linguagem escrita e distÚrbio do ...sp.cefac.br/trabalhosrevistacefac/originais abr07/rc_lgg... ·...

36
Curitiba, 28 de março de 2007. Ao editor da Revista Cefac, Segue abaixo o artigo intitulado A CLÍNICA FONOAUDIOLÓGICA E A LINGUAGEM ESCRITA: ESTUDO DE CASO para sua apreciação. Keylla Dariele Rivabem Ana Cristina Guarinello Giselle Massi Ana Paula Berberian

Upload: vanthuy

Post on 09-Dec-2018

217 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Curitiba, 28 de março de 2007.

Ao editor da Revista Cefac,

Segue abaixo o artigo intitulado A CLÍNICA FONOAUDIOLÓGICA E A LINGUAGEM ESCRITA: ESTUDO DE CASO para sua apreciação.

Keylla Dariele Rivabem Ana Cristina Guarinello Giselle Massi Ana Paula Berberian

A CLÍNICA FONOAUDIOLÓGICA E A LINGUAGEM ESCRITA: ESTUDO DE CASO

LINGUAGEM ESCRITA: ESTUDO DE CASO

SPEECH LANGUAGE CLINIC AND THE WRITTEN LANGUAGE: STUDY OF A CASE

Keylla Dariele Rivabem – Mestre, Fonoaudióloga Clínica.Ana Cristina Guarinello – Doutora, Docente do Programa de Mestrado e Doutorado em Distúrbios da Comunicação da Universidade Tuiuti do Paraná. Giselle Massi – Doutora, Docente do Programa de Mestrado e Doutorado em Distúrbios da Comunicação da Universidade Tuiuti do Paraná. Ana Paula Berberian – Doutora, Docente do Programa de Mestrado e Doutorado em Distúrbios da Comunicação da Universidade Tuiuti do Paraná.

Endereço para correspondência:Ana Cristina GuarinelloRua Manoel Pedro, 430 apt 404Curitiba/ Paraná(41)[email protected]

2

RESUMO

Objetivo: demonstrar que dificuldades de leitura e escrita devem ser avaliadas e

tratadas na clínica de linguagem. Método: Para esse estudo foi analisado, a partir de

uma concepção que toma a linguagem como atividade constitutiva,

longitudinalmente um caso clínico de um sujeito dito portador de distúrbio leitura e

escrita, o qual após se submeter a avaliação fonoaudiológica apresentava

produções escritas distantes da convenção ortográfica. Resultados: a terapia de

linguagem foi eficiente para apropriação da modalidade escrita, já que no decorrer

do tratamento houve melhora e superação das queixas. Conclusão: por meio da

apropriação da leitura e da escrita esse sujeito pode ser visto como alguém capaz

de utilizar essa modalidade de linguagem enquanto autor de sua própria história.

Descritores: linguagem, leitura e escrita, fonoterapia, distúrbios.

3

ABSTRACT

Purpose: to demonstrate that reading and writing disorders should be evaluated and

treated by language therapy. Method: To this study, language was understood as a

constitutive activity; one clinic case of a subject who suffers of reading and writing

disorder was longitudinal analyzed. After speech language therapy evaluation, the

written language productions seem to be distant to the orthographic conventions.

Result: Language therapy was efficient to the appropriation of written language,

besides during the treatment the complaints were overcame. Conclusion: with the

appropriation of this modality of language, this subject could be understood as

someone who has the capacity to use written language as the author of its own

history.

Keywords: written language, reading and writing, speech and language therapy.

4

INTRODUÇÃO

Este trabalho teve sua origem em virtude de um aumento significativo de

encaminhamentos para avaliações e atendimentos de crianças diagnosticadas como

portadores de dificuldade ou distúrbio de aprendizagem de leitura e escrita à Clínica

Fonoaudiológica (1).

Esses encaminhamentos, em geral, são fundamentados e baseados no fato

destas crianças não seguirem o padrão de aprendizagem estabelecido pela escola

para esta modalidade de linguagem. Em nossa prática clínica, temos observado

também que os profissionais envolvidos no diagnóstico e no tratamento destas

crianças - médicos, psicólogos, fonoaudiólogos e psicopedagogos - em muitos casos

confirmam a suspeita da escola, na medida em que se afastam dos critérios

lingüísticos capazes de esclarecer o processo de construção do objeto escrito.

