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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES CÂMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS MESTRADO EM LETRAS ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA LITERATURA, VIDA SOCIAL E MEMÓRIA EM CRÔNICAS DE CAIO FERNANDO ABREU Mestranda: Larissa Bortoluzzi Rigo Orientadora: Profa. Dra. Luana Teixeira Porto Frederico Westphalen, julho de 2013.

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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES

CÂMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

MESTRADO EM LETRAS

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA

LITERATURA, VIDA SOCIAL E MEMÓRIA EM CRÔNICAS DE CAIO

FERNANDO ABREU

Mestranda: Larissa Bortoluzzi Rigo

Orientadora: Profa. Dra. Luana Teixeira Porto

Frederico Westphalen, julho de 2013.

Page 2: LITERATURA, VIDA SOCIAL E MEMÓRIA EM CRÔNICAS DE CAIO ... · 2. A NARRATIVA DE CAIO FERNANDO ABREU 47 2.1. A narrativa de Caio Fernando Abreu: do romance à crônica 47 2.2. A crônica

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Larissa Bortoluzzi Rigo

LITERATURA, VIDA SOCIAL E MEMÓRIA EM CRÔNICAS DE CAIO

FERNANDO ABREU

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa

de Pós-graduação em Letras – Mestrado em Letras,

área de concentração em Literatura Comparada,

sob a orientação da Profa. Dra. Luana Teixeira

Porto, como requisito parcial para a obtenção do

título de Mestre em Letras.

Frederico Westphalen, julho de 2013.

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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES

CÂMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

MESTRADO EM LETRAS

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA

A Comissão Examinadora, abaixo assinada,

aprova a Dissertação de Mestrado

LITERATURA, VIDA SOCIAL E MEMÓRIA EM CRÔNICAS DE CAIO

FERNANDO ABREU

elaborada por

Larissa Bortoluzzi Rigo

como requisito parcial para a obtenção do grau de

Mestre em Letras

COMISSÃO EXAMINADORA

Profa. Dra. Luana Teixeira Porto

Orientadora/Presidente

Profa. Dra. Rosani Úrsula Ketzer Umbach

1ª arguidora

Profa. Dra. Ana Paula Teixeira Porto

2ª arguidora

Prof. Dr. Lizandro Carlos Calegari

Membro Suplente

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Dedico este trabalho ao meu esposo, William, aos

meus pais, Celso e Odite, e ao meu irmão João e à

cunhada Cristiane, por todo amor que tenho a eles e

pelos exemplos de honestidade, humildade e

dignidade. Espero que se orgulhem de mim...

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AGRADECIMENTOS

O processo que envolve a execução da pesquisa não é um trabalho que exige

apenas reflexão, comprometimento e muita dedicação. Pesquisar está em

consonância com o processo de humanização, e nesse sentido, muitas pessoas

estiveram ao meu lado, auxiliando-me para conseguir com esse ato, ser uma pessoa

melhor.

Estou profundamente agradecida a minha orientadora, Luana Teixeira Porto,

por ter me recebido com toda sua generosidade, educação e de forma tão

respeitosa. Agradeço ainda pela competência profissional e humana com que

conduziu a orientação desta pesquisa, por suas leituras sempre atentas e pelo

cuidado constante com minha formação. Reitero que foi sob seus ensinamentos que

a pesquisa contribuiu para meu crescimento.

Agradeço ainda a todos os professores do Programa desta Instituição pelo

estímulo, sugestões de leituras, pelas aulas “iluminadoras” que me possibilitaram

uma formação consistente para o desenvolvimento da pesquisa. Nesse sentido, um

agradecimento especial à professora Ana Paula Porto pelo estímulo ao estudo e

pelas aprendizagens construídas as quais contribuíram para entender a literatura e

outras artes.

Agradeço também aos colegas Jaci Seidel, Girvani Seitel, Denise Meneses e

em especial a Letícia Sangaletti e Larissa Paula Tirloni pela contribuição no

processo de formação.

Aos funcionários da Instituição que nos auxiliaram sempre que necessário.

Além dos colegas do meio acadêmico, é preciso ressaltar o apoio e ajuda

incondicional de meus familiares. Muito obrigada ao meu esposo William por toda

sua ajuda, estímulo, leituras críticas e atentas, por compreender meus momentos

ruins e bons e, acima de tudo, por me incentivar cotidianamente a seguir em busca

desse sonho. Esse percurso só foi possível graças a sua colaboração. Meus pais,

Celso e Odite e ao meu irmão João, por todo amor, apoio irrestrito e incondicional,

você são o meu porto-seguro e a melhor definição de família que possuo. Agradeço

ainda aos meus cunhados Cristiane, Alessandra e Musa, aos meus estimados

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sobrinhos Hamza e Ryad e ainda aos meus afilhados, pelas constantes palavras de

apoio e pelo amor.

Agradeço à minha sócia, Raquel, pela compreensão nos momentos de

ausência e pelo incentivo.

Ao grupo intitulado “Amigos de Fé” e “amigos”, meus agradecimentos e

reconhecimento por estarem ao meu lado nos momentos mais difíceis, muito

obrigada pelos conselhos e pela constante ressalva que conseguiria chegar ao meu

propósito final.

A todos esses e outros que de uma forma ou outra colaboraram, muito

obrigada.

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RESUMO

Este trabalho examina crônicas do escritor Caio Fernando Abreu, publicadas no

jornal Folha de São Paulo nas décadas de 1980 e 1990 e reunidas no livro A Vida

Gritando aos Cantos, de 2012. A proposta do estudo consiste em identificar os

elementos formais e temáticos recorrentes na sua narrativa para examiná-las,

relacionando-as aos diálogos que tecem com a sociedade e com o leitor e

procurando investigar em que medida as suas narrativas constroem uma memória

de seu tempo e em que medida as crônicas do autor dialogam com o contexto de

produção em que está inserido. A atividade de leitura e interpretação da crônica de

Caio neste trabalho recebe, como procedimento metodológico, a articulação da

forma e do conteúdo das narrativas na perspectiva crítica da sociologia da literatura.

No desenvolvimento desta investigação, o estudo considera, em um primeiro

momento as características da crônica, de acordo com o aparato metodológico de

autores que refletem o gênero enquanto sua conceituação e modo de concepção em

diferentes períodos históricos. No segundo, os traços singulares da narrativa de Caio

e aspectos evidentes em suas crônicas, tais como a linguagem coloquial, humor e

ironia, subjetividade e trabalho de citação e, por fim, a busca pelo diálogo pelo leitor

são ressaltados e evidenciados, mostrando que os textos de Caio não se

enquadram nos moldes propostos pela teoria da crônica. Na terceira parte, relações

entre literatura, sociedade e memória contemplam as reflexões propostas acerca

das crônicas do escritor, explanando a relação constante e pertinente do texto do

escritor com os aspectos sociológicos, o que sinaliza a presença das memórias

individual, social e cultural nessas narrativas do autor. Ao examinar crônicas de

Caio, observa-se que suas narrativas permitem questionar a teoria da crônica e que

seus textos apresentam diferentes recursos estéticos que põem em destaque a

busca por um diálogo com o leitor e também com o contexto histórico do qual faz

parte, construindo assim uma memória de seu tempo.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura, crônica, Caio Fernando Abreu, sociedade, memória.

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ABSTRACT

This paper analyzes Caio Fernando Abreu’s chronicles, published in Folha de São

Paulo, in 1980’s and 1990’s and combined in the book Life Crying on Corners, from

2012. The suggestion of the study is to identify the formal and thematic elements

present in his narrative, in order to analyze them, connecting them to the dialogues

that they weave with the society and with the reader and investigating how his

narratives build a memory of his time and how the writer’s chronicles talk to the

production context in which he is inserted. The reading of Caio’s chronicle, in this

work, receive, as a methodological procedure, the articulation of form and content of

the narratives in the critical perspective of sociology of literature. In the development

of this investigation, the study considers, at a first moment, the characteristics of

chronicle, according to the methodological apparatus of authors who think about the

genre in relation to its concept and way of conception in different historical periods.

At the second moment, the singular traits about Caio’s narrative and evident aspects

in his chronicles, such as the colloquial language, humor and irony, subjectivity and

citation work, and, finally, the search for the dialogue with the reader, are discussed,

showing that Caio’s texts don’t fit as proposed by the theory of chronicle. In the third

part, relations among literature, society and memory contemplate the reflections

about the writer’s chronicles, explaining the constant and relevant relation of Caio’s

text with the sociological aspects, what identifies the presence of individual, social

and cultural memories in the author’s narratives. When we analyze Caio’s chronicles,

we observed that his narratives permit to question the theory of chronicle and his

texts show different aesthetic resources that valorize the search for a dialogue with

the reader and with the historical context, building a memory of his time.

Keywords: Literature, chronicle, Caio Fernando Abreu, society, memory.

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SUMÁRIO

DE UMA TRAJETÓRIA DE LEITURA A UMA TRAJETÓRIA DE PESQUISA 09

1. A CRÔNICA E SUA TRAJETÓRIA NO BRASIL 15

1.1. A origem da crônica: dos primeiros caminhos até a atualidade 15

1.2. O hibridismo do gênero crônica: entre literatura e jornalismo 23

1.3. A crônica e seus autores: um pequeno esboço da crônica brasileira 34

2. A NARRATIVA DE CAIO FERNANDO ABREU 47

2.1. A narrativa de Caio Fernando Abreu: do romance à crônica 47

2.2. A crônica de Caio Fernando Abreu 59

2.2.2 A linguagem coloquial de suas crônicas 69

2.2.3. O humor e a ironia nas crônicas de Caio 74

2.2.4. A subjetividade e o trabalho de citação nas crônicas 82

2.2.5. A busca pelo diálogo com leitor 91

3. LITERATURA, SOCIEDADE E MEMÓRIA EM CRÔNICA DE CAIO

FERNANDO ABREU

97

3.1. Diálogos entre literatura e sociedade 97

3.2. A representação da sociedade na crônica de Caio Fernando Abreu 104

3.3. Relações entre literatura e memória 113

3.4. A construção da memória na crônica de Caio Fernando Abreu 118

CRÔNICAS DE CAIO: RELATOS DE UM NARRADOR-REPÓRTER 127

REFERÊNCIAS 132

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DE UMA TRAJETÓRIA DE LEITURA A UMA TRAJETÓRIA DE PESQUISA

Caio Fernando Abreu foi-me apresentado no curso de Mestrado em Letras.

Até então, desconhecia a existência e a literatura desse escritor. À primeira vista,

seus textos pareceram-me apenas mais uma literatura disponível para leitura. Mas

depois, quando contos do escritor passaram a ser objeto de reflexão em uma

disciplina que propunha uma leitura das vozes de minorias na literatura brasileira,

suas narrativas receberam outra conotação, e pude começar a construir uma nova

percepção e julgamento de valor sobre seus textos. Caio Fernando Abreu não era

mais um escritor mediano, como outros, que não despertavam tanto a minha

atenção. Passava a ser um autor que me possibilitava ver o quanto a literatura pode

nos humanizar. O susto e as náuseas iniciais de suas leituras cederam, então, lugar

a uma vontade cada vez maior de conhecer as narrativas desse escritor.

Logo, habituei-me a ler Caio Fernando Abreu, queria estar em contato com

seus textos, e os recursos estéticos utilizados pelo autor me inseriam em suas

narrativas, levando-me a ingressar no cenário de suas histórias. Além disso, queria

acompanhar as reflexões propostas por esse escritor, até então distante. Em tal

contexto, quanto mais lia, mais me aproximava de seu mundo, e, assim, Caio

Fernando Abreu passou a ser somente e simplesmente Caio. A conotação de seus

textos fez com que o escritor se tornasse para mim um “velho conhecido”, e suas

narrativas passaram a fazer mais sentido. Além disso, os contos e romances do

escritor despertaram em mim a percepção sobre o lado mais humano da literatura.

No entanto, foram as crônicas de Caio que escolhi para serem minhas

companheiras nesta jornada de pesquisa.

Percebi nas crônicas de Caio uma oportunidade para unir as minhas duas

paixões: o jornalismo e a literatura. Estudar a confluência desses dois campos em

um trabalho de mestrado tornou-se uma atividade prazerosa, pois o jornalismo,

como opção primeira de formação, e a literatura, como uma inserção ao mundo das

letras e também ao próprio contexto do jornalismo, puderam ser aproximados neste

estudo. A presença de Caio e da literatura tornou-se, então, constante em meu

cotidiano. Procuro me inspirar no escritor gaúcho quando este faz referências a

elementos culturais e a alusão a subsídios externos ao texto, que enriquecem o

aparato teórico dos leitores e denotam ainda mais confiabilidade à produção, a

busca constante por conferir ao texto um sentido de diálogo e, é claro, a reflexão.

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Além de todos esses elementos supracitados, a escolha pela crônica de Caio

incorreu pela maior aproximação com a realidade. Nos contos e romances,

identificava certo distanciamento, mesmo sabendo que as descrições das narrativas

estavam imbuídas de alusão a situações sociais, os personagens tinham nomes

fictícios, e por isso a realidade acabava, no meu ponto de vista, sendo alterada. Por

outro lado, os contos me auxiliaram para compreender a sociedade e aflorar ainda

mais o aspecto de jornalista no sentido de buscar compreender melhor a sociedade

e os fatos que tornam a vida social concreta.

Nesse processo de reflexão incitada pelas narrativas de Caio, poderia citar

muitos contos e frases que surtiram significações, questionamentos e perturbações

em minha experiência como jornalista e também estudiosa da literatura, mas dois

deles foram fundamentais: “Terça-Feira Gorda” ampliou as minhas reflexões quanto

à homossexualidade. Com esse texto, entendi como ocorre a relação entre dois

homens, que “por acaso” são do mesmo sexo. A expressão grifada “por acaso”

resume todo o texto, pois o narrador demonstra que o que é válido em uma relação

são os sentimentos de afeto entre dois companheiros, independentemente do sexo.

Sob essa ótica, o conto “Aqueles Dois” também exemplifica o entendimento acerca

das relações entre duas pessoas do mesmo sexo, sobretudo com a expressão

“encontro de almas”, o que denota a representação e a perspectiva crítico-social do

autor acerca do preconceito homossexual. Ao ter contato com esses dois textos,

ficava me perguntando sobre as práticas de preconceito e violência sexual, sobre

experiências de afeto e analisando a sociedade como um todo: o que há de mais

gratificante para o amor que um encontro de almas? Em tal perspectiva, procurava

disseminar esses textos para que outras pessoas pudessem ter contato com essa

literatura e modificar as suas realidades no sentido de melhorar as relações

interpessoais e de respeito ao ser humano.

Assim, observando as reflexões que as narrativas de Caio suscitam, percebo

que o que mais me aproximou desse escritor foi a sua contribuição social: o seu

legado foi humanizar os leitores, fazer com que, ao ler seu texto, as pessoas

pudessem se sentir mais vivas e com maior vontade de respeitar o próximo. E com

as crônicas, essa inserção do social com o literário só aumentou. Ao ter contato com

o livro A Vida Gritando nos Cantos, quando li a segunda crônica da coletânea,

observei que era exatamente o que queria, ou seja, com essas narrativas foi

possível reunir todos os elementos que tornam viável o cotejo do jornalismo com as

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letras: diálogo com leitor, alusão a elementos externos ao texto, contato com

subsídios culturais e tudo isso falando do cotidiano, tornando-se, desse modo, o

contexto perfeito a uma jornalista em formação1.

O entusiasmo pelo escritor só aumentou a minha paixão pela pesquisa. É

muito gratificante estar inserida em contextos acadêmicos que possibilitam refletir

acerca do meio em que vivemos, pois acredito que, através das reflexões e com

leituras como as de Caio, podemos nos tornar mais humanos e aptos para mudar a

realidade. Então, após esse relato pessoal de como o escritor chegou até mim,

passo a utilizar uma redação mais acadêmica e objetiva para que os meus

julgamentos pessoais não modifiquem o teor e a importância da pesquisa. Assim

como comecei construindo um histórico de como fui apresentada ao escritor, passo

a apresentá-lo.

Caio escreveu prosa e poesia e, nas narrativas, construiu textos ora com uma

linguagem simples, ora com linguagem mais complexa. Seus textos ainda são

marcados pela referência constante a elementos culturais, tais como os da cultura

de massa e os da cultura também mais erudita, o que demonstra sua inteligência e

sensibilidade frente ao contexto do qual fez parte, mostrando que Caio era um leitor

do mundo, um leitor da vida. Além disso, uma de suas principais peculiaridades é a

capacidade de reflexão sobre os mais variados temas, e suas crônicas, mesmo

sendo escritas na década de 1990, com temáticas específicas, parecem atemporais,

cujos significados se aplicam ao contexto atual.

Considerando isso, este trabalho aborda a crônica do escritor, procurando

identificar os elementos formais e temáticos recorrentes na sua narrativa para

examiná-las, relacionando-as aos diálogos que tecem com a sociedade e com o

leitor e procurando investigar em que medida as suas narrativas constroem uma

memória de seu tempo e em que medida as crônicas do autor dialogam com o

contexto de produção em que está inserido. Para abordar esse tema, o trabalho

examina crônicas de Caio publicadas no jornal Folha de São Paulo nas décadas de

1980 e 1990 e reunidas no livro A Vida Gritando nos Cantos, de 2012.

A escolha das crônicas como objeto central deste estudo justifica-se tanto por

ser um gênero que aborda aspectos da realidade, contribuindo assim para a

1 Jornalista em formação, pois essa a atuação como jornalista requer constante aperfeiçoamento e construção de saberes. Os fatos do dia a dia fazem com que somente a experiência traga a carga necessária para conduzir a mídia.

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compreensão da narrativa de Caio, quanto para relacionar em que medida as

narrativas do escritor dialogam com a cultura de massa estabelecida pela sociedade

e com o contexto jornalístico, já que a crônica é um gênero que se encontra no limiar

entre literatura e jornalismo.

De acordo com as considerações expostas, o estudo, nos moldes propostos,

deve considerar: a) as características da crônica como gênero literário; b) os traços

singulares da narrativa de Caio; c) as relações entre literatura e sociedade e sua

expressão na crônica do autor Caio; d) o diálogo com o leitor através da crônica do

autor e sua relação com o jornalismo literário; e) a construção de uma memória

coletiva do período dos anos 1980 a 1990 através da produção e publicação das

crônicas do escritor gaúcho. Para abordar esses tópicos, a análise das crônicas será

realizada com a observação de aspectos estético-formais, mas também de aspectos

contextuais da época em que o autor estava inserido, na medida em que estes

forem adequados à reflexão sobre as relações entre literatura e sociedade.

Este estudo busca pôr em diálogo literatura e sociedade e investigar de que

forma a crônica de Caio constrói uma memória coletiva de seu tempo. Assim,

podemos inferir que este trabalho está relacionado diretamente à linha de pesquisa

Ficção, História e Memória, tendo em vista que ela investiga as relações entre

literatura, história e memória, em suas interfaces com outras disciplinas. Além disso,

o discurso literário é visto, de acordo com essa linha de pesquisa, como construção

sociocultural que privilegia a mímese, isto é, a representação da sociedade, o que

inclui, ainda, as minorias sociais tanto no papel de personagens quanto de

produtores do discurso.

Por esse prisma é que a execução desta pesquisa justifica-se como uma

contribuição para estudos que visam à maior aproximação da literatura com a

sociedade. É possível ainda inferir que, apesar de os estudos que privilegiam

aspectos da literatura com a sociedade serem objetos de inúmeras reflexões, a

incidência de uma pesquisa voltada a um gênero como a crônica é ainda pouco

estudada, embora Caio tenha sido um cronista de sucesso. Especificamente sobre

Caio, há pouquíssimos estudos que se voltam para sua produção textual de

crônicas. O que é mais difundido no meio acadêmico são estudos sobre os contos

do escritor. Com base nisso, entende-se que o tema deste trabalho é pertinente para

contribuir com estudos que abrangem o gênero da crônica, de modo a destacar as

relações entre literatura, sociedade e memória na obra do escritor gaúcho.

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Nesse sentido, este trabalho está estruturado em três capítulos. Na busca de

uma compreensão mais aprofundada a respeito da crônica, o primeiro capítulo, “A

crônica e sua trajetória no Brasil”, apresenta o percurso do gênero até chegar ao

País. No primeiro subcapítulo, “A origem da crônica: dos primeiros caminhos até a

atualidade”, é feito um apanhado geral sobre a teoria que abrange a crônica, desde

a etimologia com que o gênero está permeado até a significação que é

compreendida atualmente acerca de sua conceituação. O segundo subcapítulo, “O

hibridismo do gênero da crônica: entre literatura e jornalismo”, aborda o trânsito

entre os campos da literatura e do jornalismo, que acabam por caracterizar as

crônicas, demonstrando, assim, a sua difícil conceituação. Nesta seção, aponta-se

ainda que a matéria da crônica pode variar de assuntos meramente cotidianos até

exposições da interioridade de seus autores. O terceiro subtítulo do capítulo, “A

crônica e seus autores: um pequeno esboço da crônica brasileira”, mostra que a

crônica figura como um registro de uma sociedade fragmentada, que é pautada mais

pelo caráter de urgência do que propriamente pelas lembranças que os indivíduos

podem resgatar. Por conseguinte, alguns autores contribuem para a fixação do

gênero na sociedade, cultivando, assim, o caráter de atemporalidade que caracteriza

grande parte dos textos. A partir dessa perspectiva, abordamos como as

particularidades da crônica estão cultuadas em distintos autores e quais são os

escritores que deixaram suas marcas para que este gênero fosse consolidado no

Brasil.

No segundo capítulo, “A Narrativa de Caio Fernando Abreu”, apresentamos a

obra do escritor. O primeiro subcapítulo, “A Narrativa de Caio Fernando Abreu: do

romance à crônica”, relaciona a trajetória percorrida pelo escritor gaúcho,

observando ainda os traços de suas narrativas, focalizando como o escritor

construiu seus textos, a forma com que apresenta suas obras tanto na prosa quanto

na novela, no romance e, por fim, na crônica. A seção cujo título é “A crônica de

Caio Fernando Abreu” demonstra a forma como as particularidades do gênero estão

inseridas nas narrativas do escritor, além de ressaltar o modo como está estruturado

e a relação de suas crônicas com os campos da literatura e do jornalismo e,

finalmente, da memória com a sociedade. Nas próximas subseções, “A linguagem

coloquial de suas crônicas”, “Humor e a ironia nas crônicas de Caio”, “A

subjetividade e o trabalho de citação nas crônicas” e a “A busca pelo diálogo com o

leitor”, ressaltamos as perspectivas mais recorrentes de suas crônicas, isto é, a

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linguagem coloquial, o humor e a ironia, a subjetividade e o trabalho de citação, e a

busca pelo diálogo com o leitor, sempre procurando demonstrar qual o efeito que

essas características possuem nas narrativas do escritor.

No terceiro capítulo, “Literatura, sociedade e memória na crônica de Caio

Fernando Abreu”, analisamos como esses aspectos estão inseridos na narrativa do

escritor gaúcho. No primeiro item do terceiro capítulo, “Diálogos entre literatura e

sociedade”, apresentamos a forma como ocorre o diálogo nas crônicas do escritor

pelo viés sociológico. O próximo subcapítulo, “A representação da sociedade na

crônica de Caio Fernando Abreu”, é constituído da análise de como a sociedade é

representada em distintas crônicas do autor. No terceiro subcapítulo, “Relações

entre literatura e sociedade”, ressaltamos a maneira como a crônica de Caio

Fernando Abreu dialoga com a sociedade, e, por fim, “A construção da memória na

crônica de Caio Fernando Abreu” trata da construção da memória nas crônicas do

autor e como a relação destes elementos transforma a narrativa do escritor.

Por último, apresentamos as considerações finais, para demonstrar o

resultado da pesquisa realizada em Literatura, Vida Social e Memória nas Crônicas

de Caio Fernando Abreu. Para tanto, retomamos alguns aspectos propostos na

reflexão, tais como o referencial teórico acerca das crônicas do primeiro capítulo, a

análise realizada sobre algumas particularidades da crônica de Caio ressaltadas no

segundo capítulo, até as relações propostas no terceiro capítulo entre literatura,

sociedade e memória.

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1. A CRÔNICA E SUA TRAJETÓRIA NO BRASIL

1.1. A origem da crônica: dos primeiros caminhos até a atualidade

A etimologia do termo “crônica” é oriunda da Mitologia Clássica. Cronos2 é o

deus grego que simboliza o tempo. Sobre a relação entre o mito de Cronos, o tempo

e a crônica, Costa (2010) afirma: “Até o momento, essa relação continua válida,

porque a crônica, esteve e está efetivamente relacionada com uma perspectiva

temporal, seja de escolha do assunto, seja no tratamento formal desse mesmo

assunto.” (p. 187). A relação do gênero com a questão temporal na qual o mito está

associado é, portanto, recorrente em sua origem e significação. De acordo com o

estudioso Moisés (2004), o termo latino chronica significa o relato dos fatos; já em

grego, khronikós, de khrónos, está conexo também ao tempo. Nesse sentido, o

significado deste vocábulo foi sofrendo modificações ao longo dos anos, conforme

indica Moisés:

Empregado primeiramente no início da era cristã, designava uma lista ou

relações de acontecimentos, arrumados conforme a sequência linear do

tempo. Colocada assim, entre os simples anais e a História propriamente

dita, a crônica limitava-se a registrar os eventos, sem aprofundar-lhes as

causas ou dar-lhes qualquer interpretação. (MOISÉS, 2004, p. 110)

Essa acepção associa o termo crônica a um traço meramente informativo, e,

tendo atingido o seu ponto alto na Idade Média, no século XII, de acordo com

Moisés (2004), o gênero liga-se ao traço histórico, abandonando o aprofundamento

dos fatos que caracteriza a crônica no início de sua produção. Assim, as crônicas

começaram a se definir em alguns aspectos relacionados à quantidade de

informações registradas, havendo narrativas que tratavam de acontecimentos com

abundâncias de pormenores, situando-se numa perspectiva da história individual no

sentido de que cada cronista contava a história a partir de seu ponto de vista. Essas

2 De acordo com a mitologia grega, Deus Cronos, filho de Urano (Céu) e de Gaia (Terra), destronou o

pai e casou com a irmã, Reia. Urano e Gaia predisseram-lhe então, que ele também seria destronado por um de seus filhos. Para evitar que se cumprisse a profecia, Cronos devorou todos os filhos nascidos de sua união com Reia. Até que ela conseguiu enganar o marido, e deu-lhe uma pedra para comer, ao invés da criança. Dessa forma, a profecia se cumpriu, Zeus deu ao pai uma droga e o fez vomitar todos os filhos que havia devorado, liderando juntamente com seus irmãos, uma guerra contra o pai, que acabou sendo derrotado por todos. (OLIVEIRA, 2008)

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eram as chamadas “crônicas”, que, para elucidá-las, Costa (2010) cita como

exemplo as obras do século XIV de Fernão Lopes3. Em sentido oposto, aquelas que

tratavam os acontecimentos com maior superficialidade, segundo Moisés (2004),

eram determinadas como “cronições”. Então, um mesmo vocábulo que, em seu

sentido primeiro, restringe-se a estar relacionado ao tempo começa a se delinear em

especificidades que lhe abrangem outras significações e contextos. Contudo, Costa

(2010) alerta para o fato de esta distinção atingir somente alguns países: “Tal

discriminação só foi possível em Português e Espanhol, não atingiu o Inglês, que

englobam os dois tipos sob um rótulo comum (chronique, chronicle).” (2010, p. 110).

Para os ingleses, a atribuição de dois vocábulos para um mesmo conceito não foi

bem aceita, ficando os ingleses com a significação primeira, ligada à perspectiva

histórica.

Ainda no que tange ao sentido histórico que o termo começa a carregar,

Roncari (2002) entende que o vocábulo “cronista”, no início de sua significação, está

relacionado a relatos dos escrivães que acabaram transformando esses escritos em

um gênero bastante lido e difundido na Europa: as narrativas das viagens marítimas

ou as literaturas de viagem. A associação entre cronista e relato de escrivães deve-

se ao fato de que, em 1500, os escrivães de que o autor chama atenção precisavam

descrever as novas terras para aqueles que estavam, por vezes, em outros

continentes. Ao fazer a descrição em pormenores de uma terra desconhecida, essa

narrativa transforma-se em um gênero já com as características mais opinativas,

uma vez que o cronista (neste caso o escritor) emitia o seu ponto de vista acerca do

lugar até então desconhecido.

Ao apresentar traços da crônica e seu surgimento, Roncari (2002) ressalta a

importância que os relatos que surgiram a partir das crônicas ofereceram para a

história da humanidade: “o início dessa prática acabou criando um conjunto

3 Gianez (2009) estuda as crônicas oficiais de Fernão Lopes, já que, através destes materiais, o estudioso constatou a gênese do discurso oficial em Portugal, e, de acordo com o autor, “as obras despontam num período de abalo e rearranjo decisivo do pensamento histórico e político no reino, os quais marcaram a ascensão da Dinastia de Avis.” (p. 05). As crônicas de Fernão Lopes relatavam os acontecimentos históricos que o país estava passando, relacionando-se, assim, à descrição dos fatos. Nesse âmbito Paraense (1998) corrobora com a afirmação de Gianez (2009) atribuindo a Fernão Lopes a aproximação do historiador. “Fernão Lopes também supera o ponto de vista do cronista e aproxima-se do historiador ao declarar-se consciente das limitações impostas à compreensão dos acontecimentos por fatores afetivos – especialmente o amor à terra dos ancestrais – e pela diversas opiniões existentes acerca dos fatos. Seu objetivo é narrar servindo-se de documentos fidedignos, especialmente documentos escritos e confrontados em suas versões distintas.” (p. 14)

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riquíssimo tanto de documentos históricos quanto de textos também de valor

literário.” (RONCARI, 2002, p. 25). Esse sentido primeiro de registro e observação,

para posterior composição do que o escritor/cronista enxergava a sua volta,

assemelha-se a um traço da crônica atual, pois o cronista que está inserido na

atualidade pode observar a sua realidade e, a partir dela, optar em passar o seu

ponto de vista ao leitor e lhe escrever sobre determinado tema ou fato, que pode ser

cotidiano, ou pode optar por recontar um evento do passado. As vivências e pontos

de vista do escritor acerca de determinados fatos e temas eram registradas em

crônicas no século XV, e esse traço permanece nas crônicas do século XXI, uma

vez que o ponto de vista e as experiências dos autores são particulares e continuam

sendo repassadas ao leitor.

O que precisa ainda ser ressaltado com relação aos registros históricos das

crônicas de viagem4 é que elas estão diretamente ligadas ao contexto histórico da

época. As expedições marítimas portuguesas e espanholas abalaram a visão que os

europeus tinham de si e do mundo, pois até então eles acreditavam que estariam

ocupando o centro do mundo. Além disso, os europeus necessitavam das crônicas

para conhecer o “mundo novo”. Nessa perspectiva, “para se resituarem no mundo,

agora muito mais amplo, aberto, variado, composto de novas terras, novos homens,

costumes e civilizações, os europeus dependiam de informações, relatos e

narrativas.” (RONCARI, 2002, p. 27). É nesse sentido que o autor afirma que a Carta

de Caminha e outras com autoria de distintos escrivães e cronistas5 voltam-se para

suprir as novas necessidades europeias e se constituir como um marco para

história. Esse fato ocorre na medida em que as crônicas/relatos foram as

responsáveis por transmitir a notícia de que havia mais terras e mudar a visão de

finitude do planeta nas proximidades de Portugal, o que mudou a concepção até

então vigente da extensão territorial da Terra. A importância que as crônicas tiveram

para a história de Portugal6 também é evidenciada no contexto da Inglaterra no

4 Dentre as diferentes formas da crônica, está a de viagem. É chamada assim por ser uma espécie de diário dos escritores, que chegavam às terras até então desconhecidas e relatavam o que estavam observando daquela realidade. 5 O termo “cronistas”, nesse sentido, está sento utilizado com relação à conotação histórica que associada o cronista àquele responsável por relatar o que estava observando ao seu redor, constituindo uma espécie de diário das viagens. 6 Para registrar a história de seu povo, Costa (2010) ressalta que foi a mando de D. Duarte que

Fernão Lopes iniciou as Crônicas de D. Pedro I, D. Fernando e D. João I. Nesses escritos, a autora

cita Silveira (1992): “a matéria não ficcional transforma-se em ficção, se aceite o princípio de que a

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século XII. De acordo com Costa (2010), a crônica nos anos 891 a 1154 era

denominada como Anglo-saxon chronicle. Era assim designada por ser uma obra

composta por um conjunto de nove manuscritos que tinha como intuito mostrar a

forma como o povo anglo-saxão se estabeleceu nas Ilhas Britânicas. No que tange a

Anglo-saxon chronicle, Paraense (1998) afirma que também pode ser chamada de

Old English chronicle, intitula como sendo esta a primeira história contínua da nação

ocidental em sua própria língua, além de ser o primeiro livro em prosa, com a

narrativa em inglês. (PARAENSE, 1998).

Quanto à origem da crônica, cabem algumas observações. Um primeiro ponto

diz respeito à interpretação, ao subjetivismo e à ideologia que estão incorporados ao

escritor. Este, inevitavelmente, passa por três processos em sua escrita: ver,

interpretar (nesse caso de acordo com o seu ponto vista, isto é, suas ideologias) e

transpor sua percepção sobre o mundo através da escrita para os seus leitores que

usufruirão através das ideologias e interpretações de cada cronista: o que acarreta o

subjetivismo. Nesse sentido, Schneider (2008) pondera que a crônica é vista como

“uma expressão de diferentes vozes, mesmo que contraditórias – de um

determinado tempo social.” (2008, p. 02) A ideia de a crônica estar ligada aos

processos ideológicos e inserida em um tempo social pode ser melhor

compreendida com Bosi (1994). Isso porque o autor defende que a história do

homem brasileiro está ligada a um determinado tempo social, isto é, aos viajantes

missionários europeus. Nas palavras do autor:

A pré-história das nossas letras interessam como reflexo da visão do mundo e da linguagem que nos legaram aos primeiros observadores do país. É graças a essas tomadas diretas da paisagem, do índio, dos grupos sociais nascentes, que captamos as condições primitivas de uma cultura que só mais tarde poderia contar com o fenômeno da palavra-arte. (BOSI, 1994, p. 13)

Cabe ainda ressaltar sobre esse contexto que, no tocante à história da

crônica no Brasil, o estudioso Jorge de Sá (1999) aponta que o surgimento da

literatura está ligado à crônica. O autor, assim como Bosi (1994), cita a carta de Pero

Vaz Caminha ao Rei Dom Manuel como a primeira experiência de uma crônica em

terras brasileiras, e Sá (1999) liga esse fato ao nascimento da literatura neste país:

História – pela interpretação, pelo subjetivismo, pela comunicação, pela ideologia – é também uma

ficcionalização do real.” (COSTA apud SILVEIRA, 2010, p. 27)

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“a história de nossa Literatura se inicia, pois, com a circunstância de um

descobrimento: oficialmente, a Literatura Brasileira nasceu da crônica.” (SÁ, 1999, p.

07).

Caminha estabeleceu ainda outro traço da crônica ao instituir também o seu

princípio básico: registrar o circunstancial. O significado do gênero está ligado, neste

contexto, ao sentido histórico da palavra, e, sob essa ótica, Laurito (1993) sustenta:

“são textos que antecipam o advento e a existência de uma historiografia nacional, já

fruto de reflexão crítica e apoiada em instrumento adequado.” (p. 14). As crônicas

constituem-se, assim, de documentos históricos e de registros.

Para Laurito (1993), o marco histórico da crônica ocorre no século XV, e, de lá

para cá, o gênero vem se desenvolvendo e se transformando. O autor comenta

ainda que, além do registro circunstancial, o gênero possui significado em

consonância com a ideia de ser um resgate do tempo. Nas palavras do autor:

Tendo como marco histórico o ano de 1418, a palavra crônica, ainda que posteriormente, viesse abranger outros sentidos, permaneceu na língua portuguesa com o sentido antigo de narrativa vinculada ao registro de acontecimentos históricos.” (1993, p. 12)

O desenvolvimento da crônica continua nos séculos seguintes. Moisés (2004)

relata que, a partir do Renascimento (século XVI e XVII), o vocábulo passou a ser

substituído por “história”. Para Laurito (1993), as crônicas, no seu sentido histórico,

são textos que antecipam o advento e a existência de uma historiografia nacional. Já

o conceito que mais se assemelha ao atual sobre a crônica é datado de 1800

(século XIX). Nas palavras de Moisés (2004):

Com a significação moderna, o vocábulo entrou em uso no século XIX, para rubricar textos que só longinquamente se vinculam a primeira forma de crônica: ostentam, agora, estrita personalidade literária. Assim entendida, a crônica teria sido inaugurada pelo francês Julien-Louis Geoffroy, por volta de 1800, no Journal des Débats, onde periodicamente estavam feuilletons (MOISÉS, 2004, p. 110)

É importante ressaltar ainda que o conceito antigo de crônica – como registro

dos fatos históricos – continuou paralelamente à concepção moderna que se impôs

tanto a partir do século XIX quanto com o advento da literatura jornalística que está

ligada aos folhetins ou feuilletons. No que tange aos folhetins, Coutinho (2006)

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assinala que eles tinham uma finalidade única: o entretenimento. Nas palavras do

autor: “Era um espaço onde se contavam piadas, falava-se de eventos do dia,

apresentavam-se charadas, ofereciam-se receitas de cozinha ou beleza, e

comentavam-se as últimas novidades: peças teatrais, livros, etc.” (COUTINHO,

2006, p. 46)

Quanto à procedência, Castello (2004) comenta que os folhetins foram

introduzidos no Brasil com o Romantismo ao serem importados da França. Eles

surgem nos jornais, tendo um espaço específico, que era localizado nos rodapés

(rez-de-chaussée7) da página de destaque dos periódicos. A sua divulgação envolvia

a produção literária da época, uma vez que as narrativas ficcionais eram colocadas

dia a dia nos folhetins. O autor ressalta a importância deste gênero para a época:

Recurso circunstancial de divulgação da narrativa ficcional, foi suficiente para marcar linguagem e construção, a partir do qual, muitas dessas narrativas passaram para a forma do livro, carregando consigo as particularidades indicadas. Foi comum desde suas origens entre nós até pelo restante do século XIX. Também, sem tais peculiaridades, muitas das principais criações ficcionais brasileiras do século XIX foram divulgadas naquele espaço jornalístico. (CASTELLO, 2004, p. 252)

Nesse sentido, as pessoas se reuniam para ler o que estava escrito nos

folhetins. O escritor, que pode ser confundido com o cronista em um primeiro

momento, trabalhava em seus textos a criação literária ligada à escrita jornalística.

Sob essa ótica, outro aspecto do folhetim envolve a criação literária atrelada à

atividade jornalística. Candido (1989) cita como exemplo a seção escrita por José de

Alencar – um dos primeiros e principais cultores deste gênero – “Ao correr da pena”,

que era publicada semanalmente para o Correio MercantiI (1854 a 1855). De acordo

com Castello (2004), Alencar traduziu os folhetins para os leitores: “o folhetinista

inventou ao invés de contar, o que, por conseguinte, excedeu os limites da crônica.”

(p. 253).

