literatura

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130 Revista Graphos, vol. 16, n° 1, 2014 | UFPB/PPGL | ISSN 1516-1536 1 DO OLHAR E DE OUTROS OLHARES: A LITERATURA ANGOLANA NA LETRA DE JOÃO-MARIA VILANOVA Marlene Hernandez Leites (UNIT) Resumo: Objetivamos com esse estudo o resgate da obra de João-Maria Vilanova, poeta angolano que faleceu em 2005 e que deixou uma produção literária maioritariamente inédita. Este trabalho se configurou como uma pesquisa de base qualitativa, tendo sido desenvolvido a partir de um estudo de caso que incluiu pesquisadores do Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra. Concluímos que o discurso crítico é legitimador, principalmente por emergir de vozes autorizadas pela Instituição saber/poder, e mesmo estando dentro da mesma Instituição universitária, se constrói de forma diferenciada em função do posicionamento ideológico (isto é, do olhar) do crítico/escritor. Esta investigação me possibilitou perceber também que a questão da raça não é motivo de discussão, embora a da negritude, como conceito político, o seja. Palavras-chave : Literatura africana, identidade, hibridização. Este estudo 1 objetiva, de forma geral, apenas mais um olhar de fora porque de latino-americano, e de dentro, porque de colonizado, no discurso europeu sobre o poeta João- Maria Vilanova, que se suicidou em 2005, no Porto, em Portugal. Tenciona-se, aqui conhecer e avaliar o discurso crítico do colonizador sobre a literatura africana mais especificamente a angolana. Além disso, se propõe ainda a investigar, na medida do possível, quem foi, na realidade histórica e literária de Língua Portuguesa, João-Maria Vilanova e (re)situá-lo na literatura angolana e na cultura portuguesa, refletindo sobre a questão da identidade. A pesquisa é importante não só para questões relativas às práticas discursivas, como também pelo compromisso de resgate que nós, brasileiros (e acredito que também os portugueses), escravistas, temos em relação aos africanos escravizados, além de vislumbrar o registro de uma produção literária africana quase invisível na Literatura de Língua Portuguesa, no Brasil, apesar de uma certa visibilidade que tal produção mantém em Portugal. Não podemos esquecer, é o que se diz, a história comum de colonização portuguesa, que originou traços culturais semelhantes no povo angolano e, por extensão, no brasileiro, integrando-os num contexto cultural mais amplo. A visão comparada, como prática de relações transnacionais, possibilita a identificação de semelhanças e diferenças e aponta as 1 Financiado pela CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) Brasil, em 2013.

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literatura africana

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  • 130 Revista Graphos, vol. 16, n 1, 2014 | UFPB/PPGL | ISSN 1516-1536 1

    DO OLHAR E DE OUTROS OLHARES: A LITERATURA ANGOLANA

    NA LETRA DE JOO-MARIA VILANOVA

    Marlene Hernandez Leites (UNIT)

    Resumo:

    Objetivamos com esse estudo o resgate da obra de Joo-Maria Vilanova, poeta angolano que

    faleceu em 2005 e que deixou uma produo literria maioritariamente indita. Este trabalho

    se configurou como uma pesquisa de base qualitativa, tendo sido desenvolvido a partir de um

    estudo de caso que incluiu pesquisadores do Centro de Literatura Portuguesa da Universidade

    de Coimbra. Conclumos que o discurso crtico legitimador, principalmente por emergir de

    vozes autorizadas pela Instituio saber/poder, e mesmo estando dentro da mesma Instituio

    universitria, se constri de forma diferenciada em funo do posicionamento ideolgico (isto

    , do olhar) do crtico/escritor. Esta investigao me possibilitou perceber tambm que a

    questo da raa no motivo de discusso, embora a da negritude, como conceito poltico, o

    seja.

    Palavras-chave : Literatura africana, identidade, hibridizao.

    Este estudo1 objetiva, de forma geral, apenas mais um olhar de fora porque de

    latino-americano, e de dentro, porque de colonizado, no discurso europeu sobre o poeta Joo-

    Maria Vilanova, que se suicidou em 2005, no Porto, em Portugal. Tenciona-se, aqui conhecer

    e avaliar o discurso crtico do colonizador sobre a literatura africana mais especificamente a

    angolana. Alm disso, se prope ainda a investigar, na medida do possvel, quem foi, na

    realidade histrica e literria de Lngua Portuguesa, Joo-Maria Vilanova e (re)situ-lo na

    literatura angolana e na cultura portuguesa, refletindo sobre a questo da identidade.

    A pesquisa importante no s para questes relativas s prticas discursivas,

    como tambm pelo compromisso de resgate que ns, brasileiros (e acredito que tambm os

    portugueses), escravistas, temos em relao aos africanos escravizados, alm de vislumbrar o

    registro de uma produo literria africana quase invisvel na Literatura de Lngua

    Portuguesa, no Brasil, apesar de uma certa visibilidade que tal produo mantm em Portugal.

    No podemos esquecer, o que se diz, a histria comum de colonizao

    portuguesa, que originou traos culturais semelhantes no povo angolano e, por extenso, no

    brasileiro, integrando-os num contexto cultural mais amplo. A viso comparada, como prtica

    de relaes transnacionais, possibilita a identificao de semelhanas e diferenas e aponta as

    1 Financiado pela CAPES (Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior) Brasil, em 2013.

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    especificidades, traduzidas nos textos, daquelas marcas de percepo de um pertencimento

    negro. O tipo de abordagem foi a comparativa/ contrastiva, j que este trabalho lanou de um

    olhar plural sobre um objeto de estudo heterogneo. Penso que no espao entre a coisa e sua

    representao que reside o ideolgico, pois a linguagem no mais centrada na lngua como

    sistema ideologicamente neutro, mas no discurso que uma instncia da linguagem.

    Assim, uma questo importante se levanta: o que pode JooMaria Vilanova

    acrescentar teoria da literatura, teoria do sujeito e das identidades, literatura angolana e

    s literaturas de lngua portuguesa?

    1 O OLHAR

    O olhar o primeiro sentido que, nos processos de construo identitria e de

    alteridade, nos permite ver a diferena e a ambiguidade, propondo sempre uma nova forma de

    ver o Outro. Para a cincia, s os olhos vendados permitem a delimitao e a fixao das

    relaes estveis, pois o olhar deseja sempre mais do que lhe dado ver. Para Marilena Chau

    (1998) a relao entre ver e conhecer est num olhar que se torna cognoscente e no apenas

    espectador. Quem olha tambm olha de algum lugar. De acordo com Chau, a filosofia da

    viso ensina que ver no pensar e que pensar no ver, que o pensamento no juzo, nem

    enunciados ou proposies, mas, sim, afastamentos determinados no interior do ser e que,

    assim, conceitos no so determinados e as ideias no tm significao completa, seno

    provisria e aberta. Destarte, assim como o visvel tem como fundo o invisvel, o pensado

    habitado pelo impensado.

    O olhar ensina o pensar generoso, pois apanha em si o pensamento de outrem e

    prossegue entrando e saindo de si. Portanto, o olhar no completamente racional, pois ele ,

    antes, emocional, isto , sensvel.

    2 OS DISCURSOS - SONS AUTORIZADOS

    Em relao questo da negritude h sempre uma postura definida do crtico

    literrio. A respeito dos olhares europeus, que aqui tero singular ateno, saliento duas

    posies diferentes: a de Pires Laranjeira e a de Salvato Trigo. Pires Laranjeira(1994) ressalta

    que existe uma vasta bibliografia sobre a negritude de lngua francesa, ao passo que, sobre a

    negritude de lngua portuguesa, sempre pairou um silncio estranho. Sobre a negritude

    literria de lngua portuguesa, o professor afirma ainda que h uma escassez constrangedora

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    de estudos, e os que existem, se expressam, s vezes, por afirmaes infundadas de que a

    negritude praticamente inexistiu. Pires Laranjeira afirma ser a negritude mais extensa e de

    maior profundidade do que tem sido tratada at agora e que

    [...] existiu um discurso do racismo nas literaturas de base universalista negra e, por sua vez, na base da autonomizao literria, a par de outro

    discurso regionalista-nacional [...] por necessidade de afirmar a

    universalidade do homem negro perante a particularizao e memorizao feita pelo homem branco. A afirmao ostentatria do negro e a criao de

    um universo referencial negro aprofunda na diacronia e no discurso literrio

    em novo paradigma: o da literatura negra.(Pires Laranjeira,1994, p.500)

    Para ele, um novo paradigma prepara a instaurao e reconhecimento das

    literaturas nacionais nos anos 60. Essa posio contrria de Salvato Trigo, que nega a

    existncia da negritude, posio esta considerada por Pires Laranjeira como uma tese

    insustentvel.

