livro fundamentos historicos da educacao no brasil

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FUNDAMENTOS HISTRICOS DA EDUCAO NO BRASIL

EDITORA DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARING

Reitor Vice-Reitor Diretor da Eduem Editor-Chefe da Eduem

Prof. Dr. Dcio Sperandio Prof. Dr. Mrio Luiz Neves de Azevedo Prof. Dr. Ivanor Nunes do Prado Prof. Dr. Alessandro de Lucca e Braccini

CONSELHO EDITORIAL

Presidente Editor Associado Vice-Editor Associado Editores Cientcos

Prof. Dr. Ivanor Nunes do Prado Prof. Dr. Ulysses Cecato Prof. Dr. Luiz Antonio de Souza Prof. Adson Cristiano Bozzi Ramatis Lima Profa. Dra. Analete Regina Schelbauer Prof. Dr. Antonio Ozai da Silva Prof. Dr. Clves Cabreira Jobim Prof. Dr. Edson Carlos Romualdo Prof. Dr. Eliezer Rodrigues de Souto Prof. Dr. Evaristo Atncio Paredes Prof. Dr. Joo Fbio Bertonha Profa. Dra. Maria Suely Pagliarini Prof. Dr. Oswaldo Curty da Motta Lima Prof. Dr. Reginaldo Benedito Dias Prof. Dr. Ronald Jos Barth Pinto Profa. Dra. Dorotia Ftima Pelissari de Paula Soares Profa. Dra. Terezinha Oliveira Prof. Dr. Valdeni Soliani Franco Profa. Dra. Luzia Marta Bellini Profa. Dra. Valria Soares de Assis

EQUIPE TCNICA

Projeto Grco e Design Fluxo Editorial

Marcos Kazuyoshi Sassaka Edneire Franciscon Jacob Mnica Tanamati Hundzinski Vania Cristina Scomparin Edilson Damasio Artes Grcas Luciano Wilian da Silva Marcos Roberto Andreussi Marketing Marcos Cipriano da Silva Comercializao Norberto Pereira da Silva Paulo Bento da Silva Solange Marly Oshima

FORMAO DE PROFESSORES - EAD

Ednia Regina Rossi Elaine Rodrigues Ftima Maria Neves(ORGANIZADORAS)

Fundamentos histricos da educao no Brasil2. ed. revisada e ampliada

Maring 2009

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Coleo Formao de Professores - EADApoio tcnico: Rosane Gomes Carpanese Normalizao e catalogao: Ivani Baptista CRB - 9/331 Reviso Gramatical: Annie Rose dos Santos Edio e Produo Editorial: Carlos Alexandre Venancio Capas: Jnior Bianchi Reviso Grca: Eliane Arruda Colaborao: Fernando Truculo Evangelista

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

F981

Fundamentos histricos da educao no Brasil / Ednia Regina Rossi, Elaine Rodrigues, Ftima Maria Neves, organizadoras. 2. ed. rev. e ampl. Maring: Eduem, 2009. 166 p. ; 21 cm. (Formao de Professores - EAD; v. 4).

ISBN 978-85-7628-171-9 1. Educao Histria Brasil. 2. Ensino no Brasil Histria. 3. Educao Histria Paran. I. Rossi, Ednia Regina. II. Rodrigues, Elaine. III. Neves, Ftima Maria, orgs. CDD 21. ed. 370.981

Copyright 2009 para o autor Todos os direitos reservados. Proibida a reproduo, mesmo parcial, por qualquer processo mecnico, eletrnico, reprogrco etc., sem a autorizao, por escrito, do autor. Todos os direitos reservados desta edio 2009 para Eduem.

Endereo para correspondncia: Eduem - Editora da Universidade Estadual de Maring Av. Colombo, 5790 - Bloco 40 - Campus Universitrio 87020-900 - Maring - Paran Fone: (0xx44) 3261-4103 / Fax: (0xx44) 3261-4253 http://www.eduem.uem.br / [email protected]

S umrioSobre os autores

> 5 > 7 > 9 > 13

Apresentao da coleo

Apresentao do livro

CAPTULO 1 A histria da educao no Brasil a trajetria de um campo de ensino e de pesquisaFtima Maria Neves

CAPTULO 2 A educao no Brasil Colonial (1549-1759)Clio Juvenal Costa / Sezinando Luiz Menezes

> 31

CAPTULO 3 A educao brasileira na segunda metade do sculo XVIII (1759-1822)Ivana Veraldo

> 45

CAPTULO 4 O mtodo pedaggico de Lancaster e a instituio do estado nacional brasileiroFtima Maria Neves

> 57

CAPTULO 5 As bases da construo do sistema educacional durante o Segundo Reinado (1850-1889)Analete Regina Schelbauer

> 773

FUNDAMENTOS HISTRICOS DA EDUCAO NO BRASIL

CAPTULO 6 O projeto de educao da modernidade e a constituio da identidade da nao brasileira na Primeira Repblica (1889-1929)Ednia Regina Rossi

> 89

CAPTULO 7 Manifesto dos pioneiros da educao nova (1932) e a construo do sistema nacional de ensino no BrasilMaria Cristina Gomes Machado

>103

CAPTULO 8 O projeto educacional brasileiro no regime militar: uma educao de classe (social)Ana Paula Hey / Afrnio Mendes Catani

> 121

CAPTULO 9 O projeto de educao e a redemocratizao nacional: em destaque o estado do Paran de 1980Elaine Rodrigues

>135

CAPTULO 10 Histria da Educao: construindo a Escola Cidad, no estado do Paran, de 1990Elaine Rodrigues

>153

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S obre os autoresAFRNIO MENDES CATANIAfrnio Mendes Catani Professor da Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo (USP). Graduado em Administrao (EAESP/FGV). Mestre em Sociologia (USP). Doutor em Sociologia (USP). Livre-Docente em Educao (USP). Pesquisador do CNPq.

ANALETE REGINA SCHELBAUERProfessora do Programa de Ps-Graduao em Educao e do Departamento de Teoria e Prtica da Educao da Universidade Estadual de Maring (UEM). Graduada em Pedagogia (UEM). Mestre em Educao (UEM). Doutora em Educao (USP).

ANA PAULA HEYAna Paula Hey Professora do Departamento de Sociologia da Universidade de So Paulo (USP). Professora do Programa de Ps-Graduao em Educao (UMESP). Graduada em Educao (UFPR). Mestre em Educao (UFSCar). Doutora em Educao (UFSCar), com estgios de pesquisa na cole des Hautes tudes en Sciences Sociales (Paris, Frana).

CLIO JUVENAL COSTAProfessor do Programa de Ps-Graduao em Educao e do Departamento de Fundamentos da Educao da Universidade Estadual de Maring (UEM). Graduado em Filosoa (PUC-PR). Mestre em Educao (UEM). Doutor em Educao (Unimep).

EDNIA REGINA ROSSIProfessora do Programa de Ps-Graduao em Educao e do Departamento de Fundamentos da Educao da Universidade Estadual de Maring (UEM). Graduada em Pedagogia (UEM). Mestre em Educao (UEM). Doutora em Histria e Sociedade (Unesp-Assis).

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FUNDAMENTOS HISTRICOS DA EDUCAO NO BRASIL

ELAINE RODRIGUESProfessora do Programa de Ps-Graduao em Educao e do Departamento de Fundamentos da Educao da Universidade Estadual de Maring (UEM). Graduada em Pedagogia (UEM). Mestre em Educao (UEM). Doutora em Histria e Sociedade (Unesp-Assis).

FTIMA MARIA NEVESProfessora do Programa de Ps-Graduao em Educao e do Departamento de Fundamentos da Educao da Universidade Estadual de Maring (UEM). Graduada em Pedagogia (UEM). Mestre em Educao (Unimep). Doutora em Histria e Sociedade (Unesp-Assis)

IVANA VERALDOProfessora do Departamento de Fundamentos da Educao da Universidade Estadual de Maring (UEM). Graduada em Pedagogia (UEM). Mestre em Educao (UEM). Doutora em Histria e Sociedade (Unesp-Assis).

MARIA CRISTINA GOMES MACHADOProfessora do Programa de Ps-Graduao em Educao e do Departamento de Fundamentos da Educao da Universidade Estadual de Maring (UEM). Graduada em Pedagogia (UEM). Mestre em Educao (UEM). Doutora em Educao (Unicamp).

SEZINANDO LUIZ MENEZESProfessor do Programa de Ps-Graduao em Histria e do Departamento de Histria da Universidade Estadual de Maring (UEM). Graduado em Histria (UFMS). Mestre em Histria (USP). Doutor em Histria (USP).

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A presentao da ColeoA coleo Formao de Professores - EAD teve sua primeira edio publicada em 2005, com 33 ttulos nanciados pela Secretaria de Educao a Distncia (SEED) do Ministrio da Educao (MEC) para que os livros pudessem ser utilizados como material didtico nos cursos de licenciatura ofertados no mbito do Programa de Formao de Professores (Pr-Licenciatura 1). A tiragem da primeira edio foi de 2500 exemplares. A partir de 2008, demos incio ao processo de organizao e publicao da segunda edio da coleo, com o acrscimo de 12 novos ttulos. A concluso dos trabalhos dever ocorrer somente no ano de 2012, tendo em vista que o nanciamento para esta edio ser liberado gradativamente, de acordo com o cronograma estabelecido pela Diretoria de Educao a Distncia (DED) da Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal do Ensino Superior (CAPES), que responsvel pelo programa denominado Universidade Aberta do Brasil (UAB). A princpio, sero impressos 695 exemplares de cada ttulo, uma vez que os livros da nova coleo sero utilizados como material didtico para os alunos matriculados no Curso de Pedagogia, Modalidade de Educao a Distncia, ofertado pela Universidade Estadual de Maring, no mbito do Sistema UAB. Cada livro da coleo traz, em seu bojo, um objeto de reexo que foi pensado para uma disciplina especca do curso, mas em nenhum deles seus organizadores e autores tiveram a pretenso de dar conta da totalidade das discusses tericas e prticas construdas historicamente no que se referem aos contedos apresentados. O que buscamos, com cada um dos livros publicados, abrir a possibilidade da leitura, da reexo e do aprofundamento das questes pensadas como fundamentais para a formao do Pedagogo na atualidade. Por isso mesmo, esta coleo somente poderia ser construda a partir do esforo coletivo de professores das mais diversas reas e departamentos da Universidade Estadual de Maring (UEM) e das instituies que tm se colocado como parceiras nesse processo. Neste sentido, agradecemos sinceramente aos colegas da UEM e das demais instituies que organizaram livros e ou escreveram captulos para os diversos livros desta coleo. Agradecemos, ainda, administrao central da UEM, que por meio da atuao direta da Reitoria e de diversas Pr-Reitorias no mediu esforos para que os trabalhos pudessem ser desenvolvidos da melhor maneira possvel. De modo bastante7

