literatura amazônica - amarilis tupiassu

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  • 7/22/2019 Literatura Amaznica - Amarilis Tupiassu

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    ESTUDOSAVANADOS 19 (53), 2005 299

    Amaznia mtica e Amaznia real

    NOTICIRIODE18 de janeiro de 2005 informa que o presidente Lularestabelece o antigo Projeto Rondon. Criado em 1967, tal projeto foi

    usado, durante 22 anos, para envolver estudantes universitrios na assis-tncia a cidades distantes, no beneficiadas por qualquer programa governamen-tal1. Duzentos estudantes universitrios e professores do Rio Grande do Sul,Distrito Federal, Rio de Janeiro, So Paulo e Minas Gerais o integram, como oprimeiro grupo nessa nova verso, parapercorreros 850 metros da floresta Ama-znica que abrangem treze lugarejos. Para o amaznida, pelo menos, as notciassobre a chegada desse grupo a Manaus so, no mnimo, engraadas. Algunstrechos: Os estudantes sentiram o calor e tambm no largaram o repelentecontra os mosquitos; alis, no economizaram protetor solar e repelentes.

    Uma estudante de Minas diz precisar de um capacete de construo civil parano se machucar nos espinhos de tucum; outra reclama: Aqui muito quente;parece que estou num showde ax em Salvador, enquanto o coordenador dogrupo, o general Gilberto Arantes Barbosa, afirma textualmente e eu destaco:Na verdade, os estudantes esto muito animados, parece que esto descobrindo umoutro planeta2.

    Como se v, ao entendimento que se expande do reduto das decises,Amaznia e paliativo se conjugam. A Amaznia dos excessos h tanto exploradacom parcos proveitos a si. Obstante uma Amaznia no mtica, povoada por le-gies de brasileiros muito pobres e que guarda na cultura, na fisionomia e na inti-midade com os elementos da floresta, a memria viva do ndio ancestral, hoje oquase ndio ou quase nada, o errante dos lugarejos encravados no ntimo da ma-ta, em margens sem registro em nenhuma carta, nas beiras de rios, igaraps; on-tem destribalizado com violncia, deculturado, hoje o desgarrado, a pairar numtempo sem calendas, a gente dos entranados de verdes e guas, caudais do super-lativssimo rio Amazonas. esta Amaznia da escassez que convive com o el do-radoreal, de fauna, flora, riqueza, cujas contas do inventrio jamais se fecharam.

    S para relembrar: maior bacia hidrogrfica do planeta com 6,3 milhes dekm2. guas brancas, translcidas, turvas e negras, viveiro de trs mil espcies de

    Amaznia,das travessias lusitanas

    literatura de at agoraAMARLISTUPIASS

    O

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    peixes, 85% das espcies da Amrica do Sul. Numa s planta os cientistas conta-ram oitenta espcies de formigas. Torrentes de gua doce; 20% de toda a guadoce contida no planeta. Apesar dessa estatstica, a imagem de outro planetaperdura e arregimenta sentidos de estranheza, contrariedade, alguns antigos,desbotados e ainda em voga, desde as incurses do europeu colonizador. Ama-znia, terra do sem fim e do sem termo. Bojo de fartura e esquisitices. Represen-tao do inspito e do hostil, concluem os que a espreitam de fora, os que no sesentem parte de, o adventcio passageiro, o casual, que no compartilha verdadei-ramente de, desde as andanas remotas do que se determinou o civilizador e dis-ps as tramas do poder para submeter sua populao e lusitaniz-la, sob as bn-os do bem, na perspectiva da moral crist, dona do sim e do no, contra o mal,cuja encarnao eram os ndios. Transformar, firmar e expandir os atributos des-sa cristandade eram as palavras de ordem. Em seu nome, deflagravam-se intentosindissociveis de escravizar, suprimir, reduzir os muitos conformao de um

    nico cnone de experincia e ponto final.Amaznia no mtica. Antes, ricas extenses de rea costeira banhada porguas salgadas. Oceanos tambm de guas doces, declinada em todas as conju-gaes, mesmo as anmalas, fluindo, tantas, em pretrito imperfeito e num ge-rndio no timbre imperativo e pervertido das aes que ainda se desenrolam nasinconjungaes do curso da Histria. Minas, minrios pele da terra, pepitas deouro a granel, carradas de gemas flor do cho. Diziam que era s pegar. Emouro at os grampos dos cabelos das mamelucas do Baixo-Amazonas, diziam.Tanto o muito e o novo, que era custoso nomear. Criaram o nheengatu, uma

    lngua geral para o saque das valias do litoral. Forjaram tores, prestidigitaesverbais para dizer as ocorrncias, algumas iguais s do incio de tudo, s de Ca-minha, por exemplo, que designou como bico de osso o botoque ndio, alu-so sub-reptcia feira e animalidade daquelas criaturas horrendas, o queproferem as crnicas.

    Na Amaznia, mais que em outras plagas, um rio e no s um rio,podendo infundir-se em um paran, um igarap, lago ou lagoa j sob influnciadas voragens atlnticas. Bem ali, em vertentes prximas, a residncia de um olhodgua ou muitos e basta uma cava para brotar gua boa de beber. E j se divisa

    numa dobra de rio (ou so fraldas do oceano?) a ilha mxima, uma costa coman-dada pelo regime de um rio, como se a ilha tivesse nascido justo l para servir deanteparo ao mar (que este o significado tupi de Maraj), enquanto a outracosta se despeja para as vastides do mar. Mais ali, imiscuindo-se, escoando-sepelas veias da floresta e haja metforas em analogia com o corpo humano comoa deixar gravado, na inconscincia consciente dos fatos, que o rio e a floresta soorganismos vivos pontas, joelhos, cotovelos, braos, pernas, olhos, bocas,bocainas, gargantas de rios em grandssimo porte ou a modo de pequenssimosriscos aquosos, mas incisivos, porque perenes, alagando a mata anfbia, quando ateimosia dos ciclos logo-logo devolve a terra secura ou aos outros humoresmais secos da umidade. Nos leitos molhados e enxutos, muito cho at hoje

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    ignoto, indevassvel. Para o colonizador de outrora e de hoje apesar do intri-ncado, nenhuma dificuldade possesso. Ocup-la, reinvent-la s custas da desfi-gurao e do apagamento de sua anterioridade milenar no foi fato contingentee acidental. Organizaram-se esquemas, estratagemas, ao cumprimento de umprojeto cultural, poltico e econmico acionado e supervisionado com mos deferro pelo Portugal expansionista.

