libert(aÇÃo) em lygia clark: anÁlise da obra o homem …

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE – FURG INSTITUTO DE LETRAS E ARTES – ILA CURSO DE ARTES VISUAIS LICENCIATURA E BACHARELADO Elisângela Rodrigues Costa LIBERT(AÇÃO) EM LYGIA CLARK: ANÁLISE DA OBRA O HOMEM NO CENTRO DOS ACONTECIMENTOS RIO GRANDE, novembro de 2015

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CURSO DE ARTES VISUAIS LICENCIATURA E BACHARELADO
Elisângela Rodrigues Costa
LIBERT(AÇÃO) EM LYGIA CLARK: ANÁLISE DA OBRA O HOMEM NO CENTRO DOS ACONTECIMENTOS
RIO GRANDE, novembro de 2015
ELISÂNGELA RODRIGUES COSTA
LIBERT(AÇÃO) EM LYGIA CLARK: ANÁLISE DA OBRA O HOMEM NO CENTRO DOS ACONTECIMENTOS
Trabalho de conclusão de curso apresentado como requisito para obtenção do título de bacharel em Artes Visuais na habilitação História, Teoria e Crítica da Arte sob orientação da Prof.ª Dr.ª Ivana Maria Nicola Lopes
RIO GRANDE, novembro de 2015
ELISÂNGELA RODRIGUES COSTA
LIBERT(AÇÃO) EM LYGIA CLARK: ANÁLISE DA OBRA O HOMEM NO CENTRO DOS ACONTECIMENTOS
Trabalho de conclusão de curso apresentado como requisito para obtenção do título de bacharel em Artes Visuais na habilitação História, Teoria e Crítica da Arte sob orientação da Prof.ª Dr.ª Ivana Maria Nicola Lopes
BANCA EXAMINADORA
Prof.ª Dr.ª Claudia Teixeira Paim – Membro - FURG
Prof. Dr. José Antonio Vieira Flores
Aprovada em: ______ / ______ / ______.
AGRADECIMENTOS
Ao meu pai e minha mãe que possibilitaram o meu regresso ao curso e tornaram possível esta realização.
A minha filha que o seu orgulho me motiva sempre.
A Silvia Pinto que me ajudou a voltar a trilhar o meu caminho escolhido.
Ao professor Geraldo que sempre me estimulou a voltar pro curso quando nos encontrávamos nas ruas e nos supermercados.
A professora Ivana que aceitou o desafio de me orientar.
Ao Manoel Luís ou Maneca que sempre que necessário puxou as minhas orelhas e me colocou no prumo. Além de não medir esforços para me auxiliar em tudo que precisei neste período.
Ao meu vizinho Júlio que me auxiliou em todas as minhas empreitadas artísticas, desde o corte de madeiras para gravura, o meu cavalete para pintura até o rebite deste trabalho.
A Sandra Sato que me acolheu em sua casa de São Paulo durante as duas Bienais, além de compartilhar momentos incríveis durante todo o curso.
A Dóris, ao Júlio Cesar, ao Wagner, ao Ricardo e todos os outros amigos que de alguma forma me auxiliaram durante o processo de conclusão do curso.
Aos professores da defesa do projeto que fizeram contribuições importantes para este trabalho.
A professora Claudia Paim pelas contribuições e pela orientação dentro da disciplina Ateliê de Orientação de Projeto em H. T. C. de Arte.
Agradeço em especial a Zel por todo o auxílio que foi desde a motivação, o encorajamento até o último momento da escrita.
RESUMO
O presente trabalho busca investigar o desenvolvimento da obra de Lygia Clark no contexto contemporâneo, a partir do estudo da obra póstuma O Homem no centro dos acontecimentos (1967/8-2012). O trabalho fundamenta-se no pensamento de Michael Archer e Michael Rush para analisar o contexto contemporâneo, em Ferreira Gullar para refletir sobre o despertar da obra da artista e de Baruch Spinoza no que tange a construção do discurso associado à condição humana presente na poética de Lygia Clark. A metodologia foi fundamentada na análise do conjunto das obras anteriores da artista até a obra em questão. Com ênfase no pensamento de Lygia, foi possível perceber a coerência e a evolução de sua trajetória e as peculiaridades em relação à abordagem poética e sua preocupação com o meio.
PALAVRAS CHAVE: Lygia Clark, arte contemporânea, condição humana
RÉSUMÉ
Cet article étudie le développement de l'œuvre de Lygia Clark dans le contexte contemporain, à partir de l'étude de l'posthume L'homme au centre des événements (1967 / 8-2012). Le travail est basé sur la pensée de Michael Archer et Michael Rush d'analyser le contexte contemporain et Ferreira Gullar à réfléchir sur l'éveil de l'œuvre de l'artiste et Baruch Spinoza au sujet de la construction du discours associé à la condition humaine actuelle dans la poétique de Lygia Clark. La méthodologie a été basée sur une analyse de tous les travaux antérieurs de l'artiste à l'œuvre en question. Avec un accent sur la pensée de Lygia, il pourrait percevoir la cohérence et de l'évolution de son histoire et les particularités par rapport à l'approche poétique et souci de l'environnement.
MOTS-CLÉS: Lygia Clark, l'art contemporain, la condition humaine
SUMÁRIO
RESUMO................................................................................................................................05
RÉSUMÉ................................................................................................................................06
2.1. O conceitual na obra de Lygia Clark.....................................................................28 2.2. Video arte..............................................................................................................30 2.3. Instalação..............................................................................................................33 2.4. Tecnologia em ação..............................................................................................36
3.1. O Dentro...............................................................................................................40 3.2. Os Sistemas.........................................................................................................43 3.3. Quem são os donos do poder?............................................................................45 3.4. Liberdade do corpo para Spinoza........................................................................48 3.5. Os processos inversos.........................................................................................50
Figura 1- Planos em Superfície Modulada série B n 1, Lygia Clark 1958 Fonte: <http://www.lygiaclark.org.br/biografiaPT.asp> Acesso em: 02 out. de 2015.............13
Figura 2 - Lygia Clark e Unidades 1959 Fonte: <http://www.lygiaclark.org.br/biografiaPT.asp> Acesso em: 02 out. de 2015.............15
Figura 3 - Espaço Modulado, Lygia Clark 1959 Fonte: <http://www.lygiaclark.org.br/biografiaPT.asp> Acesso em: 02 out. de 2015.............16
Figura 4 - Casulo n1, Lygia Clark 1959 Fonte: <http://www.lygiaclark.org.br/biografiaPT.asp> Acesso em: 02 out. de 2015.............16
Figura 5 - Caranguejo, Lygia Clark 1960 Fonte: <http://www.lygiaclark.org.br/biografiaPT.asp> Acesso em: 02 out. de 2015.............18
Figura 6 - O Dentro é o Fora, Lygia Clark 1963 Fonte: <http://www.lygiaclark.org.br/biografiaPT.asp> Acesso em: 02 out. de 2015.............19
Figura 7 - Caminhando, Lygia Clark 1963 Fonte: <http://www.lygiaclark.org.br/biografiaPT.asp> Acesso em: 02 out. de 2015.............20
Figura 8 - Ping-Pong, Lygia Clark 1966 Fonte: <http://www.lygiaclark.org.br/biografiaPT.asp> Acesso em: 02 out. de 2015.............21
Figura 9 - Baba antropofágica 1973 Fonte: <http://brmenosmais.blogspot.com.br/2010/08/lygia-clark-baba-antropofagica- 1973.html> Acesso em: 02 out. de 2015....................................................................22
Figura 10 - Estruturação do Self, Lygia Clark 1976 Fonte: <http://www.lygiaclark.org.br/biografiaPT.asp> Acesso em: 02 out. de 2015.............24
Figura 11 - O Homem no Centro dos Acontecimentos, Lygia Clark, 2012, Fonte: <https://www.youtube.com/watch?v=EwttHlrji4o> Acesso em: 02 out. de 2015............................................................................................................................30
Figura 12 - Tropicália, Hélio Oiticica, 1967 Fonte: <https://desconcordo.wordpress.com/2012/03/01/lends-picantis-in-anus-autrem- qsucus-est/> Acesso em: 02 out. de 2015 …............................................................35
Figura 13 - A Servidão Moderna, Fonte: <http://razaoradical.org/servidaomoderna.htm> Acesso em: 02 out. de 2015...........41
Figura 14 - Cintos-Diálogos (1967/8-2012) Lygia Clark, 2012, Fonte: <https://www.youtube.com/watch?v=hWqWNGF9VCY> Acesso em: 02 out. de 2015 ...........................................................................................................................52
Compreendo que a vida e a arte são processos constantes de
(re)conhecimento e que o ato é o que lhes dá sentido. Utilizo o meu ato de vivenciar
em 2012, a exposição Lygia Clark: uma retrospectiva como tema para a minha
pesquisa de conclusão de curso em artes visuais. A exposição foi, sem dúvida, muito
bem sucedida ao criar uma retrospectiva em que as diversas fases da carreira de
Lygia Clark são apresentadas de forma atualizada sem fugir dos conceitos outrora
explorados por ela.
