livro 120 anos desigualdades raciais no brasil

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  • 8/14/2019 Livro 120 Anos Desigualdades Raciais No Brasil

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    As polticas pblicase a desigualdade racialno Brasil 120 anosaps a abolio

    Luciana Jaccoud Rafael Guerreiro Osrio Sergei Soares

    Mrio Theodoro (org.)

  • 8/14/2019 Livro 120 Anos Desigualdades Raciais No Brasil

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    Podemos apenas entender o presente se constantemente nosreferimos e estudamos o passado.(Du Bois)

    muito bem-vindo o conjuntode textos trazido ao lume peloIpea, cuja contribuio nocampo de estudo das relaes raciaisno Brasil inconteste, como teremos aoportunidade de avaliar.

    Esta coletnea de artigos nos permiteavanar nos meandros multifacetados

    das relaes raciais no Brasil. Nobojo das aluses aos 120 anos ps-abolio da escravatura, os textos aquipresentes tratam das desigualdadesraciais, do racismo e da implementaode polticas pblicas de promooda igualdade racial, oferecendo umacompreenso do tema a partir deuma perspectiva dialtica da histria.

    Desvelam a relao entre a questoracial, a transio do escravismopara o trabalho livre, e o mercadoatual de trabalho, a precariedade, ainformalidade, o subemprego.

    Nessa trajetria, ao analisar asdistintas abordagens a que o temaesteve afeito ao longo da formaoda sociedade brasileira, os autores

    discutem as bases e pressupostosdo pensamento racista, a partir deuma leitura analtica de diferentescorrentes, agrupando-as emaproximaes pautadas na nfaseexplicativa dada, seja por se consideraro branqueamento na explicao da

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    1 a edio

    Novembro de 2008

    As polticas pblicase a desigualdade racial

    no Brasil 120 anosaps a abolio

    Luciana Jaccoud Rafael Guerreiro Osrio Sergei Soares

    Mrio Theodoro (org.)

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    Governo Federal

    Ministro de Estado Extraordinriode Assuntos Estratgicos Roberto Mangabeira Unger

    Secretaria de Assuntos Estratgicos

    Fundao pblica vinculada Secretaria de Assuntos Estratgicos, oIpea fornece suporte tcnico e institucional s aes governamentais possibilitando a formulao de inmeras polticas pblicas e deprogramas de desenvolvimento brasileiro e disponibiliza, para asociedade, pesquisas e estudos realizados por seus tcnicos.

    PresidenteMarcio Pochmann

    DiretoriaFernando Ferreira

    Joo SicsJorge Abraho de CastroLiana Maria de Frota CarleialMrcio Wohlers de AlmeidaMrio Lisboa Theodoro

    Chefe de GabinetePersio Marco Antonio Davison

    Assessor-Chefe de ComunicaoEstanislau Maria de Freitas Jnior

    Ouvidoria: http://www.ipea.gov.br/ouvidoria

    URL: http://www.ipea.gov.br

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    1 a edio

    Novembro de 2008

    As polticas pblicase a desigualdade racial

    no Brasil 120 anosaps a abolio

    Luciana Jaccoud Rafael Guerreiro Osrio Sergei Soares

    Mrio Theodoro (org.)

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    As opinies emitidas nesta publicao so de exclusiva e de inteira responsabili-dade dos autores, no exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Institutode Pesquisa Econmica Aplicada ou da Secretaria de Assuntos Estratgicos.A produo editorial desta publicao contou com o apoionanceiro do Fundo deDesenvolvimento das Naes Unidas para a Mulher (Unifem). permitida a reproduo deste texto e dos dados nele contidos, desde que sejacitada a fonte. Reprodues parans comerciais so proibidas.

    As polticas pblicas e a desigualdade racial no Brasil : 120 anosaps a abolio / Mrio Theodoro (org.),Luciana Jaccoud, Rafael Osrio, Sergei Soares .

    Braslia : Ipea, 2008.176 p. : grfs., tabs.

    Inclui bibliograa.ISBN

    l. Polticas Pblicas. 2. Discriminao Racial. 3.Anlise Histrica. 4. Brasil. I. Theodoro, Mrio Lisboa.II. Jaccoud, Luciana de Barros. III. Osrio, Rafael Guerreiro.IV. Soares, Sergei Suarez Dillon. V. Instituto dePesquisa Econmica Aplicada.

    CDD 305.800981

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    SUMRIO

    PREFCIO..............................................................................................................09INTRODUO.........................................................................................................11Captulo 1 A FORMAO DO MERCADO DE TRABALHO E A QUESTORACIAL NO BRASILMRIO THEODORO................................................................................................15Captulo 2 RACISMO E REPBLICA: O DEBATE SOBRE OBRANQUEAMENTO E A DISCRIMINAO RACIAL NO BRASILLUCIANA JACCOUD................................................................................................45Captulo 3 DESIGUALDADE RACIAL E MOBILIDADE SOCIAL NO BRASIL:UM BALANO DAS TEORIASRAFAEL GUERREIRO OSORIO................................................................................65Captulo 4 A DEMOGRAFIA DA COR: A COMPOSIO DA POPULAOBRASILEIRA DE 1890 A 2007SERGEI SOARES....................................................................................................97Captulo 5 A TRAJETRIA DA DESIGUALDADE: A EVOLUO DA RENDARELATIVA DOS NEGROS NO BRASILSERGEI SOARES...................................................................................................119Captulo 6 O COMBATE AO RACISMO E DESIGUALDADE: O DESAFIO DASPOLTICAS PBLICAS DE PROMOO DA IGUALDADE RACIALLUCIANA JACCOUD...............................................................................................131

    Captulo 7 GUISA DE CONCLUSO: O DIFCIL DEBATE DA QUESTORACIAL E DAS POLTICAS PBLICAS DE COMBATE DESIGUALDADE E DISCRIMINAO RACIAL NO BRASILMRIO THEODORO..............................................................................................167

    SUMRIO 7

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    NOTAS SOBRE OS AUTORES

    Mrio Theodoro economista e diretor de cooperao e desenvolvimento do Ipea.E-mail: [email protected]

    Luciana Jaccoud

    sociloga e tcnica de planejamento e pesquisa do Ipea.E-mail: [email protected] Rafael Guerreiro Osrio socilogo e pesquisador do IPC (International Poverty Centre).E-mail: [email protected]

    Sergei Soares

    economista e tcnico de planejamento e pesquisa do Ipea.E-mail: [email protected]

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    PREFCIO

    No momento em que se comemoram os 120 anos da abolio da escra- vido, o Ipea vem oferecer mais uma contribuio ao debate sobre o tema das desigualdades raciais no Brasil. Nos ltimos anos, nossa ins-

    tituio tem realizado um esforo efetivo para contribuir com a reflexo sobrea questo racial, visando proporcionar aos gestores e formuladores de polticaspblicas, assim como aos interessados pelo assunto, um conjunto de trabalhosque aprimorem o conhecimento da problemtica da desigualdade racial e ajudemno desafio de seu enfrentamento.

    A publicao do livro As polticas pblicas e a desigualdade racial no Brasil 120 anos aps a abolio d seqncia a esse esforo. papel do Ipea refletir sobre os principais problemas nacionais, visando o aperfeioamento das polticaspblicas em seus diversos campos. Para realizar essa tarefa, torna-se necessriono apenas aprimorar diagnsticos sobre a situao presente, mas, tambm, re-cuperar o passado e resgatar as influncias e fatores que explicam a configuraodesse presente. o que esse trabalho se prope a realizar, debruando-se sobreo tema das inaceitveis distncias que ainda hoje separam brancos e negros nos

    mais diferentes campos da vida social.Nos captulos que compem este livro, o leitor ter a oportunidade de se con-frontar com a temtica racial sob diferentes ngulos. Em um primeiro momento,sero apresentadas anlises sobre os condicionantes histricos que informam a

    PREFCIO 9

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    atual conformao do mercado de trabalho no pas, assim como de nossa difc trajetria no sentido do reconhecimento da discriminao racial como meca-nismo que efetivamente opera na distribuio de posies e oportunidades nasociedade brasileira. Nesse sentido, tambm ser apresentada a evoluo dasabordagens da questo racial em voga na academia brasileira a partir da segunda metade do sculo passado. O trabalho evolui para a apresentao de alguns

    dados recentes da PNAD, que permitem identificar alteraes na situao dadesigualdade racial no Brasil e passa, finalmente, para uma avaliao das poltipblicas desenvolvidas a partir dos anos 90.

    O lanamento deste livro, naquele que ficou consagrado como o Dia daConscincia Negra e que comemora, em 2008, os 313 anos da morte de Zumbidos Palmares, permite ainda realizar uma homenagem e um alerta. Homenagemaos homens e mulheres, negros e brancos, que tm se empenhado na efetivaconstruo da igualdade racial no pas, assim como no fim do racismo, do pre

    conceito e da discriminao. E um alerta aos gestores de polticas pblicas e sociedade em geral acerca da necessidade de se enfrentar a questo racial me-diante o esforo de engendrar o debate franco e aberto sobre o tema, bem comoa adoo de polticas pblicas eficazes e abrangentes que afrontem o racismo seus desdobramentos.

    Cabe aqui destacar o apoio recebido das Naes Unidas, por meio do Fundode Desenvolvimento das Naes Unidas para a Mulher (Unifem), que abraou projeto de publicao desse livro.

    MRCIO POCHMANN

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    INTRODUO

    Oestudo das questes ligadas s desigualdades raciais um desafio queo Ipea tem se proposto a enfrentar nos ltimos anos. Em que pese ofato da temtica racial, no Brasil, ser um objeto de estudo de alcance e

    interesse ainda limitado, o debate sobre o tema tem ganhado progressivo relevo.Nesse processo, pode-se identificar inclusive que, ao longo dos ltimos 20 anos,o prprio tratamento dado questo das desigualdades raciais alterou-se signifi-cativamente no pas.