    Clarear esse panorama, desdobrar uma cartografia de opulncia, descortinaras curvas do solo de misria, remontar seus fragmentos, recolher seus retalhos,

    vogando avulsos pelas idades, revela os termos do encontroentre europeu e ndioe serve para um inventrio de temticas literrias.

    As sublinhas falantes das crnicas coloniais

    Pensar a literatura feita na Amaznia pede o exame, ainda que de raspo,como nos sobrevos deste escrito, sobre os movimentos do colonizador. Desde

    o sculo XV, relatos e mais relatos foram lavrados pelos seus cronistas, homensde profusa palavra, e por no contemplativos missionrios, homens de escritabrilhante, todos ciosos em eternizar os trmites da dominao, o pasmo, o alum-bramento, o gabo triunfalista, o horror ante a outra gente. Sobre os ndios, somuitas as desrazes que circulam nas cnicas. A do primeiro governador do Bra-sil ecoa como um emblema do malfeito. Tom de Sousa dizia que eram tantos,mas tantos, os ndios que ainda que os cortassem em aougue nunca falta-riam3. Isto dito sem que pudesse imaginar as multides de tribos espalhadaspelas entranhas da floresta amaznica.

    Vale a pena esse olhar em retro, porque sob aquela Amaznia afundou omundo dos ndios e a partir dali se estabeleceram muitas temticas reiteradas naliteratura de depois. As crnicas foram alm da auto-exaltao. Os cronistas noatentaram para a fora das zonas subliminares da palavra e quando imprimiam ofoco sobre seusgrandes feitosancoravam graves sentidos. De tal modo que juntocom as falas que desdobram o extermnio, afloram, nas entrelinhas, as cenas deresistncia do dominado, o que desmente a idia de passividade do ndio face aodesmantelamento de seu universo. Abro parnteses para apresentar duas passa-gens escritas pelo jesuta Felipe Bettendorff. Na primeira, representa-se um sui-

    cdio coletivo, legtima ilustrao para uma legenda que ressoa nos movimentosde libertao dos povos de hoje e nos hinos nacionais que conclamam Indepen-dncia e liberdade custe o que custar. At a vida, se necessrio. O segundo de-senha um quadro de incrvel resistncia, o salto liberdade, mesmo que a tmpe-ra, o fio da lmina se extraia de um casual e mero tio. E, observe-se, do reduzi-do de dois breves fragmentos, correm efuses interlineares que subscrevem a de-monizao dos brbaros, a idia de desqualificao to repetida talvez sem exce-o pelos colonizadores e que mesmo hoje faz eco na angulao suspicaz que,no com raridade, projeta-se do olhar que espreita do lado de baixo do mapa do

    Brasil para a banda de cima e tende ao descrdito, busca do excepcional, doestranho, extico, coisas e gentes de outroplaneta. Eis os excertos:

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    O gentio [da tribo] Aruaquiz trabalhador e mui impaciente de captiveiro esujeio, tanto que se resolveram alguns que tomaram em guerra os portuguezesa tomar peonha para morrerem, por mais conveniencia, do que virem a serescravos dos brancos. Esta prtica imprimio o demnio tanto em seus cora-es, que rarssimo o dos que trouxeram ao Par [Belm] que escapasse comvida4.

    Depois de algumas mortes, captivaram quinhentos ndios, entre homens emulheres, os quaes, vindo do serto [mato] para o Par [Belm] a vender-se,levantaram-se pelo caminho contra os soldados que os traziam prisioneiros,matando muitos deles e fugiram por esses matos; este Prelado sobredito seresolveu tambm a vir atraz com outra canoa de escravos [...] eis que subita-mente [...] uma india velha que tambm trazia por escrava, [...] se foi chegan-do a elle com um tio de fogo em a mo, e vista de todos deu com elle umapancada, com tanto mpeto e fora sobre a cabea do religioso que pareciaguiada por outra mo e elle logo cahio morto sem poder mais fallar, nempronunciar uma s palavra. Com esta ao inopinada [...] os ndios [...] sevoltaram rio acima com a india que os capitaneava. [...] os mais soldados endios christos se puzeram em fugida [...] e a velha, com o tio de fogo ema mo, que foi o instrumento de sua victoria, capitaneou os brbaros rio dasAmazonas acima para suas aldeias 5.

    Muito da fico e da poesia que se produziu a partir do sculo XIX, sobre-tudo nos estados do Par e Amazonas sobre as quais mais me reporto agora deixam entrever a Amaznia que restou quelas investidas, uma Amaznia usur-pada, que prossegue at hoje seu curso de degradao, que se mantm ao largo

    de programas governamentais conseqentes e de projetos consistentes de salva-o do que urge livrar s novas sanhas colonizadoras.De fato, depois de finda a primeira colonizao, a Amaznia continuou

    seu trajeto de regio aulada pela antiqssima ganncia, agora sob novas im-postaes retricas, outro domnio, exmio em manipular no mais la plvora yarcabuces y ballestas6 de Orellana, Carvajal, Acua e outros, e sim armas sorra-teiras, silenciosas, mas muito mais letais, potencializadas por agentes civilizatriosque nem precisam de corporificao para gerar e multiplicar as novas facetas daantiga dizimao, agora por via da morte devagar sob o desalento da misria

    imposta sobre uma populao errante, sem peso, sem prumo, sem voz.

    As amaznias das fronteira flutuantes

    Margear a Hilia que restou, no entanto, no uma tarefa simples. s ve-zes chega a ser acabrunhante tomar p em seu leito movedio, tantas foram econtinuam sendo as intervenes que no diminuem as estatsticas sobre a mis-ria, de sempre, na Amaznia real. difcil, para comear, circunscrever aquela deque se pretende um enquadramento literrio, mesmo que igual ao de agora, emescala de macroviso.

    Seno, vejamos. No incio de tudo, depois das reviravoltas do batismo, oinfinito descobertofoi s um colosso chamado Brasil. Para salvaguardar a posse, a

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    poltica colonial portuguesa, em 13 de junho de 1621, dividiu-a em dois pedaosainda gigantescos, o estado do Brasil, quase que da metade para baixo do mapae, da metade para cima, o estado do Maranho e Gro-Par sediado em So Lus,submetido a ordens diretas de Portugal. O ltimo estado abrangia, subindo No-roeste, Nordeste, Norte, o territrio ocupado hoje pelos estados do Cear, Piau,

    Maranho, Par, Acre, Amazonas, Roraima, Amap e parte do Mato Grosso e deTocantins. Em 1751, inverte-se a centralizao do mando, quando se institui oestado do Gro-Par e Maranho, com sede em Belm. No ano de 1772, deter-mina-se a criao do estado do Gro-Par e Rio Negro, o anteato da criao dofuturo estado do Amazonas.