Dessa forma, como é possível observar, a crônica tem impulso a partir dos

folhetins no século XIX e aos poucos vai se redefinindo. As diferenças nos dois

gêneros consistem na forma com que são publicados: o folhetim desse século

ocupava quase meia página de um jornal, já a crônica moderna é mais curta e nela

7 Expressão utilizada por Coutinho (2006).

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são comentados poucos assuntos, ao contrário do folhetim. Sobre o aspecto dos

assuntos, Laurito (1993) afirma:

Nos tempos atuais, dificilmente essa multiplicidade de assuntos estaria delimitada numa única seção do jornal. Isso porque, com a evolução da imprensa, o abrangente folhetim de variedades do século XIX foi desaparecendo, para dar lugar a seções especializadas de articulistas, comentaristas, analistas e críticos, ou seja, jornalistas também especializados em determinadas matérias. Entre eles, o que se chama hoje de cronista, o especializado em tudo ou nada. Melhor dizendo, aquele escritor-jornalista que, ao mesmo tempo, prende e solta a sua imaginação criadora num espaço específico e bem caracterizado da imprensa diária ou periódica. (p. 22)

O marco do nascimento da crônica, como dito, está ligado ao folhetim, e

sobre isso Laurito (1993) registra a ideia de que estudiosos da crônica brasileira

assinalam, como o seu nascimento, o marco em dois de dezembro de 1852: “data

em que Francisco Otaviano inaugura, no Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, a

seção ‘A Semana’, ou seja, os folhetins literários do Romantismo.” (1993, p. 29). A

partir desse período, a tradução de como é a crônica atualmente começa a se

formular. É justamente a partir desta data que Moisés (2004) alega o prestígio que

este gênero passa a receber: “a ponto de haver os que a identificam com a própria

Literatura Brasileira ou a consideram nossa exclusividade.” (p. 110)

No tocante às transformações do folhetim para crônica, Candido (1989)

pontua seu raciocínio acerca dessas modificações:

Aos poucos o “folhetim” foi encurtando e ganhando certa gratuidade, certo ar de quem está escrevendo à toa, sem dar muita importância. Depois, entrou francamente pelo tom ligeiro e encolheu de tamanho, até chegar ao que é hoje. Ao longo deste percurso, foi largando cada vez mais a intenção de informar e comentar (deixadas a outros tipos de jornalismo), para ficar sobretudo com a de divertir. A linguagem se tornou mais leve, mais descompromissada e (fato decisivo) se afastou da lógica argumentativa ou da crítica política, para penetrar poesia adentro. Creio que a fórmula moderna, na qual entra um fato miúdo e um toque humorístico, com o seu quantum satis de poesia, representa o amadurecimento e o encontro mais puro da crônica consigo mesma. (s/d)

Para melhor exemplificar como ocorreram as transformações que vão desde a

linguagem mais leve até o toque de humor, Candido (1989) cita os autores que

fizeram parte da evolução do gênero. No século XIX, José de Alencar novamente é

mencionado, juntamente com Francisco Otaviano e Machado de Assis, por ainda

possuírem em suas narrativas o que Candido (1989) chama de “o corte de artigo

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leve.” Já em outro cronista, França Júnior, o que ocorre é uma redução na escala de

temas, ligada, ao que afirma o estudioso, no incremento de humor. Além desses,

Candido (1989) cita outros autores que se enquadram no rol de modificações da

crônica:

Olavo Bilac, mestre da crônica leve e aliviada de peso, guarda um pouco do comentário antigo, mas amplia a dose poética, enquanto João do Rio se inclina para o humor e o sarcasmo, que contrabalançam um pouco a tara de esnobismo. Eles e muitos outros, maiores e menores, de Carmen Dolores a João Luso até nossos dias, contribuíram para fazer do gênero este produto sui generis do jornalismo literário brasileiro que ele é hoje. (CANDIDO, 1989)

Outros nomes, como Humberto de Campos, Raquel de Queirós, Rubem

Braga, Paulo Mendes Campos, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino,

Henrique Pongetti podem ser citados como autores que cultivaram o gênero crônica.

Quanto ao formato do gênero atualmente, Moisés (2004) pontua sua explanação

para termos que se ligam à crônica moderna, atribuindo significado a vocábulos

ingleses, commentary, literary, column, para a crônica moderna - aquela publicada

tanto em jornais quanto em revistas. Desse modo, “comentário”, “literatura” e

“coluna” estão pautados às crônicas e se constituem a partir de um acontecimento

diário, que tenha chamado atenção de seu escritor; além disso, possuem a

particularidade de não apresentar caráter próprio ou até mesmo limites precisos.

Nessa esteira, sem as definições próprias, a crônica assemelha-se a uma

categorização híbrida ou múltipla, conforme explica o autor:

Pode assumir a forma de alegoria, necrológico, entrevista, invectiva, apelo, resenha, confissão, monólogo, diálogo, em torno de personagens reais e/ou imaginárias etc. A análise dessas várias facetas permite inferir que a crônica constitui o lugar geométrico entre a poesia (lírica) e o conto: implicando sempre a visão pessoal, subjetiva, ante um fato qualquer do cotidiano, a crônica estimula a veia poética do prosador; ou dá margem a que este revele dotes de contadores de histórias. No primeiro caso, resultado por ser um poema em prosa; no segundo, uma narrativa breve. (MOISÉS, 2004, p. 111)

No contexto brasileiro, nomes como Joaquim Manuel Macedo, Cecília

Meireles, Manuel Bandeira, Raul Pompeia e Manuel Antônio de Almeida são alguns

dos que foram se adequando à concepção gênero crônica ao longo dos anos. No

início, com esses autores, a compreensão do gênero era mais próxima à modalidade

histórica, ainda mesclada à ficção. Já a crônica, no sentido em que o termo é

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comumente utilizado para designar um texto jornalístico, que aborda os mais

distintos assuntos, nasceu, de acordo com Laurito (1993), como um filão que

“começou no século XIX, na França, e que se transplantou com sucesso para o

Brasil.” (p. 15)

Com as diferentes concepções que permeiam o vocábulo, a evolução e a

difusão da crônica também estiveram em diferentes significações dentro da história

da literatura, e, sobre esse contexto, Costa (2010) afirma que:

Em 1971, Gerald Moser escrevia um estudo para uma publicação feita na Carolina do Sul, nos Estados Unidos intitulado: “The cronica: a new genre in Brazilian Literature?” (A crônica: um novo gênero na Literatura Brasileira?) Até hoje, os dicionários de termos literários em língua inglesa não incluem o verbete “crônica”, mas ao longo de todos esses anos cresceu uma vasta produção de crônicas e um grande número de estudos sobre essa forma literária. Arrigucci (1987, p. 53) também deu destaque ao desenvolvimento dessa forma de literatura no Brasil: “Teve aqui um reflorescimento de fato surpreendente como forma peculiar.” (COSTA, 2010, p. 188)

A partir das observações de Costa, é possível estabelecer, em linhas gerais,

que o século XIX estaria relacionado ao folhetim e ao século XX caberiam as

particularidades da crônica firmada como gênero específico e atrelada a jornais,

revistas e até mesmo livros que reúnem escritas nesse gênero. Além disso, ainda no

século XX, outra concepção do gênero é adotada, e o produtor da crônica é

considerado um escritor especializado em “tudo e em nada”, para usar a expressão

de Laurito (1993).

Quanto à crônica, fica evidente a sua aproximação com o jornalismo. Nas

palavras de Laurito: “Melhor dizendo aquele escritor-jornalista ou jornalista-escritor

que, ao mesmo tempo, prende e solta a sua imaginação criadora num espaço

específico bem caracterizado da imprensa diária ou periódica.” (p. 22). Com vistas à

mescla que a crônica possui entre o jornalismo e a literatura e sobre as

transformações que foram ocorrendo concomitantemente ao contexto histórico do

século XXI, a próxima seção aborda esses aspectos, em especial, o trânsito entre

literatura e jornalismo que caracteriza o gênero.

1.2. O hibridismo da crônica: entre literatura e jornalismo

Desde a origem, a crônica esteve ligada às mudanças históricas. Em um

primeiro momento, no contexto brasileiro, esteve presente e foi cultuada como a

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representação do Brasil em 1500 por descrever o que os primeiros visitantes desta

terra viam no lugar novo. Após modificações, foi se delineando em um percurso

sempre em busca de significações para as leituras de mundo que seus escritores

registravam em seus textos.

No tocante às significações que permeiam as crônicas, o contexto sócio-

histórico pode ser ressaltado, uma vez que o gênero acompanha essas

transformações. Em tal perspectiva, a globalização empreendeu sentidos a crônica,

tais como: a mescla de diferentes campos, desde a história (em seu sentido

primeiro, que ainda não lhe abandona), a literatura e por fim o jornalismo. De forma

geral, a crônica passou por significativas mudanças ao longo dos séculos, iniciando

pelas crônicas de viagem (em que os escritores contavam o que viam nas novas

terras), o folhetim, até às crônicas modernas, cultuadas em jornais com a

abordagem do cotidiano. Nesse contexto, as transformações podem ser verificadas,

de acordo com Arnt (2002), na medida em que é a partir do século XIX que ocorre

um fato até então não observado: a presença de escritores na vida dos jornais.

Paraense (1998) acentua, nessa construção de raciocínio, que a atividade literária

nos jornais, torna-se, nesse período, um negócio:

O escritor profissionaliza-se uma vez que produz uma mercadoria altamente valorizada. Destinadas apenas aos assinantes, e cobrando uma taxa bastante elevada pela assinatura anual, as folhas passam a contratar escritores de renome. Estes atraem assinantes, e com eles, os anúncios. (PARAENSE, 1998, p. 22)

Por esse prisma, é possível inferir que, independentemente do cargo, os

escritores interferiam na maneira de se conceber um jornal. Nessa esteira, Arnt

(2002) advoga: “A influência dos escritores foi de tal ordem, que podemos qualificar

esse período da história da imprensa de jornalismo literário.” (ARNT, 2002, p. 07). O

autor entende jornalismo literário não como a imprensa especializada em literatura,

mas sim a identificação de escritores com esse tipo de mídia: “jornalismo literário é

um estilo que se desenvolveu no século XIX e se caracterizou pela militância de

escritores na imprensa e pela publicação de crônicas, contos e folhetins.” (ARNT,

2002, p. 08). Com essa relação de proximidade entre a literatura e o jornalismo

através dos gêneros textuais citados, o estudioso afirma que a presença dos

escritores favoreceu o aparecimento do jornalismo informativo e atraente. De

maneira análoga, a literatura também sofre influência do jornalismo através de uma

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maior aproximação dos escritores com os fatos que se inserem no meio social. Sob

esse aspecto, Arnt (2002) propõe:

Ligado às exigências do meio – tudo num jornal informa -, o olhar dos escritores do século XIX volta-se para as questões sociais e as agruras da vida cotidiana. O extraordinário crescimento da imprensa europeia estava fundamentado em modificações profundas na estrutura social. Literatura e jornalismo tornam-se, portanto, indissociáveis. (p. 08)

A aproximação desses gêneros a que o autor se refere deve-se por alguns

aspectos, tais como: a) significativos escritores da literatura mundial estiveram

presentes na imprensa; b) a informação está hodierna tanto nos jornais, quanto na

ficção, e os dois gêneros possuem este objetivo final para com seus leitores; e c)

tanto a literatura quanto o jornalismo contribuem para a representação de aspectos

da vida cotidiana, encadeando-se tanto em personagens ficcionais quanto em

indivíduos que têm suas vidas relatadas nas folhas dos jornais, e tudo isso pode

resultar nas observações dos escritores registradas nas crônicas. Sobre a

representação do social nas obras literárias, Arnt (2002) enfatiza que: “os escritores

do século XIX estavam direta e indiretamente engajados num movimento de crítica e

denúncia das contradições sociais.” (ARNT, 2002, p. 09). Nesse sentido, Candido

(1989) ressalta a comunhão da crônica com o social, haja vista a sua pretensão de

humanizar. Nas palavras do autor:

Por meio dos assuntos, da composição solta, do ar de coisa sem necessidade que costuma assumir, ela se ajusta à sensibilidade de todo o dia. Principalmente porque elabora uma linguagem que fala de perto ao nosso modo de ser mais natural. Na sua despretensão, humaniza; e esta humanização lhe permite, como compensação sorrateira, recuperar com a outra mão certa profundidade de significado e certo acabamento de forma, que de repente podem fazer dela uma inesperada embora discreta candidata à perfeição. (CANDIDO, 1989, s. p.)

Nessa esteira, o engajamento com relação ao social, a representação e a

tentativa de melhor compreensão do mundo em que estavam inseridos levaram

escritores e jornalistas a se dedicarem em torno de um gênero específico: a crônica.

Acerca ainda da aproximação da crônica com o jornalismo, Costa (2010) afirma que

isso ocorreu a partir do século XI: “em um primeiro momento ela tomou assuntos

emprestados dos jornalistas e assim os cronistas se transformaram em

comentaristas responsáveis pela crônica policial, social, teatro, economia, dentre

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outras.” (COSTA, 2010, p. 189) Entretanto, além desses aspectos que o autor cita, a

busca pela subjetividade e o uso de linguagem mais livre e descompromissada

teriam sido as peculiaridades que levaram à constatação de que a crônica, ao

mesmo tempo, possui um tom de jornalismo e literatura. A aproximação deste

gênero aos textos literários incorre devido às suas qualidades estéticas e à

literariedade8, que pode, muitas vezes, relacionar-se ainda ao gênero épico ou até

mesmo lírico, mas com histórias expressivas que se constituem no conjunto da

produção literária. No tocante à literariedade, Simon (2008) manifesta a ideia acerca

da polêmica que este termo vem sofrendo desde 1958, quando foi a primeira vez

que um crítico observou o caráter heterogêneo da produção dos cronistas:

Trata-se de um longo debate que teve uma de suas primeiras intervenções em texto de Eduardo Portella, em 1958, quando o crítico já reconhecia o caráter heterogêneo da produção dos cronistas, diferenciando-a de acordo com noções como transcendência e permanência. Nessa ocasião já era possível constatar diferenças estéticas nos múltiplos textos que recebiam o nome de crônica, fenômeno que continuou a ser examinado pelos críticos ao longo da segunda metade do século XX. (SIMON, 2008, p. 59)

Nesse contexto, a relação mútua e de total engajamento entre o jornalismo e

a literatura na produção da crônica foi se transformando e se alongando. No século

XX, outra concepção surgiu: o diálogo da crônica com outras manifestações escritas,

sejam elas literárias ou não, como o jornalismo. Mesmo contendo características que

estão ligadas aos períodos históricos, as crônicas continuam se relacionando à

literatura e ao jornalismo, justamente pela ligação que os dois últimos campos

possuem, ainda que com suas diferenças, na intenção de alguns discursos. Com

base no elo da crônica com a literatura e o jornalismo, ela acaba também por se

caracterizar por um hibridismo que não é comum em outros gêneros. Assim, pode-se

inferir que as crônicas encontram-se na natureza híbrida, como destaca a

pesquisadora Jovchelevich (2005): “pode ser, ao mesmo tempo, jornalismo e

literatura – uma vez que o seu meio de difusão é o jornal, e o seu tom é literário, seja

a sua abordagem ficção ou realidade.” (p. 16) Desse modo, a crônica transforma a

literatura em algo íntimo, pois se relaciona com a vida de cada leitor, ao mesmo

8 O conceito de literariedade está atrelado a um conjunto de características específicas (linguísticas, semióticas, sociológicas) que permitem considerar um texto como literário e foi criado pelos formalistas russos, autores de uma corrente teórica que observa a imanência do texto, desconsiderando aspectos extraliterários. .

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tempo em que está voltada para as experiências de quem está escrevendo, isto é, a

relação com o meio social que é peculiar do jornalista. Além disso, há outras

particularidades que distinguem os dois gêneros, tal como a linguagem:

As reflexões de Roman Jakobson sobre as funções internas da linguagem nos permitem apreciar que, no caso do discurso jornalístico, deve ser dominante a função referencial, por ser a que articula sua funcionalidade informativa e sua vontade de construir discursos baseados em fatos reais, que correspondam a acontecimentos extradiscursivos. No caso dos discursos literários, esteja ou não presente a função referencial, deve dominar a função poética ou estética, que reclama atenção sobre o próprio texto e por isso tem, por um lado, maior liberdade referencial e, pelo outro, maiores restrições expressivas (já que o plano da expressão se articula fortemente com aquele do conteúdo). (JOVCHELEVICH apud ÁNGEL, MEDEL, 2002, p. 23-24)

As crônicas possuem as características que os autores chamam atenção:

estão construídas em discursos baseados em fatos reais, fazem parte do projeto

editorial do jornal, já que estão inseridas em um espaço geralmente delimitado em

um mesmo lugar para criar a identificação com os leitores. Além disso, os cronistas

escrevem de acordo com os acontecimentos que permeiam o mundo, contudo, ao

mesmo tempo, a sua linguagem não precisa estar restrita ao objetivismo que

repórteres e redatores utilizam nas matérias jornalísticas. Nesse sentido, Lage

(2005) define que a crônica, “em sua forma moderna, como se pratica no Brasil, é

literatura, que vai da emoção à ironia.” (p. 23) O cronista pode inovar, valer-se da

linguagem conotativa, como a ironia que o autor ressalta e, ainda, utilizar outros

elementos que a literatura propõe, tudo isso mesclando assuntos relacionados ao

cotidiano.

Tais aspectos ressaltados anteriormente acerca do gênero, em especial entre

a literatura e o jornalismo, podem ser exemplificados através da crônica “Contra a

Pirataria”, de Moacyr Scliar. O início da narrativa demonstra essa relação, ao passo

que descreve ao leitor a notícia do jornal Folha Online, na edição de 18 de outubro

de 2005. Após relatar que uma dupla assaltou uma joalheira e escolheu relógios

para levar, o narrador faz uma reflexão acerca da notícia. O que pode ainda ser

enfatizado sobre a crônica é a que a notícia de jornal que é exposta no início do

texto de Scliar é sucinta e objetiva: apenas relata o fato, respondendo as seis

perguntas essenciais que o lide (ou lead) jornalístico9 deve responder: quem? o

9 Costa (2002) ressalta que o Lead está relacionado ao jornalismo com a pirâmide invertida. Nas palavras do autor: “Ao contrário da narrativa denominada “nariz de cera”, que pressupõe a descrição

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que? Como? Quando? Onde? e Por quê? Já no restante do texto, os aspectos

supracitados, tais como a linguagem não estar restrita ao objetivismo dos repórteres

e redatores, a linguagem conotativa e a riqueza dos detalhes são explorados pelo

narrador. Dessa forma, o autor conta ao leitor o que o repórter não poderia

expressar na notícia, pois estaria contrariando outro princípio básico do jornalismo

informativo, que é não dar a sua opinião. Isso porque, na linguagem jornalística, a

opinião do repórter não pode ficar evidente, é preciso que a imparcialidade

prevaleça.10

Com vistas à linguagem utilizada por cronistas, Candido (1989) distingue a

que é utilizada por cronistas e pela literatura:

O problema é que a magnitude do assunto e a pompa da linguagem podem atuar como disfarce da realidade e mesmo da verdade. A literatura corre com frequência este risco, cujo resultado é quebrar no leitor a possibilidade de ver as coisas com retidão e pensar em consequência disto. Ora, a crônica está sempre ajudando a estabelecer ou restabelecer a dimensão das coisas e das pessoas. Em lugar de oferecer um cenário excelso, numa revoada de adjetivos e períodos candentes, pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas. Ela é amiga da verdade e da poesia nas suas formas mais diretas e também nas suas formas mais fantásticas, sobretudo porque quase sempre utiliza o humor.

A crônica está ligada às premissas mencionadas pelo estudioso justamente

por não ter pretensões de durar, ela é, como enfatiza Candido (1989), filha das

máquinas, onde tudo acaba depressa. Por abrigar as peculiaridades de um veículo

transitório e híbrido (entre o jornalismo e literatura), o autor a define como o intuito

não de escritores que pensam em “ficar”, mas sim em sua relação com a

simplicidade, ou nas palavras do autor: “a dos que escrevem do alto da montanha,

mas do simples rés-do-chão.” (CANDIDO, 1989)

Isso posto, é possível ressaltar que a transitoriedade da crônica entre os

campos da literatura e do jornalismo permite a esse gênero a construção de

peculiaridades singulares no que tange ao seu contexto de significações. Coutinho

do fato jornalístico seguindo a linearidade do tempo e das circunstâncias, a pirâmide invertida, uma apropriação do jornalismo americano, prescreve que, no primeiro parágrafo da notícia, chamado lead, deve ser concentrada toda informação que permita uma rápida compreensão do enunciado – quem, o que, como, quando, onde, por quê. Assim sendo, o lead racionaliza os procedimentos e permite maior rapidez na assimilação do conteúdo, inclusive facultando eventuais cortes da matéria caso haja restrição de espaço editorial, como por exemplo, a inclusão de inserção publicitária, supostamente sem prejuízos para a compreensão do fato noticioso.” (p. 137) 10 A imparcialidade é dos princípios básicos a que os jornalistas devem ser submetidos. Mesmo que os repórteres saibam que ela não existe, é preciso demonstrar esse aspecto ao leitor.

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(2006) destaca que desse diálogo da crônica com o jornalismo, a crônica abarcou

alguns traços básicos, tais como:

A sua precariedade ou transitoriedade, o seu apego ao cotidiano, a sua aparência de simplicidade – o que não quer dizer, observe-se de passagem, um desconhecimento dos recursos artísticos –, a sua urgência, a sua concisão e caráter de síntese, o seu coloquialismo e uma sintaxe mais próxima da língua falada, da oralidade, o seu cunho de diálogo com o leitor e a sua variedade de assuntos. No entanto, enquanto o jornalismo tem no fato o seu objetivo, seja para informar divulgando-o, seja para comentá-lo dirigindo a opinião, para a crônica o fato vale, nas vezes em que ela o utiliza, como meio ou pretexto, do qual o cronista retira o máximo partido, com as virtuosidades de seu estilo, de seu espírito, de sua graça, de suas faculdades inventivas. (COUTINHO, 2006, p. 48)

Características como simplicidade, todavia, sem a perda da qualidade textual,

caráter urgente e sintético, coloquialismo elaborado podem estar relacionados aos

dois campos supracitados. Sobre a simplicidade, Costa (2010) argumenta que:

A simplicidade da crônica é exigida pela definição do seu destinatário – o leitor de jornal -, pelo ambiente da escrita em que se inseriu na origem (a imprensa periódica) e pela exiguidade de espaço para seu desenvolvimento (obrigando a síntese), mas não dispensa nem ignora os recursos de toda a linguagem literária: a escrita figurativa, o ritmo adequado e significativo das frases, a captação do instante e de sua densidade, a construção de personagens que, mesmo sem espaço de aprofundamento, são delineadas com exatidão para de imediato dizerem de sua natureza ao leitor. (COSTA, 2010, p. 189)

Já o caráter de urgência e síntese podem ser melhor compreendido através

de suas funções complementares. A urgência ocorre na medida em que um jornal,

por exemplo, possui uma suposta validade de 24 horas, já que, no dia seguinte,

outros meios impressos são substituídos pelos do dia anterior. Assim, os cronistas

precisam sintetizar e captar a intensidade de um assunto que possa ser esboçado

no espaço que é pré-destinado a ele; e qualquer imagem ou acontecimento pode

originar, nas mãos do escritor, uma elaborada reflexão acerca da condição humana.

A simplicidade, o caráter urgente e sintético, a qualidade textual e o

coloquialismo literário estão atrelados à linguagem. Esta também é fruto do contexto

que permeia o jornalismo. Nessa esteira, o cronista é premido pela correria e pelo

contexto de produção com que se faz um meio impresso. Fatores como a

abrangência a diferentes públicos-alvo, com distintos níveis sociais e de

escolaridade, influenciam na forma com que os cronistas utilizam a linguagem em

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suas crônicas para fins jornalísticos. Para que todos possam captar as informações

que um jornal possui, é necessário que a linguagem também seja familiar ao público

receptor. Em tal perspectiva, a oralidade é presença constante nas páginas dos

jornais, e, consequentemente, nas crônicas. Sobre essa característica, Sá (1999)

pondera que:

Por isso sua sintaxe lembra alguma coisa desestruturada, solta, mais próxima da conversa entre dois amigos, do que propriamente do texto escrito. Dessa forma, há uma proximidade maior entre as normas da língua escrita e da oralidade, sem que o narrador caia no equívoco de compor frases frouxas, sem a magicidade da elaboração, pois ele não perde de vista o fato de que o real não é meramente copiado, mas recriado. O coloquialismo, portanto, deixa de ser a transcrição exata de uma frase ouvida na rua, para ser a elaboração de um diálogo entre o cronista e o leitor, a partir do qual a aparência simplória ganha sua dimensão exata. (p. 11)

O diálogo equilibra, desse modo, o coloquial e literário, permitindo que a

espontaneidade e o lado sensível permaneçam como elemento importante nas

crônicas, bem como acontece em conversas diárias entre dois interlocutores. Por

conseguinte, são essas as sutilezas que o cronista capta para transformar seus

textos, pois uma simples situação de diálogo informal ou até mesmo um tema

cotidiano sem importância aparentemente podem ser transformados pelos cronistas.

Sobre a informalidade, Laurito (1993) ressalta que esse elemento não se

transforma em um fator negativo para a crônica, fazendo com que o gênero perca a

sua essência, que é estar permeada com o comprometimento social. De acordo com

o estudioso, as crônicas só representam ser fáceis:

Gênero aparentemente – e só aparentemente – fácil, a crônica exige uma espécie de descompromisso do autor no tratamento do assunto, que deve ser abordado de forma ligeira e atraente para o público leitor; por outro lado, esse suposto descompromisso do cronista – sujeito comprometidíssimo com o seu ofício – não implica mediocrização do texto. É o talento do autor que vai dar estatura maior a um gênero comumente considerado um modo menor de ficção. (LAURITO, 1993, p. 27-28)

Apesar da construção de raciocínio acerca das principais características que

as crônicas possuem, a sua relação e a vulnerabilidade entre os campos do

jornalismo e literatura tornam a sua conceituação complexa. Laurito (1993) atribui

uma premissa a essa ótica:

E que, nesse primeiro esboço, o que se torna claro, a partir dos folhetinistas do século XIX é que uma das maiores dificuldades do gênero parece residir

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no caráter dúplice de literatura e jornalismo, ou melhor, de literatura jornalística profissionalmente empenhada. (LAURITO, 1993, p. 21)

Já para Bender (1993), a difícil conceituação do gênero incorre da sua falta de

restrição quanto aos temas: “Não há restrição de assunto para a crônica, talvez para

compensar o pouco espaço. E essa total liberdade, também quanto à estrutura, faz

ser difícil a sua conceituação.” (p. 44). A ambiguidade é intensa nas crônicas, elas

podem ser ao mesmo tempo simples e paradoxalmente complexas. No tocante ao

problema em apreço, elas podem, ainda, ser vários gêneros textuais em uma só vez:

A estrutura da crônica é uma desestrutura; a ambiguidade é a sua lei. A crônica tanto pode ser um conto, como um poema em prosa, um pequeno ensaio, como as três coisas simultaneamente. O que interessa é que a crônica, acusada injustamente como um desdobramento marginal ou periférico do fazer literário, é o próprio fazer literário. E quando não o é, não é por causa dela, a crônica, mas por culpa dele, o cronista. Aquele que se apega à notícia, que não é capaz de construir uma existência além do cotidiano, este se perde no dia a dia e tem apenas a vida efêmera do jornal. Os outros transcendem e permanecem. (BENDER, 1993, p. 53)

A linha tênue que separa literatura e jornalismo na crônica também prenuncia

a fronteira entre as crônicas e o gênero conto. Nesse sentido, Sá (1999) ressalta que

a fronteira divisória apresenta algumas peculiaridades de cada um dos gêneros:

Enquanto o contista mergulha de ponta-cabeça na construção do personagem, do tempo, do espaço e da atmosfera que darão força ao fato “exemplar”, o cronista age de maneira mais solta, dando a impressão de que pretende apenas ficar na superfície de seus próprios comentários, sem ter sequer a preocupação de colocar-se na pele de um narrador, que é, principalmente, personagem ficcional (como acontece nos contos, novelas e romances). Assim, quem narra uma crônica é o seu autor mesmo, e tudo que ele diz parece ter acontecido de fato, como se nós, leitores, estivéssemos diante de uma reportagem. (SÁ, 1999, p. 09)

Mesmo que a crônica não possua a densidade dos contos, existe a liberdade

por parte dos cronistas, que podem transmitir a aparência da superficialidade para

desenvolver seu tema, a partir da simplicidade. Contudo, essa simplicidade – já que

a linguagem utilizada nos veículos de comunicação, por abranger muitos públicos,

tem como característica a presença de elementos mais informais – não significa,

“desconhecimento das artimanhas artísticas.” (SÁ, 1999, p. 10). Pelo contrário,

“nesse contexto, a crônica também assume essa transitoriedade, dirigindo-se

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inicialmente a leitores apressados, que leem nos pequenos intervalos da luta diária.”

(SÁ, 1999, p. 10)

Além disso, os contos e as crônicas diferem-se, já que os primeiros, mesmo

com temáticas específicas da época em que são construídos, denotam um caráter

de atemporalidade, tornando-se, assim, como parte constitutiva para a memória do

período em que estão inseridas. De maneira análoga, Costa (2010) reforça a

diferença do gênero que se volta para a literatura – o conto para a crônica que está

no limiar entre o jornalismo e a literatura -, na medida em que a primeira possui

maior transitoriedade temporal do que o conto, justamente pelo cronista retirar seus

assuntos da vida cotidiana. Com vistas à melhor compreensão da crônica, Marques

(2009) auxilia na conceituação:

Gênero em prosa, próximo da elocução verbal que expressa a realidade da alma do artista; é breve, vem da experiência e nasce ante o impacto da realidade; é efêmero, usa fatos miúdos e sem importância como matéria prima e seu meio é o jornal. Contudo, somente permanecerá, a despeito da efemeridade de seu veículo, quando for dotada de qualidades literárias patentes. Além disso, usa da interlocução direta, sem artifícios narrativos para dialogar com o leitor. (p. 14)

É frequente o narrador da crônica dirigir-se diretamente para o leitor,

mantendo assim um diálogo aberto, como pode ser atestado através de uma crônica

que Caio publicou no dia seis de abril de mil novecentos e oitenta e seis, no Jornal O

Estado de São Paulo:

É que fatalmente eu/tu/ele/nós vamos lembrar. E não estou certo se essas lembranças serão boas. Ou seriam boas, lembradas hoje, você me entende? Porque o tempo passado, filtrado pela memória e refletido no tempo presente – agora –, parece sempre melhor. E teria mesmo sido? (ABREU, 2012, p. 17)

O assunto cotidiano e simples sobre o dia a dia faz com que o escritor

mantenha um diálogo em que pode não ser correspondido em seus

questionamentos. A década de 1990 no Brasil não possuía ainda as ferramentas

tecnológicas atuais, em que os escritores podem ver as respostas quase que

instantaneamente ao publicar seus textos. No entanto, mesmo sem obter respostas

deste que Caio chama de você, o que inclui a qualquer um que ler seus textos, o

autor mantém a linguagem dialógica com seus leitores.

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O estudioso Coutinho (2006) destaca um dos aspectos que está presente de

forma constante nas crônicas de uma forma geral e nos textos de Caio: o

engajamento com temas que refletem a sociedade:

E não falta à crônica preocupação social, filtrada pelo viés poético de um observador e crítico atento, que busca, com humor mordaz, denunciar o contexto em que vive. Em sua aparente simplicidade e com a atenção voltada para o “miúdo” da vida, o cronista vai retratando o espírito de seu tempo, e oferece ao leitor fragmentos metonímicos de sua situação no mundo. Seu universo, composto de fragmentos, se estende do registro do voo de um pássaro ou do desabrochar de uma flor à mais densa reflexão sobre o estar no mundo, e com sua pena ele constrói, como um flâneur, a memória de seu tempo e lugar. Aliás, como este último, o cronista é, sobretudo, o observador da cidade, que ele capta em fragmentos no seu aqui e agora. (COUTINHO, 2006, p. 51)

Além da importância para o meio social como um gênero que se consolida na

medida em que se torna uma memória de suas classes e conversa com seus

leitores, outro aspecto, como já dito, pode ser levado em conta nas crônicas: a

linguagem. Por conter características, tais como a informalidade, diálogo aberto com

o leitor e a representação do dia a dia, acerca do que está ocorrendo na sociedade,

as crônicas formam uma espécie de memória sobre o período em que estão

inseridas. Nesse contexto, Caio, ao publicar seus textos nos jornais, aproximou-se

de seus leitores, dividiu com estes suas angústias, exprimiu seus pensamentos,

formando, assim, uma memória deste tempo que esteve ao lado daqueles que

estavam recebendo suas narrativas. Nesse sentido, Bender (1993) ressalta que a

memória é um dos espaços da crônica:

Na crônica, espaço e tempo se confundem muitas vezes, assim como em outros gêneros narrativos; são também inseparáveis da ação. É bom destacar que a crônica, pode ser mais reflexiva, humorística, ainda quando do tipo narrativo, não é muito propícia à ação de muito movimento. (p. 71)

Outra forma de ressaltar a presença da memória nas crônicas é transportá-las

para os livros, haja vista que assim o caráter rememorativo do gênero passa a se

consolidar. Sobre esse aspecto Sá (1999) afirma:

Na ultrapassagem do jornal para o livro, atenua-se o vínculo circunstancial e elimina-se a referência às demais matérias e à própria diagramação. Com isso, o texto adquire maior independência, e o leitor fica estimulado a buscar, no seu próprio imaginário, todas as associações possíveis. (p. 83)

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Uma vez publicada em um livro a crônica minimiza a circunstancialidade e se

torna mais duradoura, já que aqueles textos que se relacionam ao circunstancial não

serão os escolhidos para se encaixar em uma coletânea. Sobre essa ótica, Sá

(1999) destaca: “No momento que a crônica passa do jornal para o livro, temos a

sensação de que ela superou a transitoriedade e se tornou eterna.” (p. 85) É de

grande valia a figura como a dos cronistas, não somente para assuntos que fazem

parte do rol de manchetes diárias, mas também para reconstruir a memória de uma

sociedade. São através das histórias recontadas pelos narradores-repórteres11 que o

caráter rememorativo não se perde.

Sobre a importância da figura como a dos cronistas, Bosi (2001) argumenta

com vistas a consolidar, através das crônicas, os pensamentos dos indivíduos que

cercam a sociedade, para que as lembranças não fiquem à mercê de uma pequena

elite: “destruindo os suportes materiais da memória, a sociedade capitalista

bloqueou os caminhos da lembrança, arrancou seus marcos e apagou seus rastros.”

(BOSI, 2001, p. 19) É imperioso considerar sobre a argumentação do estudioso que

a crônica figura como um registro em uma sociedade fragmentada que é pautada

mais pelo caráter de urgência do que propriamente pelas lembranças que os

indivíduos podem resgatar. Nesse sentido, alguns autores contribuem para a fixação

da crônica na sociedade, cultivando, assim, o caráter de atemporalidade que

caracteriza grande parte dos textos do gênero, tornando a memória como parte

constitutiva das crônicas. Na próxima seção, abordamos como as particularidades

do gênero estão cultuadas em distintos autores e quais são os escritores que

deixaram suas marcas para que este gênero estivesse consolidado no Brasil.

1.3. A crônica e seus autores: um pequeno esboço da crônica brasileira

O caráter híbrido da crônica resultante da mescla da literatura com o

jornalismo transforma-se em um gênero de difícil conceituação. Por outro lado,

algumas peculiaridades que são inerentes a elas facilitam a sua compreensão. O

caráter de atemporalidade que marca algumas crônicas torna a memória como parte

integrante das crônicas, a simplicidade, o caráter sintético e urgente, o coloquialismo

11 Termo utilizado por Sá (1999) para denominar os cronistas.

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elaborado e a oralidade são apenas algumas particularidades deste gênero que se

tornou presente na vida de tantos escritores.

É oportuno observar ainda outra importante especialidade da crônica, que é a

habilidade peculiar que predispõe o cronista a captar com maior intensidade os

sinais da vida que nem sempre são apreendidos pelos leitores. Nas vias da

interpretação, o narrador-repórter repensa a situação da razão com a emoção, e

essa ação de repensar é intitulada por Sá (1999) como lirismo reflexivo. Esse traço,

segundo o autor, está presente nas crônicas do escritor Rubem Braga, como pode

ser observado em sua crônica “O pavão”:

Eu considerei a glória de um pavão ostentando o esplendor de suas cores; é um luxo imperial. Mas andei lendo livros, e descobri que aquelas cores todas não existem na pena do pavão. Não há pigmentos. O que há são minúsculas bolhas d'água em que a luz se fragmenta, como em um prisma. O pavão é um arco-íris de plumas. Eu considerei que este é o luxo do grande artista, atingir o máximo de matizes com o mínimo de elementos. De água e luz ele faz seu esplendor; seu grande mistério é a simplicidade. Considerei, por fim, que assim é o amor, oh! minha amada; de tudo que ele suscita e esplende e estremece e delira em mim existem apenas meus olhos recebendo a luz de teu olhar. Ele me cobre de glórias e me faz magnífico. (BRAGA, 1962, p. 149)12

O autor escreve sobre um pavão, e a simplicidade do tema é exaltada pelo

toque de lirismo reflexivo. Na medida em que Rubem Braga escolhe o pavão como

sua matéria-prima e vai dela às cores, ao grande artista e ao amor, ele está

perfazendo o caminho dos escritores nas redações dos jornais no século XIX:

transformando a simplicidade dos vocábulos para incitar os leitores a se portarem

como mais ativos e reflexivos acerca do que está sendo escrito. Autores como

Rubem Braga instigaram ainda mais a forma de fazer crônica justamente pela

literariedade de seus textos. Ademais, de maneira geral, podemos afirmar que as

características que auxiliam na conceituação das crônicas, tais como caráter urgente

e sintético, simplicidade, qualidade textual, coloquialismo elaborado e caráter de

atemporalidade, podem ser reconhecidas na crônica de Braga. O autor de “O Pavão”

sofreu influência de outros escritores, como Manuel Bandeira e João Rio, e,

conforme explica Sá (1999), esses são considerados como antecessores de todos

12 Texto extraído do livro Ai de ti, Copacabana, de Rubem Braga. p. 149.

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os cronistas brasileiros. Sobre Rubem Braga, Sá (1999) assegura que ele ocupa

lugar de destaque na literatura:

Sua opção é ainda mais corajosa porque, vivendo num país de frases bombásticas, ele cumpre a principal característica do escritor: o despojamento verbal, que implica uma construção ágil, direta, sem adjetivações. Novamente a pressa de viver confere ao narrador-repórter uma característica que se transfere para a narrativa curta por ele produzida, que é a simultaneidade do ato de escrever com o ato de eliminar os excessos. (SÁ, 1999, p. 13)

A liberdade de que goza o cronista acaba permitindo que, por vezes,

transcenda o meramente factual e faça um texto com alto teor literário, com a

qualidade que se espera de uma obra-prima (BENDER, 1993). Rubem Braga é

considerado por Bender (1993) como o cronista-mor da modernidade. A autora

pondera que “com ele o gênero alçou um voo constante e definitivo. Começou a ter

fama como correspondente de guerra na Itália e nem por isso perdeu as

peculiaridades de seu estilo brasileiro.” (p. 49). Braga representa, para a crônica, a

transposição do estilo jornalístico para o literário, aprimorando, assim, este gênero

que se consolidou no Brasil. Bender (1993) ressalta que Braga é considerado o

pioneiro da crônica contemporânea, “difícil um texto seu não ter se tornado

antológico e não pertencer a um livro didático.” (p. 49) .

Além de Rubem Braga, Sá (1999) cita outros nomes que merecem destaque

frente à sensibilidade com as crônicas. Fernando Sabino utiliza a metalinguagem

para demonstrar que a crônica exerce, sim, a inspiração, mas, acima de tudo,

seleciona e pesquisa seus conteúdos. Sá (1999) defende a ideia de que, “a crônica

deve escolher um fato capaz de reunir em si mesmo o disperso conteúdo humano,

pois só assim ela pode cumprir o antigo princípio da literatura: ensinar, comover e

deleitar.” (SÁ, 1999, p. 22) É partir do conteúdo que Sabino procura ensinar os

leitores, através da ação que as palavras possuem, que a vida tem mais sentido

quando compartilhada. Outra característica que Sabino emprega é o distanciamento

para manter um diálogo com os leitores de suas crônicas. Esse distanciamento é

uma estratégia utilizada para ficar mais à vontade e explorar o humor das situações.

Para exemplificar a forma com que Sabino se dirige para seus leitores e a essência

de seus textos, pode ser feita referência ao seu texto “A Última Crônica”. O autor

inicia contando sobre seu trajeto rotineiro:

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A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica. (SABINO, 1965, p. 174)

Nesse momento, o narrador afirma que vê ao fundo do botequim um casal de

“pretos” que acaba de se sentar em uma das últimas mesas ao longo de uma parede

de espelhos. O escritor cria o ambiente para que o leitor possa se situar e continua

narrando sobre as características destas pessoas: “A compostura da humildade, na

contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma

negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre.”

(SABINO, 1965, p. 174). A menina e seus pais compõem o cenário de observação

do narrador: “Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.

Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do

bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um

pedaço de bolo sob a redoma.” (SABINO, 1965, p. 174) Então, o homem atrás do

balcão apanha uma porção de bolo, que é descrito pelo narrador em detalhes: é

amarelo-escuro em uma fatia triangular: “A negrinha, contida na sua expectativa,

olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que

não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa

um discreto ritual.” (SABINO, 1965, p. 174)

O narrador passa a observar cada movimento da família, e a narrativa passa

a girar em torno dos detalhes:

A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim. São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os

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pais se juntam, discretos: "parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura -- ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido -- vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso. Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso. (SABINO, 1965, p. 174)13

Em uma reflexão superficial sobre a crônica de Sabino, é possível perceber

que o narrador de seu texto confidenciou com seus leitores um problema que estava

lhe incomodando, a falta de inspiração para escrever. No mesmo passo, ele utiliza

um fato pessoal de seu cotidiano e transforma o seu olhar de escritor, as suas

reflexões, em cada palavra que é escolhida para elaborar o texto. O seu testemunho

é o que clarifica a simplicidade do relato dos fatos, que versam sobre o aniversário

de uma pessoa que até então era desconhecida. No entanto, quando ele resolve

contar a história dessa menina, ela passa a ser conhecida não só do escritor, mas

sim de todos aqueles que estão lendo sua crônica. Na narrativa, está ainda a

evidência da rotina a que Sabino é submetido, pois, mesmo sem estar inspirado

para escrever, ele precisa adaptar-se ao caráter urgente e sintético do gênero e

encontrar um tema que prenda a atenção de seu leitor.

Com relação ao contexto dos autores que, assim como Sabino, auxiliaram,

através de suas crônicas, na significação e em uma melhor conceituação do gênero,

Sá (1999) cita outro narrador-repórter: Sérgio Porto. O humor que apareceu nos

poemas satíricos de Gregório de Matos reaparece dessa vez nos escritos de Porto.

