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130 Revista Graphos, vol. 16, n 1, 2014 | UFPB/PPGL | ISSN 1516-1536 1
DO OLHAR E DE OUTROS OLHARES: A LITERATURA ANGOLANA
NA LETRA DE JOO-MARIA VILANOVA
Marlene Hernandez Leites (UNIT)
Resumo:
Objetivamos com esse estudo o resgate da obra de Joo-Maria Vilanova, poeta angolano que
faleceu em 2005 e que deixou uma produo literria maioritariamente indita. Este trabalho
se configurou como uma pesquisa de base qualitativa, tendo sido desenvolvido a partir de um
estudo de caso que incluiu pesquisadores do Centro de Literatura Portuguesa da Universidade
de Coimbra. Conclumos que o discurso crtico legitimador, principalmente por emergir de
vozes autorizadas pela Instituio saber/poder, e mesmo estando dentro da mesma Instituio
universitria, se constri de forma diferenciada em funo do posicionamento ideolgico (isto
, do olhar) do crtico/escritor. Esta investigao me possibilitou perceber tambm que a
questo da raa no motivo de discusso, embora a da negritude, como conceito poltico, o
seja.
Palavras-chave : Literatura africana, identidade, hibridizao.
Este estudo1 objetiva, de forma geral, apenas mais um olhar de fora porque de
latino-americano, e de dentro, porque de colonizado, no discurso europeu sobre o poeta Joo-
Maria Vilanova, que se suicidou em 2005, no Porto, em Portugal. Tenciona-se, aqui conhecer
e avaliar o discurso crtico do colonizador sobre a literatura africana mais especificamente a
angolana. Alm disso, se prope ainda a investigar, na medida do possvel, quem foi, na
realidade histrica e literria de Lngua Portuguesa, Joo-Maria Vilanova e (re)situ-lo na
literatura angolana e na cultura portuguesa, refletindo sobre a questo da identidade.
A pesquisa importante no s para questes relativas s prticas discursivas,
como tambm pelo compromisso de resgate que ns, brasileiros (e acredito que tambm os
portugueses), escravistas, temos em relao aos africanos escravizados, alm de vislumbrar o
registro de uma produo literria africana quase invisvel na Literatura de Lngua
Portuguesa, no Brasil, apesar de uma certa visibilidade que tal produo mantm em Portugal.
No podemos esquecer, o que se diz, a histria comum de colonizao
portuguesa, que originou traos culturais semelhantes no povo angolano e, por extenso, no
brasileiro, integrando-os num contexto cultural mais amplo. A viso comparada, como prtica
de relaes transnacionais, possibilita a identificao de semelhanas e diferenas e aponta as
1 Financiado pela CAPES (Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior) Brasil, em 2013.
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especificidades, traduzidas nos textos, daquelas marcas de percepo de um pertencimento
negro. O tipo de abordagem foi a comparativa/ contrastiva, j que este trabalho lanou de um
olhar plural sobre um objeto de estudo heterogneo. Penso que no espao entre a coisa e sua
representao que reside o ideolgico, pois a linguagem no mais centrada na lngua como
sistema ideologicamente neutro, mas no discurso que uma instncia da linguagem.
Assim, uma questo importante se levanta: o que pode JooMaria Vilanova
acrescentar teoria da literatura, teoria do sujeito e das identidades, literatura angolana e
s literaturas de lngua portuguesa?
1 O OLHAR
O olhar o primeiro sentido que, nos processos de construo identitria e de
alteridade, nos permite ver a diferena e a ambiguidade, propondo sempre uma nova forma de
ver o Outro. Para a cincia, s os olhos vendados permitem a delimitao e a fixao das
relaes estveis, pois o olhar deseja sempre mais do que lhe dado ver. Para Marilena Chau
(1998) a relao entre ver e conhecer est num olhar que se torna cognoscente e no apenas
espectador. Quem olha tambm olha de algum lugar. De acordo com Chau, a filosofia da
viso ensina que ver no pensar e que pensar no ver, que o pensamento no juzo, nem
enunciados ou proposies, mas, sim, afastamentos determinados no interior do ser e que,
assim, conceitos no so determinados e as ideias no tm significao completa, seno
provisria e aberta. Destarte, assim como o visvel tem como fundo o invisvel, o pensado
habitado pelo impensado.
O olhar ensina o pensar generoso, pois apanha em si o pensamento de outrem e
prossegue entrando e saindo de si. Portanto, o olhar no completamente racional, pois ele ,
antes, emocional, isto , sensvel.
2 OS DISCURSOS - SONS AUTORIZADOS
Em relao questo da negritude h sempre uma postura definida do crtico
literrio. A respeito dos olhares europeus, que aqui tero singular ateno, saliento duas
posies diferentes: a de Pires Laranjeira e a de Salvato Trigo. Pires Laranjeira(1994) ressalta
que existe uma vasta bibliografia sobre a negritude de lngua francesa, ao passo que, sobre a
negritude de lngua portuguesa, sempre pairou um silncio estranho. Sobre a negritude
literria de lngua portuguesa, o professor afirma ainda que h uma escassez constrangedora
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de estudos, e os que existem, se expressam, s vezes, por afirmaes infundadas de que a
negritude praticamente inexistiu. Pires Laranjeira afirma ser a negritude mais extensa e de
maior profundidade do que tem sido tratada at agora e que
[...] existiu um discurso do racismo nas literaturas de base universalista negra e, por sua vez, na base da autonomizao literria, a par de outro
discurso regionalista-nacional [...] por necessidade de afirmar a
universalidade do homem negro perante a particularizao e memorizao feita pelo homem branco. A afirmao ostentatria do negro e a criao de
um universo referencial negro aprofunda na diacronia e no discurso literrio
em novo paradigma: o da literatura negra.(Pires Laranjeira,1994, p.500)
Para ele, um novo paradigma prepara a instaurao e reconhecimento das
literaturas nacionais nos anos 60. Essa posio contrria de Salvato Trigo, que nega a
existncia da negritude, posio esta considerada por Pires Laranjeira como uma tese
insustentvel.
A tese de Pires Laranjeira a
[...] de que a negritude tanto se baseia na assimilao do cnone
negritudinista como em procedimentos gerados por contextos similares
desde a lngua francesa. Para se afirmar como discurso autnomo, o discurso do negro (do homem e da cor) tem duas vias: a da ideologia [...] a do
concreto do seu mundo (a poesia substitui e glosa o modo da narrativa). O
primeiro sutil; o segundo, ostensivo (Pires Laranjeira 1994, p.12)
Pires Laranjeira entende a negritude como o discurso potico do negro, ou seja, o
modo de o negro tomar a palavra em si e, atravs dela, assumir o discurso da diferena:
Negritude, nova linguagem esttica que procurou pela ideologia subverter o maniquesmo
eurocntrico e brancfilo.(Pires Laranjeira 1994,p.11) No entanto, apesar da negritude,
enquanto movimento literrio, ter produzido um especfico policdigo literrio, "nunca foi
abordada no mundo da lngua portuguesa, a no ser, repita-se, muito episdica e
fragmentariamente.( Pires Laranjeira 1994,p.157)
Curioso o sentido diferencial de literatura colonial, esclarecido pelo autor:
[...] diferente do indicado pela mesma expresso no Brasil. Em frica
significa a literatura escrita e publicada, na maioria esmagadora, por portugueses de torna-viagem, numa perspectiva de exotismo, evasionismo,
preconceito racial e reiterao colonial e colonialista. (Pires Laranjeira
1994,p.185)
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Os africanos se uniram poltica e culturalmente, numa estratgia frontal perante o
colonialismo. Para l das diferenas, agruparam-se por serem colonizados, negros ou
mestios, sem que exclussem africanos brancos, e essa dupla condio racial marca-lhes os
textos. Em sua escrita literria, os africanos buscam uma revalorizao cultural, envolvendo
um passado urbano e rural, principalmente aquele anterior colonizao europeia, atravs de
referncias ancestralidade, a fim de estabelecer uma identidade cultural, tnica e continental.