    A tese de Pires Laranjeira a

    [...] de que a negritude tanto se baseia na assimilao do cnone

    negritudinista como em procedimentos gerados por contextos similares

    desde a lngua francesa. Para se afirmar como discurso autnomo, o discurso do negro (do homem e da cor) tem duas vias: a da ideologia [...] a do

    concreto do seu mundo (a poesia substitui e glosa o modo da narrativa). O

    primeiro sutil; o segundo, ostensivo (Pires Laranjeira 1994, p.12)

    Pires Laranjeira entende a negritude como o discurso potico do negro, ou seja, o

    modo de o negro tomar a palavra em si e, atravs dela, assumir o discurso da diferena:

    Negritude, nova linguagem esttica que procurou pela ideologia subverter o maniquesmo

    eurocntrico e brancfilo.(Pires Laranjeira 1994,p.11) No entanto, apesar da negritude,

    enquanto movimento literrio, ter produzido um especfico policdigo literrio, "nunca foi

    abordada no mundo da lngua portuguesa, a no ser, repita-se, muito episdica e

    fragmentariamente.( Pires Laranjeira 1994,p.157)

    Curioso o sentido diferencial de literatura colonial, esclarecido pelo autor:

    [...] diferente do indicado pela mesma expresso no Brasil. Em frica

    significa a literatura escrita e publicada, na maioria esmagadora, por portugueses de torna-viagem, numa perspectiva de exotismo, evasionismo,

    preconceito racial e reiterao colonial e colonialista. (Pires Laranjeira

    1994,p.185)

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    Os africanos se uniram poltica e culturalmente, numa estratgia frontal perante o

    colonialismo. Para l das diferenas, agruparam-se por serem colonizados, negros ou

    mestios, sem que exclussem africanos brancos, e essa dupla condio racial marca-lhes os

    textos. Em sua escrita literria, os africanos buscam uma revalorizao cultural, envolvendo

    um passado urbano e rural, principalmente aquele anterior colonizao europeia, atravs de

    referncias ancestralidade, a fim de estabelecer uma identidade cultural, tnica e continental.

    Apesar de branco e europeu, possvel identificar uma presena fraterna no olhar

    de Pires Laranjeira, quando reconhece a busca da negritude pelo colonizado. Ele diz que o

    colonizado assume um discurso solidrio de pertena continental, salientando que "O mundo

    construdo ou indiciado pelo colonizado que predicador, predicatrio ou predicatado muda

    o sentido da identidade da literatura, tornando-a, pela primeira vez, negra. (Pires Laranjeira,

    1994,p.523) No entanto, apesar de Laranjeira reconhecer a luta dos africanos colonizados

    (angolanos, brancos ou mestios) em busca de sua identidade cultural, referindo-a, ao mesmo

    tempo, como continental, o pesquisador nega sua diferena em relao aos outros pases da

    frica.

    J, Salvato Trigo (1981), diferencia a literatura negra da africana, deixando claro

    a hibridez desta ltima. A posio defendida por ele a de que o lugar da literatura africana,

    para as novas geraes literrias e para os crticos e literatos africanos, situa-se na anlise do

    valor e da beleza do texto, independentemente da autoria. Isso me parece uma forma de

    preservar e justificar a viso do branco como colonizador cultural, pois, at certo ponto, nega

    as razes, o passado dos negros. Acrescenta ainda que um crtico ocidental no poder

    explicar a literatura negra de Lngua portuguesa, a no ser utilizando para ajuizar os textos

    critrios eurocntricos,

    Na verdade, o nico mtodo rigoroso e isento que ns, crticos de formao

    cultural ocidental, podemos usar para determinar a pertena africana dum

    texto emitir sobre ele juzos apreciativos, e at mesmo valorativos, o que

    pesquisamos e demonstramos a existncia, nele, de elementos pertencentes inequivocadamente ao mundo cultural africano e a 'textologia' africana, que

    [...] difere da ocidental. (Salvato Trigo,1981,p.121)

    No texto literrio africano, busca-se a diferena. A"palavra" a "[...] base

    existencial do homem africano no seu relacionamento com a comunidade a que pertence(

    Salvato Trigo,1981,p.128) O autor se posiciona contrrio a uma crtica literria que se

    pretenda universal, pois as formas de expresso e criatividade potica distintas das do homem

    ocidental, escapam nossa teoria literria. Diz que a 'diferena' tem de ser esttica, em

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    sentido estrito, e no 'ideolgica', nacionalista ou poltica. A expresso verbal, a fala literria,

    o elemento diferencial distintivo da esttica2 literria africana.

    Para Salvato Trigo, "raa" um conceito meramente cultural e nunca biolgico:

    "A literatura africana moderna, no aceita ser classificada em funo da cor de pele de seus

    produtores. [...] Se antes o colonizador era de cor diferente da do explorado, hoje, so

    ambos da mesma cor. [...] A africanidade [...] reside nos textos, no nos seus

    produtores(Salvato Trigo,1981,p.35) Por outro lado, baseia-se em Sartre para dizer que: As

    lnguas europeias da colonizao bastaro ao colonizado como lngua de comunicao [...]

    mas sero impotentes para funcionarem como lnguas de criatividade potica.(SalvatoTrigo

    1981,p.42)Nesse sentido, Salvato Trigo refere ainda que a falta de "purismo" nos contatos

    dos colonizadores com os colonizados os conduziu (como estrangeiros) a um intercmbio

    scio-cultural mais ou menos profundo, que se prolongou e utilizou um instrumento

    privilegiado de desenvolvimento, o discurso mestio, que deixamos criar livremente at o

    sculo passado(Salvato trigo,1981,p.18) Como se v, parece que o autor defende as marcas

    positivas deixadas pelo colonizador com sua autorizao. Trigo conclui, no entanto, que as

    literaturas africanas de Lngua portuguesa criaram uma lngua prpria, cuja autonomia em

    relao lngua literria portuguesa se afirma e se constri nos mundos "psico-scio-

    culturais" que ela capaz de estruturar:

    A 'fala' das literaturas portuguesa, brasileira, cabo-verdiana, angolana,

    moambicana, so-tomense e guineense, obviamente, distinta. bvio tambm que esses povos tm, sem dvida, uma lngua comum, mas no

    usam a mesma 'linguagem'. (Salvato Trigo 1981,p.71)

    A proposta de Salvato Trigo de uma anlise "antropolgica/etnogrfica" que

    permitiria compreender a variao cultural existente entre diversos tipos de textos produzidos

    na mesma lngua.

    Concordo com Salvato Trigo sobre a dificuldade de uma leitura das literaturas

    africanas, tendo em vista que no h ainda uma teoria que d conta de questes especficas

    ligadas cultura africana. Por outro lado, ainda temos a conscincia de sermos construdos

    pela cultura ocidental, branca, que forma tambm o leitor e o crtico, mesmo o africano. No

    entanto, a justificativa de que devemos nos basear em critrios estticos eurocntricos vai

    2Uma questo que me surpreendeu foi a constatao de Salvato Trigo em um de seus ensaios sobre a migrao

    esttica: "[...] no espao literrio da Lngua Portuguesa, no h unilaterismo nas relaes. Quer dizer que, se em determinado momento histrico do passado a migrao esttica foi no sentido Europa - Amrica - frica, modernamente ela faz-se muito mais, ou quase s, no sentido Amrica - Europa - frica. Em Ensaios de

    literatura comparada: Afro-Luso Brasileira, O que ele explica, originariamente, como sendo uma busca da 3

    gerao, que est na Amrica, de uma identidade que se inicia atravs da msica.

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    apenas reforar a ideologia da cultura branca, negando uma produo cultural particularizada.

    Tambm como Pires Laranjeira, Salvato Trigo, em alguns momentos, quando considera o

    lugar da literatura africana, enquanto um locus continental, ignora a diversidade que compe

    aquele continente. Enfim, a partir destes discursos podemos perceber que a noo de sujeito

    perde seu centro e passa a se caracterizar pela disperso, por um discurso heterogneo que

    incorpora e assume diferentes vozes sociais.