Ele é o criador de Stanislaw Ponte Preta, o seu pseudônimo nas crônicas

publicadas. Sá (1999) o descreve como:

Sérgio Porto traz a luz o Stanislaw Ponte Preta para retomar a linhagem dos cronistas mundanos que sabem registrar a vida cotidiana, e, acima de tudo, para criticar aquele tipo inculto que inventava “palavras e expressões como ‘piu-piu’, ‘champanhota’, ‘fúria louca’, ‘bola branca’, ‘flor azul’ e outras baboseiras.” Infelizmente Stanislaw não conseguiu eliminar esse tipo – ele ainda existe -, mas soube analisá-lo através do riso popular, caricaturando (se é possível fazer caricatura de uma caricatura) o mais conhecido cronista

13 Texto extraído do livro A Companheira de Viagem, de Fernando Sabino (1965). p. 174.

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mundano, verdadeiro símbolo do festival de besteira que ainda hoje esse país. (SÁ, 1999, p. 31)

Fazendo o leitor rir, Porto demonstra, através de seus escritos, que um

cronista com qualidades negativas contribui para o enfraquecimento da língua. Além

disso, outra carga que está presente na forma com que Porto escreve é demonstrar

que o jornalismo também é uma forma de literatura para registrar os acontecimentos,

mesmo que seja através do riso. Sobre o humor, Sá comenta: “O humor portanto,

assume a função de recuperar a poesia, confirmando que a crônica e seu contexto

jornalístico são uma realização literária sempre.” (SÁ, 1999, p. 33). Além do humor,

Ponte Preta ficou famoso, de acordo com Bender (1993), pela leveza carioca da

linguagem, pela transcrição da oralidade da fala maliciosa, a malandragem que

usava nas crônicas e pelo tom coloquial. Sérgio Porto se esconde ainda por trás de

seu pseudônimo Stanislaw Ponte Preta e através de suas características primordiais

já citadas: humor e ironia.

Seguindo outra tendência de crônicas acerca do humor, estão as do autor que

é citado por Sá (1999), Lourenço Diaferia. Este é mais voltado ao banal e focaliza

acontecimentos mais efêmeros. De acordo com Sá (1999), esses acontecimentos

são narrados em textos organizados de forma que não haja lacunas que possam

impedir o leitor de visualizar a totalidade de ciência. Da mesma forma que Diaferia,

outros cronistas podem ser citados por representarem as peculiaridades das

crônicas, tais como Paulo Mendes Campos e Heitor Cony. No primeiro, de acordo

com pareceres de Sá (1993), muitas de suas crônicas se aproximam do poema em

prosa. Já Carlos Heitor Cony possui representação tanto na literatura quanto no

jornalismo. Souza (2009) declara que, após o golpe militar de 1964, Cony se tornou

o primeiro jornalista a se manifestar contra o regime ditatorial: “A partir daí foi como

se a carreira profissional tanto de jornalista como de romancista enveredasse com

vigor para temas políticos”. (2009, p. 23).

É importante ser lembrado ainda que o lugar de cada um desses autores

neste estudo deve-se pela forma com que abordam a crônica. Pelo mesmo viés,

outros dois nomes que devem estar inseridos nesse rol são Carlos Drummond de

Andrade e Vinícius de Moraes. A principal característica de Carlos Drummond de

Andrade também está nas crônicas, até neste gênero o autor faz poesia, contudo Sá

(1999) alerta que isso ocorre porque ele conhece bem os dois gêneros:

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Dizer que a poesia está presente nas crônicas de Carlos Drummond de Andrade pode até parecer redundância. Afinal, em tudo que ele escreve – seja sob a forma de poema ou de narrativa curta – existe a magia da síntese, o ritmo adequado, o jogo de imagens e o fino humor que nos revela o desgaste da vida e a sua renovação. Mas o fato de ser ele um dos maiores poetas brasileiros não o obriga a fazer poesia quando escreve prosa: se isso acontece é porque Drummond conhece bem os deslimites dos gêneros. (SÁ, 1999, p. 65)

Além dos aspectos ressaltados por Sá (1999) - magia da síntese, ritmo

adequado, jogo de imagens e o fino humor que revela o desgaste da vida e sua

renovação -, outras premissas podem ser observadas nas crônicas de Drummond,

como enfatiza Silva (2006): “Ao focalizar cenas do cotidiano de grandes centros

urbanos, Drummond, sob a graça do riso, traz à tona flagrantes da miséria humana.”

(p. 171). As cenas dos grandes centros estão presentes, como afirma Sá (1999) na

obra Cadeira de Balanço: “Ao dividir o seu livro Cadeira de Balanço em oito seções,

chamou cada uma delas de ‘Cariocas’, aí focalizando os temas onde o núcleo

gerador é a relação invisível mas real entre o morador e sua cidade.” (p. 69) Ao

tematizar o livro acerca da expressão “Cariocas”, a cidade do Rio de Janeiro é

representada na crônica “A cidade sem meninos.” De acordo com Sá (1999), nessa

narrativa, está presente a denúncia da ausência de crianças nos centros urbanos,

como um dos índices de desenvolvimento:

As casas familiares são substituídas por casas comerciais, hoje mais habitadas pela inflação do que propriamente por funcionários e clientes. A vida se transforma e empurra os meninos para outros espaços, eliminando sua lúdica presença desses pontos que se expandem e ameaçam tomar conta de tudo, uma vez que é bem grande o número de edifícios de apartamentos com lojas no andar térreo. Família e comércio se misturam, falta uma clareira para as crianças brincarem, as pessoas envelhecem mais depressa. (p. 70)

Na mesma perspectiva, o cronista-poeta, como intitula Sá (1999), não fantasia

as sensações dos centros urbanos, mas sim as registra através das crônicas,

utilizando recursos estilísticos, contudo sempre lembrando que a crônica oscila entre

o imaginado e o que realmente existe. Assim como Drummond, Vinicius de Moraes

também utiliza como principal ferramenta em suas crônicas a representação da vida.

Acerca dessa premissa, Sá (1999) afirma:

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Enquanto o ficcionista tem o direito de criar acontecimentos, pessoas, datas, locais, etc., em função de uma verossimilhança que consiste na coerência interna do próprio texto, o cronista deve “injetar um sangue novo” em “um fato qualquer, de preferência colhido no noticiário matutino, ou de véspera”, trabalhando, pois, com um conceito de verossimilhança que liga a coerência interna do texto à coerência do fato comprovadamente acontecido. A partir desse real que não foi inventado pelo cronista é que ele injetará sangue novo no relato; isto é, usando “as artimanhas peculiares” ultrapassará os limites do real como é visto por todos nós e alcançará uma dimensão mais profunda: a essência mesma daquilo que o sujeito busca ao recriar um objeto. Nesse momento, o “prosador do cotidiano” também faz ficção. (p. 74)

É no sentido do hibridismo da literatura com o jornalismo que, assim como

Vinicius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade mescla as duas áreas. O relato

dos fatos do cotidiano relaciona-se às premissas jornalísticas, já a subjetividade, que

se pauta no lirismo através de um jogo expresso e o silêncio do discurso, entre o

que está renomeado e a forma de representação, está em consonância com o

produzir literatura. No que tange ao subjetivismo e a relação deste com o cronista,

Sá (1999) afirma: “em suma: o subjetivismo como forma de apreensão do ser.” (p.

76) No entanto, mesmo com a gama de traços que permeiam as crônicas, elas

precisam ser lidas através de um espírito crítico, tal como Sá (1999) chama atenção:

“A crônica, apesar de sua aparente simplicidade – só pode ser valorizada quando a

lemos criticamente, descobrindo sua significação.” (p. 79). Nesse sentido, as

particularidades que compõem a crônica são melhor compreendidas se atreladas à

sua interpretação, como alerta Sá (1999), já que o leitor assume um papel crucial na

construção de sentidos para as crônicas.

Ainda sobre a crônica no Brasil, o pesquisador Francismar Ramírez Barreto,

em sua dissertação de mestrado, enfatiza a relação de Carlos Drummond de

Andrade, Paulo Mendes e Fernando Sabino e outros nomes que estiveram em

consonância com a crônica para melhor representar a importância do gênero frente

à história da literatura no Brasil. Ele inicia por Machado de Assis, que, para o

estudioso, mantém uma relação analítica com a imprensa em meados do século

XIX. Ele cita ainda autores que atestam a credibilidade de Assis frente ao gênero:

Pelo talento que demonstra para tecer os fios invisíveis da sociedade (uma sociedade que parece querer se ocultar), por fazer evidentes as tensões histórico-sociais, pelo sentido crítico ante a construção das informações, por fazer uso de um espírito lúdico, por ter desmistificado a burguesia nacional e por haver anulado alguns vícios do jornalismo do século XIX (como a manipulação por meio da retórica ou o emprego de falsos recursos poéticos), Afrânio Coutinho, José Marques de Melo, Cristiane Costa, Eduardo Portella e Wellington Pereira coincidem ao colocar o texto

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machadiano como um dos que confere personalidade ao gênero no Brasil e ao autor (Machado) como uma espécie de mito fundador da literatura brasileira. (BARRETO, 2007, p. 50)

Machado de Assis, como ressalta Barreto (2007), confere personalidade à

crônica no Brasil, e sua crônica dialoga de forma constante e direta com os seus

leitores. Essa característica pode ser exemplificada na crônica publicada

originalmente na Gazeta de Notícias, no Rio de Janeiro, em 1888. O título do texto é

“5 de abril”, e o autor inicia a crônica com a saudação, “bom dia”, já ao finalizar ele

não assina e tampouco faz menção a uma despedida formal, simplesmente, para

avisar ao leitor que terminou, acrescenta: “boas noites”. Com vistas ao diálogo com

o leitor, essa perspectiva é percebida desde as primeiras palavras:

Hão de reconhecer que sou bem criado. Podia entrar aqui, chapéu à banda, e ir logo dizendo o que me parecesse; depois ia-me embora, para voltar na outra semana. Mas, não senhor; chego à porta, e o meu primeiro cuidado é dar-lhe os bons dias. Agora, se o leitor não me disser a mesma coisa, em resposta, é porque é um grande malcriado, um grosseirão de borla e capelo; ficando, todavia, entendido que há leitor e leitor, e que eu, explicando-me com tão nobre franqueza, não me refiro ao leitor, que está agora com este papel na mão, mas ao seu vizinho. Ora bem! (ASSIS, 1983)

Com o fragmento, é possível observar a forma com que o escritor mantém as

relações com o leitor. “Senhor” e “leitor” são os termos que o narrador utiliza para

denominar aquele que está lendo, além disso, Assis até mesmo faz menção de

querer brigar com o leitor se não lhe respondesse, chamando-o de “malcriado”,

“grosseirão de borla e capelo”. Além desse diálogo entre narrador e leitor, a

linguagem é outra grande marca de Assis:

Feito esse cumprimento, que não é do estilo, mas é honesto, declaro que não apresento programa. Depois de um recente discurso proferido no Beethoven, acho perigoso que uma pessoa diga claramente o que é que vai fazer; o melhor é fazer calado. Nisto pareço-me com o príncipe (sempre é bom parecer-se a gente com príncipes, em alguma coisa, dá certa dignidade, e faz lembrar um sujeito muito alto e louro, parecidíssimo com o Imperador, que há cerca de trinta anos ia a todas as festas da Capela Imperial, pour étonner de bourgeois; os fiéis levavam a olhar para um e para outro, e a compará-los, admirados, e ele teso, grave, movendo a cabeça à maneira de Sua Majestade. São gostos) de Bismark. O príncipe de Bismark tem feito tudo sem programa público; a única orelha que o ouviu, foi a do finado Imperador, — e talvez só a direita, com ordem de o não repetir à esquerda. O Parlamento e o país viram só o resto. (ASSIS, 1983)

A forma com que Machado de Assis utiliza a linguagem e a escolha lexical de

sua narrativa é peculiar ao contexto em que o autor está inserido. Nesse sentido, é

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válido considerar que os temas também se voltam a esse contexto, e, para

exemplificar isso, enquanto Caio, por exemplo, cita, em suas crônicas, a cantora Rita

Lee, Machado de Assis faz menção a Beethoven. Essa distinção é um processo

natural também acerca das temáticas, que podem ser distintas ao longo dos

séculos. A narrativa prossegue com as explicações de que autor e leitor se

encontrarão uma vez por semana, e a forma com o que o autor utiliza a linguagem

metafórica representa a literariedade da crônica:

Portanto, bico calado. No mais é o que se está vendo; cá virei uma vez por semana, com o meu chapéu na mão, e os bons dias na boca. Se lhes disser desde já, que não tenho papas na língua, não me tomem por homem despachado, que vem dizer coisas amargas aos outros. Não, senhor; não tenho papas na língua, e é para vir a tê-las que escrevo. Se as tivesse, engolia-as e estava acabado. Mas aqui está o que é; eu sou um pobre relojoeiro, que, cansado de ver que os relógios deste mundo não marcam a mesma hora, descri do ofício. A única explicação dos relógios era serem iguaizinhos, sem discrepância; desde que discrepam, fica-se sem saber nada, porque tão certo pode ser o meu relógio, como o do meu barbeiro. (ASSIS, 1983)

Assim como os outros cronistas, Assis também descreve a sua intimidade

através da crônica, pois conta aos seus leitores que irão estar juntos uma vez por

semana no espaço do jornal, mas também já os deixa informados de que, através de

suas crônicas, poderão encontrar assuntos polêmicos, já que ele “não tem papas na

língua.” O texto tem prosseguimento quando o narrador explica por que abandonou

seu ofício:

Um exemplo. O Partido Liberal, segundo li, estava encasacado e pronto para sair, com o relógio na mão, porque a hora pingava. Faltava-lhe só o chapéu, que seria o chapéu Dantas, ou o chapéu Saraiva (ambos da chapelaria Aristocrata); era só pô-lo na cabeça, e sair. Nisto passa o carro do paço com outra pessoa, e ele descobre que ou o seu relógio está adiantado, ou o de Sua Alteza é que se atrasara. Quem os porá de acordo? Foi por essas e outras que descri do oficio; e, na alternativa de ir à fava ou ser escritor, preferi o segundo alvitre; é mais fácil e vexa menos. Aqui me terão, portanto, com certeza até à chegada do Bendegó, mas provavelmente até à escolha do Sr. Guaí, e talvez mais tarde. Não digo mais nada para os não aborrecer, e porque já me chamaram para o almoço. (ASSIS, 1983)

O contexto em que Assis está inserido novamente aparece de forma clara na

crônica, em 1888, quando o regime a que o escritor estava submetido não era

democracia, mas sim a monarquia, por isso a recorrência de reis e rainhas em suas

crônicas. O autor termina a crônica, comentando sobre a sua falta de familiaridade

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com o meio impresso e que, por ser a primeira crônica, ele ainda não sabe o quanto

escrever:

Talvez o que aí fica, saia muito curtinho depois de impresso. Como eu não tenho hábito de periódicos, não posso calcular entre a letra de mão e a letra de forma. Se aqui estivesse o meu amigo Fulano (não ponho o nome, para que cada um tome para si esta lembrança delicada), diria logo que ele só pode calcular com letras de câmbio — trocadilho que fede como o Diabo. Já falei três vezes no Diabo em tão poucas linhas; e mais esta, quatro; é demais. (ASSIS, 1983, s.p.)

A linguagem, os assuntos, a forma com que Assis se expressa são

pertinentes, como já registrado, ao seu contexto de produção. Esses aspectos

permitem deduzir as transformações que a crônica foi sofrendo ao longo dos anos.

Para melhor compreender essa evolução, é possível citar outros autores, que já

foram mencionados nesse estudo, tais como José de Alencar, que se consagra

como um dos primeiros cronistas nacionais da segunda metade do século XIX.

Sobre as crônicas de José de Alencar, Paranese (1998) observa que um dos traços

relevantes são os temas que o escritor aborda:

O cronista comporta-se na escrita como flâneur pelas ruas da cidade. Sem fixar-se em nenhum assunto, Alencar revoluteia entre as difíceis questões políticas, jurídicas, econômicas, delas saltando para o espetáculo da vida mundana: bailes, passeios, comemorações, festejos, os espetáculos líricos. (...) Dois são, no entanto, os assuntos que mais se ocupa: a política e o teatro lírico. Escritas a partir de uma intensa participação na vida social de seu tempo, as crônicas de Alencar nunca abandonam as “louçanias do estilo”, muito embora o flagrante à vontade com que o escritor se dirige a seus destinatários, especialmente suas leitoras, que ele as sabe em maioria. (PARAENSE, 1998, p. 33)

Após José de Alencar, vieram Joaquim José da França Junior e Joaquim

Manuel Macedo. Se o sentido genérico da palavra crônica for utilizado – como

registro de uma comunidade ou época, ainda outros exemplos podem ser

ressaltados, tais como O Ateneu, de Raul Pompeia, A Moreninha, de Joaquim

Manuel Macedo, Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antonio Almeida.

Essas obras podem ser designadas, como ressalta Laurito (1993), como crônicas de

costume, já que fixam, cada obra em seu contexto, tipos, hábitos e usos da

sociedade do Rio de Janeiro em tempos passados.

Acerca das transformações das crônicas, se Machado de Assis é

contemporâneo ao século XVIII, Olavo Bilac pode ser citado como referência às

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transformações do gênero no século XIX. Sobre o autor e o contexto no qual o

gênero se firma, Candido (1989) afirma:

A leitura de Bilac é instrutiva para mostrar como a crônica já estava brasileira, gratuita e meio lírico-humorística, a ponto de obrigá-lo a amainar a linguagem, descascá-la dos adjetivos mais retumbantes e das construções mais raras, como as que ocorrem na sua poesia e na prosa das suas conferências e discursos. Mas que encolhem nas crônicas. É que nelas parece não caber a sintaxe rebuscada, com inversões freqüentes; nem o vocabulário “opulento”, como se dizia, para significar que era variado, modulando sinônimos e palavras tão raras quanto bem-soantes. Num país como o Brasil, onde se costumava identificar a superioridade intelectual e literária com grandiloqüência e requinte gramatical, a crônica operou milagres de simplificação e naturalidade, que atingiram o ponto máximo nos nossos dias. (s/d)

Sobre o estilo, formas e conceitos da crônica, o estudioso prossegue suas

explanações, ressaltando que um dos grandes prestígios da crônica moderna é,

então, o sintoma do progresso acerca na busca por uma oralidade escrita:

Na quebra do artifício e aproximação com o que há de mais natural no modo de ser do nosso tempo. E isto é humanização da melhor. Quando vejo que os professores de agora fazem os alunos lerem cada vez mais as crônicas, fico pensando a importância deste agente de uma visão mais moderna na sua simplicidade reveladora e penetrante. (CANDIDO, 1989)

Na medida em que as crônicas possuem as particularidades supracitadas

pelo estudioso, é imperioso considerar que, por ser um gênero presente tanto na

literatura quanto no jornalismo, outros nomes podem ser ressaltados conforme

atesta Barreto (2007), que, nessa perspectiva, faz referência a Lima Barreto, João

do Rio com sua crônica-reportagem, Mario de Andrade, Manuel Bandeira, Oswald

de Andrade, Rachel de Queiroz, e até mesmo as recentes personalidades (algumas

já citadas), Rubem Braga, Nelson Rodrigues, Carlos Drummond de Andrade, Paulo

Mendes Campos, Fernando Sabino, Hélio Pellegrino, Carlos Heitor Cony, Otto Lara

Resende, Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta), Luis Fernando Veríssimo, José

Carlos Oliveira, Lourenço Diaféria, Mario Prata, Elsei Lessa, Ivan Ângelo, Ivan

Lessa, João Antonio, Zuenir Ventura, Clarice Lispector, Vinícius de Moraes, Antônio

Maria, Ferreira Gullar, Moacyr Scliar, Fabricio Carpinejar, Danuza Leão e, não

menos importante, Caio Fernando Abreu.

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Quanto aos escritores, Candido (1989), considerando a evolução e a

transformação que a crônica foi sofrendo ao longo dos séculos, menciona a ideia de

que há um traço comum entre esses autores:

Deixando de ser comentário mais ou menos argumentativo e expositivo, para virar uma conversa aparentemente fiada, foi como se a crônica pusesse de lado qualquer seriedade no tratamento de problemas. É curioso como elas mantêm o ar despreocupado, de quem está falando de coisas sem maior consequência e, no entanto, não apenas entram fundo no significado dos atos e sentimentos do homem, mas podem levar longe a crítica social. (CANDIDO, 1989)

Tomando-se como referência a proposição de Candido (1989) acerca de a

crônica construir a crítica social, Caio reproduz essa prerrogativa em suas narrativas,

na medida em que trata dos assuntos com o “ar despreocupado”, e assim seu texto

mostra-se atento a uma das observações de Candido (1989). O escritor utiliza o

subjetivismo no sentido que é entendido por Sá (1999) e que já fora citado neste

estudo, “como apreensão do ser” (p. 76), dessa forma, a crítica social aliada à

compreensão dos fatos cotidianos, com a representação dos “homens” pode ser

verificada de maneira notória nas narrativas de Caio.

Isso posto, é sobre Caio que o próximo tópico trata, observando-se ainda os

traços de suas narrativas, focalizando como o escritor construiu seus textos, a forma

com que apresenta suas obras tanto na prosa, quanto na novela, romance e por fim

a crônica. Mas, antes de conhecer os textos do autor, é válido conhecer a sua

história. A seguir, faz-se uma breve apresentação de Caio e sua obra, para então

abordá-lo enquanto escritor e jornalista e então ressaltar as particularidades de sua

crônica, a dificuldade em encontrar uma teoria que dê conta do gênero nos escritos

do autor, a forma com que está estruturada e a sua relação com a memória e a

sociedade.

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2. A NARRATIVA DE CAIO FERNANDO ABREU

2.1. A narrativa de Caio: do romance à crônica

Caio é um autor que transitou entre a poesia e a prosa, escrevendo em

diversos gêneros, entre eles, poemas, contos, novelas, peças teatrais, romances e

crônicas. Sua carreira literária iniciou em 1966 com a publicação de seu primeiro

conto, “O príncipe sapo”, na revista Cláudia. Nesse mesmo ano, o autor deu início à

escritura do primeiro romance, Limite Branco14, produzido na pós-adolescência. A

busca da identidade é o tema dessa narrativa.

Durante a sua trajetória literária, o escritor também se dedicou a outros

trabalhos, atuando como redator de revistas. Além da revista Cláudia, o escritor

gaúcho trabalhou em distintos segmentos editoriais do sudeste brasileiro, fez parte

ainda da equipe editorial das revistas Nova, Manchete, Pais e Filhos e Pop,

conforme Paula Dip (2009) registra na biografia sobre o autor intitulada Para Sempre

teu Caio F.: Cartas, Conversas, Memórias de Caio Fernando Abreu. Nessa obra,

Paula Dip descreve o perfil do escritor quando atuava nos periódicos da editora

Abril:

Parece que foi ontem: ele era alto, magro, pernas longas, pés descalços e caminhava pelos corredores da Editora Abril, num ritmo quase baiano, não fosse gaúcho. Jeans, camiseta, óculos redondinhos, lembrava John Lennon. Fumava sem parar, roia as unhas e passava a mão nos cabelos semilongos, um misto de príncipe Valente com cantor de rock. Tinha voz grave e lânguida, articulava as palavras, saboreando-as lentamente. Sua risada era solta e cheia de notas agudas, resquício dos tempos em que tinha voz fina e muita vergonha de falar. Diz a lenda que Caio demorou a engrossar a voz, bem mais tarde que os meninos de sua idade, a maior saia justa. Mas no auge dos 30 anos, quando nos encontramos, ele havia superado isso. (DIP, 2009, p. 19)

Paula Dip ainda relata em sua obra que Caio chegou até centro do país em

busca do jornalismo. A amizade da escritora com Caio ocorre justamente pela

proximidade que eles tinham através das redações dos jornais, eles se conheceram

na redação da editora Abril (DIP, 2009). Além de integrar a primeira parte da revista

Veja, Caio foi também editor da revista Leia Livros e colaborou em diversos jornais,

tais como Correio do Povo, Zero Hora, O Estado de São Paulo e Folha de São

14 Limite Branco foi o primeiro livro de Caio Fernando Abreu, no entanto, só foi publicado após Inventário do Irremediável.

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Paulo. Nesses jornais além de realizar trabalhos como os jornalistas, escrevendo

reportagens, em O Estado de São Paulo, Caio era editor do Caderno 2. Logo após,

em 1969, o autor recebeu o prêmio Fernando Chinaglia da União Brasileira de

Escritores pelo livro de contos Inventário do Irremediável. De acordo com o parecer

de Bizello (2006), os textos dessa obra refletem a situação social e histórica do

contexto em que foram produzidos e rompem com o que era até então estabelecido

pela tradição literária, o que incita a presença de temáticas acerca da solidão e

medo na literatura de Caio.

Nesse sentido Leal (2002) enfatiza que Inventário do Irremediável é composto

por narrativas que raramente ultrapassam cinco páginas e a obra está dividida “em

cinco inventários menores: ‘do amor’, ‘da morte’, ‘da solidão’, ‘do espanto’, cada qual

com vários contos, e o ‘do irremediável’, que é ao mesmo tempo o último ‘capítulo’ e

o mesmo texto.” (LEAL, 2002, p. 46) Em tal perspectiva, a narrativa da obra

apresenta a sensibilidade apurada do autor com relação ao mundo e um exame

detalhado sobre a representação dos personagens com o social. Destarte, Pereira

(2008) enfatiza outro aspecto de Inventário do Irremediável, já que, para a

pesquisadora, é a partir desta obra que fica mais exposta a influência de Clarice

Lispector em Caio Fernando Abreu15.

À obra Inventário do Irremediável, somam-se mais oito voltadas a contos e

ainda dois romances, três novelas, uma peça teatral intitulada “A Maldição do Vale

Negro”.16 Devido à qualidade literária de seus textos, Caio Fernando Abreu recebeu

diversos prêmios17, entre eles o Prêmio Jabuti, pelos romances Triângulo das

Águas, Os Dragões não conhecem o Paraíso e Onde Andará Dulce Veiga?

Na perspectiva das narrativas que marcaram a carreira literária de Caio

Fernando Abreu, se em Inventário do Irremediável a premissa incorria em torno da

introspecção e solidão, em O Ovo Apunhalado (1975), Pereira (2008) destaca que

tal obra marca a passagem do plano da individualidade para a alteridade. Nas

15 Inventário do Irremediável é o livro que mais deixa exposta a influência que Clarice Lispector tem em Caio, por ser uma obra em que as narrativas voltadas a autoinvestigação e o conhecimento interior do escritor, ficam mais expostas, tal como ocorre com as narrativas de Clarice. (PEREIRA, 2008) 16 Outros textos foram reunidos por autores para publicar as obras de Caio, tais como a antologia “Mel & Girassóis” e os livros A Vida Gritando nos Cantos e Pequenas Epifanias, essas últimas obras recolhendo suas crônicas. 17 Dentre os diversos prêmios recebidos pelo autor podem-se citar a menção honrosa do Prêmio Nacional de Ficção pela obra O Ovo Apunhalado, que também foi reconhecido pela Revista Veja como um dos melhores livros do ano, prêmio status de literatura pelo conto “Sargento Garcia”.

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palavras da pesquisadora: “ressalta a solidão dos grandes centros, a ausência de

interlocução, o temor em relação à imprevisibilidade do futuro, experiências de dor

dos indivíduos que não conseguiram vencer.” (p. 26). As experiências dos

personagens que estão representados na obra são decorrentes do contexto em que

o livro de contos foi produzido. Já Bizello (2006) menciona a ideia de que essa obra

representou uma denúncia do momento histórico que o Brasil estava vivenciando,

através da criação de alegorias para criticar a sociedade de consumo que pode ser

descrita como desumanizada. A autora enfatiza ainda o valor e a recepção da obra:

“embora a obra de Caio tenha sido julgada como um atentado aos bons costumes e,

por isso, tenha sofrido alguns cortes, foi considerada uma das melhores do ano pela

revista Veja.” (BIZELLO, 2006, p. 63) Por estar consolidado em uma produção

literária reconhecida com nuances da escrita através de metáforas, O Ovo

Apunhalado, segundo Costa (2008), constitui-se de uma narrativa curta no formato

do conto. Para a estudiosa, isso foi uma forma de “responder às necessidades do

tempo na urgência de comunicar os acontecimentos e suas ressonâncias

existenciais.” (2008, p. 11).

Um dos contos publicados em O Ovo Apunhalado que representa a urgência

em comunicar acontecimentos, que possui metáforas e que apresenta ainda uma

denúncia à sociedade capitalista desumanizada é “A Gravata”. Esta narrativa expõe

a situação de um indivíduo que é dominado pela sociedade, demonstrando toda a

sua submissão a uma identidade individual e a padrões de consumo estimulados

pela Indústria Cultural18 e pelo sistema capitalista. O enredo da história pauta-se em

um personagem principal que é movido pela ideia compulsiva de comprar uma

gravata, e, quando isso ocorre, ele acaba morrendo. A morte neste contexto

representa a autodestruição a que cotidianamente as pessoas são alvo quando se

rendem a um consumismo em uma sociedade pautada pelo capitalismo. Leal (2002)

observa ainda que, além da “Gravata”, os contos “Ascensão e queda de Robbéa,

manequim & robô” e “A margarida enlatada” também fazem de forma explícita uma

crítica irônica à sociedade de consumo.

18 A Indústria Cultural é parte integrante das sociedades contemporâneas. É difícil refletir a respeito deste contexto sem vinculá-la ao papel e ao poder que o consumo representa neste cenário. É praticamente impossível, neste âmbito, encontrar um indivíduo que não seja consumidor da Indústria Cultural, mesmo indiretamente.

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Com vistas a sua intersecção na representação da sociedade, O Ovo

Apunhalado se sobressaiu, de acordo com Costa (2008), no cenário da recepção em

que as obras produzidas por Caio estão calcadas: “A crítica sobre O Ovo

Apunhalado se destaca dos demais livros, para depois se estabilizar, aumentando

sua frequência cada vez que um novo livro é lançado.” (p. 12) Em comparação às

outras duas obras de Caio, a estudiosa pondera que Limite Branco e Inventário do

Irremediável assinalam a fase inaugural do escritor, ainda com resquícios de uma

prosa de caráter documental. Contudo, é a partir de O Ovo Apunhalado que o

escritor conquista notoriedade frente à crítica.

Assim como O Ovo Apunhalado, Pedras de Calcutá também foi publicado no

decênio de 1970. De maneira análoga, em Pedras de Calcutá os problemas da

década em que foi produzido também ficam evidentes em sua narrativa. Nesse

sentido, estão as imagens enigmáticas e a estrutura fragmentada, em que os

problemas sociais e o interior dos personagens estão inseridos em um contexto de

repressão. É plausível, então, inferir o engajamento que o autor possui com o

contexto do qual fez parte e o diálogo que suas narrativas estabelecem com a

realidade vigente.

Ainda com relação às obras que marcaram a carreira literária de Caio, é

oportuno lembrar que o livro de contos Morangos Mofados marcou a sua geração e

foi um dos maiores sucessos editoriais da década de 1980. Esse livro marca a

trajetória de personagens que se relacionam com perspectivas distintas propostas

pelo título da obra, já que vão da esperança sinalizada pelos morangos à descrença

sugerida pelo mofo. Morangos Mofados é composto por uma organicidade interna

que abrange três fases: “o mofo”, “os morangos” e por fim “os morangos mofados”.

Os contos desta coletânea também possuem um diferencial, eles não apresentam

uma narrativa cronológica, mas sim estão preocupados com o estado emocional dos

personagens. Nas palavras de Leal (2002):

Os contos, ao invés de centrarem sua atenção na apresentação de uma sequência de fatos, no enredo, eles se atem a descrições de estados emocionais ou existenciais das personagens. São como que mapas, quadros, retratos que expõem paisagens íntimas. (p. 53)

Outro aspecto relevante é a forma como Caio Fernando Abreu utiliza a sua

perspectiva de narrador. Mesmo sendo em primeira pessoa, a narrativa do autor

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apresenta um distanciamento autocrítico, autoirônico. É comum nos textos do

escritor uma narrativa centrada no eu, e, quando isso acontece, os contos

apresentam uma relação singular entre narrador/personagem. Os textos em primeira

pessoa contribuem para intensificar a relação entre literatura e o meio social, e Leal

(2002) afirma, nesse sentido, que, “no universo dos contos de Caio Fernando Abreu,

todas as personagens se angustiam, todas lidam com a sua própria fragilidade,

mesmo que se situem dentro dessa ou daquela classe social.” (LEAL, 2005, p. 56)

Nessa esteira, os principais focos do autor em seus textos pautam-se nas relações

vigentes na sociedade.

Já com relação ao contexto em que Caio está inserido, Carlos Alberto

Messeder Pereira (2005) explica a mudança de comportamento dos indivíduos em

decorrência do regime político vivido no Brasil nos anos de 1969 a 1974:

Havia uma revolução do comportamento em processo, a qual implicava o abandono de padrões rígidos de conduta e estilo - a expressão “sem lenço, sem documento” ganhava ares cada vez mais críticos. Testemunhava-se a invenção de formas de contestação que partiam da crença em um espaço alternativo ao “sistema”, espaço esse que se constituía verdadeira trincheira de luta contra a dominação de uma “direita” encarada criticamente, cada vez mais, de um ângulo não apenas político, mas também cultural e comportamental. (PEREIRA 2005, p. 91)

Os espaços alternativos ao sistema, que são mencionados por Pereira e as

transformações deste decênio, implicam o surgimento dos movimentos de

expressão dos anos 1970, incluindo, sob essa ótica, jornais de opiniões fortes e que

reivindicavam mudanças. Cardoso (2007) aponta a Era Desenvolvimentista como

sendo a que promoveu a expansão do jornalismo, televisão e a publicidade. Estes

campos que eram recentes no contexto brasileiro justificam o desenvolvimento de

uma linguagem mais objetiva, já que precisavam alcançar uma população mais

ampla, justamente por seu caráter de mudanças. Por conta disso, os escritores

começaram a experimentar novas formas de atuação literária, começando o

enfrentamento ao regime social político vigente: “daí a postura de negação e

invenção marcar o perfil destas novas representações narrativas.” (CARDOSO,

2007, p. 07) A estudiosa ainda relaciona a essas novas representações as

composições literárias associadas às temáticas notadamente marginais, essas que

também estão em consonância com a literatura de Caio Fernando Abreu. Além das

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temáticas marginais, Pereira (2008) destaca a presença da poesia marginal neste

contexto:

Essa poesia agregava tanto artistas que vinham da década de 1960 envolvidos com a vanguarda do Concretismo e com o engajamento do CPCs (Centros Populares de Cultura) como pessoas que ingressavam na vida artística naquele início da década de 1970. (2008, p. 21)

Costa (2008) afirma que o vetor dominante destas obras literárias é a reflexão

sobre o programa dos mecanismos de poder, domínio e a consequente

desigualdade social. Com base nessas premissas, é possível reconhecer a

importância desse contexto por ser recorrente na literatura de Caio Fernando Abreu.

Em análise convergente, Pereira (2008), compartilhando reflexões de Hohfeldt,

ressalta a forma com que o escritor gaúcho cria personagens marginais que estão

em consonância com o contexto dos anos 1970:

Para Hohfeldt, Caio pontua de diferentes formas e com um lirismo intenso, a localização marginal dos jovens da década de 1960 a 1970 na sociedade brasileira, com extrema sensibilidade em relação a seus iguais, reconhecendo nos conflitos do outro um espelho dos seus próprios. (p. 29)

Ao reconhecer os conflitos de uma sociedade que vivenciou o contexto sócio-

histórico marcado por autoritarismo, censura e violência, Caio é apontado como o

porta-voz das gerações de 1960 e 1970. Essa geração que é veemente marcada

pelos contextos do pós-guerra, golpe militar do Brasil (em 1964), Ditadura Militar,

Guerra do Vietnã, dentre outros, está representada nas obras do escritor, através de

uma literatura com forte teor intimista:

Através da literatura, sob uma perspectiva intimista, Caio expressa as vivências e os conflitos psicológicos na visão da juventude oprimida por uma sociedade marcada pelas divisões, numa estrutura de dominação cujos valores são baseados no poder e no consumo, relegando a um segundo plano, ou, na maior parte das vezes, excluindo os valores pessoais. O escritor não apenas dá seu depoimento, mas questiona as imposições da sociedade, seus condicionamentos e padrões de conduta e denuncia a insatisfação diante da realidade, através de personagens solitários, fragmentados, caracterizados pelo desencanto, pela dor e pelo sofrimento. (COSTA, 2008, p. 11)

Em conformidade com as ideias de Costa (2008), a estudiosa Pereira (2008)

discute os recursos estilísticos que eram utilizados por Caio em suas narrativas que

contextualizavam a geração dos anos 1970, como a linguagem codificada, a

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aproximação com a musicalidade e o cinema, que também está atrelada ao contexto

que o autor reproduz nas histórias que criou:

Sua literatura renova a complexidade da desilusão da juventude de 1970, pois, além de incorporar a seu texto todas as frustrações dessa geração, assume também suas predileções artísticas, fazendo uso da musicalidade, do refrão musical, das técnicas cinematográficas de montagem, do flashback de muita plasticidade, sugerindo como que um movimento de câmara por trás da narração. (p. 27)

A abordagem social de Caio, através dos elementos citados pela autora,

incorre de sua sutileza e das metáforas que se consolidam na construção de uma

narrativa particular que se utiliza também de elementos externos aos textos.

Pautando-se no sujeito excluído e em trânsito, as narrativas do escritor, mesmo sem

descrever de maneira contundente a Ditadura Militar, conduzem os relatos de suas

obras para a representação de um sistema repressor, cujos personagens são

concebidos através das exclusões. Esses fatos implicam, na visão de Bizello (2006),

o fato de o escritor Caio Fernando Abreu estar profundamente conexo com a

realidade histórica do Brasil, utilizando algumas estratégias textuais para esse fim:

O escritor cria jogos de linguagem, explora diálogos e monólogos e capta os detalhes da expressão humana. Com suas personagens agride o “status quo” dominante e desmistifica a visão de identidade una, pois apresenta indivíduos de perfis opostos aos exigidos pela sociedade tradicional: são homens e mulheres fragmentados e destituídos de identidade que vivem as mazelas sociais e psicológicas do século XX. (BIZELLO, 2006, p. 68)

Sob o viés apresentado pela autora, é possível considerar que, neste contexto

de indivíduos que apresentam uma identidade oposta aos esquemas tradicionais,

Caio integra o conjunto de escritores que produzem ficção urbana, de vertente

intimista. A literatura urbana é concedida por representar personagens e temáticas

ligadas aos grandes centros. Costa (2008) atribui à evolução tecnológica e industrial

um caráter capitalista, ocasionando, assim, uma sociedade com indivíduos

desequilibrados, isolados e voltados somente para si. Nessa perspectiva, ela afirma

que a literatura intimista reflete acerca desse processo, apresentando uma ótica

centrada na interioridade dos personagens e na psicologia individual, cujo

procedimento narrativo principal é a introspecção. Nas palavras de Costa (2008):

“Esse recurso é explorado nos textos de Caio, onde muitas vezes ocorre o monólogo

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interior e o fluxo de consciência, a narrativa em primeira pessoa, o discurso direto

livre, o aspecto onírico.” (p. 10)

Nesse sentido, os personagens de Pedras de Calcutá e Morangos Mofados

fixam-se predominantemente em centros urbanos, enquanto na obra escrita

anteriormente, O Ovo Apunhalado, os personagens encontram-se nos territórios

urbanos ou em deslocamento das pequenas cidades com destino às grandes

metrópoles. Ao estar inserido nestas temáticas, Caio distancia-se dos costumeiros

eixos da literatura sul-riograndense, em que centram seus debates em torno do

regional. Para Cardoso (2007), o afastamento desses temas decorre de uma reação

ao arbitrário regime militar e pelo seu engajamento frente a realidade que o circunda.

O contexto em que Caio Fernando Abreu está inserido auxilia nesse aspecto,

já que as suas obras refletem o posicionamento do autor em relação ao ser humano

e à realidade dos indivíduos em um contexto social e histórico marcado por

adversidades. Sob essa perspectiva, as abordagens foram registradas na literatura

do escritor através de uma linguagem que, segundo Rezende e Tartáglia (2010), “se

desenvolveu acima dos convencionalismos de qualquer ordem, evidenciando uma

marca própria, justamente com uma linguagem fora dos padrões tradicionais

vigentes” (p. 32). A ideia das autoras pode ser confirmada através de alguns

elementos formais que evidenciam uma tendência do escritor em romper com os

padrões tradicionais em suas narrativas, tais como a ausência de pontuação,

narrativas fragmentadas e a alternância da posição do narrador sem a devida

marcação para o leitor.

São com essas características formais e linguísticas que Caio publica, no

decênio de 1980, a novela Triângulo das Águas. A obra é marcada pelas temáticas

da solidão, de personagens que representam almas perdidas em busca de algo,

pela presença da astrologia e o tom confessional desesperado. Triângulo das Águas

é composta por três novelas: “Pela Noite”, “O Marinheiro” e “Dodecaedro”, e, sobre

essas narrativas, Porto (2010) advoga que o simbolismo pode ser identificado nelas.