Apesar de branco e europeu, possvel identificar uma presena fraterna no olhar
de Pires Laranjeira, quando reconhece a busca da negritude pelo colonizado. Ele diz que o
colonizado assume um discurso solidrio de pertena continental, salientando que "O mundo
construdo ou indiciado pelo colonizado que predicador, predicatrio ou predicatado muda
o sentido da identidade da literatura, tornando-a, pela primeira vez, negra. (Pires Laranjeira,
1994,p.523) No entanto, apesar de Laranjeira reconhecer a luta dos africanos colonizados
(angolanos, brancos ou mestios) em busca de sua identidade cultural, referindo-a, ao mesmo
tempo, como continental, o pesquisador nega sua diferena em relao aos outros pases da
frica.
J, Salvato Trigo (1981), diferencia a literatura negra da africana, deixando claro
a hibridez desta ltima. A posio defendida por ele a de que o lugar da literatura africana,
para as novas geraes literrias e para os crticos e literatos africanos, situa-se na anlise do
valor e da beleza do texto, independentemente da autoria. Isso me parece uma forma de
preservar e justificar a viso do branco como colonizador cultural, pois, at certo ponto, nega
as razes, o passado dos negros. Acrescenta ainda que um crtico ocidental no poder
explicar a literatura negra de Lngua portuguesa, a no ser utilizando para ajuizar os textos
critrios eurocntricos,
Na verdade, o nico mtodo rigoroso e isento que ns, crticos de formao
cultural ocidental, podemos usar para determinar a pertena africana dum
texto emitir sobre ele juzos apreciativos, e at mesmo valorativos, o que
pesquisamos e demonstramos a existncia, nele, de elementos pertencentes inequivocadamente ao mundo cultural africano e a 'textologia' africana, que
[...] difere da ocidental. (Salvato Trigo,1981,p.121)
No texto literrio africano, busca-se a diferena. A"palavra" a "[...] base
existencial do homem africano no seu relacionamento com a comunidade a que pertence(
Salvato Trigo,1981,p.128) O autor se posiciona contrrio a uma crtica literria que se
pretenda universal, pois as formas de expresso e criatividade potica distintas das do homem
ocidental, escapam nossa teoria literria. Diz que a 'diferena' tem de ser esttica, em
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sentido estrito, e no 'ideolgica', nacionalista ou poltica. A expresso verbal, a fala literria,
o elemento diferencial distintivo da esttica2 literria africana.
Para Salvato Trigo, "raa" um conceito meramente cultural e nunca biolgico:
"A literatura africana moderna, no aceita ser classificada em funo da cor de pele de seus
produtores. [...] Se antes o colonizador era de cor diferente da do explorado, hoje, so
ambos da mesma cor. [...] A africanidade [...] reside nos textos, no nos seus
produtores(Salvato Trigo,1981,p.35) Por outro lado, baseia-se em Sartre para dizer que: As
lnguas europeias da colonizao bastaro ao colonizado como lngua de comunicao [...]
mas sero impotentes para funcionarem como lnguas de criatividade potica.(SalvatoTrigo
1981,p.42)Nesse sentido, Salvato Trigo refere ainda que a falta de "purismo" nos contatos
dos colonizadores com os colonizados os conduziu (como estrangeiros) a um intercmbio
scio-cultural mais ou menos profundo, que se prolongou e utilizou um instrumento
privilegiado de desenvolvimento, o discurso mestio, que deixamos criar livremente at o
sculo passado(Salvato trigo,1981,p.18) Como se v, parece que o autor defende as marcas
positivas deixadas pelo colonizador com sua autorizao. Trigo conclui, no entanto, que as
literaturas africanas de Lngua portuguesa criaram uma lngua prpria, cuja autonomia em
relao lngua literria portuguesa se afirma e se constri nos mundos "psico-scio-
culturais" que ela capaz de estruturar:
A 'fala' das literaturas portuguesa, brasileira, cabo-verdiana, angolana,
moambicana, so-tomense e guineense, obviamente, distinta. bvio tambm que esses povos tm, sem dvida, uma lngua comum, mas no
usam a mesma 'linguagem'. (Salvato Trigo 1981,p.71)
A proposta de Salvato Trigo de uma anlise "antropolgica/etnogrfica" que
permitiria compreender a variao cultural existente entre diversos tipos de textos produzidos
na mesma lngua.
Concordo com Salvato Trigo sobre a dificuldade de uma leitura das literaturas
africanas, tendo em vista que no h ainda uma teoria que d conta de questes especficas
ligadas cultura africana. Por outro lado, ainda temos a conscincia de sermos construdos
pela cultura ocidental, branca, que forma tambm o leitor e o crtico, mesmo o africano. No
entanto, a justificativa de que devemos nos basear em critrios estticos eurocntricos vai
2Uma questo que me surpreendeu foi a constatao de Salvato Trigo em um de seus ensaios sobre a migrao
esttica: "[...] no espao literrio da Lngua Portuguesa, no h unilaterismo nas relaes. Quer dizer que, se em determinado momento histrico do passado a migrao esttica foi no sentido Europa - Amrica - frica, modernamente ela faz-se muito mais, ou quase s, no sentido Amrica - Europa - frica. Em Ensaios de
literatura comparada: Afro-Luso Brasileira, O que ele explica, originariamente, como sendo uma busca da 3
gerao, que est na Amrica, de uma identidade que se inicia atravs da msica.
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apenas reforar a ideologia da cultura branca, negando uma produo cultural particularizada.
Tambm como Pires Laranjeira, Salvato Trigo, em alguns momentos, quando considera o
lugar da literatura africana, enquanto um locus continental, ignora a diversidade que compe
aquele continente. Enfim, a partir destes discursos podemos perceber que a noo de sujeito
perde seu centro e passa a se caracterizar pela disperso, por um discurso heterogneo que
incorpora e assume diferentes vozes sociais.
2 O CONTEXTO
Segundo Pires Laranjeira (1997) o desenvolvimento das literaturas africanas de
lngua portuguesa se deu em relao direta com a construo do ideal nacionalista no discurso
a partir do primeiro livro impresso em 1849. A transio do mundo negro para o africano se
d quando a escrita substitui a fala. A literatura oral se constitua de contos, lendas, fbulas e
de um conjunto de tradies culturais prprias do mundo negro. Pires Laranjeira, no texto
intitulado Literaturas africanas de expresso portuguesa (1994), reconhece que o estudo das
literaturas africanas ainda est numa fase de reconhecimento e estabilizao. O primeiro livro
impresso na frica foi em Angola, Espontaneidades de minha alma (1849), poemas de Maia
Ferreira. A partir da, pode-se dizer que a literatura angolana paradigmtica, modelo de
irradiao para as restantes literaturas africanas, ainda que cada uma mantenha seu percurso
especfico. No entanto, Pires Laranjeira (2001) chama a ateno para o fato de que, no caso da
Angola, ainda que se trate de uma nao paradigmtica para as outras literaturas africanas,
seus escritores ainda so desconhecidos dos portugueses, mesmo parecendo contrrio ao leitor
desprevenido, que bombardeado com tanta lusofonia eufrica (Pires Laranjeira
2001,p.26).
Alguns escritores se tornaram clssicos na literatura angolana, entre eles Pepetela,
que participou na luta pela libertao de Angola e ganhou o prmio Cames. Tambm
Agostinho Neto, militante socialista e pertencente corrente prometeica de liberdade para as
literaturas africanas, no deixa de ser um clssico contra o cnone ocidental, [...] s vezes
dele se aproveitando, nele se deleitando, e sendo por ele reconhecido (Pires Laranjeira, 2001,
p. 32).