    As dcadas de 1980 e 1990 foram marcadas por um contexto onde o debate

    era mobilizado pela questo da existncia ou no da discriminao racial no pas. A democracia racial ainda se colocava como um paradigma a ser questionado, eo reconhecimento das desigualdades raciais e a reflexo sobre suas causas pre-cisava se consolidar. A partir de meados dos anos 90, entretanto, os termos dodebate se transformaram. Reconhecida a injustificvel desigualdade racial que,ao longo do sculo, marca a trajetria dos grupos negros e brancos, assim comosua estabilidade ao correr do tempo, a discusso passa progressivamente a seconcentrar nas iniciativas necessrias, em termos da ao pblica, para o seu

    enfrentamento.Nesse sentido, o avano expressivo. Ele se explica, em parte, pelo avanoobservado nos diagnsticos, pesquisas e anlises sobre a temtica no pas, her-deiras dos estudos pioneiros sobre as desigualdades raciais no final da dcada

    INTRODUO 11

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    1970. Mas , sobretudo, pela progressiva mobilizao e atuao do MovimentNegro e de sua crescente presena no espao pblico, apresentando demandase debatendo a necessidade de formulao de polticas pblicas especficas e setoriais, que se deve a mudana observada.

    Nesse novo contexto do debate, o Ipea vem se dedicando a refletir sobreas polticas pblicas voltadas ao desafio da reduo das desigualdades racia

    Ressaltando a relevncia das heranas passadas, seja em termos da consolidade uma estratificao e mobilidade social que mantm a populao negra emespaos desprivilegiados da vida social, seja em termos do pensamento sociae poltico que interpreta essas desigualdades, este volume se prope a realizarum dilogo entre esse movimento e a abordagem atual das demandas pela aopblica. Alm disso, seguindo a tradio de trabalho desse instituto de pesquisadestaca-se a importncia, para os estudos que visam a apoiar a formulao depolticas pblicas, do esforo contnuo no acompanhamento dos movimentos

    e mudanas sociais recentes. Nesse sentido, a anlise dos dados sobre as de-sigualdades raciais, sua interpretao e contextualizao, apresentam-se comopatamares necessrios reflexo sobre a questo racial e busca de soluespara seu enfrentamento.

    A coletnea de trabalhos que compe esta publicao apresenta um conjuntode reflexes sobre as desigualdades raciais no Brasil em um conjunto diversomas integrado, de domnios. Na esteira de uma j consagrada atuao do Ipeaem estudos sobre a temtica racial, o presente volume inova, na medida em que

    busca integrar a anlise histrica a um esforo de anlise da conjuntura, seja vinterpretao dos dados recentes da PNAD, seja via o acompanhamento e avaliao das polticas pblicas voltadas promoo da igualdade racial. Nesse sentidos trabalhos aqui apresentados visam proporcionar uma panormica do tema emdiversos aspectos.

    O captulo 1, de autoria de Mrio Theodoro, traz um apanhado histricosobre a questo racial e sua influncia na formao do mercado de trabalho brasileiro, mostrando que a existncia da precariedade, da informalidade, do su

    bemprego atual tem razes na forma em que se moldou o mercado de trabalhono perodo de transio do escravismo para o trabalho livre. Nessa perspectivaos acontecimentos do sculo XIX ganham relevo. A elevao do pas condide sede do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, o resultante processo d

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    INTRODUO 13

    crescimento urbano, a evoluo da atividade econmica e da ocupao na rearural, a transio para o trabalho livre, a imigrao, destacam-se entre os fatoresque contriburam de forma definitiva para e conformao da sociedade brasileiraem sua heterogeneidade e complexidade.

    O captulo 2 discute as bases e pressupostos do pensamento racista que se es- trutura aps a abolio, assim como os esforos para sua desconstruo realizados

    nas ltimas dcadas do sculo XX. Efetivamente, como destaca a autora, Luciana Jaccoud, a valorizao do elemento branco como esteretipo de referncia e, emconseqncia, o ideal de branqueamento, impuseram-se como norteadores deum projeto nacional e como pressupostos para o desenvolvimento, dominandoa cena poltica at os anos 1930. J na era Vargas, ganha fora e predominncia aideologia da democracia racial, vigente at meados dos anos 80 do sculo passado. A partir da, o resgate do debate sobre a questo racial volta tona, sobretudocom a interlocuo do Movimento Negro, que ressurge no perodo da redemo-

    cratizao. Finalmente, o captulo expe as bases atuais do debate, seus pontosmais importantes, luz do atual contexto poltico e institucional. J o captulo 3, de autoria de Rafael Guerreiro Osrio, discute a trajetria da

    viso acadmica, a partir de uma leitura interpretativa das diferentes correntesde pensamento sobre a questo racial brasileira, tomando por base uma releiturados principais estudiosos do tema agrupados em trs geraes de pensamento. A primeira gerao, que privilegiava a importncia do fenmeno do branquea-mento na explicao da mobilidade social dos diferenciais socioeconmicos entre

    negros e brancos. A segunda gerao, que reafirma a importncia do preconceitoracial como importante elemento presente nas relaes sociais no Brasil. Por seu turno, a terceira gerao vem ressaltar a questo racial com base em evidnciasempricas, utilizando informaes diversas sobre a situao educacional, de ren-da, ocupacional, entre outras, para destacar o contexto de desigualdades sociaise seus determinantes, associados ao fenmeno da discriminao, enriquecendosignificativamente o estudo da questo racial e seus desdobramentos no Brasil.

    Os captulos 4 e 5, ambos elaborados por Sergei Soares, apresentam uma

    panormica sobre a situao atual da populao negra no Brasil, tomando por base os dados da srie PNAD/IBGE (Pesquisa Nacional por Amostra de Domi-clio). A partir do tratamento estatstico acurado dos microdados da referidapesquisa, o captulo 4 apresenta as tendncias recentes acerca da evoluo e

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    crescimento da populao negra, apontando para o crescimento do processopelo qual a populao brasileira tende a, cada vez mais, identificar-se como ne gra. A trajetria da desigualdade de renda enfocada no captulo 5, explicitandas ainda relevantes distines entre negros e brancos, mas apontando para oaparecimento de um movimento inovador de reduo, observado na dcadaatual. As evidncias empricas apresentadas nesses dois captulos, assim como

    debate sobre suas causas, alm de contriburem para alimentar novos estudose pesquisas, permitem uma reflexo mais apurada sobre os programas e aesde enfrentamento do problema, incluindo a relevncia das polticas universais nreduo das desigualdades raciais no pas.

    Na esteira da discusso sobre o enfrentamento da desigualdade racial noBrasil, o captulo 6, tambm assinado por Luciana Jaccoud, traz uma panormisobre as aes e programas existentes atualmente. So ali apresentadas aesde cunho valorizativo, afirmativo caso dos diferentes programas de acesso

    instituies de ensino universitrio assim como outras iniciativas inovadorlevadas a cabo por organismos pblicos como o Ministrio Pblico do Trabalh A percepo de que as aes em andamento so diversificadas e que efetivamentconstituem um rico mosaico de possibilidades face aos problemas da desigualdde e da discriminao no as eximem, entretanto, de problemas. Com efeito, oEstado brasileiro parece ainda bastante tmido no enfrentamento da desigualdadracial e esse o ponto nevrlgico levantado e discutido no captulo.

    Finalmente, o captulo 7, de autoria de Mrio Theodoro, encerra o livro com

    um apanhado geral sobre os temas debatidos. Nessa perspectiva, guisa de concluso, apresentado um conjunto de elementos de discusso sobre a temticaracial brasileira em seu perfil atual. Mas, antes de ser um aparato conclusivo, opontos arrolados pretendem contribuir para a abertura do debate e, sobretudo,para a configurao de uma agenda de pesquisa que visa colocar a temtica racino patamar de Poltica Pblica, para a qual uma ampla ao governamental, assicomo dos demais Poderes, parece no apenas desejvel, mas imprescindvel.

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    AS POLTICAS PBLICAS E A DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 120 ANOS APS A ABOLIO 15

    INTRODUO

    Opresente captulo tem por objetivo discutir a formao do mercado de tra-balho no Brasil, tomando como referncia a questo racial. Partindo de umaanlise histrica, cuja demarcao privilegia os desdobramentos ocorridosno sculo XIX, intenta-se apresentar argumentos que recoloquem a questo racial

    como elemento central na formatao atual do mercado de trabalho brasileiro.O trabalho escravo, ncleo do sistema produtivo do Brasil Colnia, vai sendo gradativamente substitudo pelo trabalho livre no decorrer dos anos 1800. Essasubstituio, no entanto, d-se de uma forma particularmente excludente. Meca-nismos legais, como a Lei de Terras, de 1850, a Lei da Abolio, de 1888, e mes-mo o processo de estmulo imigrao, forjaram um cenrio no qual a mo-de-obra negra passa a uma condio de fora de trabalho excedente, sobrevivendo,em sua maioria, dos pequenos servios ou da agricultura de subsistncia.

    Nesse contexto, a consolidao da viso, de cunho racista, de que o progres-so do pas s se daria com o branqueamento, suscitou a adoo de medidas eaes governamentais que findaram por desenhar a excluso, a desigualdade e apobreza que se reproduzem no pas at os dias atuais.

    A FORMAO DO MERCADO DE TRABALHOE A QUESTO RACIAL NO BRASIL

    MRIO THEODORO C A P

    T U L O

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    16 AS POLTICAS PBLICAS E A DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 120 ANOS APS A ABOLIO

    Este captulo est dividido em cinco sees, alm desta introduo. Na pri-meira, apresenta-se um quadro geral da evoluo do perfil da fora de trabalhono Brasil, demonstrando como se deu a passagem gradativa do trabalho cativo a trabalho livre, tanto nas reas urbanas como no meio rural.

    A segunda seo apresenta algumas das principais interpretaes vigentesobre o processo de transio do trabalho escravo para o trabalho livre. A conflu

    ncia de idias que privilegiam um enfoque de valorizao do elemento brancoem detrimento do negro, vem caracterizar e servir como base para os discursosa favor do desenvolvimento nacional.

    A terceira seo discute uma das mais significativas conseqncias da formcomo se deu a abolio no Brasil, qual seja, a marginalizao do trabalho negroseus desdobramentos.

    Na quarta seo, aprofundam-se as questes ligadas a essa marginalizao, esse no-lugar do negro, sob a tica da ao do Estado e das polticas que amplia

    ram a desigualdade: a Lei de Terras e o estmulo imigrao.Finalmente, na ltima parte, so apresentadas as concluses.