Para o presente estudo tomo a obra O Homem no Centro dos acontecimentos
(1967/8-2012) como parâmetro para a análise e a relaciono com a trajetória de Lygia
Clark. Este estudo parte das minhas impressões na experimentação da obra e não
pretende esgotar o debate acerca dos seus aspectos específicos ou aprofundar
questões analíticas da obra.
Algumas questões fundamentais do trabalho de Lygia Clark como: o corpo, o
espaço, o ato e a condição humana são inquietantes que estimulam o pensar e
estão presentes em sua obra desde a sua origem. Outros fatores motivaram a
pesquisa, como a quantidade de material disponível para pesquisa e a importância
do trabalho da artista no cenário da arte contemporânea mundial. Ainda que a
quantidade de estudos sobre ela seja extensa, penso que este trabalho terá um tom
inusitado, pois irá debruçar-se numa obra ainda pouco analisada1 e pouco conhecida
do grande público.
1 Até o momento não possuo informações acerca de outras pesquisas sobre o mesmo tema ou foco.
10
O estudo é constituído de pesquisa de documentação indireta e conta com
levantamento bibliográfico a partir de fontes formadas por livros, artigos, revistas e
escritos da artista em questão2. Também contará com levantamento de dados
disponibilizados pela internet como fotos, vídeos e outras bibliografias. De forma
concomitante, foram elaborados fichamentos e análises dos materiais coletados,
seguidos pelo processo de produção textual e formalização dos dados,
diagramação.
O primeiro capítulo abordada a trajetória de vida e obra de Lygia Clark
relacionando-a com a importância e sua influência no cenário artístico da arte
brasileira. Descreve o inicio dos seus estudos artísticos abstracionistas, passando
pelo concretismo e neoconcretismo, destacando a importância do seu papel para
estes movimentos e para a arte contemporânea. Também é abordada neste capítulo
a instauração de um novo paradigma para as artes visuais criado a partir de suas
experimentações entre a arte e o corpo e por fim o caminho que ela tomou até a sua
terapêutica: a Estruturação do Self.
No segundo capítulo é analisada a obra O Homem no centro dos
Acontecimentos (1967/8 – 2012), apresentando o contexto artístico de sua criação, o
modo de sua produção, bem como a relação com a arte e as tecnologias
contemporâneas. Descreve o inusitado deslocamento de tempo desde sua
proposição e produção ao contexto de arte conceitual; apresentando os elementos
que fazem dela uma video-instalação e ainda, de como se enquadra no contexto das
atuais (i)mobilidades inventivas do universo tecnológico da ciberarte.
O terceiro capítulo apresenta o relato reflexivo a partir da minha
experimentação da obra. Nele estão expostos os níveis de conhecimento e
subjetividade que a relação com a obra me proporcionou. Para tanto, fundamento o
meu pensamento na filosofia de Baruch Spinoza (1632-1677), no que tange aos
conceitos de liberdade e servidão, os três gêneros de conhecimento relacionando ao
pensamento de Lygia Clark. 2 Mais precisamente, cópias dos diários de Lygia Clark adquiridas pelo contato direto de João Emanuel, diretor de comunicação da Associação Cultural O Mundo de Lygia Clark. Foram feitos contatos via e-mail na página oficial da associação. <http://www.lygiaclark.org.br/biografiaPT.asp>
1 A TRAJETÓRIA CONSTRUTIVA DE LYGIA CLARK
O plano morreu. A concepção filosófica que o homem lhe emprestou já não existe fora de nós. Para o homem maduro que forçosamente é o único sobrevivente na nossa época, deve ser redescoberto dentro dele mesmo, como um todo indivisível. É esta fusão que arrebenta o retângulo e faz com que o artista engula também. O artista se punha diante dele (plano) e se projetava nele mesmo, pois o que ele fazia era dar transcendência a esta superfície. Era Deus que saía a passear (Diários, 1960).
Lygia Pimentel Lins (Belo Horizonte, 1920 – Rio de Janeiro, 1988), ou melhor,
Lygia Clark é uma grande referência para artistas contemporâneos que lidam com os
limites da arte. Sua trajetória faz dela uma artista atemporal que também estabelece
um vínculo entre arte e vida, propicia a participação do espectador em suas obras e
ainda promove um elo entre a psicanálise e a expressão artística. Com um lugar
ainda não bem definido pela história da arte é uma das protagonistas da passagem
do moderno ao contemporâneo. Tanto ela quanto a sua obra fogem às categorias ou
situações em que pode-se facilmente rotular.
Clark inicia seus estudos artísticos aos 27 anos sob orientação de Burle Marx
(1909-1994) e Zélia Salgado (1904-2009) no Rio de Janeiro. Em 1950, ela dá
sequência a eles em Paris sob orientação de Arpad Szènes (1897-1985), Dobrinsky
(1891-1973) e Fernand Léger (1881-1955). Nesse período, a artista dedica-se à
realização de estudos e pinturas a óleo cuja temática era escadas e desenhos de
12
seus filhos3 Lygia vinha de um abstracionismo europeu, enquanto que aqui no Brasil,
por volta de 1951, surgem as primeiras manifestações de arte concreta ou
concretismo que se manifestou como uma ruptura com o modernismo brasileiro,
principalmente à temática nacional voltada para o nativismo, o indígena, o folclore e
às coisas típicas do Brasil. De acordo com Ferreira Gullar,
Os artistas jovens, que se negavam a adotar o estilo e os temas portinarescos, experimentavam vacilantes sem saber que rumo imprimir à sua pintura. Foi então que Mário Pedrosa, depois de ter criticado duramente uma das últimas obras murais de Portinari (O Tiradentes), começou a chamar a atenção da crítica e dos artistas para a arte abstrata e posteriormente, para a arte concreta (1998, p. 232).
Ainda segundo ele o meio era hostil a essas ideias mas, de início Ivan Serpa
(1923-1973) e Almir Mavigner(1925- ) decidiram romper com a linhagem figurativa
para experimentar no campo novo. (1998, pag. 232) Dentro do movimento abstracionista moderno, a arte concreta foi considerada
como um ponto de partida para a arte contemporânea brasileira. Da mesma forma a
influência do artista suíço Max Bill (1908-1994), com suas formulações matemáticas
para a arte, tornavam o movimento concretista uma arte objetiva, racional e exata,
que não entrava no campo da subjetividade e nem da representação.
As novas conquistas da física e da mecânica, abrindo uma perspectiva ampla para o pensamento objetivo, incentivariam, nos continuadores dessa revolução, a tendência à racionalização cada vez maior dos processos e dos propósitos da pintura. Uma noção mecanicista de construção invadiria a linguagem dos pintores e dos escultores, gerando, por sua vez, reações igualmente extremistas, de caráter retrógrado, como o realismo mágico ou irracionalista, como Dada e o surrealismo (FERREIRA GULLAR, Manifesto Neoconcreto, 1959).
A ideia era que as obras tivessem características condizentes “com o espírito
rígido e modular da mecânica industrial, estabelecendo um sistema de
comportamento das formas que equivalia ao da máquina. O artista seria, assim, uma
3 Lygia casou-se aos 18 anos com o engenheiro Aloisio Ribeiro- um abonado construtor de Belo Horizonte -, com quem teve três filhos: Elizabeth, Álvaro Clark e Eduardo Clark. Ela deixa sua família para morar sozinha em Paris, enquanto isso seu marido a visitava a cada 15 dias. Porém o casamento não resistiu. Com a crise pessoal, ela transforma tudo no motor de seus processos criativos e os 86 apartamentos que recebera com a separação foram sendo vendidos um a um para sustentar o seu trabalho.(http://mulheres-incriveis.blogspot.com.br/2013/01/lygia-clark.html )
imediata por meio do vocabulário geométrico.
Fig. 1. Planos em Superfície Modulada série B n 1, Lygia Clark 1958 Fonte:
<http://www.lygiaclark.org.br/biografiaPT.asp> Acesso em: 02 out. de 2015
De volta ao Brasil em 1954, Lygia torna-se uma das fundadoras do Grupo
Frente passando a dedicar-se ao estudo dos espaços e da materialidade dos ritmos
em suas Superfícies Moduladas, 1955-57 e Planos em Superfície Modulada, 1957-
58. Ela participa com destaque na contribuição para renovar aquela linguagem
artística.
O Grupo Frente foi um grupo artístico carioca, considerado um marco do
movimento concreto. Formado em torno de Ivan Serpa (1923-1973) ainda em 1953,
inicialmente por seus ex-alunos do curso que ministrava e em seguida com a
participação de Lygia Clark e Franz Weissmamm (1911-2005) e outros.
Os seus membros eram todos jovens e o grupo estava sempre aberto para
novos integrantes e novas pesquisas. Mesmo com a influência de Max Bill e suas
formulações matemáticas rígidas para a arte, o grupo não obedecia a padrões
formais restritos. O grupo aceitava pintores de todos os gêneros, inclusive
figurativistas que, segundo Ivan Serpa, a única condição para participar do grupo era
romper com as fórmulas da velha academia, dispondo-se a questionar a arte e
caminhar pelos próprios pés. Prefaciando o catálogo da exposição do Museu de Arte
Moderna de 1955 no Rio de Janeiro,
Mário Pedrosa acentuava: 'Os artistas do Grupo Frente procuraram a disciplina ética e a disciplina criadora: do contrário não poderiam experimentar livremente como o fazem'. Esclarecia que a característica do grupo era o horror ao ecletismo, e que nada tinha a ver com o princípio parnasiano da arte pela arte, pois: 'A arte para eles não é atividade de parasitas e nem está a serviço de ociosos ricos, ou de causas políticas ou de Estado paternalista. Atividade autônoma e vital, ela visa a uma altíssima missão social, qual a de dar estilo à época e transformar os homens, educando-os a exercer os sentidos com plenitude e a modelar as próprias emoções' (Ferreira Gullar, 1998, p. 233).