Na primeira, de acordo com a estudiosa, ocorre uma insatisfação e um

desencantamento dos personagens principais: Pérsio e Santiago: “diante de um

mundo circundante e duas buscas de refúgio para a realização de seus desejos e

amar.” (2010, p. 24). Já em “O Marinheiro” Porto (2010) ressalta outras

características que assolam os personagens: “a angústia e o sentimento de

escuridão assolam o personagem e fazem-no superar adversidades e encontrar o

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cosmos paradisíaco desejado.” (2010, p. 25) E por fim em “Dodecaedro” ocorre uma

síntese das trajetórias de personagens esboçados em outras obras.

Na década de 1980, Caio publica o livro de contos Os Dragões não conhecem

o Paraíso, em que são apresentados personagens excluídos como nas obras

anteriores, entretanto, em especial, nessa ocorre a predominância em grupos como

de marginais, homossexuais, alienados, solitários, e todos estes giram em torno de

um mundo que está em transformação. De acordo com Cardoso (2007), a obra gira

basicamente em torno das relações afetivas: “A obra, segunda prefácio do escritor,

funciona como um romance-móbile, em que uma peça esclarece, amplia, contempla

a outra para que, no todo, constituam uma unidade.” (2007, p. 74)

Na sequência cronológica, o escritor gaúcho publica o romance Onde Andará

Dulce Veiga? O pesquisador Anselmo Peres Alós (2007), em sua tese de

Doutorado, A letra, o corpo e o desejo: uma leitura comparada de Puig, Abreu e

Bayly, serve-se de pressupostos de teorias feministas, estudos narratológicos e a

perspectiva queer para a realização de uma leitura crítica acerca de três romances,

um argentino de 1976, um peruano de 1994 e Onde andará Dulce Veiga?, publicado

em 1990. A perspectiva de Alós é importante nesse estudo, pois analisa o romance.

O estudioso cita Caio como sendo reconhecido pela crítica literária por seus contos,

romances e demais produções textuais.

Mesmo não subvertendo as convenções formais da narrativa, o olhar singular

de Caio sobre a existência sexual ocorre no sentido de desestabilizar as categorias

identitárias polarizadas em torno da homossexualidade e heterossexualidade. Nas

palavras de Alós (2007): “negando uma ‘gênese’ ou ‘origem’ para o comportamento

homossexual.” (p. 19) Os personagens que Caio constrói em suas narrativas

exemplificam a afirmação de Alós, uma vez que não estão calcados na origem

biológica de sua sexualidade, mas, sim, no encontro de almas, isto é, independente

de ser mulher ou homem, o que Caio enfatiza em seus textos é que o amor não está

relacionado ao sexo. Desse modo, as relações afetivas podem ocorrer entre dois

homens, ou duas mulheres, pois o que interessa é o encontro de almas entre duas

pessoas.

A perspectiva de Alós (2007) sobre o romance de Caio também pode ser

estendida aos contos do escritor. Em “Terça-Feira Gorda”, conto do livro Morangos

mofados, em linhas gerais, a temática homoerótica é o eixo central dessa narrativa,

em que os personagens mantêm abertamente relações, opção que é condenada por

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outras personagens que não aceitam essa situação. Os personagens principais se

conhecem em um baile de carnaval e após demonstrar a sua opção sexual são

brutalmente agredidos pelas pessoas. O narrador-personagem frisa a expressão

“por acaso”, afirmando, assim, que o encontro de dois homens seria o encontro de

duas almas e não gêneros ligados à sexualidade, reafirmando desse modo, a

perspectiva de Alós (2007) acerca das categorias identitárias.

Sobre o romance de Caio, Onde Andará Dulce Veiga? que conta a história de

uma jornalista que busca encontrar Dulce Veiga, uma cantora desaparecida há

anos, Alós (2007) afirma que uma das vertentes críticas com maior interpretação é

aquela que explora as relações entre o texto e os primeiros impactos na sociedade

acerca da epidemia da AIDS que atingiu escalas planetárias no final do século XX.

Esse é um dos motivos que, para Alós (2007), estão atrelados aos estudos que

levaram vários pensadores, como Severino Albuquerque, a se questionarem sobre a

doença e seus reflexos na literatura do escritor gaúcho:

Na esteira dos estudos sobre literatura e AIDS, Severino Albuquerque dedica um pequeno capítulo de seu livro (intitulado Tentative Transgressions: Homessexuality, AIDS and Theather in Brazil) para analisar a dramaturgia de Caio Fernando Abreu. Em breve nota, assinala também a pertinência de se enfocar o tema da AIDS na leitura do romance Onde Andará Dulce Veiga?. (ALÓS, 2007, p. 90)

Acompanhando as ideias propostas por Alós, pode-se dizer que as narrativas

de Caio, mesmo que apontem para uma possível interpretação de temas que fazem

parte do cotidiano do autor, apresentam como perspectiva-chave a forma com que o

escritor gaúcho se utiliza de temas cotidianos para chamar a atenção dos seus

leitores, representando-os em seus textos.

No tocante à representação da sociedade, Costa (2008) declara sobre essa

particularidade nas obras, Triângulo das Águas, Os Dragões não conhecem o

Paraíso e Onde andará Dulce Veiga?:

O escritor retoma o desencanto diante da realidade manifesto nas obras anteriores, só que encarado exclusivamente pela ótica interna: a realidade “por dentro” do homem, urbano e moderno, em especial daquele que se nega a submissão, a censura, a qualquer tipo de restrição e que busca a afirmação e aceitação de sua própria identidade e individualidade, assumindo seus próprios valores e dirigindo-se para sua realização pessoal, em geral vivendo à margem da sociedade convencional (p. 20)

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No raciocínio proposto por Costa (2008), as temáticas de Caio remetem ao

contexto do cotidiano, e os episódios da vida estão representados em suas

narrativas através de aspectos como a busca por uma identidade, solidão,

introspecção, opressão das grandes cidades, desumanização, busca de dignidade.

Ainda com relação à produção literária de Caio, em 1995, ao ser patrono da

Feira do Livro em Porto Alegre, ele publicou a antologia Ovelhas Negras. Essa

antologia é uma espécie de biografia ficcional, já que recolhe as particularidades de

suas principais obras. Nela, há um agrupamento de contos nunca publicados em

livros anteriormente, as narrativas estão organizadas em ordem cronológica pelo

próprio autor.

No que tange ao gênero contos, Bizello (2006) afirma que, de um lado, Caio

atende ao modelo tradicional de composição e, por outro, opta por uma escrita que

rompe com esse paradigma, acentuando a fragmentação forma das narrativas. Ao

escrever, segundo a autora, Caio ainda enfatiza a introspecção:

Através da diluição do enredo, aprofundamento da investigação introspectiva, da exploração dos estados oníricos, da fragmentação e da desconstrução da ilusão realista. Dessa forma o escritor manifesta via estrutura narrativa a experiência do individuo excluído que busca, em si mesmo, o refúgio para os problemas da vida moderna. (p.70-71)

Com um modo peculiar de escrever as narrativas, os ambientes de seus

contos também são diferenciados. Os espaços são condensados e, nessa

perspectiva, Costa (2008) assegura que a ação transcorre em alguns momentos,

dias e em espaços fechados, como quartos, apartamentos. Desse modo, o ambiente

externo fica secundário. Já com relação aos personagens das narrativas de Caio,

são poucos e suas histórias são contadas através de uma narrativa geralmente

escrita em primeira pessoa. Já a temática dos contos representa e problematiza

questões sociais, através de personagens que são marcados pela solidão,

carências, loucuras, isolamentos, marginalidade, mas sempre em busca do amor.

Nesse sentido, Gomes (2008) corrobora essa percepção sobre os textos de Caio ao

afirmar que a questão amorosa nos textos do escritor é apontada como forma de

resolução de conflitos individuais e coletivos. Além disso, o amor está ligado também

à reflexão sobre um sujeito aprisionador de subjetividades, elaborando uma crítica à

busca incessante sobre a idealização do amor romântico. Por esse sentido, a sua

narrativa faz uma crítica à busca desse amor.

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Em torno de narrativas que estão calcadas no discurso sobre a identidade de

personagens e com o extenso currículo de publicações de obras, os textos de Caio

Fernando Abreu vêm ganhando destaque tanto na área acadêmica - com a

produção de dissertações, teses e estudos em artigos, quanto na área artística -

através de reproduções cinematográficas, adaptação de textos em peças de teatros

e interesse de autores pela biografia do escritor. Segundo a pesquisadora Gomes

(2008), essa visitação recorrente ao universo ficcional de Caio demonstra que a sua

produção ultrapassou as questões geracionais a que estava sujeita. Nas palavras da

autora:

... Se inscrevendo num entre-lugar bastante contemporâneo, lidando de maneira eficaz e poética com os temas da incomunicabilidade urbana, do preconceito, da solidão dos grandes centros urbanos, da busca de um diálogo crítico e uma reinterpretação da cultura pop, campe de massa, da problematização das identidades sexuais, bem como da incorporação e rediscussão do mito do grande amor. (GOMES, 2008, s/d)

Os temas a que a autora chama atenção viabilizam um primeiro conjunto de

observações sobre as temáticas mais recorrentes na obra de Caio. A solidão e a

incomunicabilidade voltam-se com maior ênfase para os grandes centros, já a

reinterpretação da cultura pop, preconceito e a problematização das identidades

sexuais estão presentes tanto no contexto urbano com um maior aglomerado de

pessoas, tais como as grandes cidades, quanto nos centros menores. Ela relata

ainda, em sua tese, que, através de estudos realizados para a sua dissertação em

2001, levantou dados acerca de diferentes concepções sobre outros temas que são

recorrentes nas narrativas de Caio Fernando Abreu: a loucura e a

homossexualidade. De acordo com a estudiosa, Caio privilegia a multiplicidade e o

caráter questionador. Nas palavras de Gomes (2008):

Percebi que, ao optar pelas configurações da loucura como um lugar de libertação e vivência dos desejos mais íntimos dos indivíduos, e da homossexualidade como uma paisagem diversa e multiforme para desejos, experiências e comportamentos sexuais, CFA apontava para espaços de questionamentos e singularizações dessas experiências, elegendo paisagens fragmentadas e saídas precárias, momentâneas, para os conflitos entre os indivíduos e a ordem social. Suas intervenções, à maneira foucaultiana, terminam por não centralizar o debate, abrindo mão de noções fixas para as representações. (s/d)

Além dos conflitos entre os indivíduos e as ordens sociais, Caio pode ser

considerado como um escritor mergulhado nos dramas do século XX, e, nesse

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59

sentido, o clima de denúncia e a construção de um mundo interior e exterior aos

personagens denotam ainda mais o seu engajamento com o social. Por outro lado,

mesmo com seu engajamento, Costa (2008) alerta para o fato de que, após

descobrir sua doença, a figura principal das críticas e notícias passou a ser ele, em

vez de seus textos. Nesse sentido, o caráter autobiográfico começou a incidir em

seus textos. Através do espaço que Caio possuía em jornais para publicações de

suas crônicas, ele compartilhava com os leitores os dramas que eram seus também.

O texto do escritor é permeado por elementos textuais, que demonstram a sua

sensibilidade frente à realidade. Além disso, uma de suas principais peculiaridades é

a capacidade de reflexão, por isso suas crônicas, mesmo sendo escritas na década

de 1990, com temáticas específicas, parecem atemporais. Sob esse viés, a próxima

seção analisa algumas crônicas do autor que estão permeadas pelo seu contexto de

produção e características particulares ao gênero, tais como a linguagem coloquial,

o humor e a ironia, a subjetividade, a alusão a outros textos e a busca pelo diálogo

com o leitor.

2.2. A crônica de Caio

A crônica de Caio apresenta muitos traços importantes para serem

considerados no processo de leitura e interpretação desse gênero narrativo. O autor

mostra neste gênero uma narrativa em que o caráter autobiográfico dilui-se em meio

a temas de representação social. No tocante ao caráter autobiográfico das crônicas

brasileiras em especial, Simon (2008) argumenta que está relacionado à matiz

memorialista, uma vez que, ao contar um fato ou explorar assuntos do cotidiano, o

escritor precisa buscar em sua memória como ocorre a constituição deles:

Se é possível admitir a matiz memorialista nas crônicas e no seu conjunto, é também necessário conviver com o falseamento daqueles e de outros escritos que não se submetem à condição de reproduções fiéis dos fatos e sensações ali expostos. (SIMON, 2008, p. 57)19

19 É importante considerar sobre o caráter autobiográfico as reflexões de Roland Barthes, já que o estudioso procurou conduzir os exercícios da análise literária para longe do biografismo, para outros rumos a que o texto se afirmasse como principal objeto a ser focalizado. “Em breve, vulgarizou-se e retomou força a noção de que o autor deveria ser afastado das preocupações analíticas, criando espaço para distinções essenciais entre autor e narrador, quando se tratava de romances e contos, e entre poeta e sujeito lírico, quando os textos em questão são poemas.” (SIMON, 2008, p. 59) A percepção de Barthes torna-se importante para que as análises dos textos literários não se limitem a

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60

Além da presença do signo autobiográfico, atrelado à memória, as crônicas

de Caio, com um toque de lirismo, também formam um diálogo aberto e explícito

entre escritor, leitor e sociedade. O autor ainda explora em seus textos uma

linguagem de aproximação com o leitor, para chegar aos que leem, como se

estivessem em uma conversa diária, que aborda distintos temas, desde política,

música, violência, cinema, histórias íntimas até televisão e novelas, dentre outros. A

linguagem da sua crônica ainda se mostra uma linguagem paradoxal, que vai do

nível culto ao coloquial, da escrita simples à redação mais exigente.

No que confere peculiaridades à linguagem, características formais, como

simplicidade, qualidade textual, caráter urgente e sintético, coloquialismo elaborado

e o caráter de atemporalidade - o que torna a memória como parte constitutiva do

gênero -, estão presentes nas crônicas de Caio. As suas narrativas, de forma geral,

apresentam uma tônica voltada ao social e, com as crônicas, essa premissa não é

diferente. Caio utilizava seu espírito crítico, por vezes até mesmo sendo autocrítico,

para abordar temas que cercavam a sua geração.

Considerando seu espírito crítico, induzindo o leitor à reflexão e a temas que

remetem ao cotidiano, escolhemos para compor o corpus desta pesquisa a obra A

Vida Gritando nos Cantos. A obra reúne crônicas publicadas por Caio no “Caderno

2” do jornal O Estado de São Paulo, em diferentes períodos. Nesse livro, as crônicas

estão separadas por três partes e em sequência cronológica: a primeira é composta

pelas que foram produzidas de 1986 a 1988, a segunda compreende os anos de

1993 a 1996, e a terceira são aquelas sem data.

Para contextualizar o perfil das crônicas dessa obra, identificando as suas

linhas temáticas, seus traços formais, perfis humanos representados, foram

construídos quadros que procuram apresentar, de forma sintética, características

que singularizam as narrativas de Caio publicadas no jornal O Estado de São Paulo.

Estes quadros não pretendem ser exaustivos nem indicar todos os elementos das

crônicas, mas sim constituírem-se como um guia de leitura para a compreensão e

contextualização das crônicas do autor. Em termos didáticos, para facilitar a

visualização dos traços das crônicas numa perspectiva diacrônica, os quadros foram

divididos em décadas: as crônicas dos anos 1980, as dos anos 1990 e as sem data.

aspectos formais de narrador/autor, poeta/sujeito lírico, mas sim, tenha maior riqueza com a intenção em outros aspectos.

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61

QUADRO 1 - Crônicas de Caio Fernando Abreu - Década de 1980

PERÍODO 1980-1989

Crônicas

Para machuchar os

corações

Música e os sentimentos

que podem gerar nas

pessoas

Mescla de linguagem culta

com coloquial. Subjetivismo

Estrutura

fragmentadaGeração de 1972

Cidades

grandes/São PauloPresente

Diálogo com leitor, citação,

intertexto, humor, ironia,

introspecção

Meus amigos são um

barato

Histórias de quatro amigos

do narrador

Linguagem coloquial.

Subjetivismo Estrutura linear

Quatro amigos: o super-

feliz, a moderna, o "subir-

com-esforço na vida" e a "

ex-atriz, ex-cantora, ex-

traficante".

Cidades grandes Presente Intertextualidade, humor,

ironia, diálogo com leitor

Meu Deus, são estrelas

demais!

As estrelas: as dos céu e

artistas

Linguagem coloquail e

culta.

Estrutura

fragmentada

Artistas que são estrelas

em suas vidas

A cidade de

Gramado-RS, o céu

do Rio Grande do

Sul, a praia

Presente Diálogo com leitor, citação,

humor

Ah, bossa-nova, new-

bossa...

Música, em especial do LP

de Elisete Negreiros.

Mescla de linguagem culta

com coloquial.

Subjetivismo.

Estrutura linear

A representação da vida do

narrador através das

músicas e cantores.

Metrópole, parece

ser São Paulo, que é

onde vive o

narrador.

Presente Citação, intertextualidade,

subjetivismo

A vida é uma brasa,

mora?O caos da vida

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo.

Estrutura

fragmentada

Descrição do próprio

narrador e ses

comportamentos

Metrópole,

possivelmente São

Paulo

Presente

Citação, intertextualidade,

subjetivismo, diálogo com

leitor

Cola-chata-da-

sanguinhaAs gírias de Porto Alegre Coloquial Estrutura linear

Na maior parte são os

gaúchos, mas o narrador

cita, darks, punks, néos,

pós, seitas.

Cidades gaúchas Presente Humor, diálogo com leitor,

citação

Eu existo! Existo?

Os documentos do narrador

que foram roubados e

recuperados

Coloquial Estrutura linearDescrição do próprio

narrador

Pinheiros - São

Paulo Presente Humor, diálogo com leitor

Amizade telefônica Os amigos telefônicos

Mescla de linguagem culta

com coloquial.

Subjetivismo.

Estrutura linearDescrição do próprio

narrador

A cidade do

narrador, São Paulo Presente

Humor, diálogo com leitor,

subjetivismo, citação

Meu amigo CláudiaDescrição do amigo (a)

Cláudia Coloquial Estrutura linear

Descrição do próprio

narrador São Paulo Presente

Humor, citação, diálogo

com leitor

Um remédio que dá

alegria

Música, em especial, João

Gilberto e Caetano Veloso

Mescla de linguagem culta

com coloquial.

Subjetivismo.

Estrutura linearDescrição do próprio

narrador São Paulo Presente

Humor, diálogo com leitor,

citação, intertextualidade

Diário de bordo

Um diário da vida do

narrador de segunda a

domingo

Mescla de linguagem culta

com coloquial.

Subjetivismo.

Estrutura

fragmentada

Descrição do próprio

narrador São Paulo Presente

Melancolia, subjetividade,

citação, intertextualidade

Por falar em estrelas... Astrologia

Mescla de linguagem culta

com coloquial.

Subjetivismo.

Estrutura linearDescrição do próprio

narrador Sâo Paulo Presente

Diálogo com leitor, humor,

ironia, citação,

intertextualidade

Uma semana-

FassibinderFilme de Fassbinder

Mescla de linguagem culta

com coloquial.

Subjetivismo.

Estrutura

fragmentada

Descrição do próprio

narrador São Paulo Presente

Melancolia, diálogo com

leitor, citação,

intertextualidade

Em nome dos dragões Sonhos

Mescla de linguagem culta

com coloquial.

Subjetivismo.

Estrutura linearDescrição do próprio

narrador São Paulo Presente

Diálogo com leitor, humor,

ironia, citação

Fragmentos de um

domingo

Há várias temáticas: o que

ocorre em um domingo a

noite, a gripe e os sonhos

do narrador

Mescla de linguagem culta

com coloquial.

Subjetivismo.

Estrutura

fragmentada

Descrição do próprio

narrador

São Paulo, também

cita o morre de

Santa Tereza no Rio

de Janeiro, onde foi

a última vez que viu

uma amiga.

Presente

Diálogo com leitor,

subjetivismo, citação,

intertextualidade

Um sonho regado a

gim

O romance de uma

escritora estadunidense

Mescla de linguagem culta

com coloquial.

Subjetivismo.

Estrutura linear

A representação é de Zelda

Sayure e seu marido

Francis Scott

Cidade

estadunidense

Montgomery

Presente

Diálogo com leitor,

subjetivismo, citação,

intertextualidade

Lamúrias com chantili Resposta a uma carta de

leitor

Mescla de linguagem culta

com coloquial.

Subjetivismo.

Estrutura linearDescrição do próprio

narrador São Paulo Presente

Diálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo,

citação, intertextualidade

Então vamos continuar

dançando Músicas, filmes, livros

Culta, coloquial,

subjetivismo. Estrutura linear

Descrição do próprio

narrador São Paulo Presente

Diálogo com leitor,

subjetivismo, citação,

intertextualidade

Bye-bye, 10ª mostra 10ª mostra do cinema

Mescla de linguagem culta

com coloquial.

Subjetivismo.

Estrutura

fragmentada

As representações centram-

se nos são paulinos que

participaram da Mostra de

Cinema

São Paulo Presente

Diálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo,

citação, intertextualidade

Sexo: mais ou menos? Estatística acerca da nova

geração, se transam menos Coloquial Estrutura linear Nova geração de jovens São Paulo Presente

Diálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo, citação

Tema Recorrente Linguagem das narrativas

Estrutura do

texto

Perfis humanos

representados

Cenário das

narrativas

Linha de

apoio Recursos estéticos

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62

O movimento do tempo O velho/antigo, novo/jovem

Mescla de linguagem culta

com coloquial.

Subjetivismo.

Estrutura

fragmentada

As pessoas em geral, já

que o narrador está

remetendo a todos que irão

ficar velhos e o que são

jovens

São Paulo Presente

Diálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo,

citação, intertextualidade

Palavras ao vento

Temáticas que podem ser

escritas em uma crônica de

domingo

Mescla de linguagem culta

com coloquial.

Subjetivismo.

Estrutura

fragmentada. .

Descrição do próprio

narrador São Paulo Presente

Diálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo,

citação, intertextualidade

Caetano, caetanagem Filme de Caetano Veloso

Mescla de linguagem culta

com coloquial.

Subjetivismo.

Estrutura linear Caetano Veloso e outros

artisitas São Paulo Presente

Diálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo,

citação, intertextualidade

O girassol e a greve Girassol

Mescla de linguagem culta

com coloquial.

Subjetivismo.

Estrutura

fragmentada

A representação da planta

em meio ao caos do dia-a-

dia

São Paulo Presente

Diálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo,

citação, intertextualidade

Gente deve ser bom Colega de redação do

narrador, Marion Frank

Mescla de linguagem culta

com coloquial.

Subjetivismo.

Estrutura linearA representação de Marion

Frank

A redação do

Caderno 2 de O

Estado de São Paulo

Presente

Diálogo com leitor, humor,

citação (cita artistas),

melancolia, memória acerca

de seu tempo, senso crítico

Dezenas de obrigados Os melhores do ano

Mescla de linguagem culta

com coloquial.

Subjetivismo.

Estrutura linear

A crônica é autobiográfica,

narrador descreve a sua

vida e daqueles (os

melhores) que fizeram parte

dela, ao longo do ano

São Paulo Presente

Diálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo,

citação, intertextualidade

Com afeto e mau

humor O ano novo (1987)

Mescla de linguagem culta

com coloquial.

Subjetivismo.

Estrutura linear Leitores São Paulo Presente

Diálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo,

citação, intertextualidade

São Paulo, 40 graus O mar

Mescla de linguagem culta

com coloquial.

Subjetivismo.

Estrutura linear Amentes do marSão Paulo e Rio de

JaneiroPresente

Diálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo, citação

Nem só de Aurelião... Glossário de palavras com

expressões

Mescla de linguagem culta

com coloquial.

Subjetivismo.

Estrutura linear "Moçada urbana" São Paulo PresenteDiálogo com leitor, humor,

ironia, citação

Onde andará Lyris

Castellani? Lyris Castellani

Culta, coloquial,

subjetivismo. Estrutura linear Lyris Castellani São Paulo Presente

Diálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo, citação

Beta, beta, Bethânia O amor do narrador por

Maria Bethânia

Mescla de linguagem culta

com coloquial.

Subjetivismo.

Estrutura linear Maria Bethânia São Paulo PresenteDiálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo, citação

Um prato de lentilhas O Brasil Desigual

Mescla de linguagem culta

com coloquial.

Subjetivismo.

Estrutura linear

Todos os brasileiros que

clamam pela justiça a que o

narrador cita

Brasil PresenteDiálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo, citação

Anjos da barra pesada O Brasil Desigual

Mescla de linguagem culta

com coloquial.

Subjetivismo.

Estrutura linearBrasileiros afoitos por

justiça

São Paulo/Rio de

Janeiro/BrasilPresente

Diálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo, citação

Suspiros de domingo Um final de semana cultural

Mescla de linguagem culta

com coloquial.

Subjetivismo.

Estrutura linearDescrição do próprio

narrador São Paulo Presente

Diálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo, citação

No coração do Brasil

Palestra em uma

Universidade

Mescla de linguagem culta

com coloquial.

Subjetivismo.

Estrutura

fragmentada

Descrição do próprio

narrador Uberaba/São Paulo Presente

Diálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo, citação

Diário de bordo II

Um diário da vida do

narrador de segunda a

domingo

Mescla de linguagem culta

com coloquial.

Subjetivismo.

Estrutura

fragmentada

Descrição do próprio

narrador São Paulo Presente

Diálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo, citação

Querem acabar comigo

A dificuldade em escrever

crônicas

Mescla de linguagem culta

com coloquial.

Subjetivismo.

Estrutura linearDescrição do próprio

narrador São Paulo Presente

Diálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo, citação

Doris, Antonio e Vera

As três coisas boas que

ocorreram com o narrador

Mescla de linguagem culta

com coloquial.

Subjetivismo.

Estrutura linearDescrição do próprio

narrador São Paulo Presente

Diálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo, citação

Nos trilhos do tempo

A reflexão sobre a vida,

velhice

Mescla de linguagem culta

com coloquial.

Subjetivismo.

Estrutura

fragmentada

Representação da vida,

desde jovens, velhos.São Paulo Presente

Diálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo, citação

Page 64: LITERATURA, VIDA SOCIAL E MEMÓRIA EM CRÔNICAS DE CAIO ... · 2. A NARRATIVA DE CAIO FERNANDO ABREU 47 2.1. A narrativa de Caio Fernando Abreu: do romance à crônica 47 2.2. A crônica

63

Pílulas calientes

As férias do narrador e

algumas crônicas (anti)

sociais que ele deixa aos

leitores

Mescla de linguagem culta

com coloquial.

Subjetivismo.

Estrutura

fragmentada

Diversas representações, já

que são ao total de quinze

lides

São Paulo PresenteDiálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo, citação

Cenas na beira de um

abismo A representação do Brasil

Mescla de linguagem culta

com coloquial.

Subjetivismo.

Estrutura

fragmentadaOs brasileiros de 1987

Rio de Janeiro/São

PauloPresente

Diálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

Me leva pro céu, Luni! Música

Mescla de linguagem culta

com coloquial.

Subjetivismo.

Estrutura linear A banda Luni São Paulo PresenteDiálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo, citação

Verão de julho

A representação da vida

com os verões no meio do

ano

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura linear Os paulistanos São Paulo PresenteDiálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo, citação

A novela da novela Telenovela

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura linear

Crônica autobiográfica, a

representação é o narrador

que se intitula como

"desempregado"

São Paulo PresenteDiálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo, citação

Para embalar John

CheeverLivros, músicas

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura linearDescrição do próprio

narrador São Paulo Presente

Diálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo, citação

Que depois de me ler Temas que poderiam ser

recorrentes a uma crônica

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura linear Representação de temas São Paulo PresenteDiálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo, citação

Caleidoscópio Rita Rita Lee

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura linear Rita Lee São Paulo PresenteDiálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo, citação

Adeus, agosto. Alô,

setembro

O mês de Agosto e

Setembro

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura linearCompositores, cantores e

escritoresSão Paulo Presente

Diálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo, citação

Cenários em ruínas Memórias de uma noite que

passou

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura

fragmentada

Um homem sem nome, que

é descrito pelo narrador.

Não é possível identificar se

é o próprio narrador

São Paulo PresenteDiálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo, citação

Safra de abobrinhas

A apresentação que o

narrador verá de Luni, um

glossário com significados,

astrologia

Mescla de linguagem culta

com coloquial.

Subjetivismo.

Estrutura linear

Diversas representações, a

do narrador, de pessoas

que se enquadram no

glossário

São Paulo ou Rio de

JaneiroPresente

Diálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo, citação

Felizes para sempre Um romance

Mescla de linguagem culta

com coloquial.

Subjetivismo.

Estrutura

fragmentada

Representação de Yann

Andréa e MargueriteCenário indefinido Presente

Diálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo, citação

Se eu quiser falar com

Deus

O cenário de miséria vivo

pelo Brasil

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura linearBrasileiros que vivem na

misériaSão Paulo Presente

Diálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo, citação

Um cantinho, um

violão, uma Narinha Música: Nara Leão

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura linearNara Leão e sua projeção

no narradorSão Paulo Presente

Diálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo, citação

Ninguém merece Jânio

Quadros

Mistura de assuntos: o

então presidente Jânio

Quadros, cultura, as cartas

dos leitores, suas obras

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura

fragmentada

Brasil que possui como

Presidente Jânio Quadros,

os leitores de suas crônicas

São Paulo PresenteDiálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo, citação

Vamo comer Caetano?

Música com a

predominância de Caetano

Veloso

Mescla de linguagem culta

com coloquial.

Subjetivismo.

Estrutura

fragmentada

Perfis humanos

representados através de

músicas

São Paulo PresenteDiálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo, citação

Ao som de Suzane

Vega O amor

Mescla de linguagem culta

com coloquial.

Subjetivismo.

Estrutura

fragmentada

Crônica autobiográfica,

quem está representado

são os sentimentos do

narrador

São Paulo PresenteDiálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo, citação

Sem via de acesso Sentimentos do narrador

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura

fragmentada

Crônica autobiográfica,

novamente os sentimentos

melancólicos de

introspecção do narrador

estão representados

São Paulo PresenteDiálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo, citação

Vamos tirar o rodenir? Novas significados de

palavras

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura linear

Seus amigos gaúchos e

outros que criam os

significados para os termos

São Paulo PresenteDiálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo, citação

Despedida provisória Sentimentos do narrador

Mescla de linguagem culta

com coloquial.

Subjetivismo.

Estrutura linearCrônica autobiográfica,

sentimentos do narradorSão Paulo Presente

Diálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo, citação

Nós amávamos tanto

Mistura de assuntos:

poemas, músicas

manifestações, sentimentos

do narrador

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura

fragmentada

Descrição do próprio

narrador e da geração

oprimida

Rio de Janeiro/São

PauloPresente

Diálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo, citação

Mas que tempo é

esse?Filme

Mescla de linguagem culta

com coloquial.

Subjetivismo.

Estrutura linearRepresentação de 60, 70 e

também da década de 1980São Paulo Presente

Diálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo, citação

Bancarrota blues A realidade de São Paulo

Mescla de linguagem culta

com coloquial.

Subjetivismo.

Estrutura linear São Paulo nos anos 1980 São Paulo PresenteDiálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo, citação

Anotações depois do

Carnaval

Anotações do narrador

após o carnaval

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura

fragmentada

Descrição do próprio

narrador e da geração

oprimida

São Paulo PresenteDiálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo, citação

Em todas as direções Tarde de domingo

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura linear

Descrição do próprio

narrador e da geração

oprimida

São Paulo PresenteDiálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo, citação

Cine Brasil: sonho e

romance Música e cinema

Mescla de linguagem culta

com coloquial.

Subjetivismo.

Estrutura linearAna Carolina e Sérgio

BianchiniSão Paulo Presente

Diálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo, citação

Venha ver os dragões Literatura

Mescla de linguagem culta

com coloquial.

Subjetivismo.

Estrutura linear Escritores brasileiros São Paulo PresenteDiálogo com leitor, humor,

ironia, subjetivismo, citação

Page 65: LITERATURA, VIDA SOCIAL E MEMÓRIA EM CRÔNICAS DE CAIO ... · 2. A NARRATIVA DE CAIO FERNANDO ABREU 47 2.1. A narrativa de Caio Fernando Abreu: do romance à crônica 47 2.2. A crônica

64

Como é possível perceber no quadro, as crônicas da década de 1980

possuem vários elementos em comum. Quanto aos recursos estéticos, são adotados

na maioria o diálogo com o leitor, as citações, os intertextos. O humor e a ironia

também são recursos recorrentes. Isso porque Caio ao reproduzir temas cotidianos,

viabilizava através destes elementos um diálogo constante com o meio com o qual

estava inserido. As crônicas refletem, em sua maioria, acerca de temas comuns, não

apresentando algo complexo ao leitor; no entanto, a forma com que o escritor

gaúcho utiliza as estratégias textuais transforma suas narrativas em matéria-prima

literária.

Notamos, ainda, os títulos das crônicas, os quais não se apresentam de forma

clara ao leitor o tema. Podemos tomar como exemplo a primeira crônica da obra,

“Para machucar corações”, uma vez que, ao nos deparar com esse título, podemos

pensar em muitos temas para essa narrativa, desde sentimentos que se referem ao

coração, até mesmo, àqueles que circundam em torno de problemas familiares,

doenças. Em linhas gerais, a crônica aborda os sentimentos que as músicas podem

gerar nas pessoas. Ao ler o texto, entendemos que “Para machucar corações” está

denotando os sentimentos melancólicos, introspectivos que determinadas canções

podem nos proporcionar, contudo, somente tendo contato com esse título a

impressão tornava-se mais abrangente. De maneira análoga, ao ler “Cola-chata-da-

sanguinha”, qual é a impressão que isso nos causa? Em um primeiro momento,

poderíamos pensar ser uma crônica para nos explicar o que esses vocábulos

separados por hifens querem dizer, todavia, a crônica aborda as gírias porto-

alegrenses. O narrador cultua uma experiência que denota ser a sua, isso porque

Caio é gaúcho e conta um pouco mais sobre os leitores acerca da sua terra natal.

Ainda observamos outras peculiaridades das crônicas de 1980, como a

fragmentação, a reprodução de mesmos assuntos os quais são continuados em

alguns textos. Em outros ainda, o narrador utiliza seu espaço para responder aos

leitores cartas enviadas ou perguntas feitas, como ocorre em “Meu amigo Cláudia” e

“Um remédio que dá alegria”. Na primeira, o narrador conta como seu (sua) amiga

(o) Cláudia, descrevendo-o (a) com alguém que está no limiar de ser homem ou

mulher. Na outra crônica, o narrador retoma a anterior, comentando sobre Deus

(utilizando a intertextualidade da música de Caetano Veloso) e mistura ao assunto

anterior um de seus preferidos: a música e elementos culturais. São recursos que

também aparecem nas crônicas da década seguinte.

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65

QUADRO 2 - Crônicas de Caio Fernando Abreu - Década de 1990

PERÍODO 1990-1996

Crônicas

À nossa mais completa

tradução Música

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura linear Rita Lee São Paulo AusenteDiálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

Reflexões à porta de um canil Novos significados

de palavras

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura linear

Representações de

artistas/músicos/compos

itores/ que se

enquadram nas

"cadelas"

São Paulo AusenteDiálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

Samba-enredo para um

Carnaval de horror

Violência nas

metrópoles

brasileiras

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura linearBrasileiros que sofrem

com a violência

São Paulo/Porto

Alegre/Rio de

Janeiro

AusenteDiálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

Adivinhem quem vem para

roubar Política

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura linearO político que não é

nomeadoSão Paulo Ausente

Diálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

Um presente lindaço para São

Paulo Cinema

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura linear Paulistanos São Paulo AusenteDiálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

Tese de mestrado à Holandesa Homossexualismo

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura linear Os homossexuais São Paulo AusenteDiálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

Na cama por causa de Madonna Música: Madonna

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura linear Madonna São Paulo AusenteDiálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

Levantando a cortina de papel

vegetal Livro

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura linear Os japonoses

Diversos países que

a carta do amigo do

narrador passou até

chegar nele: Tóquio,

Alemanha, Holanda,

Paris até em chegar

em São Paulo, no

Brasil

AusenteDiálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

Sugestão para cair na real...e

depois sairTeatro

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura linearDescrição do próprio

narrador São Paulo Ausente

Diálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

1994: um ano para a literatura LiteraturaColoquial, culta.

SubjetivismoEstrutura linear Os escritores brasileiros

São Paulo, também

cita outros paísesAusente

Subjetividade, citação

(cita elementos

culturais),

intertextualidade

(reproduz fragmento de

música), humor, ironia,

diálogo com leitor,

memória acerca de seu

tempo, elementos

sociais.

Marina Lima enfrenta o Brasil-

Barbie Música

Coloquial, culta.

SubjetivismoEstrutura linear Marina Lima São Paulo Ausente

Subjetividade, citação

(cita elementos

culturais),

intertextualidade

(reproduz fragmento de

música), humor, ironia,

diálogo com leitor,

memória acerca de seu

tempo, elementos

sociais.

Para Dulcineia, que nunca foi

del Toboso Travestis

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura linear Os travestis São Paulo AusenteDiálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

Pra cima com a câmera,

moçada!Filmes

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura linear Os filmes e o Brasil São Paulo AusenteDiálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

Viva o império das coroas

magníficas! Música e telenovela

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura linear

Alcione e a telenovela,

Fera Ferida (juntamente

com os atores, autores

que compõe a novela)

São Paulo, mas

narrador escreve de

Paris, e também cita

a cidade

AusenteDiálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

De laços, seis, sábados e

tormentas

Mistura de temas,

cotidiano em Paris,

canibalismo em

Olinda, saudades

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura

fragmentada.

Quando narrador

está melancolico,

as frases são

curtas, assuntos

variados.

O Brasil, através do

canibalismo em Olinda,

a saudade dessa terra e

o cotidiano do narrador

em Paris

Olinda, Paris AusenteDiálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

Negro amor ao som de Bruce

Springssteen

História de um

brasileiro em Paris

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura linear

Representação de

homossexuais, do

racismo, da AIDS

Paris AusenteDiálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

Confissões de um lusófobo

enfurecido

Portugal, a morte de

Airton Senna, amor

não correspondido

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura

fragmentada

Descrição do próprio

narrador Portugal Ausente

Diálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

Entre a Frau do mal e "Jente" do

bem

Viagem por

diferentes paises e

suas

particularidades

Coloquial, culta.

