tinha a sua tranquilidade, seu bem-estar, sua ternura – pelo menos naquele momento sob os raios rebeldes do sol do sertão.

Ao ouvi-lo, ao questioná-lo, eu estava, simplesmente, entornando todas as loucuras, crônicas ou não, daquele rapaz na minha mente – até então sã.

Mas insisti na razão. Perguntei qual era sua idade cronológica aqui na terra. Uma pergunta sem rumo. Mas fui surpreendido com a resposta direta, racional. “Tenho 38 anos”.

Fiquei feliz com os segundos do uso da razão daquele rapaz moreno, alto, esbelto, à minha frente. Enquanto eu resmungava um agradecimento, o jovem olhou para o céu e disse: “Com licença dos deuses não voltarei a provocá-lo e nem mesmo a incomodá-lo”.

O quê? Perguntei! Por sorte, ele não levou em consideração a minha indagação – ignorou-a por completo e continuou a enfi leirar as suas tortas palavras.

Precisava fugir daquele jovem louco manguense, como a fugir do hospício por uma porta milagrosamente aberta. Por sorte, muita sorte, as portas abertas desse meu mundo se encontravam escancaradas. Portas da liberdade, do expressar, do meu viver – da razão.

Como lamentei sua estatura física elegante, harmoniosa, na desarmonia de tantos desencontros das palavras, do olhar, do agir.

Olhei o sol pousado no centro do céu imensamente azul e me perdi

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em sua luz amarela de fogo. Apressei meus passos e passeei meu olhar pelas ondas marrons do Velho Chico. Por alguns segundos fi quei triste. Triste por não entender o destino.

Olhei ligeiramente sua partida, ainda receoso de reencontrar aquele olhar castanho, negro, não sei bem. Vi aquele homem moreno se distanciar envolvido em seu capote de lã, a pedalar sua bicicleta. Suas mãos vestidas com suas luvas que se movimentavam ritmadas, como dois coelhos brancos agarrados ao guidon, até desaparecer do meu olhar, do meu pensar.

Esqueci as expressões de sua loucura. Refl eti, sim, sobre um homem indecifrável. Um homem jogado num desconhecido mundo que não era a cidade de Manga, não era o Brasil, não era o planeta Terra... Não tinha universo! Um mundo que não era meu – nem dele! O mundo da sua “colônia”.

Tentei, oh, como tentei mergulhar por alguns minutos naquele mundo. Mas, também, como me apressei em me afl orar à superfície da razão. Como tive medo de me afogar naquelas ondas revoltas da loucura.

Ele me surpreendeu ao aceitar o meu convite e, no fi nal da tarde, desse mesmo dia, me encontrou defronte da casa amarela, a casa onde nasci. O Cristiano, ou Cristiamm, desceu da sua bicicleta ainda vestido com seu casaco de lã. Fez uma exigência, enquanto me entregava os papéis da “libertação da colônia”: “Escreva Cristiamm, ao autografar seu livro pra mim, e logo adiante, o número do meu CPF... o livro se abrirá em muitas outras mãos. Fica mais seguro e ofi cial!”

Não teimei e escrevi. Cumpri o rigor de uma ordem. Mesmo uma ordem insensata – afi nal, eu não sou tão louco, assim!

Após 15 dias, já em Belo Horizonte, recebo um telefonema da minha tia Lourdes, que em gargalhadas ressentidas me informa que

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o Christiano teve uma crise de loucura muito forte. Uma das dele”, assim, ela se referiu. Perguntei, não sei se curioso ou preocupado, o que aconteceu de grave. Minha tia, ainda mantendo seu sorriso meio irônico, camufl ado, respondeu-me: “Ele quebrou todos os móveis da casa, quadros, utensílios domésticos, tudo, tudo mesmo... e precisou que sua mãe chamasse a polícia para prendê-lo... ele se encontra preso...”.

Fiquei mudo, acredito por uns bons 30 segundos. Ela perguntou-me se eu estava ouvindo bem. Respondi que sim, mas não tive coragem de fazer a pergunta que mais me atormentava: Ele, “numa das dele”, será que também rasgou os meus dois livros que lhe presenteei autografado: Os Tabaréus na Cidade Grande e o Sabor de Manga?

O telefone desligou. Fiquei a pensar, a pensar nos atos violentos da loucura... enquanto folhas jogadas ao vento embaralhavam a minha mente. Desisti da reposta, mudei de pensamento para não fi car louco!

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Cristiam Pereira (crismado) X Cristiano Freires Pereira (ofi cial), na foto, vestido com uma capa de lã, mesmo com a

temperatura na cidade de Manga, ao meio dia, 38 graus, momentos antes de chegar pedalando em sua bicicleta

Nas sua porta, a exposição de seus trabalhos e mensagens

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Palavras, meias palavras...quase palavras...

Ao retornar à cidade de Manga, reencontro aquela fi gura única, o Christiamm Pereira (nome de crisma) e/ou Cristiano Freires Pereira (ofi cial), na esquina da Rua Olegário Maciel, ao meio-dia, em frente a sua casa, com todos os seus avisos e mostruários estrambólicos salofônicos, como dizia meu pai sobre as coisas inexplicáveis.

Assustei-me um pouco. Primeiro, com os trajes berrantes: uma camisa de cetim com uma cor azul tão forte que resplandecia nos meus olhos com os raios do sol; uma calça de linho preta alinhavada em linhas brancas da bainha até quase o joelho e um sapato social preto com pintas brancas nas pontas que mais pareciam excrementos de passarinho.

Retirei os óculos escuros que me protegiam do sol e olhei aquele homem com sua barba que envolvia todo o queixo e parte do pescoço. Parecia uma esponja de Bombril pregada com goma de polvilho. Mantive a calma e procurei ouvi-lo como se estivesse num confessionário.

- O governador, digo o vice, aqui esteve sua autoridade com um aparato militar muito pesado e valioso. Muitas armas de tiro, beretas, canhões que se usaram nos tempos da colônia...