    2 O CONTEXTO

    Segundo Pires Laranjeira (1997) o desenvolvimento das literaturas africanas de

    lngua portuguesa se deu em relao direta com a construo do ideal nacionalista no discurso

    a partir do primeiro livro impresso em 1849. A transio do mundo negro para o africano se

    d quando a escrita substitui a fala. A literatura oral se constitua de contos, lendas, fbulas e

    de um conjunto de tradies culturais prprias do mundo negro. Pires Laranjeira, no texto

    intitulado Literaturas africanas de expresso portuguesa (1994), reconhece que o estudo das

    literaturas africanas ainda est numa fase de reconhecimento e estabilizao. O primeiro livro

    impresso na frica foi em Angola, Espontaneidades de minha alma (1849), poemas de Maia

    Ferreira. A partir da, pode-se dizer que a literatura angolana paradigmtica, modelo de

    irradiao para as restantes literaturas africanas, ainda que cada uma mantenha seu percurso

    especfico. No entanto, Pires Laranjeira (2001) chama a ateno para o fato de que, no caso da

    Angola, ainda que se trate de uma nao paradigmtica para as outras literaturas africanas,

    seus escritores ainda so desconhecidos dos portugueses, mesmo parecendo contrrio ao leitor

    desprevenido, que bombardeado com tanta lusofonia eufrica (Pires Laranjeira

    2001,p.26).

    Alguns escritores se tornaram clssicos na literatura angolana, entre eles Pepetela,

    que participou na luta pela libertao de Angola e ganhou o prmio Cames. Tambm

    Agostinho Neto, militante socialista e pertencente corrente prometeica de liberdade para as

    literaturas africanas, no deixa de ser um clssico contra o cnone ocidental, [...] s vezes

    dele se aproveitando, nele se deleitando, e sendo por ele reconhecido (Pires Laranjeira, 2001,

    p. 32).

    Boaventura de Sousa Santos (1997) afirma que, do ponto de vista cultural, os

    pases africanos e o Brasil nunca foram colnias plenas, pois a cultura portuguesa, fiel sua

    natureza semiperifrica, estendeu a eles a zona fronteiria, permitindo a passagem de acesso

    s culturas centrais|.

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    No entender de Cuti (2010), no podemos atrelar a literatura africana brasileira

    atravs da ideia de afro-brasilidade, termo que, atualmente, est em voga na crtica literria,

    pois este conceito pode sobreviver sem o negro. Ser afro no implica necessariamente em ser

    negro e, dessa forma, o racismo no atinge aquele sujeito de pele escura e que sofre

    discriminao. A literatura africana no se assume como negra (Cuti 2010,p.36), e no

    combate o racismo brasileiro. Alm disso, a continentalizao africana da literatura faz com

    que se negue, de certa forma, a singularidade esttica literria, que compe a diversidade nas

    fricas.

    Por outro lado, h, tambm, o olhar de Carmem Lcia Tind Secco, que diz

    observar, na histria da Colonizao portuguesa, tanto em frica quanto na Amrica, um

    bloqueamento da memria cultural, por fazer parte da rota da conquista, acarretando uma

    paralisia do lembrar, uma amnsia das tradies (Tind Secco, 2000, p. 39). Apagaram-se

    os laos de uma identidade cultural. O mar, que era a morada de mitos e deuses africanos,

    tornou-se portugus, por ser domnio de vultos e heris cultuados pelos invasores. Foi

    silenciada a oralidade dos nativos. A histria de Angola foi de guerra e revoltas. E a poesia

    africana colonial, por seguir paradigmas europeus, descaracterizou-se e desenvolveu-se

    utilizando metforas grandiloquentes. Utilizou-se a forma lusitana de versejar com smbolos

    ditados por Portugal. Somente no incio do sculo XX, em frica, veremos uma poesia

    voltada para o nacional, ainda assim com uma viso romntica de descrio de paisagens e

    louvao Ptria. Na segunda metade do sculo XX, a poesia produzida nas colnias

    portuguesas em frica rompe com essa viso pitoresca em relao ao continente africano e

    ressemantiza metaforicamente o mar como smbolo do inconsciente coletivo ancestral(Tind

    Secco, 2000, p.47).

    Existem, segundo Tind Secco, dois tipos de poesia: a urbana angolana, que se

    volta para o mar, e a outra, das etnias fixadas longe do litoral, que cultuam as tradies e que

    temem o oceano por associ-lo mitologicamente com a morte. De qualquer maneira, nos

    textos que analisei, no se fala sobre raa, esta no uma questo fundamental para uma

    grande parte de autores em frica, mais especificamente em Angola.

    Joo-Maria Vilanova foi um escritor comprometido, na viso de Laranjeira, com a

    frica toda, no s com a Angola. Ao analisar o texto de Joo-Maria Vilanova, Laranjeira

    pede que no se pergunte quem (no) foi Joo-Maria Vilanova, mas simplesmente leia seus

    textos (Pires Laranjeira, 2004).

    [...] esquea quem (no) foi Joo-Maria Vilanova ( Pires Laranjeira 2004, p. 7).

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    Nesse dizer singular e propositadamente imperativo, Pires Laranjeira pretende

    demonstrar que, na anlise da obra de Joo-Maria Vilanova, o que interessa o texto, o

    poema, j que nem o autor se quis presente. Ele acrescenta que Vilanova demonstrou uma

    angolanidade nacionalista, para alm de ser anticapitalista e anti-imperialista; foi um

    revolucionrio terceiro-mundista, libertrio, fraterno, igualitrio, que fez um percurso anti-

    colonial na luta pela independncia.

    Poeta da modernidade, o seu campo literrio foi o angolano, claramente escrito e

    lido ( Pires Laranjeira 2004, p.8). No teve, no entanto, a audincia que merecia. Foi

    contido, criativo e inovador com um discurso carregado de resistncia, histria e denncia.

    Se, em determinado momento, o pseudnimo usado por Joo-Maria Vilanova era

    para proteger o autor das autoridades coloniais, em outro, quando j liberto, serviu para

    denunciar a explorao imperialista. Na viso de Laranjeira, o que interessa que, nos

    escritos de Vilanova, h uma angolanidade inequvoca, que se justifica pela composio de

    poemas que seguem a tradio angolana, nomeadamente atravs de marcas de historicidade

    percebidas na descrio da guerrilha, da explorao empresarial, dos massacres, entre outros

    aspectos da singular poiesis desse escritor angolano. Todas essas marcas evocam, na poesia de

    Joo-Maria Vilanova, o retrato de um estado imposto ao colonizado, categoria social que , na

    maioria, composto por negro e mulato, sendo, portanto, diferente da colnia da qual ele, de

    certa forma, fez parte porque era branco e portugus.

    De acordo com Pires Laranjeira (2004), para JooMaria Vilanova, assim como

    para outros autores, como Jos Luandino Vieira, Mia Couto e Mutimati Joo Barnab,

    considerados por ele como guerrilheiros da palavra, a inovao, a criatividade, a inveno e a

    revoluo se do no discurso literrio do poeta, a partir de uma viso de mundo que traduz

    uma prtica marcada por uma cultura de afrontamento ordem estabelecida, tanto a literria

    quanto a social e poltica.

    J Macedo (2004) aponta em Vilanova a utilizao de uma linguagem recheada de

    lxico da lngua kimbundu e de um portugus que associa a norma interferncia dos falares

    angolanos. Como Antonio Jacinto, Luandino Vieira, Arnaldo Santos, Boaventura Cardoso e

    Jofre Rocha, Vilanova

    [...] abraa com alma e corao patrcio as falas populares suburbanas da

    cidade de lngua verncula. Trata-se inequivocadamente de postura

    militante, em tempo de cicio, uma vez que as autoridades retiravam o direito de cidade a quem ousasse pisar a risco em matria de corruptela da lngua original de Cames (Macedo 2004, p.6).

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    3 O AUTOR

    Joo-Maria Vilanova, pseudnimo literrio de Joo Guilherme Fernandes de

    Freitas, cuja produo literria foi aqui tomada como corpus de estudo, viveu, entre 1933 e

    2005, deixando contos e poemas inditos, assim como uma correspondncia com um

    interessante vis literrio e cultural. Fez seus primeiros estudos na Misso Catlica de So

    Paulo, em Luanda. Nessa mesma cidade cursou o Liceu. Foi funcionrio pblico no leste da

    colnia. Publicou trs livros de poesia angolana: Vinte canes para Ximinha (1971) com o

    qual ganhou o Prmio Literatura Motta Veiga, e em cuja cerimnia de entrega no

    compareceu j que o poeta sempre optara pelo anonimato; Caderno dum guerrilheiro (1974),

    edies Kalema, poemas que, em sua maioria, foram escritos entre novembro de 1971 e

    agosto de 1973 (ambos antes da libertao de Angola) e Mar de minha terra & outros poemas

    (2004) obra que, por sua vez, foi publicada aps a independncia de Angola, pela

    Kilombelombe. Destaco, no entanto, para no ser imprecisa, que o poema Mar de minha

    terra - Maresia-Mar - primeiro poema publicado no livro Mar da minha terra & outros

    poemas, comeou a ser escrito em setembro de 1973 e foi concludo em setembro de 1987.