SubjetivismoEstrutura linear

Descrição do próprio

narrador

Diversos países que

a carta do amigo do

narrador passou até

chegar nele: Tóquio,

Alemanha, Holanda,

Paris até em chegar

em São Paulo, no

Brasil

AusenteDiálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

Afinal, quem era mesmo Lolita

Torres?Filmes

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura linearLolita Torres e Tâinia

Prigarina

Países que as duas

viveram e foram

mencionados pelo

narrador

AusenteDiálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

Apresentando Álvaro Caldas,

escritor Livro

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura linear Escritores brasileiros São Paulo AusenteDiálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

Tema Recorrente

Linguagem das

narrativas

Estrutura do

texto

Perfis humanos

representados

Cenário das

narrativas

Linha de

apoio Recursos estéticos

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66

Lolita, Lisboa y otras cositas

más

Respostas a cartas

dos leitores

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura linear Leitores das crônicas São Paulo AusenteDiálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

Na trilha dos mistérios de

Clarice Clarice Lispector

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura linear

Clarice Lispector, suas

cartas, romances, a sua

forma de ver a vida

São Paulo AusenteDiálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

Delírio eleitoral à beira do

ridículo Eleições

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura linearOs brasileiros que irão

votarPorto Alegre Ausente

Diálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

Os onze sexos de um anjo

terapeuta

A quantia de sexos

que existem, o

carinho e amor de

um médico a seu

paciente

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura linear

O médico, a percepção

do narrador diante dos

sexos que podem existir

e do carinho deste

médico

São Paulo PresenteDiálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

Para Rita Lee, com amor e

irritação Rita Lee

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura linear Rita Lee São Paulo PresenteDiálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

Ney Matogrosso, muito além do

bustiê

Música: Ney

Matogrosso

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura linear Ney Matogrosso São Paulo PresenteDiálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

Feliz em conhecê-la, Natália

Lage Teatro e filhos

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura linear

Natália e os filhos do

narrador que poderiam

estar vivos Rio de Janeiro Ausente

Diálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

Reza forte para um egum

maldespachado

Uma fã que

assombra o escritor

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura linear

A fã que não lhe deixa

em paz, nem quando

estava no hospital Porto Alegre Ausente

Diálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

Vamos voltar a falar em poesia? Livros

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura linear As três obras literárias e

seus autores São Paulo Ausente

Diálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

Betty Crawford, Ph.D. em Najice

Comparada

Mudança de nome

de Caio F, e a

primeira dama

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura linearPrimeira Dama, Ruth

Cardoso Porto Alegre Ausente

Diálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

De volta ao avesso do avesso

do avesso São Paulo

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura linear A cidade de São Paulo e

suas lembranças São Paulo Ausente

Diálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

Inútil pranto por Santa Tereza

Cidade de Santa

Tereza

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura linear As lembranças acerca

de Santa Tereza Rio de Janeiro Presente

Diálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

Tentativa de sitiar uma

esquisitice

Os sentimentos do

narrador

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura linearDescrição do próprio

narrador Porto Alegre Presente

Diálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

Picadinho para aquecer o

inverno Diversos assuntos

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura

fragmentada

Representação dos

assuntos Porto Alegre Ausente

Diálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

A vaia consagradora de Denis

Stoklos Peça de Teatro

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura linear

Representação da atriz

Denise Stoklos e outros

artistas que já foram

vaiados Porto Alegre Ausente

Diálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

Para mãe Sonia de Oxum Apará

Duas mães do

narrador

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura linearDescrição do próprio

narrador Rio de Janeiro Ausente

Diálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

Entrevisão do trem que deve

passar

Anoitecer/amanhec

er

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura

fragmentada

O jogo de luzes que se

formam no céu Porto Alegre Ausente

Diálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

A cara do Brasil em Terra

Estrangeira Filmes

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura linear

A representação

recorrente é a de filmes,

cineastas Porto Alegre Ausente

Diálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

Tirando o pó do velho 1995 Diversos assuntos

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura

fragmentada

Representação dos

assuntos Porto Alegre Ausente

Diálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

Page 68: LITERATURA, VIDA SOCIAL E MEMÓRIA EM CRÔNICAS DE CAIO ... · 2. A NARRATIVA DE CAIO FERNANDO ABREU 47 2.1. A narrativa de Caio Fernando Abreu: do romance à crônica 47 2.2. A crônica

67

As crônicas das décadas de 1980 e 1990 possuem muitas coordenadas em

comum: os títulos não tem linguagem clara, são sugestivos, os temas se repetem e

circundam em torno de elementos culturais, a alusão a elementos externos é

observada em praticamente todas as narrativas, a presença do humor e ironia,

diálogo com leitor e com elementos sociológicos, além uma constante busca pela

reflexão dos leitores. No entanto, podemos ressaltar a presença de uma distinção:

ao contrário das crônicas da década de 1980, a linguagem das crônicas de 1990 é

predominantemente linear. Notamos que, nas narrativas produzidas na década de

oitenta, há maior vazão para a crônica fragmentada, o que sugere uma busca pela

renovação da escrita e experimentação da linguagem em um contexto sócio-político

marcado pelo rompimento com convenções artísticas. Outra peculiaridade que

distingue as crônicas publicadas em cada década, é que, em oitenta, Caio publicou

mais, e os temas das crônicas da década de 1990 foram mais voltados a livros,

filmes, músicas, teatro, viagens e política.

Nesse sentido, outra diferença com relação às crônicas de 1980 é que, nas

da década de 1990, a linha de apoio ficou mais restrita, o que indica que, de uma

década para outra, o leitor adquiriu maior visibilidade, passando a ser mais

insistentemente chamado pelo narrador para construir sentido ao texto. Podemos

citar a presença clara do narrador na crônica “Tirando o pó do velho 1995”, em que

este afirma que, com o ano novo que irá chegar (1996), é preciso deixar os assuntos

com os leitores em dia. Por isso, utiliza o espaço destinado às crônicas semanais

para responder aos leitores o que estava devendo a eles, para que, no ano seguinte,

1996, possam começar novos assuntos. O narrador então responde aos vários

leitores que lhe escreveram, solicitando o número de telefone da mãe Sonia, essa

que ele contou aos leitores na crônica intitulada “Para mãe Sonia de Oxum Apará”,

quando ele comenta que existem duas mães, uma biológica e a outra mãe era a

Sonia, então, os leitores se interessam sobre ela e lhe pedem o número de telefone

para que possam entrar em contato com essa que é ligada ao Candomblé. Ainda na

crônica “Tirando o pó do velho 1995”, o narrador conta aos seus leitores, como se

fossem amigos íntimos, que como ele passou muito no hospital, não havia

conseguido cuidar de seu jardim, e por fim, faz um pedido, que não lhe enviem mais

originais inéditos para rascunhar sugestões. Sob o viés das temáticas e das

referências das crônicas, percebemos a inserção do social e o diálogo entre

narrador e leitor.

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68

QUADRO 3 - Crônicas de Caio Fernando Abreu - Sem definição de data

SEM DEFINIÇÃO DE DATA

Crônicas

Cor-de-rosa, uma ova! Música

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura

linearMarianne Faithfull Cinema Presente

Diálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

Muito além do bordô Porto Alegre

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura

linear________ Porto Alegre Ausente

Diálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

Clarice Lispector ress... Clarice Lispector

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura

linearClarice Lispector São Paulo Presente

Diálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

Por aquelas escadas subiu feito uma

diva

A morte de uma

amiga

Mescla de linguagem

coloquial e culta.

Subjetivismo

Estrutura

linear

Ana C e sua amizade com

o narrador

São Paulo/Rio de

JaneiroAusente

Diálogo com leitor, ironia,

subjetivismo, citação

Tema Recorrente

Linguagem das

narrativas

Estrutura do

texto

Perfis humanos

representados

Cenário das

narrativas

Linha de

apoio Recursos estéticos

As crônicas sem datas trazem como temas a música, a cidade de Porto

Alegre, a escritora Clarice e a morte de uma amiga. A primeira narrativa, “Cor-de-

rosa, uma ova!”, descreve a artista musical Marianne Faithfull, “Muito além do bordô”

apresenta uma diversidade temática e o narrador inicia comentando sobre sua vida

em Porto Alegre e passa a descrever sobre música, cinema, seus amigos, palavras

com significados diversos e finaliza avisando aos leitores que ele adora lhes decifrar.

A surpresa e a satisfação de receber uma carta de Clarice Lispector estão inseridas

em “Clarice Lispector ress”, em que o narrador compartilha com os leitores a carta

da escritora. Já a melancolia ficou por conta de “Por aquelas escadas subi feito uma

diva”, a morte de uma amiga deixa o narrador introspectivo e nostálgico com as

recordações. Através das descrições dos temas, podemos perceber a forma com

que Caio utiliza suas narrativas para se aproximar dos leitores, ele transforma

assuntos comuns, como a carta que recebeu de uma amiga, em matéria-prima

literária.

Propomo-nos a elaborar esse quadro para melhor dimensionar a produção

textual, no que tange às crônicas do escritor gaúcho. Ao analisar as narrativas nas

seções, não daríamos conta de demonstrar a complexidade e a forma com que Caio

utiliza para abordar suas temáticas, então com esses quadros é possível perceber a

interação do jornalismo e da literatura, a utilização das estratégias textuais como,

humor, ironia, diálogo com leitor, utilização de memórias, alusão a elementos

externos e a utilização da linguagem oral.

Então, nas próximas seções, crônicas da obra A Vida Gritando nos Cantos

são analisadas para identificar traços, formas e estilos deste gênero na produção do

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69

autor. Outras particularidades são ressaltadas, como a linguagem coloquial, a busca

pelo diálogo com o leitor, a subjetividade, a alusão a outros textos e o humor. Ao

caracterizar as crônicas de Caio, também elaboramos uma reflexão sobre a

(in)suficiência das teorias da crônica para compreender esse gênero nos escritos do

autor. Iniciamos a abordagem dos traços da crônica de Caio pela linguagem que

está presente nas crônicas, para demonstrar qual é o sentido do seu emprego nas

narrativas do escritor gaúcho.

2.2.2 A linguagem coloquial de suas crônicas

Uma das particularidades das crônicas, como já fora citado, é a linguagem.

Em termos linguísticos, também se nota a presença da oralidade e da objetividade.

Essa última, de acordo com Costa (2010), é exigida em função do seu destinatário –

o leitor do jornal – pelo ambiente da escrita através da imprensa periódica e pela

exiguidade de espaço, o que obriga a síntese. Nesse sentido, quando se considera a

objetividade da crônica, em termos teóricos, esta se associa a uma pequena

extensão. Entretanto, na leitura da crônica de Caio, a objetividade ganha outra

dimensão, pois, em termos de tamanho textual, a crônica do escritor gaúcho

obedece à objetividade, mas em termos de linguagem, esta cede espaço a uma

expressão mais subjetiva, carregada de impressões pessoais, como será

demonstrado na análise dos textos do autor. Já com relação à oralidade, Sá (1999)

ressalta que também é presença constante nas páginas de jornais e,

consequentemente, nas crônicas, o que facilita o diálogo com o leitor.

Vale notar, ainda, que as marcas da oralidade incorrem pela transcrição das

falas do cotidiano para a escrita, nas crônicas de Caio em especial, esse aspecto

fica evidente pelo fato de o narrador transcrever ações que ocorrem na vida social e

pela narrativa estar concentrada em situações corriqueiras. Nesse sentido, Correa

(2010) corrobora essa perspectiva, afirmando que, “a transcrição consiste em passar

o texto oral para o texto escrito, com todas as suas características, inadequações

gramaticais e semânticas.” (p. 45). Desse modo, entendemos que Caio utiliza as

expressões das falas do dia a dia, gírias, fragmentos de livros e músicas, para

sinalizar o diálogo com os aspectos cotidianos do leitor, contribuindo, assim, para a

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70

identificação com a sua narrativa. É oportuno observar que a transcrição das falas

do dia a dia, garantem também a oralidade e as marcas da linguagem simples20.

A perspectiva da linguagem familiar aos seus leitores, juntamente com o

conceito de coloquialismo elaborado, está calcada neste estudo sob o viés de Costa

(2010). A linguagem familiar “tem a ver com o caráter da dicção aparentemente

desestruturada, que se assemelha a uma conversa cúmplice entre narrador e leitor,

sem transformar a linguagem em simples reprodução da fala.” (COSTA, 2010, p.

190). Para elucidar a forma como Caio utiliza esses aspectos em suas narrativas, a

crônica “Meus amigos são um barato” é tomada como exemplo. Nesta narrativa,

publicada no dia oito de abril de 1986, o narrador conta a história de quatro de seus

amigos, apontando as particularidades de cada um. Para verificar o traço do

coloquialismo elaborado proposto por Costa (2010), analisamos o seguinte

fragmento:

A verdade que não conheço ninguém mais moderno (ou pós, nos dois sentidos: o do depois e o das carreiras) que minha amiga Kate. Coberta de negro, cabelo raspado para o lado, vezenquando uma peruca rosa de náilon. Naturalmente é performática. E faz cursos sen-sa-cio-nais: o último foi de vídeo-performance – um arraso. Minha amiga Kate acha tudo meio antigo, mas concede ir ao Satã, ao Rose Bom-Bom, dá umas bandas pelo Ritz e não pisa nem morta no Pirandello. Acha que tudo é uma questão de pique-e-pá-e-crã, sabe como? Fico numas que só... (ABREU, 2012, p. 20) (grifos da autora deste trabalho)

Como se pode observar nas expressões que foram grifadas, “vezenquando”,

“sen-sa-cio-nais”, “dá uma bandas”, “de pique-e-pá-e-crã”, “sabe como? Fico numas

que só...”, são termos permeados pela oralidade. Para melhor compreender a forma

com que as expressões estão em consonância com a fala do dia a dia, observemos

cada uma delas. “Vezenquando” é a abreviação da expressão: de vez em quando,

isto é, para sinalizar a proposição de que não é sempre ou todos os dias que Kate

utiliza a sua peruca, contudo, como o narrador está descrevendo isso através de

uma linguagem totalmente familiar e impregnada pela transição das falas, a

utilização da abreviatura torna-se um componente da sua narrativa para atrair a

atenção do leitor. Pelo mesmo viés, “dá umas bandas” é uma expressão típica de

diálogos entre sujeitos próximos e, por fim, a marca da hifenização representa, do

20 A simplicidade com relação às crônicas incorrem no sentido como o autor aborda os assuntos, já com relação aos temas, e a inserção de elementos externos ao texto, estes denotam a subjetividade e a sensibilidade de Caio, tornando-as assim, com o caráter de complexidade.

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71

mesmo modo que nas expressões anteriores, a transcrição da oralidade para

escrita, ratificando com a presença dos hifens, as pausas da fala.

Já com relação ao conceito exposto por Costa (2010) acerca do coloquialismo

elaborado, é possível inferir que, mesmo com as marcas da oralidade, o discurso

proposto por Caio em sua narrativa se assemelha mais a uma conversa cúmplice

com seu leitor do que a uma tentativa de transformar a linguagem em simples

reprodução da fala. Nesse âmbito, a linguagem coloquial exposta através dos

vocábulos grifados reproduz a familiaridade do narrador com leitor, pois a utilização

da oralidade e do coloquialismo elaborado, deve-se à maior aproximação do tema

proposto com a realidade, já que o emprego das expressões, tais como estão

assinaladas, é presença fiel em rodas de conversas.

Além da utilização das estratégias textuais da oralidade e coloquialismo

elaborado, é possível perceber a presença de outro traço na crônica de Caio: o

diálogo que suprime a presença do narrador. Há um rompimento de convenção do

discurso, as falas são marcadas por expressões sem a pontuação correta prevista

pela gramática normativa. Essa premissa fica evidente quando o narrador indaga:

“Acha que tudo é uma questão de pique-e-pá-e-crã, sabe como?”. Ao questionar

“sabe como?”, ele dirige-se diretamente ao leitor, enunciando-o no próprio corpo do

texto e com ele mantém um diálogo aberto. É sob essa ótica que Sá (1999) entende

o coloquialismo, não como a transcrição exata de uma frase ouvida na rua, mas a

elaboração do diálogo entre cronista e leitor, “a partir do qual a aparência simplória

ganha sua dimensão exata.” (p. 11). Os elementos que são necessários para melhor

compreender a crônica e que elucidam a sua aparente sensibilidade se constituem

em externos e internos. Os primeiros estão compreendidos pela inserção social, já

os segundos pelas estratégias textuais. Desse modo, é possível referenciar que

Caio, ao fazer uso da aparente simplicidade, está atribuindo valor semântico e social

as suas crônicas.

A crônica em questão, que conta, a partir das músicas de cantores como Nara

Leão e Nirlando Beirão, a história dos quatro amigos, possui outras marcas que

denotam a presença da linguagem voltada à oralidade e ao coloquialismo elaborado.

As marcas dessas características podem ser comprovadas em trechos da narrativa:

Se Nara Leão, naquele velho disco, também achava – por que não poderia eu também achá-lo? E se o Nirlando Beirão, tão chique, tem um vizinho yuppie – por que não posso ter coisas semelhantes em minha vida de

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72

retinas fatigadas? E confessá-lo de público – atente na expressão – assim: meus amigos são um barato. Um baratão. (ABREU, 2012, p. 19)

As expressões “tão chique”, “coisa”, “baratão” explicitam outra ideia que está

inerente às crônicas de Caio: a informalidade. Sobre esse signo, Laurito (1993)

afirma que não transforma em fator negativo para que a crônica perca sua essência,

que é estar permeada com o comprometimento social, pelo contrário: “é o talento do

autor que vai dar a estrutura maior a um gênero comumente considerado um modo

menor de ficção.” (p. 27-28). São sob esses aspectos que as crônicas de Caio

podem ser analisadas, através de sua aparente simplicidade, no entanto, seu

engajamento com o social, exatamente como ocorre com a narrativa de “Meus

amigos são um barato”.

No tocante ao engajamento social, é preciso observar alguns aspectos. À

primeira vista, na crônica supracitada, é possível entender que o narrador está

somente nomeando quatro de seus amigos, entretanto, ao expor características

peculiares deles, não somente descreve quem são essas pessoas próximas, mas

sim os atribui outra particularidade da crônica – que também acontece com distintos

gêneros literários: a representação. O primeiro amigo descrito na narrativa é Pedro,

ele é “superfeliz”, mora com seus pais, apesar de ter trinta anos, em um apartamento

de andar inteiro de frente para a praia no Rio de Janeiro. Além disso, Pedro é rico,

mas, como relata o narrador da crônica, “anda sempre de camisetinha zurrapa e

sandália havaiana.” (ABREU, 2012, p. 19) Pedro tem certeza de que um dia todos

irão viver em paz e ser felizes. Já a Kate despreza Pedro, ela é do estilo

supermoderna. Betinho, o terceiro amigo a ser nominado, é “radicalmente o oposto.”

(ABREU, 2012, p. 20) Ele acha que para ascender socialmente é preciso muito

esforço e dedicação, e, por fim, a Joana é a ex, “ex-atriz, ex-cantora, ex-traficante”

(ABREU, 2012, p. 20), está em Florianópolis, vivendo através de meditações.

Com o relato acerca das feições dos quatro amigos, percebemos que existem

diversos segmentos sociais, entre eles: o rico, a supermoderna, o esforçado e

aquela que busca seu arrependimento por suas atitudes na vida através da religião.

No início da crônica, o narrador ainda alerta aos leitores: “qualquer semelhança com

a realidade não é mera coincidência.” (ABREU, 2012, p. 19) Tais referências

permitem inferir a ideia de que Caio, assim como outros cronistas, possui habilidade

que Sá (1999) ressalta, que é de captar com intensidade os sinais da vida, isto é,

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através da representação de quatro amigos, o narrador inclui uma grande parcela de

jovens em sua narrativa. A importância da representação para as crônicas ocorre na

medida em que o leitor passa a se identificar com o objeto narrado. Outro fator que

contribui para realçar o critério da identificação é o meio de difusão das crônicas ser

um jornal. Como Caio escrevia toda semana para O Estado de São Paulo, era

necessário criar uma periodicidade de leitura, assim, para que isso se concretizasse

de forma satisfatória, o narrador impunha estratégias para que o leitor pudesse

continuar a comprar o jornal e ler semanalmente suas crônicas. E nesse sentido é

que a representação está inserida para que os leitores pudessem se identificar com

as crônicas e passassem a comprá-las toda semana.

Voltando aos aspectos das crônicas, no que tange a simplicidade, Sá (1999)

ressalta que ela só é valorizada quando o leitor utiliza o senso crítico para ler, como

ocorre na crônica, em que, ao utilizar atributos da personalidade de cada um dos

amigos, o narrador não o faz com o intuito de ser generalista, em sentido oposto, ele

está transportando os jovens para serem representados, através do relato pessoal

sobre amigos. Ainda sob esse aspecto, a reflexão proposta pela narrativa que tem

como elementos singulares a oralidade e o coloquialismo elaborado incorre na

premissa de Laurito (1993) acerca de não nomear essas particularidades do gênero

como negativas, pelo contrário, elas são utilizadas para aproximar narrador e leitor.

No entanto, mesmo com a simplicidade, oralidade e coloquialismo elaborado, a

construção de raciocínio proposta por Costa (2010), de que as crônicas não

dispensam e nem ignoram os recursos de toda linguagem literária, são

perfeitamente aceitáveis nas crônicas de Caio. No tocante à linguagem literária, ela

pode ser verificada na medida em que apresenta a escrita figurativa e a construção

acerca de personagens, que, mesmo sem espaço de aprofundamento, são

delineados para expor a sua natureza ao leitor. (COSTA, 2010)

Ainda com relação à concepção da linguagem, é oportuno ressaltar que ela

está relacionada à estrutura das crônicas. Nesse sentido, observamos que todas as

crônicas da obra A Vida Gritando nos Cantos possuem narrador em primeira

pessoa, o que equivale a afirmar que os textos em primeira pessoa intensificam um

maior impacto social e acentuam maior envolvimento com a narrativa. Pellegrini

(2008) corrobora essa visão sobre a narrativa em primeira pessoa, afirmando:

Nas narrativas em primeira pessoa, a brutalidade da situação é transmitida pela brutalidade de seu agente (personagem), ao qual se identifica a voz

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narrativa, que assim descarta qualquer interrupção ou contraste crítico entre narrador e matéria narrada. (p. 138-39)

Já com relação às narrativas em terceira pessoa, a estudiosa ressalta que a

identificação do narrador com o personagem acaba por ser impedida por motivos

sociais. Nas palavras da autora:

O desejo de preservar a distância social levava o escritor, malgrado a simpatia literária, a definir sua posição superior, tratando de maneira paternalista a linguagem e os temas do povo. Por isso se encastelava na terceira pessoa. (p. 138-39)

Desse modo, narrar em primeira pessoa é uma forma de intensificar a relação

entre literatura e o meio social, já que o narrador está envolvendo, de maneira

notória, o leitor através de sua narrativa. Os textos de Caio podem ser analisados à

luz da experiência social, além disso, ele utiliza as estratégias textuais para se

aproximar do leitor e do meio em que está inserido. Dentre as estratégias, podemos

ressaltar a linguagem atrelada à humanização, já que, para Candido (1989), as

crônicas possuem essa peculiaridade: “Na sua despretensão, humaniza; e esta

humanização lhe permite, como compensação sorrateira, recuperar com a outra

mão certa profundidade de significado e certo acabamento de forma.” (s./p.) Além

disso, outra forma de aproximar narrador e leitor são a presença do humor e da

ironia que se estabelecem entre as narrativas. Caio está calcado nessa premissa,

por isso na próxima seção reúnem-se exemplos de como essas duas prerrogativas

são recorrentes em sua narrativa.

2.2.3. O humor e a ironia nas crônicas de Caio

Para melhor refletir acerca da presença do humor e da ironia nos textos de

Caio, é preciso manifestar a sua conceituação e a forma com que serão entendidos

nesse estudo. O conceito de ironia começa a se desdobrar com Lukács, na obra A

teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. O

estudioso reflete acerca de sua conceituação ser recorrente dos primeiros teóricos

do romance, os estetas do primeiro Romantismo. Sobre esses, o autor cita como

exemplo a obra de Friedrich Schlegal, Kritische Ausgabe de 1967: “Para Friedrich

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Schlegal, por exemplo, entre suas inúmeras definições a ironia é a contínua

alternância entre autocriação e autoaniquilição.” (LUKÁCS, 2000, p. 74)

De acordo com essa primeira conceituação da ironia através do gênero

romance, Silva Filho (2012) ressalta que o conceito se desdobra através de um

movimento duplo: “como exigência normativo-composicional e como radicalização

subjetiva que excede a normatividade.” Isso posto, podemos entender que a ironia

foi se modificando ao longo dos anos. Moisés (2004) acrescenta o seu percurso,

desde a comédia grega, passando pela ironia dramática ou ironia trágica, até chegar

ao conceito moderno em que pauta-se no indeciso contorno dos pensamentos da

palavra, conforme indica o autor:

De modo genérico, e segundo a tradição que remonta a Quintiliano, a ironia consiste em dizer o contrário do que se pensa, mas dando-o a entender. Ou nas palavras do autor da Institutio Oratoria (VIII, 6, 54; IX, 2, 44) a ironia é uma ilusão, envolvendo uma figura e um tropo, por meio da qual entendemos alguma coisa que é o oposto do que realmente foi dito. Estabelece-se um contraste entre o modo de enunciar o pensamento e seu conteúdo. A ironia funciona pois, como um processo de aproximação de dois pensamentos, e situa-se no limite entre duas realidades, e é precisamente a noção de balanço, de sustentação, num limiar estável, a sua característica básica do ponto de vista da estrutura. (MOISÉS, 2004, p. 247)

Pode-se observar, ainda, que a ironia é uma forma de humor, ou

desencadeia-se deste: “acompanhada de um sorriso; o sarcasmo induz ao cômico e

ao riso, quando não a gargalhada.” (MOISÉS, 2004, p. 247) Ademais, para que as

características ressaltadas acerca da ironia se concretizem, ela precisa estar

inserida em um contexto, ao passo que fora dele, o seu efeito torna-se obscuro.

Com vistas à conceituação do humor, que está atrelado à ironia, podemos entender

como um conceito promulgado por Jan Bremmer e Herman Roodenburg (2000) na

obra Uma História Cultural do Humor, é apreendido em seu sentido mais genérico,

isto é, desde a troca de palavras, trotes aos trocadilhos, da farsa à sandice. Nas

palavras dos autores:

Entendemos o humor como qualquer mensagem – expressa por atos, palavras, escritos, imagens ou músicas – cuja intenção é a de provocar o riso ou um sorriso. Esta definição não só nos permite estender as investigações à Antiguidade Média, à Idade Média e ao início do período moderno, mas também fazer perguntas de interesse dos historiadores culturais: como o humor é transmitido e por quem, para quem, onde e quando? (BREMMER, ROODENBURG, 2000, p. 13)

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Por essa linha de raciocínio, os autores entendem que a noção de humor é

relativamente nova. Em seu significado moderno, a primeira vez que foi registrada

ocorreu na Inglaterra em 1962, pois, antes disso, Bremmer e Roodenburg (2000)

afirmam que significava “disposição mental ou temperamento.” (p. 14) Considerando

as distintas concepções acerca da conceituação do riso, os estudiosos reconhecem

a sua difícil conceituação: “até agora foi impossível estabelecer a coerência entre as

várias palavras, conceitos e práticas do riso.” (BREMMER, ROODENBURG, 2000, p.

15). Com vistas ao humor, Barbosa (2010), após descrever os percursos do conceito

desde a Grécia Antiga até a Comédia Clássica, compreendeu que o cômico está

atrelado a fazer rir, enquanto o humorista faz rir e pensar:

Ainda mais: enquanto a comicidade mostra, de diferentes maneiras, as contradições, o humorismo, além de mostrar essas contradições, trata de sentir dialeticamente, ao mesmo tempo, cada um dos elementos dessa contradição, a fim de compreendê-la. Assim, concluímos que o humorismo está relacionado a todos os métodos da comicidade, porém acrescentando um componente crítico. (BARBOSA, 2010, p. 46)

No que tange o humor atrelado ao componente crítico, e a ironia cujo

significado, de acordo com as acepções dos autores supracitados, consiste

basicamente em dizer o contrário daquilo que se pensa, deixando uma distância

entre aquilo que realmente existe e o que se pensa ser verdade, podemos entender

que essa é a forma com que Caio utiliza a ironia e o humor em seus textos. Na

crônica publicada em 31 de outubro de 1993, “Tese de mestrado à Holandesa”, o

narrador descreve os tipos de gays que existem no Brasil. Desde o título, é possível

perceber a presença do humor e da ironia. Em linhas gerais, o narrador relata a sua

experiência ao ajudar um amigo holandês a preparar sua tese de mestrado. Sappe

Grootendorst viveu algum tempo no Brasil, por isso o tema de seu trabalho era

intitulado como “Homossexualismo na Literatura Brasileira”:

Nas noites de inverno de Amsterdã, com os canais cobertos de gelo, eu tentava ajudá-lo a compreender o que, para uma cabeça holandesa, é tão complexo que mais parece título de outra tese: ambiguidade do comportamento sexual brasileiro. (ABREU, 2012, p. 165)

A partir deste excerto em que o narrador traduz a temática do trabalho do

amigo holandês, é possível considerar a perspectiva crítico-social que é abordada

pelo autor sobre como ocorre o comportamento sexual brasileiro. Para explicar essa

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ambiguidade, Caio aponta a literatura: [a ambiguidade] “ultrapassa a literatura, mas,

naturalmente, tem reflexos nela. Tanto que uma das maiores personagens da nossa

literatura (a/o Diadorim de Guimarães Rosa, em Grande Sertão) é um travesti.”

(ABREU, 2012, p. 165) A ambiguidade citada pelo autor aparece em “o/a”, seria o

Diadorim ou a Diadorim? Sob essa perspectiva, o escritor, para ajudar seu amigo,

subdivide os gays brasileiros em quatro tipos básicos. O contexto em que os

homossexuais são representados nesse primeiro momento da crônica assemelha-se

não a um grupo de pessoas, mas sim a objetos, que são relacionados ironicamente

a (sub)divisões. Nessa esteira, Alvarece (2009) explicita a sua construção de

raciocínio acerca da ironia. Para a autora, o conceito pode ser melhor entendido

através de um exemplo:

A frase “Sorria você está sendo filmado”, encontrada há alguns anos em inúmeros centros comerciais espalhados por todo Brasil. Na verdade, deparando com esse enunciado, somos convidados não a esboçar um sorriso, como se sugere literalmente, mas, sim, somos avisados de que estamos submetidos a uma câmera e, sendo assim, caso ajamos ilicitamente, seremos identificados. Esse é, pois, um caso em que a ironia se faz presente no cotidiano, sem oferecer dificuldades maiores de interpretação. (ALVARECE, 2009, p. 24)

O exemplo de Alvarece (2009) acerca de como a ironia pode ser

compreendida em uma situação simples do cotidiano, que está deixando uma

distância entre aquilo que realmente existe e o que se pensa em ser verdade,

também pode ser inserida na crônica de Caio. Ao mencionar que os gays foram

postos em classes diferentes, o narrador está indicando, de forma irônica, que eles

são vistos em sua forma geral e não através de peculiaridades que lhes são únicas.

Nessa perspectiva, Miskolci (2009) apresenta o conceito de heteronormatividade,

como pressuposto de algo que é fundamento da sociedade:

A heteronormatividade expressa as expectativas, as demandas e as obrigações sociais que derivam do pressuposto da heterossexualidade como natural e, portanto, fundamento da sociedade (CHAMBERS, 2003; COHEN, 2005, p.24) Muito mais do que o aperçu de que a heterossexualidade é compulsória, a heteronormatividade é um conjunto de prescrições que fundamenta processos sociais de regulação e controle, até mesmo aqueles que não se relacionam com pessoas do sexo oposto. Assim, ela não se refere apenas aos sujeitos legítimos e normalizados, mas é uma denominação contemporânea para o dispositivo histórico da sexualidade que evidencia seu objetivo: formar todos para serem heterossexuais ou organizarem suas vidas a partir do modelo supostamente coerente, superior e “natural” da heterossexualidade. (MISKOLCI, 2009, p. 156-157)

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Através do conceito de heteronormatividade, em que a sociedade se

determina a moldar os sujeitos para escolherem pessoas de sexo oposto para se

relacionar, é imperioso considerar que essa é a representação que o narrador está

determinando ao subdividir os gays em grupos. O narrador então explica quais as

características que fazem um gay ser uma Jacira. Essas, de acordo com a sua

divisão, são aquelas que todo mundo sabe que ela é, e ela mesma não se dá o

trabalho de esconder que é mesmo. “Ao contrário, até gosta de exibir isso chamando

atenção em público com gritinhos e gestos afeminados. O que talvez seja uma

grande esperteza, pois a Jacira sabe também que, em sua hipocrisia, o Brasil aceita,

aprova e até aplaude a caricatura.” (ABREU, 2012, p. 165)

Já a Irma é mais complexa:

a Irma é aquela que todos acham que ela é (dá a maior pinta), menos ela mesma. Frequentemente Irmas são casadas, ou têm noivas e namoradas, às vezes até filhos. Gente maldosa costuma chamá-las de “bichas com álibi”, mas a verdade é que, em se tratando de uma Irma, ninguém poderá provar jamais absolutamente nada.... (ABREU, 2012, p. 165)

A terceira, intitulada como Telma é parecida com Irma, nega de pés juntos a

sua opção sexual. Mas, ao contrário da primeira, Telma não “dá pinta.” (ABREU,

2012, p. 165) O problema, segundo Caio, “é que, depois do terceiro uísque, Telmas

fazem coisas que deixariam até uma Jacira ruborizada. E na manhã seguinte, lógico,

não lembram de nada.” (ABREU, 2012, p. 165) Telma ainda possui outra

característica, leva a vida duplamente: “uma, contidíssima, como Telma

propriamente dita; outra quando sai fora de si, como a mais louca das Jaciras.”

(ABREU, 2012, p. 165) Ao contrário das três, a última, Irene, faz o estilo mais

equilibrada, sensata: “Como não esconde nada, também não precisa se preocupar

em ser ou não descoberta. Em geral é culta, viajada, analisada. De todas as formas,

procura o equilíbrio, aceita seus desejos e até milita pela causa.” (ABREU, 2012, p.

166)

De acordo com a construção de raciocínio proposta por Caio acerca dos

quatro “tipos” de gays que a sociedade brasileira possui, é possível afirmar que, de

forma totalmente irônica, isto é, deixando uma distância entre aquilo que realmente

existe e o que se pensa ser verdade, a reflexão do autor pauta-se em uma exclusão

social deste grupo. Todas elas se relacionam a “dar pinta”, a observar o que os

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outros pensam, tentar fingir em ser o que não são. Mesmo a Irene, que é a mais

equilibrada, está preocupada com a posição social que a sua opção sexual irá lhe

trazer e milita pela causa. E, se isso ocorre, é porque ela está ciente dos tipos de

exclusões que a sua opção lhe traz. Camargo (2010) explicita uma reflexão sobre o

preconceito, de acordo com o autor, este é geralmente expresso por meio de

ofensas que ferem os outros, “como, por exemplo, classificar, nomear um

homossexual de ‘bicha’, de ‘viado’, de ‘gay’ ou de ‘mulherzinha’, entre outros

adjetivos pejorativos, que denigrem a imagem e a identidade sociocultural de um

determinado grupo ou indivíduo.” (CAMARGO, 2010, p. 04)

Se fossem aceitas as premissas de que o narrador não estaria sendo irônico

nesta crônica, a narrativa pautar-se-ia numa imagem de que ser gay é estar

afrontando uma sociedade que é sedimentada em valores arcaicos, uma cultura

conservadora e calcada na heteronormatividade. No entanto, Dip (2009) explica qual

foi a intenção do narrador ao criar estes gêneros:

Não contente com essa quantidade de gírias, Caio ainda inventava outras, hilárias, no seu típico humor gay, ou queer, que vinha com a liberação sexual em todos os cantos do mundo. (...) assim ele cria uma lenda de que quatro irmãs seriam os protótipos definitivos do gay masculino. (p. 70)

A autora da biografia de Caio continua relatando que ele gostava de criar

expressões: “ele vivia criando ou adotando expressões que se encaixavam em seu

léxico desbocado.” (DIP, 2009, p. 70) O escritor gaúcho criava esses termos que só

seus amigos entendiam, e Dip (2009) cita outros exemplos:

com o tempo essas criações caíram na boca de toda uma geração, tais como: saia justa, para definir uma situação difícil; lasanha para homem gostoso; rodenir, que significa aborrecido; naja, que é pessoa venenosa; a Betty Faria e o Reginaldo (Farias) para se referir a um homem bonito e que ele adoraria transar; laika, a cadela russa que foi para o espaço, que significava pobrezinha, coitada; bambi, que queria dizer suave, aviadado; bagaceira, gíria gaúcha que ele trouxe para São Paulo e que significava de baixo nível; bolacha; nome meio para sapatão; do bem, para definir uma pessoa ou coisa legal (antônimo: do mal)... (DIP, 2009, p. 71)

No tocante às divisões propostas por Caio na crônica, os quatro tipos, que

foram intitulados com nomes femininos, apresentam alguns elementos em sua forma

de representação. A Jacira, “chama atenção com gritinhos e gestos afeminados.” Os

“gritinhos” e “gestos afeminados” a que o autor se refere são relacionados a pessoas

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que têm interesses sexuais por outras do mesmo sexo. Sobre a Irma, Caio

menciona que todos acham que ela é, mas “não dá pinta”, e ainda chama-a de

“bicha álibi”, a relação entre não dar pinta e os gritinhos afeminados é direta. Não

dar pinta significa que a Irma não tem esses gritinhos (no sentido diminutivo para

indicar que se assemelham a um tom fino, mais aproximado com a voz feminina). Já

“bicha álibi” é um termo ofensivo para chamar os homossexuais, e, de acordo com o

Dicionário Aurélio, há vinte e duas significações para este termo, dentre elas,

“relativo à homossexualidade masculina, que tem determinadas características que

se atribuem à homossexualidade masculina.” (FERREIRA, 1988, p. 214)

Com relação a Telma e Irene, a primeira nega sua opção sexual, entretanto,

após estar sob efeito de bebidas com teor alcoólico, “ela se revela”, e, por fim, a

Irene não se preocupa em ser descoberta, pois até mesmo ela milita em favor dos

homossexuais. Mesmo que de forma indireta, as duas últimas apresentam

conotações pejorativas, haja vista que a primeira precisa de bebidas alcoólicas para

se revelar e a segunda participa de manifestações, o que nos permite inferir que elas

“obedecem” à sociedade que não aceita pessoas que fogem da regra quanto à

sexualidade.

Outra reflexão acerca da crônica são os nomes que o autor escolheu para

intitular os quatros tipos de gays. Jacira, Irma, Telma e Irene se relacionam ao

gênero feminino, mas por que, se o substantivo “gay” está relacionado ao

masculino? No que tange ao assunto em questão, Alós (2010) acentua o fato de

poder haver a separação entre gênero e sexualidade:

O Gênero e sexualidade, embora categorias distintas, não devem ser completamente desarticuladas, visto que se corre o risco do completo apagamento das relações de poder estabelecidas sob o signo da diferença de gênero. Se por um lado gays e lésbicas sofrem os efeitos do discurso heteronormativo, por outro a pertença ao gênero feminino transforma radicalmente a experiência das lésbicas, diferenciando assim a socialização e, consequentemente, a textualização dos significantes ‘gay’ e ‘lésbica’ na literatura. (p. 857)

Além da presença de nomes femininos para denotar os gays, o narrador

argumenta em sua crônica que nem mesmo elas se aceitam:

Os quatro tipos têm relações conflituosas. Só as Irmas, muito tolerantes, parecem aceitar as outras três. As Jaciras, por exemplo, super-radicais, acham que Irmas e principalmente Telmas não passam de “umas enrustidas”, enquanto as Irenes para elas são “umas falsas”. Já as Telmas,

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quando sóbrias, detestam Jaciras, demasiado explícitas, mas admiram a discrição das Irmas e desconfiam das Irenes. Estas, democráticas, tentam aceitar a todas, mas têm o irritante hábito de recomendar psicanálise às Irmas e Telmas, e consideram as Jaciras “umas folclóricas”. (ABREU, 2012, p. 166)

Na medida em que o narrador demonstra a relação conflituosa que existe

entre esse grupo, está afirmando o seu engajamento contra o preconceito existente

na sociedade. A forma irônica de tratar o assunto torna-se premeditada para

demonstrar que indivíduos são excluídos por uma opção que lhes é pessoal. A

exclusão, nesse caso, pode ser entendida de acordo com a reflexão proposta por

Porto (2000), como uma categoria na qual os atores sociais vivenciam essa prática

decorrente “de processos sociais fragmentados, diferenciados e plurais.”

A exclusão dessa minoria é acentuada através dos relatos do narrador no

restante da crônica:

Quando passei a relação para Karvin Von Schweder-Schreiner, a tradutora alemã de Rubem Fonseca, ela não só me garantiu que as quatro categorias eram internacionais, como imediatamente localizou uma quinta – a Renata. Que é aquela que, como a Irma, também tem um álibi, mas em lugares públicos sempre dá um jeitinho de ir a banheiros dos homens, onde presta muita, muita atenção. Pedro Paulo de Sena Madureira também localizou outra – a Ondina. Aquela que, ao entrar num ambiente mais descontraído (sauna, bar, discoteca, por exemplo), instintivamente começa a ondular feito uma Jacira. (ABREU, 2012, p. 166)

Fica evidente o olhar do narrador sobre as divisões e o seu posicionamento

quanto a esse grupo de minorias. O narrador termina a crônica, contando que seu

amigo Sappe, através dessa divisão, não somente entendeu como são os gays

brasileiros, que até mesmo os identifica: “Irmas e Telmas no metrô. Jacira era mais

difícil: ela é mais comum nos trópicos, mas não se dá bem com a severidade

europeia e precisa de calor para soltar toda sua jacirice.” (ABREU, 2012, p. 165) O

contexto a que a ironia está relacionada na crônica fica ainda mais claro quando o

autor menciona a tese de seu amigo, “quanto à tese – bem, por carta Sappe me

informa que está pronta. Chama-se, juro, ‘Literatura Bambi no Brasil’.” (ABREU,

2012, p. 165) “Bambi”, de acordo com a afirmação de Dip (2009) foi outra expressão

criada por Caio, cunhada no humor, o que acentua uma perspectiva da crônica de,

ao mesmo tempo, usar a comicidade para fazer alusão à comunidade homossexual

através da expressão “Bambi” e também de sinalizar uma crítica social ao apontar

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que os gays são sujeitos “guetificados”, excluídos socialmente e cujos rótulos são

percebidos através Jacyras, Telmas, Irmas e Irenes.

Esse traço, ao mesmo tempo cômico e crítico de “Tese de mestrado à

holandesa”, permite compreender que a crônica de Caio serve-se do humor segundo

a perspectiva de Barbosa (2010). Além deste, a crônica do autor apresenta outros

traços, como, a subjetividade e a alusão a elementos externos ao texto. Sobre essas

prerrogativas que a próxima seção irá tratar.

2.2.4. A subjetividade e o trabalho de citação nas crônicas

O tom íntimo e coloquial utilizado por Caio nas crônicas é uma de suas

marcas na escrita desse gênero. Contudo, há também várias referências a autores e

obras que sinalizam um intenso trabalho de citação nas crônicas do escritor. Nesse

contexto, o leitor possui uma importante tarefa: estar preparado para a compreensão

dos elementos externos ao texto que são citados pelo autor. Acerca destes

elementos externos, entendemos que Caio utiliza em suas narrativas o que Antoine

Compagnon, na obra O trabalho da citação, compreende como citação.