FUNDAMENTOS HISTRICOS DA EDUCAO NO BRASIL

especco, destacamos o esforo da Reitoria para que os recursos para o nanciamento desta coleo pudessem ser liberados em conformidade com os trmites burocrticos e com os prazos exguos estabelecidos pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educao (FNDE). Internamente enfatizamos, ainda, o envolvimento direto dos professores do Departamento de Fundamentos da Educao (DFE), vinculado ao Centro de Cincias Humanas, Letras e Artes (CCH), que no decorrer dos ltimos anos empreenderam esforos para que o curso de Pedagogia, na modalidade de educao a distncia, pudesse ser criado ocialmente, o que exigiu um repensar do trabalho acadmico e uma modicao signicativa da sistemtica das atividades docentes. No tocante ao Ministrio da Educao, ressaltamos o esforo empreendido pela Diretoria da Educao a Distncia (DED) da Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal do Ensino Superior (CAPES) e pela Secretaria de Educao de Educao a Distncia (SEED/MEC), que em parceria com as Instituies de Ensino Superior (IES) conseguiram romper barreiras temporais e espaciais para que os convnios para a liberao dos recursos fossem assinados e encaminhados aos rgos competentes para aprovao, tendo em vista a ao direta e eciente de um nmero muito pequeno de pessoas que integram a Coordenao Geral de Superviso e Fomento e a Coordenao Geral de Articulao. Esperamos que a segunda edio da Coleo Formao de Professores - EAD possa contribuir para a formao dos alunos matriculados no curso de Pedagogia, bem como de outros cursos superiores a distncia de todas as instituies pblicas de ensino superior que integram e ou possam integrar em um futuro prximo o Sistema UAB. Maria Luisa Furlan CostaOrganizadora da Coleo

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A presentao do livroUm texto, concebido sob a perspectiva da anlise histrica, estabelece um dilogo entre o presente e o passado. Nesse dilogo, temos como premissa a no existncia de um passado puro, que possa ser reconstitudo tal como foi. A concepo que se tem sobre a relao entre presente e passado bastante controversa na Histria da Educao. Essas concepes so diferentes, porque provenientes de diferentes prticas de escrita da histria. Entendemos que a opo do historiador da educao a de apresentar uma possibilidade interpretativa, no o fato em si, mas sua representao, porque ltrada pelo olhar de quem escreve. Observamos que a historiograa da educao, como campo de investigao, questiona a tradio da histria como cincia do passado; apresenta argumentos a favor do relativismo da cincia histrica; destaca que um fato possui vrias possibilidades de ser interpretado e ou descrito; refora anlises integradoras, evitando, portanto, a priorizao de hierarquias analticas. A representao do passado e do que se considera importante representar um processo em constante mudana, que congura e recongura contornos na historiograa da educao. Devemos salientar que o fazer da escrita histrica mutvel, porque o historiador, no presente, problematiza o passado, reescrevendo-o constantemente. Grosso modo, os marcos temporais registrados no livro vo dos primrdios da construo da civilizao brasileira contemporaneidade. No obstante, o procedimento que os autores utilizaram para pensar sua periodizao divergente. H captulos que ressaltam o panormico vis do recorte poltico, como o perodo colonial, imperial e republicano, como tambm h estudos nos quais o recorte produzido e justicado por meio do objeto de estudo. As diferenas autorais, tambm, aparecem em relao concepo, identicao, priorizao e ao uso das fontes. H captulos que compreendem fonte como matriz explicativa da sociedade em geral, estabelecendo, desta forma, uma hierarquia entre os documentos por meio dos quais se reconstri a histria. H ainda captulos que concebem fonte como instrumento que representa e resulta do desejo de quem as produziu, de construir uma determinada imagem de si mesma ou de no mximo seu grupo social, intencionalmente ou no. Considerando esses argumentos, ns, organizadoras deste livro, trabalhamos com o9

FUNDAMENTOS HISTRICOS DA EDUCAO NO BRASIL

intuito de apresentar temas, sistematizados por meio de captulos, que amparam uma multiplicidade de recortes investigativos. Por isso, entre os objetivos que nortearam a organizao, a elaborao e a apresentao do volume FUNDAMENTOS HISTRICOS DA EDUCAO NO BRASIL, destacam-se a construo do campo disciplinar, os objetos e os recortes temticos que so priorizados pela historiograa do campo da Histria da Educao Brasileira. Manter a unidade na diversidade foi a forma de expressarmos a tenso que permeia todos os olhares presentes em nosso livro, embora o recorte formulador do objeto seja comum a todos autores: a Histria da Educao Brasileira. Mantivemos a diversidade de interpretaes de nossos colaboradores quanto apresentao dos resultados e s convices formuladas em suas pesquisas. Entendemos que na diversidade e no na homogeneidade que reside a riqueza da contribuio de cada um para a formao dos alunos. Ftima Maria Neves, no primeiro captulo, apresenta como a Histria da Educao no Brasil vem se construindo ao longo do sculo XX, no por meio de uma temtica especca da disciplina, mas com base nas questes que permeiam o discurso historiogrco do campo. Reala o esforo empreendido pelos historiadores da educao para romper com o modelo tradicionalmente imposto durante sua instituio, buscando proximidade com a operao historiogrca. Incursionando pelo perodo colonial, Clio Juvenal Costa e Sezinando Menezes, no segundo captulo, enfatizam a hegemonia educacional dos jesutas no Brasil entre 1549 e 1759. Trabalhando com um conceito de educao bastante amplo, os autores enfocam duas formas assumidas pela educao jesutica: a formal e a informal. No terceiro captulo, Ivana Veraldo preocupou-se com a estruturao da educao brasileira na segunda metade do sculo XVIII, revelando a importncia que a conjuntura portuguesa teve para o entendimento do sentido das reformas pombalinas no interior da crise do sistema colonial. Por meio da apresentao e da anlise da Lei de 10 de outubro de 1827, Ftima Maria Neves, no captulo quarto, investigou questes ligadas modernidade dos mtodos pedaggicos, fundamentalmente a implantao do Ensino Mtuo e do Mtodo Pedaggico de Lancaster para a instruo pblica, no contexto da consolidao poltica do estado monrquico brasileiro. Analete Schelbauer, no captulo quinto, versou sobre os propsitos da campanha pela universalizao da educao popular levada a efeito pelos pases desenvolvidos. Segundo sua abordagem, essa campanha desencadeou-se concomitantemente ao processo de reorganizao do capital em ns do sculo XIX e incio do sculo XX, o que resultou na interveno do Estado na criao da escola primria de ensino obrigatrio, laico e gratuito

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para as classes populares e na consequente organizao dos Sistemas Nacionais de Ensino em diversos pases. Ednia Regina Rossi, no sexto captulo, reetiu acerca da apropriao, por educadores e polticos da Primeira Repblica, dos ideais de educao da modernidade. Para ela, esses princpios foram tornados referncia pedaggica e deles nos sentimos herdeiros toda vez que expressamos a defesa da escola pblica, universal, nica para todos e gratuita. Enfatizando que eles no se efetivaram e nem se zerem sentir da mesma maneira, sendo re-signicados pelos contextos cultural e histrico, a autora embasa seus argumentos a partir da observao de fontes do Estado de So Paulo durante a Primeira Repblica (1889-1929). Maria Cristina Gomes Machado, no stimo captulo, transitou por transformaes amplas da economia e da poltica, tanto nacionais como internacionais, aliando os ideais de educao do perodo formao do trabalhador nacional para as novas relaes de trabalho. Apresenta o Movimento dos Pioneiros de 1932 e os ideais da escola nova, cuja base foi o Manifesto dos Pioneiros. Em sua viso, esse documento reforou a ideia, j presente anteriormente, de uma educao integral para ambos os sexos e da organizao de um sistema nacional de ensino. Ana Paula Hey e Afrnio Mendes Catani redigiram o oitavo captulo. Com referncia no perodo entre o ps-64 e meados dos anos 1970, eles analisam o projeto educacional brasileiro no regime militar como uma ordenao da educao de classe (social). Esse perodo entendido pelos autores como um momento profcuo para o entendimento das relaes entre educao e sociedade, sobretudo de como a prpria legislao consolida um tipo de viso do mundo social. No nono captulo, duas questes motivaram Elaine Rodrigues. A primeira: que relaes se podem estabelecer entre os elementos que compuseram o projeto educacional para a nao brasileira e os que foram idealizados para o Paran, na dcada de 1980? A segunda: qual era o diagnstico educacional da poca? Elaine Rodrigues, no dcimo captulo, convida o leitor a reetir sobre a cidadania, um dos temas que se destacou nos anos de 1990, no somente nas discusses organizadas em eventos acadmicos, nas publicaes, nos discursos polticos veiculados em defesa dos movimentos populares, mas tambm em documentos ociais publicados pelos rgos governamentais, tornando-se um conceito excessivamente utilizado. Ednia Regina Rossi Elaine Rodrigues Ftima Maria NevesOrganizadoras do Livro

Apresentao do livro

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A histria da educao no Brasil a trajetria de um campo de ensino e de pesquisa

Ftima Maria Neves

INTRODUO Este primeiro captulo foi redigido com a inteno de estabelecer uma relao dialgica, com o aluno ou leitor, sobre temas que giram em torno da construo da Histria da Educao no Brasil, como um campo disciplinar voltado ao ensino e produo de conhecimentos por meio de pesquisas. Isso signica que o objetivo deste captulo est em demonstrar a trajetria disciplinar e acompanhar as ideias desenvolvidas pela historiograa, criadas no movimento social que os pesquisadores e educadores realizaram e continuam a realizar para a instituio e para a consolidao da Histria da Educao como campo de ensino e de pesquisa, e no no desvendamento e na anlise interna de temas especcos da Histria da Educao Brasileira, como nos outros captulos deste livro. Observamos que o ensino e a pesquisa em Histria da Educao vm, desde 1990, adquirindo status diferenciado entre os pesquisadores da rea educacional. O ensino, apoiado na pesquisa, vem se renovando e se desenvolvendo no s quantitativa como tambm qualitativamente. Os tradicionais temas1 esto sendo retomados, adquirindo consistncia investigativa diferenciada. Por sua vez, outros temas esto ganhando visibilidade nas pesquisas em Histria da Educao, como alguns que relacionamos a seguir:

1 A formao da sociedade colonial e a educao jesutica (1549-1759); o Iluminismo portugus e as Reformas Pombalinas (1759-1822); a instituio do Estado Nacional e a instruo pblica durante o Primeiro Reinado (1822-1831); o Segundo Reinado e a elaborao dos sistemas de ensino (1840-1889); e todos os projetos educacionais do perodo republicano, desde 1889 at a atualidade.

