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Revista Estudos Amazônicos  • vol. V I, nº 2 (2011), pp. 139-165 Identidade amazônica e música regionalista na primeira metade do século XX:  Waldemar Henrique e a perspectiva  primitivista  do Modernismo Brasileiro Nélio Ribeiro Moreira *  Resumo: Este texto pretende apresentar uma leitura acerca da relação entre as propostas modernistas de constituição de uma música brasileira “original” e o caráter regionalista das composições do músico paraense Waldemar Henrique. O objetivo do músico paraense em sua obra era falar sobre a Amazônia, demonstrando o seu universo mítico como fundador de um ethos , pressuposto este que atendia aos anseios da Semana de Arte Moderna de 1922: a busca das raízes da cultura nacional, para ser utilizada como legitimadora do caráter artístico nacional. Palavras-chave: Modernismo brasileiro, música regionalista,  primitivismo,  Waldemar Henrique.  Abstract: This paper intends to present a reading of the relationship between modernist proposals for the establishment of a regional character of Brazilian Music and the compositions of the musician Waldemar Henrique. The purpose of Waldemar Henrique in his music was to speak about the Amazon, demonstrating his mythical world as the founder of an ethos , assumption that met the aspirations of the Semana de Arte Moderna de 1922 : the search of the roots of national culture to be used in bolstering the national artistic character. Keywords: Brazilian modernism, regional music,  primitivismo, Waldemar Henrique.

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Revista Estudos Amazônicos  • vol. V I, nº 2 (2011), pp. 139-165

Identidade amazônica e música regionalistana primeira metade do século XX:

 Waldemar Henrique e a perspectiva primitivista  do Modernismo Brasileiro

Nélio Ribeiro Moreira*

 

Resumo: Este texto pretende apresentar uma leitura acerca da relação entreas propostas modernistas de constituição de uma músicabrasileira “original” e o caráter regionalista das composições domúsico paraense Waldemar Henrique. O objetivo do músicoparaense em sua obra era falar sobre a Amazônia, demonstrandoo seu universo mítico como fundador de um ethos , pressupostoeste que atendia aos anseios da Semana de Arte Moderna de1922: a busca das raízes da cultura nacional, para ser utilizada

como legitimadora do caráter artístico nacional.

Palavras-chave: Modernismo brasileiro, música regionalista,  primitivismo, Waldemar Henrique.

 Abstract: This paper intends to present a reading of the relationshipbetween modernist proposals for the establishment of a regionalcharacter of Brazilian Music and the compositions of themusician Waldemar Henrique. The purpose of WaldemarHenrique in his music was to speak about the Amazon,demonstrating his mythical world as the founder of an ethos ,assumption that met the aspirations of the Semana de Arte Modernade 1922 : the search of the roots of national culture to be used in

bolstering the national artistic character.

Keywords: Brazilian modernism, regional music,  primitivismo, WaldemarHenrique.

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140 • Revista Estudos Amazônicos  

Modernismo e produção de música regionalista: proposta deconformação identitária

 A partir das propostas de constituição de uma música brasileira,

levadas a cabo pela Semana de Arte Moderna de 22, uma nova forma de

música teve sua realização incentivada e existência fortalecida no meio

intelectual: a música regional, ou a busca de comportar em criações

artísticas musicais elementos componentes da vida cotidiana das

populações locais. Diante da necessidade de afirmação desta forma

musical, gradativamente ocorreu a interação entre um mundo visto pela

imprensa da época como civilizado e o “barbarismo selvagem”, sendo

este o fornecedor da matéria-prima para a construção daquilo que

preconizava o projeto estético dos modernistas brasileiros. Este seria o

cerne da autêntica música brasileira, algo que deveria ser descoberto,

segundo a avant garde  do Modernismo brasileiro. O mote fundamental é

pensar a construção de uma identidade a partir de algo já existente  –  e

sobre o qual se pressupõe um caráter autêntico. E, neste processo, a

 Amazônia é “incorporada”, por volta da década de 1930, ao cenário 

musical brasileiro, a partir do estabelecimento no Rio de Janeiro do

compositor paraense Waldemar Henrique.

O aproveitamento que se deveria fazer da música “primitiva” tendo

em vista a constituição de uma “música interessada” 1 é ação basilar no

projeto marioandradiano; e a música rural é o elemento constitutivo do

projeto. Para Mário de Andrade, seria o intelectual-compositor o

responsável pela conversão da música do meio rural (leia-se, natureza) a

partir de uma nova estética - erudita - na verdadeira música brasileira. Vêassim que o projeto modernista manteve a dicotomia música erudita e

música popular.2 

Neste texto, o objetivo é mostrar que o músico paraense Waldemar

Henrique tinha como ponto nodal das suas composições falar sobre a  

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Revista Estudos Amazônicos  • 141

 Amazônia, demonstrando o seu universo mítico como se fosse o porta-

 voz de um ethos que precisamente atendia ao intento da Semana de 1922:

a busca das raízes da cultura nacional para ser utilizada como

legitimadora do caráter artístico nacional. E a Amazônia, assim, era tida

pelos modernistas nos anos de 1930 como um lugar a ser desbravado

pelo ideário modernista, tal qual o Rio de Janeiro o havia sido nos anos

1920 3.