Tomei fôlego, olhei de cima a baixo aquele jovem, com sua pele morena, seus dentes esmaltados e tão bem cuidados. Seus olhos arregalados como duas jaboticabas me espreitavam, sem piscar. Procurei um rumo para me situar naquela conversa. Mas, não encontrei a razão. Ele não alterava em nada a sua fala e seu procedimento, indiferente às minhas divagações. Continuou:

- Precisava, inclusive, de repassar um documento ofi cial da coroa com a cobrança de uma dívida, bem antiga, quando o governador da época destituiu o Banco Credirel. Tenho um dinheiro pra receber do

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INSS – lá depositado em capital próprio individual físico... e aceito um veículo fabricado em nosso país – pode ser usado para locomoção de nossos idosos e enfermos de acordo circular de 24/h, anexada em documento.

Mas que conversa louca! Refl eti já em desarmonia com meus pensamentos. Antes mesmo de recomeçar a raciocinar, saber o que queria aquele jovem, ele me olhou, agora, com um olhar de um brilho cinza camufl ado. Afastei-me alguns centímetros. Mantive a sobriedade. Receoso, perguntei: que documento, meu caro Cristiano?

- Não posso apresentá-lo em público e nem levá-lo em sua residência porque sua quadra está toda minada, muita polícia. A minha ida até lá... corre perigo de vida e de morte!

Precisava reencontrar-me. O sol fi cou mais forte. Escaldante. Recuei até a parede ao meu lado, como a procurar uma escora, uma proteção, um refúgio, uma sombra. Ele, na suma imensidão física - se comparado à minha estatura -, também veio com seus passos medidos a ocupar os mesmos centímetros. Ele, bem mais alto, não deixava nenhum espaço para minha fuga. Nada de escapar – nem mesmo da sua sombra. Aguardei, como um monge, as suas próximas palavras. Apertei os meus lábios secos. Ele percebeu a minha impaciência. E com a voz ríspida, disse com altivez:

- As autoridades são pagas para ouvir o contribuinte. Compro uma caixa de fósforos e lá está o imposto, no pão, pago imposto, nas viagens pago impostos... em tudo imposto... então...

Olhei para as pedras retangulares da rua à procura da autoridade. Ninguém, apenas eu, ali, com aquele jovem alto a cobrar uma dívida. Mas, ignorava as minhas confabulações, voltou a falar sem pausa:

- Por isso, o documento com o carimbo da coroa será colocado no galho do pé de tamarindo. Lá, no fundo, que faz limite com suas terras. O documento está na caligrafi a bem clara da coroa.

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O Cristiano, fi nalmente, para meu alívio, se afastou. Recuperei a liberdade de seguir adiante. A fome apertava. O sol derretia minha moleira. Ele, todo esbelto, simplesmente atravessou a rua de cabeça erguida – missão cumprida. Almocei e retornei a minha casa à beira rio. Evitei passar mais uma vez em frente da casa do jovem.

Após meu cochilo, tão reconfortante como navegar nas águas do Velho Chico, intuitivamente, fui ao quintal - minhas terras. Um passeio descontraído entre as folhas verdes dos coqueiros, dos pés de limão, das laranjeiras, das acerolas e dos ipês. Levantei o olhar até um galho estendido sobre o muro. Não acreditei no que vi adiante! Não podia ser! Os documentos? Sim! Num galho do pé de tamarindo se encontrava um saco plástico branco, endereçado ao Sr. Carlos Diamantino, datado: 6 de julho de 2009. Uma caligrafi a leve, sem erros gramaticais, segura.

Não o abri imediatamente. Fiquei sem iniciativa. Inerte. Após uns minutos, fi nalmente, retirei o nó da boca do saco plástico. Dentro, duas folhas ofício com os carimbos da coroa impresso: REINADO/REPÚBLICA, PRESIDENTE VELHA REP _PRESIDENTE VELHA...

Ali se ofi cializava um pedido “muito louco”, ao Exmº Governador do Estado.

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Reprodução dos documentos encaminhado ao Governador

No interior da sua casa, também se encontram trabalhos produzidos pelo manguense Cristian. O difícil é traduzir

as suas mensagens, principalmente, após as explicações do “artesão, escritor, político, radialista...do andarilho”

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“Brasa dormida”

O escritor Th ales Guaracy, do romance Filhos da Terra, expressou essas duas palavras que intitulam esta crônica: “Brasa dormida”.

Duas palavras que defi nem claramente as minhas rápidas visitas à minha cidade. É como assoprar uma brasa adormecida e de repente afl orar as chamas vivas da minha memória.

E sopro e quanto mais sopro mais se avoluma o vermelhão até que o fogo das lembranças se ilumina por completo.

São muitas brasas dormidas, como são! Entre elas, o rio São Francisco, com suas balsas, suas canoas, seus

barcos de madeira, seus pescadores, as lavadeiras, os pulos peraltas dos jovens adolescentes, assim como também o céu de estrelas do sertão, que aos meus olhos se estende como um tapete de prata e de ouro se abrindo numa cortina de luzes ao nascer da lua e do sol, jogadas ao correr do rio nas viagens das cores.

São essas brasas dormidas que me aquecem, me enriquecem, me fazem reviver os tempos passados na labuta da inspiração de um novo viver, sempre ali, espreitando das barrancas do grande rio, como de um palco, o maior de todos os espetáculos da natureza latente.

Como são brasas os sotaques carregados dos conterrâneos que também assopram o passado, na certeza de recompor as luzes do futuro.

Sei que muitas dessas brasas já se encontram esparramadas nas cinzas, mas que não serão levadas pelos ventos.

Sei também que muitas dessas brasas precisam ser removidas, remexidas, sacudidas, para continuar aquecendo com seu calor o espírito hospitaleiro dessa gente na busca incansável de dias melhores, assim como o correr das águas do Velho Chico – vivo e exuberante na sua plenitude!

São todas brasas adormecidas dos meus caminhos barranqueiros!

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As grandes balsas transportam veículos e pessoas entre os portos da cidade de Manga e o município de

Matias Cardoso (Foto 2009).

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Uma cidade grande

Decido reproduzir em letras uma cidade que cresceu, se edifi cou, se alongou nos horizontes. Hoje, ela tem centro, bairros e periferias. Bem diferente da cidade narrada nas crônicas do livro Sabor de Manga – dos anos sessenta do século passado.

São essas comparações que vou alinhavando nas bordas das letras, que nascem como o correr do Velho Chico, que, por sorte, nessas paragens muito pouco mudou nesses anos. Ele se encontra caudaloso no verão, sempre carregando as beiradas das duas grandes ilhas que separam suas águas nos seus dois extremos – Norte e Sul. Lá, onde apontavam os vapores na minha infância. Ainda tenho vivas suas luzes nascendo por trás das ilhas.