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FUNDAMENTOS HISTRICOS DA EDUCAO NO BRASIL

histria das instituies escolares; histria da educao e gnero; intelectuais e mtodos pedaggicos; escola e cultural escolar; arquitetura, mobilirio, saberes e prticas escolares; histria da educao infantil brasileira; histria das disciplinas escolares e acadmicas. EM RESUMO: a Histria da Educao, como campo disciplinar de ensino e de pesquisa, vem adquirindo um novo perl, quer com os consagrados temas, quer com os novos que procuram se estabelecer. A constatao e o reconhecimento desse novo perl da Histria da Educao sugerem que perguntemos: como esse perl foi se congurando? Como se deu essa mudana? Como ela vem sendo divulgada pelos interessados no assunto? Para respondermos a esses problemas, o caminho terico-metodolgico escolhido foi o de vericar, nos textos, na produo que os pesquisadores do tema j produziram, e que chamamos de historiograa2, quais as ideias que esto circulando e movimentando o debate sobre a mudana no perl da disciplina de Histria da Educao, ao longo do sculo XX, j sabendo que a Histria da Educao, como disciplina, encontra-se nas estruturas escolares e acadmicas h muito tempo, tendo surgido no nal do sculo XIX sob a inuncia do Positivismo, e como arma a historiadora da educao Eliane Marta T. Lopes, no bojo de um movimento de reao contra a metafsica (LOPES, 1986, p. 18). Para o francs e historiador da educao Andr Chervel (1990, p. 178), uma primeira e importante tarefa para o historiador da educao que se prope a tratar da histria das disciplinas a de denir a noo de disciplina, ao mesmo tempo em que faz a sua histria. Ento vamos l.... HISTRIA DA EDUCAO: ORIGEM TERMINOLGICA Disciplina, palavra de origem latina, signica a instruo que o aluno recebe do mestre; atualmente, entendemos disciplina como um modo de disciplinar o esprito

2 Historiograa um ramo da Cincia da Histria que estuda a evoluo da prpria cincia histrica no interior do desenvolvimento histrico global, ou seja, historiograa a histria da histria. Vem se desenvolvendo desde o incio do sculo XX, mas ganhou maior expressividade na dcada de 70 (LE GOFF, 1996 p. 7).

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[...] dar mtodos e regras para abordar os diferentes domnios do pensamento, do conhecimento e da arte (CHERVEL 1990, p. 180). Denindo disciplina, outras noes se fazem oportunas, como histria e educao. Histria, palavra de origem grega, signica procurar, investigar. Na contemporaneidade, no h uma compreenso nica do termo, porm existe certa concordncia quanto a ela. O francs e historiador de ofcio Jacques Le Goff postulava que a preocupao do historiador era a de relacionar a ordem de permanncia e a ordem de transformao, por isso no entendia a Histria como cincia do passado, mas sim como a cincia da mutao e da explicao dessa mudana (LE GOFF, 1996, p. 15). Entender a Histria como cincia dos homens no tempo e um esforo para um melhor conhecer uma coisa em movimento era como outro historiador, March Bloch (1965, p. 18), a concebia. Educao um termo que nos desaa por seus inmeros signicados. Se seu signicado se aproximar de educatio, termo de origem latina, teremos uma noo de educao que se relaciona com a ao de instruo, formao e transmisso de conhecimentos. Todavia, se o seu signicado se aproximar de educere, termo tambm de origem latina, signica extrair, desabrochar e desenvolver algo no indivduo. Logo, temos que, sob esse vis, propem-se a:uma educao em que o educador exerce o papel de guia no processo ensinoaprendizagem e o educando agente atuante deste processo. Sob este prisma, a atividade educacional concebida como meio para o desenvolvimento das potencialidades do indivduo (NEVES, 2007, p. 10).

A histria da educao no Brasil a trajetria de um campo de ensino e de pesquisa

Diante de tantas diferenas de concepes que enriquecem o campo da educao, consideramos importante registrar e denir que: quando aqui tratamos de Histria da Educao, estamos nos referindo, primeiramente, a uma disciplina acadmica, com regras, estatuto, temas, objetos de estudo e vocabulrio prprio; estamos discorrendo acerca da emergncia de um campo disciplinar, especco, que vem se construindo historicamente, portanto ora se mantendo, ora se alterando. Identicados, dentro dos limites historiogrcos, os signicados da Histria da Educao, vamos procurar conhecer um pouco da histria de sua criao. Solicitamos que voc, aluno ou leitor, leia atentamente as informaes pontuadas, a m de compreender os objetivos deste primeiro captulo e poder tecer as condies pedaggicas para que as relaes de aprendizagem se estabeleam.

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FUNDAMENTOS HISTRICOS DA EDUCAO NO BRASIL

HISTRIA DA EDUCAO: DADOS SOBRE SUA ORIGEM Os historiadores da educao sabem que a Histria da Educao foi criada, como especialidade da Histria, em diferentes lugares3, no nal do sculo XIX. Nesse processo, como em qualquer campo disciplinar, aconteceram e ainda acontecem polmicos debates em decorrncia do modelo que conformou o seu processo de criao e consolidao. Mais uma vez, podemos perguntar: que modelo esse? Que tradio esse modelo instituiu? Atualmente, consenso o entendimento de que a Histria da Educao se construiu como parte da Filosoa da Educao. Relembramos ao leitor que essa ideia, muito divulgada e aceita, movimenta o debate sobre a mudana no perl da disciplina de Histria da Educao ao longo do sculo XX. Pesquisadores do campo da Histria da Educao vm estudando os fatores que levaram aproximao da Histria e da Filosoa da Educao. Identicamos que no so poucos os fatores apontados como responsveis por essa aproximao. Na sequncia, voc vai conhecer alguns deles. A Histria da Educao, apesar de ser criada como uma das especializaes da Histria, desenvolveu-se muito mais prxima do terreno da Educao, da Pedagogia e, portanto, da Filosoa. O modelo que partilhou as mesmas diretrizes para a Histria da Educao e para a Filosoa da Educao consagrou-se em 1939, no Brasil, com a criao do Curso de Pedagogia, como uma seo na Faculdade Nacional de Filosoa (Decreto-Lei n 1.190) (LOPES, 1986, p. 17). Nesse perodo, a Histria da Educao adquiriu o status de disciplina obrigatria. Segundo o Prof. Dr. Dermeval Saviani, lsofo da educao da Unicamp, foi em 1946, com a promulgao em mbito nacional da Lei Orgnica do Ensino Normal (Decreto-Lei n 8.530), que essa disciplina, juntamente com a Filosoa da Educao, passou a integrar o currculo de todas as escolas normais do pas (SAVIANI, 2004; VIDAL, 2003). Posteriormente, com a LDB 5692/61 e com o Parecer 251/62, o Conselho Federal de Educao especicou que o currculo mnimo dos Cursos de Pedagogia deveria contar com a disciplina Histria da Educao. E assim at hoje. Conforme os agentes professores e alunos da Histria da Educao iam se familiarizando com o universo dos contedos da Educao e da Pedagogia em geral (como as doutrinas pedaggicas e os pedagogos consagrados), os estudos e as pesquisas voltavam-se, como entendem Lopes e Galvo (2001, p. 28), para a histria das

3 Em 1880, na Frana; em 1884, na Universidade de Berlim; em 1891, em Harvard (LOPES, 1986, p. 15-16).

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ideias pedaggicas. A fonte para o desenvolvimento desses recortes temticos era a obra dos grandes pensadores. Nesse contexto, tambm observamos que muitos dos compndios e dos livros didticos utilizados em Histria da Educao Geral eram os manuais da Filosoa da Educao, como os de F. Larroyo (1944), R. Hubert (1949), Paul Monroe (1949), Lorenzo Luzuriaga (1951) e Abbagnano (1957), entre outros (LOPES; GALVO, 2001, p. 28). Para a historiadora da educao da USP, Diana Vidal, essa integrao reforou o afastamento da escrita da histria da educao da prtica dos arquivos, estimulando as interpretaes que pretendiam conferir-lhe uma importncia moral (VIDAL, 2003, p. 13). Outro dado a constatao de que a educao e seus objetos no apresentavam interesse para os historiadores de ofcio. Lopes e Galvo (2001, p. 26) assinalam que no campo da Histria, a educao tem sido, tradicionalmente, um objeto ignorado ou considerado pouco nobre. Um bom exemplo o livro organizado pelos historiadores Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfs, Domnios da Histria: Ensaios de Teoria e Metodologia (1997). Os textos, produzidos por 19 prossionais da rea, versam sobre diversas histrias: Histria Econmica, Histria Social, Histria das Ideias, Histria das Mentalidades e Histria Cultural, Histria Agrria, Histria Urbana, Histria das Paisagens, Histria Empresarial, Histria da Famlia e Demograa Histrica, Histria do Cotidiano e da Vida Privada, Histria das Mulheres, Histria das Religies e Religiosidades, mas no sobre a Histria da Educao! A Histria da Educao, como disciplina nos cursos de formao de professores, adquiriu um carter mais formativo, de transmisso de valores. Os contedos didticos e pedaggicos ministrados na disciplina de Histria da Educao visavam muito mais a justicar a tarefa educativa e a fundamentar a formulao das nalidades da educao do que a explicitar ou a denir as caractersticas do fenmeno educativo (SAVIANI, 2003, p. 27). Os contedos eram impregnados pela postura messinica e salvacionista disseminada pela civilizao crist, como pontua a historiadora da educao Clarice Nunes. Para esta autora, esses contedos visavam preservao e permanncia dos valores morais e dos ideais humanos (NUNES, 1996). Logo, em sua trajetria como disciplina, a Histria da Educao rmou-se como uma cincia auxiliar da Pedagogia, ao passo que outras reas do conhecimento, consideradas matriciais, como a Psicologia, a Biologia e a Sociologia, foram chamadas no para justicar, mas para explicar o fenmeno educativo (LOPES; GALVO, 2001, p. 27; VIDAL, 2003). A diversidade de formao e do perl dos intelectuais envolvidos com a disciplina. O ensino em Histria da Educao brasileira se fez por meio de contedos advindos de compndios ou de manuais didticos redigidos por intelectuais de diferentes