Com efeito, grande parte dos pacientes encaminhados para terapia

fonoaudiológica chega com diagnósticos de falhas perceptuais, como por exemplo,

no processamento auditivo central. Na clínica de linguagem, quando são realizadas

a entrevista inicial e a avaliação, percebe-se que a queixa maior da escola e dos

pais relaciona-se com as dificuldades vinculadas à linguagem escrita1 e não a

dificuldades de percepção auditiva, visual etc.

Estudos (2), (3) demonstram que é fundamental que o fonoaudiólogo considere a

história singular de cada sujeito. A este profissional cabe re (construir) com o

paciente uma relação com a escrita, na qual se perceba a preocupação com

aspectos discursivos, no decorrer de todo o processo clínico terapêutico, desde o

momento inicial, quando acontece a primeira entrevista, passando pela avaliação, a

terapia até a finalização com o processo de alta.1 Um estudo relata em seu estudo que no que diz respeito ao aspecto terminológico, diversas nomenclaturas relacionadas às ditas dificuldades de leitura e escrita, tais como, dificuldade de aprendizagem específica de leitura e escrita, problema de aprendizagem, dislexia vem sendo usadas indiscriminadamente para referir-se a questões relacionadas à aprendizagem ou uso da escrita(4).

5

Acompanhando essa orientação, esta pesquisa teve como objetivo

demonstrar que os distúrbios de leitura e escrita devem ser avaliados e tratados na

clínica de linguagem. Ressalta-se que nesse caso entendemos a linguagem como

atividade constitutiva, um trabalho coletivo, histórico e social, capaz de incorporar o

sujeito e suas atividades específicas de construção, utilização e interpretação da

escrita. (5), (6)

Considera-se que muitas das crianças que são encaminhadas para

tratamentos especializados acabam por receber um diagnóstico de disléxicas pelo

fato de apresentarem uma escrita na qual aparecem claramente as elaborações de

suas hipóteses acerca da escrita. Essas hipóteses são em geral avaliadas como

sinais patológicos e não como parte do processo de aquisição da linguagem escrita.

Esses casos constituem evidência de uma visão simplista e reducionista do

fracasso escolar e social, pois as causas das dificuldades de leitura e escrita são

relacionadas apenas às inaptidões cognitivas, orgânicas, perceptuais e motoras

(distúrbios/deficiências) intrínsecas ao indivíduo, e geralmente a vivência de cada

sujeito com a linguagem escrita não é considerada.

Alguns autores(7), (8) questionam a questão da “prontidão” para a aprendizagem

da leitura e escrita e demonstram o equívoco dessa abordagem que enfatiza a

maturidade dos aspectos neurofisiológicos, o ato motor de escrever e a integridade

visual e auditiva (9), (10), (11), (12). Nessa abordagem, a visão e a percepção da forma dos

símbolos visuais são avaliadas e treinadas por meio de atividades como a cópia,

enquanto a percepção e a discriminação auditiva são avaliadas por meio de

atividades de ditado (13).

Ressalta-se que não é possível falar sobre as dificuldades de leitura e escrita

de modo consensual, pois há discordâncias de caráter etiológico, sintomatológico e

6

terminológico. Na etiologia, diferentes especialidades médicas como neurologia,

oftalmologia, otorrinolaringologia, psiquiatria e genética passaram a opinar sobre o

assunto, numa perspectiva organicista, mas há discordâncias entre profissionais da

mesma especialidade (14).

Estudiosos da educação alinhados à visão neuropsicológica apontam

sintomas como dificuldades para discriminar formas, tamanhos e cores; dificuldades

na discriminação de figura-fundo; problemas de noção corporal; dificuldades na

coordenação de movimentos. Citam ainda disfunção cerebral relacionada ao sistema

nervoso central e ao “amadurecimento” desse sistema (15).

A área educacional, assim como a médica, demonstra uma imprecisão

conceitual em torno dos ditos distúrbios/dificuldades de leitura e escrita. Além disso,

geralmente acompanha a mesma tendência de detectar falhas orgânicas,

localizando os problemas no aprendiz (14).

Na escola, muitas vezes questões educacionais, culturais e familiares não são

devidamente consideradas no processo de construção da escrita, assim como não

são priorizadas as funções, usos e valores dessa modalidade de linguagem.

Desconsidera-se que, nesse processo, a criança pode errar, formular hipóteses,

questionar e manipular a escrita, como faz no processo de construção da oralidade,

e geralmente são ressaltados aspectos gráficos, em detrimento de aspectos

textuais.