Boaventura de Sousa Santos (1997) afirma que, do ponto de vista cultural, os
pases africanos e o Brasil nunca foram colnias plenas, pois a cultura portuguesa, fiel sua
natureza semiperifrica, estendeu a eles a zona fronteiria, permitindo a passagem de acesso
s culturas centrais|.
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No entender de Cuti (2010), no podemos atrelar a literatura africana brasileira
atravs da ideia de afro-brasilidade, termo que, atualmente, est em voga na crtica literria,
pois este conceito pode sobreviver sem o negro. Ser afro no implica necessariamente em ser
negro e, dessa forma, o racismo no atinge aquele sujeito de pele escura e que sofre
discriminao. A literatura africana no se assume como negra (Cuti 2010,p.36), e no
combate o racismo brasileiro. Alm disso, a continentalizao africana da literatura faz com
que se negue, de certa forma, a singularidade esttica literria, que compe a diversidade nas
fricas.
Por outro lado, h, tambm, o olhar de Carmem Lcia Tind Secco, que diz
observar, na histria da Colonizao portuguesa, tanto em frica quanto na Amrica, um
bloqueamento da memria cultural, por fazer parte da rota da conquista, acarretando uma
paralisia do lembrar, uma amnsia das tradies (Tind Secco, 2000, p. 39). Apagaram-se
os laos de uma identidade cultural. O mar, que era a morada de mitos e deuses africanos,
tornou-se portugus, por ser domnio de vultos e heris cultuados pelos invasores. Foi
silenciada a oralidade dos nativos. A histria de Angola foi de guerra e revoltas. E a poesia
africana colonial, por seguir paradigmas europeus, descaracterizou-se e desenvolveu-se
utilizando metforas grandiloquentes. Utilizou-se a forma lusitana de versejar com smbolos
ditados por Portugal. Somente no incio do sculo XX, em frica, veremos uma poesia
voltada para o nacional, ainda assim com uma viso romntica de descrio de paisagens e
louvao Ptria. Na segunda metade do sculo XX, a poesia produzida nas colnias
portuguesas em frica rompe com essa viso pitoresca em relao ao continente africano e
ressemantiza metaforicamente o mar como smbolo do inconsciente coletivo ancestral(Tind
Secco, 2000, p.47).
Existem, segundo Tind Secco, dois tipos de poesia: a urbana angolana, que se
volta para o mar, e a outra, das etnias fixadas longe do litoral, que cultuam as tradies e que
temem o oceano por associ-lo mitologicamente com a morte. De qualquer maneira, nos
textos que analisei, no se fala sobre raa, esta no uma questo fundamental para uma
grande parte de autores em frica, mais especificamente em Angola.
Joo-Maria Vilanova foi um escritor comprometido, na viso de Laranjeira, com a
frica toda, no s com a Angola. Ao analisar o texto de Joo-Maria Vilanova, Laranjeira
pede que no se pergunte quem (no) foi Joo-Maria Vilanova, mas simplesmente leia seus
textos (Pires Laranjeira, 2004).
[...] esquea quem (no) foi Joo-Maria Vilanova ( Pires Laranjeira 2004, p. 7).
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Nesse dizer singular e propositadamente imperativo, Pires Laranjeira pretende
demonstrar que, na anlise da obra de Joo-Maria Vilanova, o que interessa o texto, o
poema, j que nem o autor se quis presente. Ele acrescenta que Vilanova demonstrou uma
angolanidade nacionalista, para alm de ser anticapitalista e anti-imperialista; foi um
revolucionrio terceiro-mundista, libertrio, fraterno, igualitrio, que fez um percurso anti-
colonial na luta pela independncia.
Poeta da modernidade, o seu campo literrio foi o angolano, claramente escrito e
lido ( Pires Laranjeira 2004, p.8). No teve, no entanto, a audincia que merecia. Foi
contido, criativo e inovador com um discurso carregado de resistncia, histria e denncia.
Se, em determinado momento, o pseudnimo usado por Joo-Maria Vilanova era
para proteger o autor das autoridades coloniais, em outro, quando j liberto, serviu para
denunciar a explorao imperialista. Na viso de Laranjeira, o que interessa que, nos
escritos de Vilanova, h uma angolanidade inequvoca, que se justifica pela composio de
poemas que seguem a tradio angolana, nomeadamente atravs de marcas de historicidade
percebidas na descrio da guerrilha, da explorao empresarial, dos massacres, entre outros
aspectos da singular poiesis desse escritor angolano. Todas essas marcas evocam, na poesia de
Joo-Maria Vilanova, o retrato de um estado imposto ao colonizado, categoria social que , na
maioria, composto por negro e mulato, sendo, portanto, diferente da colnia da qual ele, de
certa forma, fez parte porque era branco e portugus.
De acordo com Pires Laranjeira (2004), para JooMaria Vilanova, assim como
para outros autores, como Jos Luandino Vieira, Mia Couto e Mutimati Joo Barnab,
considerados por ele como guerrilheiros da palavra, a inovao, a criatividade, a inveno e a
revoluo se do no discurso literrio do poeta, a partir de uma viso de mundo que traduz
uma prtica marcada por uma cultura de afrontamento ordem estabelecida, tanto a literria
quanto a social e poltica.
J Macedo (2004) aponta em Vilanova a utilizao de uma linguagem recheada de
lxico da lngua kimbundu e de um portugus que associa a norma interferncia dos falares
angolanos. Como Antonio Jacinto, Luandino Vieira, Arnaldo Santos, Boaventura Cardoso e
Jofre Rocha, Vilanova
[...] abraa com alma e corao patrcio as falas populares suburbanas da
cidade de lngua verncula. Trata-se inequivocadamente de postura
militante, em tempo de cicio, uma vez que as autoridades retiravam o direito de cidade a quem ousasse pisar a risco em matria de corruptela da lngua original de Cames (Macedo 2004, p.6).
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3 O AUTOR
Joo-Maria Vilanova, pseudnimo literrio de Joo Guilherme Fernandes de
Freitas, cuja produo literria foi aqui tomada como corpus de estudo, viveu, entre 1933 e
2005, deixando contos e poemas inditos, assim como uma correspondncia com um
interessante vis literrio e cultural. Fez seus primeiros estudos na Misso Catlica de So
Paulo, em Luanda. Nessa mesma cidade cursou o Liceu. Foi funcionrio pblico no leste da
colnia. Publicou trs livros de poesia angolana: Vinte canes para Ximinha (1971) com o
qual ganhou o Prmio Literatura Motta Veiga, e em cuja cerimnia de entrega no
compareceu j que o poeta sempre optara pelo anonimato; Caderno dum guerrilheiro (1974),
edies Kalema, poemas que, em sua maioria, foram escritos entre novembro de 1971 e
agosto de 1973 (ambos antes da libertao de Angola) e Mar de minha terra & outros poemas
(2004) obra que, por sua vez, foi publicada aps a independncia de Angola, pela
Kilombelombe. Destaco, no entanto, para no ser imprecisa, que o poema Mar de minha
terra - Maresia-Mar - primeiro poema publicado no livro Mar da minha terra & outros
poemas, comeou a ser escrito em setembro de 1973 e foi concludo em setembro de 1987.
Portanto, este texto comeou a ser escrito antes da libertao da Angola. Todas as publicaes
foram em Luanda. Alm destes, deixou textos dispersos e obra na gaveta, pronta ou quase
pronta para publicao, bem como ensaios, dentre os quais est Para uma interpretao da
poesia de Aim Csaire, edio do autor, de onde se conclui ser Joo-Maria Vilanova um
autor iniciado nas lides literrias.