Em Unidades, 1959 e Espaço Modulado, 1959 Lygia Clark propõe uma
pintura que não se sustenta mais em seu suporte tradicional, ambas confundem-se;
uma invade a outra passando a contribuir para a renovação da linguagem artística
do período. Quando ela pinta a moldura da cor da tela cria-se o que a artista chama
de Linha Orgânica, uma pintura abstrata geométrica, gerada através da
preocupação em explorar as possibilidades compositivas do plano e do espaço
pictórico. Neste período, Lygia Clark já tenta encontrar um novo espaço, capaz de
romper com a representação bidimensional do plano e integrar-se aos sentidos do
espectador. Propõe e executa a “morte do plano” que passa a envolvê-lo,
deslocando-o e proporcionando uma sensação de desorientação.
Fig 2. Lygia Clark e Unidades 1959 Fonte: <http://www.lygiaclark.org.br/biografiaPT.asp>
Acesso em: 02 out. de 2015.
Nesse momento as obras adquirem um espaço e o resultado da pintura
resulta na construção de um novo suporte para o objeto, nasce os Casulos, 1959.
Feitos a partir de metais dobrados e presos, assumindo ainda uma busca da
tridimensionalidade pelo plano, deixando-os mais próximos do próprio espaço do
1959. Fonte:
Fig. 4. Casulo n1, Lygia Clark 1959
Fonte:
<http://www.lygiaclark.org.br/biografiaPT.asp>
Acesso em: 02 out. de 2015
A partir destas experiências mais intuitivas dos participantes que o grupo
Frente realizou, deu-se origem ao movimento Neoconcreto brasileiro com o
Manifesto de 1959 de Ferreira Gullar:
A expressão neoconcreto indica uma tomada de posição em face da arte não figurativa 'geométrica' (neoplasticismo, construtivismo, suprematismo, escola de Ulm) e particularmente em face da arte concreta levada a uma perigosa exacerbação racionalista. Trabalhando no campo da pintura, escultura, gravura e literatura, os artistas que participaram desta I Exposição Neoconcreta encontram-se, por força de suas experiências, na contingência de rever as posições teóricas adotadas até aqui em face da arte concreta, uma vez que nenhuma delas 'compreende' satisfatoriamente as possibilidades expressivas abertas por estas experiências (Manifesto Neoconcreto).
O neoconcretismo é um passo adiante do carácter visual, geométrico,
racionalista do concretismo. Superando o objetivismo com a relação do espectador.
Neste momento só a experiência direta da percepção interessa. O que reabre a
questão fundamental colocada pela arte contemporânea – uma linguagem mais
visual, autônoma e não representativa, onde se rejeita o primado da razão sobre a
sensibilidade.
Na arte neo-concreta, há outra espécie de revalorização do gesto expressivo. O gesto não é o gesto do artista quando cria, mas sim é o próprio diálogo da obra com o espectador. O que este gesto acrescenta é de grande importância pois ele faz com que o homem comum se aperceba imediatamente da vivência do seu sentido interior. A obra cria uma espécie de exercício para desenvolver esse sentido expressivo dentro dele. Seria uma espécie de oração somada à participação integral dele no próprio ritual. O espectador já não se projeta se identificando com a obra. Ele vive a obra e vivendo a natureza dela ele vive ele próprio, dentro dele. Experiência primeira. Somos novos primitivos de uma nova era e recomeçamos a viver o ritual, o gesto expressivo mas já dentro de um conceito totalmente diferente de todas as outras épocas.(Diários, 1960 Fonte: <http://www.lygiaclark.org.br/biografiaPT.asp>)
Em 1960, Lygia Clark cria a série Bichos: esculturas, feitas em alumínio, a
partir de formas geométricas unidas por dobradiças, resultando na articulação das
diferentes partes que compõem o seu “corpo”. O espectador é convidado a descobrir
as inúmeras formas que a estrutura oferece, culminando na sua participação gestual
como condição primordial para realização da obra.
Acesso em: 02 out. de 2015
Os Bichos não são estéticos, pois não se realizam na permanência e sim no
ato do participante/espectador. Neste momento Lygia volta-se contra o
academicismo e a rigidez empregada na arte.
Por favor toquem nos bichos”, a artista se volta cada vez mais para a luta contra a obra de arte entronizada como fetiche e colocada em pedestais nos museus. A posição do artista e do público é reavaliada: essa cisão entre o criador e a obra intocáveis e o espectador passivo vai pelos ares. (André Luiz Barros, p. 99, 1998)
Realizados dentro dos princípios da matriz construtivista, os Bichos
representam um passo adiante ao inserir organicidade a estes objetos que são
considerados obras emblemáticas do movimento neoconcreto, pois neles estão
expressas as principais ideias do Manifesto Neoconcreto e da Teoria do Não Objeto
de Ferreira Gullar. Este princípio dá origem a duas consequências no sistema de
arte brasileiro: o papel determinante do espectador na obra de arte e o
questionamento do objeto como não mercadoria. A arte de Lygia é nesse aspecto
subversiva, política e anticapitalista, pois é construída para ter valor no uso estético
e até o suporte é pensado em prol disso, pois o alumínio é considerado o menos
nobre dos metais.
Segundo Beatriz Carneiro, “Lygia Clark criou um problema para a instituição
da autoria. (...) Uma obra que só se concretiza com a participação do espectador na
proposta desloca a autoria para fora dela. Lygia reiterava que os artistas seriam
agora apenas propositores. O nome do autor tem servido como classificação de uma
série de discursos e no caso específico, objetos, que assim se uniriam sob uma
mesma filiação.” (p. 46)
Fig. 6. O Dentro é o Fora, Lygia Clark 1963 Fonte:
<http://www.lygiaclark.org.br/biografiaPT.asp> Acesso em: 02 out. de 2015
Em 1961, Lygia ganha o prêmio de melhor escultura nacional na VI Bienal de
São Paulo, com os “Bichos”. Mais tarde com a obra Caminhando Lygia consegue
transferir completamente o poder do artista para o propositor:
'Caminhando' é o nome que dei à minha última proposição. A partir daí, atribuo uma importância absoluta ao ato imanente realizado pelo participante. O ‘Caminhando’ tem todas as possibilidades ligadas à ação em si: ele permite a escolha, o imprevisível, a transformação de uma virtualidade em um empreendimento concreto. (Diários de Lygia Clark, Fonte: <http://www.lygiaclark.org.br/biografiaPT.asp> Acesso em 5 out 2015).
Fig. 7. Caminhando, Lygia Clark 1963 Fonte: <http://www.lygiaclark.org.br/biografiaPT.asp>
Acesso em: 02 out. de 2015
É aqui que a artista instaura o começo de mais um novo paradigma nas artes
visuais brasileira. O objeto não estava mais fora do corpo, mas é o próprio corpo. A
partir daqui que suas experimentações fazem dela uma artista atemporal e sem um
lugar muito bem definido dentro da História da Arte. Diferente do poder poético de
um ready-made, objeto transplantado da vida cotidiana, o Caminhando é o ato que
engendra a poesia fora do suporte.
do cotidiano (água, conchas, borracha, sementes) passando a chamá-los de Objetos
Sensoriais. Com eles Lygia estabelece um vínculo perpétuo entre arte e vida,
desvinculando o lugar do espectador dentro da instituição de arte. A partir de então o
corpo estará presente em todas as suas obras. Esta experiência era uma proposta
intimista e ao mesmo tempo coletiva, onde o objeto ainda era um meio indispensável
entre a sensação e o participante. O homem reconheceria o seu próprio corpo
através de sensações tácteis operadas sobre objetos exteriores a ele próprio, onde
ele mesmo tornar-se- ia o objeto de sua própria sensação.
De acordo com Guy Brett “Lygia tornou-se convencida da conexão entre o
físico e o metafórico em (...) percebeu que havia desenvolvido um tipo de ‘linguagem
do corpo’ que poderia ser utilizada como forma comunicativa, com – pode-se dizer –
resultados ‘eficazes’(Lula Wanderley, O Dragão Pousou no espaço, 2002, p.10).
Fig. 8. Ping-Pong, Lygia Clark 1966 Fonte: <http://www.lygiaclark.org.br/biografiaPT.asp>
Acesso em: 02 out. de 2015
Depois dessa fase temos O Eu e o Tu, 1967 uma proposta pensada para um
casal, onde eles vestem pesados uniformes de tecido plastificado e capacetes que
encobrem os seus olhos: o homem veste o macacão da mulher; e ela, o do homem,
são encontradas cavidades e aberturas, em forma de zíper, que possibilitam a
exploração tátil.