Para o estudioso, a citação pode ser comparada ao processo arcaico e lúdico

de recortar e colar, do mesmo modo que essa brincadeira é feita, o escritor utiliza os

elementos que “recorta” em seus textos. É nesse sentido que o autor afirma: “a

citação trabalha o texto, o texto trabalha a citação.” (COMPAGNON, 2007, p. 46)

Além disso, o contexto também deve ser analisado nesse processo: “A citação não

tem sentido em si, porque ela só se realiza em um trabalho, que a desloca e que a

faz agir.” (COMPAGNON, 2007, p. 47) Com vistas à perspectiva segundo a qual

ocorre um cruzamento de vozes na construção literária, o diálogo incorre na medida

em que a obra e a sociedade fazem parte dessa ótica, justamente o que pode ser

verificado em Caio. O autor utiliza elementos de citação em seu texto que estão

inseridos sob o viés de um contexto externo, que precisa ser compreendido pelo

leitor.

Por esse processo de compreensão, Compagnon (2007) entende que há

quatro figuras distintas para o processo de leitura: ablação, grifo, acomodação e

solicitação. A primeira estaria relacionada a extrair uma parte importante do texto, o

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grifo é um processo que coloca marcas ao texto, conforme relata o estudioso: “o

grifo na leitura é a prova preliminar da citação (e da escrita), uma localização visual,

material que institui o direito do meu olhar sobre o texto. Tal como o reconhecimento

militar o grifo coloca marcas.” (COMPAGNON, 2007, p. 19) No tocante à

acomodação, o autor a transpõe para um lugar de reconhecimento, já que se refere

a uma marca de leitura:

Dentre as numerosas definições em torno da citação, proporemos esta: a citação é um lugar de acomodação previamente situado no texto. Ela integra em um conjunto ou em uma rede de textos, em uma tipologia das competências requeridas para a leitura; ela é reconhecida e não compreendida, ou reconhecida antes de ser compreendida. (COMPAGNON, 2007, p. 22)

Após retirar a parte importante do texto, grifar e marcar, a solicitação é

compreendida como o retalhamento das narrativas. O autor explica:

Ela [solicitação] limitar-se-ia ao namoro, deixaria de excitar, de retalhar o texto. Seria, sem dúvida, uma interpretação, assim como uma única leitura concebível da enunciação. A solicitação é o correspondente, em leitura, da enunciação, um acomodamento, uma conciliação do enunciado. E as marcas da solicitação no texto são as excitações, os grifos, os desmembramentos: sinais sempre aproximativos e insatisfatórios, mas presunções de uma verdade que foi, instantaneamente, a da minha leitura. (COMPAGNON, 2007, p. 26)

Com vistas à aproximação que esses quatro processos possuem,

Compagnon (2007) elucida que não necessariamente se sucedem, mas sim podem

realizar-se uns nos outros:

Todavia, há entre elas uma degradação latente, uma ordem teórica, inversa daquela em que foram descritas e que, partindo da mutilação, penetrava até o intratável da paixão pela leitura, onde se perdia. Elas partem do objeto total em que é para mim o texto que me encanta na solicitação, passam pela acomodação num lugar reconhecido de satisfação, pelo grifo que aprisiona esse lugar, e alcançam o objeto parcial que destaco do texto na ablação. Trata-se através desses quatro momentos, de uma aproximação cada vez mais fina, de um quadriculado estratégico. Mas esse não tem nada a ver com a significação. (COMPAGNON, 2007, p. 27)

Por significação o autor compreende como sendo o quinto processo a que a

leitura está relacionada: “Eu recorro ao sentindo como a um último recurso, agarro-

me a ele por não poder encontrar a paixão, na ilusão desesperada de que um

esforço sobre a significação prender-me-ia ao texto, que pela solicitação, não me

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prendeu.” (COMPAGNON, 2007, p. 28) A solicitação, nesse contexto, faz parte ao

valor que é atribuído ao texto. E após a ela, o estudioso cita a excitação visto que

destaca o sentido da solicitação. Na esteira entre a solicitação e a excitação,

encontra-se a citação. Compagnon (2007) esclarece que a citação,

Está no princípio de toda leitura, pelo menos daquela que, impotente, prende-se exclusivamente à significação. A citação tenta reproduzir na escrita uma paixão pela leitura, reencontrar a fulguração instantânea da solicitação, pois é a leitura, solicitadora e excitante, que produz a citação. A citação repete, faz com que a leitura ressoe na escrita: é que, na verdade, leitura e escrita são a mesma coisa, a prática do texto que é prática do papel. A citação é a forma original de todas as práticas do papel, o recortar-colar, e é um jogo de criança. (COMPAGNON, 2007, p. 29)

O estudioso distingue várias “modalidades” de citação e defende a ideia de

que estas por si só, são provocativas para o leitor, oferecem pistas de como realizar

a leitura: “Ela marca um encontro, convida para leitura, solicita, provoca como uma

psicadela: é sempre a perspectiva do olho que se acomoda, do olho que se supõe

na linha de fuga da perspectiva.” (COMPAGNON, 2007, p. 23) Com efeito, quando o

autor cita, os leitores são levados a outros lugares, ampliando, assim, a visão de

leitura acerca das obras. Além disso, o autor destaca ser necessário não apenas

identificar o trabalho de citação em um texto, mas especialmente identificar o sentido

que essa citação confere ao texto escrito.

Conforme o viés apresentado acerca do conceito de citação, é possível inferir

que o leitor precisa compreender que os elementos externos aos textos auxiliam na

melhor compreensão das obras. Nesse sentido, Compagnon (2007) destaca que o

trabalho de citação no ato de leitura exige uma competência leitora:

A citação é um operador trivial de intertextualidade. Ela apela para a competência do leitor, estimula a máquina da leitura, que deve produzir no trabalho, já que, numa citação, se fazem presente dois textos cuja relação não é de equivalência, nem de redundância. Mas esse trabalho depende um fenômeno imanente ao sentido conduzindo a leitura, porque há um desvio, ativação de sentido: um furo, uma diferença de potencial, um curto-circuito. O fenômeno é a diferença, o sentido é a sua resolução. (COMPAGNON, 2007, p. 58-59)

Por esse prisma, somente um leitor preparado entenderá o processo de

citação, assim, a figura do leitor passa a ser considerada como destaque. O

estudioso Umberto Eco parte da premissa de que o processo interpretativo se

compõe de uma tríade que é formada entre autor-texto-leitor. Nessa esteira, será o

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leitor quem deverá fazer um recorte sobre as estratégias textuais que o autor coloca

em seus textos. Assim, o leitor, chamado de ideal/modelo, vê a necessidade do

reconhecimento de sua interpretação como elemento importante para fazer uma boa

leitura.

Tais perspectivas estão atreladas nas crônicas de Caio em diferentes formas:

em “Beta, beta, Bethânia”, por exemplo, sem o conhecimento prévio das citações,

não é possível compreender a mensagem do narrador. Nesta crônica, que foi

publicada em 11 de fevereiro de 1987, o narrador explicita a sua afinidade com

relação às músicas de Maria Bethânia. Podemos apontar a presença dos elementos

externos ao texto através do fragmento:

Os muito darks que me perdoem, mas Maria Bethânia é fundamental. Sei, vocês vão dizer que ela é brega, careta, exagerada, melodramática. Pode ser. Mas essa coisa chamada vida, onde estamos metidos até o pescoço, às vezes também não é brega, careta, melodramática? A vida é mais Nelson Rodrigues ou mais Clarice Lispector? Mais Augusto dos Anjos ou Emily Dickinson? Fassbinder ou Jacques Demy? Philip Glass ou Dead Kennedys? Mias Sex Pistols ou mais Cecília Meireles? Bukowsi ou Bergman? (ABREU, 2012, p. 78)

A primeira frase desse excerto apresenta uma alusão a um dos versos da

poesia, Receita de Mulher, de Vinicius de Moraes, quando este poeta declara que

“as feias que me perdoem, mas beleza é fundamental”. A citação indireta desse

verso na crônica de Caio se manifesta em dois níveis: o primeiro é linguístico, já que

a sintaxe do texto original é mantida; e o segundo é conteudístico, pois, assim como

o sujeito-lírico de Moraes defende a beleza mesmo sabendo da existência de

mulheres feias, o narrador da crônica de Caio defende a música de Maria Bethânia

mesmo sabendo que um tipo especial de público, os darks, não se identificam com o

estilo musical da cantora. Esse reconhecimento da citação só é possível na medida

em que o leitor da crônica de Caio mobiliza seu conhecimento prévio e se propõe a

refletir sobre o sentido que tal citação acarreta ao texto.

Além disso, é possível destacar que, na medida em que o narrador cita desde

cantores até escritores, eles possuem um sentido para estar em seu texto, isto é,

estão atrelados a diferentes momentos de sua vida. Essa premissa pode ser

verificada no trecho:

Tudo isso, sim, e muito mais. O engarrafamento às seis da tarde de uma sexta-feira de chuva, na marginal do Tietê, pode ser uma emoção-Titãs (tipo

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“Bichos escrotos”). Transar com a garota prostituta da rua Augusta, de minissaia de couro e correntinha no tornozelo, pode ser uma emoção-Dalton Trevisan. Dar um espirro bem na hora de dizer eu-te-amo pode ser uma emoção-Woody Allen. Assim por diante, cada coisa sendo por cada um é tão particular que, mesmo lugar-comum ou já cantado em prosa e verso, é para sempre também único. Infinitiva e indivizivelmente subjetivo. (ABREU, 2012, p. 78)

O fragmento viabiliza um primeiro conjunto de observações. Um primeiro

ponto diz respeito à forma com que Compagnon (2007) reconhece as citações. Para

o estudioso, a citação por excelência é a epígrafe, e, além desta, há a citação por

aspas e a bibliografia. A recorrência das citações na narrativa de Caio se dá com a

utilização da bibliografia e das aspas, e um exemplo de como incorre o emprego da

primeira é a menção do fragmento supracitado que remete as músicas e cantores. O

crítico explica esse recurso da seguinte forma:

Assim como uma cidade (mais urbana que celeste: uma pessoal moral), o texto é cercado por todos os lados. Ao pé da muralha, um fosso reduplica e acentua a fronteira; ele é sinalizado com postes e marcos; barreiras policiais vigiam as entradas: são as referências exibidas, as notas de rodapé – foot-notes, em inglês. A todo instante elas trazem à lembrança aquilo sobre o que o texto se apoia, muletas ou estacas, aduelas: o texto é uma ponte lançada no vazio, do que tem horror; ele teme a queda. Entre seus pilares, [estão] a epígrafe e a bibliografia. (COMPAGNON, 2007, p. 124)

Por essas vias, entendemos a bibliografia – como a metáfora utilizada pelo

estudioso – o pé de uma montanha que é sinalizado por postes e marcos, então

esses seriam os elementos externos, que se incorporam ao texto, proporcionando a

sua sustentação, exatamente como a inclusão da bibliografia na narrativa de Caio é

utilizada. Nesse sentido, a referência à música dos Titãs, na crônica “Beta, beta,

Bethânia”, configura-se como uma bibliografia, isto é, um elemento externo que é

citado ao texto. Para que o leitor entenda o que está sendo exposto pelo narrador,

ele precisa ter conhecimento que a música “Bichos escrotos” do Titãs fala sobre

baratas, ratos e lixos. Além disso, é preciso saber que a marginal Tietê é uma

avenida da cidade de São Paulo que passa ao lado do rio Tietê. Este rio tornou-se

conhecido em todo país pelas constantes divulgações na mídia acerca de sua

poluição e sujeira. Por isso, o narrador, ao citar a música, está fazendo menção de

que, em dias de chuva, a sujeira se intensifica e, nesse ambiente de sujeira,

putrefação e decomposição de matéria-orgânica, todos decorrentes dos resíduos,

acarretam ainda mais um ambiente favorável para a proliferação de animais, que se

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utilizam dos entulhos que se formam nos rios para construir seu habitat. Outros

elementos externos ao texto são citados através da presença de Dalton Trevisan e

Woody Allen. Sobre o primeiro, Soerense et al (2012), afirmam:

Dalton Trevisan é um dos maiores contistas brasileiros. O autor utiliza o conto, que faz parte do gênero de narrar, para trazer à tona a reflexão sobre o cotidiano. É uma sequência de fatos corriqueiros que se caracteriza pela presença de ações, pela ocorrência de personagens prosaicas e por se referir a acontecimentos ordenados, na maioria das vezes, cronologicamente. (p. 207)

Ao reconhecer acerca do que as autoras explanam sobre Dalton Trevisan, é

possível verificar qual a interação entre a citação do narrador, quando diz “transar

com a garota prostituta da rua Augusta, de minissaia de couro e correntinha no

tornozelo, pode ser uma emoção-Dalton Trevisan” (ABREU, 2012, p. 78). O narrador

está referindo às temáticas utilizadas pelo autor paranaense, já que este se dedica

ao fazer literário sem concessões às distrações da vida pessoal e social e, nesse

sentido, podemos afirmar que, sem o conhecimento prévio acerca das temáticas

utilizadas por Trevisan, não seria possível compreender a citação do narrador. Em

sentido análogo ocorre a referência a Woody Allen, que é o nome artístico de Allan

Stewart Königsberg, um cineasta, roteirista, escritor, ator e músico estadunidense,

que no excerto é relacionado pelo narrador a sua forma de fazer cinema.

Ainda nesse aspecto, é possível inferir que os elementos supracitados, que

são encontrados no texto de Caio, estão relacionados ao processo produtivo do

escritor. Esse trabalho da escrita realizado pelo narrador pode ser melhor

compreendido com base na explicação de Compagnon (2007):

O trabalho da escrita é uma reescrita já que se trata de converter elementos separados e descontínuos em um todo contínuo e coerente, de juntá-los, de compreendê-los (de tomá-los juntos), isto é, de lê-los: não é sempre assim? Reescrever, reproduzir um texto a partir de suas iscas, é organizá-las ou associá-las, fazer as ligações ou transcrições que se impõem entre os elementos postos em presença um do outro: toda escrita é colagem e glosa, citação e comentário. (p. 39)

Nesse sentido, o estudioso afirma que escrever é sempre um ato de re-

escrever, visto que, os elementos externos ao texto – as citações – diluem-se em

meio as ideias de quem está nesse ato de escrita, construindo assim, um novo texto

que mescla essas diferentes alusões. Voltando a crônica, além deste trabalho de

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recriação por parte do narrador, identificamos outros signos: a melancolia,

subjetividade e introspecção, todos eles ligados à citação tanto da música

(referenciada na crônica por Titãs), Literatura (Dalton Trevisan) e cinema (Woody

Allen):

Darks, pós-modernos, minimalistas, gliters, apocalípticos, concretistas, skinheads, me perdoem. Na noite de sábado, caminhando sozinho pela avenida Paulista, o quarto-crescente brilhando sobre a torre da TV Globo, uma vontade desesperada de ter alguém – as únicas canções que me vieram à mente para cantar baixinho foram canções de Bethânia. Doía fundo estar perdido na grande cidade, era completamente sem remédio ser só uma pessoazinha machucada. Mas brotou então um orgulho tão grande de ser ainda capaz de sentir o coração cheio de emoções-Bethânia que era quase como uma felicidade. Sangrada, do avesso – que importa? Era real, era vivo. Isso é muito, e Bethânia canta. (ABREU, 2012, p. 79)

O narrador novamente faz menção ao excerto de Vinícius de Moraes, Receita

de Mulher, ao afirmar que os “Darks, pós-modernos, minimalistas, gliters,

apocalípticos, concretistas, skinheads, me perdoem”. (ABREU, 2012, p. 79) Nesse

sentido, o leitor precisa estar preparado para entender o trabalho desta citação. À

medida que o narrador cita esses grupos sociais, está fazendo menção que nenhum

destes tem preferência musical por Maria Bethânia, e esse é um dos motivos pelos

quais está se desculpando e já os avisa que irá cantar. Nessa esteira, o leitor

precisa também ter conhecimento prévio sobre Maria Bethânia, isso porque é

através do seu estilo musical - mais romântico e introspectivo - que o narrador se

utiliza para preencher a sua “quase felicidade”, e denotar seu estado de espírito.

Já em outras crônicas, como a “Por falar em estrelas”, publicada em 14 de

agosto de 1986, a figura do leitor também não é de passividade com relação à

interpretação dos intertextos, contudo, o narrador deixa essas citações de forma

clara, o que corrobora para que o contexto não tenha tanta relevância, quanto na

crônica anterior. A narrativa da crônica citada, de forma geral fala sobre a paixão do

narrador pela astrologia. Para confirmar que é uma ciência séria, ele cita algumas

fontes, como por exemplo:

O que seria, então? Bom, se a astrologia fosse pura idiotice, você acha que Fernando Pessoa teria sido astrólogo? Aliás, a chave – ou uma das – para a compreensão de seus heterônimos está justamente nos mapas astrais que o danado levantou dos próprios. Para quem entende do negócio, faz muito sentido saber que Ricardo Reis tinha Mercúrio, Urano, Lua e Júpiter na casa 8 – a casa das transformações, da transcendência. Ainda nessa linha: Anais Nin, escritora brilhante, também era astróloga (e psicóloga). E Milan Kundera, veja só, é outro. (ABREU, 2012, p. 39)

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Como podemos perceber, a presença de elementos externos torna-se como

na primeira crônica, evidente. No entanto, os escritores/astrólogos, Fernando

Pessoa, Anais Nin e Milan Kundera não implicam a determinação da interpretação

do leitor acerca da crônica. Mesmo sem conhecer as suas biografias, o leitor tem

informações no texto de Caio para que eles sejam reconhecidos e entendidos.

Esses aspectos podem ser melhor explorados, com o excerto da narrativa em

que o narrador explica a diferença entre astrologia e horóscopo de jornal:

O problema é que as pessoas confundem astrologia com horóscopo de jornal. E não há nada mais pessoal que uma mapa astral, o retrato do céu no momento em que nascemos. O horóscopo de jornal considera apenas a posição em que estava o Sol, ou o ascendente (a constelação do Zodíaco que subia no horizonte no momento do nascimento) e isso é vago demais. Em certos casos – como no horóscopo do Caderno 2, o de Hollander, na Folha, ou o de Pedro Tornaghi, no Around – as informações mais sérias. E mesmo assim, vagas. Para fazer uma previsão astrológica, é preciso considerar trânsitos, progressões, revoluções, direções. (ABREU, 2012, p. 39)

Mesmo sem ter o conhecimento prévio do Caderno 2, Hollander ou de Pedro

Tornaghi do Around, o leitor pode entender que o narrador está citando elementos

externos ao texto para explicar a diferença entre um horóscopo e o zodíaco. Além

desse tipo de citação - a bibliográfica - nesta crônica há a ocorrência da utilização

das aspas:

E para quem quiser ficar atento, deixo de saideira este trecho (citado de memória) de Doris Lessing, em Shikasta: “Todos nós fazemos parte das estrelas. Elas nos fazem, nós as fazemos. Somos parte de uma estranha coreografia da qual nunca, de maneira alguma, podemos pensar em nos separar.” (ABREU, 2012, p. 40)

Com a utilização das aspas, o narrador está mencionando de forma direta um

elemento estranho ao seu texto, esse elemento é a citação por aspas. Compagnon

(2007) a define como:

O que as aspas dizem é que a palavra dada a um outro, que o autor renuncia a enunciação em benefício de um outro, as aspas designam uma re-enunciação, ou uma renúncia a um direito de autor. Elas operam uma sutil divisão entre os sujeitos e assinalam lugar em que a silhueta do sujeito da citação se mostra em retirada, como uma sombra chinesa. (p. 52)

Desse modo, citando, o narrador faz com que um extratexto interfira na

escrita, perfazendo uma nova enunciação que se mistura a ideia de outrem às

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explicações do novo texto, conduzindo assim o leitor a um mundo mais extenso.

Com esteio nas ideias apresentadas, é oportuno ressaltar que, mesmo com as

diferenças que foram expostas, as crônicas possuem uma coordenada em comum: o

leitor é figura ativa. Através das narrativas pode-se refletir sobre o Leitor-Modelo que

Caio espera de seus textos. Com base em seu estilo de linguagem e a forma com

que conduz suas narrativas, podemos inferir que o Leitor-Modelo21 de Caio deve ter

conhecimentos sobre elementos que contenham significação fora de seus textos.

Nesse contexto, o narrador precisa da colaboração do leitor, no sentido, do primeiro

deixar pistas para serem apreendidas, o que estiver implícito precisa ficar claro para

o leitor. Por exemplo, quando lemos, “o filho de dona Matilde tornou-se médico”, o

que está implícito, que o autor deixa pistas para o leitor, é que dona Matilde é a mãe,

e que o filho dela é um homem, um ser vivo, que respira, etc. Nessa perspectiva de

leitura, podemos entender que Eco volta-se para a reflexão de que ler vai além da

perspectiva de compreender o que o texto diz, mas sim ler é observar as

implicaturas, aquilo que não está dito no texto: “O trabalho do leitor é duplo: ao

mesmo tempo que deve expandir certos termos, deve reduzir outros: amplia

algumas propriedades, ao mesmo tempo que mantém outras sob narcose.” (ECO,

1979, p. 91)

Nessa esteira, percebemos que a atribuição de sentido a um texto ocorre na

medida em que as hipóteses interpretativas são realizadas pelo Leitor-modelo. Esse

leitor pode até não existir, mas o autor, de acordo com Eco, precisa trabalhar seu

texto para construí-lo. Por si, o texto é visto como um sistema isolado, enquanto não

estiver inserido, correlacionado a um objeto, perderá o sentido. Mesmo com a

utilização de um dicionário para identificar o significado das palavras, não

solucionará a questão, pois sempre há propriedades semânticas que permanecem

implícitas. Outro fator que contribui para essas características citadas pelo autor é

que a comunicação de um texto não ocorre frente a frente entre leitor e autor, de

forma a obter perguntas/respostas, e, com vistas a isso, é que o leitor precisa

cooperar: “O texto é um produto cujo destino interpretativo deve fazer parte do

próprio mecanismo gerativo.” (ECO, 1979, p. 39)

21 Expressão que foi idealizada por Umberto Eco. O estudioso, em sua obra, “Lector de uma Fábula” admite que ao produzir um texto, o autor imagina como o leitor irá definir suas prerrogativas, contudo, ele não sabe ao certo como será interpretado, de como será esse leitor. E é neste contexto de produção e recepção que Eco cria a concepção de Leitor-Modelo.

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Por interpretação, Eco (1979) entende que a sua noção, “sempre envolve

uma dialética entre estratégia do autor e resposta do Leitor-Modelo.” (p. 43) O autor

advoga ainda que a interpretação pressupõe um recorte, que são determinadas

pelas estratégias textuais entre autor, texto e Leitor-Modelo, assim, a interpretação

deve ser vista como um processo aberto e cooperativo pela tríade autor-texto-leitor.

É com base nas inter-relações formadas por autor e leitor que os diálogos nas

crônicas de Caio estão pautadas, haja vista também o intenso trabalho de citação

que é perceptível nas crônicas do autor e que mobilizam o conhecimento prévio do

leitor na construção de sentido para as crônicas. É sobre a busca pelo diálogo com o

leitor que a próxima seção trata.

2.2.5. A busca pelo diálogo com o leitor

Uma particularidade da crônica que lhe confere importância está calcada no

processo que busca a manifestação da oralidade na escrita, isto é, deixa de ser um

comentário argumentativo ou expositivo para se tornar uma espécie de conversa

entre narrador e leitor. No que tange ao leitor, é importante ressaltar que o leitor de

jornal não é uma unidade abstrata, visto que o meio impresso se dirige a um público-

alvo, dessa forma, o jornalista/cronista, sabe – de forma generalista, mas não

abstrata – a quem está escrevendo e quais os interesses destes leitores22. Nesse

sentido, torna-se mais fácil para o narrador manter uma espécie de diálogo com os

seus leitores. E é sobre esse processo de diálogo entre narrador/leitor que

observaremos nas crônicas de Caio.

A crônica publicada em seis de abril de 1986 “Para machucar corações” está

atrelada a um dos assuntos preferidos do escritor gaúcho em suas crônicas: a

música. Com vias a comentar o disco do músico John Lennon, o narrador mescla

reflexões do dia a dia em uma cidade movimentada: “Aquela fadiga que se insinua,

persistente, entre o ruído das buzinas e das descargas nos engarrafamentos de

trânsito, todo dia.” (ABREU, 2012, p. 17) A música, no contexto de cidade grande,

pode ser entendida como uma fuga dos motoristas que precisam enfrentar os

problemas citados pelo narrador.

22 Para melhor avaliar as condições de mercado em que o jornal estará inserido, uma estratégia que é utilizada, principalmente em grandes jornais, é a pesquisa de opinião pública. Esta apresenta resultados importantes, no que tange ao público-alvo, desde idade, classe social, dentre outros. Desse modo os jornalistas têm maior conhecimento a quem estão escrevendo.

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Além do assunto principal – música –, o diálogo com o leitor é frequente em

toda crônica, como pode ser observado, na linha de apoio23 da crônica: “Para quem

tem mais de trinta, trinta e cinco anos, este disco pode ser uma tortura. Não, não é

que seja um mau disco. Eu explico. Ou melhor tento.” (ABREU, 2012, p. 17) Este

fragmento constitui uma espécie de orientação de leitura que apresenta pistas ao

leitor sobre o conteúdo da crônica. Podemos relacionar a linha de apoio ao

hibridismo que as crônicas possuem com a literatura e o jornalismo, já que esse

elemento está presente em grande parte das 109 crônicas que estão reunidas na

obra escolhida para compor o corpus dessa pesquisa, A Vida Gritando nos Cantos.

Além da presença dessa orientação de leitura, a opinião do narrador fica

evidente. Sobre esse aspecto, Simon (2008) explica que, nas crônicas, o espaço do

que o “eu” enxerga está atrelado à condição de narrador:

A crônica que funde acontecimento e comentário do acontecimento é propícia como espaço para aquilo que o “eu” vê, para o que o “eu”, desdobrando-se em seguida para a expressão dos sentimentos, comentários e reflexões face ao que foi – às vezes, muito brevemente - narrado. (p. 62)

Tomando como referência a proposição do autor, o narrador reproduz na

crônica a sua visão acerca do que o disco de John Lennon acarreta no meio social.

Nesse sentido, o narrador intui a busca por um diálogo, já a marca do discurso pode

ser observada em fragmentos: “É que fatalmente eu/tu/ele/nós vamos lembrar.”

(ABREU, 2012, p. 17) O narrador inclui dessa forma o leitor, deixando-o como parte

integrante da situação que é construída por ele (o narrador): “Eu não estou certo se

essas lembranças serão boas. Ou se seria boas, lembradas hoje, você me

entende?” (ABREU, 2012, p. 17) Mesmo sem possuir as marcas do narrador e o

rompimento da convenção do discurso com relação à marcação das falas por aspas

ou travessões, quando o narrador afirma “você me entende?”, percebemos a

presença de uma espécie de diálogo.

Em leitura análoga, uma das premissas presentes nas crônicas de Caio é o

diálogo que suprime a presença do narrador. Há um rompimento de convenção do

discurso, as falas são marcadas por expressões, sem a pontuação correta e sem a

23 Linha de apoio é uma expressão com cunho jornalístico. Representa, como o nome propõe, a linha colocada abaixo do título, para explicar o que o título deixou implícito. A linha de apoio pode também ser entendida como uma sucessora do lide, isto é, do primeiro parágrafo em que as principais informações da notícia/reportagem devem ser expostas.

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marcação para o leitor da mudança de quem fala. Essa observação pode ser

exemplificada através do fragmento:

Ele foi gravado ao vivo, no Madison Square Garden, em 30 de agosto de 1972. Há quase, portanto, catorze anos. Você tinha quantos – quinze, vinte, vinte e cinco? E provavelmente também imaginava que, um dia, pudesse não haver mais guerras, nem países, nem ódio entre as pessoas. Um mundo novo, não é isso? (ABREU, 2012, p. 17-18)

Ao contextualizar os leitores da crônica acerca do período em que o disco de

John Lennon foi produzido, o narrador, em formato de indagações, reporta-se aos

leitores, observando um possível questionamento àqueles que estão lendo a

crônica. O rompimento da convenção de discurso fica evidente neste diálogo, haja

vista que, ao mesmo tempo em que o narrador pergunta, já coloca supostas

respostas que os leitores lhe poderiam inferir. Essas afirmações ficam evidentes

quando o narrador questiona: “Você tinha quantos – quinze, vinte, vinte e cinco?” E

após, ainda, faz uma reflexão do meio social, denotando, que, com essa idade, as

pessoas sonham com um mundo melhor. Nesse sentido, entendemos, além do

rompimento da convenção de discurso, um cuidado especial para inserir o leitor em

uma espécie de diálogo.

Essas mesmas marcas podem ser notadas em outras crônicas de Caio, como

em “Inútil pranto por Santa Tereza”, em que o narrador conta, em formato

autobiográfico, a sua história com a cidade de Santa Tereza. Nessa crônica, o

diálogo com o leitor está explicitando a incorporação de representar a violência que

está ocorrendo nas cidades. Os tons de diálogos são mais reflexivos e menos

diretos que em “Para machucar corações”. A marca desta premissa pode ser

verificada no trecho a seguir:

Nos fundos do apartamento, um abismo de bananeiras, flores tropicais e selvagens que ninguém sabe o nome. Vezenquando alguma sobra atravessa a rua, bem natural. E nós tão hippies, mas tão hippies que volta e meia, geralmente nos sábados à tarde, o pintor Luiz Jasmin (onde andará?), que morava ao lado, colocava as caixas de som na janela e a trilha sonora de Hair bem alto, só para nós. Os acordes de Aquaris ou Let the sunshine in eram uma declaração de simpatia ao mesmo tempo explícita e delicada. Se éramos felizes? Não sei, éramos jovens. (ABREU, 2012, p. 217)

A indagação sugestiona a introspecção do narrador através de lembranças

íntimas com o morro de Santa Tereza. Já a representação do real pode ser

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observada no último parágrafo, em que o narrador finaliza sua narrativa, após

descrever as recordações sobre a cidade de Santa Tereza:

Agora acabou. O que leio nos jornais e vejo na TV nas últimas semanas me deixa doente. Ainda mais doente. Santa Tereza sangra, transformada em Sarayejo tropical, em Chechênia invadida, estuprada. As pessoas abandonam as casas e fogem para qualquer lugar, escondendo o rosto. Balas perdidas cruzam o ar. Não, não sei se é suficiente chorar o que se perdeu e rezar pelo que ficou. Sei que, por conta disso, acabei achando um pouco ridículo FHC todo sorridente ao lado da rainha da Inglaterra e todas essas comemorações do fim da Segunda Guerra, enquanto Santa Tereza agoniza, desamparada e bela, no alto daquele morro. Quem pode fazer alguma coisa, que faça. E quem pode? (ABREU, 2012, p. 218)

Esse fragmento, mesmo sem a marca incisiva do diálogo, como foi

demonstrado em outros trechos das narrativas de Caio, demonstra de forma clara

que o recurso do diálogo, inclusive, presta-se para reforçar a ideia de que, mesmo

sem as marcas discursivas, o narrador apresenta suas ideologias, suas

interpretações frente ao leitor que passa a comungar de seus sentimentos. Ainda é

oportuno ressaltar que, através dessa descrição que envolve até mesmo FHC

(Fernando Henrique Cardoso, que era atual Presidente do Brasil na época em que a

crônica foi escrita), sugestiona como se Caio questionasse os leitores sobre suas

ideologias acerca da violência: como Santa Tereza, um lugar, que de acordo com

suas descrições na crônica, transparecia ser tão calmo, e foi se transformando? Seu

último questionamento, “e quem pode?” denota a sua preocupação com o social,

não somente com Santa Tereza, mas sim com a violência em geral. Nesse sentido,

podemos relacionar até mesmo o título da crônica: Inútil por Santa Tereza, desde a

empregabilidade destes termos, identificamos uma perspectiva melancólica e

pessimista sobre esse espaço urbano a qual é compartilhada com os leitores. Assim

como na crônica anterior em que quatro amigos são utilizados para representar os

jovens como em um todo, Santa Tereza é empregada como um dos exemplos sobre

a violência que atinge a sociedade brasileira.

Ademais, o contexto externo utilizado pelo narrador que é sinalizado através

de Sarayevo e Chechênia – duas regiões onde ocorrem conflitos armados –, estão

introduzidos na narrativa para provocar a reflexão acerca do meio social. Caio

estava atento à realidade externa e às semelhanças desta com o contexto local, e

isso pode ser evidenciado na medida em que o narrador da crônica demonstra que

considerava inadequado, diante de um Brasil sangrento, haver a imagem de um

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Presidente sorridente, que indica despreocupação e até indiferença com a triste

realidade brasileira, exemplificada através de Santa Tereza.

A relação de hibridismo que a crônica possui com a literatura e o jornalismo

elucida a forma com que Caio se utiliza do espaço que lhe é concedido no segmento

editorial dos jornais para escrever suas crônicas. A forma com que dialoga com o

leitor deixa explícito o papel da literatura; por outro lado, a confabulação com os

temas sociais fica sob o signo do jornalismo, que é marcado pelas pautas de

assuntos cotidianos, tais como o ressaltado na crônica “Inútil pranto por Santa

Tereza”, sobre a violência, um assunto corriqueiro nos jornais. Nesse sentido, a

proposição de Candido (1989) é bastante elucidativa quanto ao tratamento que a

crônica possui acerca dos assuntos:

Deixando de ser comentário mais ou menos argumentativo e expositivo, para virar uma conversa aparentemente fiada, foi como se a crônica pusesse de lado qualquer seriedade no tratamento de problemas. (CANDIDO, 1989, s/d)

É imperioso considerar que o excerto de Candido corrobora a compreensão

acerca da crônica de Caio. Isso porque, ao mesmo tempo que as narrativas do

escritor gaúcho possuem como particularidades a oralidade e percepção de

assuntos cotidiano, também estão inseridas em um profundo significado dos atos e

sentimentos humanos, estabelecendo, assim, uma crítica social a partir de diálogos

com o leitor, haja vista que, quando o narrador incita o seu leitor a questionamentos,

este fica passível de refletir sobre as prerrogativas que estão sendo propostas.

No contexto em que Caio escreve para jornais e, de certa forma, dialoga com

outros profissionais da área, é importante observar o que Arrigucci (1999) explicita

sobre a influência que os jornalistas possuem sobre a opinião pública:

Aí temos uma porção de aspectos. Primeiro que, de fato, as coisas a que o grande jornalista tem acesso, a importância que o jornal tem na formação da opinião pública, são de tal ordem que dão uma força, um poder extremo ao jornalista. Ele pode manipular a opinião pública. Isso não é pouco, é uma coisa enorme. E está tematizada lá, inclusive, no encontro do Sadat com industrias paulistas, em que os industriais não estão entendendo nada e o sujeito é que está canalizando os capitais da propaganda do sistema. Por outro lado, ele convive com as classes dominantes mesmo, exatamente porque ele tem uma parcela de poder nas mãos. Não um intelectual como

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Hugo Mann, que aspira a isso, que convive com essa gente, mas na verdade não está nessa posição. (ARRIGUCCI, 1999, p. 86)24

É oportuno lembrar que Caio não é jornalista no sentido de repórter que

escreve notícias e reportagens, mas, a partir do momento em que escreve suas

crônicas, transporta-se a esse mundo e exerce influência sobre seus leitores,

tornando-se narrador-repórter para usar uma expressão de Sá (199) ao definir o

perfil dos escritores de crônica. Com base nas premissas que circundam as crônicas

analisadas nestas seções, é possível perceber que elas possuem muitas

coordenadas em comum no que tange especialmente a sua relação entre jornalismo

e literatura: trazem à tona diversos fatos do cotidiano que não interessam ao jornal

como objeto jornalístico, pois não se constituem de sua essencial matéria-prima: a

informação. A crônica, através de assuntos e da linguagem, aproxima-se de seus

leitores. Se comparada aos jornais, ela possui o aspecto de maior subjetividade, que

pode ser ressaltado pela linguagem e as reflexões utilizadas por Caio.

Outro aspecto significativo nas crônicas do escritor gaúcho é que este vai de

um assunto a outro, levando o leitor a variados temas, contudo, é singular na

seleção de seus assuntos, baseia-se em um diálogo com o que está ocorrendo no

social, mas transforma os assuntos de acordo com a sua visão, muitas vezes irônica

e melancólica. Com um tom íntimo e coloquial, Caio se expõe ao leitor, são textos

com ironia, um pouco de humor, mas carregados de introspecção, subjetividade,

alusão a outros textos. Justamente por utilizar a sua visão para compreender o

social, não possui uma teoria que dê conta de analisar as suas crônicas, já que

estas vão muito além da linguagem coloquial, humor e ironia, subjetividade e diálogo

com leitor.

Nessa esteira, ao utilizar a sua visão para escrever as crônicas, Caio pauta-se

em uma relação entre a literatura e o social. Com vistas às relações que o escritor

gaúcho transpõe através do gênero crônica com o leitor e a sociedade, o terceiro

capítulo, “Literatura, Sociedade e Memória na crônica de Caio”, aborda como esses

aspectos estão inseridos na narrativa do escritor gaúcho e a forma com que as

narrativas refletem acerca da realidade social.

24 Fragmento retirado do livro Outros Achados e Perdidos, de uma seção de debates com Davi Arrigucci Jr., Carlos Vogt, Flávio Aguiar, Lúcia Teixeira Wisnik e João Luiz Lafetá.

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3. LITERATURA, SOCIEDADE E MEMÓRIA NA CRÔNICA DE CAIO FERNANDO

ABREU

3.1. Diálogos entre literatura e sociedade

A literatura, como forma de expressão artística, é social e dialoga com a

sociedade. Nesse sentido, ao estudar as complexas relações entre o processo

histórico-social e as manifestações artísticas na literatura, procuramos discutir como

a produção literária, com suas peculiaridades, pode fornecer elementos e subsídios

para o conhecimento da relação dinâmica que ocorre entre sociedade e literatura,

em especial, recorrendo para isso a um aparato teórico para compreender como os

diálogos entre texto artístico e sociedade se constroem na crônica de Caio.

Para melhor refletir acerca da literatura e sociedade, o olhar de Antonio

Candido é essencial para comprovar a incidência desses dois fatores no processo de

compreensão e produção de uma obra. Nessa perspectiva, convém destacar a

contribuição desse estudioso, seguindo o comentário de Lajolo (1992), que atribui a

Candido uma importante tarefa social: “Mestre de tantas gerações, a contribuição de

Antonio Candido à educação brasileira parece, no entanto ultrapassar sua prática no

ofício de professor”. (p. 118) Ao fazer uso de suas atribuições como professor,

Candido ultrapassou as fronteiras da lousa e do giz, discutindo propostas relevantes

sob a ótica das relações dos indivíduos com o social.

A obra de Candido Literatura e Sociedade, cuja primeira edição é datada de

1965, procura focalizar vários níveis da correlação à função da produção literária,

como uma constante no que se refere à estrutura da sociedade. Para melhor

entender como essas relações foram se estreitando, o autor faz um panorama em

diferentes séculos. A analogia entre a obra e seu condicionamento social, no século

XIX, chegou a ser vista como chave para compreendê-la; no entanto, essa ideia se

tornou secundária. Nessa esteira, o autor pondera: “Estamos avaliando melhor o

vínculo entre a obra e o ambiente, depois de termos chegado à conclusão de que a

análise estética precede considerações de outra ordem”. (CANDIDO, 2000, p. 05).

Para explicar como essas distintas acepções foram ocorrendo, o estudioso aponta

que antes se procurava mostrar que o significado e valor de uma obra dependiam de

exprimir ou não aspectos da realidade, assim, esses aspectos acabavam por

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caracterizar o que ela tinha de essencial. Posterior a essas constatações, Candido

(2000) alude ideia oposta a essas prerrogativas, ou seja, procurava-se mostrar que a

matéria de uma obra é secundária e que a sua importância advém das operações

formais, atribuindo, desse modo, uma especificidade que torna essa obra de arte

independente de quaisquer condicionamentos, sobretudo, o social.

Em conformidade com as ponderações de como a relação entre o social com

a literatura foi sofrendo ao longo dos períodos, Candido (2000) argumenta:

Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas; e que só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do processo interpretativo. Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno. (p. 5-6)

No que tange ao fator externo, o autor menciona a palavra como legítima,

quando confere o seu tratamento a sociologia da literatura, visto que esta não propõe

o valor da obra, mas, sim, por tudo que diz respeito aos condicionamentos sociais.

Candido (2000) a cita ainda como uma disciplina de cunho científico, sem orientação

estética assumida pela crítica. O problema, nesse sentido, é apresentado pelo

pesquisador, pois a crítica literária visa a analisar o íntimo das obras, aqueles fatores

que atuam na organização interna. Sobre o fator social, o pesquisador considera:

Tomando o fator social, procuraríamos determinar se ele fornece apenas matéria (ambiente, costumes, traços grupais, idéias), que serve de veículo para conduzir a corrente criadora (nos termos de Lukács, se apenas possibilita a realização do valor estético); ou se, além disso, é elemento que atua na constituição do que há de essencial na obra enquanto obra de arte (nos termos de Lukács, se é determinante do valor estético). (CANDIDO, 2000, p. 06)

Assim, o estudioso procura observar os fatores sociais e psíquicos como

agentes da estrutura e não como matéria registrada pelo trabalho de quem a produz.