Um estudo questiona esses fatos e pergunta: "de onde vem a força do

pressuposto de que problemas de linguagem são determinados por dificuldades

perceptuais, mesmo frente aos sucessivos fracassos em se estabelecer objetiva e

claramente as relações entre percepção e linguagem?" (16).

7

Contrariando uma visão reducionista da linguagem, estudos lingüísticos

relacionam a escrita com seu uso efetivo, considerando condições de produção,

finalidade comunicativa e a relação estabelecida entre autor e leitor. Nessa direção,

tais estudos pautados na ótica discursiva e interacionista da linguagem trazem

novas possibilidades de compreensão do processo de construção da linguagem

escrita (17).

Ao analisarmos os textos elaborados pelo sujeito aprendiz que faz parte desta

pesquisa pretendemos demonstrar que o aprendiz é alguém que reflete sobre a

escrita e age sobre ela. Assim, ressaltamos que o processo de apropriação da

escrita implica na constituição de sentido, o qual dependente da interação

estabelecida com o outro por meio da atividade da escrita e que os erros são

indícios que se constituem como registros dos momentos em que a criança,

segundo sua relação com o outro e com a própria escrita, torna evidente a

manipulação que faz da linguagem (18), (19).

Crianças que só produzem escrita por meio de atividades mecânicas como

ditados, cópias, redações, quando solicitadas a produzir textos, reproduzem em um

conjunto de palavras ou frases muitas vezes fragmentos dos livros didáticos e das

atividades de sala de aula, escondendo o que conhecem e o que são capazes de

produzir. Muitas vezes o aprendiz tem como idéia básica que antes de dominar a

convenção ortográfica não é capaz de produzir escritas significativas.

Nesse sentido, a reflexão teórica que nos serve de base afasta-se das

perspectivas que não consideram a historicidade da linguagem, as situações

efetivas de uso da escrita e o contexto social das interações verbais. Buscamos,

assim, integrar uma concepção de linguagem mais abrangente, na qual o sujeito

atua sobre o outro e assim se constitui.

8

Esse enfoque possibilita reflexões que buscam a interação verbal para

produções de linguagem, como a perspectiva sociointeracionista, que se distancia

do mecanicismo que foca a linguagem apenas como veículo de informação,

resgatando a interlocução, a autoria de transformações sociais, constituindo o

fenômeno lingüístico. Essa concepção toma a linguagem como trabalho social e

histórico, que constitui recursos das línguas naturais e regras de utilização em

situações de uso, o texto em perspectiva de diálogo, para concretização da prática

interpessoal em situações de uso efetivo, envolvendo o eu e o outro.

MÉTODOS

Essa pesquisa foi realizada na Clínica de Fonoaudiologia da Universidade

Tuiuti do Paraná. Foi objeto deste estudo um caso clínico de paciente adolescente

que freqüentou terapia fonoaudiológica na clínica desta Instituição. O sujeito chegou

9

à clínica com o diagnóstico de portador de distúrbio do processamento auditivo

central, após passar pelo exame de processamento auditivo, ou seja, chegaram à

clínica fonoaudiológica com um diagnóstico de uma inaptidão física.

Para análise longitudinal do caso, foram utilizadas as informações contidas no

prontuário do paciente, que constam de entrevista inicial, avaliação, relatórios

bimestrais, relatórios de visitas à escola, registros diários de terapia e exames

complementares, como laudos médicos e educacionais. Esse paciente foi atendido

por uma formanda do curso de Fonoaudiologia da mesma Universidade, que se

colocou à disposição para o esclarecimento de qualquer dúvida. Cabe notificar que a

utilização dos dados foi autorizada pela estagiária e pela família do paciente. Além

disso, esta pesquisa foi aprovada pelo comitê de ética da Universidade Tuiuti do

Paraná, sob o protocolo número 077/2005.

O trabalho realizado na Clínica de Fonoaudiologia da UTP fundamenta-se em

terapias que enfatizam o uso social da linguagem por meio de atividades

contextualizadas.

Na análise do caso clínico foram enfatizados os aspectos discursivos da

linguagem, a situação de produção e os fatores familiar, social e escolar, sob o

enfoque sociointeracionista. Nesse enfoque, tais fatores são fundamentais para que

possamos perceber como é a produção escrita de cada sujeito. Assim, entendemos

que todos os aspectos da vida do sujeito, como a família e a escola, podem

influenciar no seu processo de apropriação da escrita.

DISCUSSÃO E ANÁLISE

O Caso A.

10

A. é um menino nascido em 20/03/1992, que foi levado pela mãe para

consultar com um neuropediatra devido às dificuldades que apresentava na escola.

