literalivre nº 8 – mar/abr de 2018 · programa na globo, dercy de verdade(1966-1969), programa...
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LiteraLivre nº 8 – Mar/Abr de 2018
Coluna CULTíssimo
Ela já foi chamada de pimenta
malagueta, Teda Bara, Pola Negri,
malandrinha, PUTA, desbocada,
perdida…
Mas o único título que faz jus a sua
pessoa e a seu talento é um só: mito.
Afinal, de quem eu estou falando?
Da única e inigualável representante da
cultura e da arte popular brasileira:
Dercy Gonçalves.
Dolores Gonçalves Costa, a Dercy,
nasceu no interior do Rio de Janeiro, na
cidade de Santa Maria Madalena, em 23
de junho de 1907 (dizia que seu
nascimento ocorreu em 1905, mas que
foi registrada somente em 1907).
Originária de família pobre, era filha
de um alfaiate e de uma lavadeira.
Seu primeiro trabalho foi como
bilheteira de cinema, onde podia
assistir aos filmes de graça e passou a
imitar o cabelo e os trejeitos das
estrelas, foi aprendendo a atuar e
fazendo pequenas apresentações
teatrais e musicais em hotéis da
cidade. Enquanto isso sonhava em ser
uma grande artista.
Sofreu com a violência do pai
alcoólatra e com o abandono da mãe
que deixou a família devido aos maus
tratos que recebia do marido e nunca
mais deu notícias.
Seu jeito moleca causava escândalo
na cidade, fazendo com que fosse
expulsa de eventos da comunidade e
aos dezessete anos, fugiu de casa
para Macaé e se juntou a uma
companhia de teatro mambembe,
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onde trabalhou e estreou em 1929, em
Leopoldina, Minas Gerais, integrando o
elenco da Companhia Maria Castro, na
dupla “Os Pascoalinos”, ao lado do
cantor Eugênio Pascoal. Nascia nesse
momento Dercy Gonçalves.
Fazendo teatro itinerante, a dupla se
apresentou por várias cidades do
interior do Brasil até tentarem a sorte
em São Paulo, mas Pascoal contrai
tuberculose e eles vão para Niterói, em
busca de tratamento.
Sozinha, cheia de dívidas e vendendo
perfumes que ela mesma fabricava para
sobreviver, estreia em 1932 na Casa de
Caboclo, no Rio de Janeiro, com o
espetáculo Minha Terra, mas apesar do
sucesso, tem que abandonar a
temporada, pois também contraíra
tuberculose e precisava se internar.
Nessa época conheceu o exportador
de café Ademar Martins Senra, que
pagou seu tratamento, os dois
tiveram um romance, do qual nasceu
sua filha única: Decimar.
Em 1934, já recuperada, ela retorna
ao Rio de Janeiro, buscando retomar
sua carreira na Praça Tiradentes,
reduto artístico da época. Por lá,
trabalha no Teatro República, Casa de
Caboclo e em outros teatros da Praça
Tiradentes, onde torna-se conhecida
por suas interpretações improvisadas,
debochadas, cheias de escracho e
humor inteligente. Com seu talento,
participou no auge do Teatro de
Revista, trabalhando para as
Companhia de Manuel e Walter Pinto.
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Mas nem tudo eram luzes naquela
época, os artistas, principalmente as
mulheres, eram vítimas de todo tipo de
preconceito e não contavam com
nenhum apoio, segurança, ou direitos.
Taxadas como escória, até o governo do
Presidente Juscelino Kubitschek, as
atrizes do Teatro de Revista eram
obrigadas por lei a fazerem exames
ginecológicos para detecção de DSTs e
se aprovadas recebiam uma carteirinha
de trabalho vermelha, que era a mesma
carteira exigida das prostitutas e quem
não a apresentasse era presa.
Em 1942, se casa com Danilo Bastos e
em 1943 estreia no cinema com o filme
Samba em Berlim, de Luís de Barros.