    Ou seja, vagueza e mobilidade sempre se impuseram delimitao dos es-paos da floresta. Exatamente agora tramitam pelas altas cmaras de deciso doBrasil projetos de retalhamento dos estados da Amaznia. (ver Mapa proposto diviso do Par) Esse vezo de dividir no repercute como estranheza neste Brasil

    de desconcertos. Trata-se do antigo af cobioso de polticos, cleres na corridapor abocanhar mais espao, mais poder e rentosas governanas. O triste queesses arroubos acontecem revelia e a contra mar de um organismo multinacional,a OTCA(Organizao do Tratado de Cooperao dos Pases Amaznicos), comsede em Braslia, que trabalha pela unio e por decises compartilhadas, com

    vistas ao fortalecimento de uma Pan-Amaznia de verdade, capacitada a desen-volver acordos de cooperao cientfica, cultural e econmica.

    Alm do mais, as cartas de hoje assinalam a Amaznia brasileira de confor-mao geopoltica, ao Norte, formada por sete estados, a saber, Par, Amap,

    Amazonas, Acre, Roraima, Rondnia e Tocantins. Este ltimo, desmembradodo estado de Gois, resultando mais de deciso poltica, pois, por lgica geogr-fica, estaria mais vontade na regio central ou no nordeste do Brasil. Paralela-mente a esta, existe a Amaznia legal abarcando os sete estados amaznicos etambm o norte de Mato Grosso e o noroeste do Maranho. H ainda a Pan-

    Amaznia, de que fazem parte as nove unidades da Amaznia legal e tambm,Suriname, Guiana, Venezuela, Colmbia, Equador, Peru e Bolvia. E tem mais:encravada no territrio geogrfico da Amaznia, encontra-se a Guiana Francesa,regida pelas decises polticas da Repblica Francesa. Mesmo no fazendo parteda OTCA, nem sendo, ao rigor das leis e no geogrfico, um territrio dasamaznias, so cada vez mais freqentes os intercmbios entre o estado do Pare a Guiana Francesa, uma mostra de que as vontades polticas muitas vezes nocoincidem com as razes geogrficas quando se trata da Amaznia.

    Da a hesitao sobre qual enfocar quando se pretende compreender oacontecimento literrio amaznico. E mais uma dificuldade. Os estados da Ama-znia brasileira, da Pan-Amaznia, dada a grandeza territorial, vivem cada um astravas de seu isolamento, com certa exceo de Par e Amazonas, que comparti-

    lham mais a mido de experincias e reflexes sobre sua escrita artstica. Aesde romper isolamento: h oito anos, o estado do Par instituiu sua Feira Pan-

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    Amaznica do Livro, a terceira maior do Brasil em visitao e comrcio livreiro,que empenha esforos para fazer avanar uma poltica de agregao, discusso ecompreenso de uma pan-Amaznia literria. Em oitava verso no ano de 2004,

    rende resultados quanto ao incentivo leitura, discusso e valorizao dosescritores da Pan-Amaznia que possvel reunir.

    Mapa proposto para a diviso do Par

    Fonte: O Liberal, 2003.

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    Marcos centrais da Amaznia literria

    Apesar do difuso, repartido e isolado, possvel definir, sim, uma Amaz-nia literria, porque, quando se diz Amaznia, no se pode fugir s refernciasque conferem marcaes de identidade regio inteira. claro que opero umacircunscrio por ora no literria, porque o trato da literatura pede uma defini-

    o quanto a tempo-espacialidade. Da os condutos Amaznia histrica e geo-poltica, pois quem profere a palavra Amaznia ilumina logo na idia a enormi-dade da bacia hidrogrfica do rio mximo, seus veios, entrncias e reentrncias,barrancas, cataratas, corredeiras, pntanos, vrzeas etc., tudo coberto e entremea-do pela maior floresta tropical do Planeta. Quem diz Amaznia enuncia incrveispadres de riqueza, mas tambm o local de inacreditvel concentrao de mis-ria humana e social, penria e mais penria de uma gente de cor predominante-mente amarronzada, a fisionomia de ndio, ndio com traos de branco, ndiocom traos de negro, memria viva da ao do colonizador europeu que aportou

    nesses plainos e foi logo tratando de apagar o que pudesse da vida indgena parapr a prosperar o imprio lusitano. Como se viu, o europeu veio e repartiu a seucontento a floresta. Mas ainda assim acabou prevalecendo a verdade do poemaseiscentista: O todo sem parte no todo./A parte sem o todo no parte. Aassertiva conta. Conta quando se considera o rio e o sistema aquoso que implan-ta, conjugado floresta e seu emaranhado, a gua e a mata (a parte ainda nodevastada) dominando tudo.

    De modo que rio e floresta particularizam o todo e as suas partes. Rio efloresta compreendidos como acmulo de toda a beleza e de toda a fealdade, o

    bem mximo e o dito mal excessivo, este, do ponto de vista do forasteiro, no dondio que deteve a sabedoria, milenar, de conviver em harmonia com as particu-laridades de seu mundo, as quais podem ser sintetizadas a partir do trrido-mido climtico, das macro e micro-espcies ao abrigo da selva, das magnasdistncias ponteadas de gua infinita, da quentura mida, abafada, irrigada porinfinitas chuvas que, cabe dizer, assombravam e foram descritas exausto pelosnaturalistas estrangeiros.

    Depois, afora os ndios que restaram, os grupamentos humanos que se

    sucederam ressentiram-se daquelas condies ambientais especficas, muito maisporque o abandono e os desvios polticos, sendo avassaladores, agravaram e agra-vam as dificuldades e a indigncia dos que j no sabiam tanto da lida com asmanhas da floresta e com as curas das matas, mormente onde os lances da mis-ria mais aguda vo acima da possibilidade de um pouco mais de sobrevida, nos nos recantos belos e miserveis da floresta, mas at nas cidades para ondeacorre muita pobreza das matas.