    Portanto, este texto comeou a ser escrito antes da libertao da Angola. Todas as publicaes

    foram em Luanda. Alm destes, deixou textos dispersos e obra na gaveta, pronta ou quase

    pronta para publicao, bem como ensaios, dentre os quais est Para uma interpretao da

    poesia de Aim Csaire, edio do autor, de onde se conclui ser Joo-Maria Vilanova um

    autor iniciado nas lides literrias.

    Poeta e ensasta, Joo-Maria Vilanova foi diretor da revista Ngoma (Luanda,

    1974), revista que teve apenas uma edio publicada. Com exceo dos colaboradores que l

    esto identificados nessa edio nica, todos os artigos restantes foram produzidos pelo

    prprio Vilanova, que, para isso utilizou vrios pseudnimos. Alm disso, existem

    publicaes esparsas na Revista Cultura II, em Angola, Brasil e tambm de outros pases da

    Amrica Latina.

    Embora Jorge Macedo, no Prefcio de Mar de minha terra & outros poemas,

    saliente que Joo-Maria Vilanova tenha nascido em Angola, a verdade que esse escritor

    nasceu em Portugal, sendo considerado poeta angolano porque assim se quis e se fez. Viveu

    um tempo em Angola. No foi entrevistado e nem fotografado. S os mais ntimos sabiam

    quem de fato ele era: branco e portugus. A utilizao do pseudnimo denuncia, a meu ver,

    algum que se sabe portugus e branco, mas que, no texto e na linguagem literria, assume

  • 139 Revista Graphos, vol. 16, n 1, 2014 | UFPB/PPGL | ISSN 1516-1536 1

    uma identidade africana. Foi advogado e Juiz de Direito, o que lhe trouxe conhecimento da

    realidade de Angola. No h nada em seu texto que identifique traos de Portugal.

    Presume-se, de acordo com Pires Laranjeira (2001), que JooMaria Vilanova

    tenha criado um pseudnimo por necessidades polticas. Aps a independncia, deixou

    Angola para viver em Porto. Pires Laranjeira possui uma grande parte do esplio do autor e

    continua trabalhando no resgate de sua obra. Para tanto, criou um grupo de pesquisa na

    Universidade de Coimbra, no qual aglutina e coordena pesquisadores interessados nos textos

    de Joo-Maria Vilanova e em cujo projeto de investigao eu tambm me incluo. Pires

    Laranjeira, aps ter analisado grande parte da obra de Vilanova, afirma no ter dvidas de que

    esse poeta faz parte do patrimnio literrio angolano.

    4 OS POEMAS

    Joo-Maria Vilanova, como referido anteriormente, assina trs volumes de

    poemas: Vinte canes para Ximinha (1971), Caderno dum guerrilheiro (1975) e Mar da

    minha terra & outros poemas (2004). Se, na segunda obra, o engajamento poltico toma um

    primeiro plano, representado por um eu potico africano colonizado que se revolta diante da

    situao histrica de sua nao, em Vinte canes para Ximinha, a dimenso poltica d lugar

    a um outro tipo de engajamento: aquele que se debrua sobre a condio humana, em especial

    aquela especfica da Angola enquanto colnia.

    O primeiro conjunto de poemas que se apresenta aqui constitudo por seis

    canes. Nelas, a msica ausenta-se e, em seu lugar, o poeta faz uso de versos que obedecem

    a uma cadncia varivel, que tambm no se pode relacionar com a ideia de simples

    coloquialismo. O corte dos versos pode-se dizer, remete a uma espcie de cismar de um eu

    que, colocado enquanto um observador atento das realidades (sofrimentos) vivenciadas pelas

    personagens dos poemas, narra-as em um ritmo prprio: o de quem observa, sente, reflete

    acerca do (e tambm se reflete no) que v. Veja-se Cano da fruta amarga:

    s seis da tarde

    Dominga foi esperar

    comboio do Bungo mas Beto no chegou.

    Esperou na soleira ao frio sob a lmina azulada da noite

    acordada t de manh. Mas Beto no chegou.

  • 140 Revista Graphos, vol. 16, n 1, 2014 | UFPB/PPGL | ISSN 1516-1536 1

    At que Zefa

    que sempre vendera fruta amarga trouxe ela mesma a notcia:

    Beto cara esmagado

    no poro

    do navio holands.

    No poema, h um percurso que vai da espera frustrao, da expectativa ao

    sofrimento. A personagem que espera algum querido a chegar no trem de Bungo (estao

    prxima ao porto de Luanda), que espera a noite inteira crendo na chegada , tem como

    desfecho da esperana a dor e o fim. A fruta amarga aparece como imagem da notcia da

    morte e a personagem que a carrega est acostumada a lev-las: a fruta amarga a notcia da

    morte.

    Esse campo temtico, composto pela oposio entre a esperana e a frustrao, a

    dor e a morte, recorrente nesses poemas e ir aparecer com intensidade em Cano duma

    tera-feira de entrudo:

    Nesse carnaval

    a gente veio na rua manh cedo

    com xingufos dicanzas

    ou putas no gostoso sambar

    do movimento.

    Nesse carnaval

    quando j noite

    em casa regressvamos

    Vov tinha morrido.

    Neste poema, o binmio antittico esperana/frustrao amplificado pelo modo

    como o texto se estrutura. Ope-se alegria representada pela festa carnavalesca, com a

    descrio de seus instrumentos tpicos, e essa oposio se d com o corte efetuado pelo verso

    de desfecho, no qual a morte encerra o poema e tal alegria com a instaurao do campo da

    negatividade.

    A dimenso poltica e histrica aparece em Cano do navio negreiro, poema

    que, apesar de apresentar um diferencial no que diz respeito referncia histrica, mantm a

    oposio entre a alegria e a negatividade. Neste texto, essa negatividade no representada

    diretamente pelo evento da morte, mas pela referncia injustia histrica que aparece como

    parte da brincadeira das crianas:

    Depois da chuva

  • 141 Revista Graphos, vol. 16, n 1, 2014 | UFPB/PPGL | ISSN 1516-1536 1

    os meninos em bando

    largavam a lagoa

    vinham brincar a navegao. Do pequeno porto

    saiam ento gasolinas dongos

    navios de grande calado at

    feitos uns de bimba mafumeira

    outros de tampa

    de carto. Vov Bartolomeu

    gostava de parar

    a olhar esses navios

    como quem em maravilha estivesse vendo

    sei l

    um mar todinho de verdade. um dia Juca do Mulato

    lhe procurou

    que barco era esse navegando ao largo

    com formiges na proa

    e grandes velas

    pandas. Esse - disse o velho coando

    o queixo - mesmo

    navio negreiro.

    O estranhamento e a revelao provocadas nos versos acima explicitam-se na

    percepo da semelhana entre o brinquedo infantil e os histricos navios de transporte de

    escravos da frica. A negatividade referida no est presente diretamente na cena que se

    representa, mas na leitura que as personagens fazem dela: o olhar do sujeito, talvez j

    condicionado a enxergar a dor, enxerga um dos smbolos histricos da existncia desta em seu

    povo.

    O pice da tematizao da inevitvel frustrao ou sofrimento se d

    exemplarmente em dois poemas: Cano duma tarde qualquer e Cano-fala das

    mulheres de luto. Ambos apresentam o mesmo mote da inevitabilidade da frustrao e do

    sofrimento, mas constroem-se de formas diversas. Em Cano-fala das mulheres de luto o

    arraigamento dor representado imageticamente pela aderncia mortal de uma teia de

    aranha:

    Entre o voo e o voo

    traioeiro o visgo.

    Eis que tua teia o gesto lentamente nos reteve

    a ns

    que no amanhar cuidados

  • 142 Revista Graphos, vol. 16, n 1, 2014 | UFPB/PPGL | ISSN 1516-1536 1

    (nosso arimo)

    haurimos

    afinal safra ruim.

    Longas

    Longas so as estradas Onde a memria se consome.

    Essa prevalncia da frustrao sobre o xito e a instaurao da desesperana

    (haurimos/afinal/safra ruim) amplifica-se no poema pela repetio, no terceto final, do

    adjetivo longas, que caracteriza as estradas da memria: a imobilidade e a dor do fracasso

    so velhas conhecidas. Nesse contexto, posso inferir que o luto referido no ttulo do poema

    talvez se deva prpria inevitabilidade da vivncia do malogro.