Faria ao todo 25 filmes, a maioria
grandes sucessos de público (apesar
de massacrados pela crítica, que
desmerecia Dercy e as chanchadas) e
bilheteria, pois, com sua linguagem
sempre voltada para as massas, sua
irreverência e versatilidade, o público
lotava as salas de cinema de todo o
país.
Censurada e perseguida pela ditadura,
ela lutava por seu espaço,
amparando-se no carinho e no amor
do povo, que considerava seu maior
aliado.
No teatro, montou a própria
companhia, tornando-se produtora: a
Companhia Dolores Costa Bastos, que
bateu recordes de bilheteria e
produziu Burletas com Luz del Fuego,
Elvira Pagã e Zaquia Jorge. Produziu
também grandes espetáculos e depois
transferiu-se para São Paulo, no
Teatro Cultura Artística.
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Ao iniciar carreira solo, introduziu em
suas apresentações o monólogo, muitas
vezes autobiográfico, hoje conhecido
como Stand Up. Foi para a televisão,
participando do Programa Grande
Teatro; mas o sucesso só chegou
quando estreou em 1961 na TV
Excelsior, no programa Viva o Vovô
Deville, de Sergio Porto, no quadro A
Perereca da Vizinha, e depois no
teleteatro Dercy Beacoup, de Carlos
Manga, que satirizava personagens
históricos, chegando a ser a atriz mais
bem paga do Brasil. Trabalha na
Excelsior até 1964 quando vai para a
T.V. Rio e depois para a T.V. Globo, a
convite de Walter Clark e José Bonifácio
de Oliveira Sobrinho (Boni). Seu
programa na Globo, Dercy de
Verdade(1966-1969), programa de
variedades, utilidade pública e
entrevistas, alcançava 70% de audiência
aos domingos, mas foi tirado do ar com
a intensificação da censura no país após
o AI-5 (conjunto de leis que inaugurou
um dos períodos mais cruéis da história
brasileira). Ela continuou no teatro e só
retornou a T.V. no final dos anos 80,
com o fim da ditadura, passando a
integrar corpos de jurados em
programas de auditório, participou por 5
anos do quadro Jogo da Velha do
Domingão do Faustão e também de
novelas da Globo e do SBT.
Com uma categoria criada
especialmente para ela, recebeu, em
1985, o Troféu Mambembe de “Melhor
Personagem de Teatro”
Em 1991, é homenageada pela Escola
de Samba Unidos do Viradouro, com o
enredo "Bravíssimo - Dercy
Gonçalves, o retrato de um povo";
gloriosa, Dercy desfilou (causando
polêmica, como sempre), no último
carro, com os seios a mostra.
Após uma visita ao Cemitério dos
Deuses na Tailândia, ela disse ter
ouvido um pedido do anjo Milahel
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para que construísse um mausoléu de
vidro em forma de pirâmide, na cidade
onde nasceu. E depois de sofrer um
acidente de carro e uma cirurgia para
retirar um câncer de estômago, ela
apressou a construção do túmulo, que
rapidamente se tornou uma atração
turística.
Considerada vulgar por dizer palavrões e
expressar livremente sua opinião, na
vida pessoal surpreendia por seu
comportamento sóbrio e puritano, que
beirava o moralismo. Com uma carreira
de mais de 80 anos, conhecer sua
história é conhecer a história do Brasil e
da mulher brasileira. Pensando nisso a
escritora Maria Adelaide Amaral,
publicou em 1994 o livro “Dercy de Cabo
a Rabo”, baseada em documentos e no
depoimento da própria Dercy.
Sua última aparição no palco foi em
2007 na comédia teatral Pout-PourRir
onde comemorou "Cem Anos de
Humor", numa noite inesquecível.
Fechando a vida com chave de ouro,
participou do filme “Nossa Vida Não
Cabe Num Opala”, de Reinaldo
Pinheiro, em 2008, meses antes de
falecer vítima de uma pneumonia, aos
101 anos (de acordo com seu
registro), em 19 de julho no Rio de
Janeiro.