    1.1 TRABALHO ESCRAVO E TRABALHO LIVRE: AS MLTIPLAS FACES DOTRABALHO NEGRO NO BRASIL DO SCULO XIX

    O sculo XIX foi responsvel por significativas transformaes polticas

    econmicas, at ento jamais vivenciadas pelo Brasil. O Brasil, j em 1808, pasa de colnia a reino integrado ao Reino Unido de Portugal e Algarves. A fuestratgica da Famlia Real e sua Corte para o pas, deixando Portugal s tropanapolenicas, marcou definitivamente nossa histria. Detendo a nova capital dReino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, que se transferira de Lisboa paracidade do Rio de Janeiro, o Brasil vai trilhar um novo perodo em sua histriconsolidando-se como o pas de mais vasta extenso territorial das Amricas, pomerc da presena de um governo central forte que soube garantir e preservar

    as alianas com as elites locais estabelecidas.1

    1 Sobre o assunto ver Faoro (1977) e Hollanda (1963).

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    CAPTULO 1 A FORMAO DO MERCADO DE TRABALHO E A QUESTO RACIAL NO BRAS17

    Em termos geogrficos, a atividade econmica em terras brasileiras, no inciodo sculo XIX, consistia em nichos isolados. De um modo geral, o Brasil, po-ca, compreendia uma imensido territorial sobre a qual se reproduziam diversasformas de atividade laboral produo de subsistncia, extrativismo, agriculturade exportao (sobretudo cana-de-acar e algodo). Isso, tendo em vista o his- trico no apenas dos ciclos, como os do acar, no Nordeste, e do ouro, em

    Minas Gerais, mas tambm o desenvolvimento da cultura de subsistncia (Ver DELGADO, 2005). Ao longo do litoral, pontilhavam alguns nichos de concentra-o urbana especializados em servios, no comrcio e na atividade manufaturei-ra. Entre as reas urbanas, destacavam-se Recife, Salvador e Rio de Janeiro.2

    O Rio de Janeiro tornara-se a metrpole, abrigando a Corte e o governomonrquico. A cidade, que desde 1763 j era a sede do governo geral da Am-rica Portuguesa, ganha, assim, um novo impulso. Ao desembarcarem no portodo Rio de Janeiro, os nobres portugueses e asseclas encontram uma cidade ainda

    acanhada, apequenada, interiorana.[...] a chegada da Famlia Real portuguesa modificou completamente a vida da enmontona cidade colonial e de seus pacatos habitantes. A presena da Corte no Rde Janeiro no s transformou a cidade em capital do Imprio Portugus, como tambm estimulou o desenvolvimento de uma srie de atividades econmicas urbana(comrcio, artesanato, algumas manufaturas, etc.) e a melhoria das condies de vide seus habitantes, principalmente dos setores mais abastados (SOARES, 2007,

    25-26). J nos primeiros anos de corte, a cidade encontrava-se em franca acelerao

    no que tange ao processo de urbanizao. A construo civil ganha grande mpeto,desenvolvem-se os servios urbanos e a instalao dos servios pblicos inerentes funo de capital do imprio, e h, conseqentemente, um crescimento das ati- vidades comerciais, manufatureiras. A populao atinge o patamar de 116 mil habi- tantes em 1821, de acordo com recenseamento realizado poca (ibid., p. 26).

    2 Segundo Emlia Viotti da Costa, as cinco maiores cidades brasileiras no incio do sculo XIX eram, ordem, Rio de Janeiro, com 50 mil habitantes, Bahia (Salvador), com 45,5 mil, Recife, com 30 mil, So LuMaranho, com 22 mil e So Paulo, com 15,5 mil habitantes. Segundo a autora As cinco cidades representav5,7% da populao do pas, calculada em 2.850.000 habitantes. (COSTA, 1985, p. 234).

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    18 AS POLTICAS PBLICAS E A DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL 120 ANOS APS A ABOLIO

    Durante a primeira metade do sculo XIX, a fora de trabalho nos ncleosurbanos consistia, em sua maioria, de trabalhadores escravos. Entretanto, havios trabalhadores chamados livres e/ou libertos, geralmente negros e mulatos queexerciam servios de toda natureza, notadamente aqueles de alguma especializao. Esse segundo grupo vai ganhar corpo, gradativamente, no decorrer daquelesculo. Um terceiro agrupamento importante era o dos migrantes, que, no caso

    do Rio de Janeiro, eram, sobretudo, de nacionalidade portuguesa. Apenas entre1808 e 1817, a populao portuguesa na cidade aumentou em 24 mil pessoas.De todo modo, a maior parcela da mo-de-obra na cidade, na primeira meta-

    de do sculo XIX, composta de cativos que, alm das tarefas domsticas, apresentavam-se no mercado para venda de servios sob formas diversas. A figura donegros de ganho escravos pertencentes a famlias em geral da classe mdia, oquais, durante o dia, vendiam seus servios nas ruas e praas proliferara com crescimento da cidade. Negros e negras de diferentes profisses artesos, cozi-

    nheiras, carregadores, vendedores, prostitutas e at mesmo pedintes garantiama renda e o sustento de grande parte das famlias cariocas. Havia tambm, como jenfatizado, os negros que atuavam mais diretamente no servio domstico. Estesem geral, no participavam das atividades de ganho nas ruas. Eram responsvepela manuteno da casa: cozinheiras, aias, damas-de-leite, lavadeiras, cocheiroentre outros.3

    Mas havia ainda um segmento de mo-de-obra escrava mais qualificada. Eraartesos, prestadores de servios de reparaes e mesmo trabalhadores adapta-

    dos aos servios industriais. Note-se que, ainda no decorrer da primeira metadedo sculo XIX, o Rio de Janeiro vivencia um incipiente, mas efetivo, processo crescimento da atividade industrial, com a proliferao de oficinas artesanais manufaturas de maior porte. Segundo dados da Junta do Comrcio, AgriculturaFbricas e Navegao do Rio de Janeiro, citados por Soares em seu trabalho(2007), ao final da dcada de 1850, a cidade contava com 95 manufaturas nomais diferentes ramos industriais, com destaque para a produo de sabo e velas, chapus, fundio e mquinas; metalurgia de ouro, prata e rap; alm d

    cordoaria e calados; mveis; produtos qumicos e papel.

    3 Soares ressalta ainda o papel dos escravos como responsveis pelos servios de limpeza urbana, nao de vias pblicas, transporte de cargas e passageiros, entre outros (Ver SOARES, 2007, p. 160-175).

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    CAPTULO 1 A FORMAO DO MERCADO DE TRABALHO E A QUESTO RACIAL NO BRAS19

    A participao da mo-de-obra escrava nos empreendimentos industriais,assim como nos servios urbanos, fora majoritria, pelo menos at 1850. J nasegunda metade do sculo, a mo-de-obra de origem estrangeira, sobretudoportuguesa, ganha importncia. Com efeito, o ano de 1850 marca o fim do tr-fico de escravos, ao menos legalmente, o que fez com que o preo do cativoaumentasse substancialmente. Alm disso, os setores mais dinmicos ligados

    produo do caf sobretudo na regio do Vale do Paraba passam, com o fimdo trfico, a absorver os escravos de outras regies do pas. As outras duas maiores cidades, Recife e Salvador, tambm se consolidaram

    como plos importantes de comrcio e servios. Historicamente, Recife foi oprincipal escoadouro da economia aucareira da regio Nordeste, que ganhanovo impulso no sculo XIX. O crescimento da produo de acar, a moder-nizao do processo de produo e o advento das grandes usinas repercutiramna urbanizao recifense. No entanto, como destaca Andrade (1979), trata-se de

    uma metrpole cuja rea de influncia uma regio j ento historicamente es- tagnada, a despeito dos surtos de modernizao. O resultado foi a concentrao,naquela rea urbana, a partir da segunda metade do sculo XIX, de uma popu-lao pauperizada e vivendo de atividades marginais e informais, situao que seperpetua at os dias atuais (THEODORO, 1991).

    Salvador destacava-se pelos servios em geral. Herdeira da condio de primeiracapital at 1763, a cidade manteve algumas peculiaridades importantes. Em primei-ro lugar, a concentrao de populao negra ali bastante elevada, o que confere

    capital dos baianos uma cultura bastante singular e grandemente atrelada s razesafricanas (Ver MATTOSO, 1978). Salvador vai, por sua vez, concentrar uma grandepopulao pobre, que habitar reas de favelas e palafitas. Esse processo, comum scidades dos pases perifricos, foi detectado por Santos (1965), naquilo que o autor identificou como concentrao de pobreza e misria em reas urbanas.

    De um modo geral, at a metade do sculo XIX, as cidades se caracterizavampor uma grande concentrao de negros. Isso foi particularmente mais intensonos casos das reas urbanas da regio Nordeste (Recife, Salvador e So Lus), que

    no receberam o afluxo significativo de imigrantes europeus.Em sntese, nas cidades brasileiras daquela poca, havia dois tipos de pres- tadores de servios (alm, logicamente, dos escravos domsticos): de um lado,os trabalhadores livres (brancos, mulatos e negros) e, de outro, os escravos, seja

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    como negros de ganho, que deveriam entregar ao seu senhor a totalidade ou,por vezes, uma parte do que ganhavam vendendo seus servios,4 seja no trabalhoem manufaturas e empreendimentos industriais.5

    Portanto, as grandes reas urbanas brasileiras, no incio do sculo XIX, apresentavam como base laboral o trabalho escravo e, em menor escala, o trabalhode livres e libertos, assim como o dos migrantes. Os cativos, ao menos at a

    primeira metade do sculo, constituam a base da atividade econmica, produzindo bens e servios, trabalhando na limpeza e conservao das vias pblicas, n transporte, entre outros. A situao ganha novos contornos, sobretudo a partir de segunda metade dos anos 1800: o aumento gradativo da populao mestialivre e liberta e, no caso das cidades do Sudeste e do Sul, a entrada em cena daimigrao europia vm configurar um novo panorama urbano para o pas.