Após realizar a avaliação do processamento auditivo central, com 12 anos e 8

meses, foi encaminhado pelo neurologista com o seguinte laudo: "Solicito:

Fonoterapia com ênfase a reabilitação do processamento auditivo. Motivo: TDA/H

desatento, Dislexia" (segundo laudo médico), em 18/11/2004.

A mãe de A. procurou a Clínica de Fonoaudiologia da Universidade Tuiuti do

Paraná em março de 2005. A entrevista inicial realizada com a mãe revelou dados

referentes aos contextos familiar e escolar de A., os quais nos auxiliam a

encaminhar a análise da relação estabelecida entre A. e a linguagem escrita.

Quanto ao contexto familiar, A. convive com os pais e uma irmã mais nova. O

pai é mecânico e possui o ensino fundamental incompleto e a mãe é recepcionista, e

atualmente está cursando o ensino médio. Ao ser questionada pela terapeuta sobre

como vê o seu filho, a mãe de A. respondeu: “Ele é maravilhoso...ah é meu filho”.

A mãe contou que até os 11 anos A. era bem diferente, “não era assim

fechado” e que em julho de 2004 o neuropediatra prescreveu um remédio para

depressão. A depressão foi percebida pela mãe após uma briga de A. com um

amigo, fato que o deixou muito triste, e então a mãe decidiu levá-lo ao médico. Foi

encaminhado ao especialista em neuropediatria que solicitou a realização de

exames, dentre esses o de processamento auditivo central que mostrou resultado

alterado. A mãe decidiu não dar para o filho o remédio indicado pelo neuropediatra,

ao invés disso, tratou-o com homeopatia.

De forma geral, a família não costuma ler, mas em casa existem materiais

escritos diversificados como jornais, revistas e gibis. A mãe tem o hábito de ler para

a irmã de A. Referiu que fazia o mesmo com A. quando este era pequeno, mas

11

revela que atualmente percebe que o filho parece ler e escrever por obrigação e não

apresenta interesse em tais atividades.

A mãe relatou ainda que os pais sempre notaram que o filho era “uma criança

inquieta e agitada”. Até os sete anos de idade, A. “trocava as letras na fala” e ela

sempre o corrigia.

Quanto ao contexto escolar os pais já haviam observado que o filho

apresentava dificuldades escolares em séries anteriores. Quando A. reprovou pela

primeira vez a 5ª série, encararam o fato normalmente, “isso faz parte”. Quando

ocorreu a segunda reprovação nesta mesma série, a mãe procurou a direção da

escola e, apesar de ter queixas da escola, decidiu que daria continuidade aos

estudos do filho neste mesmo estabelecimento por ser próximo de sua casa e

possuir poucos alunos, o que torna possível “manter um certo controle” sobre o filho.

Complementou sua fala dizendo que sabe que existem escolas muito melhores, mas

optou por dar continuidade aos estudos de A. nesta mesma escola, porque julga que

as outras têm um número muito grande de alunos, afirmando “sabe como é,

geralmente é atraído pelo grupo mau, então resolvi mantê-lo nesta escola”. Em

2004, A. reprovou a 5a. série pela terceira vez.

A maior queixa da mãe em relação à escola é que “o que ele não sabe,

ninguém ensina”, pois percebeu que o filho era “desligado, e a escola nunca fez

nada”. A escola nunca a chamou para uma conversa sobre o comportamento de A.,

exceto ao final do ano letivo para receber a notícia de que o filho havia sido

reprovado. Em 2005, a mãe parou de trabalhar para se “dedicar ao filho, para

acompanhá-lo melhor”, já que percebeu que estava com dificuldades escolares.

Passou então a freqüentar a escola para saber como era seu comportamento e

quais eram seus interesses. Chegou mesmo a ser parte integrante do conselho

12

estudantil. A mãe referiu que estava ajudando na cantina da escola diariamente,

porém seu objetivo era verificar como seu filho se comportava e como ele era

tratado pelos professores.

Após a entrevista inicial, no primeiro contato com A., a terapeuta percebeu

que este se mostrava receoso e aparentava ser muito tímido. Ao ser questionado

sobre o que o trazia à terapia, ele primeiramente disse não saber e em seguida

respondeu que veio “fazer um fono...não sei dizer”.