Contudo, antes de desdobrar este trabalho em seus argumentos mais

importantes e prementes, ressalto uma questão pertinente e que tem

suscitado certo debate: a idéia de ser a cidade de São Paulo o centro e os

outros locais do país como periferia para os modernistas brasileiros.

Como explanação sobre tal assertiva, recorro, neste ponto, a asseveração

do historiador Antonio Celso Ferreira, quando trata especificamente da

 visão dos modernistas sobre as outras regiões, às quais espraiariam seu

projeto. Para o historiador citado, ocorreu uma revitalização do “mito”

dos bandeirantes dos séculos 17 e 18 no afã de uma legitimação dos

bandeirantes do século 20: aqueles se haviam lançado na expansão

territorial, aos últimos interessava a modernização cultural do país.4  A

citação abaixo ilustra tal asserção: sob o pseudônimo de Hélios, o poeta

modernista Menotti del Picchia nota a atuação desbravadora dos

paulistas.

Os paulistas, renovando as façanhas dos seus

maiores, reeditam, no século da gasolina, a epopéia

das bandeiras. Desta feita, desta feita, não partem

elas para o sertão ínvio e incerto, amarelo delezírias, erriçado de setas. Os bandeirantes de hoje

compram um leito noturno de luxo e seguem,

refesteladas, numa poltrona “poolman”, ardorosos

e minazes rumo da Capital Federal. Anteontem,

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142 • Revista Estudos Amazônicos  

partiu para o Rio de Janeiro a primeira “bandeira

futurista”. Mário Moraes de Andrade –  o papa do

novo Credo  –   Oswald de Andrade, o bispo, e

 Armando Pamplona, o apóstolo, forma arrostar o

perigo de todas as lanças [...]. A façanha é ousada!

[...] a “bandeira futurista” terá que afrontar os

megatérios, os bizontes, as renas da literatura

pátria, toda a fauna antidiluviana, que ainda hoje

 vive, por um milagroso anacronismo...5 

Sob este prisma, o centro irradiador da renovação intelectual

proposta pelos modernistas foi a cidade de São Paulo, lugar por

excelência da modernidade intelectual brasileira, esta que se seguiu a

modernização industrial, social, etc.6 Estabelecendo uma possível relação

com esta asserção, pode-se afirmar que o literato De Campos Ribeiro

corrobora com esta versão quando informa que é entre os anos de 1923

e 1924 que ocorre a afirmação e o espraiar da afirmação dos modernistas

do “centro” para outras regiões do país. E sobre isso destaca: 

(...) [é neste momento] que o florescimento da arte

nova toma conta do país. No Recife é evidente que

o teria de chefiar Joaquim Inojosa, que lançou à

publicidade a revista “Mauricéia” que se tornaria o

órgão oficial dos  futuristas pernambucanos ,

destacando-se entre eles, como poeta de fina

sensibilidade, o infortunado Austro Costa (...), eOswaldo Santiago, que por sua vez fundou a

“Revista Nova”. (grifo meu) 7 

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Revista Estudos Amazônicos  • 143

Como mostra o texto, na cidade de Recife havia  futuristas   e uma

“Mauricéia”, esta uma parecença com a “Paulicéia” (Desvairada) de

Mário de Andrade8. Assim, De Campos Ribeiro coloca o Modernismo

irradiado de São Paulo como algo absorvido pelo meio intelectual

pernambucano. Quanto à Belém, diz:

Em Belém, minha geração, que começara os

primeiros passos em 1921, congregava na

“Associação dos Novos” os “ansiados”, como nos

chamava o saudoso Ângelus, artista que participara

no Rio do movimento de Graça Aranha e para

aqui voltara após a morte do irmão [...].

Começamos, quase todos, na “A Província do

Pará” [numa] seção denominada “Coluna dos

Novos” [que] acolhia nossos versos, nossas

crônicas e contos, dava-nos estímulo, enfim. Em

1924, quando a maioria do grupo já conseguira

atrair sobre sua personalidade a atenção dos

maiorais das letras da terra, aqueles que a ironia de

Raul Bopp, então conosco convivendo , chamava

os “Jacarés Sagrados”, nossa intrepidez lançara ao

mundo literário, não só do Pará, mas do país, a

revista “Belém Nova”, que circulou de 1923 a

1929, com a interrupção de alguns meses,

conseqüência das péssimas condições financeiras

que tínhamos pela frente. Dirigia a revista Brunode Menezes e depois Paulo de Oliveira. 9 

Querelas acerca de um centro irradiador e seus ecos colocados à

parte, no que tange à questão da busca das “origens” no âmbito da

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144 • Revista Estudos Amazônicos  

música regional, pode-se ver que a incursão de Mário de Andrade pela

 Amazônia na segunda metade da década de 1920 foi uma aventura de

desbravamento em busca da autêntica manifestação da produção cultural

local.

O Modernismo10  é apresentado como o mais importante

movimento11 cultural, no sentido de buscar uma identidade, já ocorrido

no Brasil, e que ecoa, ainda hoje, início do século 21, nas várias

proposições - inclusive políticas - quando se fala de cultura, cultura

popular e identidade nacional, mesmo havendo distintos sentidos e

contendas acerca do seu significado no âmbito local. Mas, de maneira

geral, o objetivo do movimento era pensar e praticar uma inteligência

brasileira que pudesse dar conta da incorporação da cultura nacional às

transformações pelas quais havia passado a sociedade brasileira, desde o

final do século XIX.