A histria da educao no Brasil a trajetria de um campo de ensino e de pesquisa

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FUNDAMENTOS HISTRICOS DA EDUCAO NO BRASIL

reas do conhecimento. Podemos constatar que os manuais, que de alguma forma criaram um discurso fundador em Histria da Educao, foram escritos por: Mdicos, como Jlio Afrnio Peixoto, que redigiu Noes de histria da educao (1933), e Raul Briquet, autor de Histria da educao: evoluo do pensamento educacional (1946); Advogados, como Primitivo Moacyr, que escreveu A instruo e o Imprio: subsdios para a histria da educao no Brasil, 1823-1853 (1936), e Fernando de Azevedo, autor da A cultura brasileira (1943); Religiosos catlicos, como Theobaldo Miranda Santos, que redigiu Noes de histria da educao (1945). Esses manuais ou compndios pedaggicos foram, e ainda so, considerados fonte obrigatria entre os historiadores da educao. Intelectuais como Afrnio Peixoto, Primitivo Moacyr, Fernando Azevedo, Theobaldo Santos, Raul Briquet, juntamente com Ansio Teixeira, Gilberto Freire, Mrio de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Srgio Buarque de Holanda, Caio Prado Junior, Cmara Cascudo, entre outros, fundaram uma nova rede de interpretao brasileira e se consagraram. Foi construda, por esses intelectuais, uma tendncia historiogrca de larga tradio que acabou por conformar uma determinada memria nacional, na qual se priorizam determinados temas em detrimento de outros. Ou seja, esses autores criaram um corpus que, por fora de uma tradio historiogrca, acabou por legitimar algumas leituras, tornando-as leituras autorizadas e quase que obrigatrias em Histria da Educao. Entretanto, espantoso, como constata Nunes (1996, p. 69), que os intelectuais mais consumidos em Histria da Educao esporadicamente assumem o papel de historiadores da educao. Para Lopes e Galvo (2001, p. 31), a Histria da Educao tem sido um campo frtil para os amadores, para intelectuais que no eram educadores de formao e nem historiadores. Esses fatores, resultantes da aliana entre a Histria e a Filosoa da Educao, geraram, como aventa a historiograa, alguns encaminhamentos que acabaram por criar uma imagem de que a Histria da Educao uma disciplina menor, marginal, porque foi construda prioritariamente por educadores, pedagogos, que no foram preparados para exercer a funo do historiador (NUNES, 1989; SAVIANI, 1998), sendo amadores no que se refere operao historiogrca, conforme os ensinamentos do francs, historiador de ofcio e padre jesuta Michel de Certeau (1982). Portanto, cam as angstias: como os educadores historiadores enfrentaram e esto enfrentando essa situao? Como se relacionaram e esto se relacionando com

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o desao de criar um espao crtico de trabalho? Como se propuseram a superar o suposto amadorismo que caracterizou a Histria da Educao? Bem, caro leitor, esses novos problemas investigativos nos remetem para outra etapa da nossa conversa textual, mas que ainda diz respeito aos objetivos inicialmente propostos na introduo deste captulo. Vamos identicar, amparados nos estudos historiogrcos, nos autores que vm estudando o assunto, como os historiadores da educao tm realizado a: DESCONSTRUO DO MODELO TRADICIONAL QUE CONFORMOU A TRAJETRIA DA HISTRIA DA EDUCAO Primeiramente, eles tomaram conscincia da descaracterizadora intimidade entre a Histria e a Filosoa da Educao, observando que a fuso entre a Histria e a Filosoa da Educao obscureceu os contornos, os limites fronteirios entre elas. Segundo, eles se afastaram dos procedimentos caractersticos da investigao losca e se aproximaram da investigao histrica. No entanto indagamos: quando e como esse processo se realizou e vem se realizando? Para Vidal (2003, p. 3), a Histria da Educao como um campo autnomo, apartado da Filosoa da Educao, fenmeno recente e no de todo consolidado no seio da Pedagogia. Esse movimento, ainda que tenha se alargado a partir dos anos de 1980 e ganhado consistncia em 1990, teve suas primeiras iniciativas em meados do sculo XX. Em So Paulo, desde os anos 1950, um grupo de intelectuais, articulados especialmente em torno da ctedra de Histria e Filosoa da Educao e sob a coordenao dos Profs. Laerte Ramos de Carvalho e de Roque Spencer Maciel de Barros, do Departamento de Pedagogia da USP, e posteriormente da Faculdade de Educao, compuseram um ncleo de estudos e de pesquisas que se ampliou com o crescimento dos Institutos isolados de Ensino Superior no Estado de So Paulo. O grupo aglutinou nomes, como Heldio Csar Gonalves Antunha; Jos Mario Pires Azanha e Maria de Lourdes Mariotto Haidar, da Pedagogia-USP; Casemiro Reis Filho, da FFCL de Rio Preto; Rivadvia Marqus Jnior, Jorge Nagle e Tirsa Regazzini Pres, da FFCL de Araraquara; e, posteriormente, Maria Aparecida Rocha Bauab (Rio Preto), Maria da Glria de Rosa (Marlia) e Miriam Xavier Fragoso (Assis), dentre outros, de acordo com o depoimento de Leonor Tanuri, tambm integrante do grupo ( VIDAL, 2003, p. 16). No mesmo perodo, no Rio de Janeiro, nomes como Pe. Seraphim Leite, Zoraide Rocha de Freitas, Luiz Alves de Mattos, Celso Suckow da Fonseca, Pe. Leonel Franca e Geraldo Bastos Silva tambm contriburam com seus estudos e sua produo para que a Histria da Educao brasileira adquirisse status e autonomia disciplinar.

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Em So Paulo, esse movimento foi chamado de atos inaugurais pelo historiador da educao Carlos Monarcha (1996) porque, em primeiro lugar, propiciou a criao de uma mentalidade, de uma conscincia em histria da educao; em segundo lugar, porque buscou sedimentar e divulgar uma metodologia prpria e privilegiada; em terceiro, porque criou condies para a prossionalizao do professor universitrio como um tipo de autor; em quarto, porque realizou a delimitao de um objeto de estudo e da construo de conhecimentos; e nalmente porque viabilizou a constituio de um pblico leitor especco. No obstante todas essas iniciativas, os estudos e as produes desses grupos, as pesquisas em Histria da Educao ganharam, de fato, maior visibilidade com a instalao dos programas de ps-graduao. Os primeiros programas de ps-graduao a se constiturem no Brasil foram o da PUC no Rio de Janeiro, em 1965, e o da PUC de So Paulo, em 1969. A partir da dcada de 1970, outros programas surgiram, ampliando e constituindo lugares de debates e de pesquisas em que o pensamento marxista, os novos ideais da Igreja Catlica e os ditames dos Annales, na busca de espaos, conuram e conviveram, quase sempre conituosamente. A produo veiculada pelos programas de ps-graduao em Educao, mais especicamente em Histria da Educao, vem sendo bastante analisada. Um dos resultados obtidos por esses estudos refere-se identidade do historiador da educao. Entende-se que essa identidade se constituiu, desde sua gnese, de forma multifacetada e plural. Talvez, em virtude dessa situao, outro intelectual da rea educacional, Jorge Nagle (1984), tenha armado que no era muito fcil identicar, antes da dcada de 1980, a perspectiva histrica nos trabalhos de Histria da Educao. Lembremos de que esse marco os anos 1980 importante: a partir dele que se acredita e se demonstra que o movimento de aproximao dos educadores com a Histria, como campo terico, ganhou mais flego e mais uncia. Nesse perodo, diversas foram as iniciativas que reforaram o movimento de consolidao da Histria da Educao como campo disciplinar, de estudos e de pesquisas com contornos prprios. Uma das mais signicativas foi o surgimento, em 1984, do GT de Histria da Educao, na ANPEd4 - Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Educao. O GT, no entendimento de Vidal (2003, p. 19), rapidamente tornou-se o principal espao nacional de aglutinao de pesquisadores, de crtica historiogrca e de difuso de novos horizontes de investigao na rea.

4 Criada em 1980.

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Ao que nos parece, essa iniciativa da ANPEd foi a mola propulsora para que dois novos grupos se constitussem. No Rio de Janeiro, sob a coordenao da Prof Clarice Nunes, foi apresentado ao Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP), em 1986, um projeto cujos resultados constituiriam o Guia de Fontes que ora se concretiza. Este trabalho foi concludo em 1988 e apresentado para publicao em 1989 (NUNES, 1992, p. 7). E, ainda em 1986, sob a coordenao de Dermeval Saviani, estruturou-se na Unicamp o Grupo de Estudos e Pesquisas Histria, Sociedade e Educao no Brasil, denominado HISTEDBR. O grupo adquiriu relevo nacional e articulou vrios e diferentes locais do Brasil, visando a investigar a Histria da Educao Brasileira a partir dos pressupostos do materialismo histrico. No Diretrio dos Grupos de Pesquisas do CNPq podemos vericar como se desenvolveram e se ampliaram os diversos ncleos de estudos e pesquisas em Histria da Educao, se encontram instalados em universidades nas mais diferentes regies do territrio brasileiro. Por outro lado, a comunidade constituda pelos historiadores da educao tambm se encontra sistemtica e regularmente nos eventos, seminrios e congressos organizados pelas diferentes instncias nacionais, entre os quais enfatizamos o Congresso Brasileiro de Histria da Educao, que vem acontecendo desde 2000, com periodicidade bienal. Esse evento marca o processo de criao da Sociedade Brasileira de Histria da Educao (SBHE), em 1999. Entretanto, os historiadores da educao encontram-se, tambm de dois em dois anos, em eventos de carter internacional, como o Congresso Ibero-Americano de Histria da Educao Latino-Americana, ocorrido desde 1992, e o Congresso Luso-Brasileiro de Histria da Educao, desde 1996. Tambm no podemos deixar de registrar a importncia da participao dos historiadores da educao no International Standing Conference for the History of Education (ISCHE), evento internacional que congrega, desde 1978, todas as associaes mundiais em Histria da Educao. Alm das associaes e dos eventos nacionais e internacionais que objetivam divulgar a produo do campo, outros mecanismos foram criados. Um desses mecanismos so as revistas especializadas em Histria da Educao. Atualmente, encontram-se consolidadas vrias revistas e a que mais se destaca a Revista Brasileira de Histria da Educao, sob a responsabilidade da SBHE (Sociedade Brasileira de Histria da Educao). Toda essa construo revela a consolidao de uma comunidade cientca em Histria da Educao, que disponibiliza uma produo na qual os recortes so ora panormicos ora especcos; uma produo que no consensual teoricamente; que no

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renega os tradicionais temas de estudo, mas que se aventura e constri outros. Em resumo, relembramos Saviani (1999, p. 10), quando este assevera que a Histria da Educao tem duas fases. A primeira estende-se at os anos 1960, quando ainda se encontrava associada Filosoa da Educao, campo disciplinar mais voltado para os ideais educativos e para as nalidades da educao. A partir da dcada de 1980, no sculo XX, iniciativas marcadas pelos ideais do marxismo e dos Annales (sob a perspectiva da Nova Histria Cultural) ajudaram na transformao da disciplina, consolidando-a como rea de conhecimento especco, com diferentes enfoques e em constante dilogo com outras reas do conhecimento, como a sociologia, psicologia, antropologia, lingustica e a geograa, entre outras. Logo, no h como negar que estamos diante de um movimento muito frtil, amparado na diferena dos fazeres dos historiadores da educao. Bem, at o momento, todos esses argumentos foram para demonstrar a primeira ideia historiogrca, ou seja, identicar as caractersticas do movimento que a Histria da Educao fez para se distanciar do modelo tradicional que a criou ou daquele modelo que a aproximava da Filosoa da Educao. Na sequncia, apresentamos outra e no menos importante ideia que aparece na historiograa quando o assunto a construo do campo disciplinar da Histria da Educao. Quando direcionarmos nosso olhar para o contedo da produo acadmica, para o corpus dos historiadores da educao que se encontra disponvel, percebemos que, para alm das especicidades temticas, os motes, as preocupaes que permeiam muito dos discursos so as incertezas relacionadas com a aquisio e com a destreza do historiador da educao na formao dos educadores; em outras palavras, o foco a forma como se vm enfrentando as demandas sobre a prossionalizao do historiador da educao. Nesta produo, apresentamos advertncias sobre os diferentes desaos e diculdades que os pedagogos encontram quando se propem a fazer Histria da Educao. Por isso, vamos continuar esmiuando o problema proposto no incio desta nossa conversa textual, tentando responder: como os educadores/pedagogos esto enfrentando os desaos de se tornarem historiadores da educao? HISTORIADOR DA EDUCAO: O APRENDIZADO DO OFCIO Fazendo uma anlise das estruturas curriculares do curso de Pedagogia, identicamos que o pedagogo, em sua formao, dicilmente adquire conhecimentos que compem o campo da Histria. No de hoje essa constatao. Eliane Marta Lopes, desde 1986, apresenta questes contundentes relativas ao