Não se vê mais os vapores, nem as canoas e seus remadores com passageiros. Os que se vê, agora, são pequenas embarcações de madeira – as lanchas - que transportam os ribeirinhos entre as duas margens. Do lado de lá, o Município de Matias Cardoso, aqui, o cais da cidade de Manga.

Olho aquelas pequenas embarcações ancoradas lado a lado como uma família unida a navegar pelas águas marrons. Uma branca, outra vermelha, outra amarela – são as cores que se balançam no rio.

Mais adiante, ainda margeando o barranco do rio, não temos mais aquela balsa frágil, enferrujada, muitas vezes levada pelo cabo de aço arrastado pelas mãos de homens de músculos de ferro de uma margem a outra, por falta de óleo diesel ou problema no motor. Homens, como Alcidão, seu pai Luizão, Mingau, Fulô do Cais, Deraldo, Mingau, entre outros.

Hoje, o porto da balsa - que antes era o porto da boemia, denominado Briga de Jegue -, conta com três modernas balsas que são empurradas

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contra as fortes correntezas pelos potentes rebocadores. Tão potentes que os sons de seus motores rasgam os ventos e nos estonteiam com o barulho, principalmente no amanhecer ou nas madrugadas.

Como tive medo de atravessar naquele imenso barco de aço carregado de automóveis, ônibus e um caminhão carreteiro de dois andares lotado de gado! Como me amedrontei com os olhos arregalados dos bois! Lembro-me de que espremi meu pequeno corpo no banco de madeira bem ao lado de um tanque tampa de metal fechado. Nele, letras brancas assinalavam: salva-vidas. Não era um medo de criança, como antes, em que tudo vira festa, mas um medo maior – medo de um adulto. Medo de morrer!

Do lado de Matias, uma estrada com asfalto se aproximava quase na rampa improvisada de barro vermelho, despejado pelos caminhões basculantes. Do lado de cá, sem asfalto, a terra grudava nas rodas pelas estradas que rumavam para as cidades de Montalvânia, Carinhanha, mais no Norte, e São João das Missões e Itacarambi, nos caminhos do Sul. A mesma terra batida que marcou as rodas da jardineira do Nelson, dos anos sessenta, narrada em uma viagem numa época de chuvas torrenciais nas páginas do livro Sabor de Manga.

Ando, em seguida, pelo bairro Boa Vista e vejo algumas ruas asfaltadas, outras escondidas em becos e ruelas, entre casas grandes de alvenaria, bem caiadas, e outras de sapé, emborcadas, destelhadas, de uma porta só, sem janelas, como uma oca. Uma mistura bem palpável do progresso e da miséria. Os galos e as galinhas ciscam no terreiro mal cheiroso e os cães de costelas estufadas, de rabos caídos, correm e latem atrás dos carros de luxo ou dos carros de bois. Carros de bois que não têm mais as grandes rodas de madeiras. Agora, na sua maioria, viajam com rodas de borracha. São mudos. Não cantam mais, como nos tempos em que se predominava o fogão a lenha. Os carros chegavam com sua música sonolenta, a despertar o dia, trazendo a carga com suas

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achas de lenha.Uma boa visão, com todas as suas diferenças presentes, que nos leva

ao passado, como se o passado não existisse, como se o tempo não se movesse em alguns lugares - para algumas pessoas, a inércia.

Mas a cidade de Manga se alongou para outras bandas – e como! Cresceu, se edifi cou.

Lá, no local do imenso campo de aviação, onde já pousaram aeronaves de grande porte, que taxiaram sobre a pista lisa de areia, trazendo o ilustre jornalista Assis Chateaubriand e comitiva (em visita à fazenda modelo de Vila Bela, dos Diários Associados, também conhecida pelos manguenses como Nova Galha, com sua luz elétrica e maquinário agrícola de primeiro mundo), esse local se transformou em dois bairros: Arvoredo e JK. Mudanças demográfi cas que marcaram as últimas décadas do século passado.

No caminho do campo de aviação fi cou um pé de umbu, bem ao lado da moderna Rodoviária, como marco de um caminho que não existe mais, a não ser na memória desse barranqueiro saudosista.

Não muito longe dali, a lagoa, rodeada de casas e asfalto, mesmo agonizante, resiste ao desprezo e permanece afl orando na superfície, como a pedir socorro, quase que desaparecendo no lodo. A mesma lagoa que na minha infância, nos anos sessenta, era um dos mais belos parques naturais da cidade, com seus marrecos, garças, quero-queros, sofrês, canários-da-terra, tico-ticos, sanhaço, coleirinhos, Joões-de-barro, capivaras, porcos-espinhos e tantas outras aves e animais da então rica fauna do sertão mineiro.

E a cidade também cresceu para as ruas de cima, rumo ao Tamuá e ao bairro Sossego. Esse, o Sossego, não existe mais. Assim como também desapareceu “o sossego” de muitos manguenses com o acelerado progresso dos novos tempos.

A disputa pela oferta dos produtos do comércio é uma verdadeira

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guerra de sons. Sejam em bicicletas, carros, motos ou grandes caixas de som instaladas nas portas das lojas. Os altos decibéis muitas vezes desordenam nossos passos, nossas refl exões e nossas decisões. Um preço caro que se paga pelo desenvolvimento, pelo modernismo. Sons que também se misturam aos da fé e das festas nas praças e nas músicas ensurdecedoras que explodem dos automóveis.

Como me disse o compadre Paulinho, ao apreciarmos o correr do rio, ao lado do afi lhado Igor, com seus nove anos: a cidade de Manga cresceu e cresce – e é bom que cresça! Mas não precisa crescer sem eira nem beira, como se pode ver por aí nas ruas e no comportamento das pessoas nos últimos anos!

A moderna rodoviária se encontra ao lado do pé dos frutos do umbu, antigo caminho do campo de aviação nos anos 60

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Avenida Tiradentes no ano de 2009

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Reportagem do jornal de época (década de 30, Sec. XX) reproduz a presença do senador paraibano, Assis Chateaubriand, na cidade de Manga. O senador, ao tomar champagne durante almoço, disse, vestido um elegante smoking, que um dia Manga seria uma cidade grande e sua população, tão importante e culta, falaria inglês. Assis Chateaubriand, ou apenas Chato, foi dono de um império de quase cem jornais, revistas, estações de rádio e de televisão – os Diários Associados. Na sua fortuna, incluía a fazenda modelo de Nova Galha (Vila Bela). Ele sempre atuou na política, nos negócios e nas artes como se fosse um cidadão acima do bem e do mal, como escreveu o escritor Fernando Morais, no livro: Chato - O Rei do Brasil.