Muito já foi escrito sobre o Modernismo, o que demonstra sua

importância para a formatação da cultura brasileira que se seguiu.

Contudo, precisar os marcos definidores do movimento não é tarefa

fácil: é possível somente apontar um marco inicial  –  a Semana de Arte

Moderna de fevereiro de 1922 –  mas não definir seu final. Mas vale frisar

a influência que exerceu sobre a constituição da cultura brasileira e

regional, algo assentado na busca e valorização das raízes  –   origem e

começo - culturais, projeto em curso ainda hoje nas mais variadas

 vertentes culturais.

Um importante elemento a ser destacado no projeto modernista

é o fato de que os modernistas atinavam apenas às manifestações

tradicionais  –   a música do meio rural  –   onde, segundo osintegrantes do movimento, estava a música “autêntica”, elemento

caro às suas proposições de busca das raízes da identidadenacional. Inclusive, havia uma desconfiança, senão uma negação,

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Revista Estudos Amazônicos  • 145

diante da produção musical do meio citadino. Sobre esta questão,o antropólogo José Miguel Wisnik expõe:

[Mário de Andrade] procurava diferenciar a "boa"

música, ou seja, aquela que tem "história, elevada e

disciplinada, tonificada pelo bom uso do folclore

(...)” e as manifestações “indisciplinadas,

inclassificáveis, insubmissas à ordem e à história,

que se revelam ser as canções urbanas”. 12 

O historiador Arnaldo Daraya Contier corrobora com esta assertiva

quando afirma que “os modernistas brasileiros temiam os ruídos e os

sons oriundos da cidade que sobe - São Paulo, por exemplo.” 13  Isto se

deve ao fato de que o projeto nacionalista dos intelectuais modernistas

não poderia aturar a música popular ligada ao meio urbano, pois esta

explicitava as tensões sociais existentes na cidade, absorvendo diferentes

linguagens musicais, incompatíveis com o projeto estético-centralizador

de constituição da “música nacional autêntica” do modernismo. A

música popular rural seria então a fonte da originalidade, a autêntica

expressão do volksgeist , a palavra alemã com a conotação que lhe arrogou

o filósofo Johann Gottfried Herder.

 Todavia, o caso de Waldemar Henrique não é bem este de ser um

compositor nativo. Ele é sim um autor que compõe utilizando elementos

nativos, pode-se dizer rurais, mas que vive no meio urbano. Como se vê

em suas obras, a simplicidade de suas composições é uma característica

da “rusticidade” plasmada em suas músicas. Partindo das sugestões dosestudos sobre o tema, aqui o intuito é proceder a uma análise de como se

deu a construção e a “exportação” do regionalismo musical amazônico e

como este foi acatado nos grandes centros, na civilização, termo que será

recorrentemente citado nos jornais quando tratam da questão.

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146 • Revista Estudos Amazônicos  

Não se pretende apontar um possível momento inicial, cronológico,

para a constituição da música regional amazônica, mas mostrar que a

forma como se deu a sua incorporação no Centro-Sul brasileiro, onde se

encontravam as vanguardas que preconizavam não apenas uma

transformação na abordagem do material cultural existente, mas também

sua utilização diretamente ligada à perspectiva de estabelecimento de

uma “cultura” que pudesse satisfazer as necessidades de uma parte da

elite paraense de ter uma “cultura” da qual possa se orgulhar. É essa a

incumbência que Waldemar Henrique assume: ser o eco das florestas, o

seu grande intérprete e  –  quiçá  –   inventor de uma identidade, algo tão

acalentado pelos modernistas.

 Waldemar Henrique mostra um tipo de música que fala da Amazônia,

o que lhe marca como intérprete e divulgador do folclore da Amazônia.

Seus trabalhos são “mostruários do maravilhoso empório de lendas e

superstições perdidos na imensidade distante”14, por isso devem ser

admirados e exaltados, pois que são possuidores da verdadeira essência

do folclore; são a mais perfeita “demonstração das tradições raciais,

permeadas de poesia”.15 

Maravilhado com a música do músico paraense, Menotti Del Picchia

escreveu:

Numa noite destas Waldemar e sua irmã Mara

deram-me a alegria de uma audição íntima. Estava

em redor desses dois um grupo retilante: Mário de

 Andrade, De Benedotti, Guarnieri e Arruda

Botelho como embaixadores de música, CassianoRicardo como plenipotenciário da poesia. E Mara

cantou as canções de Waldemar 16.

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O que encantava os ilustres espectadores eram a música simples e as

imagens maravilhosas representadas pela música do Maestro paraense, as

redes, o boto, o curupira, o uirapuru - que aparece grafado nos

documentos consultados recorrentemente como “irapuru”. Del Picchia,

em tom panegírico destaca que a inventividade musical do compositor

paraense remete a uma teogonia 17. Pode-se aventar que assim se deu o

encontro do Brasil do Sul com o Brasil do Norte, em direção à realização

do projeto de uma arte autêntica e seu caráter identitário.

