conexão amazônica

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CONEXÃO AMAZÔNICA Foram quatro dias no norte do Brasil, em meio a sons, cores, sabores e água, muita água. Com shows de artistas do porte de Lenine, Fernanda Takai, Pepeu Gomes e Lucas Santtana, a etapa Belém do projeto Conexão Vivo ofereceu ao público uma seleção com alguns dos melhores espetáculos da cena musical brasileira, mas o fato é que quem roubou a cena foram os 20 artistas paraenses – de Dona Onete a Gaby Amarantos e de Pinduca à Gang do Eletro – reunidos na programação. A convite da produção do evento, a Gazeta foi até lá para conferir tudo de perto. Nesta edição, a gente mostra como a musicalidade latente na alma desse povo contribui para o estado de felicidade genuína que transparece nos olhos, nos sorrisos e em cada movimento. Não perca | RAMIRO RIBEIRO Repórter Belém, PA – Lá do alto, Belém pa- rece uma ilha. O que se avista pri- meiro é a floresta, densa e verde- jante. Depois, os rios. Um, dois, três. Todos imponentes, com 1,5, 2 mil metros de distância entre uma borda e outra. A cidade se debruça sobre as águas – que a margeiam e recortam. Gran- des manchas negras em meio ao quase-mar cor de terra: elas não se misturam, mas traçam a mes- ma trajetória. Uma vez em terra, o que impressiona são as man- gueiras, centenárias, frondosas. São mais de 12 mil, que come- çam a causar problemas com su- as raízes e galhos apodrecidos. Elas dão algum refresco num lu- gar cuja temperatura está sem- pre acima dos 30°C. O mito das chuvas diárias ao cair da tarde foi prontamente desconstruído. Belém ferve. Como ferveu na praça Dom Pe- dro II, um dos incontáveis lar- gos arborizados da cidade, entre os dias 27 e 30 de outubro, du- rante a segunda edição do Cone- xão Vivo Belém. Neste ano, a re- de de ações continuada da em- presa de telefonia já havia leva- do seus shows, debates e ofici- nas aos estados de Minas Gerais e Bahia, além dos municípios de Marabá e Castanhal, no interi- or paraense. Para a capital, esta- vam reservadas atrações do ca- libre de Lenine e Fernanda Ta- kai, que deram sua contribuição para o sucesso (de público) do evento, mas, finda a festa, não restava dúvida de que, quando se trata de celebrar a vida e a músi- ca, a arte produzida no Pará can- ta mais alto. TRADIÇÃO E MODERNIDADE Com 400 anos de história, a cul- tura paraense que se concentra em Belém é digna de respeito. O fluxo dos vários movimentos mi- gratórios ocorridos ao longo dos séculos resultou numa mistura social e cultural que reverbera na música ali produzida. Às tradi- ções negras dos quilombolas so- mam-se a ancestral herança indí- gena e a antena ligada que cap- ta as vibrações latinas vindas do Caribe próximo. Tudo isso resulta numa pro- fusão de ritmos, danças e esti- los que bebem na fonte um do outro, que se retroalimentam. A história pode ser iniciada no ca- rimbó de Augusto Gomes Rodri- gues, o Mestre Verequete, morto em 2009, aos 93 anos. Daí corre para os anos 70, com Pinduca e os mestres da guitarrada Vieira, Curica e Aldo Sena e uma certa projeção nacional que se trans- formaria em explosão na década seguinte, com a lambada de Beto Barbosa e da banda Warilou, cu- jo líder, o guitarrista Manoel Cor- deiro, hoje vê o filho, Felipe, gui- ar a nova geração de músicos. Es- tes, por sua vez, passeiam com desenvoltura entre a tradição e a modernidade, como comprovam o tecnobrega de Gaby Amaran- tos, o pop de Juliana Sinimbu, a guitarrada de Pio Lobato e Felix Robatto, o reggae de Juca Culatra e o metal da Madame Saatan. No meio disso tudo, o brega de Alípio Martins e Roberto Vil- lar é outra expressão que não po- de ser vista como menor ou de baixa qualidade – pode acreditar, nem só de Calypso e Fafá de Be- lém vive a vasta música paraen- se. Carimbó, siriá, samba de ca- cete, guitarrada, merengue, me- lody, cumbia... A seara de ritmos, vertentes e sonoridades é ampla, e cresce a cada nova experimen- tação. Maior que a maioria dos países do mundo, o Pará possui um banco de cultura dos mais ricos