A terapeuta então perguntou sobre a escola, as dificuldades e as reprovações

de A. e esclareceu que iriam trabalhar tais dificuldades. Então A. revelou que não

tinha dificuldades na escola, mas em seguida afirmou ter dificuldade em matemática

e em inglês e gostar de história e ciências. Questionado a respeito dos professores,

A. disse que eles nunca falaram nada sobre suas dificuldades escolares.

Nesse dia, A. trouxe seus cadernos escolares, ao folhá-los a terapeuta

observou que os conteúdos estavam em sua maioria incompletos. Ao ser

questionado sobre isso, A. revelou que não tinha tempo para copiar, porque o sinal

tocava antes. Então a terapeuta perguntou se A. tentava copiar os conteúdos que

faltavam em seus cadernos das anotações de colegas, e A. respondeu que copiava

antes de a professora fazer a verificação dos cadernos ou antes da prova para

estudar a matéria. A terapeuta percebeu que A. mostrou-se incomodado com suas

perguntas e que, para obter respostas, ela precisou ser insistente nessas questões.

Quando a terapeuta perguntou o que ele achava de sua mãe estar presente

na escola quase todos os dias, A. disse achar “legal” e que a mãe freqüentava a

escola porque estava ajudando na cantina.

Ao ser questionado sobre o que gostava de ler, A. somente balançou a

cabeça em sinal negativo. Com a insistência da terapeuta, revelou que não gostava

13

de ler nada e que nenhum assunto despertava seu interesse, mostrando-se bastante

resistente e revelando que só lia alguma coisa se a professora pedisse.

Durante a avaliação, a terapeuta utilizou atividades que interessassem A., e

percebeu que ele não apresentava dificuldades com relação a leitura, apenas se

confundia as vezes com relação à pontuação e à emissão de certas palavras, além

disso, às vezes ele não entendia o que lia. Na avaliação da escrita, foi percebido que

A. ainda não dominava a convenção ortográfica com relação a pontuação e

acentuação, e apresentava dúvidas quanto ao uso de certas letras, aparecendo

também omissões e trocas de letras. Seu texto possuía coesão e coerência, sua

letra era inteligível e não fazia apoio na oralidade, mas fazia deduções. Não fazia

uso da borracha, e ao achar necessário fazer alguma mudança na sua escrita,

rasurava a palavra.

Na avaliação da linguagem oral de A. percebeu-se era capaz de perguntar,

responder e tinha boa compreensão, porém falava pouco, mostrando-se bastante

retraído e tímido. Durante essa avaliação, não manteve nenhum contato visual com

a terapeuta, o que demonstra ainda mais sua introspecção. Além disso, a terapeuta

percebeu que A. encontrava-se desmotivado em relação à escola e a qualquer

atividade proposta que envolvesse leitura ou escrita. Parecia sentir-se incapaz e

com a auto-estima muito baixa nesse aspecto de sua vida.

Durante o processo de tratamento fonoaudiológico, a terapeuta utilizou

estratégias contextualizadas, como diálogos compartilhados, leituras

compartilhadas, interpretações de textos, leituras de revistas de interesse do

paciente, montagens de histórias em quadrinhos, mostrando ao paciente que o que

está em jogo no aprendizado da escrita é a sua relação com esta e com seus

interlocutores.

14

Com o intuito de encaminhar a análise deste caso, apresentamos a seguir

dois textos produzidos por este sujeito e explicitamos as condições de produção dos

mesmos.

Em conversa informal, a terapeuta perguntou sobre os interesses de A. e este

revelou gostar muito de bandas de “rock”. A terapeuta então propôs que lessem

alguns artigos sobre suas bandas preferidas e que A. relatasse por escrito algo que

tivesse lido e julgasse interessante que outras pessoas soubessem. Nessa ocasião,

A. parecia estar um pouco mais à vontade.

Texto 1

Nome led. zeppilin foi por causa de uma Balão que esplodio na orlanda 1950,

comesarão a tocar em Bar? e gravarão o prineicede na orlanda em uma gravadora e

começarão a fazer show.

No primeiro texto analisado é possível perceber que A. estabelece relação

entre suas partes. A. iniciou sua produção com o nome da banda de rock que

escolheu para esta atividade. Percebe-se que A. estabeleceu uma seqüência

temporal na ordenação textual tentando garantir uma sucessão de eventos, nos

quais aparece uma data, e a seguir relata os fatos que se sucederam a esta:

‘começaram, gravaram o primeiro CD’. Da mesma forma procura escrever um texto

coeso, com a explicação de causalidade dos fatos ‘foi por causa’.