    Em Cano duma tarde qualquer, pode-se ler uma cena vivenciada por um

    provvel sujeito no qual essa imobilidade provocada pela conscincia do fracasso vindouro ,

    de forma inusitada, plasmada em uma cena que retrata o movimento: o poema narra o esforo

    solitrio de uma anci que percorre um caminho difcil at um bar:

    Em S. Paulo da Misso

    quando o sol se apagava

    na areia vermelha (nos fundos por trs da quitanda)

    a negra Arminda abria devagar

    a cancela de madeira

    e sozinha

    sem ajuda de ningum

    ia no Burity ou no S Santo beber.

    Muitas vezes ela t ficando

    tarde toda

    sentada na esteira os olhos longamente postos

    no vago

    contando

    histria de tempo antigo em jeito de assombrao.

    A garotada em roda dela escuta s.

    E suspensa v

    v mesmo correr a vida

    nos olhos sem vida

    da velha Arminda.

  • 143 Revista Graphos, vol. 16, n 1, 2014 | UFPB/PPGL | ISSN 1516-1536 1

    Era assim

    Em S. Paulo da Misso.

    Novamente, o corte dos versos, embora sem garantir musicalidade alguma a essas

    canes, adquire importncia fundamental na construo do poema. O esforo de Arminda

    para chegar ao bar e entregar-se ao lcool representado por versos curtos cadenciados: a

    negra Arminda abria devagar/a cancela/de madeira/e sozinha/sem ajuda de ningum/ia no

    Burity ou no S Santo/beber. No ltimo destes versos, o verbo beber enfatizado, bem

    como ocorre com o local do olhar de Arminda - no vago -, na estrofe seguinte. O dstico final

    fixa a ideia de continuidade do ato e, por extenso, da prpria desistncia nele implicada.

    A sexta e derradeira cano aqui selecionada de Vinte canes para Ximinha um

    poema de exceo:

    Cano das primeiras chuvas

    Ela chegou hoje, NZambi os cabelos crespos

    sob a noite inundando o ventre da terra.

    Ela chegou hoje, NZambi e descala percorreu nossas lavras

    massambala (cereal) e milho

    crescendo lado a lado.

    Ela chegou hoje, N Zambi nossos filhos brincaram-lhe os joelhos

    tal como antigamente ns fazamos.

    Ela chegou hoje. Obrigada Deus obrigado.

    Cano das primeiras chuvas ope-se aos demais textos aqui referidos tanto

    pela mudana do campo semntico predominante, que, neste poema, passa a ser o da

    esperana provocada por uma anteviso da boa sina (a chuva = promessa de boa colheita),

    quanto pelo fato de ser, enfim, uma cano dotada de alguma msica. Veja-se, a exemplo, a

    repetio em refro do verso inicial, seguida nas trs estrofes iniciais, pela descrio da ao

    da chuva no poema, fmea de cabelos crespos que torna a outra, a terra, fecunda e que traz

    alegria ao povo.

    O comprometimento poltico assume o primeiro plano nos poemas que compem

    Caderno dum guerrilheiro (1975). Neste, o eu potico caracterizado enquanto um africano

  • 144 Revista Graphos, vol. 16, n 1, 2014 | UFPB/PPGL | ISSN 1516-1536 1

    matizado pela opresso do colonizador europeu. Nele, figura a revolta e expe-se o

    sofrimento da condio de indivduo oprimido, metonmia de um povo destitudo de liberdade

    e, ainda, esboa-se a reao que, nascida desse sofrimento, justifica o guerrilheiro do ttulo:

    O cacto

    Rosto onde a lgrima Contida lana

    Em lana se transforma

    Cacto: povo armado

    O cacto, por si, constitui uma imagem mpar da resistncia, j que uma planta

    capaz de sobreviver em condies climticas extremas. O sofrimento do povo frente aridez

    da opresso, suas lgrimas, convertem-se em espinhos que simbolizam a necessidade de

    reao. Essa utilizao de elementos da natureza local e tambm, com frequncia, de

    expresses da lngua kimbundu (de Luanda), trao recorrente no poema.

    Em As hienas, a figura desse predador que ataca em bandos representa a chegada

    daqueles que violam a terra africana:

    descem nos kimbos

    quando que inerte a noite dorme

    e dos monas

    seu chorado

    sabem

    roam nas portas

    roam nas portas

    condevagar

    (da morte

    Na roa

    eriado rumor)

    e o luto kukunam

    e o luto kukunam

    na terra violada

    O colonizador pintado como fera traioeira que invade em bando as aldeias

    (kimbos) noite e ameaa a vida dos filhos (mu+ana= monas: filhos) africanos. O poema

    fecha-se com a dor da morte na terra. Essa construo imagtica que recorre a elementos da

    natureza, presente em O cacto e em As hienas, d lugar a uma linguagem mais direta nos dois

    poemas que se apresentam a seguir:

    Civilizao

  • 145 Revista Graphos, vol. 16, n 1, 2014 | UFPB/PPGL | ISSN 1516-1536 1

    Eles desembarcaram

    Suas cruzes

    Turbulos Instrumentos de medio

    nos ventos

    E vindo

    E vendo ( frequente)

    Que caa & pesca rareavam

    Entre nuvens de incenso Vozes

    Luzes

    Desataram nos caar Piedosamente

    O guerrilheiro

    o guerrilheiro conhece os problemas do povo

    o guerrilheiro o guerrilheiro sofre o sofrimento do povo

    o guerrilheiro

    o guerrilheiro alegra das alegrias do povo

    o guerrilheiro...

    Esses dois poemas podem ser lidos como os pontos extremos da situao de

    colnia, isto , sob a perspectiva do homem colonizado. Civilizao marca a imposio

    violenta dos ditames do opressor/colonizador, aqui representada pela extrema barbrie

    (Desataram nos caar) que, no poema, revestida pela sutileza do verso de desfecho,

    coerente com o ttulo do poema (Piedosamente) e com certo verniz histrico, que tende

    sempre a matizar as naes colonizadoras como salvadoras de povos atrasados. Civilizao

    representaria, na leitura proposta, o ponto inicial, de total subordinao ao poder do opressor3.

    O seu extremo oposto o poema O guerrilheiro, que representa a insubmisso e

    a revolta. Nele, a figura do guerrilheiro construda atravs de sua identificao com o povo.

    A repetio da estrutura dos versos, com pequenas variaes, somada s reticncias que o

    encerram, amplificam essa construo da identidade, transformando o poema em um

    verdadeiro levante contra o servilismo.

    A leitura crtica do processo de colonizao efetuado pelos europeus torna-se

    abrangente em Colombo no Caribe, do livro Mar da minha terra & outros poemas (2004):

    Colombo no Caribe

    Colombo

    3 claro que construdo com incisiva ironia, como fica explcito na segunda estrofe do poema e, ainda,

    na inteligente quebra do verso final, que destaca o advrbio piedosamente.

  • 146 Revista Graphos, vol. 16, n 1, 2014 | UFPB/PPGL | ISSN 1516-1536 1

    ele chegou

    no Caribe

    viu os ndios e falou assim

    quero ouro

    os ndios lhe deram ouro

    viu mais ndios

    e falou assim quero ouro

    os ndios lhe deram ouro

    ..............................

    Depois

    ele Colombo

    pegou do ouro

    que os ndios lhe deram fez

    duns tantos deles

    escravos e levou tudo

    pros reis da Espanha

    por entre bnos do papa

    e o brilho cintilante

    dessa palavra

    Civilizao

    Teve

    porm o cuidado

    ele Colombo

    de deixar ficar l no Caribe

    a clera

    a varola

    a gripe o sarampo

    a tuberculose

    e a sfilis

    por isso mesmo que

    A Cria Romana

    por trs vezes por trs vezes

    tentou fazer dele

    colombo santo. (1992)

    Nesse poema, a palavra civilizao adquire a mesma carga semntica presente

    no poema que carrega esse nome em Caderno dum guerrilheiro, estando associada s

    heranas de destruio deixadas pelos colonizadores. No caso especfico de Colombo no

  • 147 Revista Graphos, vol. 16, n 1, 2014 | UFPB/PPGL | ISSN 1516-1536 1

    Caribe, as pestes trazidas pelos europeus aos amerndios so listadas dramaticamente na

    segunda estrofe aqui exposta do poema.

    Chama a ateno, sobretudo, o conjunto que encerra o poema, que apresenta como

    consequncia desse legado sombrio (a clera/a varola/a gripe/o sarampo/a tuberculose/e a

    sfilis), as tentativas de canonizao da figura histrica de Cristvo Colombo. Veja-se, em

    especial, a repetio do verso por trs vezes, que frisa um nmero to caro cultura

    judaico-crist, em uma realidade to avessa s premissas do cristianismo.