Poeta e ensasta, Joo-Maria Vilanova foi diretor da revista Ngoma (Luanda,
1974), revista que teve apenas uma edio publicada. Com exceo dos colaboradores que l
esto identificados nessa edio nica, todos os artigos restantes foram produzidos pelo
prprio Vilanova, que, para isso utilizou vrios pseudnimos. Alm disso, existem
publicaes esparsas na Revista Cultura II, em Angola, Brasil e tambm de outros pases da
Amrica Latina.
Embora Jorge Macedo, no Prefcio de Mar de minha terra & outros poemas,
saliente que Joo-Maria Vilanova tenha nascido em Angola, a verdade que esse escritor
nasceu em Portugal, sendo considerado poeta angolano porque assim se quis e se fez. Viveu
um tempo em Angola. No foi entrevistado e nem fotografado. S os mais ntimos sabiam
quem de fato ele era: branco e portugus. A utilizao do pseudnimo denuncia, a meu ver,
algum que se sabe portugus e branco, mas que, no texto e na linguagem literria, assume
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uma identidade africana. Foi advogado e Juiz de Direito, o que lhe trouxe conhecimento da
realidade de Angola. No h nada em seu texto que identifique traos de Portugal.
Presume-se, de acordo com Pires Laranjeira (2001), que JooMaria Vilanova
tenha criado um pseudnimo por necessidades polticas. Aps a independncia, deixou
Angola para viver em Porto. Pires Laranjeira possui uma grande parte do esplio do autor e
continua trabalhando no resgate de sua obra. Para tanto, criou um grupo de pesquisa na
Universidade de Coimbra, no qual aglutina e coordena pesquisadores interessados nos textos
de Joo-Maria Vilanova e em cujo projeto de investigao eu tambm me incluo. Pires
Laranjeira, aps ter analisado grande parte da obra de Vilanova, afirma no ter dvidas de que
esse poeta faz parte do patrimnio literrio angolano.
4 OS POEMAS
Joo-Maria Vilanova, como referido anteriormente, assina trs volumes de
poemas: Vinte canes para Ximinha (1971), Caderno dum guerrilheiro (1975) e Mar da
minha terra & outros poemas (2004). Se, na segunda obra, o engajamento poltico toma um
primeiro plano, representado por um eu potico africano colonizado que se revolta diante da
situao histrica de sua nao, em Vinte canes para Ximinha, a dimenso poltica d lugar
a um outro tipo de engajamento: aquele que se debrua sobre a condio humana, em especial
aquela especfica da Angola enquanto colnia.
O primeiro conjunto de poemas que se apresenta aqui constitudo por seis
canes. Nelas, a msica ausenta-se e, em seu lugar, o poeta faz uso de versos que obedecem
a uma cadncia varivel, que tambm no se pode relacionar com a ideia de simples
coloquialismo. O corte dos versos pode-se dizer, remete a uma espcie de cismar de um eu
que, colocado enquanto um observador atento das realidades (sofrimentos) vivenciadas pelas
personagens dos poemas, narra-as em um ritmo prprio: o de quem observa, sente, reflete
acerca do (e tambm se reflete no) que v. Veja-se Cano da fruta amarga:
s seis da tarde
Dominga foi esperar
comboio do Bungo mas Beto no chegou.
Esperou na soleira ao frio sob a lmina azulada da noite
acordada t de manh. Mas Beto no chegou.
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At que Zefa
que sempre vendera fruta amarga trouxe ela mesma a notcia:
Beto cara esmagado
no poro
do navio holands.
No poema, h um percurso que vai da espera frustrao, da expectativa ao
sofrimento. A personagem que espera algum querido a chegar no trem de Bungo (estao
prxima ao porto de Luanda), que espera a noite inteira crendo na chegada , tem como
desfecho da esperana a dor e o fim. A fruta amarga aparece como imagem da notcia da
morte e a personagem que a carrega est acostumada a lev-las: a fruta amarga a notcia da
morte.
Esse campo temtico, composto pela oposio entre a esperana e a frustrao, a
dor e a morte, recorrente nesses poemas e ir aparecer com intensidade em Cano duma
tera-feira de entrudo:
Nesse carnaval
a gente veio na rua manh cedo
com xingufos dicanzas
ou putas no gostoso sambar
do movimento.
Nesse carnaval
quando j noite
em casa regressvamos
Vov tinha morrido.
Neste poema, o binmio antittico esperana/frustrao amplificado pelo modo
como o texto se estrutura. Ope-se alegria representada pela festa carnavalesca, com a
descrio de seus instrumentos tpicos, e essa oposio se d com o corte efetuado pelo verso
de desfecho, no qual a morte encerra o poema e tal alegria com a instaurao do campo da
negatividade.
A dimenso poltica e histrica aparece em Cano do navio negreiro, poema
que, apesar de apresentar um diferencial no que diz respeito referncia histrica, mantm a
oposio entre a alegria e a negatividade. Neste texto, essa negatividade no representada
diretamente pelo evento da morte, mas pela referncia injustia histrica que aparece como
parte da brincadeira das crianas:
Depois da chuva
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os meninos em bando
largavam a lagoa
vinham brincar a navegao. Do pequeno porto
saiam ento gasolinas dongos
navios de grande calado at
feitos uns de bimba mafumeira
outros de tampa
de carto. Vov Bartolomeu
gostava de parar
a olhar esses navios
como quem em maravilha estivesse vendo
sei l
um mar todinho de verdade. um dia Juca do Mulato
lhe procurou
que barco era esse navegando ao largo
com formiges na proa
e grandes velas
pandas. Esse - disse o velho coando
o queixo - mesmo
navio negreiro.
O estranhamento e a revelao provocadas nos versos acima explicitam-se na
percepo da semelhana entre o brinquedo infantil e os histricos navios de transporte de
escravos da frica. A negatividade referida no est presente diretamente na cena que se
representa, mas na leitura que as personagens fazem dela: o olhar do sujeito, talvez j
condicionado a enxergar a dor, enxerga um dos smbolos histricos da existncia desta em seu
povo.
O pice da tematizao da inevitvel frustrao ou sofrimento se d
exemplarmente em dois poemas: Cano duma tarde qualquer e Cano-fala das
mulheres de luto. Ambos apresentam o mesmo mote da inevitabilidade da frustrao e do
sofrimento, mas constroem-se de formas diversas. Em Cano-fala das mulheres de luto o
arraigamento dor representado imageticamente pela aderncia mortal de uma teia de
aranha:
Entre o voo e o voo
traioeiro o visgo.
Eis que tua teia o gesto lentamente nos reteve
a ns
que no amanhar cuidados
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(nosso arimo)
haurimos
afinal safra ruim.
Longas
Longas so as estradas Onde a memria se consome.
Essa prevalncia da frustrao sobre o xito e a instaurao da desesperana
(haurimos/afinal/safra ruim) amplifica-se no poema pela repetio, no terceto final, do
adjetivo longas, que caracteriza as estradas da memria: a imobilidade e a dor do fracasso
so velhas conhecidas. Nesse contexto, posso inferir que o luto referido no ttulo do poema
talvez se deva prpria inevitabilidade da vivncia do malogro.
Em Cano duma tarde qualquer, pode-se ler uma cena vivenciada por um
provvel sujeito no qual essa imobilidade provocada pela conscincia do fracasso vindouro ,
de forma inusitada, plasmada em uma cena que retrata o movimento: o poema narra o esforo
solitrio de uma anci que percorre um caminho difcil at um bar:
Em S. Paulo da Misso
quando o sol se apagava
na areia vermelha (nos fundos por trs da quitanda)
a negra Arminda abria devagar
a cancela de madeira
e sozinha
sem ajuda de ningum
ia no Burity ou no S Santo beber.
Muitas vezes ela t ficando
tarde toda
sentada na esteira os olhos longamente postos
no vago
contando
histria de tempo antigo em jeito de assombrao.
A garotada em roda dela escuta s.