Já a análise crítica rege-se acerca dos elementos de aspecto e significado da obra,

que, unidos, formam o todo em indissolúvel. Ainda no que diz respeito ao fragmento

que cita Lukács, a sua presença incorre para exemplificar como as relações de

literatura e sociedade ficaram permeadas. Nesse contexto, Lima (1992) cita os

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prefácios das primeiras obras de Lukács, em que o elemento social da literatura era

dotado como a forma:

A forma faz com que a experiência vivida pelo poeta se comunique aos outros, ao público; e só através desta comunicação “formada” e daí, através da possibilidade de exercer influência e a influência efetiva que realiza essa possibilidade, a arte assume um significado social. (LIMA, apud G. LUKÁS, 1912, p. 76)

Então, desde Lukács, a interação entre o “poeta” e o público transforma a

escrita, e o contexto social era o motivador de uma forma que enquanto estética não

tinha história. Sobre Lukács, que também é citado por Lima (1992), este afirma que

há sintonia entre Lukács e Antonio Candido, visto que ambos não se contentam com

as equações: elemento sociológico: fator externo: elemento estético: fator interno.

Mas sim, para eles, a ocorrência deveria ser o externo se tornar interno e a crítica ao

invés de sociológica, ser apenas crítica. No entanto, ao se firmarem nessa equação,

estão também acarretando alguns embaraços, como cita Lima (1992):

Como se havia notado, a fusão, proposta por Lukács, entre o sociólogo e o estético esbarrava na estabilidade a-histórica da forma. Em sua defesa, poder-se-ia dizer que Lukács tivera o cuidado de não dissolver a história interna da literatura ante mudanças externas; mesmo que isso seja válido, não basta para tornar inatacável sua posição. É também verdade que Candido não cai explicitamente na mesma armadilha, isto é, que não há nenhum enunciado declarador da a-historicidade da forma. Nem por isso ela está menos presente. (p. 157)

Com base nas prerrogativas propostas pelos autores sobre a estrutura interna

e externa das obras, Candido cita, como exemplo, o livro Senhora, de José de

Alencar. As indicações do social estão presentes em referências a lugares,

manifestações de atitudes de grupos ou classes, modas, usos e expressões de um

conceito de vida burguês e patriarcal. No entanto, para o autor, somente essas

peculiaridades não bastam para denotar a definição do seu caráter sociológico. Nas

palavras do autor:

Mas acontece que, além disso, o próprio assunto repousa sobre condições sociais que é preciso compreender e indicar, a fim de penetrar no significado. Trata-se da compra de um marido; e teremos dado um passo adiante se refletirmos que essa compra tem um sentido social simbólico, pois é ao mesmo tempo representação e desmascaramento de costumes vigentes na época, como o casamento por dinheiro. Ao inventar a situação crua do esposo que se vende em contrato, mediante pagamento estipulado, o romancista desnuda as raízes da relação, isto é, faz uma análise

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socialmente radical, reduzindo o ato ao seu aspecto essencial de compra e venda. Mas, ao vermos isto, ainda não estamos nas camadas mais fundas da análise, — o que só ocorre quando este traço social constatado é visto funcionando para formar a estrutura do livro. (CANDIDO, 2000, p. 07)

Sob essa perspectiva, entendemos que, se ocorre a transposição do plano do

livro, de aspectos que refletem a realidade, estaremos falando em termos

sociológicos. Sobretudo, é necessário lembrar que apresentar formatos que

permeiam o social não faz de uma obra literária a sua interação com esse meio.

Candido (2000) ratifica essas prerrogativas:

Quando fazemos uma análise deste tipo, podemos dizer que levamos em conta o elemento social, não exteriormente, como referência que permite identificar, na matéria do livro, a expressão de uma certa época ou de uma sociedade determinada; nem como enquadramento, que permite situá-lo historicamente; mas como fator da própria construção artística, estudado no nível explicativo e não ilustrativo. (p. 08)

O que equivale a afirmar que, situar socialmente e enquadrar em termos que a

sociedade está constituída não transforma nenhuma obra em caráter sociológico.

Por outro lado, buscar aspectos que compreendam tanto períodos históricos atuais

quanto do passado, transpassar a obra e poder fazer com que o leitor possa refletir

em torno dos temas abordados, isso tudo denota a dimensão social como fator de

arte. A reflexão a partir dos temas que são abordados pelo artista inclui elementos

psicológicos, religiosos, linguísticos, dentre outros. Todos esses constituem-se

elementos externos e internos, visto que se diluem, transformando-se em aspectos

que visam à maior interação do social com o literário.

No entanto, a interação do social e literário sugere a formulação de outras

questões que vão além da confluência do interno/externo, tais como as propostas

por Candido (2000): “qual a influência exercida pelo meio social sobre a obra de

arte? Digamos que deve ser imediatamente completada por outra: qual a influência

exercida pela obra de arte sobre o meio?” (p. 18) Para responder a essas

indagações, o autor ressalta que a primeira pergunta refere-se em que medida a arte

é expressão da sociedade, já a segunda, consiste em avaliar o seu interesse nos

problemas sociais. Além dessas, outra tendência é citada pelo estudioso:

A segunda tendência é a de analisar o conteúdo social das obras, geralmente com base em motivos de ordem moral ou política, redundando praticamente em afirmar ou deixar implícito que a arte deve ter um conteúdo deste tipo, e que esta é a medida do seu valor. (CANDIDO, 2000, p. 19)

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Ambas as tendências demonstram a arte e o social com a preocupação em

modificar a concepção de mundo dos leitores, avigorando ainda mais os sentimentos

de valores sociais. Outras reflexões, para responder as perguntas propostas por

Candido, sinalizam uma organização quanto às influências dos fatores socioculturais,

uma vez que, nesse sentido, estão inseridos a posição social do artista que está

produzindo a obra de arte, a configuração do grupo de receptores destas obras, a

forma e o conteúdo que será exposto e por fim a transmissão do produto final. Nesse

sentido, Candido (2000) declara que essas etapas marcam os quatro momentos da

produção: “pois: a) o artista, sob o impulso de uma necessidade interior, orienta-o

segundo os padrões da sua época, b) escolhe certos temas, c) usa certas formas e

d) a síntese resultante age sobre o meio”. (p. 20)

Nessa esteira, entendemos que não é possível separar a repercussão da obra

com quem a fez. A comunicação leva a esses quatro importantes processos, que

podem ser resumidos em: o comunicante (nesse caso o escritor), comunicado (a

obra), comunicando (o público) e após isso o efeito que produz esse comunicando,

isto é, a quem a obra se dirige. É, então, com a afirmação de que “a posição social é

um aspecto da estrutura da sociedade” (CANDIDO, 2000, p. 22), que o estudioso

atenta sobre três aspectos: a) como a sociedade define a posição e o papel do

artista do artista; b) como a obra depende dos recursos técnicos para incorporar os

valores propostos e c) como se configuram os públicos. A importância dessas três

prerrogativas configura-se na medida em que o artista, com sua atividade, estimula

diferentes grupos, assim como a criação de obras modifica os recursos de

comunicação expressiva e, por fim, as obras organizam e delimitam seus públicos.

(CANDIDO, 2000)

Dentre esses três aspectos, a posição do artista é que a primeiro se acentua

nesse processo. Com efeito, Candido (2000) inicia lembrando o percurso com que

essa posição foi tomando ao longo dos séculos. A primeira impressão configurava-se

como uma criação concebida de forma coletiva. Contudo, o estudioso advoga que

atualmente a obra exige necessariamente a presença do artista criador: “O que

chamamos arte coletiva é a arte criada pelo individuo a tal ponto identificado às

aspirações e valores do seu tempo, que parece dissolver-se nele”. (CANDIDO, p. 23,

2000) Desse modo, entendemos que o coletivo e o individual não mais são

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102

arquitetados separados, mas sim, em uma ligação, visto que, são as forças sociais

que condicionam os artistas, determinando a ocasião em que a obra é produzida,

julgando a sua necessidade e se será um bem coletivo.

Em relação à coletividade de uma obra, esta será definida a partir então, dos

elementos individuais. Em termos gerais, entendemos que, em primeiro lugar, o

agente individual cria a obra, após, a sociedade (o coletivo, nesse caso) precisa

reconhecer essa obra e o seu criador; já a forma com que será recepcionada

também depende de quem a produz, de qual é o seu reconhecimento com o social e

em que circunstâncias foi criada; por fim, a obra passa a ser marcada pela sociedade

como veículo individual do artista, mas que obteve o reconhecimento do coletivo.

Nessa esteira, Candido (2000), complementa: “Se a obra é fruto da iniciativa

individual ou de condições sociais, quando na verdade ela surge da confluência de

ambas, indissoluvelmente ligadas”. (p. 23-24)

Além da implicação do individual e coletivo, no que concerne à forma com que

as obras são executadas pelo artista, passamos a configuração desta. Candido

(2000) abarca a proposição que a obra depende do artista e das condições sociais

que irão determinar a sua posição. Ademais, o autor cita outras peculiaridades que

conferem a inserção do social às obras:

Quanto à obra, focalizemos o influxo exercido pelos valores sociais, ideologias e sistemas de comunicação, que nela se transmudam em conteúdo e forma, discerníveis apenas logicamente, pois na realidade decorrem do impulso criador como unidade inseparável. Aceita, porém, a divisão, lembremos que os valores e ideologias contribuem principalmente para o conteúdo, enquanto as modalidades de comunicação influem mais na forma. (CANDIDO, 2000, p. 27)

Para exemplificar a forma com que os valores e ideologias contribuem para o

conteúdo, o autor cita como exemplo a influência decisiva do jornal sobre a literatura,

no que atribui a criação de novos gêneros, tais como a chamada crônica, ou folhetim

romanesco, que após um século, veio a influir sobre a arte do cinema. Nesse

sentido, entendemos a crônica como a atuação individual do artista/autor que a

compõe, regado pelas influências coletivas, através do social, em temas que são

ressaltados no texto e que possuem os seus valores e ideologias nas narrativas.

Retomamos, então, os processos pelos quais a obra perpassa: a sua criação

é vista como um processo que sofre as interferências do coletivo e individual, já a

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posição do artista/narrador abarca o social e as ideologias que contribuem para o

conteúdo dessa obra, e por fim, temos a interação do público. Acerca desse último

elemento, não menos importante, Candido (2000) afirma que, da mesma forma com

que os dois anteriores, as influências sociais deixam suas marcas. O autor faz um

apanhado geral de quais eram as influências do público desde as sociedades

primitivas. Nestas, é menos nítida a separação de artistas e receptores. No entanto,

à medida que as sociedades se diferenciam, arista e público começam a se definir

nitidamente. Nesse sentido, o autor afirma: “Elas [as pessoas] aumentam e se

fragmentam à medida que cresce a complexidade da estrutura social, tendo como

denominador comum apenas o interesse estético”. (p. 31) É por isso que surgem os

grupos e dentre estes os subgrupos para diferenciar os gostos por determinados

gêneros. Estes grupos estarão unidos por interesses e gostos pessoais.

No que se refere às particularidades que influenciam o público, Candido

(2000) cita ainda os fatores socioculturais – a técnica sobre a formação,

caracterização do público e a influência social, isto é, “a dos valores, que se

manifestam sob várias designações — gosto, moda, voga — e sempre exprimem as

expectativas sociais, que tendem a cristalizar-se em rotina”. (CANDIDO, 2000, p. 32)

Com efeito, a sociedade interfere de forma sistemática e com valores sobre os

gostos do público. Para melhor exemplificar como essa interferência ocorre, Candido

(2000) explana sobre um concerto, em 1837 em Paris, em que se anunciava uma

peça de Bethoven e outra de Pixis, que era considerado obscuro compositor. Porém,

os nomes foram trocados, atribuindo a um a obra de outro, assim, quando Pixis se

apresentou como se fosse Bethoven, ele foi aclamado pelo público. Esse fato ilustra,

como afiança Candido (2000), “que mesmo quando pensamos ser nós mesmos,

somos público, pertencemos a uma massa cujas reações obedecem a

condicionantes do momento e do meio”. (p. 32) O episódio que ocorreu ainda no

século XIX demonstra que o público está impregnado pelas normas sociais e se

deixa conduzir pelos seus julgamentos.

Ainda nesse viés, a posição do artista, a configuração da obra e o público

demonstram de que maneira os fatores sociais atuam no literário. Candido (2000)

aponta de forma resumida a forma com a arte é concebida:

Na medida em que a arte é — como foi apresentada aqui — um sistema simbólico de comunicação inter-humana, ela pressupõe o jogo permanente de relações entre os três, que formam uma tríade indissolúvel. O público dá

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sentido e realidade à obra, e sem ele o autor não se realiza, pois ele é de certo modo o espelho que reflete a sua imagem enquanto criador. Os artistas incompreendidos, ou desconhecidos em seu tempo, passam realmente a viver quando a posteridade define afinal o seu valor. Deste modo, o público é fator de ligação entre o autor e a sua própria obra. A obra, por sua vez, vincula o autor ao público, pois o interesse deste é inicialmente por ela, só se estendendo à personalidade que a produziu depois de estabelecido aquele contacto indispensável. Assim, à série autor-público-obra, junta-se outra: autor-obra-público. Mas o autor, do seu lado, é intermediário entre a obra, que criou, e o público, a que se dirige; é o agente que desencadeia o processo, definindo uma terceira série interativa: obra-autor-público. (p. 33-34)

Por outra vertente, além da influência a que Candido ressalta entre autor-obra-

público e após, obra-autor-público, Ianni (1999) ressalta que o diálogo entre a

sociologia e a literatura envolve vários enigmas: texto e contexto, sociologia e ficção,

literatura e conhecimento, estilos de pensamento e visões de mundo. Esses são

enigmas que implicam o que podemos entender entre “sociologia” e “literatura”, que

“permitem desenvolver a reflexão sobre essas formas narrativas, como expressões

do mundo da cultura.” (p. 38) Narrar, nesse âmbito relaciona-se a todos os

processos, ou seja, é uma dimensão geral tanto do processo de elaboração e

produção, quanto aos indivíduos que compõe a sociedade. É sob essa perspectiva,

que na próxima seção abordamos como o ato de narrar de Caio sofreu as influências

da conexão entre a literatura e a sociedade, à medida que o autor propiciou aos

leitores a reflexão de temas pertinentes ao social.

3.2. A representação da sociedade na crônica de Caio

Ao abordar temas e questões que vão desde o universal ao particular, Caio

denota seu estilo, o que nos permite, com instrumentais teóricos e metodológicos,

refletir acerca das relações possíveis entre a literatura e a sociedade. Nem mesmo a

pluralidade de assuntos e as variadas formas de tratamento que o autor gaúcho

confere a estes limita o caráter e diálogo do meio social com a literatura.

A interação do social com o literário pode ser observada em todas as crônicas

que compreendem o corpus dessa pesquisa. Uma das temáticas mais recorrentes

nas narrativas de Caio são os aspectos culturais, que compreendem a alusão a

músicas, cinema, literatura e tudo que esteja imbuído de termos que condizem à

cultura. Para entender a presença constante desses temas, é preciso, também, fazer

referência ao momento vivido por Caio, já que, como visto, o social influência de

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forma direta e precisa as narrativas.

Nesse sentido é que Franco (1999) pondera sobre a geração do final dos anos

1960, esta que é contemporânea ao escritor gaúcho:

Tocadas por uma dupla determinação – o fim de um ciclo e a tendência para o constante endurecimento político da ditadura militar que, cada vez mais, adotava atitudes truculentas e repressivas – a vida cultural experimentou uma situação até então inusitada: cinema, teatro e música popular puderam compor um processo cultural integrado, raro em nossa história. (FRANCO, 1999, p. 144)

A partir da afirmação do estudioso é possível compreender o percurso das

narrativas de Caio. O autor é contemporâneo da década de 1960, e, sendo assim,

transpassar sua experiência social para as narrativas torna-se mais compreensível e

até mesmo adquire um caráter de memória sobre o contexto em que está inserido.

Sob a ótica do momento social, é oportuno ressaltar que as características do

processo histórico em que Caio está inserido influenciam a forma com que ele expõe

suas ideologias nas crônicas. Isso pode ser melhor compreendido quando avaliamos

que das 109 crônicas que fazem parte do corpus dessa pesquisa, praticamente

todas possuem pelo menos uma alusão a música. Sobretudo, em setenta e quatro

delas, o narrador envolve toda crônica com elementos culturais, como música,

cinema, literatura.

Ainda com vistas à relação do contexto nas relações sociais, Prado Jr. (1992),

confirma essa visão, explicitando: “É preciso consultar, no passado, para melhor

diagnosticar o comportamento do subsolo de nossa experiência atual da literatura e

sociedade.” (p. 11) Nessa esteira, é imperioso considerar que o fator social é

invocado em Caio para explicar a estrutura da obra e seu teor de ideias, fornecendo

elementos para determinar a sua validade e o seu efeito sobre os leitores. Para

identificar os elementos linguísticos e conteudísticos – internos e externos – ao texto

e que possuem a interferência dos condicionamentos sociais, observemos como

ocorre esse processo nas crônicas do autor.

A alusão ao passado, como propôs Padro Jr. (1992), é ratificada na crônica de

dezoito de fevereiro de mil novecentos e oitenta e sete, “Um prato de lentilhas”. Da

mesma forma que praticamente todas as narrativas da década de 1980, a linha de

apoio nos auxilia para melhor compreender o do que se trata a crônica: “Queremos

nossos direitos, nossos futuros, nossos sonhos. Nosso ridículo votinho...” (ABREU,

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2012, p. 80) Através dessa orientação de leitura, é perceptível que a narrativa é o

desabafo de um brasileiro que vive em um país tão desigual. Com relação à

proposição de Prado Jr. (1992) de consultar o passado para observar a experiência

atual, o narrador explica ao final do texto, expressando sua vontade de não sofrer

mais censura, como os jovens da década de 1960, pois ele queria ter direito de

escolher seu presidente. “QUERO escolher meu presidente. Exijo. Não fui eu nem

ninguém quem escolheu esses senhores que estão aí em cima arrebentando a vida

da gente”. (ABREU, 2012, p. 81) O narrador segue afirmando que está falando não

por si, mas por todos que residem no país. “E falo no plural porque sou só um

brasileirinho igual a milhões de outros – certamente eu sei – com muito mais

privilégios do que a desgraçada maioria. Com ou sem privilégio, quero meus direitos.

Quero meu futuro”. (ABREU, 2012, p. 81) Após essas afirmações de representação

de todos, ele prossegue: “Quero pelo menos meu ridículo votinho. Quero, não;

queremos. Quem me dá? Pra quem – desde que roubaram a minha juventude, em

1964 – eu posso reclamar?” (ABREU, 2012, p. 81) Da forma como o narrador conduz

sua narrativa, fica evidente que as suas ideologias diluem-se em meio ao texto.

Como já dito, Caio é contemporâneo aos jovens da década de 1960, período em que

ocorreu o golpe militar no Brasil e a proibição do voto direto pra Presidente da

República, tirando assim dos brasileiros, o direito exercer a cidadania e a

democracia. A geração de 1960 sofreu ainda com a censura, as emissoras de rádio

e televisão foram fechadas e tudo no país deveria passar pelo crivo da censura. Com

base nesses fatos históricos, fica clara a imposição de alguém que sofreu com a falta

de democracia, o que é transpassado para a crônica.

Além destes aspectos conteudísticos da narrativa, os elementos sociológicos

e a interação da literatura com a sociedade fica evidenciada através dos traços

linguísticos: “Seu Zé Sarney, senhores poderosos – sempre tive nojo de política, de

poder e de economia.” (ABREU, 2012, p. 80) Nessa esteira, Zé Sarney refere-se a

José Sarney, o político que assumiu a presidência do país logo após a morte de

Tancredo Neves, na década de 1980. Os vocábulos “nojo”, “política”, “poder” e

“economia” estão permeados pelos elementos sociológicos, visto que são palavras-

chave e demonstram a interação entre o posicionamento que o narrador toma frente

à sociedade, isto é, um sentido de repulsa frente aos fatos que está descrevendo.

A crônica continua com a descrição da indignação tanto pela política, quanto

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pelo poder e pela economia, e o narrador segue demonstrando seu estado de

espírito pelo Brasil: “Mas senhores comandantes desta coisa pobre, louca, doente e

suja que nem sei mais se posso chamar ‘Brasil’, vossas excelências sabem o que

anda acontecendo nesta terra?” (ABREU, 2012, p. 80) Com efeito, as indicações do

social estão presentes em referências, como ressalta Candido (2000), a atitudes e

palavras – que se encontram no nível linguístico, no entanto, o conteúdo da crônica

indica o seu repulso pelas condições sociais, fazendo com o leitor reflita sobre o

sentido social simbólico, pois é, ao mesmo tempo, representação e

desmascaramento das pessoas que estão à frente do Brasil. As indagações que o

narrador faz ao longo texto são exemplo da interação com o social: “Vossas

Excelências sabem o que anda acontecendo nesta terra? Parece que não. Os

senhores nunca andam nas ruas? Não veem a cara das pessoas?” (ABREU, 2012,

p. 80) Com esses questionamentos, o leitor é remetido à reflexão do que está

ocorrendo com a realidade, é como se o narrador estivesse conversando com aquele

a que o texto é destinado e lhe dissesse para abrir os olhos que, se os políticos não

tomam providências, eles precisam tomar. Além do leitor, o narrador também de

certa forma dialoga com os representantes do povo, mostrando que a realidade

precisa ser ajustada e que ele, como cidadão, está representando uma maioria

descontente.

Por esse prisma, a interação das crônicas de Caio volta-se ao social, fazendo

uso dos termos linguísticos e de conteúdo, mas também porque estão inseridas

dentro do quarto poder25, pois é assim que a mídia é denotada, justamente por sua

abrangência e pelo domínio que exerce sobre as pessoas. Ao citar o nome de José

Sarney e do Ministro da época, Celso Furtado, o narrador incita também essas

pessoas a refletirem, isso porque o meio de difusão da crônica é o jornal, e este

serve como formador de opinião. Sobre essa peculiaridade do meio, Azevedo (2006)

ressalta que o jornal se caracteriza como formador de opinião, sendo assim, é o

responsável por produzir agendas, isto é, formata questões para influenciar

percepções e comportamentos tanto no âmbito político-governamental quanto no

público em geral, “este último através dos líderes de opinião ou através da

25 Sobre a titulação de quarto poder a que a mídia possui, Alexandre e Fernandes (2006), consideram: “A imprensa passou a ser um instrumento nas mãos do poder e ganhou muito com isso, tanto que hoje, nas democracias liberais, ostenta o título de quarto poder – autônomo, logo após do Executivo, Judiciário e do Legislativo, exercido em favor do povo, que através dos anos elegeu a imprensa como seus olhos para fiscalizar aqueles que comandam a sociedade.” (p. 24)

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repercussão da pauta dos jornais”. (p. 29) Para melhor exemplificar como a mídia

influência os aspectos sociais, e a sua atuação nas agendas, Azevedo (2006) cita as

eleições de 1989 e a de 1994:

A imprensa assumiu um papel de protagonista no episódio do impeachment do Collor. Sem dúvida, a crise do governo Collor foi um divisor de águas para a mídia (em especial para o jornalismo político), do ponto de vista da sua relação com o sistema político na nova quadra democrática, pois a grande imprensa, durante todo episódio, não só agendou o debate político como se transformou num dos principais atores da crise, denunciando o governo, mobilizando a opinião pública e colocando em pauta o impeachment. Nessa dinâmica marcada basicamente pelo jornalismo investigativo, a mídia brasileira mimetizou a função clássica do cão de guarda (watchdog) da teoria liberal do jornalismo, assumindo o papel de vigia e fiscalizador do sistema político. (p. 40)

É imperioso considerar com o excerto exposto pelo estudioso que do mesmo

modo, Caio utiliza as crônicas com um agendamento social que pode ocorrer em

dois níveis: a) pautar os assuntos que estão sendo discutidos e refleti-los nas

crônicas; b) faz com que esses assuntos sejam difundidos entre os leitores e estes

por sua vez, disseminam as informações em seus cotidianos. Ao mencionar

assuntos de teor social, Caio passa a atuar como expõe Azevedo (2006) em assumir

“o papel de vigia e fiscalizador do sistema político,” (p. 40). Nesse sentido, ao exibir

suas ideologias acerca dos problemas sociais e, ao citar o nome dos políticos

envolvidos, o narrador assume publicamente o papel de vigia, fato que toma maiores

proporções, visto que o narrador assume a posição de uma maioria e passa a

representá-los.

As mesmas reflexões presentes na crônica “Um prato de lentilhas” seguiram-

se na narrativa posterior, publicada em vinte e cinco de fevereiro de mil novecentos e

oitenta e sete, intitulada “Anjos da barra pesada”. O narrador continua a se

questionar, dessa vez, em uma viagem ao Rio de Janeiro, refletindo acerca das

mesmas perguntas sobre o Brasil:

Semana passada fui ao Rio. Estava exausto, sem energia. Tempos atrás, quando você andava assim (exausto; sem energia), ia ao Rio. Costumava dar certo. Desta vez, não deu. Chovia, não tinha sol. Pior, e mais insidioso que isso, havia pelo ar esse mesmo tipo de medo e desemparo que deixam ainda mais cinza o ar de São Paulo. O que está havendo com esse país? – continuei a perguntar lá, como pergunto aqui. E todos respondiam, lá, o mesmo que respondem aqui: dengue, meningite, aids, caos econômico, falta de amor, falta de esperança, falta de futuro. (ABREU, 2012, p. 82)

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Como fica claro no fragmento, o estado de espírito do narrador está

condizente com os problemas do Brasil. Ele associa até mesmo a falta de sol,

denotando assim a escuridão – falta de luz e esperança, aos problemas que estão

assolando o país. Para dar respaldo a suas opiniões, o narrador cita as ideias de

outras pessoas que moram em outro Estado e conclui que, tanto em São Paulo

quanto no Rio de Janeiro, a opinião é unânime: falta tudo no Brasil. A crônica

continua com as alusões a elementos culturais: músicas, filmes, livros e teatro. Para

finalizar a narrativa, volta o questionamento:

Continuei a me perguntar: O que está havendo com este país? E todos respondem, como esse desinteresse trágico que também ando sentido: Ora, dengue, meningite, aids, caos econômico, falta de amor, falta de esperança, falta de futuro. Se alguém acrescentar “normal”, eu grito. (ABREU, 2012, p. 83)

A referência ao vocábulo “normal” indica que, ao repetir as ideias iniciais da

crônica, o narrador está afirmando acerca das anormalidades da sociedade

brasileira. A interação com o social dessa proposição, assim como na crônica

anterior, refere-se aos termos linguísticos, mas também à forma de tratamento dado

ao conteúdo dos problemas expostos pelo narrador. Em complementaridade às

ideias acerca da interação entre a literatura e o social, Ianni (1999) acentua essas

proposições:

A literatura e a sociologia aproximam-se bastante, no que se refere à construção de tipologias. Ambas as narrativas estão repletas de tipos e tipologias elaboradas literária ou sociologicamente. São notáveis os tipos ideias que povoam a literatura: Hamlet, Don Quixote, Robinson Crusoé, Don Juan, Fasto, Pai Goriot, Madame Bovary, Martin Fierro, O Senhor Presidente, Pedro Paramo, Macunaíma e outros. Assim como são notáveis os tipos ideais povoando a sociologia: o burguês, o operário, o camponês, o tirano, o príncipe, o demagogo, o carismático, o revolucionário, o intelectual e outros. (p. 12)

Com essa citação, o autor entende que há uma relação mútua com as duas

áreas, pois, ao mesmo tempo que a literatura se utiliza das representações, a

sociedade faz uso também de dramas. O autor cita ainda como exemplo a presença

da política e a revelação dos tempos modernos em O Pequeno Príncipe, de

Maquiavel. De maneira análoga, a crônica de Caio utiliza esses mesmos temas para

demostrar ao leitor aspectos da sociedade e, ao citar a política, como nas duas

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crônicas “Um prato de lentilhas” e “Anjos da barra pesada”, o narrador desnuda as

relações sociais, através de representações, como na primeira, que cita os nomes de

políticos brasileiros, confirmando assim, uma forma de chamar a atenção dos leitores

para os problemas vividos no Brasil e propor uma mudança de ordem social.

Com vistas aos elementos utilizados nas crônicas de Caio para exprimir as

relações entre a literatura e a sociedade, Lima (1992) menciona a ideia de que a

atividade crítica-literária se enraíza em pelo menos dois eixos: “Forma o primeiro a

questão da especificidade da linguagem literária, o segundo, a relação da linguagem

literária com a sociedade”. (p. 153). No entanto, é preciso atentar que somente a

relação da linguagem literária não é possível para estabelecer o vínculo com o

social. É necessário, nesse sentido, buscar entre a arte e o social uma preocupação

em modificar a concepção de mundo dos leitores, exatamente como ocorre nas duas

crônicas supracitadas.

Se a reflexão dos leitores acerca do social sinaliza a maior interação entre e a

literatura e a sociedade, a crônica publicada no dia doze de agosto de mil

novecentos e oitenta e sete, “Que depois de me ler”, é um exemplo dos recursos

adotados pelo narrador para facilitar essa interação. O tom íntimo, coloquial e de

conversa com o leitor permeia toda narrativa, que inicia com o narrador contando ao

leitor o que pretende com o texto:

Hoje quero escrever qualquer coisa tão iluminada e otimista que, logo depois de ler, você sinta como uma descarga de adrenalina por todo o corpo, uma urgência inadiável de ser feliz. Ser feliz agora, já, imediatamente. E saia correndo para dar aquele telefonema, marcar um encontro, armar um jantar, quem sabe um beijo; para comprar aquela passagem de avião, embarcar hoje mesmo para Nova York, Paris, Hononulu. Tão revigorado e seguro – depois de me ler – que nada, absolutamente nada, dará errado: ela (ou ele) atenderá com prazer (em todos os sentidos) ao seu chamado, haverá saldo no banco para a passagem e muitos dólares. (ABREU, 2012, p. 109)

Todas as situações enumeradas pelo narrador estão situadas na esfera social,

mas elas não denotam a presença de elementos com que interfiram e demonstrem o

grau que a literatura e a sociedade exercem uma sobre a outra. Essa prerrogativa

poderá ser exemplificada à medida em que o narrador continua explicitando que,

além dessas percepções de alegria, também poderia exprimir algo terrivelmente

melancólico e triste:

Por falar em “destinos do País”, posso tentar, quem sabe, uma coisa mais

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social, tão social quanto comício com a Lucélia Santos. Descrever com minúcias odiosas famílias inteiras morando embaixo das marquises do Conjunto Nacional. Falar naquele mendigo com que cruzei ontem na cidade e, sem querer, vi remexendo nos sacos de lixo da calçada, enfiando as mãos de unhas imundas em restos de arroz azedo. Seria esse um texto cheio de piedade e ira, de náusea e revolta. Que depois de ler, você ficasse tanto com os olhos marejados de lágrimas quanto com o coração fervilhante de ódio. E saísse correndo para fazer alguma coisa (tão abstrato “fazer alguma coisa”). Pegar em armas, por exemplo. Dar seu dinheiro (você tem algum? Parabéns) para A Causa do Povo. (ABREU, 2012, p. 109-110)

Ao citar os problemas sociais que poderiam ser explanados na crônica, o

narrador faz uso da sua interação com o social, uma vez que, além de citar os

aspectos sociais, como no primeiro fragmento, nesse segundo trecho que

exemplifica a narrativa, o narrador também reflete acerca do meio em que vive. Se

ele está citando mendigos, pessoas sem casa, e finaliza observando que os

problemas sociais estão ligados a sentimentos, relações interpessoais, mas também

são o reflexo da falta de recursos para viver, essas que advém do dinheiro ou a falta

dele. “Dar seu dinheiro (você tem algum? Parabéns)” (ABREU, 2012, p. 110), esse

contexto, sinaliza que o narrador está dialogando com o leitor, afirmando com esse

excerto, que quem tem dinheiro, parabéns, essas pessoas são uma ínfima minoria.

Ainda nessa perspectiva de relação entre texto e meio social, Facina (2004)

declara: “Também os escritores são produtos de sua época e de sua sociedade.

Desse modo mesmo o artista mais consagrado, (...) é sempre um indivíduo de carne

e osso, sujeito a condicionamentos (...) que o processo histórico do qual é parte lhe

impõe.” (p. 10) Com efeito, entendemos que toda criação literária é um produto

histórico, e essa ideia pode confirmada quando o narrador diz “falar naquele mendigo

com que cruzei ontem na cidade e, sem querer, vi remexendo nos sacos de lixo da

calçada.” (ABREU, 2012, p. 110) O mendigo faz parte da realidade em que o

narrador está inserido, são através de suas ideologias, visões acerca da realidade,

que o leitor é convidado a refletir sobre a sociedade. De maneira similar, “pegar as

armas” significa que alguém precisa fazer algo para mudar a realidade dessas

pessoas que tanto sofrem, assim como, ao refutar a proposição de dar dinheiro, e

indagar, “você tem algum?”, refere-se ao período histórico que o Brasil está

vivenciando, isto é, um país com desigualdades, em que o dinheiro fica preso a uma

minoria de pessoas. Por fim, “a causa do povo” faz referência ao período em que

essa crônica foi escrita, pois 1987 foi um dos primeiros anos em que a inflação se

tornou um dos piores problemas do Brasil. No tocante a esse período histórico,

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Flores (2005), cita os problemas a que o governo Sarney (presidente desta época)

sofreu:

Assim, as duas heranças do governo Sarney, a economia deteriorada e as relações sem avanço nenhum com os países hegemônicos, que desprezavam verdadeiramente o Brasil, foram um fardo pesado para os governantes seguintes, (...) A colheita de impasses, de decepções e fracassos na economia interna, que chegou a passar dos 1.000% de inflação ao fim do governo Sarney, com a carga política inerente, não deixou de sugerir que, a despeito das ações concretas de integração internacional efetivamente promovidas, muito do desejado e planejado se limitou ao plano discursivo, acenando a certa altura, para uma configuração mítica, quando se juntam as partes dos discursos. O principal que se destaca é a perfeição de uma ação externa frente à imperfeição de uma política interna de todo modo malconduzida. (p. 55)

Cabe destacar que, através do panorama histórico proposto pelo autor, as

articulações feitas entre o embasamento sociológico do narrador e o texto literário

convergem para uma mesma linha de raciocínio: a sua inserção com a sociedade.

As prerrogativas das três crônicas sinalizam a forma como ocorrem essas relações,

o narrador não somente cita os problemas, mas dilui as suas visões dessa realidade

em torno da narrativa, fazendo, assim, com que os leitores possam refletir acerca da

sociedade exposta nos textos.

Além disso, a interação das crônicas com o social se reforça com a utilização

de elementos externos e internos ao texto, na medida em que o traço social é visto

funcionando para formar a estrutura das crônicas e exemplificar a forma com que a

interação entre literatura e social se constitui. Em tal perspectiva, vale fazer

referência à proposição de Candido (2000) segundo a qual somente situar

socialmente e enquadrar em termos que a sociedade está constituída não transforma

nenhuma obra em caráter sociológico. Por outro lado, ao fazer o leitor refletir os

temas abordados e que giram em torno de problemas sociais, denota a dimensão

social como fator de arte.

Nessa esteira, o narrador, ao utilizar as suas vivências para transpor ao texto

os problemas sociais e a relação da literatura com o social, a memória é realçada

nesse processo, visto que, ao refutar para o texto as suas ideologias, o narrador está

recorrendo aos processos históricos e consequentemente a memória. Será sobre

esse último aspecto que iremos abordar na próxima seção.

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3.3. Relações entre literatura e memória

O conceito de memória vem sendo tema de estudos filosóficos há séculos. O

termo se modificou ao longo dos anos, adequando-se à sociedade de acordo com

suas utilizações e importância. Em cada época, o conceito foi denotado de diferentes

formas, girando em torno de conhecimentos que caracterizavam momentos

históricos também distintos. (CARVALHAL, 2006)

O significado de ter uma lembrança está na origem da memória com os

filósofos Platão e Aristóteles. Ricouer (2007) assinala que, para os estudiosos, não

era questão prévia saber de quem se lembra, já que a “atribuição a alguém

suscetível de dizer ‘eu’ ou ‘nós’ permanecia implícita à conjugação dos verbos de

memória e de esquecimento a pessoas gramaticais e à tempos verbais diferentes.”

(p. 106). Dessa forma, Platão e Aristóteles não conferiam importância às pessoas

gramaticais “eu” e “nós”, mas, sim, o que realmente lhes interessava era a busca por

uma recordação.

Nesse sentido, a relação entre a recordação e a memória ocorre na medida

em que a primeira é a sobrevivência do passado: “O passado, conservando-se no

espírito de cada ser humano, aflora à consciência na forma de imagens-lembranças.”

(BOSI, 2001, p. 53) No tocante ao assunto em apreço, as memórias são

experiências que ficam armazenadas no formato das lembranças, e essas, por sua

vez, são adquiridas através do contato social com outros indivíduos que poderão

contribuir para rememorá-las. Iziquierdo (1989) corrobora este contexto, atribuindo,

assim, um caráter social a memória, uma vez que ela depende deste meio para

adquirir as experiências que irão contribuir para o processo rememorativo:

Quando se diz a palavra memória, a primeira que salta à evocação não é a memória das molas, dos discos ou dos computadores; é a memória das experiências individuais dos homens e dos animais, aquela que de alguma maneira se armazena no cérebro. Desde um ponto de vista prático, a memória dos homens e dos animais é o armazenamento e evocação de informação adquirida através de experiências. (IZIQUIERDO, 1989, s/p)

Contudo, a concepção do estudioso acerca da memória como sendo o

armazenamento de informações adquiridas por experiências sofreu transformações

ao longo dos anos. O interesse por reflexões em torno do conceito de memória

ocorreu em 1970, com a historiografia francesa, em especial quando a história das

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mentalidades se propagaram. No que tange essa raciocínio, Carvalhal (2006)

pontua:

A memória já se encontrava implícita naquele momento, principalmente porque os estudos voltados para a área em questão procuravam abordar aspectos da cultura popular, da vida em família, dos hábitos e costumes de uma localidade, da religiosidade, entre outros, que são, sem dúvida, pontos que remetem à constituição social da memória. (s/d)

Considerando esse processo histórico ao qual o termo está relacionado, um

dos primeiros trabalhos a adentrar no tema da memória foi o de Philippe Ariès, “ao

reivindicar atenção sobre o papel dos monumentos e comemorações relacionados

aos personagens políticos reconhecidos do século XIX, durante a formação dos

Estados-Nação” (CARVALHAL apud FERREIRA, 2002, p.141-52). Com vistas a

Philippe Ariès, Cardoso e Vainfas (2012) pontuam que este destacou o papel dos

rituais comemorativos com a função de fortalecer os laços familiares no final do

século XVIII e início do século XIX, nas palavras dos autores: “Ariés chamava

atenção também para o papel dos monumentos, das comemorações em torno das

figuras políticas ilustres ao longo do século XIX, e para com eles se relacionavam

com a emergência dos Estados nacionais.” (p. 175). Os autores destacam ainda que

com Ariès surgiu um novo gênero na historiografia da década de 1980, a história das

políticas de comemoração, “cujo pioneiro Foi Maurice Agulhon, que analisou a

imagem da República na França (1789-1879) em sua obra Marianne au combat

(1979).” (p. 175) É neste contexto de formulação teórica acerca da memória e no

esforço de pensar esse conceito que Maurice Halbwachs tornou-se fundamental na

elaboração da Sociologia da Memória Coletiva, acentuando, assim, a relação entre a

memória e o seu empreendimento em torno de aspectos sociais.

