a arte vivencial de adélia prado e lygia clark em contato

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A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato. Tese apresentada por Walace Rodrigues (matrícula S0624209) à Faculdade de Humanidades da Universidade de Leiden como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre (MA Research) em Estudos Latino-Americanos e Ameríndios. Orientadora: Professora Doutora Luz Rodríguez-Carranza. Master de Investigação (Mphil/MA Research) em Estudos Latino-Americanos e Ameríndios. Universidade de Leiden. 2009 1

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Thesis for the MPhil In Latin American Studies at Leiden Universiteit, 2009

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Page 1: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato.

Tese apresentada por WalaceRodrigues (matrícula S0624209) àFaculdade de Humanidades daUniversidade de Leiden comorequisito parcial para a obtençãodo título de Mestre (MA Research)em Estudos Latino-Americanos eAmeríndios.

Orientadora: Professora DoutoraLuz Rodríguez-Carranza.

Master de Investigação (Mphil/MA Research) em Estudos Latino-Americanos e Ameríndios.

Universidade de Leiden.2009

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Agradecimentos:

Gostaria de agradecer a ajuda das seguintes pessoas sem as quais esta tese não seria

elaborada:

Ao meu companheiro Frans Harren pela paciência, amor e carinho,

À professora Luz Rodríguez-Carranza pela orientação,

Ao professor Ruud Ploegmakers pela co-orientação,

À professora Vera Beatriz Cordeiro Siqueira pelas valiosas dicas,

Ao professor e poeta Guilherme Zarvos pela grande companhia e incentivo poético,

Ao professor Denilson Lopes pelo atento ouvir e explicar,

À professora Maria Luisa Sabóia Saddi pelo interesse mostrado,

A Marco Antônio Pinto de Sousa pela sempre amiga presença,

À Associação Lygia Clark nas pessoas de Beth e Alessandra,

Aos funcionários das seguintes bibliotecas: UFF, UERJ, Moreira Salles de Niterói, MNBA-

RJ, MAM-RJ, Biblioteca Nacional e UFRJ (Urca).

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Motivos

Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa.

Não sou alegre nem sou triste : sou poeta.

Irmão das coisas fugidias, Não sinto gozo nem tormento.

Atravesso noites e dias no vento.

Se desmorono ou se edifico, se permaneço ou me desfaço,

– não sei, não sei. Não sei se fico ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo. Tem sangue eterno e asa ritmada.

E um dia sei que estarei mudo: – mais nada.

Poema de Cecília Meireles (1901-1964)

em Melhores poemas. São Paulo: Global Editora, 1984.

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Índice:

1- Introdução........................................................................................................... 6

2- Materiais..............................................................................................................82.1 Materiais Filosóficos................................................................................... 8

2.1.1 Humanismo.........................................................................................82.1.2 Existencialismo (Sartriano).................................................................92.1.3 Fenomenologia de Merleau-Ponty....................................................13

2.2 Material Religioso......................................................................................162.2.1 Misticismo.........................................................................................16

2.3 Materiais Artísticos e Literários.................................................................212.3.1 Performance.......................................................................................212.3.2 Tropicalismo......................................................................................242.3.3 Poesia Marginal.................................................................................272.3.4 Vivência (e experiência vivida).........................................................28

2.4 Material Sócio-Político...............................................................................302.4.1 Ditadura Militar.................................................................................30

2.5 Material Metodológico...............................................................................312.5.1 Sinestesia...........................................................................................31

3- Hipótese.............................................................................................................33

4- Estado da Questão..............................................................................................35

5- Análise do livro Bagagem e alguns de seus poemas..........................................45

6- Análise das obras de Lygia Clark do final da década de 1960 e começo da década de 1970.....................................................................................68

7- Contatos entre Adélia Prado e Lygia Clark.......................................................83

8- Conclusão..........................................................................................................96

9- Bibliografia........................................................................................................98

10- Anexos...........................................................................................................10310.1 A procura de poesia..............................................................................10310.2 Vistas do feto no útero..........................................................................10510.3 “hon-en-katedral” (“ela-a catedral”)....................................................10610.4 Manifesto Antropofágico.....................................................................107

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Page 6: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

1-Introdução:

A vontade de fazer um estudo de duas artistas brasileiras, aparentemente tão distantes para

algumas pessoas e de áreas, também aparentemente, distintas (literatura e história da arte), me

veio através do desejo de analisar uma obra literária para a área de literatura do mestrado em

Estudos Latino-Americanos. Eu queria integrar e expandir meus conhecimentos da área de

história da arte (por onde venho caminhando por alguns anos) com o trabalho de um

escritor(a) brasileiro(a).