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ensino e formao de historiadores da educao. Essa historiadora da educao incita-nos a enfrentar a questo da formao do pesquisador da Histria da Educao porque, para ela, essa tarefa ainda no foi assumida pelos cursos de Educao e de Pedagogia. A autora denuncia queo educador ou o pedagogo, no recebendo formao especca nem em metodologia de pesquisa histrica nem em teorias da Histria, dicilmente pode tornar-se um historiador. A cincia da histria exige rigor e mtodo; para o crescente entendimento dessa problemtica educacional exige-se um crescente entendimento da Histria da educao, que deve ser escrita atravs de pesquisas rigorosas que obedeam aos critrios e s exigncias da prpria cincia da histria (LOPES, 1986, p. 36).

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Partindo do pressuposto de que permanece atual a identicao de que o pedagogo carece de familiaridade com o trato do histrico5 e com o conjunto de reexes sobre a Histria, quer no terreno terico, quer na atividade prtica, julgamos que est presente o desao da superao dessa carncia e que existe a possibilidade de que isso seja conseguido pelos interessados medida que a Histria seja reconhecida como campo de conhecimento e dominada em seus prprios domnios; ou seja, fundamental, no exerccio da escrita da Histria da Educao, conhecer as concepes tericas, os procedimentos investigativos, as suas normas, a sua tica, a sua terminologia mais corrente e as suas tcnicas de trabalho. Partindo do pressuposto de que a Histria a cincia da mutao e da explicao dessa mudana, como operacionalizamos essa compreenso na escrita da histria da educao? Para comear, arrolamos trs grandes questes fundamentais para o desenvolvimento da operao historiogrca. A primeira diz respeito ao estabelecimento dos marcos temporais, ou seja, como periodizar. A periodizao est relacionada ao tempo delimitado para o objeto de estudo. Quando a nfase recai no objeto de estudo, o tempo denido o da durao do fenmeno em estudo. Isso signica que o tempo no mais algo externo e independente dos temas-objetos. O tempo no mais homogneo e nem universal. Para Barreira (1995, p. 92), um produto de pesquisa determinado pelo movimento descrito, no tempo e no espao, pelo prprio objeto de investigao. A segunda relaciona-se ao entendimento do que sejam fontes. Partimos do princpio de que o objeto de estudo e o historiador que denem qual a fonte mais apropriada para o seu desenvolvimento.

5 O fato histrico uma construo do historiador, no um dado pronto e acabado (LE GOFF, 1996, p. 9).

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Considerando que todo vestgio deixado pela humanidade passvel de se tornar fonte para a pesquisa histrica, nos distanciamos da compreenso que conceitua fonte como aquele que origina ou produz uma causa. Essa matriz explicativa, essa noo de fonte estabelece regras de dependncia, estabelece hierarquizao6, resultando em uma compreenso congelada do passado. Aquele que est pronto para todo o sempre, que tem e teve um saber instalado, cabendo a ns, historiadores, revel-lo. Fonte , para ns, instrumento que representa e resulta do desejo de quem a produziu, intencionalmente ou no, de construir uma determinada imagem de si mesma ou de no mximo do seu grupo social, ou seja, no se constitui como expresso da sociedade em geral. Essa compreenso reconhece que a descrio uma operao historiogrca das mais importantes. Com isso, relevante reconhecer que a relao com as fontes oferecem, no mnimo, duas perspectivas, a de que propiciam esclarecimentos, como tambm recebem explicaes. A ns, cabe interpret-las. A terceira trata do entendimento da relao entre o presente e o passado. Entendemos que o historiador, longe de tecer consideraes moralistas e mecnicas sobre a relao passado, presente e futuro, pode e deve explic-las, amparado em investigaes constantemente refeitas. Com esse sentido, defendemos a construo de trabalhos em Histria da Educao Brasileira que partam da construo de uma histria problematizada. Ou seja, que por meio das indagaes, de perguntas do pesquisador, instalado no presente, criam-se novos contornos ao passado. o presente que interroga o passado com o intuito de renovar o passado e no o inverso. Acreditamos que no o passado que ilumina, explica ou justica o presente, mas que o presente que d ao passado uma multiplicidade de sentidos. Caso contrrio, corre-se o risco de se cometerem os principais delitos em Histria, como o anacronismo7, a Doena de Lamartini8; e da transferncia de categorias analticas de perodos histricos diferentes (BLOCH, 1965, p. 18, p. 29; LE GOFF, 1996, p. 15). Pontuamos que o regresso do pesquisador ao passado, por meio das fontes histricas, possui sempre uma intencionalidade que busca pr luz, iluminar os objetos que permanecem nas sombras, recuperando, assim, sentimentos perdidos e esquecidos, mas que a leitura que o historiador far do passado depender de como este prossional v e vive o seu prprio presente, pois, a leitura do passado ser

6 O procedimento de classicar as Fontes entre Primrias e Secundrias estabelece hierarquias que na escrita da histria, gera, a nosso ver, desentendimentos desnecessrios. 7 Confuso de datas, acontecimentos ou pessoas; 8 Armaes ou snteses precoces.

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realizada, a partir de questes postas em certas situaes cotidianas (NUNES, 1992, p. 13). Distanciamo-nos do princpio da continuidade e da unidade histrica e da histria do homem como dado natural e genrico. Distanciamo-nos da herana da tradio hegeliana, concepo marcada pelos grandes consensos em Histria e pela manuteno generalizada do esprito da poca. Distanciamo-nos ainda da concepo que se atribui Histria um sentido que acaba por construir e organizar um tipo de narrativa do passado que busca mostrar como as coisas, de fato, aconteceram. Sabemos que tal pressuposto de veracidade caracteriza a corrente positivista do Historicismo Clssico de Leopold von Ranke (1795-1886), que compreendia a Histria como disciplina cientca (para a poca era uma compreenso inovadora), defendia e atribua a histria a funo de julgar o passado e instruir o presente para ser til ao futuro (LE GOFF, 1996, p. 85). Sabemos que a Histria, como campo de estudos e pesquisas, ainda mantm a noo do campo disciplinar, porm h muito tempo no mais defende a mecanicidade das causas e dos efeitos, da premissa do estudo do passado para entender o presente e direcionar o futuro. Dentre a multiplicidade de crticas a tal postura, ressaltamos a operao arriscada da previso do futuro porque se ignoram as possibilidades de todas as aes e movimentos que cotidianamente se realizam e, por sua vez, mudam e alteram, substancialmente, a trajetria humana. Essa discusso tambm nos remete polmica questo sobre se h sentido na Histria. As contribuies tericas que comprovam a relao mecnica entre o estudo do passado para entender o presente e direcionar o futuro foram deixadas de lado h quase um sculo (LOPES; GALVO, 2001, p. 16); todavia, ainda encontramos na pesquisa da Histria da Educao esse procedimento. Percebemos, grosso modo, que as justicativas para o desenvolvimento de trabalhos de carter histrico enfatizam, equivocadamente, a importncia e a manuteno de sua atualidade. Na tentativa de justicar a importncia estabelece-se o raciocnio da continuidade histrica entre longos perodos. O risco desse procedimento se visualiza nas operaes metodolgicas de justaposies, nas abordagens descontextualizadas e no estabelecimento de analogias fortuitas e superciais entre passado e presente, negligenciando o contexto histrico em que foram produzidas. Identicar como se construiu essa tradio, como e onde se instalou essa compreenso no terreno da Histria da Educao um problema terico-metodolgico muito profcuo. Enm, esses trs procedimentos que caracterizam a escrita da Histria (a periodizao, as fontes e relao entre o presente e o passado) nos permitem entender alm do que foi apresentado e a nos atermos a outros procedimentos, como:

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reconhecer e distinguir o que e quais so as principais categorias histricas; desenvolver cuidados especiais para com o tratamento das diferentes formas de documentos; reconhecer os instrumentos de trabalho do historiador, como as bibliotecas, os arquivos, os catlogos, os inventrios de manuscritos, os peridicos, entre outros; adquirir sensibilidade para com o uso, mais renado, das palavras e de seus mltiplos signicados. Finalmente, os procedimentos possibilitam-nos a percepo de que um trabalho histrico se caracteriza no apenas pelas generalizaes universais, mais prximas do campo da Filosoa, mas pela mincia do pormenor concreto; pela investigao emprica e documental, pela preocupao em relacionar a ordem de permanncia e a ordem da transformao, observando sempre o reconhecimento dos diferentes ritmos e tempos histricos. Por conseguinte, perante tantos desaos, saudvel termos cautela no exerccio, no fazer da Histria da Educao, como recomenda Brando (1998). Acreditamos, portanto, que nesse momento, entre os muitos desaos, o nosso ainda seja o de buscar a compreenso do fenmeno educativo no movimento histrico, priorizando o rigor cientco-metodolgico, sem, no entanto, abrir mo, como diria Nunes (1990, p. 36), da imaginao, da paixo e do desejo de sentir ou conversar com o passado. Prezado aluno, antes de colocar ponto nal neste captulo, consideramos importante deixar registrado que a complexidade para se construir um texto com base no carter inter e transdiciplinar dessa temtica Histria e Educao no pequena! O querer ser didtico, criativo e original, para fugir do lugar comum, e ao mesmo tempo ser cienticamente objetivo so parmetros que, contraditoriamente, cerceiam a possibilidade criativa. No por falta de opo argumentativa, at porque muitas ideias e opes foram consideradas para a construo do captulo, mas pela situao e pelo lugar em que se encontra o processo de autoria. Que situao essa? Os autores, quando escrevem, esto condicionados pelas leis do meio, pela polcia do trabalho, pela materialidade de lugar de produo; j os leitores podem praticar uma antidisciplina perante os textos, que tambm so produtos culturais (CERTEAU, 1994, p. 41). Em outras palavras, entendemos que os autores tm regras, limites que permeiam seus trabalhos, ao passo que os leitores no so passivos e podem exercer sua astcia, sua criatividade e produzir outras realidades textuais com os elementos apresentados. Portanto, o que caracteriza o movimento

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da escrita e da leitura sua constante reconstruo. Desta forma, estamos considerando voc como algum que poder contribuir para a constante reconstruo do conhecimento acerca do tema aqui em discusso. Para, nalmente, terminar, desejamo-lhes bons estudos e aguardamos suas contribuies!