Em 1968 A Casa é o Corpo, uma instalação de oito metros, que permite a
passagem das pessoas por seu interior, para que elas tenham a sensação de
penetração, ovulação, germinação e expulsão do ser vivo.
Em 1972 Lygia Clark volta à Paris como professora na Faculté d’Arts
Plastiques et Sciences de l’Art, na Sorbonne, propondo exercícios para grupos de
sensibilização, expressão gesticular de conteúdos reprimidos e liberação da
imaginação criativa, tendo o corpo como suporte.
Tratava-se de verdadeiras experiências coletivas apoiadas na manipulação
dos sentidos, transformando os participantes em objetos de suas próprias
sensações. Faziam parte dessa época, as obras: Arquiteturas Biológicas-1969,
Rede de Elástico-1974, Baba Antropofágica-1973 e Relaxação-1974.
Fig. 9. Baba antropofágica 1973 Fonte: <http://brmenosmais.blogspot.com.br/2010/08/lygia-
clark-baba-antropofagica-1973.html> Acesso em: 02 out. de 2015
Através destas experiências sensoriais suas investigações estéticas e
psicológicas, ainda fundamentadas na arte, incluem a expressão da criatividade do
outro visando à sensibilização. Para isso ela cria mais uma sequência de objetos
que agora atendem pelo nome de Objetos Relacionais.
O ‘objeto relacional’ tem especificidades físicas. Formalmente ele não tem analogia como corpo (não é ilustrativo), mas cria com ele relações através de textura, peso, tamanho, temperatura, sonoridade e movimento (deslocamento do material diversificado que os preenche): ’ele cria formas cujas texturas e metamorfoses contínuas engendram ritmos corolários aos ritmos sensuais que experimentamos na vida’. No momento em que o sujeito o manipula, criando relações de cheios e vazios, através de massas que fluem num processo incessante, a identidade processual do plasmar-se (Escritos de Lygia Clark,1978).
Ainda em Paris, Lygia transformou sua casa em uma sala de aula ampliada,
na qual promovia exercícios que envolviam a memória coletiva. Ela se inspirava no
método de relaxamento indutivo desenvolvido pelo psiquiatra russo Michel Sapir
(1915-2002). E afirma que “o curioso é que se expressar através da arte foi até hoje
um meio de recuperação para doentes mentais. Mas aí, o expressar-se era ainda
uma projeção, e hoje já não se trata de projeção mas do contrário, de introversão
(Lygia Clark, Da supressão do objeto [anotações], Escritos de Artistas, p. 350-351,
2009).
Em nossa época, arte e loucura parecem ter uma relação estreita, a ponto de
se imaginar que toda arte tem um pouco de loucura e toda loucura tem seus
momentos de arte, pelo fato de que ambas dizem respeito à vida na qualidade de
forças e limites da experiência de viver. Algumas associações entre transtorno
esquizofrênico e criatividade artística, que foram herdadas desde a Grécia antiga e
que têm sido objetos de controvérsias e não só nas literaturas mítica ou histórica,
mas também na científica, fornecem evidências de que a produção artística pode
estar associada a algum transtorno esquizofrênico. Porém a loucura é uma condição
patológica da mente das pessoas. A arte tende a ser uma forma de expressão para
todos, sendo a condição mental um fator não tão relevante para sua produção.
24
Entre a consciência e a loucura, a arte se torna uma importante ferramenta
para a expressão do subconsciente, mostrando que as fronteiras da racionalidade
são muito maiores que a condição psiquiátrica e sua relação com a realidade.
Fig. 10. Estruturação do Self, Lygia Clark 1976 Fonte:
<https://www.pinterest.com/pin/427560558349414508/> Acesso em: 02 out. de 2015
Em 1976, Lygia Clark volta definitivamente ao Rio de Janeiro, onde abandona
as experiências com grupos e inicia uma nova fase, a Estruturação do Self, que
consiste no trabalho com o “arquivo de memórias” do participante por meio do
estímulo das sensações. Ele deita em uma superfície que ofereça o mínimo de
resistência ao corpo, na qual os objetos relacionais são colocados em contato com o
seu corpo e ao término da sessão, a pessoa entra em um profundo processo de
interiorização, absorvendo no corpo as sensações trazidas pela experiência
sensorial, e perdendo a noção de tempo e espaço,
Lygia Clark propunha a Estruturação do Self como uma experiência terapêutica fazendo-se, inclusive, pagar por suas sessões, como é de hábito no trabalho clínico. Teria sido essa proposta um 'desvio' de rota no final de sua trajetória como arista? Será esta a única maneira de concebê-lo? Seja qual for a resposta, é impossível ignorar esta inflexão: ela não pára de lançar uma interrogação sobre o conjunto da obra impar desta artista - de seus primeiros gestos pictóricos a esta sua última invenção (Suely Rolnik, Uma terapêutica para tempos desprovidos de poesia, p. 13, 2006)
Nesta abordagem individual, onde utiliza objetos já produzidos para a
interação agora com seus clientes4, a auto decretada não-artista deu o objeto da arte
na mão de seu interlocutor e estabeleceu definitivamente que a “arte é o seu ato”.
Em 1981 Lygia passa a perder o interesse pelas sua terapêutica e diminui o
número de clientes e sessões. Relatou que acabava absorvendo as cargas
emocionais de seus clientes e que toda psicose deles passava para ela. E devido a
isso começou a ficar doente. (Carneiro, 2004, p. 65). Com essa decisão, passou a
treinar outros terapeutas: Gina Ferreira e Lula Wanderley.
Observando a trajetória de Lygia Clark percebe-se nela a preocupação em
fazer da arte um ato. Primeiramente ela contribui para uma renovação da linguagem
plástica do construtivismo brasileiro. Preocupada em explorar outras possibilidades
do plano e do espaço, propõe a morte dele. E a medida que estas construções vão
ficando mais complexas e se tornando mais orgânicas, vão exigindo a participação
ativa do espectador.
Busca experimentar cada vez mais junto com a interferência do espectador,
agora como participador, senão na criação, ao menos nos desdobramentos de
configurações no objeto, uma relação entre o metafórico, a obra e ele. Como
resultado disso ampliar a percepção de si e consequentemente recondicionar sua
realidade. Propõe uma manifestação artística transversal. E o conjunto de sua obra
representa uma evolução intelectual e humana sem ponto determinante. É uma
experimentação artística contínua que cessa pouco antes de sua morte, quando dá
4 Segundo Suely Rolnik em Uma Terapêutica para tempos desprovidos de poesia”, é o termo que Lygia utiliza para qualificar aqueles que se dispunham a viver a experiência de ter seus corpos tocados pelos Objetos Relacionais durantes as sessões de Estruturação do Self.
26
por encerrado o seu trabalho argumentando que a arte já lhe tinha proporcionado
tudo o que queria.
2 O HOMEM NO CENTRO DOS ACONTECIMENTOS
O que se transformou é a maneira de comunicar a proposição. Agora são vocês que dão expressão ao meu pensamento, tirando aí a experiência vital que desejam.
Esta experiência se vive no instante. Tudo se passa como se hoje o homem pudesse captar um fragmento de tempo suspenso, como se toda uma eternidade habitasse no ato da participação. Este sentimento de totalidade, camuflado no ato, precisa ser recebido com alegria para ensinar a viver sobre a base do precário. É preciso absorver este sentido do precário para descobrir na imanência do ato o sentido da existência (Lygia Clark, Robho nº4, 1968).
Neste capítulo é apresentado o contexto artístico da obra O Homem no
Centro dos Acontecimentos em suas relações com o modo de produção artística e
tecnológica.
Lygia Clark manteve o hábito de escrever, desde meados da década de 50
até pouco antes da sua morte em 1988. Ao registrar em diários, cadernos e outros
escritos suas ideias, observações e percepções, gerou uma grande fonte de
pesquisa, além das cartas trocadas com amigos principalmente as com Hélio
Oiticica. Segundo CARNEIRO (2004):
Lygia descreveu seus cadernos como tendo duas fases, os primeiros, mais analíticos, refletiam sobre a criação das obras; na segunda fase eram cadernos com relatos mais sensoriais, sobre acontecimentos do momento, além de reflexões acerca das atividades artísticas. Para registrar seu trabalho terapêutico, há também um diário clínico, com anotações das experiências com os pacientes (p. 26).
28
Atualmente seus manuscritos, fotos, rascunhos e esboços, à exceção dos
Diários, estão locados no Centro de Pesquisa e Documentação do Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro. O acervo catalogado no início dos anos 1990 resultou
uma base de dados informatizada com o objetivo de disponibilizar informações para
pesquisadores e inclui textos sobre a artista, gravações em vídeo realizadas em
exposições, fotografias, catálogos, hemeroteca, manuscritos, documentos pessoais,
cartas, convites para participar de exposições, relatos de pacientes, certificados e
diplomas, entrevistas com e sobre Lygia (CARNEIRO, 2004, p. 26-27).
Tal acervo permitiu a pesquisa e publicação das cartas que Lygia e Hélio
trocaram entre os anos de 1964 a 1974, por Luciano Figueiredo, que decidiu
organizar e publicar esta correspondência por considerar os pensamentos e as
reflexões inseridas nas cartas importantes. A publicação de 1996 é uma prova de
reconhecimento e solidariedade que nutriam um pelo outro.