    Em Mar da minha terra & outros poemas, o primeiro poema, intitulado Mar de

    minha terra Maresia Mar comeou a ser escrito em setembro de 1973, em Luanda, e foi

    concludo em setembro de 1987, na Alemanha. Mas permaneceu indito, porque s foi

    publicado em 2004 (ps-independncia de Angola). Nele, conforme ilustram alguns excertos

    apresentados a seguir, ocorre o aprofundamento de dois traos presentes nos livros anteriores:

    a utilizao da lngua kimbundu associada, de forma inusitada, com a tematizao de

    elementos que transcendem a histria angolana, mas com ela se identificam. Tais elementos

    se relacionam condio colonial e ao sequestro, ao trfico e escravido de africanos nas

    colnias:

    O mar rugindo

    Cncavas suas Kalema

    Noite

    A cara fechada

    No paredo Do molhe

    (linha-nankim defronte

    Mazanga ilha-nzimbu) ...............................

    Porta do sonho

    Sempre ele o mar

    tem vozes outras

    dentro nele

    mar Carregar

    descarregar

    parto mame

    lua que vem

    lua que vem

    juro Sangue-Cristo

    Juro

    vou voltar t esqueo que nada Manana

    vou tu a-mar

    .....................

  • 148 Revista Graphos, vol. 16, n 1, 2014 | UFPB/PPGL | ISSN 1516-1536 1

    O mar

    Kalunga o mar

    O odiado mar da partida

    canaviais

    cafezais

    cacauzais seringais

    algodoais

    bananais folha de fumo

    folha de fumo

    Alabama

    Missipi Virgnia

    Antigos coros de escravo

    Sons de blue Ecos de gospel

    Caribe

    La Habana Recife

    S. Salvador da Bahia

    Trezentas e tantas igrejas

    Orix Oxal

    Xang

    Iemanj Rainha do mar

    o mar

    o mar o ansiado mar

    da chegada...

    Na 2 parte de Mar da minha terra & outros poemas, o guerrilheiro do livro de

    1975 cede ao poeta, nos versos a seguir, seu lugar de figura representativa da resistncia:

    o poeta vestido a rigor

    o poeta pondera o fato o poeta transcende o fato & a notcia

    o poeta sem astcia

    o poeta sempre sempre com alguma malcia

    os racistas temem o poeta

    os golpistas temem o poeta os inimigos do povo oh

    esses temem o poeta

    o poeta sem teto o poeta sem tacto

    o poeta vestido a rigor

    em seu cadver putrefacto. (1992)

  • 149 Revista Graphos, vol. 16, n 1, 2014 | UFPB/PPGL | ISSN 1516-1536 1

    Porm, o poeta, pintado como figura ameaadora, que causa temor a todos os

    inimigos do povo e da liberdade, aparece j morto, em putrefao. H a o retorno da

    negatividade que marcou Vinte canes para Ximinha: se, em grande parte desses poemas, a

    promessa da colheita era ceifada pela safra ruim, e a alegria da festa extirpa-se pela morte, em

    o poeta vestido a rigor, a figura poderosa construda no desenvolver do poema mostra-se

    inerte em seu desfecho, incapaz de qualquer ao contra aqueles a quem causara temor.

    5 A QUESTO DA IDENTIDADE OU A IDENTIDADE EM QUESTO?

    O conceito de identidade funciona, no meu entendimento, como algo que tem o

    significado de unidade e permanncia. Com isso, dentro de uma viso dialtica, a identidade

    tida como algo que contm a igualdade e, portanto, a diferena. Igualdade significa

    diferenciar-se dos outros.

    Neste estudo, vou transitar no conceito de identidade apenas para me aproximar

    do lugar e do tempo do autor.

    De uma forma geral, entendemos identidade cultural como o conjunto de valores

    de um indivduo na sua relao com o grupo ao qual pertence, seus valores e tradio, sua

    partilha de patrimnios comuns, como lngua, religio, cultura e costumes. No caso angolano,

    as elites culturais e polticas, unidas pelo ideal de construir e partilhar um territrio,

    visionaram a construo de um Estado independente. O discurso para a edificao deste

    Estado esteve relacionado com o desejo de estabelecer uma cultura nacional, que constri

    identidades entre o passado e o futuro e, assim, restaura as identidades passadas. uma fonte

    de significados culturais, sistema de representao e um foco de identificao. Assim, no

    importa quais so as diferenas entre as pessoas em termos de gnero, classe ou raa, pois o

    papel da cultura nacional unific-las numa identidade cultural, anulando, dessa forma, a

    diferena.

    O conceito de identidade bastante recente e de certa forma passageiro, mas se

    apresenta como necessrio(Gumbrecht,1999, pp115-124) Nesse sentido, cabe observar

    aqui que os empregos do conceito de identidade, novos ou antigos, sempre esto motivados

    por nostalgia ou ressentimento. Apresenta uma relao tanto filosfica quanto poltica em

    relao ao seu uso. Jacques Derrida (1971) quando fala na desconstruo do conceito de

    identidade, afirma que no conseguimos ver identidades estveis.

  • 150 Revista Graphos, vol. 16, n 1, 2014 | UFPB/PPGL | ISSN 1516-1536 1

    Na teoria social a questo da identidade motivo de discusso. Para Stuart

    Hall(2006), na Ps-modernidade, as velhas identidades esto em declnio, fazendo surgir

    novas identidades em funo da fragmentao do indivduo moderno.

    Para Homi Bhabha (1998) vivemos hoje numa zona que ele chama de fronteira,

    num momento em que o espao e o tempo se cruzam e produzem figuras complexas de

    identidade e diferena provocando uma desorientao e uma busca constante de orientao e

    de conscientizao do sujeito, quanto a gnero, local institucional, localidade geopoltica,

    orientao sexual e de raa, marcadores de qualquer pretenso identidade no mundo

    moderno. Contudo, para ele, o fundamental, que ele considera politicamente crucial,

    transpor as narrativas de subjetividades originrias e iniciais, a fim de focalizar os momentos

    ou processos produzidos na articulao de diferenas culturais. Os entrelugares mostram o

    terreno para a elaborao de estratgias de subjetivao coletiva ou singular, possibilitando

    novos signos de identidade, colaborao ou contestao na ao de definir a prpria ideia de

    sociedade.

    Lynn Mario Menezes de Souza ( 1994) esclarece que, no processo de construo

    da identidade, inscreve-se uma analtica do desejo, onde preciso existir para o OUTRO. Para

    o desejo colonial, como construo da identidade do sujeito, a articulao social da diferena

    se d em torno do desejo do lugar do Outro. Esse espao de identificao seria de tenso,

    porque se caracterizaria pela ambiguidade e duplicidade, em que o desejo do colonizado

    permeado pelo desejo tanto de vingana quanto de ocupao de espao. Conquistados e

    conquistadores se transformam, surgindo um novo sujeito cultural: o colonial. No entanto a

    alteridade colonial no ser constituda pelo Eu colonizador nem pelo outro colonizado, mas

    pela distncia entre os dois.

    A identidade estabiliza tanto os mundos culturais quanto os sujeitos, tornando-os

    unificados. Este sujeito, numa viso ps-moderna, est se tornando fragmentado, composto

    no de uma nica, mas de vrias identidades, algumas vezes no resolvidas ou contraditrias.

    O processo de identificao desse sujeito, onde so projetadas suas identidades culturais,

    tornou-se varivel, provisrio e problemtico. O sujeito ps-moderno produzido no tem uma

    identidade fixa. Ele assume que sua identidade definida historicamente e que possui

    diferentes identidades em determinados momentos.

    Segundo David Harvey, citado por Stuart Hall (2006), a sociedade moderna se

    caracteriza pela diferena, pela variedade de diferentes posies do sujeito, isto , de

    identidades. Numa situao concreta, no caso de Joo- Maria Vilanova, penso que, ao se

    esconder atrs de um pseudnimo, o escritor estava, por opo, dividido entre seus valores de

  • 151 Revista Graphos, vol. 16, n 1, 2014 | UFPB/PPGL | ISSN 1516-1536 1

    homem branco, colonizador, e de angolano. Seu comportamento passaria pelo que Stuart Hall

    chama de jogo de identidades.