    Essa Amaznia tomada em magnitude de beleza, predao e falta nutrien-te substancial da literatura. evidente que a partir da Amaznia do Novecento

    finissecular frutifica uma semeadura afeita s grandes e intemporais questes doser, s suas interrogaes essenciais. E no se queira concluir que uma escrita de

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    estofo mais amaznico se estabelea sempre como averbao ao beco que nosai do beco e se contenta com o beco7 da frase precisa de Mrio de Andrade ditacomo recusa a um regionalismo redutor, discusso que nem convm eriar porora, a do regionalismo e regionalismos, porque sempre rende pano para mangasonde venha tona.

    O certo que atravessa a Amaznia um texto literrio voltado para os serese as coisas da regio, talvez inspirado pelo impressivo desse mundo, pelagrandiosidade da natureza, assim como pelo sentimento de pequenez do serhumano ao impacto da exuberncia circundante. Esse acervo nasce sob a cunhada notao referencial, regional, histrica e pode disseminar uma tonalidade cr-tica que expressa recusa e desejo de superao de conflitos sociais. Preso ao pre-sente, assedia a memria, para recuperar um antes suprimido. Do ponto de vistado valoresttico, muito, muitssimo do conjunto assim formulado peca e falhapor limitar-se a uma concepo artstica que se resume reproduo naturalou

    trivial ou automtica, subtraindo da palavra artstica seu estatuto de construoverbal, lida verbal que, presa a um espao definido e ao tempo histrico, a umaverdade, a uma experincia precisa, excede essa referncia e manifesta-se comotrabalho, processo, embate, coisa de palavra que, contida em si, abre-se a outroshorizontes sempre que entregue ao toque da leitura no ingnua, no inocente,que a revele em todos os seus sentidos, em todos os seus possveis atemporais eaespaciais. Mas, paralelamente a esse, atesta-se a presena tambm de um outroacervo, cuja forja so os reclamos de motivaes mais plurais, sem que se percade vista o fato de existir a Amaznia com suas facetas diferenciadoras. Um exem-

    plo o poema Ver-o-Peso, do paraense Max Martins. A se tensionam, se inter-cruzam as lminasargidas por Ezra Pound exigncia de tomar-se um textoartstico como um complexo significativo8 de falas dispostas como se em ondasque se reiteram, se conflitam, se alargam como mirante simblico do eu, ns, tu,o outro, os sujeitos das redes de relaes lingstico-sociais.

    No poema Ver-o-Peso, a comear pelo ttulo, sobrevm as vises de umaAmaznia datada, nomeada, um dos mais reproduzidos cartes-postais do Par,zona de trnsito e comrcio daquilo que se cria e extrai nos dentro dos rios e dasmatas amaznicas. Mas nem por isso o poema se limita a um arrolamento dasaes, das dores, do no-senso, do apuro que se abate sobre os seres do Ver-o-Peso, eco do encanto e das existncias reduzidas da Amaznia. Dizendo commais acerto: h esse inventrio circulando s claras mancha do texto, cujo as-sunto so as velaes e os vedamentos do porto Ver-o-Peso; est tudo l, flagran-te, as figuraes das mazelas, as representaes do expoliado e do expoliador.Para a recepo dessa informao, basta quase to-s o assomo do olhar folhade papel. Mas nem o poema, nem a histria param por a e h que ativar odiscurso no grafado ou grafado muito mais no circuito do sugerido, na textura

    interna das frases, nos avessos em que acorrem os rumores intemporais, matriado subdito. o que se pode colher da ausncia de pontuao, da utilizao

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    falante do espacejamento, dos verbos o ver que flanam como que libertos aocontrole da conscincia, da a soltura das palavras que deslizam pela pauta paraassumir novos significados, as sanes, as censuras, o desconforto, quando sodesfiadas outras camadas do poema, sendo que o acesso a estas uma negociao parte entre o encantador, o entalhador de palavras e o que por elas se deixa

    cativar. Vejamos o poema:

    Ver-o-Peso

    A canoa traz o homem est com fomea canoa traz o peixe v o peixea canoa tem um nome v o pratono mercado deixa o peixe no tem peixeno mercado encontra a fome tem fome

    a fome pesaa balana pesa o peixe o peso da fomea balana pesa o homem pea por peaa balana pesa a fome pese o peixea balana vende o homem deixe o peixe

    veja o pesovende o peixe peixe vidavende a fome peso mortevende e come homem fome

    a fome peso da mortevem de longe peixe de morte

    nas canoas a sorte do peixever o peso o peso

    azar do homemcome o peixeo peixe come pese o peixe

    o homem? pese o homemo peixe preso

    o homem no come o homem est presocome o homem presa da fomecompra o peixe

    compra a fome ver o peixevende o nome ver o homemvende o peso ver a morte

    peso de ferro vero peso. homem de barro

    pese o peixepese o homem a fomevem do barrovem da febre

    (a febre v o homem)

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    veja a lamaveja o barroveja a pana

    o homemcome a lamalambe o barro

    ver o verdever o vermeo verme verde

    est na lamaest na alma s escamaa pele do homem9.

    Na literatura mais aderida Amaznia, a contemplao da beleza dos riose da floresta uma constncia, podendo ser associada a uma sentimentalidadetristonha que deriva da supresso e da ausncia, da percepo de fratura. Porapelo brevidade destas notas, comento com rapidez dois escritores que se in-cluem no perodo realista-naturalista, momento em que se inicia uma literaturaamaznico-paraense. J o descritivismo prprio desse estilo intervm como estra-tgia de fixao da natureza que se insurge como paisagem e ambincia convul-sas para compactuar com os choques que empurram os andamentos da histria.

    O paraense Ingls de Sousa, em seus romances e contos, recorre a esse

    recurso quando entrega escrita a profuso de guas e as sendas ntimas da flo-resta, uma natureza amaznica inconciliada, porque situada num contnuo de

    CortesiadaAutora

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    disputas pelo amor e pela posse da terra. A esta causa, enfrentam-se poderosospolticos, donos de latifndios, perfeitos estrategas de vilanias e pequenos proprie-trios decados ou decadentes, driblando falncias e exasperaes amorosas. Apesarde ter sado da Amaznia menino ainda e de jamais ter retornado, sua prosatransmite o testemunho como se in locoao ato de escrita, tamanho o teor de

    amazonidade de permeio, uma Amaznia em micro-escritura, viva nos seres, nalinguagem, nos modos, tal se o escritor escrevesse face aos fatos e naturezarepresentados.