e, ao que parece, autossus- tentável. O público acompanha a efer- vescência dessa cena, seja no cir- cuito das bandas independen- tes ou das novas cantoras que lançam e trabalham seus discos no estado. Claro que dificulda- des e reclamações sempre exis- tirão, mas a receptividade com a qual o paraense recebe e cele- bra o tão proclamado ‘artista lo- cal’ é qualquer coisa de impres- sionante. Isso ficou evidente nos quatro dias de Conexão, em mo- mentos como os shows de Dona Onete, da banda Metaleiras da Amazônia e de Lia Sophia. Sem falar da comoção que foi o show de Gaby Amarantos, genuína re- presentante da periferia. Notável, o nível médio de pro- fissionalização do music business paraense de fato chama a aten- ção. No mundo das aparelha- gens, para ficar com o melhor exemplo, a cadeia produtiva fun- ciona a todo vapor: envolve do compositor que vende seu tra- balho às aparelhagens até as bandas e DJs com agenda cheia que aportam nos camelôs, canal de escoamento dessa incessante produção. Experiência que todos os in- teressados em música e cultura no Brasil deveriam vivenciar, os dias e noites no Norte renderam o relato que você confere nesta edição da Gazeta. Sim, há um lu- gar onde festejar é preciso. A se- guir, os destaques do Conexão Vivo em Belém. Continua nas págs. B2 e B5 rada para o sucesso. Articula- da e consciente de seu papel como ponta-de-lança da efer- vescência que vem da floresta, ela não hesita: “Eu sou agen- te da música brasileira produzi- da no Pará!”. Não desperdice a chance de conhecer uma artista pronta, única. FELIPE CORDEIRO O penúltimo show do derra- deiro dia do Conexão Vivo se transformou numa celebração da música paraense em suas di- versas vertentes e gerações. Ao lado do pai, Manoel Cordeiro, precursor da lambada na dé- cada de 80 com artistas como Beto Barbosa e a banda Wari- lou, Felipe apresentou as mú- sicas do elogiado álbum Kitsch Pop Cult. Espaço para a lam- bada, o carimbó e o autênti- co brega com roupagem pop retrô, como na homenagem a Alípio Martins com a lasciva Eu Quero Gozar (A Vida com Você). Ao dividir as guitarradas com Felix Robatto (La Pupuña, Gaby Amarantos) e Pio Lobato (Cravo Carbono, Mestres da Guitarra- da), e depois ao improvisar cha- mando Gaby e Marcos Maderi- to para uma versão turbinada de Galera da Lage, Felipe resu- miu presente e futuro, tradição e sucesso popular num amál- gama que transborda originali- dade, assumindo a frente desse momento singular de amplitu- de da cena paraense. INSTANTÂNEOS DE UMA FESTA GABY AMARANTOS “Gaby, o Baixo Bélem veio em peso só pra te ver!”. O fã correu até a grade, mandan- do beijos e sorrisos, pronta- mente respondidos pela artista que esperava ouvir seu nome para entrar no palco e coman- dar o show mais esperado da segunda noite do festival. Jo- gando em casa, Gaby Amaran- tos faz a ponte entre o cool e o popular. Figurino persona- líssimo, voz marcante, domínio de palco hipnótico, banda com- petente comandada pelo gui- tarrista Felix Robatto. Perceber sua empatia com um público cada vez maior e diverso é ar- repiante. Das ‘patricinhas’ ao povão da periferia, das crianças aos jornalistas de diversas par- tes do País, todos entraram no ritmo irresistivelmente contagi- ante do tecnobrega. As músicas Faz o T (uma homenagem à Aparelhagem Tupinambá), Xar- que, Beba Doida, e Xirley, hit instantâneo do pernambucano Zé Cafofinho – se transformam em hinos, entoados por mais de dez mil pessoas. A catarse se completou na parte final, com a entrada da Gang do Eletro. Li- derada pelo cantor Marcos Ma- derito, a trupe incendiou tudo com a fusão frenética do tecno- brega com batidas eletrônicas do house e eletromelody, sín- tese da musicalidade do norte do País. E pensar que Gaby tal- vez ainda nem tenha alcançado o auge artístico. Com o lança- mento do primeiro disco mar- cado para o início de 2012, a moça está mais do que prepa- Afirmação do po- pular no encontro de Gaby Amarantos e Gang do Eletro Fotos: Renato Reis/Divulgação B DOMINGO, 06 DE NOVEMBRO DE 2011 Gazeta de Alagoas