    No que tange rea rural, consolidam-se situaes bastante distintas em funo das caractersticas regionais. O Nordeste, no sculo XIX, era ainda a regi

    produtora de acar. Impulsionada pela crise da produo antilhana, decorrentedas lutas intestinas de libertao, as exportaes nordestinas ganham novo alentnas primeiras dcadas dos anos 1800. Esse surto dinamizador no se sustentoupor um longo perodo, mas foi responsvel pela modernizao da produo naregio, notadamente com a instalao de unidades industriais em substituio aoantiquados engenhos (EISEMBERG, 1977).

    Outro fator decisivo para a regio foi a quebra da produo norte-americanade algodo, em decorrncia da Guerra da Secesso (1861 a 1865). Durante qua

    se uma dcada, as exportaes nordestinas de algodo para a Europa obtiveramum forte impulso. Entretanto, tal como no exemplo aucareiro, a retomada daproduo americana proporcionou a quebra do setor algodoeiro nordestino, le- vando o segmento produtivo estagnao.

    4 As cidades brasileiras impressionavam o europeu recm-chegado pela multido de negros, que eas ruas. Eram eles os encarregados de todos os servios urbanos, sobretudo do transporte de mercadoria esageiros. Constituam a categoria especial dos negros de ganho [...]. Passavam o dia na rua alugando seus com a obrigao de entregar ao senhor uma renda diria ou semanal previamente fixada, pertencendo-lhexcedente. Comumente, moravam na casa do senhor, mas faziam fora suas refeies. s vezes, tinham lpara morar em domiclio por conta prpria (GORENDER, 1978, p. 455).

    5 Mattoso (1978), estudando o mercado de trabalho em Salvador no sculo XIX, descreve-o tendo cocaracterstica principal o que chamou de dupla estrutura do trabalho urbano: [...] havia na cidade dois merc trabalho: um para brancos, mulatos e negros livres, e outro exclusivo para escravos (MATTOSO, op.cit., p.

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    A regio Centro-Sul, no incio do sculo XIX, mantinha-se atrelada em gran-de medida atividade de minerao. O ouro de Minas Gerais havia sido a ponta-de-lana de uma atividade econmica cuja pujana foi responsvel pelo desen- volvimento de um complexo sistema de transporte, assim como da pecuria.Mas aquele sculo assistiria ao nascimento e consolidao do ciclo do caf, cujaproduo se espraiar do Rio de Janeiro pelo Vale do Paraba, indo alcanar as

    terras do Oeste paulista. Ali se concentrar, sobretudo a partir da segunda meta-de dos anos 1800, o filo mais dinmico da economia cafeeira que, durante quaseum sculo, ser o motor de nossa economia.

    At meados da dcada de 1860, a expanso cafeeira vai se basear quase queexclusivamente no brao escravo. E, com o fim do trfico, em 1850, a demandado setor suprida pelo deslocamento dos escravos de outras regies do pas,notadamente Nordeste, concentrando-se, assim, um significativo contingente decativos na regio Sudeste.

    A populao do Brasil, na primeira dcada do sculo XIX, era de cerca de trs milhes de habitantes, sendo que, destes, 1,6 milhes eram escravos. Haviaainda cerca de 400 mil negros e mulatos libertos e um milho de brancos.6 Essapopulao vai alcanar um total de dez milhes, em 1872, chegando a 17,3 mi-lhes na virada do sculo XX.7

    No total, os negros e mulatos, ditos livres e libertos, constituiro o subgru-po populacional que mais crescer no decorrer do sculo XIX. Nas reas rurais,exercero atividades ligadas principalmente agricultura/pecuria de subsistn-

    cia. Nas cidades e vilas, desenvolver-se-o nos ramos de servios em geral, naproduo artesanal e ainda em atividades manufatureiras. Muitos, entretanto,no encontravam outras atividades alm do trabalho ocasional em atividades depequenos servios, quando no se encontravam em situao de privao de tra-balho. Tambm se faro cada vez mais presentes os trabalhadores imigrantes.Nas primeiras dcadas do sculo XIX, levas de trabalhadores de origem portu- guesa vieram a se engajar na fora de trabalho. J na segunda metade do sculo,imigrantes de outras nacionalidades, sobretudo italianos, vm engrossar ainda

    mais o fluxo de trabalhadores estrangeiros.6 Estimativas de Malheiros, em 1866 (cf. KOWARIC, 1994, p.33).

    7 Dados do Recenseamento do Brasil (cf. COSTA, 1985).

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    Explorao do tipo compulsrio, de um lado, e massa marginalizada de outro, c tuem amplo processo decorrente do empreendimento colonial-escravocrata, quese reproduzir at pocas tardias do sculo XIX. Sistema duplamente excludentea um s tempo cria a senzala e gera um crescente nmero de livres e libertos, qu transformam nos desclassificados da sociedade (KOWARICK, 1994, p. 58).

    No incio do sculo XIX, os escravos representavam mais de 50% da po-pulao nacional. No que se refere ao contingente de homens livres e libertosobserva-se um crescimento significativo no decorrer dos anos 1800. poca dabolio da escravido, os livres e libertos representavam um contingente decerca de dez milhes de indivduos, enquanto mantinham-se to somente 720mil indivduos na condio de escravos, de acordo com as estimativas de Conradapresentadas por Kowarick (ibid.).

    1.2 A SUBSTITUIO DA MO-DE-OBRA ESCRAVA: UM DEBATE EM ABERTO

    Em geral, a maior parte da populao livre e liberta estava na rea rural, inserida no que Furtado chamou de setor de subsistncia. Essa situao explica, dacordo com o referido autor, por que a substituio da mo-de-obra escrava nose realizou internamente com a fora de trabalho nacional disponvel, ou sejapor que se utilizou o artifcio da imigrao para ocupar os postos de trabalho qu

    tinham sido liberados pelos escravos. Com efeito, de acordo com Furtado, a parcela da populao que vivia da economia de subsistncia no seria bem adaptadao trabalho assalariado regular; alm disso, ainda de acordo com o autor, tratavase de uma populao difcil de ser recrutada, devido sua disperso em vastareas territoriais (FURTADO, 1970, p. 153-154).

    O marco inicial da transio para o trabalho livre foi dado pela abolio d trfico de escravos em 1850.8 O fim do fluxo de novos escravos teve comodesdobramento, nos anos subseqentes, o enfraquecimento do sistema escra-

    vocrata, devido, principalmente, s ms condies de reproduo da fora de8 De fato, no obstante a abolio do trfico formal ter ocorrido em 1826 e, cinco anos aps, sedeclarados livres os negros que aportassem em terras brasileiras, a importao de africanos s terminaria mente em 1850. (KOWARIC, 1994, p. 44).

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    trabalho cativa nacional. Para se ter uma idia das pssimas condies de vidados escravos no Brasil, observe-se a comparao realizada por Kowarick sobreas trajetrias brasileiras e americanas em termos de evoluo do contingente deescravos no sculo XIX.

    Ambos os pases, no incio do sculo XIX, tinham, aproximadamente, 1 milho

    trabalhadores cativos. Nos cinqenta anos subseqentes, o Brasil importa cerca d1 milho e 600 mil, contingente trs vezes maior que aquele que foi levado para oEstados Unidos. As condies de reproduo em ambos os pases assumem sua feo real quando se sabe que, entre 1860 e 1870, a populao escrava americana erade 4 milhes, enquanto que a brasileira atingia, apenas, cerca de 1 milho e 500 m(KOWARICK, 1994, p. 59).

    Nesse contexto, onde as condies de vida a que estavam submetidos os es-

    cravos eram particularmente ruins, a importao de escravos novos constitua umaetapa necessria manuteno do sistema escravista brasileiro. O fim do trfico,resultado, sobretudo, das presses exercidas pela Inglaterra (cf. FAUSTO, 1995,p. 186-208), significou, assim, um duro golpe continuidade desse sistema.

    Outro momento importante foi representado pela Lei do Ventre Livre, de1871, resultado de um intenso debate sobre o fim da escravido e sobre o futuroda economia baseado no trabalho livre (cf. LAMOUNIER, 1988). Em defesa da abo-lio, destacou-se a atuao da vertente progressista do movimento republicano

    emergente nas grandes cidades, notadamente no Rio de Janeiro, a partir de 1870. Ativos defensores dos valores representados pela divisa Liberdade, Igualdade,Fraternidade, os republicanos urbanos vo lograr, ao menos em um primeiro mo-mento, introduzir a questo da abolio dentro de uma perspectiva de transio,cuja idia principal era a do desaparecimento gradual da escravido, acompanhadada garantia ao trabalho para aqueles que viessem a ser liberados (LAMOUNIER,op. cit., p. 147; PRADO JNIOR, 1945, p. 195-206; FAUSTO, 1995, p. 221-231).

    Entretanto, outra vertente republicana, composta por representantes dos esta-

    dos poltica e economicamente mais influentes, sustentava posies diferentes emrelao utilizao e ao destino da mo-de-obra dos escravos que viessem a ser libertados. So especialmente os grandes fazendeiros do Oeste Paulista poca, aregio mais dinmica da produo do caf que, inseguros quanto possibilidade de

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    dependerem do trabalho dos ex-escravos e desconfiando da possibilidade de se con tar com os trabalhadores livres e libertos, tidos como avessos s atividades laboraiapresentaro a proposta de imigrao subvencionada, o que permitir a chegada emmassa de trabalhadores europeus, financiada em grande parte pelo governo.9

    Efetivamente, o racismo, que nasce no Brasil associado escravido, consolda-se aps a abolio, com base nas teses de inferioridade biolgica dos negros

    e difunde-se no pas como matriz para a interpretao do desenvolvimento na-cional. As interpretaes racistas, largamente adotadas pela sociedade naciona vigoraram at os anos 30 do sculo XX e estiveram presentes na base da formu-lao de polticas pblicas que contriburam efetivamente para o aprofundamen to das desigualdades no pas.