Outra contribuição que os escritos de Lygia permitiram foi a produção e a
exposição de quatro obras inéditas: O Homem no Centro dos Acontecimentos
(1967/68 -2012), Filme Sensorial (1967/68 -2012), Campo de Minas (1967/8-2012) e
Cintos-Diálogos (1967/8-2012), que foram projetados pela artista em vida, porém
foram construídos e expostos por especialistas após 24 anos de sua morte pela
Associação o Mundo de Lygia Clark, a partir das suas proposições, que descreviam
em detalhes as obras, desde sua execução, como deveriam estar expostas no
museu, com a preocupação em focar seu conceito, resolve em 2012 produzir e
expor estas obras no Itaú Cultural numa retrospectiva completa da obra da artista.
2.1 O conceitual na obra de Lygia
Mas como uma artista que morreu há anos pode continuar produzindo? E
ainda expor? A indagação nos remete à natureza experimental da arte do século XX
e sua profusão de categorias. Em especial a de arte conceito. A contemplação da
obra de arte conceitual exige transcender o objeto físico material tradicional até
chegar ao processo gerador ou formativo. Segundo Rush, e contrariando a máxima
do crítico Clement Greenberg5, o significado fundamental da arte deveria ser
encontrado agora pela ideia do conceito e do contexto. De acordo com ARCHER,
(2001):
Embora a 'Arte de conceito', uma arte composta de ideias, já tivesse sido debatida em 1960 pelo artista Henry Flynt (1940- ), uma arte deste tipo parecia, naquele momento, uma possibilidade cada vez mais realizável dentro do 'campo complexo e expandido' aberto pelo Minimalismo. 'Na arte conceitual', escreveu LeWitt, 'a idéia ou conceito é o aspecto mais importante da obra. Quando um artista utiliza uma forma conceitual de arte, isto significa que todo o planejamento e as decisões são feitas de antemão, e a execução é uma questão de procedimento rotineiro. A ideia se torna uma máquina que faz a arte'. (p. 70).
O inusitado em relação à Lygia é o fato da artista já falecida produzir obras
inéditas, respeitado o seu planejamento tal qual como determinado por ela. Para a
arte conceitual o mais importante são as ideias, a execução da obra tem pouca
relevância para o sentido pretendido. Não há a exigência de que o projeto tenha que
ser construído pelo artista que teve a ideia. Podendo delegar o trabalho físico a
quem tenha habilidade técnica específica. Reforçando: na arte conceitual a invenção
importa mais que a materialização dela.
Seguindo às determinações conceituais de Lygia, a obra O Homem no Centro
dos Acontecimentos consiste em uma projeção em 360º de imagens geradas por
quatro câmeras ligadas ao mesmo tempo, que são fixadas em um capacete de
modo que cada uma é apontada para uma direção diferente. Elas capturam as
imagens do ambiente, enquanto a pessoa se desloca a pé pelo centro de uma
grande cidade, no caso, São Paulo. Em nenhum momento o corpo do caminhante é
filmado.
Após a captura das imagens e sons, ocorre a projeção simultânea nas
paredes, no teto e no chão de uma cabine, uma espécie de cubo branco, onde o
espectador passa a experienciar essa caminhada no lugar daquele corpo que
registrou as imagens e viveu aquele momento real. Deste modo pode-se entender O 5 Influente crítico estadiunidense de arte do pós guerra.
30
Homem no Centro dos Acontecimentos como uma video-instalação que provém de
outra tendência artística do final da década de 60, também contrária à arte
comercial.
Fig. 11 Frame de O Homem no Centro dos Acontecimentos, Lygia Clark, 2012, Fonte:
<https://www.youtube.com/watch?v=EwttHlrji4o> Acesso em: 02 out. de 2015
2.2 Videoarte
A videoarte é uma forma de expressão artística, na qual o vídeo é o elemento
principal. Supõe uma nova linguagem, uma nova inter-relação entre imagem e
espectador, em que a primeira sai da tela para interagir com o resto do meio,
integrando as imagens junto aos demais elementos que a formam.
Em meados dos anos 60 surgia a Videoarte, partindo do ponto de vista de um
mundo cada vez mais dominado pelos meios de comunicação de massa e sobretudo
a televisão. Conforme o capítulo Videoarte de RUSH (2006):
A imagem em movimento entrou nos lares medianos com força total: até 1953, dois terços dos lares americanos tinham televisões e, em 1960, chegavam a 90%, um fato que teria profundo efeito sobre a indústria do cinema.
(...) Já no anos 60 ocorreu a total comercialização da televisão empresarial e, para os observadores atentos dos meios de comunicação de massa e muitos artistas, a televisão se firmava como o inimigo. Os americanos passavam até sete horas, por dia, assistindo à televisão, e formava-se uma nova sociedade de consumo, gerada por uma oligarquia de comerciais que é o que mantém viva a televisão (p.74).
A videoarte surgiu num contexto em que os artistas procuravam uma arte
contrária à comercial. Entre seus princípios está a crítica à televisão, a qual
representa, em certo modo, a cultura atual. Isto para muitos críticos está bem longe
das preocupações da arte. Porém a primeira geração de videoartistas defendia a
ideia que para existir uma relação crítica com a sociedade televisual, era preciso
primeiramente participar de forma televisual.
Outros fatores que também contribuíram para o surgimento da videoarte foi o
contexto cultural das revoluções políticas e da conscientização dissidente em todo o
mundo, das revoltas estudantis em Paris e da revolução sexual. Artistas e críticos
começaram a encarar a televisão como inimigo.
Nos primórdios, existiam dois tipos de vídeos: os documentários dirigidos por
ativistas ligados aos noticiários alternativos e os vídeos artísticos. Antes disso, o
vídeo era usado apenas para fins comerciais, como para a televisão e treinamento
em empresas. O alto preço dos equipamentos limitou essa linguagem a artistas de
países desenvolvidos, onde o acesso à tecnologia era menos custoso, a exemplo do
coreano Naum June Paik (1932-2006) e do alemão Wolf Vostell (1932 - 1998),
artistas do grupo Fluxus, pioneiros dessa nova linguagem. Eles procuravam, através
dos novos suportes audiovisuais, criar uma espécie de “contratelevisão” e
justamente fazer uma crítica aos ideais desse meio e dos modelos comerciais da
época, subvertendo seu uso mais frequente.
Levine (1935- ) foi um dos primeiros artistas a usar equipamento de vídeo de
meia polegada, quando este surgiu em 1965, usou para filmar indigentes na cidade
de Nova York. Em 68, Frank Gillette (1941- ) gravou um documentário sobre os
32
hippies de Nova York com duração de cinco horas. Segundo Rush eles utilizavam
um estilo de filmagem improvisado, destemido, que não colocava no material
qualquer tom direcional ou artístico preconcebido (2006, p.75). A segunda prática de
vídeo da época “apontam para o dia, do ano de 1965, em que Nam June Paik,
comprou uma das primeiras filmadoras Portapak da Sony em Nova York e a apontou
em direção a comitiva do Papa que naquele dia passava pela Quinta Avenida. Sob
essa perspectiva, aquele foi o dia em que nasceu a videoarte. Aparentemente, Paik
pegou a fita com imagens do Papa, filmadas de um taxi, e naquela noite mostrou os
resultados em um ponto de encontro de artistas, o Café à GoGo, concretizando
assim a primeira apresentação de videoarte.
O que leva a filmagem do Papa, por Paik, a ser classificada como videoarte?
Basicamente, considera-se que ela seja arte porque um artista reconhecido (Paik),
associado à performance e à música experimental, fez o vídeo como uma extensão
de sua prática artística.
Ao contrário de um jornalista fazendo seu trabalho com o Papa, Paik criou um produto tosco, não comercial, uma expressão pessoal. Ele não estava 'cobrindo' a notícia da visita do Papa, mas captando uma imagem que, para ele, possuía valor cultural e artístico (Michael Rush, 2006, p.75).
E então refletimos: que valores culturais ou artísticos tem as imagens de uma
caminhada pelo centro da cidade de São Paulo? O fato do artista reconhecido estar
morto? O que faz de O Homem no Centro dos Acontecimentos ser considerado
digno de ter um lugar no museu? Pelo fato de ter sido pensado por Lygia Clark?
Teria ela pensado em todo esse deslocamento de tempo e espaço desde a sua
proposição até a exposição?
O registro escrito mostra que o objetivo era filmar uma caminhada pelas ruas
de uma grande cidade, capturar o instante, o estranhamento das pessoas e deslocar
para dentro de um cubo branco.
De qualquer forma a obra traz novos elementos para a reflexão do fazer
artístico, pois as imagens projetadas ampliam as possibilidades de pensar essa
representação, causa estranheza por tudo isso e se torna quase impossível dar
conta das inúmeras possibilidades de se pensar a obra. Ainda, nos leva a pensar
também em instalação.