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Referncias

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Proposta de Atividade

1) Realize um chamento do texto, procurando identicar as ideias principais e inserindo comentrios sobre suas experincias como aluno(a) ou professor(a) da Histria da Educao.

Anotaes

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Anotaes

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A educao no Brasil Colonial (1549-1759)

Clio Juvenal Costa / Sezinando Luiz Menezes

INTRODUO Neste captulo, estudaremos a educao no Brasil Colonial. O tempo que vai de 1500 a 1808 no Brasil denido genericamente como perodo colonial, o qual se distingue da poca do Brasil-Imprio (1808-1889) e Brasil-Repblica (1889 at nossos dias). As datas, na verdade, mais do que indicar uma rgida separao de pocas, so marcos de movimentos que comeam bem antes e terminam depois delas. o caso da diviso poltica acima, em cuja distino os historiadores se baseiam para periodizar a histria do Brasil. Dessa forma, a rigor, as condies gerais do Brasil Colnia so aquelas que se estabelecem nos sculos XVI, XVII e XVIII, principalmente em sua primeira metade, uma vez que, a partir de suas ltimas dcadas, o que vemos um movimento preliminar separao da Colnia Brasil e da Metrpole Portugal. Quando os portugueses chegaram aos trpicos americanos, depararam-se com um mundo estranho e desconhecido. A presena portuguesa foi transformando gradativamente o Brasil. No entanto, esses europeus, ao faz-lo, tambm foram, gradativamente, se transformando. Assim, de fato, no podemos falar de uma cultura brasileira no perodo colonial, mas sim de uma cultura, distinta daquela que existia em Portugal, que foi sendo construda ao longo do perodo colonial: uma cultura portuguesa nos trpicos. Previamente exposio sobre a educao no Brasil Colnia, consideramos importante explicitar o que entendemos por educao. A educao talvez seja a atividade mais tipicamente humana que a humanidade realiza. A partir do momento em que os bebs esboam os primeiros sinais de que so capazes de aprender, inicia-se um processo pedaggico que persiste por toda a sua vida. Assim, a todo o momento estamos sendo educados. A princpio pelos nossos pais e familiares mais prximos, posteriormente pelos meios de comunicao de massas (rdio, televiso, jornais, revistas etc.), pelas pessoas com as quais convivemos, enm, pela sociedade. Nos tempos mais remotos da histria, a educao restringia-se ao uir normal das31

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atividades do dia-a-dia e caracterizava-se pelo aprender fazendo. Entre os ndios que viviam no Brasil poca da chegada dos primeiros europeus, o conhecimento era ensinado na vida prtica do dia-a-dia pelo conjunto da tribo. Os mais velhos ensinavam aos mais novos as regras de convvio social, os rituais, o trabalho e a guerra, entre outras atividades. De acordo com o exposto e comparando-se com o que ocorreu nos tempos posteriores, podemos armar que alm desse tipo de educao, identicado como informal, existe tambm um outro, denominado formal. A educao formal, aquela que ocorre no mbito das instituies escolares, distingue-se da informal em razo de sua sistematizao. Ou seja, nas escolas utiliza-se um mtodo (pedaggico) para atingir objetivos previamente traados, executa-se um plano de estudos anteriormente elaborado. Trataremos primeiramente da educao informal no Brasil Colnia a catequizao dos ndios , depois apresentaremos a educao formal nos colgios e nalmente retomaremos a educao informal dos engenhos, particularmente dos negros escravos. Falar de educao na sociedade colonial brasileira falar de como os homens se educavam, os valores e virtudes a serem favorecidos, os vcios a serem evitados, os saberes considerados fundamentais para o exerccio da vida comum ou da vida letrada, tudo isso em meio a um contexto em que o Brasil, enquanto nao, no existia ainda, pois predominavam a poltica, a economia, a cultura portuguesas. Como j postulamos, no podemos falar de uma educao legitimamente brasileira, uma vez que a cultura era predominantemente portuguesa; entretanto, podemos falar em uma educao no Brasil Colonial com especicidades prprias e distintas da educao portuguesa: enfrentavam-se aqui situaes inexistentes em Portugal, as quais necessitavam de uma abordagem especca. OS JESUTAS A educao no perodo colonial esteve a cargo, no de forma exclusiva, mas hegemnica, dos padres e irmos da Companhia de Jesus, durante os anos de 1549 a 1759, ou seja, desde o ano da chegada dos primeiros jesutas no Brasil at sua expulso pelo Marqus de Pombal. Durante esse tempo, os cristos, portugueses ou no, os ndios e os negros tiveram em sua educao a marca dos jesutas. Para compreendermos devidamente a ao da Companhia de Jesus no Brasil faz-se necessrio retomarmos um pouco de sua histria. A Companhia de Jesus, ou Sociedade de Jesus, surgiu em 1534, por iniciativa de Incio de Loyola (1491-1556). Ele e outros seis religiosos reuniram-se em uma capela em Paris e zeram o juramento de fundar uma nova ordem religiosa. Diferentemente das outras ordens religiosas da poca, a Companhia de Jesus no pretendia manter

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seus padres em mosteiros, isolados do mundo exterior. Alm disso, e exatamente porque seus componentes no permaneceriam encerrados em mosteiros, a ordem dos jesutas dispensava a orao e o canto em conjunto e em horas pr-estabelecidas. Outra caracterstica importante que essa Ordem religiosa se colocava diretamente sob as ordens do papa1. Com o objetivo de se dirigirem para a Terra Santa e retomarem, pelo menos espiritualmente, Jerusalm, Incio e seus companheiros foram at Roma. No puderam realizar seu objetivo em virtude da inexistncia de condies favorveis para a viagem, mas iniciaram o processo de reconhecimento ocial da nova Ordem religiosa, o que aconteceu em 1540, mediante a bula papal de Paulo III2. De incio, preciso considerar que as duas grandes atividades s quais os jesutas deveram sua fama, a misso e a educao, no constavam dos primeiros objetivos da Companhia. A Ordem religiosa que nasceu sob o signo da Reforma Catlica3 tornou-se missionria e educadora em resposta a desaos que lhe foram impostos pelos mandatrios de estados catlicos. Foi em terras lusitanas, ou de domnio da Coroa portuguesa, que os jesutas principiaram a desenvolver aqueles trabalhos. Uma das funes inerentes gura do rei catlico era dar condies para que o cristianismo fosse expandido por todos os territrios e domnios reais. Essa misso religiosa da Coroa est muito clara em um documento que o rei portugus, D. Joo III4, enviou a seu embaixador, D. Pedro de Mascarenhas, em 04 de agosto de 1539. Discorrendo sobre os contatos feitos em Roma com Incio de Loyola e sobre a possvel ida daqueles padres para o reino portugus, o rei declara: na empresa da ndia e em todas as outras conquistas que eu tenho, e se sempre mantiveram com tantos perigos e trabalhos e despesas, foi sempre o acrescentamento de nossa santa f catlica (LEITE, 1956, p. 102). Em 1540, os jesutas Simo Rodrigues e Francisco Xavier chegaram a Lisboa e declararam obedincia ao rei, o que fez deles sditos especiais da Coroa. Simo Rodrigues cou no reino, fundou as primeiras casas e os primeiros colgios jesuticos, ao passo

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1 No por coincidncia que os padres da Companhia de Jesus so chamados de jesutas e no inacianos, diferentemente das outras ordens que geralmente chamam seus padres de acordo com o nome do seu fundador como, por exemplo, franciscanos, dominicanos, beneditinos. 2 Paulo III foi papa de 1534 a 1549. 3 A Reforma Catlica teve seu momento institucional no Conclio de Trento, ocorrido entre 1545 e 1563, no qual telogos jesutas tiveram participao efetiva como assessores de papas. No entanto, a necessidade de reformas da Igreja atendia a um clima de crticas que existia j desde o sculo anterior. As Reformas Protestantes potencializaram a necessidade de reforma da Igreja Catlica, mas no condiz com a verdade resumir as reformas da Igreja, consubstanciadas no conclio tridentino, simplesmente como Contra-Reforma. 4 D. Joo III foi rei portugus de 1521 a 1557.

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que Xavier, em 1542, foi para Goa, capital portuguesa nas ndias, onde iniciou atividades missionrias. A partir de ento, a Companhia de Jesus dominou e praticamente monopolizou as atividades educacionais e missionrias em Portugal e seus domnios a ponto de ser a escolhida para acompanhar a frota do primeiro Governador-Geral, Tom de Souza, quando, em 1549, houve a deciso poltica de estabelecer um governo central no Brasil. Durante o sculo XVI, a Companhia de Jesus estruturou-se e consolidou-se, transformando-se, arriscaramos a armar, na ordem religiosa mais importante da modernidade. Os nmeros impressionam e ao mesmo tempo atestam sua importncia: em 215 anos, contam-se 361 expedies missionrias, em uma mdia anual de 16 missionrios, e isso apenas para as provncias ligadas ao domnio portugus; somente no sculo XVI e apenas nos territrios portugueses os jesutas fundaram 30 colgios; j no mundo todo existiam 144 colgios em 1579, e 669 em 1749. Com a fundao de colgios, principalmente o Romano e o Germnico em Roma, os dirigentes da Companhia de Jesus passaram a se preocupar em estabelecer regras para o ensino. Foram elaborados, experimentados e aperfeioados vrios planos gerais de estudo at que, em 1599, foi publicado ocialmente o Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Iesu, ou simplesmente Ratio Studiorum: um conjunto de 467 regras com objetivo de orientar tanto o contedo educativo como todas as funes inerentes ao funcionamento dos colgios, ou seja, um plano, uma organizao dos estudos. O Ratio Studiorum, que versa sobre a formao nos colgios jesuticos e, portanto, no se refere ao perodo de alfabetizao das crianas, prev trs graus do ensino: um elementar, chamado de curso de Humanidades; outro de formao superior, o de Filosoa ou Artes; e, por m, o de formao prossional dos futuros padres, o curso de Teologia. Na base da formao estavam o latim e o grego, lnguas clssicas que deviam auxiliar a retrica, a rigorosa disciplina e a emulao, ou seja, a competio entre os estudantes e entre as turmas, que era estimulada, inclusive, com sesses solenes de entrega de prmios aos melhores5. O Ratio Studiorum regulamentava rigorosamente os estudos nos colgios jesuticos, cujo m principal era a formao do futuro jesuta. No entanto, no se tratava de uma sistematizao to hermtica que no permitisse contemplar especicidades de regies, nas quais no se poderiam aplicar totalmente as regras e nem oferecer todos os cursos. o caso do Brasil no perodo colonial.