    1.3 A TRANSIO PARA O TRABALHO LIVRE E A MARGINALIZAO

    DO TRABALHO NEGRO

    A substituio da mo-de-obra escrava pela dos imigrantes comeou, assimmais de 30 anos antes da abolio. De acordo com os dados disponveis, entre1864 e 1887, o nmero de escravos no pas diminuiu de 1,7 milhes para 720 mienquanto entre 1872 e 1881, 218 mil imigrantes entraram no Brasil (cf. KOWARI1994, p. 46-47, p. 71). A porcentagem de escravos no total da populao, queera de mais de 50% no incio do sculo XIX, foi, dessa forma, reduzida at 16%

    em 1874, alguns anos antes do fim da escravido.O perfil de ocupao da fora de trabalho assumir, ento, nova conformaoEnquanto a mo-de-obra imigrante chega e ocupa-se cada vez mais da produode caf, uma parte crescente da populao de escravos ento liberados, vai sejuntar ao contingente de homens livres e libertos, a maioria dos quais se dedicavseja economia de subsistncia, seja a alguns ramos ligados aos pequenos serviurbanos. No houve a valorizao dos antigos escravos ou mesmo dos livres e lbertos com alguma qualificao. O nascimento do mercado de trabalho ou, dito d

    9 A maioria dos imigrantes, por essa poca, era de origem italiana. Por conta da crise que assolava naquele momento Principalmente na regio do Veneto, grande contingente de pequenos proprietrios e me foi forado a se proletarizar, sem que a economia italiana tivesse condies de incorporar essa massa de dispem outras atividades econmicas. (KOWARIC, 1994, p. 91).

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    outra forma, a ascenso do trabalho livre como base da economia foi acompanhadapela entrada crescente de uma populao trabalhadora no setor de subsistncia eem atividades mal remuneradas.10 Esse processo vai dar origem ao que, algumasdcadas mais tarde, viria a ser denominado setor informal, no Brasil.

    Mas a transio para o trabalho livre merece uma anlise um pouco mais acurada.De fato, esse fenmeno no se desenvolveu de forma homognea em todo o pas, j

    ento marcado por diferenas regionais significativas. O maior dinamismo econmi-co baseado na produo de caf assim como na indstria nascente, concentrava-sena regio Centro-Sul, especialmente no estado do Rio de Janeiro, de So Paulo eMinas Gerais (na regio da Zona da Mata). A partir de 1830, as necessidades cres-centes de mo-de-obra, sobretudo na economia do caf, vo levar a uma gradativaconcentrao do contingente de escravos naquelas regies. Assim, a porcentagemde escravos brasileiros vivendo no Rio de Janeiro, em So Paulo e Minas Gerais, emrelao ao conjunto da populao escrava, passou de 36,7% a 51,1% entre 1864

    e 1874 (cf. KOWARIC, 1994, p. 46-47, p. 60-61). S entre 1850 e 1885, as reasprodutoras de caf desses trs estados compraram cerca de 350.000 escravos, emsua maioria, oriundos de outras regies do pas (cf. GORENDER, 1978, p. 325.).

    Como ressalta Hasenbalg acerca da poltica de imigrao adotada no Brasil:

    Impregnada como estava de matizes racistas, essa poltica resultou no apenas na mginalizao de negros e mulatos no Sudeste, mas tambm reforou o padro de distrbuio regional de brancos e no-brancos que se desenvolvera durante o regime es

    cravista. Como conseqncia, uma maioria de populao no-branca permaneceu fodo Sudeste, na regio economicamente mais atrasada do pas, onde as oportunidadeeducacionais e ocupacionais eram muito limitadas (HASENBALG, 1979, p. 167).

    Na segunda metade do sculo XIX, a mo-de-obra imigrante comea a subs- tituir a dos escravos, principalmente nos centros mais dinmicos da economia.No incio, so as novas regies produtoras de caf, com destaque para o OestePaulista, que vo receber os migrantes europeus. Especialmente aps 1874, a

    substituio do trabalho escravo acelerou-se.10 Se bem no existam estudos especficos sobre a matria, seria difcil admitir que as condies materde vida dos antigos escravos se hajam modificado sensivelmente, aps a abolio, sendo pouco provvel que eltima haja provocado uma redistribuio de renda de real significao. (FURTADO, 1970, p. 138.

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    Nas vsperas da abolio, enquanto os escravos dos cafezais fugiam das fazemuitos dos quais desciam a serra do Mar amontoando-se nas favelas de Santosgrantes italianos faziam o percurso inverso, dirigindo-se para as plantaes (KRICK, 1994, p. 86).

    Na Regio Nordeste, contudo, constata-se uma situao diferente. Como

    rea originalmente fornecedora de mo-de-obra escrava para a regio do caf,o Nordeste j havia se iniciado na substituio do regime de trabalho escravoa partir de 1850. Os trabalhadores nacionais livres ou libertos foram progres-sivamente incorporados para preencher o espao deixado pelos escravos le- vados para o Centro-Sul. No Nordeste, pelo menos duas barreiras impedirama disperso dos livres e libertos: de um lado, a grande distncia das regiede fronteira da economia de subsistncia e, de outro, as regies urbanas, quej apresentavam problemas em decorrncia dos excedentes de populao. De

    certa forma, para os antigos escravos, assim como para os trabalhadores livresno havia alternativas ao antigo trabalho. Apesar da existncia de um fluxo cosidervel de ex-escravos para as maiores cidades como Recife, uma grande par te da fora de trabalho liberada continuar nas propriedades rurais, sob regimede baixssima remunerao, seja como assalariados, meeiros, parceiros, entreoutros. De acordo com Furtado, no Nordeste, essa forma de organizao daeconomia, aps a abolio da escravido, restringiu o fluxo de renda monetrie, em decorrncia, impediu a formao efetiva de um mercado interno. Dife-

    rentemente, no caso do Centro-Sul, o fim da escravido significou o crescimen to do fluxo interno de renda monetria e a consolidao do mercado interno,apesar da existncia da economia de subsistncia em reas de fronteiras agrcolas (FURTADO, 1985, p. 210-211).

    Em resumo, existiram particularidades no que concerne passagem da eco-nomia de base escravocrata economia baseada no trabalho livre. Observa-sede um lado, um processo de reagrupamento da mo-de-obra escrava nas regi-es mais dinmicas, sobretudo em So Paulo (KOWARIC, 1994, p. 46-47), pa

    onde se dirigiu, numa etapa posterior, a maior parte dos imigrantes.11

    No houve,11 Alm dos estados do Centro-Sul (So Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro), tambm houve uma ficativa imigrao europia para os estados do Sul do pas Paran, Santa Catarina e Rio Grande do Sul perspectiva estava ligada, sobretudo, idia de colonizao (cf. COSTA, 1983, p. 417).

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    como nos Estados Unidos, regies em que se concentravam os trabalhadoresescravos (os estados do Sul) enquanto em outras se concentravam os trabalha-dores livres (os estados do Norte).12 No Brasil, a abolio significar a exclusodos ex-escravos das regies e setores dinmicos da economia. Em sua grandemaioria, eles no sero ocupados em atividades assalariadas. Com a imigraomassiva, os ex-escravos vo se juntar aos contingentes de trabalhadores nacio-

    nais livres que no tm oportunidades de trabalho seno nas regies economi-camente menos dinmicas, na economia de subsistncia das reas rurais ou ematividades temporrias, fortuitas, nas cidades.

    preciso, nesse sentido, frisar que o assim chamado elemento nacional, aps a ablio, tendeu a ser absorvido pelo processo produtivo s em reas de economiaestagnada, onde a imigrao internacional foi pouco numerosa ou, at mesmo, nulDe fato, sua utilizao ocorreu mais acentuadamente nas regies decadentes do Va

    do Paraba e nas que apresentavam pouco dinamismo, como nas do Velho Oeste, emcontraposio ao Novo Oeste: nelas, o imigrante deixou poucas oportunidades paros nacionais, que passaram a realizar tarefas mais rduas e de menor remuneracomo o desbravamento e preparo da terra, e, praticamente, extinguiu as possibiliddes de emprego para o ex-escravo (KOWARICK, 1994).

    Em funo da abolio e da imigrao europia para certas regies do pas,o ltimo quarto do sculo XIX vai consolidar um novo cenrio para o mercado

    de trabalho no Brasil, no qual as especificidades regionais vm aflorar de formasignificativa. Na cidade de So Paulo, o crescimento urbano esteve diretamenteligado ao processo de industrializao, que comeou nos ltimos anos do sculo XIX, e que empregar quase que unicamente mo-de-obra de origem europia,seja aquela sada das fazendas, seja a que chegava para trabalhar diretamente noespao urbano. De acordo com os dados disponveis, no comeo do sculo XX,92% dos trabalhadores industriais na cidade de So Paulo eram estrangeiros, so-bretudo de origem italiana (KOWARIC, op. cit., p. 92). No Rio de Janeiro, ento

    capital do pas e a cidade de maior importncia econmica, a participao de es- trangeiros na indstria representava quase a metade da mo-de-obra ali ocupada.

    12 Ver Costa, 1985, p. 228-265.

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    Contudo, diferentemente do que se passou em So Paulo, eram principalmenteos portugueses (destacando-se os aorianos) e os espanhis que compunham amaioria da mo-de-obra migrante no Rio (PRADO JNIOR, 1945). As duas ciddes (sobretudo So Paulo) sofrero importantes mudanas com industrializaonascente e a chegada em massa de um contingente de mo-de-obra de origemeuropia atrada pela prpria atividade industrial. Observa-se, com o desenvolv

    mento do comrcio e da indstria, o nascimento de um proletariado e tambmde uma classe mdia urbana (COSTA, 1983, p. 424-429; GORENDER, 1978, 451-465). Mas os trabalhadores negros no tiveram oportunidade de engrossar afileiras daqueles grupos.

    A situao diferente quando olhamos a caso das regies menos ricas. Noque se refere cidade de Recife, por exemplo, a imigrao teve um carterresidual.13 O que se observou aps a abolio foi o crescimento da populaourbana, em decorrncia da chegada de contingentes significativos de ex-escravo

    vindos do interior da prpria regio, sobretudo a Zona da Mata, circunvizinha capital. De fato, o novo sculo vai encontrar a Regio Nordeste em um perodode crise econmica sem precedentes. A economia nordestina mantinha-se estag-nada em funo da queda da produo e venda do acar e do algodo, seus principais produtos. De outro lado, h alguns anos, uma modernizao da produose realizava na regio, o que contribuiu para o aumento da mo-de-obra liberadque se dirigiu s cidades (EISEMBERG, 1977; FURTADO, 1985).