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Cobertura do Conexão Vivo Belém, realizado em outubro de 2011

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Page 1: Conexão Amazônica

CONEXÃO AMAZÔNICA

Foram quatro dias no norte do Brasil, em meio a sons, cores, sabores e água, muita água. Com shows de artistas do porte de Lenine, Fernanda Takai, Pepeu

Gomes e Lucas Santtana, a etapa Belém do projeto Conexão Vivo ofereceu ao público uma seleção com alguns dos melhores espetáculos da cena musical

brasileira, mas o fato é que quem roubou a cena foram os 20 artistas paraenses – de Dona Onete a Gaby Amarantos e de Pinduca à Gang do Eletro – reunidos

na programação. A convite da produção do evento, a Gazeta foi até lá para conferir tudo de perto. Nesta edição, a gente mostra como a musicalidade

latente na alma desse povo contribui para o estado de felicidade genuína que transparece nos olhos, nos sorrisos e em cada movimento. Não perca

| RAMIRO RIBEIRO Repórter

Belém, PA – Lá do alto, Belém pa-rece uma ilha. O que se avista pri-meiro é a floresta, densa e verde-jante. Depois, os rios. Um, dois, três. Todos imponentes, com 1,5, 2 mil metros de distância entre uma borda e outra. A cidade se debruça sobre as águas – que a margeiam e recortam. Gran-des manchas negras em meio ao quase-mar cor de terra: elas não se misturam, mas traçam a mes-ma trajetória. Uma vez em terra, o que impressiona são as man-gueiras, centenárias, frondosas. São mais de 12 mil, que come-çam a causar problemas com su-as raízes e galhos apodrecidos. Elas dão algum refresco num lu-gar cuja temperatura está sem-pre acima dos 30°C. O mito das chuvas diárias ao cair da tarde foi prontamente desconstruído. Belém ferve.

Como ferveu na praça Dom Pe-dro II, um dos incontáveis lar-gos arborizados da cidade, entre os dias 27 e 30 de outubro, du-rante a segunda edição do Cone-xão Vivo Belém. Neste ano, a re-de de ações continuada da em-presa de telefonia já havia leva-do seus shows, debates e ofici-nas aos estados de Minas Gerais e Bahia, além dos municípios de Marabá e Castanhal, no interi-or paraense. Para a capital, esta-vam reservadas atrações do ca-libre de Lenine e Fernanda Ta-kai, que deram sua contribuição para o sucesso (de público) do evento, mas, finda a festa, não restava dúvida de que, quando se trata de celebrar a vida e a músi-ca, a arte produzida no Pará can-ta mais alto.