5 Os estudantes eram separados em dois exrcitos, os romanos e os cartagineses, e seus componentes competiam por seus pares. Para ilustrar, ver o lme Harry Potter e a pedra losofal, que mostra os alunos daquela escola de bruxos divididos em times diferentes e competindo entre si.

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A PRIMEIRA EDUCAO Os primeiros jesutas que, em 1549, chegaram s terras brasileiras na frota de Tom de Souza eram cheados pelo padre Manoel da Nbrega (1517-1570). O fato de a Companhia de Jesus ser a ordem religiosa escolhida para o empreendimento religioso exatamente no momento em que a Coroa lusitana decidiu-se por instalar um governo com poder centralizado na gura do Governador-Geral, ligado diretamente ao rei de Portugal, revelador da importncia que ela tinha na corte portuguesa6. As primeiras tarefas dos jesutas foram a converso e a catequese dos gentios, ou seja, dos ndios; a catequese e o ensino das primeiras letras s crianas brancas; o pastoreio das antigas ovelhas, dos cristos brancos que viviam no Brasil. Dessas atividades, aquelas que talvez tenham mais ocupado a ateno e a ao dos lhos de Incio foram a converso e a catequese dos nativos da terra. Nos primeiros meses, os jesutas identicaram os desaos e os problemas que enfrentariam para se desincumbir de sua misso. Primeiramente, Nbrega concluiu que os gentios da terra no eram de m ndole, uma vez que no praticavam uma religio cuja teologia se opusesse profundamente ao cristianismo. Como assinala Alcir Pcora (1999), os primeiros jesutas viam nos ndios seres bons com maus comportamentos, e o papel que se imburam foi o de restaurar a verdadeira natureza dos gentios. Nbrega (1988), no mesmo ano de 1549, em uma carta dirigida ao Dr. Navarro, em Portugal, apresenta os ndios como gente to inculta que to pouco o conhece, porque nenhum Deus tm certo, e que por isso os pecados que cometem so por inclinaes e apetites. Os principais pecados, os mais graves, eram o canibalismo, a poligamia e a nudez. Os erros dos gentios eram tanto mais graves quanto mais se afastavam ou contrariavam as virtudes crists e, neste sentido, devolver a verdadeira natureza aos gentios era transform-los em cristos, afastando-os de prticas nefastas. Em 1551, em outra carta de Nbrega, as primeiras impresses so conrmadas, apresentando o gentio da terra como um ser bom:[...] nestas partes depois que para c viemos carssimos Padres e Irmos, se fez muito fruto. Os Gentios, que parece que colocavam sua bem-aventurana em matar os contrrios e comer carne humana e ter muitas mulheres, se vo emendando, e todo o nosso trabalho consiste em os apartar disto, porque todo o demais fcil, pois no tm dolos, ainda que haja entre eles alguns [os pajs] que se fazem de santos, e lhes prometem sade e vitria contra seus inimigos (NBREGA, 1988, p. 114).

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6 Antes da chegada de Tom de Souza existiram as chamadas Capitanias Hereditrias, das quais pelo menos duas renderam frutos em termos de colonizao portuguesa no Brasil: a de Duarte Coelho, em Pernambuco e a de Martim Afonso de Souza, em So Vicente.

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Para Nbrega (1988) e outros jesutas, educar os ndios, ou seja, catequiz-los, convert-los, era como escrever em um papel em branco, porque eles no tinham nenhuma religio, no acreditavam em deuses, enm, no tinham uma racionalidade religiosa anterior que dicultasse a absoro da novidade crist. A evangelizao dos gentios encontrava, todavia, muitos obstculos, o que acarretava, no raras vezes, perdas de almas j convertidas. Dentre as resistncias, algumas diziam respeito aos prprios ndios, como o nomadismo, mas outras eram relativas aos portugueses. So inmeras as cartas em que os jesutas, principalmente Nbrega (1988), relatam a decepo com os cristos brancos que, com seus maus exemplos e a forma como tratavam os ndios, atuavam negativamente no andamento dos trabalhos de converso e catequese. Na primeira carta depois da chegada ao Brasil, Nbrega j se queixava (fato que vai se repetir inmeras vezes) do mau comportamento dos portugueses e de seu relaxamento moral, armando temer somente o mau que o nosso Cristianismo lhe d, porque h homens que h sete e dez anos que no se confessam e parece que colocam a felicidade em ter muitas mulheres. Ele pontua tambm: dos sacerdotes ouo coisas feias (NBREGA, 1988, p. 75). Os portugueses, na viso dos jesutas, aproveitaram-se do relaxamento natural dos trpicos para adotar comportamentos condenveis, como o concubinato com vrias mulheres ndias e a escravizao de gentios, usando-os como serviais. Em uma carta de 1550, Nbrega radicaliza: quanto mais longe estivermos dos velhos Cristos que aqui vivem maior fruto se far (NBREGA, 1988, p. 108). Uma das sadas encontradas pelos jesutas para facilitar o processo de catequese dos gentios, cujo objetivo era reduzi-los ao cristianismo, foi o aldeamento, ou seja, a organizao de comunidades distantes dos olhos e dos braos armados dos brancos; da vem o termo reduo jesutica, cujas runas ainda so encontradas em alguns lugares do Brasil. Em um primeiro momento, porm, os jesutas fundam igrejas junto s aldeias e, dado o pequeno nmero de missionrios, visitam de tempos em tempos esses lugares, no residindo junto aos ndios. Outra prtica instaurada pelos jesutas, como resultado de avaliaes do processo de catequese, foi privilegiar a educao das crianas ndias, ou os curumins. Os lhos de Incio perceberam que, de forma geral, os adultos que se convertiam no guardavam a devoo e o comportamento esperados e acabavam por voltar s suas antigas prticas. Dessa forma, apropriando-nos da metfora dos jesutas, o papel seria ainda mais branco, garantindo que, educados e catequizados na tenra idade, os ndios permaneceriam mais tempo, seno para toda vida, entre a comunidade dos cristos. O irmo jesuta Antonio Rodrigues, escrevendo para Nbrega, mostra, com satisfao, que j temos nesta casa pela bondade do Senhor mais de duzentos meninos indiozinhos,

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que continuamente se ocupam na doutrina e coisas pertencentes F (NAVARRO, 1988, p. 263). Para facilitar o processo de catequese dos curumins, os jesutas solicitaram que o rei de Portugal enviasse para o Brasil alguns rfos do rei, como eram conhecidas as crianas que cavam sob os cuidados de instituies caridosas mantidas pela Coroa, para interagirem com as crianas ndias, de forma a aprender sua lngua e ensinar-lhes a lngua do branco. De fato, a vinda daqueles rfos contribuiu, e muito, para o processo de implantao da cultura crist entre os gentios. A partir do nal da dcada de 50 do sculo XVI, houve uma mudana na concepo jesutica acerca da natureza indgena e das estratgias de converso e catequese: a via amorosa foi substituda pela via da submisso, como explica Alcir Pcora (1999). O terceiro Governador-Geral7, Mem de S, personicou essa outra via, uma vez que realizou inmeras guerras de submisso contra tribos indgenas hostis. A justicativa para a adoo dessa outra via era a convico de que o cristianismo, como verdade absoluta e natural, deveria ser levado a todos aqueles que no fossem cristos, pois a verdadeira felicidade residiria exatamente no contato com a verdadeira religio. Em sntese, a educao dada aos curumins restringia-se catequese continuada e ao aprendizado do ler e escrever, ou, como se chamava antigamente, s escolas do b--b. As primeiras letras eram necessrias at o ponto em que seu aprendizado contribusse para a prpria catequese continuada. Paralelamente educao do gentio pela catequese, os jesutas desenvolveram a educao formal, escolar, no Brasil Colnia, destinada principalmente aos lhos dos portugueses e aos futuros membros da prpria Companhia de Jesus. No sculo XVI, trs foram os colgios fundados aqui, todos eles reais, ou seja, patrocinados pela Coroa, e todos a cargo dos padres jesutas8. Em 1556 foi fundado o Colgio da Bahia, cuja investidura real aconteceu em 1564; em 1567, o Colgio do Rio de Janeiro, transferido de So Paulo de Piratininga; e em 1576, o Colgio de Pernambuco, em Olinda. Nos dois sculos seguintes, foram fundados mais seis colgios e quatro seminrios. Em um primeiro momento, os colgios representavam mais do que lugares especcos para a educao de jovens, uma vez que se caracterizavam como centros

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7 Mem de S governou o Brasil de 1557 a 1572. O primeiro Governador-Geral, Tom de Souza, governou de 1549 a 1553 e Duarte da Costa, o segundo Governador, exerceu a funo de 1553 a 1557. 8 Na estrutura interna da Societas Iesu, a hierarquia dos cargos mostra que o responsvel pelo Colgio era o Reitor e que o mesmo estava abaixo somente do Provincial, ou seja, do responsvel pela Provncia toda (o Brasil passou a ser Provncia da Companhia em 1553) e do Geral, ou seja, do chefe de todo o instituto, que cava em Roma.

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administrativos de todos os aspectos da vida dos jesutas. Ali eles residiam, atendiam pessoas, reuniam-se; enm, o colgio era sua casa. Seram Leite (1960), anotando o documento de D. Sebastio (1564) sobre a fundao do Colgio da Bahia, informa que naquele lugar poderiam residir e estar at sessenta pessoas da dita Companhia, que parece que por agora dever haver nele (LEITE, 1960, p. 97), ou seja, o total de padres e irmos que residiam naquela regio. A vida escolar nos colgios, naquela altura do sculo XVI, era regulada por regras que eram experimentadas nas provncias jesuticas e perfaziam o futuro Ratio Studiorum. Entretanto, no Brasil no era possvel aplicar todas as regras pelo simples fato de que no havia estudantes e professores sucientes para que fossem abertos todos os cursos e classes correspondentes. Por exemplo, em uma carta de 1584, o jesuta Jos de Anchieta (1534-1597) informava a rotina dos trabalhos no Colgio da Bahia. Dessas informaes, por derivao, podemos inferir um modus operandi de todos os colgios no Brasil:[...] Nele h de ordinrio escola de ler, escrever algarismo, duas classes de humanidades. Leram-se j dois cursos de artes em que se zeram alguns mestres de casa e de fora, e agora se acaba o terceiro. H lio ordinria de casos de conscincia, e, s vezes, duas de teologia, donde saram j alguns mancebos pregadores, de que o Bispo se aproveita para sua S, e alguns curas para as freguesias. A este colgio estiveram subordinadas todas as casas das capitanias, at que houve outros colgios, e agora no so mais a ele subordinadas que as de Ilhus e Porto Seguro (ANCHIETA, 1988, p. 334).