    A identidade, segundo Stuart Hall (2006), no algo inato, mas forma-se ao longo

    do tempo atravs de processos inconscientes. Ela permanece sempre incompleta e sempre

    sendo formada. Assim, no devemos falar de identidade, mas de identificaes. Vista desta

    forma, ela como um processo em andamento para ser preenchida a partir de nosso

    exterior, na viso dos outros e de como imaginamos ser vistos pelos outros.

    Stuart Hall(2006) cita Derrida para dizer que tudo que falamos tem um antes e

    um depoise que nessa margem que outras pessoas escrevem. O significado dessa fala

    instvel, procura uma identidade, mas sempre perturbado pela diferena.

    Para Boaventura Sousa Santos (1997) a identidade uma categoria poltica,

    porque produz consequncias polticas. Boaventura Sousa Santos chama de necessidade

    fictcia: necessidade de defesa ou proteo de um determinado grupo, isto defesa do grupo

    contra a ameaa dos outros (identificados como diferentes). No entanto, para ele, essa defesa

    se torna impossvel, na medida em que nenhum grupo consegue se fechar ou se proteger

    totalmente. Mesmo no sendo possvel, a identidade passa a ser trabalhada como uma forma

    de Poder e, nesse sentido, ela poltica, o que, de certa forma, conflitante, pois, alm de

    proteger, ela tambm disciplinadora, j que exige atitudes e comprometimentos semelhantes

    no momento em que distingue os outros enquanto estranhos e, portanto, as vezes como

    inimigos. Para o autor, a identidade passa a ser algo que impe a polarizao e a dualidade.

    Dualidade esta que imposta e concretizada atravs da fronteira poltica dos Estados. Sendo

    assim, a crise das identidades ps-modernas se estabelece na medida em que as fronteiras dos

    Estados no conseguem mais segurar o estranho longe, quebrando, pela

    globalizao e pelas relaes mediticas, as fronteiras culturais e, consequentemente, as

    polarizaes.

    O ser humano inicia o processo de apropriao das tarefas que o mundo estabelece a

    partir do momento de seu nascimento (gnes Heller,1989). Esse processo de apropriao

    consiste em tudo aquilo que se integra dentro do eu e que caracteriza o processo de

    construo da subjetividade. Quando o ser atua, percebe e pensa, no se limita simplesmente a

    garantir sua preservao, mas tambm se produz, colocando sua marca em tudo, fazendo com

    que seu prprio mundo perceba-o. Atuar, pensar e sentir nada mais do que um conjunto de

    relaes nicas que, ao interferirem no mundo e no seu Eu atravs do comprometimento,

    caracterizam a construo da subjetividade.

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    Posso inferir, portanto, que o processo de construo da subjetividade nada mais

    do que a prpria vida cotidiana, na qual o ser humano age e interage desde o seu nascimento,

    com o contexto cultural a que pertence, constituindo seu prprio tempo e espao.

    Joo-Maria Vilanova tentou, com sua poesia, representar o desejo dos

    colonizados, resgatando o cotidiano e os valores do povo, mas isso no significa ter dado

    espao ao subalterno enquanto interlocutor, porque, no dizer de Spivak (2010), a literatura s

    pode produzir representaes mais ou menos pertinentes dessas vozes, j que quem pode falar

    por si mesmo apenas o subalterno. Sob o ponto de vista do discurso, o silenciamento que

    define o subalterno como tal. Ele no tem voz, no tem direito ao grito. De modo que, ao

    falar, um sujeito subalterno deixa de s-lo. Em seu cotidiano, e, sobretudo, a partir da

    interao social, esse poeta angolano foi comprometido com as tarefas as quais se props no

    mundo, estabelecendo razes, apesar de experincias anteriores que supostamente se

    inscreviam no campo do colonizador, j que o escritor teve tambm uma vivncia como

    portugus branco. Seguindo o pensamento de Agnes Heller(1989), na vida cotidiana o homem

    coloca em funcionamento: todos os sentidos, todas as suas capacidades intelectuais, seus

    sentimentos, paixes, ideias ou ideologias, assim como suas habilidades manipulativas.

    Esse amadurecimento que nasce no grupo e na famlia, e que imprescindvel

    para a vida em sociedade, permite que o homem, ao sair de seu grupo de origem- caso de

    Vilanova, enquanto portugus, sobreviva e adapte-se a outros grupos, de tal forma

    identificando-se com eles e, assim, colaborando tambm para a construo daquela

    identidade. A histria, para Heller, se constri dentro dessa dinmica de construo e de

    transformao de cotidianos. Isso provoca no sujeito uma luta constante entre o que se foi e o

    que se espera ser.

    7 CONSIDERAES FINAIS

    Sabemos que no existem conceitos considerados seguros para o pesquisador,

    uma vez que no existem verdades, mas descontinuidades que nos compelem a pensar a

    diferena, os afastamentos e as disperses. Entendo a literatura negra como aqueles textos

    gerados e estruturados de forma diferenciada com base na construo histrica, inscritos

    atravs de uma voz negra que preserva as diferenas culturais. Trata-se, pois de uma literatura

    particularizada pelo pertencimento. A literatura africana moderna no pode ser classificada,

    no entendimento da maioria de pensadores, em funo da cor da pele de seus produtores, pois

    estes podem ser negros, mestios ou brancos. Contudo, tal produo pode ser negra em seu

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    contexto existencial, de pertena. No Brasil, esta realidade no se aplica, pois a cor da pele, no

    meu entendimento, determina, alm do lugar de pertena do autor, um lugar no espao social,

    e isso se relaciona diretamente com os homens que produzem as obras. Caso contrrio,

    teramos a invisibilidade do sujeito, a negao do prprio sujeito. No h como negar o

    sujeito que fala, pois sabemos que este sujeito se constitui na linguagem. Laranjeira reconhece

    a existncia da negritude e vai entend-la como um conceito poltico em que o negro, o

    mestio ou o branco toma a palavra e assume o discurso da diferena. No entanto, eu no

    entendo apenas como o africano, que nem sempre negro, pode assumir o discurso da

    negritude se ele no se v como negro, e, nesse sentido, o meu posicionamento difere um

    pouco com relao ao de Pires Laranjeira.

    No discurso de Salvato Trigo, observo uma posio assumida de branco e

    colonizador cultural quando julga, como crtico, o texto de acordo com seu valor esttico, sem

    interesse na autoria. Trigo justifica esta posio entendendo que o crtico ocidental no

    instrumentalizado para fazer uma leitura da literatura negra, j que no tem bases para ajuizar

    a respeito, com o que concordo plenamente, pois o mximo que conseguimos ajuizar de

    acordo com nossos critrios, eurocntricos, os quais se definem pelo lugar sociocultural e

    identitrio de onde falamos. Sob meu ponto de vista, o melhor caminho para a consolidao

    de uma teoria para a literatura de negros o da poltica. Considero fundamental falar em

    literatura de negros porque tenho a convico de que a raa, como signo cultural, como

    condio histrica, atravs da conscincia, permite inscrever o sujeito num determinado lugar,

    gerando afiliaes ao pertencimento cultural daquele indivduo. Como era previsvel, observo

    que os dois crticos mantm um olhar de fora, embora Laranjeira seja mais solidrio ao negro

    africano.

    O contexto da literatura africana, angolana, diferente do contexto brasileiro.

    Existe o entendimento de que a frica composta por negros, mestios e brancos, mas os

    negros tentam reafirmar e identificar sua maioria negra. A produo literria angolana

    quase desconhecida dos portugueses e talvez at dos prprios angolanos, apesar do nmero

    significativo de poetas que escrevem (e se descrevem) como angolanos. Entendo a literatura

    em Angola como hbrida por que mesmo contendo traos culturais dos africanos, utiliza a

    lngua do branco e se constri dentro de critrios estticos eurocntricos, apresentando alguns

    sinais que se referem histria, linguagem ou vivncia dos africanos no antes e no depois

    da libertao de Angola. No existe neste contexto, entre os textos aqui utilizados como

    corpus de anlise, qualquer referncia raa ou ao se assumir no discurso como negro. O

    contexto em que Joo-Maria Vilanova transita o poltico, de denncia explorao

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    capitalista, se apropriando de alguns falares angolanos, o que d, dessa maneira, um tom

    especfico literatura, tornando-a angolana por incluir elementos da cultura africana e por se

    identificar com essa cultura.