 Waldemar Henrique e o projeto Marioandradiano

Na Amazônia, o modernismo musical ensejado por Mário de

 Andrade tivera sua idealização posta à ação nos anos de 1930 por

 Waldemar Henrique. E, desta forma, pode-se acenar que o Maestro se

conformou como uma espécie de voz da Amazônia, esta um local

dotado de um imenso repertório que atendia exatamente à premissa

marioandradiana de que, se indo até as origens, e só assim, se poderia

fazer uma música universal, na esteira da inspiração de Manuel De

Falla.18  Ainda segundo Mário de Andrade, não deveriam ser exaltados

alguns compositores e artistas tidos como gênios e que se haviam

tornado celebridades, tal como ocorrera com alguns à época, mesmo

porque não faziam música brasileira, segundo a ótica do connoisseur  

modernista. O que está expresso no “Ensaio sobre a música brasileira” a

este respeito é claro: é gratificante que haja esses artistas de reconhecido

destaque, mas também preocupante que assim o seja.

Na música, mesmo os europeus que visitam a

gente perseveram nessa procura do esquisito

apimentado. Si escutam um batuque brabo muito

que bem, estão gozando, porém si é modinha sem

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148 • Revista Estudos Amazônicos  

síncopa ou certas efusões líricas dos tanguinhos de

Marcelo Tupinambá, isso é musica italiana! Falam

de cara enjoada. E os que são sabidos se metem

criticando e aconselhando, o que é perigo vasto. 19 

É aí que se destaca Waldemar Henrique. Nos idos anos de 1930 este

músico paraense realizou a música amazônica ressaltando a sua

“quididade regional” e obteve, assim, um reconhecimento longevo, pois

enquadrou a música amazônica no espírito nacional. A música regional

amazônica encontra aí sua perfeita constituição, expressão de um

idealismo que pretende mostrar os sentimentos e sentidos de um povo,

algo que, segundo o referendo modernista, o conhecimento douto

obliterou: o fator primitivo, uma estética original e primordial, o bárbaro

na constituição do propósito artístico nacional-regional, alijando, assim, a

 vivência concreta e também psíquica do brasileiro. Tem-se, assim, a

busca de uma “positivação” do brasileiro. Neste sentido, a essência e o

passado são fundamentais. Ressaltando a dicotomia no ideário estético-

modernista/nacionalista-modernista, tendo como liame o ano de 1924

(ano do Manifesto Pau Brasil), Eduardo Jardim de Moraes escreve acerca

da “nova função” do passado nos quadros do Modernismo: 

No [Movimento] Pau Brasil, não é o passado

[como um todo] que é negado, mas parte concreta

deste passado, o lado doutor, aquele que escondia,

em função do processo de transplantação cultural,

o verdadeiro passado brasileiro. Daí a recuperaçãodo nosso lirismo, dos traços bárbaros da

civilização brasileira. Por esta razão também a

importância do contato com as vanguardas

européias é menos decisiva que no primeiro tempo

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Revista Estudos Amazônicos  • 149

modernista. Nosso material cultural deve ser

descoberto aqui mesmo. 20 

 A partir da afirmação de um processo de reflexão acerca da música

produzida na região, Waldemar Henrique se mostra o arauto da

expressão identitária da Amazônia quando de seu estabelecimento na

cidade do Rio de Janeiro, já mais próximo do situs  modernista. Pode-se

estabelecer aí o começo e a origem de um regionalismo que viria a

fundamentar, décadas mais tarde, um regionalismo musical extremante

exacerbado, forjado por uma leitura e interpretação da natureza.

 As proposições acima se referem a uma passagem que se dá nos

momentos imediatamente seguintes ao estabelecimento das

propugnações modernistas. Investigações sobre como se deu o processo

acima referido são bastante pertinentes, haja vista a importância da

região amazônica para os modernistas21: numa perspectiva de

fundamentar seus pressupostos em algo original, a Europa será preterida

à Amazônia. 22 Ainda que bastante carregada com a pecha de exótica - e

talvez por isso, em grande medida - a Amazônia se conformará como

arquétipo para o empreendimento modernista.

Parece que a inventiva de Waldemar Henrique veio satisfazer um

queixume de Mário de Andrade quando de sua estada na Amazônia, pois

lhe parecia que os literatos e estudiosos com os quais travou contato23 

não sabiam nada sobre o que mais importava às inquirições do laborioso

turista: o folclore 24.

Neste sentido, Waldemar Henrique foi um bandeirante  das inovações

na música, na composição e execução, de maneira que a demanda da eliteda sociedade belenense, à época ansiosa por uma cultura regional

“autêntica”, foi satisfeita, o que possibilitou o seguinte comentário de

 Juanita Machado, musicista e colunista de jornal à época:

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150 • Revista Estudos Amazônicos  

[Waldemar Henrique é um] compositor que fez

música brasileira, essa música ainda em embrião,

um belo ideal que se vai desalinhavando dos temas

bárbaros com características raciais de um

primitivismo encantador e atormentado. 25 

Esta passagem é uma parte de um artigo que a autora escreveu em

saudação à apresentação de Waldemar na programação da Rádio Clube

do Pará, o que propiciou aos presentes  –  em reduzido número, ressalte-

se -, o contato com o “primitivismo encantador” do compositor,

“pessoas seletas e distintas”, portadoras de bom gosto e refinamento.