A questão central na obra do estudioso consiste em afirmar que a memória

individual se forma a partir da memória coletiva, haja vista que as lembranças são

constituídas através de grupos sociais. Nessa esteira, Halbwachs inicia o primeiro

capítulo de seu livro A Memória Coletiva, afirmando que é preciso recorrer a

testemunhas para reforçar ou enfraquecer, “o que sabemos de um evento sobre o

qual temos algumas informações, embora muitas circunstâncias a ele relativas

permaneçam obscuras para nós.” (HALBWACHS, 2006, p. 29). Todavia, o estudioso

atenta que, para obter essas informações, não são necessários testemunhos, no

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sentido literal da palavra, mas sim um fato pode ser (re)contado por um grupo de

pessoas. Nas palavras do autor:

Uma ou muitas pessoas juntando suas lembranças conseguem descrever com muita exatidão fatos ou objetos que vimos ao mesmo tempo em que elas, e conseguem até reconstituir toda a sequência de nossos atos e nossas palavras em circunstâncias definidas, sem que nos lembremos de nada de tudo isso. Examinemos, por exemplo, um fato cuja realidade é indiscutível. Alguém nos traz provas seguras de que tal evento ocorreu, de que estivemos presentes e dele participamos ativamente. Não obstante, a cena continua estranha para nós, como se outra pessoas houvesse desempenhado nosso papel nesta situação. (HALBWACHS, 2006, p. 31)

Desempenhar um papel que não é daquele que está rememorando o fato

consiste em incluir a memória a uma coletividade. Por isso, Halbwachs se refere à

estrutura social desta, relacionando-a à memória coletiva em grupos (família, grupos

religiosos, classe social, dentre outros). Nesse contexto, Bosi (2001) afirma que a

memória está relacionada também aos grupos sociais:

A memória do indivíduo depende do seu relacionamento com a família, com a classe social, com a escola, com a Igreja, com a profissão; enfim, com os grupos de convívio e os grupos de referência peculiares a esse indivíduo. (BOSI, 2001, p. 54)

Com vistas às reflexões propostas por Bosi (2001) acerca de a memória estar

atrelada a grupos sociais, para Halbwachs, esse aspecto é determinante na

elaboração de uma teoria proposta acerca da influência com meio social. Além

destas formas, Janet (1928) cita ainda a linguagem como forma de integrar a

memória ao meio social. Sobre a linguagem, Le Goff (2003) a entende como uma

das possibilidades de armazenamento da memória:

Deste modo, Henri Atlan, estudando os sistemas auto-organizadores, aproxima linguagens e memórias. A atualização de uma linguagem falada, depois escrita, é de fato uma extensão fundamental das possibilidade de armazenamento da nossa memória que, graças a isso, pode sair dos limites físicos do nosso corpo para se interpor quer nos outros, quer nas bibliotecas. Isto significa que, antes de ser falada ou escrita, existe uma certa linguagem sob a forma de armazenamento de informações na nossa memória. (LE GOFF, apud Florès 1972, p. 461)

Ainda nesta perspectiva acerca da linguagem, os estudiosos se aproximam

neste estudo, na medida em que reconhecem o caráter social da memória, tendo a

linguagem como suporte. Bosi (2001) corrobora nesse sentido, afirmando que “o

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instrumento decisivamente no mesmo espaço socializador da memória é a

linguagem.” (p. 56) As reflexões propostas pelos autores conduzem a ideia de que é

através da linguagem que os indivíduos empregam a comunicação e trocam

experiências utilizando o meio social para constituir suas lembranças.

Ainda neste contexto, além da contribuição da linguagem acerca do aspecto

rememorativo e socializador da memória, outras vertentes teóricas incluindo muitos

campos do conhecimento, tiveram grande impulso no século XX. Sobre essas, Braga

(2000) cita primordialmente o social, engajado na perspectiva direta com os

processos da memória:

Questionamos, em nosso texto, o enfoque reducionista de algumas teorias nas neurociências e na psicologia que se atêm aos aspectos biológicos da recordação. Tendo clareza quanto aos limites de nosso trabalho, tentamos mostrar algumas noções presentes em estudos sobre aspectos neurológicos e psicológicos da memória, bem como pressupostos e direções que as norteiam, destacando que, algumas vezes, o que os autores privilegiam traz problemas para a compreensão do funcionamento especificamente humano. Como é possível considerar somente o funcionamento cerebral/mental como responsável pelo processo, com repercussões comportamentais, se o desenvolvimento do homem é essencialmente social? (BRAGA, 2000, p. 17)

Mesmo com proposições que relacionem a memória a aspectos biológicos, a

pergunta que Braga (2000) refere soa como um tom reflexivo a estudos que visam a

desconsiderar a memória imbuída em seu lado social. Braga (2000) cita ainda outros

estudiosos que compravam a sua reflexão acerca do social, tais como Marx e Engels

(1982), que há sessenta anos, redimensionaram a questão da memória,

“considerando-a enquanto processo intrinsecamente relacionado à natureza social

do homem, às suas formas de vida, às organizações e práticas grupais e

institucionais.” (BRAGA, 2000, p. 19) Tais estudos voltam-se para memória enquanto

fenômeno social, contudo analisando as influências sobre as recordações

individuais.

Em contrapartida, Braga (2000) cita ainda as reflexões cuja predominância

incorre em estudos sociais, como a de Bartlett. Este observa, além das

especificidades sociais, quais as condições que a recordação possui. Nesse

contexto, o autor define:

De uma maneira geral, as análises dos dados mostraram que vários fatores que influenciaram os sujeitos eram sociais em origem e natureza. Muitas transformações que ocorreram na recordação dos sujeitos eram marcadas pela influência das convenções sociais e crenças correntes nos grupos aos

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quais pertenciam. Bartlett afirma que, na “vida real”, os aspectos observados se acentuam, uma vez que a importância dos fatores sociais é grandemente intensificada. Ele adverte mais de uma vez, que “[...] a recordação exata é a exceção e não a regra. (BRAGA, 2006, p. 42)

Desse modo entendemos que a recordação, juntamente com a memória são

marcadas por influências sociais, sobretudo o conteúdo e o modo da recordação,

haja vista que os grupos sociais estão, de alguma forma, organizados. Assim, o

engajamento da experiência social reflete na semelhança da estrutura de como está

determinada a sociedade. No que tange ainda ao caráter social da memória, este

aspecto é reafirmado por outro autor, Bosi (2001), que abarca a questão grupal nas

reflexões em torno da memória:

Goethe já observava, em Verdade e poesia: Quando queremos lembrar o que aconteceu nos primeiros tempos da infância, confundimos muitas vezes o que se ouviu dizer aos outros com as próprias lembranças. Daí o caráter não só o pessoal, mas familiar, grupal, social da memória. (BOSI, 2001, p. 59)

Além das definições mencionadas pelos estudiosos acerca da memória, neste

estudo, consideramos ainda a presença de outro tipo de memória: a cultural. Por

essa ser constituída em heranças simbólicas que são materializadas em ritos,

monumentos, celebrações, escritura sagradas e outros objetos mnemônicos, como

os textos, consideramos a aproximação deste tipo de memória às narrativas de Caio,

isso porque o escritor gaúcho materializa as memórias culturais em seus textos.

Nesse âmbito, para melhor compreender a definição dessa memória, Costa

(2010) sugere que ela esteja ligada ao passado: “A memória cultural está ligada ao

passado longínquo. Esse passado se releva por meio de figuras simbólicas.” (p. 57-

58) Além dessas, outras peculiaridades da memória cultural são ressaltadas por

Costa (2010): a) os acontecimentos estão ligados a um passado absoluto; b) alto

grau de cristalização da forma, comunicação cerimonial, rituais; e c) representantes

especializados em tradições. Em suma, “a memória cultural é a memória do passado

primordial.” (COSTA, 2010, p. 58) Outra prerrogativa apontada pela autora é a de

que a memória cultural faz parte do conhecimento que é partilhado entre membros

de uma sociedade, nesse sentindo, entendemos que assim como a memória coletiva

ou individual, a memória cultural está estreitamente relacionada à sociedade.

Desse modo, individual, coletiva ou cultural, a memória é um dos princípios

fundamentais da sociedade, tal como pondera Le Goff (2003): “A memória é um

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elemento essencial do que se costuma chamar de identidade, individual ou coletiva,

cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de

hoje, na febre e na angústia.” (p. 469) A importância da memória ocorre, então, na

medida em que ela se torna parte integrante da sociedade e se constitui como

primordial para as relações entre os indivíduos, e, para demonstrar como incide a

presença da memória, especialmente a cultural nas crônicas de Caio, a próxima

seção analisa crônicas do autor em associação à perspectiva da construção da

memória.

3.4. A construção da memória na crônica de Caio

Neste estudo, a memória está sendo concebida através do seu caráter sócio-

cultural. Assim, erigindo referenciais da seção anterior, vamos observar como ocorre

a construção da memória nas crônicas de Caio. Para melhor exemplificar essas

relações, a narrativa “Ninguém merece Jânio Quadros”, de vinte e oito de outubro de

mil novecentos e oitenta e sete, sinaliza a interação de como ocorre essa

construção.

Com essa narrativa, observamos a presença da memória individual de um tempo

histórico, marcado pela prática de governos autoritários que não estão preocupados

em resolver os problemas do povo:

Semana passada, me deu uma vergonha tão grande de morar numa cidade que tem como prefeito essa figura lamentável do sr. Jânio Quadros, que até pensei: bom, no domingo sento e escrevo sobre isso. Uma crônica/carta irada, reclamando da sujeira das ruas, da violência solta, do barulho, da poluição, do lixo. Uma carta raivosa, cheia de cobranças. Lamentando a burrice deste povo que elegeu o sr. Jânio como prefeito e é bem capaz de, nas próximas (cadê?) eleições diretas para presidente, votar naquele outro senhor — o João Baptista Figueiredo. Uma carta sugerindo o internamento imediato do sr. Jânio (como ele fez com a própria filha) para uma boa — digamos — faxina mental. Com muito detergente. (ABREU, 2012, p. 127)

Com esse fragmento, é possível observar a repulsa do narrador com relação a

Jânio Quadros. Identificamos, assim, uma herança simbólica de indignação ao

político que é materializada no texto, o que equivale a afirmar que a memória

individual sobrepõe-se, isso porque é a impressão do narrador sobre a sociedade em

que está inserido, que é ressaltada ao leitor. Por ser uma memória materializada no

texto, há ainda a presença da memória cultural.

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Ao relatar as suas impressões acerca do cenário político, o narrador entende que

o antídoto que irá amenizar esse problema, são as questões culturais, tais como:

Aquele filme irresistível chamado Down by law; os trabalhos da família Boyle, na Bienal; o show de Os Mulheres Negras (que seria ainda melhor se eles parassem com as abobrinhas pueris e investissem na música mesmo); um bilhete de Nara Leão; a A-Z com Paulinha Toller na capa de um artigo de Bivar sobre Dadá; certa tarde no Ritz quase vazio, com a voz de Gal Costa, de repente cantando “Todo amor que houver nessa vida”, de Cazuza (Axé?); esse livro atrevido chamado Maria Ruth, de Ruth Escobar; um telefonema de Hilda Hilts; Paula Dip voltando de Londres; Nelson Beissac Peixotto me trazendo uma maquetezinha de papelão de Nova Iorque, com King Kong e tudo; um sonho com Fanny Abramovich; um chá com Jaqueline Cantore e Hugo Prata. Tanta coisa boa, bonita, gostosa, que pensei: não, o leitor o não merece Jânio Quadros. (ABREU, 2012, p. 127)

A alusão a elementos externos ao texto mostra como as tendências sociais

influenciam o processo rememorativo na percepção do narrador. Através da

linguagem, é possível perceber como a utilização do meio social sinaliza a

construção das lembranças do narrador. O filme Down by law, uma comédia

estadunidense lançada em 1986, em linhas gerais, é uma obra que mostra seres que

vivem nos limites da sociedade, longe dos ideias em que estão inseridos. Da mesma

forma com que o filme representa a expressão da década de oitenta, os outros

elementos citados pelo narrador se constituem em uma memória cultural da época

em que a crônica foi publicada. A memória, nesse sentido, pode ser entendida como

um fenômeno social, isto é, está ligada à geração de 1980, no entanto,

consideramos nesse processo, também, as influências sobre as recordações

individuais do narrador, já que são as suas percepções em torno de traços sociais

(filme, show, revista), mas que estão inseridos na sua individualidade. Por esse viés,

as recordações podem ter conotação social, mas o processo mnemônico é peculiar a

si, individual.

As recordações individuais que se sobrepõem ao coletivo podem ser ressaltadas

ainda na crônica “Adeus, agosto. Alô, setembro”, de dois de setembro de mil

novecentos e oitenta e sete. Em sentido análogo a “Ninguém merece Jânio

Quadros”, a primeira também demonstra a presença da memória, isso porque o

narrador ressalta o momento que o Brasil estava passando, e o que precisava ser

feito para suportar e refletir as adversidades da época. A linha de apoio prenuncia a

reflexão proposta pelo narrador: “Mesmo aqui no País Bandido, agosto sempre vai

embora. E setembro sempre volta, sim.” (ABREU, 2012, p. 113) Com esse excerto,

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percebemos que a presença da memória coletiva e cultural é grifada pelo narrador. A

memória coletiva está presente quando o autor refere que agosto sempre vai

embora, já setembro sempre volta, ou seja, com o mês de setembro, predominam

acontecimentos de teor positivo, ao contrário de agosto, e, nesse contexto, é

importante ressaltar que a proposição de que agosto é um mês ruim não foi

concebida pelo narrador, mas vem sendo disseminada há séculos, o que denota a

presença da memória coletiva. Além desta, a menção do narrador possui, ainda, o

caráter da memória cultural, que pode ser apreendida na medida em que citamos as

lendas que circundam o mês de agosto.

Para melhor compreender a presença de memória coletiva (po r estar

relacionada ao mês de agosto ser apreendido por proposições de teor negativo) e a

memória cultural (referindo-se as lendas que circundam esse mês), passamos a

observar como essas características foram permeadas pelos mitos que envolvem o

mês de agosto. A etimologia de como surgiu o nome “agosto” está calcada no

império romano. Whitrow (1993) afirma que foram os romanos que denotaram a

forma do nosso calendário e as convenções do registro do tempo:

Nosso calendário atual é uma modificação do calendário introduzido por Júlio César em 1º de janeiro de 45 a.C., e que tem o seu nome. Anteriormente, os romanos tinham tentado contabilizar seu calendário civil – que, como muitos calendários antigos, baseava-se na Lua – com o ano astronômico baseado no Sol, mediante a um sistema que envolvia um mês adicional ou intercalar de dois em dois anos. Como a duração desse mês não era determinada por qualquer regra precisa, os governantes podiam arbitrá-la como quisessem, e frequentemente abusavam desse poder para fins políticos. Manipulando o número de dias do mês intercalar, podiam prolongar um mandato ou apressar uma eleição, e o resulto foi que, na época de Júlio César, o ano civil estava defasado em cerca de três meses em relação ao ano astronômico, de tal modo que os messes do inverno caíam no outono e o equinócio da primavera ocorria no inverno. (p. 82)

Seguindo as informações cronológicas, Whitrow (1993) relata que César, para

corrigir essas anomalias do tempo, decretou que o ano 46 a.C. seria prolongado a

445 dias, baseando-se em um calendário totalmente solar. Desse modo, fixou o ano

verdadeiro em 365 dias e ¼ e introduziu o ano bissexto de 366 dias de quatro em

quatro anos, já o ano civil comum iria se compor em 365 dias:

Estabeleceu que janeiro, março, maio, julho, setembro e novembro teriam todos 31 dias e os demais 30, exceto fevereiro, que normalmente teria 29 dias e, nos anos bissextos, 30. Lamentavelmente, em 7 a.C. esse bem-feito arranjo sofreu uma interferência: em homenagem a Augusto (que o

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considerava seu mês de sorte), deu-se seu nome ao mês Sextilis, atribuindo-lhe o mesmo número de dias do mês precedente, que fora renomeado por Marco Antônio em honra ao seu tio-avô assassinado. Assim, um dia foi tirado de fevereiro e transferido para agosto. Para evitar a ocorrência sucessiva de três meses de 31 dias, setembro e novembro foram ambos reduzidos a 30 dias, e outubro e dezembro passaram a ter 31. Assim, em homenagem ao primeiro dos imperadores romanos, um arranjo ordenado foi reduzido a uma mixórdia ilógica que muitas pessoas têm dificuldade em memorizar, mas que, no curso de 2.000 anos, foi imposta com sucesso à maior parte do mundo. (p. 82)

Além dos romanos instituírem a agosto este nome, foi com esse povo que o

mês ficou conhecido como negativo, pois eles acreditavam que era nesse período

que uma criatura horripilante cruzava os céus da cidade, expelindo fogo. As lendas

que abarcam esse mês vão além das que o povo romano acreditava, pois Lacerda

(2004) associou agosto ao mês do desgosto, e, por esse prisma, Pinto (2000) afirma

que, além de agosto ser o mês do desgosto, é também o mês do cachorro louco.

Nessa esteira, outra consideração acerca desse mês deve ser ressaltada, dia 24 de

agosto é comemorado o dia de São Bartolomeu, este santo promoveu muitas

conversões ao Cristianismo, o que provocou inveja, então, ele foi executado em 51

d.C, anos depois, no mesmo dia, aconteceu um massacre na França, além disso, 24

de agosto é datado como o dia do Diabo. Newton Junior (1999) afirma que na crença

popular nordestina, o dia 24 é o dia em que o diabo anda solto pelo mundo:

É o mesmo dia, por exemplo, do nascimento do Boi Mandingueiro. Sobre esta data, afirmou Idelette Muzart: “Seja originado no martírio de São Bartolomeu ou na sangrenta lembrança da História da França, este medo supersticioso ficou ainda reforçado quando, em 1954, o Presidente Getúlio Vargas suicidou-se no dia 24 de agosto”. (p. 115)

De acordo com todas as conotações que inferem ao negativismo que agosto

possui, é que percebemos no excerto do narrador da crônica uma memória cultural.

As lembranças foram, nesse sentido, objetivadas e institucionalizadas – os

indivíduos relacionam a agosto um distanciamento dos efeitos positivos, essas

informações foram armazenadas, repassadas e reincorporadas ao longo das

gerações. É por esse caráter ser passado de geração a geração, que o narrador da

crônica “Adeus agosto. Alô setembro” inicia a narrativa afirmando:

Agosto, todo mundo sabe, nunca foi fácil. Este que nos deixou à meia-noite de ontem e pareceu durar uns seis meses, cumpriu a tradição. Levou Drummond, levou John Huston, Gilberto Freyre. O mais patético: levou Pixote. Ao saber do assassinato (é as-sas-si-na-to mesmo que eu quero

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dizer) dele, além de sentir uma vergonha viscosa de ser brasileiro, fiquei pensando assim – Deus, o que é que está acontecendo com este país? Imagino a praça de guerra (Líbano perde) em que se transformou o Rio de Janeiro e, na trilha sonora, ficou ouvindo Lobão berrar “vida, vida, vida bandida”. Em 1987, Lobão tornou-se a mais perfeita tradução de Brasil. Um país invadido pela corrupção, pela barbárie, pela violência policial, pela bandidagem. Você vai até a esquina comprar cigarros e não sabe se volta vivo. (ABREU, 2012, p. 113) (grifos nossos)

A ideia de memória cultural ser constituída por heranças simbólicas

materializadas em textos que funcionam para incorporar significados ao que passou

é perfeitamente aceitável neste primeiro parágrafo da crônica. O narrador cita os

motivos de agosto ser considerado um mês que “não é fácil”, e ainda relaciona os

problemas vividos pelo Brasil na época em que a crônica foi escrita estarem

associados a agosto. Como na narrativa anterior, o antídoto para amenizar os

sentimentos ruins é a música. Nesse sentido, o narrador cita “Vida Bandida”, cuja

autoria é do cantor e compositor Lobão. Essa canção faz parte do terceiro álbum do

cantor e foi lançada em 1987. Os temas que compõe esse álbum, a exemplo da

música citada pelo narrador, são de teor introspectivo e dramático, porque

representam um período da vida de Lobão em que esteve na prisão. “Vida Bandida”

representa uma sociedade tal como o nome propõe: “bandida”, isto é, sem condições

mínimas para viver, o que cabe no raciocínio proposto de um país invadido por

conotações negativas: corrupção, barbárie, violência policial, bandidagem. Além da

música, o narrador cita o teatro e faz comentários positivos para que os leitores

possam ir ver a peça que seus amigos de Porto Alegre irão encenar em São Paulo.

Ao falar sobre música e teatro na crônica, entendemos que o narrador faz alusão a

esses elementos como uma forma de fuga frente a uma realidade hostil.

A memória, então, entendida enquanto fenômeno social, sobretudo, quando

analisamos as influências sobre as recordações individuais, pode ser sinalizada em

outra narrativa, a crônica de dois de outubro de mil novecentos e noventa e quatro

“Delírio eleitoral à beira do ridículo”. A narrativa representa, como nas duas

anteriores, a memória individual do narrador imbuída de processos sociológicos. Na

crônica em questão, o leitor é apresentado a uma série de estratégias para não votar

em determinadas personalidades políticas. A narrativa foi escrita em vias da eleição,

então, o narrador quer conscientizar seus leitores através de sua opinião, uma

memória individual que interfere na concepção social e individual de cada um, ou

seja o voto:

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Assumi o pensamento quando vi Eliakin & Leila no SBT revelando que o mesmo temor atacou também Caetano Veloso, injuriado porque Enéas Carneiro ultrapassou Brizola nas pesquisas. Mais seguro, revelo para vocês aqui e agora o meu maior e mais ridículo medo pré-eleitoral – e se... o Enéas ganhar? (ABREU, 2012, p. 199)

Após a indagação, há a descrição na crônica de uma longa pausa, o que indica

que a posição individual da memória do narrador está centrada em um aspecto

negativo a que Enéas está relacionado. Além deste, o narrador cita outros políticos

cuja denotação negativa fica explícita:

Décadas atrás, o povo chegou a eleger o rinoceronte Cacareco (lembro da marchinha de carnaval: “eu-encontrei-o-Cacareco-tomando-chope-com-salsicha-e-rabanada”); houve também um certo macaco Tião. Houve até – credo em cruz! – Fernando Collor. Por que não Enéas Carneiro? Assim, de sarro. Ou de amargura, porque depois de tanta bobagem, feiúra, denúncias, golpes, cinismos, arrivismo, falsidade (alô, alô FHC), o eleitor poderia muito bem se decidir por aquela opinião que De Gaulle tinha sobre o Brasil – a célebre c’est pás un pays serieux. Oswald de Andrade, ou seu espírito, adoraria. Chacrinha talvez reencarnasse para ser, digamos, ministro da Fazenda. E Mazzaropi ou Oscarito para a Saúde, que tal? Uau, enfim, uma República Palhaça! Assumida, descarada. (ABREU, 2012, p. 200)

Cabe destacar que, através da ironia, a crônica firma-se como um exemplo de

como a memória individual influencia sua concepção de como está calcada a

sociedade em termos políticos. Nesse sentido, a memória individual é sinalizada por

ser entendida como a que é guardada por um indivíduo, nesse caso, o narrador, e

refere-se as suas vivências e experiências. No entanto, os aspectos do grupo social

também estão presentes na memória individual, visto que, ele recorda-se de

marchinhas de carnaval, programas televisivos que se encontram a nível coletivo. A

presença desses elementos exerce a mediação produzida no compartilhamento dos

sentidos como matéria-prima constitutiva da memória social. Nessa esteira, é

importante ressaltar que as relações entre memória individual e social ocorrem na

medida em que entendemos que a memória social, quando adquirida em

determinados contextos, desenvolve-se em interação e com práticas, experiências e

códigos simbólicos partilhados, é estruturada pela linguagem e é parte do processo

de reprodução social.

Para melhor conduzir as reflexões acerca da memória individual e coletiva,

Ricouer (2007) propõe a ideia de que três traços podem ser ressaltados em favor do

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caráter essencialmente privado da memória. O primeiro relaciona-se à memória ser

radicalmente singular: “minhas lembranças não são as suas. Não se pode transferir

as lembranças de um para a memória de outro. Enquanto minha, a memória é um

modelo de minhadade, de possessão privada.” (p. 107) Um segundo ponto diz

respeito ao vínculo da memória residir no passado. Assim, nas palavras do

estudioso: “a memória é passado, esse passado é o de minhas impressões; nesse

sentido, esse passado é meu passado. É por esse traço que a memória garante a

continuidade temporal da pessoa”. (RICOUER, 2007, p. 107) E finalmente, em

terceiro,

É à memória que está vinculado o sentido da orientação na passagem do tempo; orientação em mão dupla, do passado para o futuro, de trás para frente, por assim dizer, segundo a flecha do tempo da mudança, mas também do futuro para o passado, segundo o movimento inverso de trânsito da expectativa à lembrança, através do presente vivo. (RICOUER, 2007, p. 108)

A proposição da individualidade da memória está calcada em Santo Agostinho,

após este vieram John Locke e Husserl, posterior a ele, está Maurice Halbwachs,

para quem a memória está diretamente ligada a uma entidade coletiva, que ele

denomina, grupo ou sociedade, o estudioso afirma que para lembrar-se é preciso

dos outros. Em tal contexto, Ricouer (2007), esclarece que “é a partir de uma análise

sutil da experiência individual de pertencer a um grupo, e na base do ensino recebido

de outros, que a memória individual toma posse de si mesma”. (p. 130) Com efeito, é

no caminho da recordação e da lembrança que nos deparamos com a memória dos

outros.

A recorrência da memória individual está presente na narrativa, pois as

lembranças, tanto de programas de televisão, quanto do mal que algumas

personalidades políticas fizeram ao país, estão em nível de “minhadade”, como

denomina Ricouer (2007), ou seja, elas são processos mnemônicos que possuem

exclusivamente as lembranças do narrador. No entanto, essa experiência de caráter

individual está relacionada a um grupo social, tanto é que o narrador cita os

fenômenos de ordem sociológica, além disso, entendemos essa memória como

social e coletiva, pois se baseia na cultura de um agrupamento social e em códigos

que foram apreendidos em processos de socialização. Em tal perspectiva,

percebemos a presença tanto da memória individual, quanto da social.

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Os códigos de processos sociais estão sinalizados pelos motivos aos quais o

narrador não quer que os leitores votem em Enéas. O narrador recorda-se de uma

situação com o político:

Piada? Espero mesmo que não passe disso. Seria perigoso demais, por trás da imbecilidade aparente, Enéas parece tão fascista quanto o porco Berlusconi. Sei o que digo. Eu o conheci no final de 1990, no Aeroanta, quando Grace Giannoukas, Angela Dip e Marcelo Mansfield (na época o grupo Harpias & Ogros) ofereceram a ele um dos troféus “Créme de la Créme”. Encarregado por Martha Góes de fazer a cobertura para esse mesmo Caderno 2, dividi uma mesa com a poeta Ledusha, a atriz Maria de Moraes e, voilá, o tal Enéas. Este, levando a sério o puro deboche. Constrangedor. E me pergunto, seria tão patética assim a desilusão do povo brasileiro a ponto de cometer esse abasurdo? Razões não faltam, sei. Eu mesmo endureci muito após o affair Ibsen Pinheiro... (ABREU, 2012, p. 200)

Com o excerto, podemos atentar para o caráter dinâmico da memória: ao ser

evocada no presente (narrador expõe motivos concretos por sua desilusão com

Enéas), remete ao passado (as recordações que envolveram o nome do político),

mas sempre tendo em vista o futuro, ou seja, que Eneás não seja eleito. O final da

crônica é em sentido de despedida e de alerta aos leitores:

Peço então en-ca-re-ci-da-men-te: amanhã votem em quem quiserem, mas NUNCA em Enéas. A comédia pode virar tragédia, gente. Já pensou quatro anos de meu-nome-é – etc, perseguição às minorias e defesa da célula-mater? Posto isso, parto para Frankfurt dia 4. Terei que ler em alguma língua estrangeira sobre o que rolou por aqui. Caso essas minhas torpes fantasias se realizem, juro que nem volto: vou direto morar em Saravejo. Anyway, da estrada, mando notícias. E juízo amanhã, hein? (ABREU, 2012, p. 200)

O vocábulo “en-ca-re-ci-da-men-te” está permeado por marcas da oralidade, a

presença dos hifens denota a pausa na fala do narrador para que a expressão seja

ressaltada aos leitores. Nessa perspectiva, além da presença da memória individual,

coletiva e social, observamos a memória como construção no que tange a reflexão

acerca do social. O narrador não está somente representando a sua opinião que

interfere no social, ele propõe também que os leitores saibam refletir sobre seu voto

e mostra o quanto essa decisão possui importância.

A reflexão sobre temas sociais caracteriza as crônicas de Caio. As narrativas

possuem um peso especial no que se relaciona ao compromisso com o cotidiano e

ao tempo, ligam-se, então, a um fato ou acontecimento temporal. Por esse viés do

tempo, a memória insere-se, pois cabe ao cronista buscar em suas recordações

individuais, coletivas e sociais, a reprodução das narrativas. Em especial, nas

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crônicas analisadas de Caio, podemos ressaltar a presença da memória individual,

coletiva, cultural e social. A memória individual está presente, pois Caio expõe as

suas posições ideológicas nas crônicas, e a memória coletiva é entendida enquanto

fenômeno social, analisando as influências sobre as recordações individuais, a

memória cultural está imbricada de lembranças objetivadas e institucionalizadas que

são armazenadas, repassadas aos leitores e materializadas através de textos e, por

fim, a memória social, com vistas a ser parte integrante do processo de reprodução

social.

Ao fazer referência a presença das diferentes memórias nas crônicas de Caio,

entendemos que suas narrativas contribuem para relacionar o aspecto literário e

jornalístico de suas crônicas, a forma com que as narrativas dialogam com a

sociedade e, por fim, que essas características constituem crônicas que, mesmo

escritas nas décadas de oitenta e noventa, são denominadas atemporais, pois

permitem ao leitor a reflexão de temas que circundam a sociedade atual.

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CRÔNICAS DE CAIO: RELATOS DE UM NARRADOR-REPÓRTER

A leitura de crônicas de A Vida Gritando nos Cantos permite várias reflexões.

A primeira delas relaciona-se ao título que constitui uma espécie de síntese das

narrativas. Como procuramos demonstrar, as crônicas de Caio abordam o cotidiano,

tratam da vida. Assim, temos a explicitação do termo “a vida” no título. O senso

crítico das crônicas de Caio remete à imagem de grito que faz parte do título e “nos

cantos” faz alusão ao meio em que as crônicas foram veiculadas: em um jornal que

chega a muitos espaços e leitores. Enfim, A Vida Gritando nos Cantos é um recurso

de alerta aos leitores sobre temas delicados da vida social, mostrando o quanto a

arte pode atentar para problemas sociais, fazendo os leitores compreenderem o

meio do qual fazem parte.

Nessa obra, os textos de Caio trazem uma visão singular na forma de

conceber essas narrativas. A interação da literatura com a sociedade nessas

narrativas sinaliza a forma com que o escritor conduz seus textos, fazendo com que

o leitor sinta-se em meio a eles e possa refletir sobre os temas ali registrados. Nesse

sentido, podemos destacar ainda que Caio foi um leitor de seu tempo, o que nos

permite associar sua visão de cronista a uma expressão citada por Sá (1999),

“narrador-repórter”. As crônicas de Caio mostram o quanto ele foi um “narrador-

repórter”, pois entendemos que é essa a relação que o escritor gaúcho estabelece

com as crônicas: um narrador-repórter por transformar fatos cotidianos em matéria

literária.

Além desse traço, convém destacar que Caio explorou vários recursos

estéticos ao construir suas narrativas no gênero crônica. Para melhor exemplificar a

forma como as suas crônicas transpõem fatos corriqueiros em uma linguagem

imbuída de subjetividade, introspecção, alusão a elementos externos, ironia, humor,

diálogo com leitor, interação da literatura com a sociedade e a memória acerca dos

fatos que estão inseridos nas narrativas, demonstramos como todos esses

elementos se relacionam, pontuando as principais considerações desta pesquisa.

Para tanto, refazemos o percurso proposto neste trabalho com a divisão em três

capítulos e apontamos dentre estes as principais peculiaridades que podem ser

evidenciadas nas crônicas do escritor gaúcho, e por fim, mostramos alguns

desdobramentos que esse estudo pode adquirir.

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Os objetivos a que nos propomos ao estudar a obra A Vida Gritando nos

Cantos consistem em reconhecer as características da crônica enquanto gênero

literário, identificar os traços singulares da narrativa de Caio, mostrar as relações

entre literatura e sociedade, qual a expressão dessa ligação para a crônica do

escritor gaúcho, e ainda, como incorre a construção da memória nas crônicas. Para

dar conta desses objetivos, separamos as reflexões em três momentos. O primeiro

capítulo evidenciou a teoria que envolve a crônica, o hibridismo que circunda os

campos da literatura e do jornalismo e, por fim, mostramos um pequeno esboço da

crônica brasileira em distintos autores.

É importante ressaltar que o limiar do jornalismo com a literatura foi fator

primordial para a escolha das crônicas como objeto central deste estudo, justamente

por ser um gênero que aborda aspectos da realidade, estabelecendo, assim, um

diálogo entre sociedade e contexto jornalístico, mas também utilizando a

subjetividade e elementos que se voltam para a interação com a literatura. Com

efeito, a proposição de Candido (1989), acerca do fato de a comunhão que o texto

literário estabelece com o social ocorrer pela pretensão de humanizar, é

perfeitamente aceitável para compreender as crônicas de Caio, uma vez que o

engajamento com relação ao social, a representação e a tentativa de melhor

compreensão do mundo em que estava inserido estão em consonância com as

crônicas do escritor gaúcho. Ademais, entre as particularidades que aproximam a

crônica da literatura e do jornalismo e estão presentes nas narrativa de Caio,

podemos citar ainda a busca pela subjetividade, o uso de linguagem mais livre e

descompromissada, as qualidades estéticas e a literalidade.

No que tange a essa primeira parte de reflexões que envolvem a teoria da

crônica, após percorrer o caminho de como o gênero foi sendo concebido por

distintos estudiosos ao longo dos séculos, entendemos que as características

expostas sobre esse gênero nos serviram para erigir referenciais teóricos por

evidenciar que os traços que pertencem a crônica de Caio não podem ficar restritos

as reflexões da crônica enquanto gênero tal como proposto pelos estudiosos, por

isso, podemos afirmar que os apontamentos da teoria da crônica não são suficientes

para o estudo da crônica de Caio, pois, por exemplo, a objetividade propagada pela

teoria da crônica como um traço singular desse gênero não é percebida na crônica

de Caio no sentido de que este autor usa uma linguagem objetiva em termos de

extensão, mas subjetiva em termos de construção e conteúdo. O que fizemos, foi

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utilizar as características predominantes do gênero crônica e transportá-las para as

narrativas de Caio, presentes na obra A Vida Gritando nos Cantos. Ao eleger a

linguagem coloquial, o humor e ironia, a subjetividade e o trabalho de citação e a

busca pelo diálogo com leitor, fixamos nossas análises em algumas das

características que são pontuadas pelos estudiosos da crônica. Elegemos esses

elementos, pois observamos que a maior parte das narrativas que estavam na obra

que compreende nosso corpus atendiam a essas particularidades.

Ao observar a presença dos elementos já citados que compreendem as

análises do segundo capítulo, observamos que as narrativas formam um diálogo

aberto e explícito entre escritor, leitor e sociedade. O autor ainda explora em seus

textos uma linguagem de aproximação com o leitor, para chegar aos que leem,

como se estivessem em uma conversa cotidiana, e, nesse contexto, distintos temas

são abordados, no entanto, a preferência de Caio nas crônicas são os assuntos que

envolvem elementos externos. Ao falar sobre política, Caio cita música (cantores,

compositores, álbuns de artistas), cultura, (relaciona ao cinema, peças de tetro,

televisão) e, é claro, literatura (livros, autores consagrados), ao falar sobre violência,

histórias íntimas, viagens, tudo está permeado pela presença constante de citações

à elementos externos.

Outra importante característica que está inerente à crônica do escritor são os

aspectos sociais, seu espírito crítico e até mesmo autocrítico, os quais induzem o

leitor a temas que remetem ao cotidiano e à reflexão. Com as suas crônicas, não é

possível falar em linguagem simples, a qual, segundo a teoria da crônica é uma das

maiores particularidades do gênero. Isso porque, mesmo com a linguagem simples

ou com um fato corriqueiro, as narrativas do escritor gaúcho transformam-se,

imprimindo um grau maior de complexidade, e isso deve-se à composição que tanto

a linguagem coloquial, humor e ironia, subjetividade e trabalho de citação e diálogo

com leitor formam nas crônicas do escritor gaúcho. São através desses quatro

elementos (que se desdobram em si) que podemos resumir as principais e especiais

qualidades da crônica de Caio. Por esse motivo, eles foram escolhidos para

referenciar o capítulo dois e possuem importância nesse estudo, pois estão

presentes em todas as crônicas que o corpus dessa pesquisa compreende.

As relações que se estreitam entre literatura e sociedade, a presença dos

elementos observados nas crônicas do escritor gaúcho e que foram exemplificadas

no segundo capítulo, auxiliam-nos para melhor compreender como ocorre a

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construção da memória nas crônicas de Caio. No tocante à memória e à interação

da literatura e sociedade é que o terceiro capítulo foi construído. O envolvimento da

literatura com a sociedade foi pontuado e exemplificado nos textos e, à medida que

essa relação se compõe não somente pela alusão a elementos sociológicos, mas,

sim, pela construção que Caio utiliza em suas narrativas, isto é, temas que denotam

a reflexão, estratégias textuais que remetem a indagação e que estão permeados

por elementos sociológicos sinalizam a interação das crônicas com o meio social.

Vale ressaltar a importância que a interação do literário com o social possui

nesta pesquisa, isso porque, da mesma forma com que os elementos pontuados no

segundo capítulo, todas as crônicas que compreendem o corpus dessa pesquisa

apresentam a presença da relação entre literatura e sociedade. Para nortear o

percurso metodológico dessas reflexões, as prerrogativas propostas por Antonio

Candido foram utilizadas. O estudioso atenta que as indicações sociais estão

presentes em referências a atitudes e palavras, mas também ao conteúdo das

crônicas para que, assim, o leitor possa refletir sobre o sentido social simbólico.

Por esse prisma, as crônicas de Caio voltam-se ao social, fazendo uso dos

termos linguísticos e de conteúdo, mas também porque estão inseridas em um

jornal, e este é parte atuante do poder que a mídia possui frente à sociedade,

justamente por sua abrangência e pelo domínio que exerce sobre as pessoas. Por

esse viés, a mídia exerce, segundo Azevedo (2006), papel de vigia e fiscalização, e,

em sentido análogo, Caio também denota essa interação nas suas crônicas, já que,

ao exibir suas ideologias em torno dos problemas sociais, o narrador das crônicas

passa a assumir publicamente o papel de vigia. Além disso, através de relatos

pessoais, o narrador remete os leitores a reflexão acerca da atuação de políticos

brasileiros e ainda cita o nome dessas pessoas nos textos, demonstrando o que

precisa ser transformado frente à realidade. Ao utilizar essas estratégias, as crônicas

estão imbricadas de um viés sociológico que abrange a representação da sociedade

e permite ao leitor refletir sobre os problemas explanados nas narrativas,

correspondendo, assim, ao papel da interação da literatura com o meio social que é

sinalizado por Candido (2000).

Nessa esteira, o narrador, ao utilizar as suas vivências para transpor ao texto

os problemas sociais e a relação da literatura com o social, a memória é realçada

nesse processo, visto que, ao incorporar no texto as suas ideologias, o narrador está

recorrendo aos processos históricos e consequentemente à memória. No que tange

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à memória, podemos destacar que as crônicas de Caio estudadas evidenciam uma

forma de construção de registro de um tempo social e histórico em que não foram

ignorados temas da cultura e da política brasileira e mundial. Ao contrário, Caio

soube captar dados do cotidiano e fatos relevantes no cenário social para

transformar em conteúdo literário, fazendo com que suas crônicas possam ser lidas

como uma forma de pensar o Brasil, a atuação de políticos e artistas, a perspectiva

dos escritores, entre outros temas. Nesse sentido, cabe ainda registrar que Caio, em

suas crônicas, manifestou uma perspectiva melancólica e até pessimista em relação

à situação do Brasil, como fica evidente nos textos “Ninguém merece Jânio

Quadros” e “Inútil pranto por Santa Tereza”. Enfim, podemos dizer que as crônicas

de Caio são um registro de seu tempo e, por isso, constroem uma memória sócio-

cultural de seu contexto de produção.

Ao realizar este trabalho, ainda é oportuno registrar que estudar as crônicas

de Caio foi uma forma de compreender narrativas de sua autoria que não são tão

requeridas quanto objeto de análise no meio acadêmico haja vista a escassez de

pesquisas sobre sua crônica. Traços desse gênero em sua produção foram

identificados na tentativa de buscar compreender melhor sua escrita cronística. No

entanto, o estudo de sua crônica não está esgotado. Ao desenvolver este trabalho,

surgiram algumas possibilidades de desdobramentos para pensar a crônica sobre

outros vieses, tais como refletir sobre o lugar que a crônica de Caio possui na

literatura do Brasil e a situação da crônica contemporânea em nossa literatura.

Nessa perspectiva, um questionamento merece ser respondido: em comparação

com outros escritores cronistas contemporâneos a Caio, que traços singularizam a

crônica do período e qual o lugar de Caio nesse contexto? Nesse sentido, referindo-

se ao cânone, outras perguntas nos parecem relevantes: como avaliar as suas

crônicas? Elas estão inseridas em um rol mediano, bom ou as suas narrativas não

se encontram nesses padrões de conceituação/valoração? Além disso, outra

possibilidade é discutir os traços da crônica de Caio e verificar se esses são

exclusivos de sua literatura ou se são recorrentes em outros cronistas e obras.

Enfim, são caminhos de leitura a se fazer. Que outros trabalhos contribuam para

desvendar as histórias desse singular narrador-repórter26.

26 A expressão “narrador-repórter” é emprega nesta seção final do trabalho no sentido de que Caio contou histórias, explorando recursos estético-literários diversos, o que o aproxima do mundo da literatura, o que permite a adoção do termo “narrador” que alude mais diretamente à capacidade criativa. O termo “repórter” é

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