2.3 Instalação
A passagem das esculturas6 às instalações é, na arte, uma das manifestações
das transformações da noção de espaço e representam uma nova relação entre a
obra, o espaço e o espectador. É importante lembrar que a questão do espaço se
insere na história da arte desde as manifestações das pinturas rupestres na pré
história até a mais recente intervenção in situ (ou site specific). Se antes dos anos
60 o processo de fruição de uma obra se dava a partir da contemplação e do
movimento do espectador em torno dela, agora essa fruição é processada com a
participação dele na própria obra, a partir da imersão de seu corpo e de seu
movimento no interior da dela. Segundo RUSH (2001),
a instalação é outro passo para a aceitação de qualquer aspecto ou material do cotidiano na construção de uma obra de arte.(...) Embora grande parte da arte de instalação do final do século XX tenha raízes em uma atitude antimuseu que caracterizou os anos 60 e início dos 70, são os museus e as galerias o lugar principal para ela. (p. 110).
Muitas instalações exploram a interação não apenas com o olhar, mas ainda
com a audição, o olfato, o paladar, com todos os sentidos do corpo. No caso de O
6 A crítica americana Cynthia Chris sugere que as videoinstalações tenham sido generosamente anexadas ao léxico da crítica de arte visual devido a alguns de seus vínculos com a escultura e com outras práticas conhecidas.(Michael Rush, 2001, p. 110)
34
Homem no Centro dos Acontecimentos o espaço da obra é um cubo branco digno
de um museu ou galeria de arte, porém ele funciona como um recipiente ou
receptáculo onde o espectador adentra. Este recinto quase claustrofóbico associado
às imagens gera uma sensação de que o corpo é descolado de sua própria
materialidade perdendo a orientação de espaço.
Hélio Oiticica explorou o espaço das instalações, assim como também passou
a lidar com as novas exigências do mundo contemporâneo, como as questões
sociais e políticas. Um exemplo é a exposição Nova Objetividade Brasileira em
1967, Hélio Oiticica expôs uma instalação em que o espectador podia caminhar
sobre areia e pedras, descobrir poemas entre as folhagens, brincar com araras
(vivas) e assistir a uma televisão com uma imagem chuviscada. Diferentemente da
claustrofobia provocada pela obra de Lygia em questão. Cada ambiente era
separado por Penetráveis, placas de materiais e tamanhos variados, dispostos de
forma a proporcionar diversas experiências sensoriais. Hélio juntou elementos
considerados tropicais para questionar a situação política brasileira da época e
desmistificar o imaginário de um Brasil folclórico. O aparelho de televisão e as frases
como “o mergulho do corpo”, “a pureza é um mito” e a mais conhecida “seja
marginal, seja herói” serviram de instrumentos para a ironia de Hélio. A esta
instalação Oiticica deu o nome de Tropicália, que mais tarde veio a ser citada em um
texto do crítico Nelson Motta e a inspirar o movimento Tropicalista brasileiro.
Na questão espacial, podemos considerar que na obra de Hélio há uma
necessidade de deslocamento do participante enquanto que a obra de Lygia conta
com a complacência dos espectadores em meio a um recinto claustrofóbico. Mesmo
assim pode ser denominada instalação, pois mexe com o corpo de forma a estimular
sensações de invisibilidade, estranhamento, simpatia, antepatia, medo do
desconhecido e do reconhecido
<https://desconcordo.wordpress.com/2012/03/01/lends-picantis-in-anus-autrem-qsucus-est/>
Acesso em: 02 out. de 2015
Outra questão de espaço que ocorre em O Homem no Centro dos
Acontecimentos é o deslocamento do espaço urbano para dentro de um espaço
fechado. Michael Foucault (1926-1984) chama isso de Heterotopia, conforme
descrito:
O conceito de heterotopia em Foucault foi deslocado de sua referência à linguagem para um uso voltado à análise dos espaços existentes. (…) no qual heterotopia passou a definir espaços específicos que se situariam dentro dos espaços sociais cotidianos, com funções diferentes destes e muitas vezes opostas, espaços onde se reuniriam resquícios de vários outros espaços e tempos formando um conjunto que se deslocaria do cotidiano, permitindo experiências paralelas diversas (CARNEIRO, 2004, p. 40).
É interessante pensar que na obra temos interligados tempo e espaço da
proposição de Lygia no final dos anos 60; o tempo e o espaço das pessoas e coisas
36
que foram captadas pelas imagens e o tempo e a relação do espectador com a obra.
Todas estas interligações a tornam ainda mais curiosa.
As imagens de uma rua comercial do centro da cidade de São Paulo onde
acontecem várias coisas ao mesmo tempo. Pessoas transitam de um lado para o
outro. Percebe-se homens e mulheres uniformizados com crachás em bolsos de
camisas com seus respectivos cordões envoltos ainda nos pescoços, indicando que
aquela saída é tão rápida que não vale a pena retirá-los do corpo. Há homens
engravatados, artistas de rua acompanhados de pessoas menos apressadas
usufruindo sua arte. Num momento percebe-se o som de um pandeiro e um sotaque
nordestino num repente que fala sobre a situação atual do país...
Sabemos que o urbano não é a cidade, mas a alma da cidade, o conjunto das diversas forças que a compõem. O urbano é o virtual da cidade, aquilo que emerge dos processos de industrialização das instituições, dos meio de comunicação em massa, das diversas redes sociais (técnicas, culturais, políticas, imaginárias). O urbano se atualiza na cidade e a cidade se virtualiza no urbano. Da atualização das cidades emergem processos urbanos virtualizantes. Esses são sujeitos a novas atualizações, a criação concreta da cidade (FLUSSER, 2007, p. 45).
Descrever tais espaços seria idealizar a rede de relações que os definem. A
noção de espaço é um excelente condutor de percepção para que nos aproximemos
da obra de arte, e, especialmente, da arte contemporânea.
2.4 A tecnologia empregada
Todo o processo de construção do O Homem no Centro dos Acontecimentos
pode parecer simples e comum para a nossa época, porém quando foi projetado por
Lygia Clark no final da década de 60, ainda não existiam todos estes aparatos
tecnológicos necessários para torná-lo real. As câmeras da época eram gigantescas
e não apropriadas para deslocamentos, ainda mais quatro, acopladas à cabeça de
alguém.
De certa forma, Hélio Oiticica e Lygia Clark prenunciavam a interatividade, ao
desenvolverem objetos 'agarrados' ao corpo para experimentação e sensibilização
espacial. Através dos sentidos corporais, o trabalho desses artistas atravessava o
corpo e o território, prótese, sentido corporal e orientação espacial, ambiente externo
e ambiente interno, pela experimentação.
O fato de Lygia projetar-se ao projetar obras passíveis de construção
atemporal, de exigência tecnológica ainda por se constituir, ilustra um processo de
reinvenção cultural, de projeção do espaço-tempo tecnológico, de uma nova ordem
do real que projeta o sistema antigo de interpretação da realidade sob novas formas,
restringidas pelas dadas possibilidades históricas, tecnológicas e culturais de
significação, numa conexão com a cibercultura.
Hoje em dia contamos com dispositivos que chamamos de “mídias móveis” ou
“mídias de deslocamento” que podem adequar-se facilmente ao projeto, tornando
possível o deslocamento com os dispositivos para captar as imagens.
Os gêneros próprios da cibercultura são muito diversos: composições automáticas de partituras ou de textos, músicas 'tecno' geradas por um trabalho repetível de amostragem e de arranjos a partir de músicas já existentes, sistemas de vida artificial ou de robôs autônomos, mundos virtuais, websites voltados à intervenção estética ou cultural, hipermídias, acontecimentos possibilitados pela Rede ou implicando participação através de dispositivos numéricos, hibridizações diferentes do 'real' e do 'virtual', instalações interativas etc (Pierre Lévy, 1997, p. 94).
Uma das características mais constantes da ciberarte é a participação
daqueles que a experimentam, interpretam, exploram ou lêem. Não se trata somente
de uma participação na construção do sentido mas realmente de uma co-produção
da obra, desde que o 'espectador' é chamado a intervir diretamente, a fazer a obra
acontecer (a materialização, o aparecimento das imagens, a edição, o
desenvolvimento efetivo naquele momento e lugar) de uma sequência de sinais ou
de acontecimentos.
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São 'obras abertas'7, não apenas porque admitem uma multiplicidade de interpretações, mas sobretudo porque são fisicamente acolhedoras para a imersão ativa de um explorador e materialmente interpenetradas nas outras obras da rede. O grau dessa abertura é evidentemente variável de acordo com os casos; ora, quanto mais a obra explorar as possibilidades oferecidas pela interação, pela interconexão e pelos dispositivos de criação coletiva, mais será típica da cibercultura... e menos será uma 'obra' no sentido clássico do termo (LÈVY, 1999, p. 149).
No cenário artístico atual ouvimos muito falar em ciber (cibercultura,
cibercidade, ciberespaço), o termo é o aportuguesamento diminutivo do termo inglês
cybernetic, que em português significa alguma coisa ou algum local que possui uma
grande concentração de tecnologia avançada, em especial computadores, internet
etc.
A ciberarte e suas obras abertas, de alguma forma discutem proposições
semelhantes as de Lygia, o que nos permite afirmar que a obra O Homem no Centro
dos Acontecimentos é tão atual, tão contemporânea sob os mais diferentes aspectos
desse universo tecnológico compartilhado do território / corpo / mídia / realidade /
virtualidade / cultura / contato, um retrato da nossa (i)mobilidade inventiva
contemporânea.