Chateaubriand retornou a cidade Manga na primeira década dos anos 60, depois de ter tido trombose. Sem os movimentos do corpo e sem a fala, Chatô desembarcou em uma grande aeoronave no campo de aviação acompanhado de sua comitiva e da fi sioterapeuta escocesa Edith McConnel, que agachada ao lado do rosto do empresário e político, conseguia entender os sons que ele reproduzia que não passavam de “grunhidos desesperados”. Foi sua última visita a cidade a Fazenda dos Diários Associados, localizada no município de Manga, na margem direita do Rio São Francisco. Hoje, a fazenda pertence ao município de Matias Cardoso.

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Uma festa de recordações

O rio se aproxima. O Sol também. O coração se aquece. Está chegando a hora do grande dia - da festa de autógrafos do lançamento do livro da minha Tia Lourdes. A pequena cidade se movimenta. Olho o quintal com suas fl ores como uma nave verde a navegar sob o sol do sertão.

O pequeno olhar da Tia com a imensidão do brilho de vida volta a me tocar. “O nosso dia está chegando”, ela exclama. Sua fala leve leva-me a pensar nos caminhos trançados, programados, até o palco, imenso palco de tablado colorido. Fico a imaginar uma multidão – ou o vazio daquele desconhecido lugar -, fi co tenso.

Sinto o silêncio das minhas dúvidas. “... a banda vai tocar... os cantores vão cantar... as fl ores vão decorar... os garçons vão servir... as mesas aqui... as cadeiras acolá... os livros, sim, os livros serão expostos e vendidos no outro lado...”. E o fi o da meada se estica nos minutos que antecedem a festa com os conterrâneos manguenses. Um acontecimento cultural inédito na cidade.

Os dias são contados, recontados, até que as horas se aproximam da hora ofi cial. Os convidados chegam. De São Paulo, Rondonópolis, Montes Claros, Grão Mogol, Itacarambi, Montalvânia, Carinhanha...

A rádio local anuncia e meu coração não mais cadencia, ele pula – como pula! E lá vem outra vez Tia Lourdes! Parece uma criança no dia de aniversário. Tanto vigor, tanta força interior!

O livro, guardado a sete chaves, me acompanha, me espia, me cobra, me engole. Tenho um grito, mas não grito! A cabeça é um redemoinho que gira na poeira do destino.

De repente a noite chega e traz uma brisa leve. Sigo no luxuoso carro ao lado da minha Tia e chegamos solenemente à porta do Ginásio

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Poliesportivo, localizado no bairro Arvoredo. A banda toca um dobrado e nos campanha.

Manga está ali presente: todas as idades, origens, crenças, com suas seus sotaques, com suas misturas de passado e do presente, como uma grande família.

As palmas, os discursos de saudação, a fi la, os autógrafos – eu e Tia Lourdes -, com nossas mensagens de vidas fazendo história.

Ali o sonho não termina, mas se eterniza nas páginas que se desvanecem nas letras e fotos encravadas nas Recordações da Minha Tia!

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Dona Lourdes Alkmim e Carlos Diamantino são recebidos por cerca de 500 pessoas no CAIC, no Bairro Arvoredo, na

noite de autógrafos do lançamento do “Livro Recordações da Minha Tia”, no dia 16 de julho 2005. Um evento cultural

inédito na história cultural manguense

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Manga, um outro sabor

Passados alguns anos em outros horizontes, retorno à minha cidade de Manga, e busco seus diferentes sabores, que o tempo tempera entre as fases do forte sol do sertão e das cheias e vazantes do rio São Francisco.

Caminho nas mesmas ruas da minha infância, mesmo sabendo que outras ruas foram abertas, mas são distantes, não têm as cores e os sabores das minhas ruas de outrora. Começo pela Rua do Bar, agora sem comércio, sem as grandes lajes que marcaram passos de um passado.

Paro por minutos, horas e mais horas, a olhar o rio lá do cais do porto, agora sem vapor, sem transeuntes, sem as dezenas de espectadores que assistiam ao espetáculo dos passageiros subindo e descendo as escadarias de pedras - como eram belas as cores de suas roupas, seus colares, suas bolsas de couros nobres, seu cabelos soltos, seus olhares de vidas distantes. Mas o rio insiste, suas águas passam, mais lentas, mas passam rumo às terras nordestinas, agora sem os grandes barcos.

E continuo o passeio numa Manga diferente, de sabores estranhos e desconhecidos, mas ainda de bons-dias, boas-tardes e boas-noites. Ainda das casas de janelas abertas, portas escancaradas, jardins livres de fl ores vivas, animais soltos a pastarem nos verdes que resistem.

Passeio, ainda, pela Praça Mello Viana, aquela primeira praça do meu olhar, do meu primeiro jardim, agora rodeada de cadeiras coloridas, que se transforma nos fi ns de semana e nas noites manguenses, no ponto de encontro dos jovens, como um grande bar “a céu aberto”, com seus sons e suas televisões coloridas penduradas nos cantos, a transmitir os jogos de futebol de todo o país. A praça do lazer, dos encontros, dos amores, como se fosse a Rua do Bar, deste novo século.

Subo a longa Rua Olegário Maciel, rua dos meus sonhos de escola, de igreja, corridas, tropeçadas, caídas entre gargalhadas infantis. As

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casas estão ali estendidas, muitas ainda com as cores e estilos de outrora. Ainda se vê o grande prédio da Usina de Benefi ciamento de Algodão, que antes abrigou as grandes máquinas que espremiam o algodão, transformando-o em fardos. Ficaram as imensas paredes brancas como uma obra faraônica de moradores fantasmas.

Logo ao lado, bem na esquina da Rua Olegário, o Beco da Usina (Travessa 19 de Outubro) encontra-se mais feio, mais isolado, ainda a meter medo como nos anos sessenta. Agora um medo maior sem o prédio centenário do “escritório da usina”. Em seu lugar levantaram um imenso muro, como se pudesse esconder um ato imperdoável de uma loucura.