A análise do texto mostra que este sujeito demonstra condições de operar

com organizadores textuais, mas é fato que esta produção apresenta incompletudes

que não permitiriam que um leitor que não tivesse um conhecimento prévio sobre o

assunto conseguisse compreender o texto.

15

Observando a seqüência textual elaborada por A., percebe-se que se faz

necessário um trabalho sobre seu texto escrito para explicitar ao leitor várias

questões relativas à sua produção, tais como do que se trata, que fatos sobre esta

banda tentou relatar, qual é a intenção de seu texto. Assim, A. deixa pistas que

podem auxiliar o outro - o professor, o fonoaudiólogo, o psicólogo ou qualquer

profissional - a participar efetivamente do seu processo de construção de escrita, na

medida em que mostra a necessidade de um trabalho com a escrita voltado para a

construção conjunta da significação.

Um estudo aponta que uma explicação para construções textuais lacunares,

como a que analisamos acima, está intimamente ligada a um ensino centrado em

uma metalinguagem gramatical, em detrimento de reflexões acerca do

funcionamento efetivo da língua em textos (20).

Apesar da queixa deste menino estar pautada em trocas de letras como, por

exemplo, ‘comesarão’ para começaram, ‘esplodio’ para explodiu, ‘orlanda’ para

Holanda e omissões de letras, como em ‘prineicede’ para primeiro CD, não são

questões gráficas e convencionais da escrita que fazem com que seu texto seja

lacunar, mas questões discursivas. Nessa oportunidade, a terapeuta começou a

questionar A. acerca das funções e dos usos sociais da linguagem escrita; além

disso, procurou fazer com que A. se sentisse mais à vontade, buscando conquistar

sua confiança.

Em maio de 2005, a terapeuta e sua supervisora de estágio foram à escola

freqüentada por este menino para coletar informações sobre como era este aluno

em sala de aula. Durante a visita a pedagoga relatou que A. é um aluno introspectivo

e tímido e, com relação às disciplinas da escola, afirmou que ele não participava das

aulas, não se colocava e até mesmo não fazia as atividades propostas pelo

16

professor. Também foi discutido o laudo médico que dizia que A. era portador de

transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, desatento e disléxico. A escola

concordou com a terapeuta e com a supervisora que o comportamento do aluno não

era de hiperatividade, pois parecia bastante tímido e por vezes até mesmo apático.

Além disso, muitas vezes nem participava das atividades propostas pela escola.

Quanto à dislexia, foi esclarecido que durante as sessões que A. havia freqüentado

na clínica de fonoaudiologia, percebeu-se que sua dificuldade de leitura e escrita

estava intimamente ligada à desmotivação, à falta de interesse e às questões

relacionadas à sua história, como por exemplo, o fato de ter reprovado três vezes a

mesma série, e sua mãe só ter procurado ajuda após a última reprovação. A

pedagoga então concordou em mudar a atitude da escola em relação a A., tentando

motivá-lo.

Após a visita à escola, A. continuou freqüentando as sessões de fonoterapia,

e o trabalho prosseguiu por meio de atividades de seu interesse com o intuito de

motivá-lo para as atividades com a linguagem escrita.

Aos poucos, a terapeuta foi conquistando a confiança de A., que já se

mostrava mais solto, desinibido e sorridente. Estava também mais participativo e

mais interessado nas atividades propostas. As terapias continuaram com atividades

referentes à linguagem escrita, com intuito demonstrar a função dessa modalidade

de linguagem para A.

No próximo texto analisado, A. deveria escrever um final para uma história

que havia lido.

Texto 2

17

...na hora do recreio ouvi um Barulho estranho vindo da floresta. e depois da escola

eu fui lá ver.

No que se refere à extensão da escrita queremos enfatizar que não estamos

analisando o texto a partir dos critérios extensionais, mas sim “como prática

intersubjetiva que se constrói no próprio processo de enunciação” (6). Visto assim,

não se pode tomar o volume de escrita como critério de julgamento de capacidade

ou incapacidade do aprendiz. Essa autora ressalta ainda que, como a relação de

cada aprendiz com a linguagem é única e singular, depende também das

circunstâncias familiares e escolares que teve oportunidade de vivenciar em relação

à linguagem escrita.

A terapeuta relata que A. escreveu com mais facilidade, porém teve

dificuldade para inventar algo sobre o que escrever. Neste trecho, observa-se

apenas um uso indevido de letra maiúscula no meio de frase, em ‘barulho’ que A.

grafou com ‘b’ maiúsculo e no início da frase após ponto final uma letra minúscula,

quando pela convenção ortográfica deveria usar letra maiúscula.