    Joo Marques de Carvalho, adepto de um naturalismo ortodoxo, tambmlana mo da descrio da paisagem tensa no romance Hortncia10, de 1888, oprimeiro urbano do Par. Seu livro valoriza-se mais pelo ensaio de sociologia eantropologia inscrito quando enfoca o tema do deslocamento territorial. Seusdeserdados so empurrados do Maraj a Belm, cidade que no os contempla eque os arremete de volta s faltas originrias.

    A prosa romanesca entra em rumo de consolidao na Amaznia com al-guns escritores integrados atmosfera de sublevao modernista do 1922 paulista.Dentre eles, Bruno de Meneses, introdutor no Par das inovaes radicadas naSemana; destaca-se porque, alm de romper com os academicismos, elabora poe-sia ambientada numa Amaznia vista como acolhimento tambm da cultura ne-gra. Escreve dois romances presos temtica da misria quase absoluta. Um,Candunga11, verte-se ao desvalido da seca nordestina, forado migrao para a

    Amaznia. Os flagelados so movidos iluso de que a floresta o bere fecun-dssimo e sereno, o solo acolhedor, ofertrio do teto, do po, da acalmia, o fim

    da errncia. E vem-se tangidos s zonas rurais do Par e submetidos violnciada grilagem e do latifndio. marco, por ficcionalizar uma das questes maisgraves, insolveis e desalentadoras do Brasil, com nfase angustiante na Amaz-nia, a luta pela terra e, em decorrncia, a desagregao da famlia, o que arrasta asmeninas prostituio e perda de identidade social. O outro livro, MariaDagmar12 volta-se tambm para a misria citadina e para a queda gradativa pro-

    vocada pela prostituio.O clmax na prosa esttica se d primeiro com Dalcdio Jurandir, nascido

    no Maraj e que cresceu solto nos campos alagados, os sentidos aguados captao dos modos e dos porqus daquela vida atribulada. L, testemunhouaes humanas edificantes, a capacidade inacreditvel de resistir misria totalou a de sobreviver com to pouco, com o residual, o ocasional. Assistiu a muitosfatos no dignificantes, como aqueles sob o comando dos novos ricaos de Belm,

    viajantes das europas, useiros e vezeiros em usurpaes, de terras pblicas e atde rios, onde impunes fincavam cercas e canos de armas, sufocando ainda mais asestreitezas da pobreza marajoara, cujas foras se esgotavam ao peso do trabalhoquase nem pago das imensas fazendas soltando gado pelo ladro. Cresceu entre

    livros. Seu pai, homem de algumas letras, alimentava obsesso por implantar oprogresso no Maraj. Conseguiu amealhar alguns livros, para sorte do filho,

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    voraz leitor de um tudo. Eram parcos os recursos da famlia, gente grada, face penria das penrias da portentosa ilha Maraj. Aos trancos e barrancos conse-guiu dar o salto Belm decadente do fim do fausto da borracha. Tudo que

    viveu parece que ante-escrevia na cabea. Seus infernos no Maraj, seus amargosestgios na casas dos outros em Belm; de tudo se fez a seiva potica fixada nos

    quadros de mesquinhez e fome dos miserveis, empobrecidos e remediados dailha e da cidade. Chegou s primeiras escolas. Foi a elas com mpeto, mas inter-rompeu seus estudos no incio, por absoluta falta de recursos. Autodidata, maturousua prosa com raro tino ao mesmo tempo rude e lrico. Passou mais de dez anosreescrevendo uma obra-prima, seu romance Choves nos campos de Cachoeira13.Dominou todos os registros da lngua portuguesa. Diz-se que impossvel co-nhecer a fundo a Amaznia sem o mergulho na Amaznia construda em seuslivros. Acreditem: a Amaznia pauprrima, a dos medos e danaes, em contras-te com uma outra, a dos excessos e ostentao dos ricos se evola em poesia para

    os seus romances. No acumulou riqueza alguma, vaidade alguma acalentou navida, apesar de seus romances premiados pela crtica nacional. Dedicou o refinode seu discurso lavra de onze romances, dez deles compondo a saga do extre-mo norte. Jorge Amado afirma de Dalcdio Jurandir:

    Trabalhando o barro do princpio do mundo do grande rio, a floresta e o povodas barrancas, dos povoados, das ilhas, da ilha de Maraj, ele o faz com a dig-nidade de um verdadeiro escritor, pleno de sutileza e de ternura na anlise eno levantamento da humanidade paraense, amaznida, da criana e do adulto,da vida por vezes quase tmida ante o mundo extraordinrio onde se afirma14.

    Haroldo Maranho outro imprescindvel. Autor de vasta obra em prosa,crnicas, contos, novelas e romances. Escrevia como um possesso, ele o afirmou.Sua mxima era Nulla dies sine linea. Nasceu e cresceu onde manava um turbi-lho de discursos, sobretudo de crispaes, raivas, ressentimentos, rancores. Ostreze anos em que o av, por desrazes polticas, permaneceu sitiado no prdiodo jornal Folha do Norte, local tambm de moradia da famlia, devem ter atiadono neto a argcia do escritor. Naquele ambiente, a ordem era manter-se aferradoa alertas e devassa dos mnimos movimentos, sutis timbres de vozes e sinais de

    ataque e livramento. possvel radicar naquele confinamento a solidez de umaerudio votada a fins prticos e o fortalecimento, a agudeza de uma intelignciaque v por ngulos invisveis e aprende a reprocessar, sob contextura outra, osdias entre impressos e mais impressos, diatribes, imprecaes, vociferaes, fra-ses oblquas, o murmrio, o entredito, conformando-se essa matria tessiturafabular de sua fico. Exigente com o discurso potico, s aos sessenta anospublicou seu primeiro trabalho, apesar de escrever desde adolescente. Acumulougrande saber sobre a vida, ele s voltas com as lides do av. Intrigavam-no asmscaras humanas, as ditas e desditas das criaturas, as tramas dos poderosos. O

    tom de sua arte se define pelo riscado prfuro-cortante que arranca chispas dosmagos. Seu romance O tetraneto Del-rei15, stira desmitificadora da lisura e

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    herosmo dos nclitos colonizadores do Brasil, documenta a quo alto se elevoua beleza de sua palavra, de fcil e translcida recepo, no obstante moldar-seno falar portugus do sculo XVI, tempo de que deriva esse livro que acolhetodos os diapases verbais, do sermo sublimisao desbocado e chulo. Salpicou,em tudo que escreveu, apanhados de riso e choro. E, como se s gargalhadas,tomado por intensa irritao, contempla a Amaznia do no, deixando perceberseu apego e apreo regio, na medida em que desdobra a excelncia de suasdiabruras frasais, para pr a nu os reisque agem nos recnditos da selva selva-gem, a selva dantesca do pecado e do inferno, bem embutida e embuada naselva amaznica a soldo dos grandes imprios sequiosos por divisas, mandos ebenesses, custa da devastao da floresta e do empobrecimento cada vez maiorde sua populao.

    lcito dizer que Haroldo Maranho atua, no campo da palavra esttica,em sentido correlato do jornalista e pesquisador paraense Lcio Flvio Pinto;

    ambos postam-se em incansvel vigilncia contra os malfeitos numa Amazniacomandada por uma poltica indiferente e omissa16. O romance Os anes17,dentre os seus livros, o que mais representa a Hilia sujeita a estratagemas e ao imperialista sob a complacncia das lassas diretrizes do governo brasileiro.