A obra (re)criada pode ser vista como uma consecução exata da ideia que a
motivou, num exercício de virtualização e atualização, uma vez que a artista assenta
a criação da mesma no confronto com os suportes, os meios, as suas limitações
tecnológicas, inferindo uma ação posterior daquilo que conhece.
Segundo Lévy, a atualização é a criação, é a invenção de uma forma a partir
de uma configuração dinâmica de forças e finalidades. Já a virtualização é um
movimento inverso da atualização, é a passagem do atual ao virtual, sendo assim,
não é uma desrealização, mas uma mutação. Para o autor, a virtualização fluidifica
as distinções instituídas, aumenta os graus de liberdade, cria um vazio motor,
tornando-se um dos principais vetores da criação da realidade (LÈVY, 1996).
7 Apud Umberto Eco, A obra aberta, São Paulo, Perspectiva, 1969.
A obra constitui-se, ela própria, num eixo que transcende o contexto em que
foi criada, fazendo com que a sua leitura seja sempre atualizada, dependendo não
só do espaço em que é experienciada, mas da cultura dos seus experimentadores,
numa atualização constante, conceitos próprio da cibercultura: real-possível-virtual-
atual.
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3 RELAÇÕES ENTRE O VIVENCIADO E A OBRA
Há outras espécies de pessoas que preparam o que vai acontecer, são outros precursores. A eles a sociedade continua a marginalizar. No Brasil, quando há um tumulto com a polícia e eu vejo um jovem de 17 anos ser assassinado (eu coloquei sua foto na parede de meu atelier), tomo consciência de que ele cavou com seu corpo um lugar para as gerações que virão. Esses jovens têm a mesma atitude existencial que nós, eles lançam processos de que não conhecem o fim, eles abrem caminho onde a saída é desconhecida. Mas a sociedade é mais forte e os mata. É então que eles trabalham mais. O que eles tentam forçar talvez seja mais essencial. Estes são os incendiários. São os que empurram o mundo. Algumas vezes me pergunto se não somos um pouco domesticados. Isso me chateia... (Lygia Clark, Revista Robho, n°4, 1968).
Neste capítulo tratarei da obra O Homem no Centro dos Acontecimentos
(1967/8-2012) e as percepções ao tê-la experienciado. Busco na escrita o resgate
memorial de aspectos vivenciados no contato com a obra e compreender os
impactos disso no meu cotidiano pessoal e artístico.
3. 1 O Dentro
A obra O homem no Centro dos Acontecimentos proporciona, ao se deparar
com aquela porta branca, uma curiosidade de trem fantasma8. Logo em seguida o
contato com o monitor e aquelas placas de advertência dizendo que a participação
de pessoas com algumas especificidades de saúde (por exemplo - labirintite) é
desaconselhável (não lembro se era proibida). Esta seleção causa um 8Usei esta metáfora pra expressar um medo infantil curioso que se tem diante de um trem fantasma.
estranhamento ainda mais curioso, junto ao frio na barriga de que se deve ou não se
deve experimentar. Me entrego ou não me entrego? Entrei naquele trem fantasma
decidida a manter os olhos bem abertos.
Deparei-me com paredes, chão e teto ainda brancos: era um cubo. Não era
um trem fantasma, também não existiam trilhos e eu não estava em nenhum
carrinho, mas a sensação inicial permanecia, estava sendo conduzida por algo que
ainda não identificara. Foi quando a projeção começou.
Aquele montão de pessoas vindo em minha direção, me atravessando com
indiferença, como se eu nem existisse ali. Comecei a olhar em minha volta e percebi
que as imagens vinham de todos os lados. Eu estava inserida num ambiente que
não conhecia, mas que também não me era estranho, me parecia a projeção do
documentário Servidão Moderna (2009) de Jean-François Brient e Victor León
Fuentes.
Fig. 13. A Servidão Moderna, Jean-François Brient e Victor León Fuentes,2009 Fonte:
<http://razaoradical.org/servidaomoderna.htm> Acesso em: 02 out. de 2015
42
Servidão Moderna é um documentário, elaborado em 2009 com o objetivo de
atacar de frente a organização dominante do mundo. Não possui direitos autorais e
é produzido essencialmente por imagens desviadas e oriundas de filmes de ficção,
documentários e outros, o que salienta a proposta de luta contra a propriedade
privada. Quanto ao conceito de servidão moderna, o documentário apresenta:
A servidão moderna é uma escravidão voluntária, consentida pela multidão de escravos que se arrastam pela face da terra. Eles mesmos compram as mercadorias que os escravizam cada vez mais. Eles mesmos procuram um trabalho cada vez mais alienante que lhes é dado, se demonstram estar suficientemente domados. Eles mesmos escolhem os mestres a quem deverão servir. Para que esta tragédia absurda possa ter lugar, foi necessário tirar desta classe a consciência de sua exploração e de sua alienação. Aí está a estranha modernidade da nossa época. Contrariamente aos escravos da antiguidade, aos servos da Idade média e aos operários das primeiras revoluções industriais, estamos hoje em dia frente a uma classe totalmente escravizada, só que não sabe, ou melhor, não quer saber. Eles ignoram o que deveria ser a única e legítima reação dos explorados. Aceitam sem discutir a vida lamentável que se planejou para eles. A renúncia e a resignação são a fonte de sua desgraça.
Eis então o pesadelo dos escravos modernos que só aspiram a deixar-se levar pela dança macabra do sistema de alienação. A opressão se moderniza estendendo-se por todas as partes, as formas de mistificação que permitem ocultar nossa condição de escravos. Mostrar a realidade tal qual é na verdade e não tal como mostra o poder constitui a mais autentica subversão (Jean-François Brient e Victor León Fuentes, extrato de Servidão Moderna).
Segundo os autores do filme, a sequência rádio, carro, tv, computador e
celulares (cada um no seu tempo) faz parte do mesmo sistema mercantil iniciado há
centenas de anos e são os responsáveis por modificar profundamente as relações
humanas, que servem, por um lado para isolar os homens um pouco mais dos seus
semelhantes e, por outro para difundir mensagens do sistema dominante.
De maneiras diferentes O Homem no Centro dos Acontecimentos e Servidão
Moderna revelam criticamente o reflexo de uma sociedade servil e consumista.
Enquanto Lygia volta-se para o centro, isolando o seu participante do mundo numa
caixa e sublinhando a relação espectador/sociedade (aqui o espectador é
meramente um espectador) a partir de um projeto calculado e produzido com
tecnologias apropriadas para o conceito, Servidão Moderna lança um olhar de
indignação mais aberto a partir do vídeo e ou do livro disponível a todos que queiram
acessar e compartilhar pela internet.
Lygia desloca o cenário urbano para dentro de um cubo branco que está
dentro de um museu inserido também em um sistema: o da arte.
3.2 Os Sistemas
Passados alguns segundos da projeção, o esperado não aconteceu, mas
também não deixou de acontecer. Na minha imaginação outra projeção se formara:
a servidão moderna atual brasileira. E eu estava literalmente dentro dela, ou melhor,
no centro dela.
Mais uma vez a sensação inicial do trem fantasma me invade. Olho para os
lados e está tudo fechado. Onde fica a saída? Neste momento, identifico quem são
os fantasmas que me metem medo... É a realidade diante dos meus olhos... E o que
fazer pra me libertar deste sistema selvagem? Recorro ao método spinozista para
indicar o caminho:
Ele segue esse caminho do seguinte modo: Primeiro, considera a natureza do homem e os acontecimentos essenciais do mundo dos instintos, tais como estes se apresentam a um naturalista. Depois, deduz daí todas ocorrências peculiares à vida cotidiana dos incultos e confronta essas ocorrências com as ideias diretos que, segundo o seu critério, conduzem o homem, escravo dos próprios desejos, à superioridade do espírito puro, libertado.
Tal é o verdadeiro spinozismo que caminha o homem para a liberdade, para a felicidade da renúncia, para essa felicidade que ele não se cansa de celebrar, porque não se cansa de vivê-la.
O ser humano, que parece um mundo, um fenômeno, não é, para Spinoza, mais que uma folha pendente a árvore gigantesca que é o Universo, movido
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pelo mesmo instinto porque também se abriga no homem (Arnold Zweig, 1961, p. 81/81).
Baruch Spinoza (1632-1677), filósofo holandês do séc. XVII propôs uma ética
interessante, com visões diferentes das que se costumava ter e pensar em sua
época. O mundo só passou a conhecê-lo após sua morte e por intermédio de um
amigo, que tirou seus escritos da gaveta e os publicou (aqui vejo uma relação com a
obra pós-vida e Lygia). Para ele, só há liberdade se ela for produzida por forças que
vem de dentro, ou seja, só há liberdade se a sua vida for produzida por si mesmo.
Mas como entender isso? Spinoza foi o primeiro filósofo moderno a pensar a
liberdade e a servidão, sendo estes os temas centrais de sua obra. Estes temas
dialogam com algumas questões que quero abordar neste trabalho, como a relação
entre liberdade e servidão - já introduzida aqui - e a das relações e afetos.