Observa ainda que a saída do maestro para outra cidade é uma

necessidade. Nesta apresentação, os que lá se encontravam

testemunharam:

 A integralização da sua alma de poeta, de criador

de ritmos, com a ambiência da terra [esta que é]

um dos elementos contribuintes à inspiração,

execução e expressão da sua arte. A intensidade

genial do seu interior subiu à tona, mas não se

expandiu ainda inteiro, não atingiu a eclosão de

que é capaz, falta-lhe o ambiente. 26 

 A autora estende a opinião expressa acima a toda a Arte brasileira.

Esta não possui “uma esthesia  elevada” que possibilite “uma ética original,

sem ridículo”. Para a autora do texto, a música tem mais chance de alçareste patamar do que a literatura, e Waldemar Henrique é um dos grandes

representantes desta promissora manifestação. Mas a questão não finda

aí. Há que se perceber que deve ser iniciada a transformação da música

de caráter regional e, por conseguinte, proceder a sua expressão com

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Revista Estudos Amazônicos  • 151

 vistas a sua valorização em maior escala. Isto exposto mostra a

obrigatoriedade de entender que é preciso que se inicie e ratifique um

processo para que a música paraense, amazônica, se afirme como

resultado sólido, algo sedimentado e não efêmero.

 A origem da música brasileira de politonalidades

atávicas, feita de reminiscências ancestrais, ritmada

em temas raciais como a música espanhola,

portuguesa, eslava, etc., precisa necessariamente de

um longo estágio, ou então será uma expressão do

momento como a música americana. 27 

Mas Waldemar Henrique, compositor e consagrado músico, não tem

nos meados de 1930 o grande reconhecimento merecido e que viria a

seguir; por esta época é visto como um artista que está despertando.

Sobre isso Juanita Machado comenta; e também Luiz Moreno. Este, em

seu artigo sobre uma apresentação do artista28, escreve:

No deslumbramento hierático de ritmo e de verso,

Belém culta e social  vai conhecer a estética atraente e

polimorfa de um cultivador de emoções que vive

embelezando a alma no idealismo sadio de suas

composições modernistas.29 (grifos meus)

Nesta última afirmativa fica claro que Waldemar Henrique é um

“modernista” para o autor do artigo, que foi escrito mais de uma décadadepois de ocorrida a Semana de 22, o que sugere que essa leitura se

estende aos componentes do meio cultural-intelectual belenense dos

anos 1930. Cabe destacar que se trata de um músico de formação erudita

e que, por meio de sua genialidade, é fazedor de uma música regional

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152 • Revista Estudos Amazônicos  

autêntica, baseada no folclore, o fator primitivo a que se referiu, em

1928, Mário de Andrade. Para este, a busca pelo primitivo é uma atitude

não apenas estética, mas primordialmente política, o substrato da

realidade brasileira. Tal qual para Mário de Andrade, também para

 Waldemar Henrique o primitivismo é uma questão social.

Para nós, que estamos plasmando agora os

legítimos motivos de uma arte definida e

característica, temos na música e na poesia

fortemente individuais do compositor de “Suave

Spleen”, um autêntico valor nacional. 30 

 As composições de Waldemar Henrique não se configuram como

apenas um diletantismo: em conjunto, elas são a própria representação

do costume de um povo. Neste sentido, Bruno de Menezes procede a

uma análise da música de Waldemar, para qual dá contornos de

originalidade, associando-a ao fato de que se trata de um ato político; a

música é a própria expressão da cultura de um povo. O que Waldemar

Henrique estava fazendo era mostrar as impressões subjetivas ocultadas,

tornando-as manifesta.

 A música e o canto, bárbaros ou civilizados, têm o

milagre da revelação em síntese étnica, o “eu” de

uma raça, quando esta síntese projeta o íntimo do

povo de que é oriunda. A valsa, ou a música

 vienense, não é um estilo: é a vida, as ânsias, osangue de Strauss, identificando com o mundo a

alma de uma nacionalidade. 31 

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Revista Estudos Amazônicos  • 153

E a música amazônica seria “resultado das ânsias, do sangue, da

inquietação” de Waldemar Henrique, da inquietação diante da

inautenticidade das expressões artísticas locais, sem uma definição, um

amálgama sem sentido definido. Assim, o maestro se apresenta e é

encerrado como o modelador e organizador da autêntica arte musical

regional. Era assim que os viam seus contemporâneos naqueles idos anos

da década de 1930: como o realizador da maiêutica socrática na arte dos

sons nestas plagas.

Era também extremamente original, tal como nunca houvera. Um

exemplo a ser seguido. 32  As suas composições estão dentro de uma

concepção norteada pelo que a floresta apresenta. “Porque assimilar

quando se pode realizar?” indaga Bruno de Menezes, ao que

complementa: “Em arte, ou se cria, o que é superior e divino, ou se imita

com talento, o que é humano e faz glória”. 33 

Para os comentaristas de seu trabalho, não há assentimento ao

pastiche, de maneira que o músico volta-se para original e inovador,

baseado no que lhe oferece as fontes da criação criando algo

extremamente surpreendente. Waldemar Henrique “sente” a arte que se

lhe apresenta, inspirando-o, tomando-o por um entusiasmo inventivo

que se materializa em suas composições. Bruno de Menezes, na exaltação

ao caráter  poético - no sentido do “fazer vir a ser aquilo que não é” –  da

música de Waldemar Henrique “propõe” uma explicação psicológica

para o processo de criação do artista: “as suas composições, depois de

impressionarem intensamente a sensibilidade de seu instinto de beleza,

adormecem no seu interior, para se tornarem plasmáveis”. Assim, a

poesia e a música de Waldemar Henrique seriam frutos do seu “estadode alma”.