E entre subidas e descidas, agora, naquela imensa rua da beira do rio que hoje se encontra mais verde, volto a olhar o rio. Hoje, por sorte, a rua se transformou em um bosque, que breve será o mais nobre pouso dos pássaros, que descansarão após voarem sobre as águas do Velho Chico. Ali já se despontam árvores nobres, madeiras de lei, como aroeira, jatobá, juazeiro, angico, mangueiras, ipês e, até mesmo, barrigudas e pequis.

Falta o vapor apontar na curva do rio e dar seu demorado apito despertando outros sabores de Manga, como despertar em mim por quase meio século de vida. Mas os a vapores se foram, não se sabe para sempre. Afi nal, milagrosamente, o Benjamim Guimarães foi restaurado e já se encontra ensaiando ancorar seu casco negro novamente no porto da cidade manguense. Em outubro de 2009, viajou até a cidade vizinha: Januária. Ele, que navegou por quase 100 anos pelo Velho Chico, pode apontar, a qualquer momento, na curva, como um sonho de infância. Só me resta, nesse caminhar, dar viva ao rio, um viva ao navegar!

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Rua Olegário Maciel nos anos sessenta com suas casa de estilo colonial

A Igreja matriz de Nossa Senhora Aparecida e a Escola Estadual Olegário Maciel foram restauradas e são, nos anos

2000 um dos cartões postais manguense

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Carta a um amigo de Montalvânia

Tenho em mãos, meu caro Almir Sabino, mais uma obra literária de sua autoria, o livro intitulado Pra ser Feliz. No meu olhar resplandecem as cores esverdeadas que navegam na sua capa. Ao abri-lo, passo a navegá-lo como numa viagem de sonhos no nosso sertão mineiro. Você em Montalvânia, eu, em Manga!

Hoje, domingo, ainda de outono, em que o Sol se põe, sem pressa, no horizonte da capital do nosso Estado, sinto-me lisonjeado, emocionado, orgulhoso de tê-lo como amigo. E mais, feliz em reencontrar nas suas letras o sabor e o aroma da nossa terra. O sotaque inigualável da nossa gente.

Como me tocaram profundamente as suas palavras de fé, de seguir adiante, de acreditar sempre. Hoje, Sabino, eu aprendi, evolui e cresci.

Somos, no labutar das nossas letras, semeadores nas terras áridas, que você tão bem conhece – você muito mais que eu, caro amigo – porque ainda vive aí acompanhando de perto o voar dos nossos pássaros, ouvindo seus cantos, e molhando como em prece nas sagradas águas do Rio Cochá.

Eu, caro Sabino, tenho as asas da imaginação que me fazem voar nas águas doces do querido Velho Chico que vive a navegar nos meus sonhos, mesmo sobre o negro asfalto da metrópole. Esse Rio que não me deixa nunca!

Pra ser Feliz são letras que me absorvem, me transpiram, me afl oram. Agradeço de coração, por existir na sua intelectualidade. Você, que faz feliz tantas crianças, fi que certo de que elas semearão as suas sementes.

Breve, muito breve, irá brotar um mundo mais justo, belo, fraterno e verde, muito mais verde, como os nossos sonhos nessas terras nobres do Cerrado.

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Obrigado, mais uma vez, amigo da nossa terra e da nossa gente. Vamos nos encontrar! Preciso apertar sua mão, com um aperto forte, demorado, com o mesmo calor do nosso inseparável sertão, e parabenizá-lo pela sua primeira grande obra literária que levo como um troféu em meus caminhos: Montalvão, Montalvânia!

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Um olhar nas cores do rio

Volto ao rio da minha vida na nostalgia das águas que correm rapidamente para o mar. Mas antes fi cam no meu olhar – como fi cam!

Hoje, não tenho terra, só tenho rio. Hoje, não tenho céu, só tenho rio. Sou todo rio, rio, rio e rio...

São águas e mais águas que se avolumam no meu olhar, no meu pensar. Doce mundo que me afoga de paixão nas lágrimas do porvir.

Até o imenso céu que se cobre de cores, hoje se espelha de rio. E o Sol se espreme no horizonte a semear suas mil cores no rio.

Rio espelho do céu, espelho do sol, espelho de vidas nas cores vivas da natureza latente. Eu em tudo aprecio, aprecio, aprecio. Sou todo sementes de rio.

E no espelho das cores rosas, amarelas, azuis, verdes, alaranjadas, esverdeadas, o vermelho arroxeado, rubro-dourado do céu nas águas marrons, fi co em devaneio e deixo o pensar se colorir a deriva.

As gaivotas se envaidecem como numa obra de arte. Suas plumas brancas e seus bicos de prata afi ados a mergulhar nas marolas do rio, assim como o meu olhar.

Ali, no bailar do dia, se encontra no abrir suave das águas o peixe sadio. Ouço de longe a algazarra das gaivotas nas suas partidas, algazarras do grunhir da vida, com sabores do cio. Eu ouço meus assobios.

E o sol se levanta lentamente como em prece, como no altar. Ele se ergue magicamente, sublinemente, lentamente, nos esverdeados horizontes da selva. E os pássaros em coro cantam. Os ventos mornos espalham as pequenas nuvens brancas que pincelam outras cores que se estendem no meu olhar. Sou, agora, mais uma vez rio, com outras cores, com outros sons...

Oh! Deus! Como sou feliz em ter as cores, ser as cores, viver nesse momento todas essas cores desse Rio – desse Santo Rio!

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O Sol nasce no horizonte do Velho Chico e desperta a cidade de Manga nas primeiras horas da manhã de

um novo dia. Os barcos aguardam a partida no porto

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Como o correr das águas

As coisas do tempo não são explicadas. Pois o tempo é seu movimento, indiferente, quase sempre, às cores e aos sons dessa vida que passa - e como passa!

Assim como hoje, ao escrever esta crônica, em que a minha cidade natal nunca mais será a mesma a partir de um acontecimento inusitado dentro desses movimentos do cotidiano. Passo a ter um outro olhar, com os sabores do sentimento!

Nos últimos anos tenho visitado minha cidade, assim como a visitar um santuário. É como uma prece no altar! É como uma prece de fé no orar! É como caminhar nas mesmas trilhas com o mesmo olhar de ontem.

Nada de novo tinha acontecido a não ser o correr das águas que molham minhas retinas.