    Andrade analisou a trajetria da urbanizao de Recife no fim do sculo XIX

    mostrando que ento j havia uma situao tpica de subemprego de uma partesignificativa da mo-de-obra.14 A ausncia de oportunidades de trabalho para apopulao ativa liberada pela abolio foi uma das caractersticas mais importa tes do processo de urbanizao da cidade no incio do sculo XX.

    O crescimento da cidade intensificou-se aps a abolio da escravatura (1888), do grande parte da populao liberada abandonou as propriedades a procuranovas oportunidades de vida e de trabalho, e a facilidade de transportes intens

    13 Em 1900, no estado de Pernambuco, havia somente 11.000 imigrantes, que representavam 1%populao daquele estado (cf. KOWARIC, 1994, p. 106).

    14 Sobre o assunto, ver tambm Theodoro (1991).

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    a migrao para o Recife. Da o aumento considervel da construo de palafitasos chamados mocambos suspensas sobre os manguezais da cidade (ANDRAD1979, p. 93).

    De fato, a questo da urbanizao, ou seja, os problemas concernentes excessiva concentrao de populao em certas cidades mostram-se de ma-

    neira mais complexa a partir de 1930. Contudo, pode-se observar, j no finaldo sculo XIX, o incio de um processo de aglomerao da pobreza e da ex-cluso15 nas cidades, resultante da chegada em profuso de contingentes deex-escravos. Em resumo, nessa poca, j proliferavam, nas maiores cidades, asfavelas, verdadeiros guetos onde se encontravam os pobres. No que concerneaos primeiros anos de trabalho livre, pode-se constatar que, em 1900, a po-pulao total do Brasil era de 16,5 milhes de habitantes, dos quais 1,1 milhoeram imigrantes, os quais se concentravam nos setores de atividade mais din-

    micos da economia. Nos anos seguintes, at 1920, assiste-se intensificao daindustrializao e do crescimento urbano, sem maiores alteraes no perfilda mo-de-obra absorvida.

    Em 1920, enquanto no pas como um todo os estrangeiros (mais de um milhoe meio) representavam pouco mais de 5% da populao total, nos dois principacentros industriais, Rio e So Paulo, representavam respectivamente 20% e 35% As parcelas de migrantes estrangeiros na fora de trabalho dos estabeleciment

    industriais, nesse mesmo ano, ainda so impressionantes: 17% para o conjuntdo pas, e [...] 51% da fora de trabalho industrial na cidade de So Paulo (HOFMANN, 1980, p. 26.).16

    15 Utiliza-se aqui a expresso excluso sempre em relao ao mercado de trabalho e no seu sentidomais simples, qual seja, o que serviu para designar os esquecidos pelo crescimento econmico (DONZELOROMAN, 1991, p. 5). Assim, est-se considerando como excludos aqueles que no tm emprego regular, ou sejque no esto dentro do setor formal, e tambm, no que se refere ao perodo da escravido, queles que estavam fora do binmio senhor-escravo.

    16 Deve-se lembrar que, no caso de So Paulo, de acordo com os dados apresentados por Lowirie, ogrupo de mo-de-obra industrial que no era estrangeiro, em sua maioria, era composto por filhos de imigrante(In: KOWARICK, 1994, p. 93).

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    1.4 O NO-LUGAR DO TRABALHO NEGRO

    necessrio, entretanto, examinar mais detidamente alguns aspectos ligados opo realizada, nas regies mais dinmicas, de promoo de uma poltica de im grao de mo-de-obra de origem europia. Ou seja, deve-se perguntar por que,nessas reas, apesar da existncia de um significativo contingente de mo-de-ob

    constituda de homens livres e libertos, assim como de escravos, decidiu-se pela utlizao do trabalho de imigrantes. A resposta a essa questo parece algo complexEm princpio, haveria trs possibilidades de enfrentamento da questo do tra-

    balho com o fim da abolio, possibilidades essas no excludentes entre si. De umlado, havia a perspectiva de que os antigos escravos pudessem, eles mesmoscontinuar a trabalhar nas fazendas adotando um novostatus de homens livres, oque, aparentemente, no colocaria problemas tcnicos de grande monta. Comefeito, os escravos dominavam o processo de trabalho, assim como as evolue

    tcnicas mais importantes poca nas atividades que realizavam. Essa havia sia opo em algumas ilhas das Antilhas inglesas, onde a abolio teve um cartpuramente formal: o escravo passou a receber um salrio monetrio, fixado aonvel mnimo de subsistncia (FURTADO, 1970, p. 137-138). Uma segunda opo seria a da utilizao, total ou parcial, do contingente dos homens livres libertos no lugar dos antigos escravos. Esse grupo remontava, em 1872, quaseoito milhes de indivduos, ultrapassando em muito o nmero de escravos, que totalizava cerca de 1,5 milhes (cf. KOWARIC, 1994, p. 37). Finalmente, havi

    alternativa da imigrao, que, como visto, foi largamente adotada pelas regieeconomicamente mais dinmicas.No h, na literatura, uma resposta consensual questo. As interpretaes

    sobre a passagem do regime escravista para aquele baseado no trabalho livreno privilegiam os mesmos aspectos. Furtado, em seu trabalho clssico, A for-mao econmica do Brasil , destaca a racionalidade econmica dos empresriosdo caf para explicar o recurso imigrao. Essa teria sido uma escolha lgicem funo das caractersticas apresentadas pelos diferentes grupos de traba-

    lhadores. Os homens livres e libertos, alm de no adaptados ao trabalho regulaassalariado, estariam muito dispersos no setor de subsistncia, que se estendia doNorte ao extremo Sul do pas, tornando difcil e extremamente custoso seu re-crutamento. Ou seja, de acordo com esse autor, a perenidade desse contingente

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    de trabalhadores foi o resultado de uma configurao social e poltica especfica,que conformou especialmente a histria do serto brasileiro, onde o poder doscoronis (os grandes proprietrios de terra e chefes polticos) era a base. A fracaimportncia econmica do setor de subsistncia contrastava com a sua grandeimportncia poltica poca, sobretudo na regio nordestina: a manutenode uma significativa parcela da populao disponvel nos domnios dos grandes

    proprietrios de terra era, para estes, a garantia de poder poltico (FURTADO,1970, p. 146-147).No que diz respeito aos escravos, Furtado ressalta o despreparo para o assa-

    lariamento que os caracterizaria.

    O homem formado dentro desse sistema social [a escravido] est totalmente desaparelhado para responder aos estmulos econmicos. Quase no possuindo hbitode vida familiar, a idia de acumulao de riqueza praticamente estranha. Dema

    seu rudimentar desenvolvimento mental limita extremamente suas necessidadecabendo-lhe um papel puramente passivo nas transformaes econmicas do pa(FURTADO, op. cit., p. 140-141).

    Dessa forma, havia uma confluncia de fatores que tornava possvel e desej- vel a utilizao da mo-de-obra de origem europia nas terras brasileiras. Entreesses fatores, Furtado registra o caso da existncia de excedentes populacionaisna Europa, poca, especialmente na Itlia, assim como, de outra parte, o fato

    de o governo brasileiro ter decidido assumir, a partir de 1870, o financiamento do transporte dos imigrantes, reduzindo o custo dessa mo-de-obra.Outra interpretao, mais recente, destaca aspectos estruturais numa

    perspectiva histrica do desenvolvimento das foras produtivas. O processode abolio e de substituio do trabalho escravo pelo do imigrante perce-bido, desse ponto de vista, como inexorvel, pois a escravido representaria,no final do sculo XIX, um obstculo acumulao do capital. Esta, para seefetivar, necessitaria de um contingente de fora de trabalho adaptado a re-

    laes laborais mais modernas, sobretudo ao assalariamento. Isso justificariaa opo pela mo-de-obra imigrante, na medida em que esses trabalhadoresj estariam habituados ao regime assalariado. Naquele momento, de acordocom Cardoso de Mello, a continuidade do regime escravista representava um

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    entrave acumulao: [...] no preciso que o escravismo se desintegre,porque no oferea nenhuma rentabilidade s empresas existentes; para ser colocado em xeque, basta que obste a acumulao (CARDOSO DE MELLO1990, p. 83 v.).

    Partilhando o mesmo enfoque, Kowarick vai resumir esse ponto de vista daseguinte maneira:

    [...] aps 1880, processos tanto internos como internacionais fariam com que a tencialidade do regime de trabalho escravo se mostrasse demasiadamente estpara realizar uma acumulao que, cada vez mais, necessitava de um mercad trabalho volumoso e fluido (KOWARICK, 1994, p. 74).

    Mais do que uma deciso racional do empresrio capitalista, a passagem descravido ao trabalho livre parece ser parte de um processo mais amplo de

    reestruturao econmica e social, mas tambm de um aprofundamento da in-sero da economia brasileira no contexto mundial (cf. SINGER, 1975, p. 353Contudo, outros fatores importantes, j citados anteriormente, influram nesseprocesso: o nascimento e consolidao de uma viso eurocntrica e modernizan te, na qual, para o negro, no havia, ou havia pouco espao de existncia.

    De fato, durante os ltimos anos da escravido, ganhavam fora no pas aidias que privilegiavam a mo-de-obra de origem europia em detrimento do trabalhadores nacionais. De um lado, os nativos livres e libertos eram considera

    dos como inaptos ao trabalho regular. De outro lado, no que tange aos antigosescravos, as fugas organizadas nas fazendas eram cada vez mais freqentes, que contribuiu tanto para promover a idia de que a mo-de-obra negra eraindolente e inapta para a relao assalariada, bem como para reforar a ideologido embranquecimento.17 Nessa perspectiva, relevante, para a compreensodo perodo, analisar o papel das idias racistas, sua difuso e sua influncia

    17 importante destacar o papel dos abolicionistas que, sobretudo em So Paulo, lutaram ativampara a liberao dos escravos no perodo imediatamente anterior abolio. o caso de Luis Gama, emiadvogado de origem negra, lder de uma vigorosa campanha pela libertao dos escravos paulistas, assim cseu sucessor, Antnio Bento, cuja ao foi mais direta. Bento vai organizar oscaifazes, grupos de antigos escravosespecializados em organizao de fugas das fazendas. A abolio no foi feita em So Paulo pelos fazendeiros,porm por Antnio Bento e seuscaifazes, cabendo aos prprios escravos a tarefa de provocar o abalo decisivo noregime servil em apodrecimento (GORENDER, 1978, p. 571). Ver tambm Santos (1980).