E suspensa v
v mesmo correr a vida
nos olhos sem vida
da velha Arminda.
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Era assim
Em S. Paulo da Misso.
Novamente, o corte dos versos, embora sem garantir musicalidade alguma a essas
canes, adquire importncia fundamental na construo do poema. O esforo de Arminda
para chegar ao bar e entregar-se ao lcool representado por versos curtos cadenciados: a
negra Arminda abria devagar/a cancela/de madeira/e sozinha/sem ajuda de ningum/ia no
Burity ou no S Santo/beber. No ltimo destes versos, o verbo beber enfatizado, bem
como ocorre com o local do olhar de Arminda - no vago -, na estrofe seguinte. O dstico final
fixa a ideia de continuidade do ato e, por extenso, da prpria desistncia nele implicada.
A sexta e derradeira cano aqui selecionada de Vinte canes para Ximinha um
poema de exceo:
Cano das primeiras chuvas
Ela chegou hoje, NZambi os cabelos crespos
sob a noite inundando o ventre da terra.
Ela chegou hoje, NZambi e descala percorreu nossas lavras
massambala (cereal) e milho
crescendo lado a lado.
Ela chegou hoje, N Zambi nossos filhos brincaram-lhe os joelhos
tal como antigamente ns fazamos.
Ela chegou hoje. Obrigada Deus obrigado.
Cano das primeiras chuvas ope-se aos demais textos aqui referidos tanto
pela mudana do campo semntico predominante, que, neste poema, passa a ser o da
esperana provocada por uma anteviso da boa sina (a chuva = promessa de boa colheita),
quanto pelo fato de ser, enfim, uma cano dotada de alguma msica. Veja-se, a exemplo, a
repetio em refro do verso inicial, seguida nas trs estrofes iniciais, pela descrio da ao
da chuva no poema, fmea de cabelos crespos que torna a outra, a terra, fecunda e que traz
alegria ao povo.
O comprometimento poltico assume o primeiro plano nos poemas que compem
Caderno dum guerrilheiro (1975). Neste, o eu potico caracterizado enquanto um africano
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matizado pela opresso do colonizador europeu. Nele, figura a revolta e expe-se o
sofrimento da condio de indivduo oprimido, metonmia de um povo destitudo de liberdade
e, ainda, esboa-se a reao que, nascida desse sofrimento, justifica o guerrilheiro do ttulo:
O cacto
Rosto onde a lgrima Contida lana
Em lana se transforma
Cacto: povo armado
O cacto, por si, constitui uma imagem mpar da resistncia, j que uma planta
capaz de sobreviver em condies climticas extremas. O sofrimento do povo frente aridez
da opresso, suas lgrimas, convertem-se em espinhos que simbolizam a necessidade de
reao. Essa utilizao de elementos da natureza local e tambm, com frequncia, de
expresses da lngua kimbundu (de Luanda), trao recorrente no poema.
Em As hienas, a figura desse predador que ataca em bandos representa a chegada
daqueles que violam a terra africana:
descem nos kimbos
quando que inerte a noite dorme
e dos monas
seu chorado
sabem
roam nas portas
roam nas portas
condevagar
(da morte
Na roa
eriado rumor)
e o luto kukunam
e o luto kukunam
na terra violada
O colonizador pintado como fera traioeira que invade em bando as aldeias
(kimbos) noite e ameaa a vida dos filhos (mu+ana= monas: filhos) africanos. O poema
fecha-se com a dor da morte na terra. Essa construo imagtica que recorre a elementos da
natureza, presente em O cacto e em As hienas, d lugar a uma linguagem mais direta nos dois
poemas que se apresentam a seguir:
Civilizao
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Eles desembarcaram
Suas cruzes
Turbulos Instrumentos de medio
nos ventos
E vindo
E vendo ( frequente)
Que caa & pesca rareavam
Entre nuvens de incenso Vozes
Luzes
Desataram nos caar Piedosamente
O guerrilheiro
o guerrilheiro conhece os problemas do povo
o guerrilheiro o guerrilheiro sofre o sofrimento do povo
o guerrilheiro
o guerrilheiro alegra das alegrias do povo
o guerrilheiro...
Esses dois poemas podem ser lidos como os pontos extremos da situao de
colnia, isto , sob a perspectiva do homem colonizado. Civilizao marca a imposio
violenta dos ditames do opressor/colonizador, aqui representada pela extrema barbrie
(Desataram nos caar) que, no poema, revestida pela sutileza do verso de desfecho,
coerente com o ttulo do poema (Piedosamente) e com certo verniz histrico, que tende
sempre a matizar as naes colonizadoras como salvadoras de povos atrasados. Civilizao
representaria, na leitura proposta, o ponto inicial, de total subordinao ao poder do opressor3.
O seu extremo oposto o poema O guerrilheiro, que representa a insubmisso e
a revolta. Nele, a figura do guerrilheiro construda atravs de sua identificao com o povo.
A repetio da estrutura dos versos, com pequenas variaes, somada s reticncias que o
encerram, amplificam essa construo da identidade, transformando o poema em um
verdadeiro levante contra o servilismo.
A leitura crtica do processo de colonizao efetuado pelos europeus torna-se
abrangente em Colombo no Caribe, do livro Mar da minha terra & outros poemas (2004):
Colombo no Caribe
Colombo
3 claro que construdo com incisiva ironia, como fica explcito na segunda estrofe do poema e, ainda,
na inteligente quebra do verso final, que destaca o advrbio piedosamente.
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ele chegou
no Caribe
viu os ndios e falou assim
quero ouro
os ndios lhe deram ouro
viu mais ndios
e falou assim quero ouro
os ndios lhe deram ouro
..............................
Depois
ele Colombo
pegou do ouro
que os ndios lhe deram fez
duns tantos deles
escravos e levou tudo
pros reis da Espanha
por entre bnos do papa
e o brilho cintilante
dessa palavra
Civilizao
Teve
porm o cuidado
ele Colombo
de deixar ficar l no Caribe
a clera
a varola
a gripe o sarampo
a tuberculose
e a sfilis
por isso mesmo que
A Cria Romana
por trs vezes por trs vezes
tentou fazer dele
colombo santo. (1992)
Nesse poema, a palavra civilizao adquire a mesma carga semntica presente
no poema que carrega esse nome em Caderno dum guerrilheiro, estando associada s
heranas de destruio deixadas pelos colonizadores. No caso especfico de Colombo no
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Caribe, as pestes trazidas pelos europeus aos amerndios so listadas dramaticamente na
segunda estrofe aqui exposta do poema.
Chama a ateno, sobretudo, o conjunto que encerra o poema, que apresenta como
consequncia desse legado sombrio (a clera/a varola/a gripe/o sarampo/a tuberculose/e a
sfilis), as tentativas de canonizao da figura histrica de Cristvo Colombo. Veja-se, em
especial, a repetio do verso por trs vezes, que frisa um nmero to caro cultura
judaico-crist, em uma realidade to avessa s premissas do cristianismo.
Em Mar da minha terra & outros poemas, o primeiro poema, intitulado Mar de
minha terra Maresia Mar comeou a ser escrito em setembro de 1973, em Luanda, e foi
concludo em setembro de 1987, na Alemanha. Mas permaneceu indito, porque s foi
publicado em 2004 (ps-independncia de Angola). Nele, conforme ilustram alguns excertos
apresentados a seguir, ocorre o aprofundamento de dois traos presentes nos livros anteriores:
a utilizao da lngua kimbundu associada, de forma inusitada, com a tematizao de
elementos que transcendem a histria angolana, mas com ela se identificam. Tais elementos
se relacionam condio colonial e ao sequestro, ao trfico e escravido de africanos nas
colnias:
O mar rugindo
Cncavas suas Kalema
Noite
A cara fechada
No paredo Do molhe
(linha-nankim defronte
Mazanga ilha-nzimbu) ...............................