Após um semestre de terapia, a terapeuta explicou a A. que as dificuldades

que apresenta com a linguagem escrita são comuns a todos os usuários que

aprendem esta realidade lingüística. A mãe disse que percebeu a mudança de A.,

que notou que ele está mais feliz e desinibido, mais curioso, que faz perguntas e

comentários sobre diversos assuntos, que antes não fazia. Além disso, apresentou

melhora significativa na escola.

A. realizou novo exame de processamento auditivo central em 02/08/2005, e

os resultados obtidos no teste não sugeriram alteração da percepção auditiva.

18

O que queremos ressaltar no que diz respeito a esse caso é que, além dos

problemas com a leitura e a escrita, A. estava deprimido, desanimado, desmotivado

e sentindo-se incapaz. Como tinha reprovado pela terceira vez a 5a. Série sentia-se

desinteressado e desvalorizado neste aspecto, o que estava influenciando o seu

processo de apropriação da escrita.

Parece que nem sua família nem a escola acreditavam que A. era capaz de

aprender. Seu comportamento na escola dava sinais claros de como estava se

sentindo, pois apresentava um comportamento desleixado com relação a escola,

como se não "estivesse nem aí" para o ensino. Esse fato pode ser comprovado,

quando em uma ocasião a mãe do menino afirmou que ele andava "aprontando com

as meninas". Talvez essa tenha sido a forma que encontrou para chamar a atenção

de todos, afinal parecia-lhe melhor ser o “malandro” da escola do que ser o incapaz,

o fracassado, o que não aprende.

A escola também se acostumou com a atitude passiva de A., e já não insistia

no seu processo de aprendizagem, reprovando-o por três vezes consecutivas.

Como A. se sentia na escola? Ele tinha lugar nesse espaço para aprender?

A família evitava falar sobre as dificuldades de A. com ele, mas ao mesmo

tempo, a mãe freqüentava a escola para “observar o menino de perto”. Além disso, a

mãe preferiu deixá-lo na mesma escola em que A. reprovou três vezes a mesma

série, pois revelou que em outra escola A. se envolveria com a “turma do mal”. A

mãe ao mesmo tempo que revela certo controle sobre A., parece ser passiva diante

de suas reprovações, já que só procurou ajuda após a terceira. Como A. se sentia

em uma família que notava suas dificuldades, mas não discutia com ele esse

assunto?

19

O neurologista em apenas uma consulta revelou que A. era desatento e

disléxico e o encaminhou para tratamento fonoaudiológico com ênfase no

processamento auditivo. Como o processamento auditivo pode sanar as dificuldades

de A. referentes à linguagem escrita?

Quando iniciou a fonoterapia, A. percebeu que poderia encontrar o apoio que

precisava para se apropriar da escrita como um objeto do conhecimento e que não

estava mais sozinho neste percurso, podia sentir-se acolhido e entendido, agora

tinha a quem recorrer, resgatando assim sua confiança no outro e em si mesmo.

Como a terapeuta valorizava suas produções, mostrava seus valores, reconhecia

seu esforço, demonstrava confiança nele e levava em conta seus sentimentos

procurando compreender suas atitudes diante das atividades propostas, sentiu-se

encorajado, permitiu-se tentar novamente e assim percebeu-se capaz de operar

sobre esta modalidade de linguagem.

CONCLUSÃO

Nossa prática clínica vem oferecendo aos pacientes que buscam atendimento

fonoaudiológico diagnosticados como portadores de distúrbio de aprendizagem ou

de linguagem, terapias nas quais procuramos trabalhar com atividades significativas

para o sujeito, que apresentem um contexto social de uso efetivo da linguagem

escrita e o papel que ela exerce na sociedade.

20

Nesse sentido, o trabalho realizado com esse sujeito na Clínica de

Fonoaudiologia da Universidade Tuiuti do Paraná levou em conta que as hipóteses

que ele fazia ao usar a escrita não eram indícios patológicos, mas pistas que

mostravam a própria ação do sujeito em processo de apropriação da linguagem

escrita.

Além disso, observamos que no decorrer do tratamento houve melhora e

superação das queixas, com relação ao dito distúrbio. Assim, outros aspectos

decorrentes dessas dificuldades como a insegurança, a falta de motivação e a baixa

auto-estima também foram enfatizados no processo terapêutico percebendo esse

sujeito como alguém capaz de utilizar a linguagem escrita enquanto autor de sua

própria história.