TRADIÇÃO E MODERNIDADE Com 400 anos de história, a cul-tura paraense que se concentra em Belém é digna de respeito. O fluxo dos vários movimentos mi-gratórios ocorridos ao longo dos séculos resultou numa mistura social e cultural que reverbera na música ali produzida. Às tradi-ções negras dos quilombolas so-mam-se a ancestral herança indí-gena e a antena ligada que cap-ta as vibrações latinas vindas do Caribe próximo.

Tudo isso resulta numa pro-fusão de ritmos, danças e esti-los que bebem na fonte um do outro, que se retroalimentam. A história pode ser iniciada no ca-rimbó de Augusto Gomes Rodri-gues, o Mestre Verequete, morto em 2009, aos 93 anos. Daí corre para os anos 70, com Pinduca e os mestres da guitarrada Vieira, Curica e Aldo Sena e uma certa projeção nacional que se trans-formaria em explosão na década seguinte, com a lambada de Beto Barbosa e da banda Warilou, cu-jo líder, o guitarrista Manoel Cor-deiro, hoje vê o filho, Felipe, gui-ar a nova geração de músicos. Es-tes, por sua vez, passeiam com desenvoltura entre a tradição e a modernidade, como comprovam o tecnobrega de Gaby Amaran-tos, o pop de Juliana Sinimbu, a guitarrada de Pio Lobato e Felix Robatto, o reggae de Juca Culatra e o metal da Madame Saatan.

No meio disso tudo, o brega de Alípio Martins e Roberto Vil-lar é outra expressão que não po-de ser vista como menor ou de baixa qualidade – pode acreditar, nem só de Calypso e Fafá de Be-lém vive a vasta música paraen-se. Carimbó, siriá, samba de ca-cete, guitarrada, merengue, me-

lody, cumbia... A seara de ritmos, vertentes e sonoridades é ampla, e cresce a cada nova experimen-tação. Maior que a maioria dos países do mundo, o Pará possui um banco de cultura dos mais ricos e, ao que parece, autossus-tentável.

O público acompanha a efer-vescência dessa cena, seja no cir-cuito das bandas independen-tes ou das novas cantoras que lançam e trabalham seus discos no estado. Claro que dificulda-des e reclamações sempre exis-tirão, mas a receptividade com a qual o paraense recebe e cele-bra o tão proclamado ‘artista lo-cal’ é qualquer coisa de impres-sionante. Isso ficou evidente nos quatro dias de Conexão, em mo-mentos como os shows de Dona Onete, da banda Metaleiras da Amazônia e de Lia Sophia. Sem falar da comoção que foi o show de Gaby Amarantos, genuína re-presentante da periferia.

Notável, o nível médio de pro-fissionalização do music business paraense de fato chama a aten-ção. No mundo das aparelha-gens, para ficar com o melhor exemplo, a cadeia produtiva fun-ciona a todo vapor: envolve do compositor que vende seu tra-balho às aparelhagens até as bandas e DJs com agenda cheia que aportam nos camelôs, canal de escoamento dessa incessante produção.

Experiência que todos os in-teressados em música e cultura no Brasil deveriam vivenciar, os dias e noites no Norte renderam o relato que você confere nesta edição da Gazeta. Sim, há um lu-gar onde festejar é preciso. A se-guir, os destaques do Conexão Vivo em Belém.

Continua nas págs.

B2 e B5

rada para o sucesso. Articula-da e consciente de seu papel como ponta-de-lança da efer-vescência que vem da floresta, ela não hesita: “Eu sou agen-te da música brasileira produzi-da no Pará!”. Não desperdice a chance de conhecer uma artista pronta, única.