Porta do sonho
Sempre ele o mar
tem vozes outras
dentro nele
mar Carregar
descarregar
parto mame
lua que vem
lua que vem
juro Sangue-Cristo
Juro
vou voltar t esqueo que nada Manana
vou tu a-mar
.....................
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O mar
Kalunga o mar
O odiado mar da partida
canaviais
cafezais
cacauzais seringais
algodoais
bananais folha de fumo
folha de fumo
Alabama
Missipi Virgnia
Antigos coros de escravo
Sons de blue Ecos de gospel
Caribe
La Habana Recife
S. Salvador da Bahia
Trezentas e tantas igrejas
Orix Oxal
Xang
Iemanj Rainha do mar
o mar
o mar o ansiado mar
da chegada...
Na 2 parte de Mar da minha terra & outros poemas, o guerrilheiro do livro de
1975 cede ao poeta, nos versos a seguir, seu lugar de figura representativa da resistncia:
o poeta vestido a rigor
o poeta pondera o fato o poeta transcende o fato & a notcia
o poeta sem astcia
o poeta sempre sempre com alguma malcia
os racistas temem o poeta
os golpistas temem o poeta os inimigos do povo oh
esses temem o poeta
o poeta sem teto o poeta sem tacto
o poeta vestido a rigor
em seu cadver putrefacto. (1992)
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Porm, o poeta, pintado como figura ameaadora, que causa temor a todos os
inimigos do povo e da liberdade, aparece j morto, em putrefao. H a o retorno da
negatividade que marcou Vinte canes para Ximinha: se, em grande parte desses poemas, a
promessa da colheita era ceifada pela safra ruim, e a alegria da festa extirpa-se pela morte, em
o poeta vestido a rigor, a figura poderosa construda no desenvolver do poema mostra-se
inerte em seu desfecho, incapaz de qualquer ao contra aqueles a quem causara temor.
5 A QUESTO DA IDENTIDADE OU A IDENTIDADE EM QUESTO?
O conceito de identidade funciona, no meu entendimento, como algo que tem o
significado de unidade e permanncia. Com isso, dentro de uma viso dialtica, a identidade
tida como algo que contm a igualdade e, portanto, a diferena. Igualdade significa
diferenciar-se dos outros.
Neste estudo, vou transitar no conceito de identidade apenas para me aproximar
do lugar e do tempo do autor.
De uma forma geral, entendemos identidade cultural como o conjunto de valores
de um indivduo na sua relao com o grupo ao qual pertence, seus valores e tradio, sua
partilha de patrimnios comuns, como lngua, religio, cultura e costumes. No caso angolano,
as elites culturais e polticas, unidas pelo ideal de construir e partilhar um territrio,
visionaram a construo de um Estado independente. O discurso para a edificao deste
Estado esteve relacionado com o desejo de estabelecer uma cultura nacional, que constri
identidades entre o passado e o futuro e, assim, restaura as identidades passadas. uma fonte
de significados culturais, sistema de representao e um foco de identificao. Assim, no
importa quais so as diferenas entre as pessoas em termos de gnero, classe ou raa, pois o
papel da cultura nacional unific-las numa identidade cultural, anulando, dessa forma, a
diferena.
O conceito de identidade bastante recente e de certa forma passageiro, mas se
apresenta como necessrio(Gumbrecht,1999, pp115-124) Nesse sentido, cabe observar
aqui que os empregos do conceito de identidade, novos ou antigos, sempre esto motivados
por nostalgia ou ressentimento. Apresenta uma relao tanto filosfica quanto poltica em
relao ao seu uso. Jacques Derrida (1971) quando fala na desconstruo do conceito de
identidade, afirma que no conseguimos ver identidades estveis.
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Na teoria social a questo da identidade motivo de discusso. Para Stuart
Hall(2006), na Ps-modernidade, as velhas identidades esto em declnio, fazendo surgir
novas identidades em funo da fragmentao do indivduo moderno.
Para Homi Bhabha (1998) vivemos hoje numa zona que ele chama de fronteira,
num momento em que o espao e o tempo se cruzam e produzem figuras complexas de
identidade e diferena provocando uma desorientao e uma busca constante de orientao e
de conscientizao do sujeito, quanto a gnero, local institucional, localidade geopoltica,
orientao sexual e de raa, marcadores de qualquer pretenso identidade no mundo
moderno. Contudo, para ele, o fundamental, que ele considera politicamente crucial,
transpor as narrativas de subjetividades originrias e iniciais, a fim de focalizar os momentos
ou processos produzidos na articulao de diferenas culturais. Os entrelugares mostram o
terreno para a elaborao de estratgias de subjetivao coletiva ou singular, possibilitando
novos signos de identidade, colaborao ou contestao na ao de definir a prpria ideia de
sociedade.
Lynn Mario Menezes de Souza ( 1994) esclarece que, no processo de construo
da identidade, inscreve-se uma analtica do desejo, onde preciso existir para o OUTRO. Para
o desejo colonial, como construo da identidade do sujeito, a articulao social da diferena
se d em torno do desejo do lugar do Outro. Esse espao de identificao seria de tenso,
porque se caracterizaria pela ambiguidade e duplicidade, em que o desejo do colonizado
permeado pelo desejo tanto de vingana quanto de ocupao de espao. Conquistados e
conquistadores se transformam, surgindo um novo sujeito cultural: o colonial. No entanto a
alteridade colonial no ser constituda pelo Eu colonizador nem pelo outro colonizado, mas
pela distncia entre os dois.
A identidade estabiliza tanto os mundos culturais quanto os sujeitos, tornando-os
unificados. Este sujeito, numa viso ps-moderna, est se tornando fragmentado, composto
no de uma nica, mas de vrias identidades, algumas vezes no resolvidas ou contraditrias.
O processo de identificao desse sujeito, onde so projetadas suas identidades culturais,
tornou-se varivel, provisrio e problemtico. O sujeito ps-moderno produzido no tem uma
identidade fixa. Ele assume que sua identidade definida historicamente e que possui
diferentes identidades em determinados momentos.
Segundo David Harvey, citado por Stuart Hall (2006), a sociedade moderna se
caracteriza pela diferena, pela variedade de diferentes posies do sujeito, isto , de
identidades. Numa situao concreta, no caso de Joo- Maria Vilanova, penso que, ao se
esconder atrs de um pseudnimo, o escritor estava, por opo, dividido entre seus valores de
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homem branco, colonizador, e de angolano. Seu comportamento passaria pelo que Stuart Hall
chama de jogo de identidades.
A identidade, segundo Stuart Hall (2006), no algo inato, mas forma-se ao longo
do tempo atravs de processos inconscientes. Ela permanece sempre incompleta e sempre
sendo formada. Assim, no devemos falar de identidade, mas de identificaes. Vista desta
forma, ela como um processo em andamento para ser preenchida a partir de nosso
exterior, na viso dos outros e de como imaginamos ser vistos pelos outros.
Stuart Hall(2006) cita Derrida para dizer que tudo que falamos tem um antes e
um depoise que nessa margem que outras pessoas escrevem. O significado dessa fala
instvel, procura uma identidade, mas sempre perturbado pela diferena.
Para Boaventura Sousa Santos (1997) a identidade uma categoria poltica,
porque produz consequncias polticas. Boaventura Sousa Santos chama de necessidade
fictcia: necessidade de defesa ou proteo de um determinado grupo, isto defesa do grupo
contra a ameaa dos outros (identificados como diferentes). No entanto, para ele, essa defesa
se torna impossvel, na medida em que nenhum grupo consegue se fechar ou se proteger
totalmente. Mesmo no sendo possvel, a identidade passa a ser trabalhada como uma forma
de Poder e, nesse sentido, ela poltica, o que, de certa forma, conflitante, pois, alm de
proteger, ela tambm disciplinadora, j que exige atitudes e comprometimentos semelhantes
no momento em que distingue os outros enquanto estranhos e, portanto, as vezes como
inimigos. Para o autor, a identidade passa a ser algo que impe a polarizao e a dualidade.