REFERÊNCIAS

1- Massi, GAA. A escrita de uma aluno: uma análise lingüístico textual. Pró-fono

2001; 13(2):190-198.

2 - Dauden AT, Mori CC. Linguagem Escrita: Tendências e reflexões sobre o

trabalho fonoaudiológico. São Paulo: Pancast, 2004.

21

3 – Guarinello AC, Pan MAGS, As contribuições da lingüística textual para avaliação

da linguagem na infância. Pró-fono 2001; 13(2): 181-189.

4 - Massi GAA. Reflexões sobre o processo de aquisição da escrita e a dislexia. Rev

Letras 2005; 65: 153-172.

5 – Guarinello AC. O papel do outro na produção escrita de sujeitos surdos. Dist

Com 2005; 17(2): 245-254.

6 - Massi GAA. A outra face da dislexia. [Doutorado]. Curitiba (PR): Programa de

Pós-Graduação em Letras, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes.

Universidade Federal do Paraná; 2004.

7 - Dauden AT, Mori CC. Linguagem escrita: quando se escreve, como fazê-lo e

para quê? – Reflexões sobre a prática fonoaudiológica. In: Dauden AT, Junqueira P.

(Org). Aspectos atuais em terapia fonoaudiológica. São Paulo: Pancast, 1997. p. 49-

59.

8 – Massini L. A escrita na clínica fonoaudiológica. Dist Com 1999; 10(2): 193-204.

9 – Alvarez AMMA, Caetano AL, Roman R. Diagnóstico e reabilitação da dislexia:

uma visão neuropsicológica. Rev Cefac 1999; 1(2): 96-106.

10- Jakubovicz R. A percepção visual e a possível correlação com a aprendizagem

da leitura e da escrita. Rev Soc Bras Fono 1998; 2(4): 6-11.

11 – Marchiori LLM. Problemas de natureza motivacional no desenvolvimento das

crianças com dificuldades de aprendizagem na escola. Pró-fono 1997; 9(2): 78-82.

12 - Navas ALGP. O papel das capacidades metalingüísticas no aprendizado da

leitura e escrita e seus distúrbios. Pró-fono 1997; 9(1):66-69.

13 – Mousinho R, Staroski P. Análise lingüística de figura-fundo na compreensão de

narrativas – validação da proposta de avaliação. Fono atual 2002; 5(21): 40-46.

22

14 - Massi GAA, Beerberian AP, Guarinello AC, Bortolozzi KB, Pellanda A. Enfoques

acerca da aquisição da linguagem escrita: distúrbios ou hipóteses? In: Berberian AP,

Massi GAA, Guarinello AC (Org). Linguagem escrita: referenciais para a clínica

fonoaudiológica. São Paulo: Plexus, 2003. p. 39-60.

15 - Ellis WA. Leitura, escrita e dislexia: uma análise cognitiva. Porto Alegre: Artes

Médicas, 1995.

16- Andrade L. Ouvir e escutar na constituição da clínica de linguagem. [Doutorado].

São Paulo (SP): Faculdade de Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem,

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2003.

17 – Santana AP. A linguagem na clínica fonoaudiológica: implicações de uma

abordagem discursiva. Dist Com 2001; 13(1): 161-174.

18 – Perrotta C. Breve estudo de caso: uma abordagem da escrita na terapia

fonoaudiológica. Dist Com 2002; 14(1): 91-102.

19 – Perrotta C. O trabalho terapêutico fonoauidológico com a linguagem escrita:

considerações sobre a visitação a gêneros discursivos. Dist Com 2004; 16(2): 181-

193.

20 - Geraldi JW. Portos de passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

TERMO DE RESPONSABILIDADE

Nós, Keylla Dariele Rivabem (RG 53391416/ CPF85502375900), Ana Cristina

Guarinello (RG 4439250-0/ CPF 92271871872), Giselle Massi (RG 1.615.231-5/

23

CPF 729653559-87) e Ana Paula Berberian (RG 12176006/ CPF 15177533840), nos

responsabilizamos pelo conteúdo e autenticidade do trabalho intitulado A CLÍNICA

FONOAUDIOLÓGICA E A LINGUAGEM ESCRITA: ESTUDO DE CASO e

declaramos que o referido artigo nunca foi publicado ou enviado a outra revista,

tendo a Revista CEFAC direito de exclusividade sobre a comercialização, edição e

publicação seja impresso ou on line na Internet. Autorizamos os editores à

realizarem adequação de forma, preservando o conteúdo.

Curitiba, 28 de março de 2007.

24