Numa região em que, aos olhos dos habitantes de outras regiões,

parece que a natureza esmagou o homem, o maestro se destaca como

aquele que tinha contribuído bastante para a “elevação do moral” da

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154 • Revista Estudos Amazônicos  

terra que entrou para o conhecimento da federação, no início do século

XX, como uma página inacabada do Gênesis, como havia imputado o

escritor Euclides da Cunha. Aliás, neste momento, o Pará ainda não

havia contribuído com nomes para a cultura mais geral da nação

brasileira 34, o que valeu a seguinte frase em nota em tom retórico do

jornal “O Estado do Pará”: nem todos os que valem, aparecem; mas os

que aparecem valem. 35 

O gênio criador é destaque nos meios da imprensa escrita em Belém.

E é interessante que alguns destacam o fato de que aqui o compositor e

sua obra não tinham o espaço, o ambiente necessário para a sua

efetivação, mesmo sendo Waldemar Henrique um “vitorioso da música

regional”. 

Com certeza, em grande medida por conta disso, Waldemar Henrique

se estabelece na cidade do Rio de Janeiro, no final do ano de 1933. Nesta

cidade, o músico paraense penetra de maneira incisiva nos círculos

artísticos. Pelos componentes deste meio, sua música é vista como toda

emocional, que deixa transparecer a sentimentalidade aguda de nossa

raça e que, de maneira brilhante, se apresenta na forma de versos. Ao

que tudo indica, Waldemar era o artista. Sua angústia em relação à arte se

expressava, assim, na sua ânsia pela mais perfeita expressão que fosse

possível alcançar.

O arauto da “fala” amazônica 

Saído da Amazônia longínqua, Waldemar Henrique é visto como aexpressão mais autêntica da alma cabocla, mensageiro que leva para o

meio citadino demonstrações do encantamento, do novo: o mistério das

florestas lendárias. E de forma ferina fala sobre esta sua hierofania:

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Revista Estudos Amazônicos  • 155

Nasci na cidade de Santa Maria de Belém do Grão-

Pará e sou filho agarrado da Amazônia. Trouxe-

lhes o canto índio da minha terra, verde, de regaço

imenso que dá a todos os seus filhos um

brinquedo de lendas para sonhar. E a música dos

turés sempre cantou no meu destino pelo mistério

plangente das lendas que me embalaram e que

agora traduzo em batuque soturnos, tristonhos,

malsinados (...).36 

 A saída da capital paraense foi antecedida pela “Noite da canção

paraense”, esta que, ao que tudo indica foi, além de momento de

despedida também o da afirmação da arte do maestro. Ainda em 1933,

em outubro, é encenada no Arraial de Nazaré a peça “A Casa da Viúva

Costa”, de autoria de Antonio Tavernard e Fernando de Castro, tendo

como responsável pela parte musical Waldemar Henrique. Em

novembro de 1933, Waldemar Henrique vai para o Rio de Janeiro

levando junto sua irmã Mara Costa.

 A busca do reconhecimento de sua obra era algo já defendido por

 vários críticos do seu trabalho, pois ser artista na região era algo difícil,

ainda mais se o artista é um “criador genial”, tal como Waldemar

Henrique era tido para os componentes do meio artístico e político local

à época. Sua permanência na cidade de Belém era algo complicado, haja

 vista o desprezo pela condição do artista e mesmo o caráter das suas

produções artísticas. Críticos e articulistas dos periódicos notavam que

apenas os homens de coragem se atrevem a fazer arte nesta situação, e Waldemar Henrique já havia alcançado  –   e talvez ultrapassado  –   este

patamar. Portanto, era necessária a saída em busca deste

reconhecimento. A “Noite da canção paraense” foi uma amostra da sua

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156 • Revista Estudos Amazônicos  

capacidade criativa e, ao mesmo tempo, um afronte àqueles que não a

reconheciam arte.

Fazer arte entre nós é ter coragem para receber,

em vez de receber como prêmio palmas e

estímulos, a indiferença, o descaso, quando não

mesmo a coroa do ridículo [...] não se pode ser

poeta nem cantor, porque todo mundo, plasmando

seu desdém pela arte e pela poesia que foi a

linguagem dos deuses, diz logo ao avistar alguém: -

Como vai, “poeta”?! Ou então: “Este com a mania

dos versos, ou do canto, acaba no hospício”. 37 

O desencadeamento lógico é que, como criador original, Waldemar

Henrique deveria “aparecer” e isto só era possível em um grande centro,

como o Rio de Janeiro e seu cosmopolitismo cultural, pois “no samba,

na embolada ou na canção, ninguém no norte o excede, e poucos no sul

se igualarão a ele.” 38 Depreende-se que a Belém dos anos 30 do século

passado, “eivada de provincianismo esnobe”, não lhe era propicia. Quase

um ano depois de sua partida, o jornal “Folha do Norte” publica uma

nota:

Ficou aqui uma lembrança viva do moço de

talento que é Waldemar Henrique, que se

encaminhou para o Rio de Janeiro em busca deambiente mais favorável ao seu desenvolvimento

artístico.39 

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Revista Estudos Amazônicos  • 159

Intérprete de um sentimento

 A importância do músico paraense no meio artístico nacional, quando

do seu estabelecimento no Rio de Janeiro, é fruto do caráter de sua

produção: é o “canto da Amazônia”, o modelador do barbarismo

selvagem em uma linguagem artística, importante para o contexto

subsequente ao Modernismo instaurado em 1922; um seu fruto, numa

última palavra. Importante é ressaltar que sua música acabou por ser

nova e inovadora, na medida em que se situou numa fronteira entre o

erudito e o popular, o que lhe colocou, no cenário musical brasileiro

ladeado a Heckel Tavares e Gentil Puget, entre outros grandes nomes da

“música nacional”.

 A forma na qual o conteúdo de sua produção se encaixa é simples:

uma grande variação de texto, de palavras, estão em um número

reduzido de notas, numa espécie de organização sonoro-literário que se

conforma como um padrão composicional, algo retomado em várias de

suas composições. Simplicidade que tem como objetivo a apreensão da

mensagem, de maneira que o meio (a música) seja, também, a mensagem.

Podemos notar esta “economia” dos sons em obras como “Tambatajá”:

num intervalo de oito compassos há apenas duas notas; em “Foi boto,

Sinhá!”: melodia simples, assim como o ritmo. Na maioria de suasmúsicas há uma simplicidade, mesmo uma rusticidade comprometida

com a proposta de assimilação da estrutura folclórica, matéria-prima de

sua produção. As canções com mais notas estão dentro uma estrutura

rítmica claramente folclórica, por exemplo, “Canção dos remadores”.

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160 • Revista Estudos Amazônicos  

Em suma, não há grande rebuscamento ou mesmo uma complexidade

nas composições. Contudo, deu um “arranjo” movediço, algo irrequieto,

às melodias que ele recolheu do folclore, e é onde está sua originalidade.

 As possibilidades exploradas pelo pianista são leves mas originais, salvas

da “bobice [de] muitas canções que não inspirariam nenhum arranjo” 44 

Conhecendo a fundo as lendas, as tradições e os

costumes da sua terra natal, [Waldemar Henrique]

resolvera criar, compor coisas diferentes,

desconhecidas no ambiente citadino do Rio,

 verdadeiramente inéditas.45 

O projeto de construção de uma música regional veio satisfazer uma

necessidade da própria elite social, intelectual e artística belenense, haja

 vista que, à época, era recorrente a ideia de que precisávamos de

programas “genuinamente brasileiros”. Para aqueles que defendiam a

afirmação de uma cultura musical local legítima, tratava-se de uma queixa

legítima. E o compositor paraense se mostrou para o mundo; e mostrou

para o mundo civilizado, a partir da década de 1930, a melancolia, a forma

selvagem da estrutura melódica folclórica autêntica, como queriam

aqueles que lutavam pela definição de uma alma artística e uma

identidade nacional. Impactado com a música de Waldemar Henrique,

assim expressou-se Cassiano Ricardo, um dos grandes nomes do

Movimento Modernista, em 1935: “Waldemar Henrique me revela a

alma brasileira que venho procurando”.46 

Como cultor da música popular na Amazônia, Waldemar Henriquetem seu reconhecimento. É o “marcador dos ritmos, focalizando cenas,  

surpreendendo os reflexos emocionais da alma sertaneja, para a

estilização flagrante das suas características”. Portanto, este é o ponto

central da estética do maestro: traduzir as contingências da vida na

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Revista Estudos Amazônicos  • 161

floresta para o entendimento nacional numa linguagem artística. E assim

o faz através da estilização. A arte, estritamente entendida, não pode ser

articular por “não ser humana”. Mas a arte de Waldemar Henrique é

articulada, humanizada, sua proposta tem um conteúdo e uma sugestão

de estabelecimento do fazer artístico imbricado com o  primitivismo 

estético - político marioandradiano. Para o filósofo Jose Ortega y Gasset,

estilizar é deformar o real. Neste sentido, Waldemar é o apresentador de

uma “versão” da realidade amazônica que atende aos interesses do

empenho político da Semana de Arte Moderna de 22. Em sua obra, fala

sobre o homem natural e seu cotidiano, procedendo a uma transfiguração e

resignificação do imaginário popular. É a Amazônia estilizada em sons e

palavras.

 Artigo recebido em agosto de 2011

 Aprovado em dezembro de 2011

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9 RIBEIRO, De Campos. Op. Cit., p. 16-17.

10 É aceitável que seja usado o termo “Modernismos”, haja vista distintas variáveis.No entanto, neste trabalho, usamos a acepção estrita: movimento que pensou epropugnou uma arte brasileira.

11  “Movimento –   cultural, estético ou político  –  no sentido sociológico do termo,pressupõe um projeto coletivo veiculado através de programas, manifestos e atitudesperformáticas.” Citado em NAVES, Santuza C. Da Bossa Nova à Tropicália . Rio de

 Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 10.

12  Ver: WISNIK, José Miguel; SQUEFF, Enio. “Getúlio da Paixão Cearense”In: - -, O Nacional e o Popular na Cultura Brasileira - Música . São Paulo: Brasiliense,1982, p. 133.