FELIPE CORDEIRO O penúltimo show do derra-deiro dia do Conexão Vivo se transformou numa celebração da música paraense em suas di-versas vertentes e gerações. Ao lado do pai, Manoel Cordeiro, precursor da lambada na dé-cada de 80 com artistas como Beto Barbosa e a banda Wari-lou, Felipe apresentou as mú-

sicas do elogiado álbum Kitsch Pop Cult. Espaço para a lam-bada, o carimbó e o autênti-co brega com roupagem pop retrô, como na homenagem a Alípio Martins com a lasciva Eu Quero Gozar (A Vida com Você). Ao dividir as guitarradas com Felix Robatto (La Pupuña, Gaby Amarantos) e Pio Lobato (Cravo Carbono, Mestres da Guitarra-da), e depois ao improvisar cha-mando Gaby e Marcos Maderi-to para uma versão turbinada de Galera da Lage, Felipe resu-miu presente e futuro, tradição e sucesso popular num amál-gama que transborda originali-dade, assumindo a frente desse momento singular de amplitu-de da cena paraense.

INSTANTÂNEOS DE UMA FESTA GABY AMARANTOS “Gaby, o Baixo Bélem veio em peso só pra te ver!”. O fã correu até a grade, mandan-do beijos e sorrisos, pronta-mente respondidos pela artista que esperava ouvir seu nome para entrar no palco e coman-dar o show mais esperado da segunda noite do festival. Jo-gando em casa, Gaby Amaran-tos faz a ponte entre o cool e o popular. Figurino persona-líssimo, voz marcante, domínio de palco hipnótico, banda com-petente comandada pelo gui-tarrista Felix Robatto. Perceber sua empatia com um público cada vez maior e diverso é ar-repiante. Das ‘patricinhas’ ao povão da periferia, das crianças aos jornalistas de diversas par-tes do País, todos entraram no ritmo irresistivelmente contagi-ante do tecnobrega. As músicas – Faz o T (uma homenagem à Aparelhagem Tupinambá), Xar-que, Beba Doida, e Xirley, hit instantâneo do pernambucano Zé Cafofinho – se transformam em hinos, entoados por mais de dez mil pessoas. A catarse se completou na parte final, com a entrada da Gang do Eletro. Li-derada pelo cantor Marcos Ma-derito, a trupe incendiou tudo com a fusão frenética do tecno-brega com batidas eletrônicas do house e eletromelody, sín-tese da musicalidade do norte do País. E pensar que Gaby tal-vez ainda nem tenha alcançado o auge artístico. Com o lança-mento do primeiro disco mar-cado para o início de 2012, a moça está mais do que prepa-

Afirmação do po-pular no encontro de Gaby Amarantos e Gang do Eletro

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capital do Pará marca presen-ça com cota própria e muita be-leza e personalidade. Não dá para esquecer que estamos fa-lando da terra que gerou a icô-nica Fafá de Belém. Seja na gafieira chic de Aíla, que colo-ca no mesmo tabuleiro Alípio Martins, Pinduca e Felipe Cor-deiro, ou no pop honesto de Lia Sophia, a atmosfera amazô-nica se faz presente, e o mesmo pode ser dito sobre a sonori-dade da (mais) experiente Iva-Rothe. A secular bagagem mu-sical do estado perpassa a obra de todas elas, conferindo-lhes uma espécie de unidade. Sínte-se disso foi a apresentação da bela Juliana Sinimbu. Intérpre-te promissora, a moça dividiu o palco com Pinduca, símbolo

maior do carimbó que ensai-ou alcance nacional na década de 70. Sua canção mais famosa, Sinhá Pureza, passeou por todo o festival, ganhando releituras de Fernanda Takai a Lenine.