Mas um dia sou despertado pelos sabores de menino, pelo carinho, pelos sotaques de outrora, como uma música distante a retocar meus ouvidos. Tenho o olhar da adolescência no brilho do olhar de uma outra adolescência que me rodeia, que me apeia desse cavalgar do destino.

Nessas surpresas, os sentimentos me envolvem por completo. Sou o silêncio dileto sob o comando do coração adolescente – tão discreto!

No poema encontro as respostas desses encontros que o tempo nos desperta sem nenhum aviso. Sem nenhum sinal nos horizontes. Sei, apenas, que são os tempos do agora que nos entrelaçam no outrora como se não existisse tempo nenhum.

Descobrimos nesses novos encontros o sabor “do nós”, apenas nós – nessa união intrínseca do coração a palpitar em todos os lugares do mundo - mas com todas as partidas a partir desse nosso primeiro porto.

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Nada, nessa cidade dos meus primeiros gritos, dos meus primeiros sonhos, das minhas primeiras partidas será, como antes com o enlace desse novo olhar, desse novo tocar, desse novo sentir, desse novo sonhar.

Volto a ter comigo o sotaque de ontem como uma cantiga de ninar.Eu, que andei por tanto lugares e que olhei para tantos olhares, volto

a me lambuzar com o sabor de manga no meu porto, no nosso porto!

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Uma fl or para o Velho Chico

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Nos tablados da Escola

Recebi de presente um CD da minha Tia Lourdes, assim que cheguei a sua casa para almoçar nas férias do mês de julho. Letras de professora destacavam a cor azul sobre o amarelo forte do envelope. Minha tia olhou-me com seus pequenos e vividos olhos ao expressar seu contentamento sobre aquelas imagens: “Carlos, um aluno de uma Escola Estadual de Brejo São Caetano se vestiu de terno e lhe representou como “Destaque de Minas”, durante um evento”.

Fiquei em silêncio! Como lamentei não ter aquelas imagens abertas, mas precisava de um computador para exibi-las. Não eram instantâneas como as fotos em papel. Fiz cara feia para o avanço da tecnologia por alguns instantes.

“Você não tem como vê-las?”A pergunta tinha um tom de ordem. Voltei à realidade. Ela,

minha Tia, também se encontrava ansiosa para ver aquele garoto, o aluno Guilherme da Silva Bassi, possivelmente com seus 12 anos de idade, homenageando o escritor manguense, autor do livro o Sabor de Manga.

Almocei com pressa. Apenas usando a mão direita. Não abri a mão esquerda. Segurava como um troféu aquele CD reluzente.

Deixei a casa da minha tia imediatamente. Olhei para trás e deparei com seu olhar. Nosso silêncio na distância de alguns passos eram sinais de esperança. Sim! Precisamos encontrar uma maneira de abrir aquele Cd. Mas, como? Refl eti ansioso.

Retornei até a minha casa, lá na Rua Coronel Joaquim Lôpo. Abri a pesada porta de madeira. Olhei para todos os lados da grande casa que nasci. Olhei em minhas mãos aquele CD. Ali, um garoto representava-me. Ele, na sua infância, quase adolescente, a construir caminhos.

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Passeei até o quintal. Espiei o terreiro batido à procura das marcas da minha cidade

miniatura, Carlópolis, entre as folhas verdes dos pés de limão e do ipê. O meu primeiro sonho concreto edifi cado com telhas miúdas que, exatamente com a idade do estudante Guilherme, se estendeu sobre a terra com os amigos de rua e de escola. Não tinha mais cidade, naquele imenso quintal, apenas leves lembranças. No lugar, um jardim bem fl orido.

Apertei mais forte o CD. Espremi-o com emoção. Uma força descomunal como a querer imprimir aquelas imagens como milagre entre as mãos. Não! Era impossível!

Sem alternativa, guardei na minha mala aquela preciosidade, como se guarda uma jóia rara em caixa de tesouros. Mas não sabia ainda seu real valor!

Fui cobrado todos os dias durante uma semana: tempo que fi quei em minha terra natal. Tia Lourdes resmungou umas palavras, mas desviei a atenção. Ela queria o CD de volta?

Ouço sua voz: “Carlos, você vai levar para Belo Horizonte o CD”? Respondi prontamente: “Sim! - mas precisamos antes abri-lo

aqui...”Não falamos mais no CD até minha partida.Passados quinze dias, reabro minha mala em Belo Horizonte. Lá

no canto, bem acomodado, se aloja o CD. Encontro-me na minha escrivaninha. Fico tenso ao colocá-lo no CD-ROM. Dezenas de imagens se oferecem ao meu primeiro toque. Quais delas sou eu?

Relembro o nome do aluno – sim – Guilherme. Clico sobre seu nome. Afasto-me trêmulo. Eis, o garoto, moreno, olhos negros, cabelos lisos, vestido com impecável terno escuro (um pouco maior que seu manequim), a desfi lar em um tablado de madeira. Leva atravessado no peito uma faixa branca de cetim. Letras negras bordam meu nome:

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Carlos Diamantino. Engoli um grito doce, um grito de rio, de sol do sertão... um grito de

menino das barrancas do Velho Chico lambuzado com Sabor de Manga – bem debaixo do pé.

Ah! Um grito que só minha tia Lourdes ouviu, pois ela sabia ouvir o meu coração, principalmente quando agradecia do fundo da alma a homenagem simples e singela da minha gente. Como tenho a agradecer aquela lembrança, aquela iniciativa da diretora da EE de Brejo São Caetano do Japuré, distrito de Manga, Alcina Adélia Severo Guimarães, e da professora de português, Maria Goreth Gomes da Silva.

Voltei a guardar o CD – agora numa caixa de Pandora!

O Estudante Guilherme da Silva Bassi da EE de São Caetano do Japuré

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Chuva nossa de cada dia

Voltar ao Norte de Minas sempre foi uma satisfação muito especial,

afi nal volto aos caminhos da minha origem – com chuva, então é como retornar levitando, sentindo o cheiro de mato, de poças d água, de sons molhados. Essa gostosa e inesquecível sensação de vida a cair do Céu (sim, com letra maiúscula) senti no corpo e na alma ao desembarcar na cidade de Montes Claros, no mês dezembro.