Dualidade esta que imposta e concretizada atravs da fronteira poltica dos Estados. Sendo
assim, a crise das identidades ps-modernas se estabelece na medida em que as fronteiras dos
Estados no conseguem mais segurar o estranho longe, quebrando, pela
globalizao e pelas relaes mediticas, as fronteiras culturais e, consequentemente, as
polarizaes.
O ser humano inicia o processo de apropriao das tarefas que o mundo estabelece a
partir do momento de seu nascimento (gnes Heller,1989). Esse processo de apropriao
consiste em tudo aquilo que se integra dentro do eu e que caracteriza o processo de
construo da subjetividade. Quando o ser atua, percebe e pensa, no se limita simplesmente a
garantir sua preservao, mas tambm se produz, colocando sua marca em tudo, fazendo com
que seu prprio mundo perceba-o. Atuar, pensar e sentir nada mais do que um conjunto de
relaes nicas que, ao interferirem no mundo e no seu Eu atravs do comprometimento,
caracterizam a construo da subjetividade.
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Posso inferir, portanto, que o processo de construo da subjetividade nada mais
do que a prpria vida cotidiana, na qual o ser humano age e interage desde o seu nascimento,
com o contexto cultural a que pertence, constituindo seu prprio tempo e espao.
Joo-Maria Vilanova tentou, com sua poesia, representar o desejo dos
colonizados, resgatando o cotidiano e os valores do povo, mas isso no significa ter dado
espao ao subalterno enquanto interlocutor, porque, no dizer de Spivak (2010), a literatura s
pode produzir representaes mais ou menos pertinentes dessas vozes, j que quem pode falar
por si mesmo apenas o subalterno. Sob o ponto de vista do discurso, o silenciamento que
define o subalterno como tal. Ele no tem voz, no tem direito ao grito. De modo que, ao
falar, um sujeito subalterno deixa de s-lo. Em seu cotidiano, e, sobretudo, a partir da
interao social, esse poeta angolano foi comprometido com as tarefas as quais se props no
mundo, estabelecendo razes, apesar de experincias anteriores que supostamente se
inscreviam no campo do colonizador, j que o escritor teve tambm uma vivncia como
portugus branco. Seguindo o pensamento de Agnes Heller(1989), na vida cotidiana o homem
coloca em funcionamento: todos os sentidos, todas as suas capacidades intelectuais, seus
sentimentos, paixes, ideias ou ideologias, assim como suas habilidades manipulativas.
Esse amadurecimento que nasce no grupo e na famlia, e que imprescindvel
para a vida em sociedade, permite que o homem, ao sair de seu grupo de origem- caso de
Vilanova, enquanto portugus, sobreviva e adapte-se a outros grupos, de tal forma
identificando-se com eles e, assim, colaborando tambm para a construo daquela
identidade. A histria, para Heller, se constri dentro dessa dinmica de construo e de
transformao de cotidianos. Isso provoca no sujeito uma luta constante entre o que se foi e o
que se espera ser.
7 CONSIDERAES FINAIS
Sabemos que no existem conceitos considerados seguros para o pesquisador,
uma vez que no existem verdades, mas descontinuidades que nos compelem a pensar a
diferena, os afastamentos e as disperses. Entendo a literatura negra como aqueles textos
gerados e estruturados de forma diferenciada com base na construo histrica, inscritos
atravs de uma voz negra que preserva as diferenas culturais. Trata-se, pois de uma literatura
particularizada pelo pertencimento. A literatura africana moderna no pode ser classificada,
no entendimento da maioria de pensadores, em funo da cor da pele de seus produtores, pois
estes podem ser negros, mestios ou brancos. Contudo, tal produo pode ser negra em seu
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contexto existencial, de pertena. No Brasil, esta realidade no se aplica, pois a cor da pele, no
meu entendimento, determina, alm do lugar de pertena do autor, um lugar no espao social,
e isso se relaciona diretamente com os homens que produzem as obras. Caso contrrio,
teramos a invisibilidade do sujeito, a negao do prprio sujeito. No h como negar o
sujeito que fala, pois sabemos que este sujeito se constitui na linguagem. Laranjeira reconhece
a existncia da negritude e vai entend-la como um conceito poltico em que o negro, o
mestio ou o branco toma a palavra e assume o discurso da diferena. No entanto, eu no
entendo apenas como o africano, que nem sempre negro, pode assumir o discurso da
negritude se ele no se v como negro, e, nesse sentido, o meu posicionamento difere um
pouco com relao ao de Pires Laranjeira.
No discurso de Salvato Trigo, observo uma posio assumida de branco e
colonizador cultural quando julga, como crtico, o texto de acordo com seu valor esttico, sem
interesse na autoria. Trigo justifica esta posio entendendo que o crtico ocidental no
instrumentalizado para fazer uma leitura da literatura negra, j que no tem bases para ajuizar
a respeito, com o que concordo plenamente, pois o mximo que conseguimos ajuizar de
acordo com nossos critrios, eurocntricos, os quais se definem pelo lugar sociocultural e
identitrio de onde falamos. Sob meu ponto de vista, o melhor caminho para a consolidao
de uma teoria para a literatura de negros o da poltica. Considero fundamental falar em
literatura de negros porque tenho a convico de que a raa, como signo cultural, como
condio histrica, atravs da conscincia, permite inscrever o sujeito num determinado lugar,
gerando afiliaes ao pertencimento cultural daquele indivduo. Como era previsvel, observo
que os dois crticos mantm um olhar de fora, embora Laranjeira seja mais solidrio ao negro
africano.
O contexto da literatura africana, angolana, diferente do contexto brasileiro.
Existe o entendimento de que a frica composta por negros, mestios e brancos, mas os
negros tentam reafirmar e identificar sua maioria negra. A produo literria angolana
quase desconhecida dos portugueses e talvez at dos prprios angolanos, apesar do nmero
significativo de poetas que escrevem (e se descrevem) como angolanos. Entendo a literatura
em Angola como hbrida por que mesmo contendo traos culturais dos africanos, utiliza a
lngua do branco e se constri dentro de critrios estticos eurocntricos, apresentando alguns
sinais que se referem histria, linguagem ou vivncia dos africanos no antes e no depois
da libertao de Angola. No existe neste contexto, entre os textos aqui utilizados como
corpus de anlise, qualquer referncia raa ou ao se assumir no discurso como negro. O
contexto em que Joo-Maria Vilanova transita o poltico, de denncia explorao
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capitalista, se apropriando de alguns falares angolanos, o que d, dessa maneira, um tom
especfico literatura, tornando-a angolana por incluir elementos da cultura africana e por se
identificar com essa cultura.
Por outro lado, diferente de minha posio anterior de que Brasil e frica foram
originados por contextos sociais semelhantes, e concordando com Cuti, que a realidade dos
grupos humanos sados da frica , em qualquer dos pases, diferente daquela dos que l
ficaram, pois, em termos de cultura ela foi dissolvida. Portanto, no h um cordo umbilical
entre a literatura negro-brasileira e a literatura africana, pois a literatura negro-brasileira nasce
da populao negra formada fora da frica e seus textos pouco tm a ver com a frica. E os
que tm relao com aquele continente no pertencem literatura negro-brasileira, mas aos
textos de brancos, ou negros que se querem brancos, que falam sobre a cultura africana e suas
razes, Isto significa dizer que podemos ter autores negros-brasileiros ou mulatos ainda presos
tradio, passando longe das questes atinentes s relaes raciais. O texto que se quer
negro-brasileiro est relacionado com os conflitos raciais de uma populao descendente de
escravizados em uma sociedade discriminatria como a nossa. Apenas a partir de tais
proposies possvel reconhecer a identidade negro-brasileira.