Spinoza baseou parte da sua filosofia na matemática e parte (talvez maior) na
intuição que ele chama de Conhecimento do Terceiro Gênero (que será tratado mais
adiante). Durante a vida criticou com todas as suas forças a igreja e o poder que ela
exercia sobre o povo. Assim, sua filosofia representa uma crítica à superstição em
todas as suas formas: religiosa, política e filosófica. Ele a conceitua (a superstição)
como uma paixão negativa que nasce da imaginação que torna o homem um
joguete, impotente para compreender as leis necessárias do universo, que pende na
instabilidade entre o medo dos males e a esperança dos bens, forjando a ideia de
uma natureza caprichosa. E ainda, que essa concepção é projetada num ser
supremo e todo-poderoso (Deus), que está fora do mundo e o controla segundo
seus caprichos. A crítica da superstição leva Spinoza a escrever sua obra prima e
póstuma: a Ética (1677), onde revela:
Deus quer dizer uma substância constituída por uma infinidade de atributos, dos quais cada um expressa uma essência eterna e infinita; existe necessàriamente(sic). O ser eterno e infinito que se chama Deus ou a Natureza, age com a mesma necessidade que existe. Tudo o que existe, existe em Deus e nada pode existir sem Deus, nem ser concebido sem Deus.
A substância corporal ou extensa não é criada por Deus, porém é um dos infinitos atributos de Deus. Tudo o que acontece, acontece ùnicamente(sic) pelas leis da natureza infinita de Deus, daí se segue a necessidade da sua essência. Não há contingências na natureza; tudo está nela determinado pela necessidade da natureza divina de existir e produzir algum efeito de certa maneira. As coisas nunca puderam ser produzidas por Deus de nenhuma outra maneira, senão da maneira por que têm sido produzidas. Daí se conclui que as coisas têm sido produzidas por Deus com Perfeição soberana, pôsto(sic) que elas são seguidas, necessàriamente(sci), de uma natureza dada, que é perfeita no mais alto grau. Como realidade e perfeição (REALITAS ET PERFECTO) entendo a mesma coisa (ARNOLD ZWEIG, Extrato da Ética, 1961, p.98).
Nesta obra, demonstra Deus de forma racional, produtora e conservadora de
todas as coisas. Também escreveu o Tratado da Correção do Intelecto (1661), onde
separa a imaginação da razão e mostra o caminho que esta deve seguir para
conhecer a realidade, e ainda, no Tratado Teológico Político (1670), analisa a
gênese e os efeitos da superstição e elabora a primeira interpretação histórico-crítica
da Bíblia.
3.3 Quem são os donos do poder?
Assim como Spinoza descreve uma servidão à superstição que faz com que o
indivíduo seja escravo do poder da igreja9, ou seja, a Deus; Servidão Moderna
atribui a servidão do homem ao poder exercido pelo dinheiro, o que faz dele o Deus
moderno: “Como todos os seres oprimidos da história o escravo moderno precisa de
um misticismo e de seu Deus para anestesiar o mal que lhe atormenta e o
sofrimento que o sufoca.(...) O que outrora se fazia “por amor a Deus”, hoje se faz
por amor do dinheiro, isto é, daquilo que hoje confere o sentimento de poder mais
elevado e a boa consciência” (Extrato do filme apud Aurora, Nietzsche).
O pressuposto filosófico básico deste pensamento é que uma pessoa de
nossa cultura opera numa forma que está muito abaixo de seu potencial e
9 Toda e qualquer instituição religiosa
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capacidade reais. Este empobrecimento deve-se ao fato de o indivíduo identificar-se
apenas com poucos aspectos do seu ser: produção.
Chama-me a atenção a identificação de todos os três relacionarem um poder
superior. Referem-se a este poder como um deus que interrelacionam com a ideia
de produção.
Lygia Clark é fenômeno que também se deve à ferrenha oposição da artista ao circuito artístico, implacável em seu processo de fetichização da obra de arte, em rebaixar a dimensão crítica da procura estética tratando-a como simples mercadoria. Lygia recusou esse lugar como também o papel de semideus que historicamente era reservado ao artista, o demiurgo cujas obras compensam a carência de expressão poética do espectador contemporâneo e, ademais, prolongam sua passividade. Lygia trocou o canal que irradiaria sua obra para uma esfera mais ampliada por uma comunicação discreta, quase segredada no ouvido de uma, ou duas, ou três pessoas de cada vez. Como ela descreveu certa vez, diferentemente da grande fome de extroversão que acometia o geral de seus colegas, ela engolia. Ela era assim, em vez de um vômito, uma introversão lenta e dramática, 'tudo para botar um único ovo que nada tem de inventado, mas sim de gorado...' (Agnaldo Farias, Uma Viagem para Dentro, Revista Bravo, ano 2, nº 15, Dezembro 1998 p. 100).
No caso de Lygia, a proposta de liberdade em relação ao sistema de arte,
principalmente aos grupos que defendem uma produção de arte elitizada e que
negam a arte sem propor uma solução para a crise da expressão moderna se dá da
seguinte forma:
Eu pertenço a um terceiro grupo que procura provocar a participação do público. Esta participação transforma totalmente o sentido da arte, como a entendem até aqui. Isto porque:
-Recusamos o espaço representativo e a obra como contemplação passiva; Recusamos todo mito exterior ao homem; Recusamos a obra de arte como tal e damos mais ênfase ao ato de realizar a proposição; Recusamos a duração como meio de expressão. Propomos o momento do ato como campo de experiência. Num mundo em que o homem tornou-se estranho a seu trabalho, nós o incitamos, pela experiência, a tomar consciência da alienação em que vive;
Recusamos Toda transferência no objeto – mesmo em um objeto que só estava presente para salientar a obscuridade de toda expressão;
Recusamos o artista que pretenda emitir através de sue objeto uma comunicação integral de sua mensagem, sem a participação do espectador; Recusamos a ideia freudiana do homem condicionado pelo passado inconsciente e damos como novo conceito de existência contra toda cristalização estática na duração (Lygia Clark, Revista Robho, n°4, 1968).
A obra é, antes de qualquer coisa, a ação do participante. Logo, simplesmente
não há obra, ou, pelo menos, não há nada a ser vendido. É preciso que ela não se
complete em si mesma, que seja um impulso para a liberdade de quem participa,
que através da proposição ofertada pelo artista, dê um sentido ao gesto do
participante e que o seu ato seja nutrido de um exercício espiritual de liberdade. Isso
é um motor social e político encarregado de propor experiências de conhecimento e
não uma proposta criadora de objetos de luxo.
Confesso que isso me causou estranheza ao visitar a retrospectiva de Lygia
Clark. Estava em 2012, começando o curso de Artes Visuais com pouco ou nenhum
conhecimento acerca da arte contemporânea ou de sua história, que se deu a partir
da visitação a exposição. O primeiro contato foi com a instalação Casa é o corpo
(1968)10 e a sensação ao entrar nela realmente era de penetração, ovulação,
germinação, o que foi bem interessante. Posso dizer que fui cativada naquele
momento. Mas eu não conhecia o trabalho da artista, não sabia muito bem do que
se tratava. No segundo piso estranhei o manuseio dos objetos pelas pessoas, tive
receio que os danificassem, afinal era uma exposição de arte e aqueles objetos
deveriam ter um valor e tanto. Ao chegar mais perto constatei que realmente eles
tinham avarias e questionei um monitor, que me disse se tratar de réplicas. Então
fiquei mais calma e ao mesmo tempo me senti enganada, pois estava ali pra ver os
originais, queira o contato direto com a artista e seu legado. Só algum tempo depois
pude entender o real valor daquelas obras, que independe do objeto em si e sem, no
entanto, desconsiderá-lo.
Compreendi que uma consciência expandida torna o ser liberto de todo o
poder que possa vir a ser exercido sobre ele. Uma mente capaz de pensar por si,
10 Estrutura de oito metros de extensão, com altura suficiente para permitir que qualquer pessoa possa entrar e transitar por seu interior. É um labirinto destinado, nas palavras de Lygia Clark, à experiência tátil, fantasmática e simbólica da interioridade do corpo. Disponível em: <http://www.lygiaclark.org.br/defaultpt.asp>
sem julgar e se sentir julgado, é livre. Gosto de pensar que a arte tenha um
compromisso social de libertar o pensamento humano. Para Spinoza, riquezas, fama
e honra, assim como a satisfação da libido e impulsos básicos, apenas nos distraem.
O maior bem é o conhecimento da união da mente com o universo como um todo.
3.4 Liberdade do corpo para Spinoza
Para Spinoza o homem é naturalmente prisioneiro da servidão. Pois a ideia
de liberdade se opõe ao constrangimento no ato da produção de algo. Por exemplo,
voltando a ideia de Deus em seu pensamento: Spinoza pensa Deus de um lado e do
outro os homens, onde o seu Deus é uma causa ativa e produtor de tudo quanto há,
livre de qualquer constrangimento em sua produção. Deus é uma substância -
natura naturans- onde só Deus é livre, pois ele é a natureza que tudo produz.
Enquanto que os homens são modos dessa substância, que só se constituem
a partir de forças externas a sua natu