O tempo se encontrava fechado, nuvens negras a desaguar sobre a terra e sobre a esperança daquelas pessoas que transitavam indiferentes as gotas milagrosas. Uma chuva que não cai das nuvens, mas do Céu que se espalhava pelo sertão adentro. Ali a chuva não tinha intermediário, nada de nuvens, vinha direto da torneira do São Pedro, como se dizia lá no Norte, nas barrancas.

E a chuva nos meus passeios pelas ruas empoçadas brincava no seu bailar entre os ventos da noite, da madrugada, do amanhecer...

Como mais um milagre dos tempos, a chuva se foi ao raiar do dia e brotou i imenso Sol no horizonte.

As poças se encontravam pelos caminhos. Ninguém se incomodava. Muitos deixavam respingar em suas vestes, molhavam seus pés, estendiam até mesmo as mãos a descobrir uma mina d`água.

Lembro-me de alguém resmungando que a chuva não parava e que incomodava... Ah! ele não era do sertão das Minas Gerais - ele se encontrava de passagem, ele era do Sul! Assim ele ouviu a resposta com o sotaque sertanejo:

“O senhor pode ser até excomungado. Vire, enquanto é tempo, esta sua boca pra lá e deixa as nuvens do Céu se ajuntar e rolar a tão preciosa água sobre nossas secas terras e assim germinar”.

Montes Claros não tinha pressa. O dia se encontrava na sua leveza,

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como sombras das árvores, sem o calor que marcava aquelas paragens.E nos caminhos do sertão fui apreciando o verde brotar, as sementes

semeadas, os chapéus de palha dos sertanejos como em prece estendidos ao Céu e as crianças em gargalhadas a redescobrir a esperança no porvir.

As igrejas se encontravam de portas abertas, repletas de fi éis a pagarem suas promessas. Nas orações, o agradecimento da chuva nossa de cada dia, do Céu – Amém!

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Volto a minha terra,volto ao meu rio!

Silêncio! Silêncio no meu coração barranqueiro! Passaram quase mil quilômetros - sinto o cheiro do rio no ar morno do sertão mineiro. Ouço também o navegar dos ventos. O Sol aquece o Cerrado, uma fl or roxa, por milagre, expressa sua cor na mata seca, retorcida. As bananeiras estendidas à margem do asfalto trazem um verde novo e desconhecido em suas raízes molhadas, irrigadas...

De repente, como em um sonho, a outra margem surge, enquanto o asfalto cinzento beija as águas do majestoso Rio São Francisco. A minha casa, a minha gente, o meu passado. Tudo e todos, ali! As lembranças correm na velocidade do rio – lento, muito lento, sem pressa, mas vivo!

A grande balsa de ferro e aço, lotada de carros motorizados, rasga as marés leves e soltas, que passam a me acompanhar até o barranco, que como um alicerce de barro e pedra, segura a cidade-fruta, que resplandece nos raios dourados do sol poente.

Respiro fundo! Sinto envolver-me no calor desse mundo, que não me sufoca, mas me enobrece, nesse retorno sertanejo. Piso, como piso, esse chão quente com os pés nus e não os queimo. Abro meu peito, solto meus cabelos ao ar quente e olho do alto o rio... e rio...rio...e rio!

A minha casa, a mesma casa, de cores novas me espera, com suas janelas abertas ao rio. O mesmo quintal de fl ores que brotam; os mesmos pássaros com seus cantos antigos que envolvem no presente como se não existisse passado. Volto a voar nas suas asas e nos seus sonhos passarinhos. Tantas cores, tantos sons. No céu voam as gaivotas, as garças nos caminhos da liberdade no infi nito céu. Ouço, como um soluço de saudades, suas algazarras ao anoitecer, como a imitar os meus

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gritos de outrora jogados nas ruas da cidade, nos passeios das canoas, nas braçadas nas águas doce.

Tenho, por sorte, todo o tempo do mundo. Não tenho pressa e navego na velocidade do canoeiro, que deixa, ao entardecer, sua rede estendida sob as águas do majestoso rio. Ele tem a esperança, o peixe, o rio.

O Velho Chico, o Chico Velho!, que não me deixa nunca! E vou fi cando, fi ncando minhas raízes no semear das sementes entre

os pingos de água doce que se misturam nos pingos salgados da minha face, nesses encontros repentinos com os conterrâneos barranqueiros, nas conversas jogadas ao morno vento que se misturam com as águas dos tempos – novos e antigos - das pessoas que chegam, das faces rugosas que se vão; das vozes roucas que se esforçam, das conversas alegres que se apaixonam; dos passos trôpegos, do curvar do corpo pela força dos dias que se passam e que se acumulam; dos cabelos brancos, frágeis e leves, e das rebeldias das idades que se iniciam no correr do rio. Tantos caminhos, tantos rios!

E nessa minha meditação a navegar, percebo o quanto é difícil calar a mente, acalmar a atividade dos movimentos encravados da metrópole, que insistem em fi car. Mas o sertão mineiro tem o seu silêncio, seu perfume natural, o seu calor de ventos mornos e sol, nesses caminhos do rio que me faz renascer e crescer por dentro, até a próxima partida, com sabores do ontem e do agora, o que tanto me vigora.

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Pássaros a navegar no barco pelo São Francisco

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“Dia dos Gerais”

Uma cena inusitada se hospeda na mente desse barranqueiro sonhador.

Olho o rio ao amanhecer e aprecio o pincel do Criador a bordar o mais perfeito quadro com as cores latentes da natureza.

As nuvens se envolvem com os raios solares e se jogam sobre as águas do rio. O sol nasce no horizonte do sertão mineiro.

Volto a olhar o céu e acompanho o rodopiar das hélices de um grande helicóptero. Fico atordoado, como se observasse uma nave espacial a cortar o vento morno - a rasgar as nuvens.

Procuro seu rumo e eis que ele se dirige para a cidade de Matias Cardoso. Todos apontam para as nuvens que ainda brincam com as pinceladas das variações das cores do céu.

Ouço ao meu lado uma voz: “É o helicóptero do governador de Minas e sua comitiva. Vieram para as comemorações do “Dia dos Gerais”, na cidade de Matias”.

Fecho os olhos por alguns segundos e comovido pergunto:

“É possível? Não é mais um sonho?