Em relao conscincia sobre as raas, a alteridade do negro uma questo
ainda controvrsia e pouco estudada em termos de cultura brasileira. Nesse sentido, suponho
que, at agora, e pelas minhas leituras, essa controversa se estenda tambm a Angola. Este o
caso tambm da preocupao com uma teoria crtica para a questo da raa como uma
categoria significativa da diferena para os estudos literrios. Entendo que o problema no
tanto o da raa ou de seu conceito, mas o silncio sobre ela. O discurso racista um discurso
culturalizado que geralmente abandona o vocabulrio explcito da raa, substituindo a
ideologia da raa pela noo de cultura, caso do discurso que percebo desde as minhas
primeiras leituras em Portugal.
Acredito na ideia de que existe raa e diferena, que existe um discurso ideolgico
que mascara essa relao mediante a manipulao. Passa a ser uma questo poltica definir
uma poltica cultural que privilegie os aspectos multiculturais. Ao crtico, cabe ver como o
escritor fez o texto ou como utilizou determinada tcnica literria pertencente ao domnio
pblico, percebendo, ento, que partido o autor poder tirar de suas estratgias textuais e se
ele reverte ou no o movimento contra o modelo original. Desvendar esse objeto como
proposta nica e irreproduzvel pode ser com certeza o maior desafio ao qual posso me propor
tanto como escritor quanto como leitor e (re) escritor.
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No podemos ser ingnuos a ponto de acreditar que um escritor, brasileiro ou
angolano, possa produzir representaes, num espao do neocolonialismo, capazes de dar
conta de uma poltica de reverso. Ele precisa manipular esses dados, sabendo-os de antemo,
como outra escritura sobre aquela j existente. Esse me parece ser o caminho tanto para
nossos escritores excludos do processo de circulao e validao do cnone literrio em
nossa sociedade, quanto para os crticos que se quiserem solidrios com uma poltica de
entendimento da diferena e de no aceitao de verdades absolutas inquestionveis.
Acredito na importncia de situar e refletir sobre a recorrncia de textos crticos
que se apresentam como mediadores e decodificadores dos sentidos dos discursos culturais a
partir de represses, prescries ou sujeies, em um contexto de poder, entre culturas
centrais e perifricas, no caso a portuguesa entendida como central, e a angolana e a brasileira
como perifricas. A literatura angolana, em funo da geografia cultural dominante,
diferentemente do Brasil, onde o negro no tem voz, tem uma certa especificidade: mesmo
tendo passado por um processo de colonizao, no teve sua visibilidade anulada ou pelo
menos nem tanto. Cada escritor tem sua esttica, mas, em comum, h a recusa ao sistema
colonial. Alguns tm saudades pr-coloniais, outros, brancos e europeus de nascimento,
optaram por visionar uma ptria africana. Entre eles, destaco Ruy Duarte de Carvalho,
Henrique Abranches, Jos Luandino Vieira e nosso autor em estudo, Joo-Maria Vilanova.
Todos eles optaram por Angola, seja por uma opo ideolgica, seja por uma viso de mundo
e no para dar razo ao mundo que o portugus criou na frica. Nesse contexto situo Joo-
Maria Vilanova como um portugus, branco, que se identificou com a causa dos angolanos.
Seus textos identificam os angolanos, h uma representao das vozes dos subalternos na voz
desse poeta, tornando seus versos na linguagem do colonizador antes de tudo uma denncia
da realidade vivenciada pelo colonizado.
Joo-Maria Vilanova lutou, com as palavras, contra o sistema de explorao
colonial. Criou uma poesia com fortes traos polticos, de enfrentamento. Seu texto
angolano, seu olhar de dentro. Foi juiz de Direito e advogado. Ao construir ensaios,
demonstrou ser um autor iniciado nos saberes eruditos. Alguns autores acreditam que utilizou
vrios pseudnimos. Alm disso, atravs do contato com as instituies dominantes (escola,
igreja, trabalho), incorporou valores e construiu sua subjetividade, ao mesmo tempo em que
interferiu nas regras e normas dessas instituies. Ao considerar-se angolano, o poeta
construiu na e para a Lngua Portuguesa elementos da subjetividade angolana. Talvez Joo-
Maria Vilanova no tenha se preocupado em se dizer portugus simplesmente porque, para
ele, tal identidade no tinha grande importncia. Hoje, o que importa para ns so os
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elementos africanos que ele incluiu na (sua) Literatura, impregnada de elementos culturais e
identitrios de um (portugus) e de outro (angolano). Acredito que o estudo da obra do autor
nos permite navegar por esses dois mundos.
Seu primeiro momento caracteriza-se pela denncia de uma realidade de
explorao portuguesa; o segundo e terceiro momentos, pelo engajamento poltico. Assim, o
autor passa do olhar atento s injustias de Angola, frustrao, desesperana e
inevitabilidade, sentimentos que transporta tambm para sua vida, culminando com sua morte,
provocada por ele mesmo.
No caso do discurso, em relao excluso, penso que a linguagem da teoria
crtica pode ser um estratagema da elite ocidental, culturalmente privilegiada, que exclui o
outro no uso de seus critrios estticos e culturais. Assim, o discurso crtico pode compactuar
com a poltica das excluses. Penso que h influncia do poder racial no julgamento de valor,
mesmo num pas como Portugal que no se v como racista. Os discursos, de certa forma,
impem uma interpretao para que se tome partido em relao s produes de uma cultura
nacional. Os discursos se valem de estratgias destinadas a mostrar e valorizar a importncia
de certas definies, reforando uma determinada viso. Existe, assim, uma tendenciosidade
que , muitas vezes, respaldada por apropriaes da teoria da literatura e que refora o lugar e
a legitimidade dos juzos formulados no mbito da Academia. O discurso do subalterno
(Spivak,2010), personificado nas vozes da literatura angolana, no toma corpo na voz da
crtica porque falar pelo subalterno no dar voz a esse outro. O subalterno subalterno, em
parte, porque no pode ser representado adequadamente pelo saber acadmico (teoria).
Vejo a literatura negra, que diferente da africana, como um ato poltico e
simblico, uma resistncia indiferena. Se ns, inclumos aqui brancos e negros
relativamente conscientes, insistirmos na conscientizao de que a questo da raa faz alguma
diferena, podemos contribuir para que a hegemonia branca seja destituda de sua autoridade
exclusiva. importante hoje ver quem fala, como fala e de que lugar. O poder de
representao est ligado ao saber. A crtica literria produz um discurso que tem em vista o
Outro, e esse Outro importante. necessrio revisar a historiografia para que se possam
ouvir essas vozes que so fundamentais, e nosso trabalho poder contribuir para tais
discusses.
O que pode, enfim, JooMaria Vilanova acrescentar teoria da literatura, teoria
dos sujeitos, das identidades, literatura angolana e s literaturas de lngua portuguesa? A
estas eu responderia: teoria da literatura, a necessidade de uma teoria para a diferena;
teoria dos sujeitos, que o processo de identificao, em uma viso ps-moderna, tornou-se
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provisrio, varivel e problemtico; teoria das identidades, o reconhecimento de identidades
fragmentadas e mltiplas; literatura angolana, a importncia do pertencimento; s literaturas
de Lngua Portuguesa, o reconhecimento da diferena.
Alm disso, acredito que somente a produo de conhecimento a partir da
diferena pode libertar-nos do jugo a que fomos e somos submetidos. Denunciar o processo
de excluso que continua a vicejar na produo cultural do negro, tanto brasileiro quanto
africano, nos ajudar a construir nosso autoconhecimento e a construir um conhecimento
emancipatrio.
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Artigo recebido em 25-03-2014
Artigo aprovado em 01-07-2014