VELHA GUARDA E ORQUESTRA DO ROCK Sempre haverá espaço para re-verenciar a tradição, os nomes que construíram a história da música no Pará. O violonis-ta Sebastião Tapajós, 68 anos, mais de 70 discos gravados com direito a tocadas com nomes como Hermeto Pascoal e Astor-Piazzolla, emocionou pela sim-plicidade de seu show ao lado do argentino Sérgio Ábalos. Já a emoção que despertou Dona Onete passava mesmo pelos

quadris. Como uma senhora de 72 anos, nascida na Ilha de Marajó, pode ser a diva do carimbó ‘chamegado’? Esban-jando sensualidade e remele-xo em composições próprias, ela botou o povo para dançar ao som da irresistível Jambura-na. O tremor do jambu (plan-ta típica usada em pratos como o tacacá e o pato no tucupi), como diz a letra, é capaz de milagres. Quem também ins-taurou um clima de baile foi o grupo Metaleiras da Amazô-nia. Formados na banda da Po-lícia Militar do Pará, os músi-cos Pantoja, Manezinho do Sax e Pipira do Trombone conec-tam os ritmos locais com a in-fluência latina do merengue e com o dub e outras levadas, es-

No sábado 29 de outubro, após a maratona de música na praça, era chegada a hora de conhecer o fenômeno das fes-tas de aparelhagem. Guiados por Gaby Amarantos, cerca de 15 jornalistas vindos de todo o País partiram rumo ao bairro de Guamá, às margens do rio de mesmo nome. O destino era a Aparelhagem Mega Prín-cipe. Guamá, Jurunas, bairros populosos da capital paraen-se. O coração de Belém se descortinava diante de olhos curiosos por decifrar o que havia por trás do grande por-tão de ferro. É difícil precisar se três, quatro ou cinco mil pessoas dividiam espaço num grande galpão, tendo o rio e suas embarca-ções como moldura. O som alto, extremamente alto, im-pedia qualquer tentativa de conversa prolongada. A expe-riência deveria ser desfrutada em todas as suas camadas. Funciona assim: o DJ é a estre-la e é quem comanda a festa, a bordo de uma espécie de nave repleta de telas, teclados e traquitanas tecnológicas in-compreensíveis. Lá, ele des-fia suas mixagens. Há espa-ço para tudo: versões do pop radiofônico, clássicos bregas revisitados e até um rápido bloco de funk carioca, quan-do a festa nitidamente perde

um pouco do seu gás. As classificações musicais se acumulam: tecnobrega, me-lody, tecnomelody, eletrome-lody, zouk, eletrocumbia. O batidão é incessante, conta-gia. O DJ interage o tempo in-teiro com a massa, seja dando recados publicitários ou fa-zendo as vezes de correio ele-gante, lendo os recados que não param de chegar à sua es-tação de som. Som e luz. A experiência é sensorial. Telões gigantes ex-plodem em imagens estrobos-cópicas e luzes cintilantes. Há ainda fogos de artifício e ex-plosões de confete e serpenti-na saudadas pela multidão. O espetáculo não para e é rega-do a muita cerveja vendida em baldes que serpenteiam pela pista. A festa só vai dar si-nais de arrefecimento às qua-tro e meia da manhã, quando as pessoas começam a retor-nar para suas casas, ou esti-cam para o café da manhã no mercado Ver-o-Peso. O que fica da experiência é a constatação da felicidade genuína que exala do habi-tat, proveniente da energia de seus participantes. A apare-lhagem é um turbilhão esté-tico, transgressão cultural das boas. Retrato do Brasil misci-genado, antropofágico. Para-béns a todos os envolvidos.

A seguir, impressões sobre os principais destaques da celebração que foi o Conexão Vivo em Belém

Uma noite nas festas de aparelhagem do norte do Brasil

INSTANTÂNEOS DE UMA FESTA

BEM-VINDO À APARELHAGEM

CONTINUAÇÃO DA PÁGINA B1

NOVAS PARAENSES Se o Brasil é mesmo o país das novas cantoras – que surgem em escala quase industrial –, a

cudados por músicos como o guitarrista Leo Chermont e o baixista MG Calibre. Outro que se revelou uma grata surpre-sa da maratona foi o profes-sor Áureo de Freitas, nome à frente da Orquestra de Violon-celistas da Amazônia. Doze me-ninos, entre 14 e 17 anos, em-punhavam violoncelos como se fossem guitarras e transforma-vam o que se pensava ser um sarau num show de rock. No re-pertório, Beatles, Led Zeppelin, Metallica e Iron Maiden, para o delírio dos metaleiros de plan-tão. Mas também houve espa-ço para a celebração dos ritmos locais. Mais um belo retrato da cultura paraense, em todos os seus fluxos e refluxos.