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    implementao de uma poltica deliberada de incremento da populao branca.18 A porcentagem de negros e mulatos reduziu-se significativamente durante o s-culo XIX: na cidade de So Paulo, 63% do total da populao, em 1890, era debrancos, enquanto negros e mulatos no representavam mais que 28,6% (FER-NANDES, 1969, p. 9).

    A abolio da escravido colocou a populao negra em uma situao de

    igualdade poltica e civil em relao aos demais cidados. Contudo, como a lite-ratura tem constantemente reafirmado, as possibilidades de incluso socioeco-nmica dessa populao eram extremamente limitadas. Como ser visto a seguir,medidas anteriores ao fim da escravido haviam colocado a populao livre epobre em uma situao de completa excluso em termos de acesso terra. Por sua vez, o acesso instruo tambm no fora garantido por polticas pblicas,no sendo sequer acolhido como objetivo ou garantia de direitos na ConstituioRepublicana de 1891. No mercado de trabalho, a entrada massiva de imigrantes

    europeus deslocava a populao negra livre para colocaes subalternas.Esse processo foi marcado tanto por uma ausncia de polticas pblicas emfavor dos ex-escravos e populao negra livre, como pela implementao deiniciativas que contriburam para que o horizonte de integrao dos ex-escravosficasse restrito s posies subalternas da sociedade. Cabe lembrar que tal pro-cesso encontrava-se largamente amparado, como j indicado anteriormente,pela leitura predominante da questo racial no Brasil, segundo a qual, a questodo negro se referia no apenas sua substituio como mo-de-obra nos setores

    dinmicos da economia, mas sua prpria diluio como grupo racial no contex- to do nacional.

    a) A Lei de Terras de 1850

    Entre os fatores que impediram a emergncia de um sistema econmico capazde absorver a mo-de-obra livre est a promulgao da Lei no 601/1850, a cha-mada Lei de Terras. Operando uma regulao conservadora da estrutura fundiria

    no Brasil, a Lei de Terras foi promulgada no mesmo ano em que se determinou a

    18 Havia, nessa poca, na Europa, uma profuso de teorias etnocntricas que defendiam a idia da superioridade dos brancos, o que inspirou a poltica de imigrao realizada pelo governo. Ver Hasenbalg (1979).

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    proibio do trfico de escravos (Lei Euzbio de Queiroz), marco da transiopara o trabalho livre. nesse contexto que a nova medida legal comea a vigorarestringindo drasticamente as possibilidades de acesso terra na transio doregime escravista para o de trabalho livre.

    Ao definir a compra como nica forma de aquisio, a Lei de Terras ps fimao reconhecimento da posse, que havia sido realizado em 1822, pela resoluo

    de 17 de julho.19

    Como destaca Delgado (2005), o regime de posse teve vignciabreve e transitria, com a instituio da Lei de Terras significando a recomposo do setor de subsistncia sob a gide da grande propriedade. A nova legislareconheceu as posses estabelecidas aps 1822 somente se tivessem registros emcartrios ou parquias dos municpios. A partir da, ficou proibido o regime daocupaes, substitudo pelos mecanismos de herana ou compra e venda, nicoinstrumentos admitidos como legtimos no acesso terra, inclusive no caso da terras devolutas. Alm de alterar e regular a forma de aceder propriedade da

    terra (inclusive das terras pblicas) instituda nas duas dcadas anteriores, a Lei Terras procurou ainda definir os meios para operar a colonizao, principalmentpor incentivos imigrao de trabalhadores europeus pobres para trabalhar naslavouras brasileiras (SILVA, 2006).

    Assim, impedindo o acesso terra para os trabalhadores pobres, os ex-escra- vos e seus descendentes, a lei de 1850

    [...] liquida o sistema de posses fundirias que se estabelecera em 1822 e que po

    transformar o setor de subsistncia em regime de propriedade familiar; ademaisba com a possibilidade futura de transformao da mo-de-obra escrava libertnovo contingente de posseiros fundirios, o que inclui ainda a possibilidade de cde quilombos legais ou de estabelecimentos familiares legalizados (DELGADOp. 29; ROSA, 2008).

    Conforme indica Emlia Viotti da Costa, a Lei de Terras baseava-se na idia dque a nica maneira de garantir o trabalho livre nas fazendas era dificultar o aces

    terra, o que faria com que o trabalhador livre no tivesse outra alternativa seno

    19 A legislao de 1822 buscava incentivar o acesso propriedade da terra ao lavrador no-propriecombatendo o bloqueio exercido pelo latifndio (FAORO, 1977, p. 407-408).

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    permanecer nas fazendas.20Para os ex-escravos, dedicados em sua grande maioria satividades rurais, a passagem ao trabalho livre no significou sequer a sua incluso emum regime assalariado. Quando permaneciam nas fazendas, sua passagem condiode dependente ampliou a massa de trabalhadores livres submetidos grande proprie-dade e afastados do processo de participao nos setores dinmicos da economia.

    b) A poltica de imigrao A concentrao da populao no-branca em regies pouco dinmicas tam-

    bm contribuiu para o quadro atual das desigualdades raciais. Como produto deuma histria de mais de trs sculos de escravido, poca da abolio a grandemaioria da populao afro-brasileira permanecia fora da regio onde uma socieda-de urbana e industrial estava em formao. As polticas pblicas voltadas promo-o da imigrao vieram a acentuar esse quadro de desigualdades regionais.

    No custoso reforar que a promoo da imigrao era claramente assenta-da na ideologia do branqueamento. Em 1884, a Lei no 28, aprovada pelo legislativopaulista, garantindo recursos para que o governo estadual financiasse a imigrao,afirmava que os beneficirios seriam trabalhadores europeus e suas famlias (AZE- VEDO, 1987, p. 167). Ainda em 1890, o governo republicano recm-institudo pu-blica o Decreto no 528, de 20 de junho, onde se institui a livre entrada de migrantesnos portos brasileiros, excetuados os indgenas da sia ou da frica, que somentemediante autorizao do Congresso Nacional podero ser admitidos, de acordo

    com as condies estipuladas. Esse mesmo decreto garante incentivos a todos osfazendeiros que quisessem instalar imigrantes europeus em terras.21O perodo mais intenso do processo de imigrao foi o que ocorreu nos

    anos que se seguiram abolio, 1888 a 1900, quando se observa a entradade 1,5 milho de imigrantes, em sua maior parte italianos, que se dirigiramao estado de So Paulo e, os demais, ao ento Distrito Federal. O governosubvencionou quase 60% do total dos imigrantes que chegaram entre 1888 e1915, sendo que, no perodo entre 1891 e 1900, essa taxa teria sido de 80%.22

    20 Costa, 1999, p. 176-177. Sobre o debate em torno do projeto de lei, ver pginas seguintes.

    21 Citado por Skidmore (1976, p. 155). Esse programa de imigrao subsidiada durou at 1928.

    22 Ver a respeito em Theodoro (2005).

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    O deslocamento pelos imigrantes afetou no apenas os quase 300.000 escravosliberados entre 1887 e maio de 1888, mas tambm o grupo de mulatos e negroslivres que na poca se aproximava de 1.500.000 no Sudeste (HASENBALG1979, p. 155).

    Como resultado do fluxo oficialmente promovido de imigrantes europeus,at a dcada de 1920, fechou-se um espao scio-econmico que de outra ma-

    neira teria estado disponvel para os no-brancos e o resto da fora de trabalhonacional concentrada fora e dentro do Sudeste (ibid., p. 161).

    c) O acesso a novas oportunidades no mercado de trabalho

    O perodo que se seguiu abolio foi caracterizado pela acelerao do desen volvimento econmico e pela abertura de novas oportunidades de ascenso social

    O incipiente processo de urbanizao e as tentativas de desenvolver a indstrconstruo de ferrovias, a organizao de instituies de crdito, e incrementcomrcio criavam novas perspectivas. Ao mesmo tempo, a expanso cafeeiradeslocamento da fronteira econmica para Oeste favoreciam a mobilidade s(COSTA, 1999, p. 341).

    Essas oportunidades, contudo, no foram aproveitadas pelos ex-escravos oumesmo pela populao negra livre. A crescente imigrao europia, realizad

    com o aporte de importantes fundos pblicos, alterou o perfil da mo-de-obra tanto rural como urbana. Para explicar o processo de marginalizao da mode-obra negra na nova dinmica econmica, um dos fatores mais apontados temsido o de sua falta de qualificao. Hasenbalg (1979), entretanto, sustenta quos imigrantes, salvo excees, tampouco dispunham de qualificao profissionespecializada. Paralelamente, como j enfatizado, os estudos sobre ocupaede escravos e homens livres de cor no sculo XIX apontam para a ocupao deprofisses especializadas de diferentes naturezas.

    Efetivamente, os preconceitos vigentes difundiam a crena da menor capacidade do trabalhador negro face ao branco, ampliando expectativa favorveque cercava a entrada de trabalhadores europeus. Este era apontado como o trabalhador por excelncia: disciplinado, responsvel, enrgico, inteligent

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    enfim, racional (AZEVEDO, 1987, p. 154). Paralelamente, as prprias dificul-dades de insero no mercado de trabalho do ex-escravo foram interpretadascomo prova de sua incapacidade e de sua inferioridade racial (COSTA, 1999,p. 341).