    Tanto como em Dalcdio Jurandir e Haroldo Maranho, a ausculta nossombrios da Amaznia associa-se aos temas gerais da arte com os amazonensesMilton Hatoun e Mrcio de Sousa e paraenses como Eneida de Moraes, LindanorCelina, Benedicto Monteiro, Vicente Cecim, Maria Lcia Medeiros. Estes soalguns, dentre os que acometem o discurso e vo ao imo do tempo, um tempo

    sem datao, em busca de compreender o desterro e a ascenso do ser. E, assim,ferindo as pedras e as gemas da existncia, elegem os motivos, a carnao de suaspersonagens, as danaes, as flores, a fala, o rumor das falas que vogam nasidades. E subjugam, dobram, amaciam a palavra, acometem-na, cuidam em quese reconverta na estesia do verbo sem asperezas, vigiam a que a palavra repousecom bons modos na pgina para a alegria e o proveito do leitor. patente, noacervo que ofertam, o trabalho de reinveno que recua anterioridade e queavana procura de um futuro menos desabonador. Seu discurso refinado ins-creve essa esperana. Por isso a escrita se engendra como espetculo, a fim de

    angariar a recepo, a adeso a um ato de beleza procura de salvamento. o caso de Milton Hatoun, que imprime sobre a Manaus de sua fico um

    tom que amplifica sua voz, a qual, a uma s vez, articula modulaes sobre aAmaznia que aflige e segue com seu texto, dentro de que se desdobram vozesmltiplas ou paralelas ou ainda em sobreposio, para perscrutar e inquirir a

    vida, as voltas constitutivas do humano como ser dos arroubos, das quedas infer-nais, das camuflagens, da inocncia, da decepo, da incompreenso, da agonia. esse o tratamento dado ao personagem que advm do que se poderia nomearsobra, sobra do ndio, o deculturado, destribalizado, reduzido ao pejorativo tapuio.Mas o romance confere integridade humana intemporal a esse quase ndio. Refi-ro-me a Domingas, um exemplo, do romance Dois irmos18, a tapuia que entra

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    na histria como paradigma do povo dizimado, detentora do saber esfacelado.Domingas no vibra, entretanto, s na esfera do referencial histrico, como agentedo enredo, pois atua na esfera do discurso como instrumento de ativao dofluxo da narrativa:

    Aqui em baixo, na calada suja, o corpo de Domingas debruava-se sobre o

    tabuleiro, as mos apalpavam os olhos de um peixe. Ela resmungava: Essematrinx j foi fresco, agora serve para o gato de rua. Adamor se irritava comas fisgadas de Domingas. Ele queria esvaziar o tabuleiro na nossa rua, masminha me era exigente, ranzinza, no comprava peixe liso: So reimosos,no prestam, do doena de pele. Os dois discutiam, chamavam a patroa,Domingas tinha razo. Na escolha dos peixes minha me triunfava, era vitorio-sa, se orgulhava disso19.

    S uma vez, ao anoitecer, comeou a cantarolar uma das canes que escutarana infncia, l no rio Jurubaxi, antes de morar no orfanato de Manaus. Eupensava que ela havia travado a boca, mas no: soltou a lngua e cantou, em

    nheengatu os breves refres de uma melodia montona20.

    Maria Lcia Medeiros tambm dispe da sutileza, para reinstaurar os serese os modos de uma Amaznia derruda. A escritora tambm os amplia condi-o do humano, submetido ao medo, ao desassossego, em trnsito para o incer-to sob o peso da solido. No conto Velas. Por quem?21 traz pauta a agregada, aserva, a menina deslocada, dadaaos bem situados das cidades, a representantedo sem nenhum direito, desprovida de qualquer identidade social, um resto ape-nas, que sobrou da avassalagem dos antigos descimentos, hoje ainda um pesade-

    lo em processo, no s lance da memria que di:Nem tinhas cor definida nem peitos tinhas, s os carocinhos que doam e quea cozinheira te ensinou a apertar dois caroos de milho e dar pro galo para queno crescessem tanto. Mas cresceram e logo o doutor e logo o menino, hor-rio estranho, pesada hora, apertavam tambm, bolinavam, teu corpo ereto,tua cabea baixa, corao aos pulos [...]22

    Quanto poesia, transcrevo, sem comentrio, trechos de Noturno para amenina do interior, do livro Estaes da vrzea, de lson Farias23.

    luz da lmpada eltricaQuando a mesa est posta[...]a criana come. uma das poucasque se salvaramde morrer de fome.Com que graacom que infantil volpiaela come.

    [...] a domstica a criana,

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    veio do stio para ajudarnos trabalhos de casa. gil e no pra,porm quando comeela se concentra.

    Certa vaga tristezaparece ferir-lhenos cabelos lisos[...]24

    A poesia apresenta-se com o mesmo enquadramento da prosa. Cito, paraamostragem, poetas dos estados do Amazonas e do Par, sem ordenao notempo ou, para ser mais precisa, sem ordenao alguma. Paulo Plnio de Abreu,Bruno de Meneses, Adalcinda Camaro, Ruy Barata, Jurandir Bezerra, Thiago

    de Mello, Mrio Faustino, Max Martins, Joo de Jesus Paes Loureiro, Jos Ma-ria de Vilar Ferreira, Vicente Cecim, Age de Carvalho.Ante floresta e rio, o jbilo (O vento pousava/ perfume e clemncia/seu colo

    caa/coalhado de escamas/no rio25) e a perdio. que diante das imagens dafloresta e do rio, desenham-se os contornos do espao em descenso e o versocomo que se doa vazo de afeto e ativao de memrias que subjazem emfragmentos. O escritor se delega o trabalho de escavar esse tempo quaseirrecupervel, qual seja, a Amaznia, os seres, os modos, os mitos que se reescre-

    vem, as formas, as coisas, os murmrios, as falas, pedaos de frases em nheengatu,

    em nheengaba, os feitos dos primrdios, o que o constituiu, o que percorre aseras. E a escrita tenta a poesia que captura e reinscreve a perda, as ordenaespolticas nefastas, o deslocamento, a migrao, o cho que se afunda. E a poesiase tece como procura de valimento, como ao emergencial, como jogo defensi-

    vo que politiza o poema edificado para consagrar o esttico e evidenciar antago-nismo, recusa e alarme. Estes so poemas que revisitam essas temticas:

    Travessia IV

    A cabo da esperanaFomos ao Equadore na aqua-dor banharJanana, Rainha e Mee Noivaamarear

    Dali parti para Babilnias,a seus chamados Ecos; Eros irradiavapostais de Circe pornogrficos.