Os jesutas utilizavam-se tambm de inmeros recursos didticos, como o canto e o teatro, para melhor ensinar as crianas, tanto as ndias como as portuguesas. Anchieta tido como o jesuta que mais diversicou os meios para melhor apresentar as mensagens crists, tocando a alma dos ouvintes tanto pelo encanto quanto pela emoo e pelo medo. No processo de enfrentamento da cultura indgena, os mtodos teatrais, representando sempre passagens bblicas adaptadas para o entendimento dos gentios, exerceram importante papel. Uma das necessidades apontadas pelos jesutas desde quando chegaram foi aprender a lngua dos brasis, como tambm eram chamados os ndios, para facilitar o contato, a converso e a administrao dos sacramentos. Essa tarefa parece ter sido quase impossvel, pois a suposio de que, no incio da colonizao, havia no Brasil aproximadamente 340 lnguas nativas diferentes. No entanto, os ndios que ocupavam o litoral brasileiro, a bacia do Rio Paran e a bacia do Rio Paraguai eram bastante homogneos em termos lingusticos. De maneira supercial, podemos postular que a regio que vai de Canania (So Paulo) at o Rio Grande do Sul e nas Bacias do Rio Paran e do Rio Paraguai era

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ocupada pelos guaranis. Desde o norte de Canania at o litoral cearense a populao era predominantemente tupi. Por vezes, ncleos populacionais de troncos lingusticos diferentes interrompiam essa predominncia dos tupis-guaranis: eram os tapuias, como os denominavam os portugueses. Ou seja, para os portugueses eram tapuias todos aqueles que no fossem tupis-guaranis. A diversidade lingustica, aliada ao processo de indianizao do europeu nos primeiros tempos da colonizao e necessidade de os jesutas atingirem os nativos em seu esforo de catequizao, zeram com que surgissem as lnguas gerais. As lnguas gerais existiram em regies e perodos diversos e variavam de acordo com a maior presena dos colonizadores, com o peso das atividades econmicas voltadas ao mercado internacional e com o grau de urbanizao da regio. Contudo, se os fatores supracitados contriburam para uma diminuio das lnguas gerais, a presena dos jesutas, ao contrrio, foi determinante para o seu surgimento e disseminao. Desde 1549, quando os primeiros jesutas desembarcaram, algumas oraes foram traduzidas para o tupi. Todavia, a ao mais incisiva neste sentido foi realizada pioneiramente pelo padre Anchieta, que em 1555 esboou uma gramtica tupi, utilizando como modelo a gramtica latina. O trabalho do padre Anchieta foi publicado em 1595, em Coimbra, com o ttulo Arte da gramtica da lngua mais usada na costa do Brasil. A gramtica de Anchieta passou a ser conhecida como a lngua mais geral falada na costa do Brasil, da ser vulgarizada como lngua geral. Tratava-se, pois, de uma verso ocidentalizada da lngua tupi que foi modicando, com o tempo, o prprio uso da lngua nativa medida que era ensinada aos meninos brasis e se sucediam s geraes indgenas na colnia ( VAINFAS, 2000, p. 346-347). Embora tenha sido o primeiro, Anchieta no foi o nico a produzir gramticas de lnguas nativas da Amrica; posteriormente outras lnguas nativas foram objetos de gramticas, vocabulrios e catecismos. As peas teatrais e os cantos elaborados por Anchieta eram escritos, encenados e cantados na lngua tupi. A gramtica tupi de Anchieta servia como manual de estudo para os futuros missionrios em terras brasileiras e transformou-se em poderoso instrumento de converso dos gentios. O que expusemos at agora torna possvel armar que a educao ministrada pelos jesutas assumiu, no Brasil, dois caminhos distintos, caminhos estes que derivavam do pblico a ser educado. Quando o objetivo era a educao (converso) do ndio, a ao pedaggica ocorria nas misses (ou redues), que normalmente se localizavam em regies nas quais os demais colonizadores europeus ainda no tinham controle. Os colgios, ao contrrio,

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foram fundados nos principais ncleos urbanos, e destinavam-se, primordial mas no exclusivamente, aos descendentes dos colonizadores. Uma terceira forma de educao levada adiante pelos jesutas ocorreu fora do mbito escolar. Desde os primrdios da colonizao, a relao entre os religiosos e os colonos foi bastante conituosa: os ltimos, vidos por reduzir os ndios escravido; os primeiros, contrrios ao cativeiro dos nativos. Esse choque acabou por levar os religiosos a estabelecer as misses o mais distante possvel da ao dos colonos9. Entretanto, medida que a colonizao avanou os choques tornaram-se inevitveis. Como exemplo, lembremos da Revolta de Beckmam ocorrida no Maranho, em 1684. Em 1680, inuenciado pela presso exercida pelo padre Antonio Vieira (16081697), o prncipe regente D. Pedro decretou a liberdade dos ndios do Maranho. Insatisfeitos com a proibio de escravizar os ndios, os colonos tentaram, junto ao rei, reverter a situao. No obtendo sucesso, iniciaram uma sublevao, depuseram o governador e expulsaram os jesutas, que foram enviados para a metrpole. A Coroa puniu com rigor os revoltosos, manteve a proibio de escravizao dos ndios e mandou os jesutas de volta ao Maranho. Esse episdio foi apenas um entre os inmeros choques que ocorreram na Colnia entre jesutas e demais colonizadores em razo das diferentes posies em relao ao nativo. A EDUCAO DOS ESCRAVOS A terceira forma de educao qual nos referimos ocorreu fora dos colgios e das misses e sobretudo dentro dos engenhos nos dois primeiros sculos da colonizao. At o incio do sculo XVIII, quando a minerao se tornou uma atividade signicativa, o polo aglutinador da vida na Colnia era o engenho. Este era muito mais do que uma unidade econmica; era, na realidade, o eixo em torno do qual gravitava a vida social na Colnia. Era no engenho que vivia a maioria da populao senhores, trabalhadores livres e familiares, e os escravos. As festas religiosas principais acontecimentos sociais ocorriam no engenho. As missas aconteciam na capela do engenho. Era obrigao do senhor de engenho no apenas construir uma capela, mas tambm pagar ao padre para rezar a missa dominical. Nesse mundo rural, poucos eram os letrados, a circulao de livros era quase inexistente. A Colnia no conhecia a imprensa e no produzia jornais. Em razo disso, a

9 Essa estratgia dos jesutas nem sempre logrou xito. Como sabemos, em busca de ndios para serem escravizados os bandeirantes paulistas destruram as misses religiosas do Guair, que se localizavam na regio entre os rios Paran, Paranapanema e Iguau, nas regies norte e oeste do atual Estado do Paran.

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cultura colonial tinha como caracterstica a oralidade. Isto , grande parte do que era escrito o era para ser falado. Nesse contexto, o sermo escrito para ser lido no plpito no era somente o gnero literrio mais adequado ao meio social (CNDIDO, 1993), como tambm um poderoso veculo para a exposio das mais diferentes questes. Assim, os sermes eram utilizados como um instrumento da educao dos ouvintes, fossem os proprietrios de escravos, fossem os prprios escravos. Nesse caso, cumpre-nos destacar padre Antonio Vieira (1608-1697). Esse jesuta discutiu quase tudo em seus sermes. A corrupo dos administradores coloniais, a defesa dos ndios, a necessidade de uma reforma tributria e a escravido dos africanos foram questes tratadas com a sua inigualvel engenhosidade barroca. De sua extensa obra cumpre ressaltar, para as nalidades deste captulo, os sermes vigsimo e vigsimo stimo da srie Maria, a Rosa Mstica ( VIEIRA, 1959). Nesses sermes, pregados irmandade dos negros de um engenho da Bahia, Antonio Vieira promovia uma identicao entre a escravido do corpo e a libertao da alma e buscava ensinar a seu pblico os escravos a importncia da escravido no Brasil. O MARQUS DE POMBAL At o incio do sculo XVIII, a ocupao europia do Brasil limitava-se a uma estreita faixa litornea ao longo do Atlntico e, embora as expedies dos bandeirantes fossem, de certa forma, comuns, o imenso interior permanecia territrio nativo. Na regio de ocupao europia a vida era, conforme vimos, predominantemente rural. A descoberta do ouro alterou signicativamente esse panorama. Primeiro, o Brasil deixou de ser somente litoral. A minerao no interior de Minas Gerais, Cuiab e interior de Gois alterou o mapa da ocupao europia. Imensos territrios foram ocupados. A imigrao portuguesa cresceu de forma to acelerada que, segundo Caio Prado Junior (1942), a populao do Brasil saltou de aproximadamente 300.000 habitantes em 1700 para aproximadamente 3.000.000 de habitantes no nal daquele sculo. As caractersticas da minerao levaram a uma rpida urbanizao dessa regio. A, a vida social deixou de ter o engenho como polo: a cidade passou a ser o centro de sociabilidade. A minerao e a urbanizao dizimaram rapidamente as populaes nativas, a utilizao da lngua geral rapidamente desapareceu e o portugus tornou-se predominante. Alm disso, para coibir os descaminhos, a Coroa proibiu que o clero regular permanecesse na regio das minas, no receio de que a inviolabilidade dos mosteiros possibilitasse que eles viessem a favorecer o contrabando e a sonegao. Essa atitude contribuiu para o surgimento das irmandades leigas que foram to caractersticas da regio das Minas Gerais.

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FUNDAMENTOS HISTRICOS DA EDUCAO NO BRASIL

Contudo, se o Brasil vivia um processo de intensicao da colonizao e de profundas mudanas, as transformaes que ocorriam na Europa eram muito mais profundas e iriam inuenciar decisivamente os rumos de nossa histria. A partir aproximadamente dos meados do sculo XVIII, tendo como polo irradiador a Frana, disseminou-se pela Europa um conjunto de ideias que combatiam o Antigo Regime10, ou seja, a sociedade de ordens. Os iluministas tinham como princpios bsicos a igualdade jurdica, o racionalismo e a crena no progresso. Com base nesses princpios, acreditavam que a sociedade deveria ser transformada e que um poderoso instrumento para essa transformao dos homens seria a educao11. Portugal no estava alheio a esse processo de crtica ao Antigo Regime. Conhecidos como estrangeirados, os iluministas portugueses passaram a lutar por uma srie de reformas, tanto no Reino quanto na Colnia. Entre tais reformas encontravam-se, obviamente, reformas no ensino, o qual era dominado pela Companhia de Jesus. Os desejos dos estrangeirados portugueses tornaram-se realidade pelo menos em parte quando, em 1750, D. Jos I12 assumiu o trono portugus e nomeou como ministro Sebastio Jos de Carvalho, futuro Marqus de Pombal (1699-1782). Aps a tentativa de assassinato do rei em que os jesutas foram considerados implicados e o episdio dos Sete Povos das Misses na regio sul do Brasil, os padres da Companhia de Jesus foram expulsos tanto do Reino quanto do Brasil. A expulso dos jesutas e as reformas no ensino, especialmente da Universidade de Coimbra, a criao da Aula de Comercio (uma espcie de escola de administrao), a Criao do Colgio dos Nobres em Portugal e a criao das Aulas Rgias no Brasil so os aspectos mais visveis das reformas educacionais pombalinas. O Marqus de Pombal procurou ainda estimular os brasileiros a estudar na Universidade de Coimbr