Ela foi enterrada (em pé) na cidade de
Santa Maria Madalena com palmas e
festa, em seu mausoléu em formato
de pirâmide.
Dercy Gonçalves, a grande marginal
da arte brasileira, foi uma mulher
guerreira, com uma sensibilidade
artística sem igual, exemplo de
superação e persistência, um espírito
puro, que driblou o destino,
enfrentando um mundo machista,
elitista e preconceituoso, uma
adolescente que deixou uma vida sem
futuro e fez seu próprio roteiro,
desafiou os padrões e encantou
plateias no Brasil e no exterior como
uma humorista completa,
representante máxima da figura da
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mulher como artista: corajosa,
independente, lutadora.
A mídia negligente e destrutiva do Brasil
sempre tentou diminuir a importância da
arte e da figura emblemática de Dercy
Gonçalves, tentando fazer com que as
pessoas a enxerguem como uma “velha
desbocada”, motivo pelo qual a escritora
Maria Adelaide Amaral fez de tudo para
adaptar o livro Dercy de Cabo a Rabo
para a T.V. e após muitas dificuldades
(patrocinadores diziam não querer seus
nomes ligados a “alguém” como Dercy)
conseguiu lançar na Rede Globo a
minissérie “Dercy de Verdade” em 2011,
com direção de Jorge Fernando.
Em 2012, Dercy entrou para o famoso
Guinness Book, o Livro dos Recordes,
reconhecida mundialmente como a atriz
que trabalhou mais tempo nos palcos e
também como única atriz do mundo com
mais de 100 anos a atuar num filme.
Sua figura tornou-se cult e icônica,
apesar de ainda desmerecida e
atacada pela mídia, que desdenha de
seu legado, mas tenta se aproveitar
do carinho que o público tem por sua
pessoa. Um exemplo disso aconteceu
em 2016, quando um certo
“apresentador” (que me nego a
pronunciar o nome), em sua guerra
por audiência, “violou” o mausoléu
onde ela está enterrada, para ver se
seu caixão estava mesmo em pé,
protagonizando uma das cenas mais
vergonhosas e absurdas da televisão
brasileira, que gerou revolta entre os
expectadores e fãs.
Faz 10 anos que o Brasil perdeu a
representante máxima do teatro e do
humor e por isso, no mês da mulher,
quis fazer essa singela homenagem, a
uma mulher inesquecível, que sempre
foi uma das minhas maiores
inspirações como pessoa e artista,
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resgatando sua verdadeira história, que
vai além do escracho e dos palavrões,
selecionei também dois filmes que
marcaram sua carreira.
Mercy Dercy!!!
Obrigada a todos pelas mensagens de
carinho e incentivo, na próxima tem
mais!!!
Decimar e o Guinnes Book
A Baronesa Transviada - (Brasil,
1958) – Dirigido por Watson Macedo,
conta a história de Gonçalina (Dercy
Gonçalves), uma pobre manicure que
descobre pelos jornais que pode ser a
filha desaparecida de uma baronesa.
Ela vai à casa de sua possível mãe,
onde é reconhecida. Quando a
baronesa morre, Gonçalinha torna-se
sua única herdeira e investe parte da
fortuna num filme. Esta situação não
agrada os demais integrantes da
família, que planejam um golpe. Com
roteiro de Chico Anísio, o filme critica
a decadência dos Estúdios da Vera
Cruz e conta com uma cena de dança
hilária, que faz referência a Fred
Astaire e Ginger Rogers.
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Dona Violante Miranda - (Brasil,
1960) - Dona Violante (Dercy
Gonçalves) é dona de um bordel e cria,
com muito cuidado, a filha de uma de
suas prostitutas. A menina viaja para
estudar em Paris e quando volta, se
apaixona pelo neto de um coronel muito
conservador. Dirigido por Fernando de
Barros, com um grande elenco composto
por Dercy Gonçalves, Odete Lara e
Mauro Mendonça.
Para contato e/ou sugestões:
https://www.facebook.com/cultissimoanarosenrot
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