    E veio Amor, este Amazonas

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    fibras febrese mnstruo verdeeste rio enorme, paul de cobrasonde afinal boiei e enverdeciamei

    e apodreci26

    Enchente amaznica II ou deslenda fluvial IV

    Quem comanda o rio?O mito?

    A lei?A lenda?

    Onde se perde o mapa,o portulano?

    Em que meridiano, norte ou sul,ou em que plo?AmazniaAmaznia

    Quem te ama?Quantas vezes, no tempo, o rio encheu-se,E, quantas outras, vazou?O rio no tem conscinciade si mesmo

    e sua existncia e ser corrente27

    [.....]

    Cntico XLIII

    Tabaco migado palma,o homem intenta o fumo.A linha dgua tarjao casco avana

    O homem se compunge,

    se confrange.O homem ante o rioa matao mito...

    Antecipa-se a casa no cansao:arquitetura de palha

    paxibaA casa, a choa casa, a lenda casa,onde Penlope aguarda entre ciladasde endmicas paludes verminosas.

    O qual posto na linha do conflito H de sobreviver: o Homem ou o Mito?28

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    A Terra no redonda

    O mundo revelado amplo,juno de paralelas, planoinfinito do homem: o ndio integral,a utopia da terra, Quarto Mundo,

    De Gismonti

    II

    O mundo tornado curto,quadrado percorrido, turvainfncia de Galileu: as arestas do vento,o discurso dos rios, a Amaznia,

    Cabeleira do mundo 29

    Poema complementar sobre o rio

    O rio consagrado: a vazantelembrana que escoa em marbaixa e retorna gua escura na preamar

    O rio sangrado: invlucro de cue margem, e duas visagensdos caboclos amantes. O rio

    passado: cismando na crisma, paresque,dumas lembranas que trabalham a solido:o paralelo das margens, uma igara partida,as guas sujas que sempre voltam30.

    Breve elegia

    s a metamorfose e o retorno ao canto.Contigo irei anjo verde dos caminhosE molharemos os ps na gua fria do asfalto.Caminharemos luz das tuas estrelasComo se perdidos estivssemos.Lavaremos no fim da viagem o rosto e olharemos a luae de repente sentiremos nascer em ns a estranha terra que sonhamos.No encontraremos mais na pele escura as tatuagensQue marcavam o caminho da volta e a rota perdida.Olharemos em vo os olhos dos que fogeme para ver os monstros dos eternos circos que chegaremcarregaremos nas costas os nossos filhos31.

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    Elegia

    Os ventos rolaro por sobre a tua memriae do abismo que foste ficar comigoeste tdio feroz que nasce do pecadoe este gelado horror que acende as tuas pupilas.Obscuro o teu nome no pas das trevas,obscuro o silncio em derredor de ti,em vo quero agarrar-te, debato-me nas sombras,teu sono o negro vu que nos separae me exila cruel sobre os noturnos ventos.Nos teus seios agrestes os vermes se debatem,biam da noite espessa as tuas palavras,teus cabelos desatam-se nos tempos. cada vez mais frgil o teu convite,nos mares te procuro e em vo quero alcanar-temas sinto em mim lentamente e implacvelcomo um verme fatal que minhalma habitassea aurora fecundante dos sepulcros.E os ventos rolaro por sobre a tua memria,do teu vulto disperso ficar comigoeste tdio feroz que nasce do pecadoe este gelado horror que acende as tuas pupilas32.

    Frutos de leite

    EuBahira e PekomnNs em ns engendrados

    No leite,A estao presente

    nos atribulaA futura nos apascenta seremosInfinitamente nada.

    Transeuntes (tangentes) da hora: A MximaAodamos o leiteEm nossas veias. O fogoem nosso leite

    Brandimos e abrandamos.

    Quando assim estamos expostos e explcitos

    Exercitamos a fraternidade Nacontramo sem trguas

    nossa mansido agressiva.

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    Aqum dafbula urbanaa lamparina alumiou os sculos

    para que emigrssemos.Nervos Carnura e Forma

    De que limbo sobrevivemos?33

    Invernal

    Trbida massa esteinverno nos encharca,

    (o crrego fino leito deslembrado submerge s margens de tijuco

    que limitam)

    Em descuidadas parcerias seremosbfalos e bois em nossos campos

    desterrados.

    Arariindiferente a nsfrutifica seus peixes34.

    Travessia I

    Existe homem humano. Travessia (1926 1966)Joo Guimares Rosa

    Nasci no mar, dans le bateauivre, drapeau d Arthur, de la nuit;batel fazendo o mapa e o mapaestas suas guas mgoas,vagas lembranas, lenos e quebrantos. Eu era o mar ovante sobre os ombros,ardendo nas virilhas.

    Ou o mar aberto, pulcro de silncios,enxame de vidrilhos.Um bem cevado mar, galhardo moo,s vezes calmo e desportivo.