    Por outro lado, diferente de minha posio anterior de que Brasil e frica foram

    originados por contextos sociais semelhantes, e concordando com Cuti, que a realidade dos

    grupos humanos sados da frica , em qualquer dos pases, diferente daquela dos que l

    ficaram, pois, em termos de cultura ela foi dissolvida. Portanto, no h um cordo umbilical

    entre a literatura negro-brasileira e a literatura africana, pois a literatura negro-brasileira nasce

    da populao negra formada fora da frica e seus textos pouco tm a ver com a frica. E os

    que tm relao com aquele continente no pertencem literatura negro-brasileira, mas aos

    textos de brancos, ou negros que se querem brancos, que falam sobre a cultura africana e suas

    razes, Isto significa dizer que podemos ter autores negros-brasileiros ou mulatos ainda presos

    tradio, passando longe das questes atinentes s relaes raciais. O texto que se quer

    negro-brasileiro est relacionado com os conflitos raciais de uma populao descendente de

    escravizados em uma sociedade discriminatria como a nossa. Apenas a partir de tais

    proposies possvel reconhecer a identidade negro-brasileira.

    Em relao conscincia sobre as raas, a alteridade do negro uma questo

    ainda controvrsia e pouco estudada em termos de cultura brasileira. Nesse sentido, suponho

    que, at agora, e pelas minhas leituras, essa controversa se estenda tambm a Angola. Este o

    caso tambm da preocupao com uma teoria crtica para a questo da raa como uma

    categoria significativa da diferena para os estudos literrios. Entendo que o problema no

    tanto o da raa ou de seu conceito, mas o silncio sobre ela. O discurso racista um discurso

    culturalizado que geralmente abandona o vocabulrio explcito da raa, substituindo a

    ideologia da raa pela noo de cultura, caso do discurso que percebo desde as minhas

    primeiras leituras em Portugal.

    Acredito na ideia de que existe raa e diferena, que existe um discurso ideolgico

    que mascara essa relao mediante a manipulao. Passa a ser uma questo poltica definir

    uma poltica cultural que privilegie os aspectos multiculturais. Ao crtico, cabe ver como o

    escritor fez o texto ou como utilizou determinada tcnica literria pertencente ao domnio

    pblico, percebendo, ento, que partido o autor poder tirar de suas estratgias textuais e se

    ele reverte ou no o movimento contra o modelo original. Desvendar esse objeto como

    proposta nica e irreproduzvel pode ser com certeza o maior desafio ao qual posso me propor

    tanto como escritor quanto como leitor e (re) escritor.

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    No podemos ser ingnuos a ponto de acreditar que um escritor, brasileiro ou

    angolano, possa produzir representaes, num espao do neocolonialismo, capazes de dar

    conta de uma poltica de reverso. Ele precisa manipular esses dados, sabendo-os de antemo,

    como outra escritura sobre aquela j existente. Esse me parece ser o caminho tanto para

    nossos escritores excludos do processo de circulao e validao do cnone literrio em

    nossa sociedade, quanto para os crticos que se quiserem solidrios com uma poltica de

    entendimento da diferena e de no aceitao de verdades absolutas inquestionveis.

    Acredito na importncia de situar e refletir sobre a recorrncia de textos crticos

    que se apresentam como mediadores e decodificadores dos sentidos dos discursos culturais a

    partir de represses, prescries ou sujeies, em um contexto de poder, entre culturas

    centrais e perifricas, no caso a portuguesa entendida como central, e a angolana e a brasileira

    como perifricas. A literatura angolana, em funo da geografia cultural dominante,

    diferentemente do Brasil, onde o negro no tem voz, tem uma certa especificidade: mesmo

    tendo passado por um processo de colonizao, no teve sua visibilidade anulada ou pelo

    menos nem tanto. Cada escritor tem sua esttica, mas, em comum, h a recusa ao sistema

    colonial. Alguns tm saudades pr-coloniais, outros, brancos e europeus de nascimento,

    optaram por visionar uma ptria africana. Entre eles, destaco Ruy Duarte de Carvalho,

    Henrique Abranches, Jos Luandino Vieira e nosso autor em estudo, Joo-Maria Vilanova.

    Todos eles optaram por Angola, seja por uma opo ideolgica, seja por uma viso de mundo

    e no para dar razo ao mundo que o portugus criou na frica. Nesse contexto situo Joo-

    Maria Vilanova como um portugus, branco, que se identificou com a causa dos angolanos.

    Seus textos identificam os angolanos, h uma representao das vozes dos subalternos na voz

    desse poeta, tornando seus versos na linguagem do colonizador antes de tudo uma denncia

    da realidade vivenciada pelo colonizado.

    Joo-Maria Vilanova lutou, com as palavras, contra o sistema de explorao

    colonial. Criou uma poesia com fortes traos polticos, de enfrentamento. Seu texto

    angolano, seu olhar de dentro. Foi juiz de Direito e advogado. Ao construir ensaios,

    demonstrou ser um autor iniciado nos saberes eruditos. Alguns autores acreditam que utilizou

    vrios pseudnimos. Alm disso, atravs do contato com as instituies dominantes (escola,

    igreja, trabalho), incorporou valores e construiu sua subjetividade, ao mesmo tempo em que

    interferiu nas regras e normas dessas instituies. Ao considerar-se angolano, o poeta

    construiu na e para a Lngua Portuguesa elementos da subjetividade angolana. Talvez Joo-

    Maria Vilanova no tenha se preocupado em se dizer portugus simplesmente porque, para

    ele, tal identidade no tinha grande importncia. Hoje, o que importa para ns so os

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    elementos africanos que ele incluiu na (sua) Literatura, impregnada de elementos culturais e

    identitrios de um (portugus) e de outro (angolano). Acredito que o estudo da obra do autor

    nos permite navegar por esses dois mundos.

    Seu primeiro momento caracteriza-se pela denncia de uma realidade de

    explorao portuguesa; o segundo e terceiro momentos, pelo engajamento poltico. Assim, o

    autor passa do olhar atento s injustias de Angola, frustrao, desesperana e

    inevitabilidade, sentimentos que transporta tambm para sua vida, culminando com sua morte,

    provocada por ele mesmo.

    No caso do discurso, em relao excluso, penso que a linguagem da teoria

    crtica pode ser um estratagema da elite ocidental, culturalmente privilegiada, que exclui o

    outro no uso de seus critrios estticos e culturais. Assim, o discurso crtico pode compactuar

    com a poltica das excluses. Penso que h influncia do poder racial no julgamento de valor,

    mesmo num pas como Portugal que no se v como racista. Os discursos, de certa forma,

    impem uma interpretao para que se tome partido em relao s produes de uma cultura

    nacional. Os discursos se valem de estratgias destinadas a mostrar e valorizar a importncia

    de certas definies, reforando uma determinada viso. Existe, assim, uma tendenciosidade

    que , muitas vezes, respaldada por apropriaes da teoria da literatura e que refora o lugar e

    a legitimidade dos juzos formulados no mbito da Academia. O discurso do subalterno

    (Spivak,2010), personificado nas vozes da literatura angolana, no toma corpo na voz da

    crtica porque falar pelo subalterno no dar voz a esse outro. O subalterno subalterno, em

    parte, porque no pode ser representado adequadamente pelo saber acadmico (teoria).

    Vejo a literatura negra, que diferente da africana, como um ato poltico e

    simblico, uma resistncia indiferena. Se ns, inclumos aqui brancos e negros

    relativamente conscientes, insistirmos na conscientizao de que a questo da raa faz alguma

    diferena, podemos contribuir para que a hegemonia branca seja destituda de sua autoridade

    exclusiva. importante hoje ver quem fala, como fala e de que lugar. O poder de

    representao est ligado ao saber. A crtica literria produz um discurso que tem em vista o

    Outro, e esse Outro importante. necessrio revisar a historiografia para que se possam

    ouvir essas vozes que so fundamentais, e nosso trabalho poder contribuir para tais

    discusses.

    O que pode, enfim, JooMaria Vilanova acrescentar teoria da literatura, teoria

    dos sujeitos, das identidades, literatura angolana e s literaturas de lngua portuguesa? A

    estas eu responderia: teoria da literatura, a necessidade de uma teoria para a diferena;

    teoria dos sujeitos, que o processo de identificao, em uma viso ps-moderna, tornou-se

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    provisrio, varivel e problemtico; teoria das identidades, o reconhecimento de identidades

    fragmentadas e mltiplas; literatura angolana, a importncia do pertencimento; s literaturas

    de Lngua Portuguesa, o reconhecimento da diferena.

    Alm disso, acredito que somente a produo de conhecimento a partir da

    diferena pode libertar-nos do jugo a que fomos e somos submetidos. Denunciar o processo

    de excluso que continua a vicejar na produo cultural do negro, tanto brasileiro quanto

    africano, nos ajudar a construir nosso autoconhecimento e a construir um conhecimento

    emancipatrio.

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    Artigo recebido em 25-03-2014

    Artigo aprovado em 01-07-2014