OS FORASTEIROS Apesar de boa parte das atra-ções da programação serem made in Pará, o Conexão Vivo ofereceu ao público shows de artistas de várias partes do País, como Bahia, Brasília, Minas Ge-rais, Goiás, Pernambuco e Pa-raná, numa instigante intera-ção entre culturas distintas – dos goianos do Gloom (com seu happy-ska para fãs de Los Hermanos e Móveis Coloniais

de Acaju) ao funk de acen-to pesado dos brasilienses do Soatá e aos sambas groovea-dos de Lucas Santtana e pas-sando ainda pelo memorável encontro Pará-Bahia protagoni-zado por Marco André e Pepeu Gomes. Mas teve mais. O pú-blico também curtiu a mistura de rap com embolada do per-nambucano Zé Brown, o surf rock pra cima dos potiguares da Camarones Orquestra Gui-tarrística e a energia incansável de Lenine e seus hits. Com seu duelo de MCs baseado no verso livre e na zoação do adversário, a festa promovida pelos minei-ros do Família de Rua na Estra-da foi outro ponto a destacar. Entre os artistas, digamos, ‘fo-rasteiros’, a única que compe-tiu em público e ansiedade com Gaby Amarantos foi Fernanda Takai. A vocalista do Pato Fu levou para o encerramento do festival o show de seu pre-miado trabalho solo Onde Bri-lhem os Olhos Seus, baseado na obra de Nara Leão. Com ar-ranjos comandados por John Ulhôa, a apresentação foi pon-tuada por versões sentimentais de hits radiofônicos de grupos como Duran Duran e Jackson 5.

ELES FIZERAM A FESTA No alto, o time da Orques-tra de Violoncelistas da Amazônia; acima, à esquerda, o ‘chamego’ de Dona Onete; ao lado, Fernanda Takai

Fotos: Taiana Laiun/Divulgação

B2 CADERNO B DOMINGO, 06 DE NOVEMBRO DE 2011 Gazeta de Alagoas

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CONTINUAÇÃO DA PÁGINA B1

DOCAS, VER-O-PESO, AÇAÍ NA TIGELA No centro de Belém, no bairro de Nazaré, periferia de Guamá e Jurunas, as águas dos rios estão por toda parte, e se fazem ver de longe. Na região do antigo porto da cidade, os armazéns – as docas – foram transfor-mados num complexo turísti-co com lojas, bares e restau-rantes, tudo bem ao lado do icônico mercado Ver-o-Peso. A construção de ferro recebe os mais diversos tipos de pesca-do, em especial o popular (e sa-boroso) Filhote, de carne bran-

ca e macia. Em volta do prédio encontramos as barracas, com toda sorte de produtos: o arte-sanato com suas cuias, potes e utensílios; as frutas de sabores (e nomes) únicos – bacabá, ba-curi, cupuaçu; os bares que ser-vem açaí com farinha e peixe frito; as vendedoras de plantas e ervas medicinais sempre com uma receita na ponta da língua. A cultura paraense transpira por todos os poros. Quase como um vírus. Belém, miscigenada, mul-ticultural, é retrato fiel do Brasil.

Fotos: divulgação

Parque do Mangal das Garças

Mirante sobre o rio Guamá Poções, mandingas e encantos

Mercado Ver-o-Peso Açaí na tigela e peixe frito com farinha

Estação das Docas

B5CADERNO BGazeta de Alagoas DOMINGO, 06 DE NOVEMBRO DE 2011