    A participao dos negros no mercado de trabalho tambm havia sido ob-jeto de legislao que visava regular e restringir o trabalho de africanos cativos

    nos centros urbanos, com impacto na configurao das desigualdades nas re-laes de trabalho no perodo ps-abolio, em especial no que diz respeito substituio da mo-de-obra negra pela do imigrante. Em 1884, foi aprovada,no estado de So Paulo, lei que institua taxas sobre a posse de negros na condi-o de escravos ao ganho ou de aluguel em atividades nas reas urbanas. Tam-bm visando encarecer o custo do trabalho escravo, a mesma lei determina aelevao dos impostos fixados trs anos antes para a importao de escravosde outras provncias.23 No mesmo ano de 1884, as Leis provinciais nos 25 e 26

    direcionavam os impostos sobre importao de escravos para custear os gastoscom imigrao. interessante acompanhar a anlise de Azevedo (1987) sobre os debates par-

    lamentares na Assemblia Legislativa paulista entre as dcadas de 1870 e 1880. As propostas de aproveitamento dos trabalhadores nacionais eram debatidas nosanos 1870 como uma alternativa factvel no processo de substituio do trabalhoescravo. Partindo do reconhecimento da existncia de ampla disponibilidade debraos livres, vrios projetos de lei foram apresentados, incluindo a adoo de

    estmulos e vantagens, assim como aspectos disciplinares para a mo-de-obranegra, considerada indolente. As propostas imigrantistas diferiam dessas peloseu carter abertamente racista.24

    Observa-se, assim, que a transio do trabalho escravo para o trabalho livre foifeita via interveno direta e decisiva do Estado e sob inspirao da ideologia racistaque ento se consolidava. Usando dados de 1890, Hasenbalg mostra como os imi- grantes recm-chegados passaram por um rpido processo de mobilidade econmica

    23 Martinho Prado, um dos mais importantes representantes dos proprietrios paulistas, justificava a necsidade de encarecer o trabalho escravo, pois esse era mais remunerador que o trabalho livre. Tais impostos napenas estimulariam a imigrao pelo encarecimento do escravo, como a subsidiariam (AZEVEDO, 1987, p. 1

    24 Azevedo reconhece que os defensores do aproveitamento do trabalhador nacional no negavam suainferioridade, mas a interpretavam em termos culturais (ibid., p. 135-136).

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    ascendente, concentrando-se nos setores mais dinmicos da economia. Conclui quas desigualdades observadas no processo de incluso e mobilidade econmica deveser explicadas no apenas como fruto de diferentes pontos de partida, mas tambmcomo reflexo de oportunidades desiguais de ascenso social aps a abolio.

    1.5 CONCLUSO

    Como mostrado nas pginas anteriores, a situao vigente em meados dosculo XIX era tal que, bem ou mal, o negro detinha um lugar central no sistemeconmico. Como escravo, sustentava a economia primrio-exportadora (so-bretudo o caf, mas tambm a cana-de-acar, o ouro e o algodo) e, nas cida-des, respondia pela maior parte dos servios (eram artesos, reparadores, almde executarem servios pessoais). Havia ainda os chamados negros de ganho

    escravos que ofereciam seus servios nas ruas, cujo trabalho representava umarenda adicional para muitas famlias da classe mdia urbana (servios diversoincluindo-se a tambm a prostituio e a mendicncia).

    Na segunda metade daquele sculo, dois constrangimentos histricos vm al terar essa situao: a Lei de Terras e a abolio, sem qualquer mecanismo de pro teo ao recm-liberto. Aliado a esses eventos, a poltica de imigrao, baseadna idia do branqueamento da nao, recrudesce o quadro social. O negro perdeo lugar no mercado de trabalho. Essa perda significou a perpetuao de uma si

    tuao de pobreza e misria. Sem lugar nos setores econmicos mais dinmicoso negro vai buscar espaos nos meandros e interstcios possveis: os pequenosservios, o trabalho precrio etc.

    Efetivamente, no havia no discurso republicano nenhuma proposta (ou pro-jeto) de integrao voltada aos ex-escravos ou aos seus descendentes. Como jafirmou Bosi, para o negro brasileiro, o liberalismo republicano nada tinha a ofrecer (BOSI, 1992, p. 244). Essa, contudo, no era uma questo menor pocaNunca demais lembrar que, no final do sculo XIX, dois teros da populao

    era formado por descendentes de africanos. Nesse momento, a questo racialapresentava-se como uma temtica central no debate sobre o desenvolvimentonacional. Entendendo o embranquecimento como condio necessria ao avano do pas, o pensamento social da poca apontava a centralidade do tema da

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    raa. A imigrao era entendida como etapa imprescindvel do processo de afir-mao da nao e dos nacionais. Essa compreenso do problema racial permitiuno apenas abrir as portas para o imigrante europeu, mas tambm determinou aforma como este foi recebido no pas.

    Nesse contexto, no se decretava oficialmente o exlio do ex-cativo, masesse passaria a viv-lo como um estigma na cor da sua pele (BOSI, 1992, p. 272).

    De fato, para parcela majoritria da elite poltica nacional, a questo do negro sereferia no apenas a sua substituio como mo-de-obra, mas, principalmente, necessidade de uma estratgia que promovesse sua diluio no contexto popu-lacional nacional. Abolida a escravido, no restou no debate poltico nacional o tema da incluso dos ex-escravos e seus descendentes no tecido social ou pol- tico da nao. Perdida sua centralidade no debate sobre o processo de trabalhonas propriedades rurais, a presena negra se esvaa como objeto de intervenespblicas que tivessem como intuito a sua incluso. Ao contrrio, compreendida

    como um entrave ao desenvolvimento nacional, a presena da populao negrano pas era percebida como um obstculo que deveria ser superado. E a sua gra-dual extino seria ento realizada pela via do embranquecimento.

    Aguardando sua redeno pelo processo de mestiagem, restava populaonegra manter-se nos extratos subalternos da sociedade. Nesse contexto, poucasopes restaram s vtimas da escravido recm abolida: ou a velha condio deagregado; ou a queda no lmpen que j crescia como sombra do proletariado bran-co de origem europia; ou as franjas da economia de subsistncia (ibid., p. 266).

    O mercado de trabalho livre no Brasil foi, assim, moldado por uma polticade imigrao, cuja perspectiva era mais do que uma simples estratgia de subs- tituio de mo-de-obra. A imigrao, favorecida por taxaes e subvenes,em detrimento da mo-de-obra nacional, era parte de um projeto de nao que tinha no embranquecimento uma de suas mais importantes estratgias. O merca-do de trabalho nacional nasceu, assim, dentro de um ambiente de excluso paracom uma parte significativa da fora de trabalho. Criando dessa forma o trabalholivre, criaram-se tambm no pas condies para que se consolidasse a existncia

    de um excedente estrutural de trabalhadores, aqueles que sero o germe do quese chama hoje setor informal. Assim, se, de um lado, a ideologia do Brasil moderno, do progresso e do

    crescimento, no comportava a viso do pobre, sobretudo do pobre e negro, a

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    grande maioria, de outro lado, a despeito desse mesmo discurso modernizante,a sociedade brasileira sempre tem convivido com a pobreza e com a desigualdade, fazendo destas uma espcie de ponto de apoio de sua reproduo. O Brasil,desigual em sua essncia, precisa dos pobres e da pobreza. O dia-a-dia de nosssociedade no prescinde dos servios pessoais a baixo custo. Essa sinergia per versa vige at nossos dias.

    No pas que convive e vive da desigualdade, o negro, ao perder o lugar cen- tral no mundo do trabalho, no deixou de exercer um papel social como o ncleomaior dos pobres, prestadores de servios aos quais as classes mdias recorremostensiva e sistematicamente.

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    CAPTULO 1 A FORMAO DO MERCADO DE TRABALHO E A QUESTO RACIAL NO BRAS43

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    RACISMO E REPBLICA:O DEBATE SOBRE O BRANQUEAMENTOE A DISCRIMINAO RACIAL NO BRASIL

    LUCIANA JACCOUD C A P

    T U L O

    INTRODUO

    Oracismo nasce no Brasil associado escravido, mas principalmente apsa abolio que ele se estrutura como discurso, com base nas teses de in-ferioridade biolgica dos negros, e se difunde no pas como matriz paraa interpretao do desenvolvimento nacional. As teorias racistas, ento largamente

    difundidas na sociedade brasileira, e o projeto de branqueamento vigoraram at osanos 30 do sculo XX, quando foram substitudos pela chamada ideologia da de-mocracia racial. Nesse novo contexto, entretanto, a valorizao da miscigenao edo mulato continuaram propiciando a disseminao de um ideal de branqueamentocomo projeto pessoal e social. Sua crtica s ganhou repercusso nas ltimas dcadasdo sculo XX, quando a denncia da discriminao como prtica social sistemti-ca, denunciada pelo Movimento Negro, somou-se s anlises sobre as desigualdadesraciais entendidas no como simples produto de histricos acmulos no campo da

    pobreza e da educao, mas como reflexos dos mecanismos discriminatrios.Este captulo tentar recuperar os principais argumentos que permearam essedebate, destacando o papel da ideologia do branqueamento e, posteriormente, dademocracia racial, como elementos formadores de um projeto nacional. Em um

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    sculo marcado pelo esforo de modernizao do pas, as vises hierrquicas dosocial e a amplitude das divises presentes na sociedade sustentaram um processo de construo social e poltica bastante distante dos princpios que organizama cidadania no projeto de instituio de um Estado republicano e democrticoEm um contexto de grande fora do pensamento autoritrio que ganhou ex-presso mxima na obra de Francisco Campos, de Oliveira Vianna e da gera

    de intelectuais autoritrios dos anos 20, e esteve influente em praticamente todoo sculo XX , o diagnstico de um pas marcado pela desorganizao social reforou a busca de uma concepo de nao que afirmasse a unidade do povo e suidentificao em torno de um conjunto integrado e harmonioso, no qual a questoracial era sistematicamente negada. A desconstruo dessa leitura tem sido realzada de forma integrada a um progressivo reconhecimento da complexidade dosmecanismos de produo e reproduo da desigualdade racial, entre eles a ativaoperao dos mecanismos de discriminao racial. Procurar-se- ressaltar, ainda

    que o debate nacional sobre o tema, nos ltimos vinte anos, enfrentou tambmo desafio de refletir sobre a questo da pobreza, que parece naturalizada no pasinclusive em decorrncia de seu componente racial. Por fim, pretende-se destacaque o enfrentamento do problema no pas implica na necessidade de integrar aquesto racial ao projeto democrtico, onde os valores de igualdade na promoode oportunidades sejam sistematicamente reafirmados e reconhecidos.

    2.1 A EMERGNCIA DAS INTERPRETAES RACISTAS DO DESENVOLVIMENNACIONAL

    O racismo amplamente reconhecido como princpio ativo do processo decolonizao. Como lembra Boaventura de Souza Santos (