    Canto esta viagem donde trouxeastros e asas pelos mastros(e aos seus lamentos eis-me chegado piapitum35 no rio defunto

    impaludado)36

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    Esses so alguns marcadores de uma literatura amaznica, seja escrita noPeru, na Colmbia, na Venezuela, no Par, no Amazonas, seja em qualquer

    Amaznia. Essas, suas grandes linhas temticas, seus motivos, seu engendramentoformal, sob a elaborao no s de amaznidas (dos que furamas malhas doisolamento e transitam pelos dentros e pelos alns da Amaznia), mas tambmde amaznidas por adoo, aqueles que foram mundiados37 por ela, como o por-tugus Ferreira de Castro, Euclides da Cunha, Raul Bopp, Mrio de Andrade,Mrio Faustino, alguns dos que escreveram pginas de beleza e verdade sobre a

    Amaznia.Desde a Colnia, esses temas so constantes. As formas mudam, muda a

    forma de dizer, mas o homem e sua expresso essencial, as questes especficas eexistenciais se emparelham e seguem e irrigam sua palavra. Os poemas transcri-tos constituem-se como um painel falante em si, se comentrios no puderam serescritos. Os poemas se falam, demarcam suas posturas. So a prova de que nos

    plainos distantes da Amaznia, na conhecida e por conhecer, atravessa a palavraque se conclama fruio e ao salvamento.

    Notas

    1 Agncia O Globo, de Manaus, reproduzido por jornal de Belm do Par. Grifosmeus.

    2Idem. Grifos meus.

    3ApudJ. Lcio de Azevedo, Os jesutas no Gro-Par, suas misses e a colonizao.Bosquejo histrico com vrios documentos inditos, Belm, Secult, 1999, p. 129.

    4 Joo Felipe Bettendorff, Crnica dos padres da Companhia de Jesus no Estado doMaranho, Belm, Fundao Cultural do Par Tancredo Neves/ Secretaria de Esta-do da Cultura, 1990, p. 233.

    5Idem, p. 337.

    6 Frei Gaspar de Carvajal, A Relao..., em Nelson Papavero et al.O novo den, 2ed. revista e ampliada, Belm, Museu Paraense Emlio Goeldi, 2002, p. 34.

    7 Mrio Andrade, Regionalismo, Dirio Nacional, So Paulo, 14 fev. 1928.8 E. Pound,ABC da literatura, So Paulo, Cultrix, 1970, p. 23.

    9 Max Martins, No para consolar, Belm, Cejup,1992, pp. 279-281.

    10 Marques de Carvalho, Hortncia, Belm, Secut, 1989.

    11 Bruno de Menezes, Candunga: cenas das migraes nordestinas na zona bragantina,em Bruno de Menezes, Obras completas de Bruno de Menezes, Belm, Secut, 1993.

    12 Bruno de Menezes, Maria Dagmar, em Bruno de Menezes, op. cit.

    13 Dalcdio Jurandir, Edio crtica de Chove nos campos de Cachoeira. Org. por RosaAssis, Belm, Universidade da Amaznia, 1998.

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    14 Jorge Amado, Saudao de Jorge Amado, em Dalcdio Jurandir, Chove nos camposde Cachoeira, Belm, Cejup/ Secult, 1997.

    15 Haroldo Maranho, O tetraneto del-rei. Suas idas e venidas, Rio de Janeiro, Francis-co Alves, 1982.

    16 Lcio Flvio Pinto,Amaznia: o anteato da destruio, 2 ed., Belm, Grafisa, 1977;

    Internacionalizao da Amaznia sete reflexes e alguns apontamentos inconvenien-tes, Belm, Edio Jornal Pessoal, 2002; e Hidreltricas na Amaznia Predestinao,fatalidade ou engodo?, Belm, Edio Jornal Pessoal, 2002.

    17 Haroldo Maranho, Os anes, Rio de Janeiro, Marco Zero, 1983.

    18 Milton Hatoun, Dois irmos, So Paulo, Companhia das Letras, 2000.

    19Idem, p. 165.

    20Idem, p. 240.

    21 Maria Lcia Medeiros, Velas por quem?,Belm, Cejup, 1997.

    22Idem, p. 12.

    23 lson Farias, Estaes da vrzea, Manaus, Srgio Cardoso & Cia. Ltda., 1963.

    24Idem, p. 65.

    25Idem, p. 42.

    26 Max Martins, No para consolar: poemas reunidos 1952-1992, Belm, Cejup, 1992,p. 260.

    27 Joo de Jesus Paes Loureiro, Obras reunidas. Poesia, So Paulo, Escrituras, 2001,

    vol. 1, p. 161.28Idem, p. 103.

    29 Age Carvalho, Ror, So Paulo, Claro Enigma, 1990, p. 174.

    30Idem, p. 175.

    31 Paulo Plnio Abreu, Poesia, Belm, Universidade Federal do Par, 1978, p. 38.

    32 Ruy Barata, em Alfredo Oliveira, Rui Guilherme Paranatinga Barata, 2 ed., Cejup,1990, p. 92.

    33 Jos Maria de Vilar Ferreira, Frutos de leite, Belm, Cejup, 1996, p. 27.34Idem, p. 29.

    35 Piapitum: de pia (jovem) + pitum (noite) da lngua tupi.

    36 Max Martins, op. cit., p. 257.

    37Mundiado:no repertrio amaznico, atrao, entorpecimento, encantamento, sub-jugao pelo olhar, exercido por um animal, um ser, sobre outro. Diz-se mundido,quando a cobra entorpece a presa; quando se cai atrado. Ver Rosa Assis e Ana Cerqueira,Evm chuva.... um glossrio de Dalcdio Jurandir, Belm, Amaznia, 2004, p. 67.

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    RESUMO DESDEA primeira travessia pelo rio Amazonas em 1541-1542, o colonizadoreuropeu escreve sobre o modo como se determina senhor das guas e das matas, decomo desvenda o Novo Mundo, v com espanto a beleza circundante e d incio aoextermnio dos povos e da cultura indgena. Mais de trs sculos depois, afirma-se aliteratura da Amaznia dita civilizada e inscrevem-se os padres de um texto queexalta a natureza, interroga a vida, as questes essenciais do ser e, politizado, afirma-se

    como aestesiae salvamento.ABSTRACT SINCETHEFIRST voyage along the Amazonas river in 1541-1542, the Europeancolonizer writes about the way he lords the waters and the forest over. Disclosing theNew World, he praises with astonishment its beauty, but nonsensically starts theextermination of the Indian people and culture. More than three centuries later, thecivilized Amazonian literature comes out and the patterns of a text that exolts thesplendor of Nature, and questions life and the essential queries of the human being arealso inscribed. While socially and politically committed, this text is aestheticallyconstructed and acts as an alert and salvation.

    Palavras-chave: Amaznia, Literatura, Histria Cultural.

    Keywords:Amazon, Literature, Cultural History.

    Amarlis Tupiass doutora em Letras pela UFRJ e professora da Universidade da

    Amaznia (Unama), Belm (PA).Texto solicitado autora. Recebido e aceito para publicao em 10 de fevereiro de 2005.