13 CONTIER, Arnaldo Daraya. “Modernismos e Brasilidade. Música, utopia etradição” In: NOVAES, Adauto (Org.). Tempo e História.  São Paulo: Cia. dasLetras e Secretaria Municipal de Cultura, 1992, p. 281.

14  Jornal “A Gazeta”. São Paulo, 17 de outubro de 1935.

15 Idem.

16  HELIOS (Menotti Del Picchia). Jornal “Diário da Noite”, São Paulo, 24 deoutubro de 1935.

17 Idem.18  Manuel Maria de Falla (1876-1946). Compositor espanhol que defendeu autilização da temática nacionalista como matéria-prima para a feição de uma músicaautêntica. Sua produção, no entanto, não é meramente folclórica.

19  ANDRADE, Mário de.  Ensaio sobre a música brasileira . São Paulo: Vila Rica;Brasília: INL, 1972, p. 9.

20 MORAES, Eduardo Jardim.  A Brasilidade Modernista: sua dimensão filosófica.Rio de Janeiro: Graal, 1978, p. 87.

21Mário de Andrade empreendeu uma incursão pela Amazônia em 1927. Paramaiores informações sobre o périplo ver: ANDRADE, Mário. O Turista Aprendiz . 

São Paulo: Duas Cidades/Secretaria de Cultura, Esportes e Tecnologia, 1976;BASSALO, Célia Coelho; COELHO, Joaquim Francisco. “Mário de Andrade noPará: os sucessos e documentos da viagem e algumas considerações sobre omodernismo” In: Revista de Cultura do Pará , v. 3, Belém, 1973; MORAES, FabianoBastos. O Turista Demiurgo: a viagem de Mário de Andrade pela Amazônia e abrasilidade modernista. 2005. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação emHistória). Belém: UFPA, 2005.

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22 O Maestro Mertin Braunwieser, integrante da Missão de Pesquisa Folclórica, sob aresponsabilidade de Mário de Andrade, foi incumbido pela Discoteca Pública deCultura da Prefeitura Municipal de São Paulo de percorrer o norte e o nordeste pararegistrar as mais variadas formas de expressão de sua cultura popular. A missãopartiu de São Paulo em janeiro de 1938 e, chegando ao Pará, permaneceu de 27 dejunho a 7 de julho, onde gravou e filmou apresentações de Boi-Bumbá emanifestações religiosas. Ver MOURA, Carlos E. M. O Teatro que o Povo Cria . Belém:SECULT, 1997, p. 33.

23  Que, aliás, se apresentam em reduzido número. A detecção da “ausência” dosliteratos locais nos relatos de viagem contidos em “Turista Aprendiz” encontra-se

em MORAES, Fabiano Bastos. Op.Cit, p. 68.

24  Folclore é forma oriunda do termo inglês  folk  (povo) lore   (conhecimento),cunhado em 1846 por William John Thoms. É, portanto, conhecimento ou saberpopular.

25  MACHADO, Juanita “A Música brasileira de Waldemar Henrique”. Jornal “OEstado do Pará”, Belém, 9 junho de 1931.

26 Idem.

27 Ibidem.

28 Por esta época Waldemar Henrique atua como Diretor Artístico da Rádio Clube

(1933)29 MORENO, Luiz. “Um artista que desperta”. Jornal “Folha do Norte”. Belém, 16de julho de 1933.

30 Idem.

31 Ibidem.

32 “Depois de Catulo [ da Paixão Cearense, poeta e compositor], o cantor que sobe[sic] traduzir as coisas mais simples na beleza rude de seu verso, nada mais se têmouvido. Waldemar Henrique é um exemplo digno de ser seguido. Imitem-n’o” [sic],escreveu o colunista Pedro Paulo já em 1935. PAULO, Pedro. “O nosso folk -lore ea arte de Waldemar Henrique”. Jornal “A Voz do Rádio”, 4 de julho de 1935. 

33 MENEZES, Bruno de. “Nova música e seus compositores: Waldemar Henrique”. Jornal “O Estado do Pará”. Belém, 11 de setembro de 1933. 

34  Jornal “O Estado do Pará”, Belém, 10 de agosto de 1933. 

35 Idem.

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36 “Um eco das florestas e das Iaras”. Jornal “Sintonia”, Rio de Janeiro, 26 de julhode 1934.

37 Coluna “Gravetos”. Jornal “O Estado do Pará”, Belém, 20 de agosto de 1933. 

38 Idem.

39  Jornal “Folha do Norte”, Belém, outubro de 1934. 

40 Hekel Tavares (1896-1969), compositor, regente e arranjador. Nasceu em Satuba, Alagoas.

41  Gastão Formenti (1894-1974), cantor e pintor. Nasceu em Guaratinguetá, SãoPaulo.

42 LIMA, Benjamin. Jornal do Brasil, 21 de julho de 1934.

43  Idem. No texto do artigo está grafado errado o título do poema de Raul Bopp,cujo nome correto é “Cobra Norato”. 

44  CLAVER   FILHO,  José. Waldemar Henrique: o canto da Amazônia. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1978, p. 67.

45 Idem, p. 91.

46 Em “Currículum Vitae  de Waldemar Henrique” (Acervo Museu da Imagem e doSom).