A resposta, o leitor, assim como eu, encontra estampada na página do jornal O Médio São Francisco, edição de setembro de 2008, sobre o futuro da igreja de Nossa Senhora da Conceição, fundada em 1675, na cidade de Matias Cardoso, considerada uma das mais antigas do Estado. Segue a reportagem:

Matias Cardoso passa a ser capital simbólica de Minas Gerais. Propõe-se a data de oito de dezembro para a comemoração, em referência ao dia

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consagrado a Nossa Senhora da Conceição.Começo a contagem regressiva para que essas cenas se tornem

realidade aqui no sertão mineiro, com o desembarque na Praça de Matias Cardoso do governador.

Com orgulho quero escrever um dos mais históricos momentos da minha vida: “Governador de Minas abre solenidade da comemoração do Dia dos Gerais em Matias Cardoso, no Norte de Minas”.

A união dos nossos esforços, com certeza, consolidará de muito em breve esse sonho barranqueiro.

Acontecerá a cerimônia numa manhã de sol nascente às margens do Velho Chico sob as variações das cores do céu do sertão.

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A Igreja de Nossa Senhora da Conceição, em Matias Cardoso, no Norte de Minas,

considerada a mais antiga de Minas Gerais, está em avançado estado de degradação, sob

risco de agravar ainda mais a situação. Sua importância histórica - no entorno surgiu o

primeiro povoamento e núcleo urbano de Minas Gerais, segundo estudos - não tem sido

sufi ciente para garantir a restauração. A igreja é tombada pelo Instituto do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Ela foi construída pelos jesuítas, no século XVII

- as obras começaram em 1672 e terminaram em 1695. A igreja foi tombada pelo Iphan

em 1954 como patrimônio nacional. Desde sua construção, passou por uma reforma, em

1912, e conserto e pintura, em 1998, realizada.

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Um encontro de tantos encontros

Gostaria de ser o primeiro a chegar, mas outros manguenses já se encontravam. . .Gostaria de ser o último a partir, mas muitos dos meus conterrâneos ali permaneceram: naquele encontro, de tantos encontros. Assim poderia sintetizar o Iº Encontro do Manguense Ausente, realizado em Belo Horizonte, no bairro Santa Teresa, no dia 18 de outubro do ano de 2003.

No meu olhar, de ansiedade, buscava as faces, os sorrisos, os encantos, as vozes com seus sotaques carregados, os passos de ontem. Era como um sonho vivo, preso à nostalgia. Acredito que quatro gerações se envolviam entre os sons do outrora com os do agora. E aos poucos fomos saboreando aquela fruta que nunca perde seu sabor e seu aroma. Um sabor doce, envolvido em fi bras, como os raios fortes do sol do sertão, que marcaram defi nitivamente nossas faces. Um sabor de saudades que se entrelaçavam como nos fi os de água do Velho Chico nas suas enchentes quando corriam vapores.

Tantos olhares, tantos nomes, muitos que se perderam no tempo e se reencontraram no Iº Encontro do Manguense - Sales, Ferreira, Diamantino, Pastor, Pinheiro, Lima, Alkmim, Chaves, Nascimento, Vieira, Fernandes, França, Silva, Santos, Dutra, Mendonça, Correa, Dourado, Mota...que assim como as raízes das matas ciliares encravadas nas margens do majestoso Rio nunca abandonam sua terra. Nas perguntas, quase sempre decoradas da distância, uma resposta também decorada de uma viagem de vidas: Apenas um passeio, um dia eu volto pra minha terra, pra minha gente! Mas quantos anos já se passaram - cinco, dez, trinta, quarenta, cinqüenta anos -, todos contados, amontoados, soltos, largados, enfi leirados nas cestas de dias.

Naquele encontro, de tantos encontros, a boa pinga, o seco torresmo,

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a temperada linguiça, a carne-de-sol desfi ada, a mandioca ensopada, a pinga com limão, tudo vai se misturando ao som do violão de Marina, da voz de Marina, da menina Marina, com os pés no chão a correr lá da Rua do Cascavel, bem perto da Usina. Também na voz do Claudinho, o fi lho de Joaquim Sedan, que deixa seus dedos mágicos a brincar nas cordas do violão, como a afogar o passado, tão romântico, belo, natural, solto, nas cantigas de nossa gente que nos faz voltar ao tempo. Eu, no meu canto, me encanto com minha gente, sinto-me grande e mais feliz.

Que momento memorável, tão bem fi ado pela perseverança e dinamismo do Leonardo, fi lho do manguense Zé Pinheiro, que soube seguir o ensinamento do pai e costurar com paciência, como um canoeiro ao pescar o peixe no deslizar do rio, tecendo ponto a ponto o passado, o tempo presente e o futuro, abre as cortinas do passado ao presente, aos manguenses, com todas as suas cores, numa noite de primavera belorizontina, fazendo renascer um fruto chamado eternamente Manga, com todos seus sabores de vidas-vividas.

Marcas que não se apagam, como o cantar do hino, vidas em livros, que mostram teu povo, suas culturas e seus costumes em tuas cantigas, em teu rimar de vidas em seus fi lmes, a registrar teu povo, em tuas culturas e tuas crenças, vidas em teus quadros, que da pintura eternizam as edifi cações de um passado já distante. E tudo se completa, nas letras rasbicadas pela emoção do conterrâneo Geraldo Corrêa, o Geraldo de Clara, que se harmonizam ao contar nossa história.

Passados seis anos, em 2009, encontro na rua da beira do rio, a Coronel Joaquim Lôpo, o Tião Couver, músico que esteve presente no “encontrão” manguense em BH. Fui até sua casa e recebi de presente um CD. Antes, ele abriu toda a sonoridade do seu violão e da sua voz recordando aqueles momentos em uma canção no potente som, que fez estremecer os estreitos aposentos. Na sua residência, onde morou

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o amigo da minha rua da infância, João Babá, deleitei-me com aquele som. Sem dúvida, um hino para os manguenses ausentes. Foi como retornar aos olhares dos manguenses de ontem!

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Lá prás bandas do sertão mineiro, onde o Sol parece querer pousar na terra, em

que o forte calor de ouro ferve a alma... Naquele distante mundo, onde as águas desmaiam em sonhos

- correm milhões de vidas, milhões de saídas. Lá na terra seca que espera sem desesperar os pingos caírem

do céu; Lá onde o céu se aproxima da terra com suas estrelas a beijar o

chão; Lá nas fl ores roxas, amarelas, brancas, retorcidas nos ventos;

Lá... eu nasci!