A minha descoberta de Adélia Prado e de sua poesia da vida diária me pareceu bastante

interessante para desenvolver uma análise de sua obra. Suas poesias me tocaram de forma

singular, sua sensibilidade tão brasileira e tão provincial mineira me atrairam de maneira

ímpar. Assim, decidi-me por pesquisar a obra de Adélia, concentrando-me no seu primeiro

livro Bagagem, que me pareceu o mais significativo dos que lí.

No entanto, ainda me faltava algo nessa pesquisa, algo mais dentro do campo da arte visual.

Como eu vinha fazendo trabalhos basicamente sobre artistas brasileiros das décadas de 1960 e

1970, principalmente sobre Hélio Oiticica, Cildo Meireles e Solange Escosteguy, decidi-me

por buscar uma artista (uma mulher) para relacionar seus trabalhos à poesia de Adélia Prado.

Minha busca me levou a Lygia Clark e suas obras vivenciais que valorizavam as pessoas e

suas habilidades sensíveis. Minha sensibilidade me levou a pensar, em princípio, nas zonas

“abstrata e concreta” da vida humana onde operaram as duas artistas: Clark no sentido de uma

arte sem objeto e vivida pelo espectador, e Prado de uma obra de transcendência da vida

cotidiana que se vive no interior brasileiro. Ambas ligadas a um humanismo1 transformador e

pouco convencional que dá importância ao sensorial do mundo, às memórias e ao ato de viver

cada momento com a maior intensidade possível, fazendo da vida um existir cheio de imagens

memoráveis.

Meu interesse passou, então, à busca de relações possíveis entre as obras dessas duas artistas

tão brasileiras, mineiras, que foram, ambas, normalistas. Assim, passei a pensar como a obra

de uma poderia acrescentar significado à obra da outra, sem fechar, de maneira alguma, a

1 Falarei deste “Humanismo” na parte desta tese que chamei “Materiais”.

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significação de seus trabalhos. E venho, através desta tese, buscar as ligações possíveis e mais

interessantes tanto para área literária como para a da história da arte, ligações essas que me

dêem um amplo leque de chaves interpretativas da obra das duas artistas e que, de alguma

maneira, expandam o conhecimento sobre os jogos simbólicos e imagéticos no qual os

trabalhos de ambas artistas se envolvem.

Esta tese está estruturada da seguinte forma: Introdução, onde apresento os motivos que me

levaram a esta tese; Materiais, onde coloco os marcos fundamentais para a compreensão da

minha análise das obras de Adélia Prado e Lygia Clark; Estado da questão, onde coloco a

visão da crítica sobre os trabalhos das duas artistas; Análise do livro Bagagem e alguns de

seus poemas, onde analiso alguns poemas do livro e dou minha interpretação sobre eles;

Análise das obras de Lygia Clark do final da década de 1960 e começo da década de 1970,

onde busco trabalhar conceitualmente as proposições de Clark no período descrito; Contatos

entre Adélia Prado e Lygia Clark, onde busco as áreas de fricção da produção de uma artista

com a outra; Conclusão, onde termino a tese com minhas últimas observações; Bibliografia,

onde coloquei os livros, capítulos, textos e artigos lidos; e Anexos, onde selecionei alguns

itens que creio importantes para melhor esclarecimento desta tese.

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2-Materiais:

Nesta parte da tese desejo mostrar os “materiais” que creio importantes para o entendimento

das análises das poesias de Adélia Prado em seu livro Bagagem e das proposições de Lygia

Clark. Vejo esses materiais como fundamentais, também, para a melhor compreensão dos

contatos entre as duas artistas. Divido esta parte da tese em materiais filosóficos (humanismo,

existencialismo Sartriano, e fenomenologia de Merleau-Ponty), religioso (misticismo no caso

adeliniano), artísticos e literários (performance, tropicalismo, poesia marginal, e vivências),

sócio-político (ditadura militar), e metodológico (sinestesia).

2.1 Materiais Filosóficos:

2.1.1 Humanismo:

O humanismo a que se refere este tese tem seu caráter na revalorização da criatividade

humana em detrimento de um racionalismo excessivo. Esse ponto é chave na “ruptura” entre

os artistas brasileiros concretos e os neoconcretos, já que “o neoconcretismo fez um retorno

ao humanismo ante o cientificismo concreto” (Brito, 1985: p.55), como diz Ronaldo Brito

citando Frederico Morais. Esse humanismo de que falo aqui recoloca as questões antológicas

no âmbito da criação artística. Brito continua dizendo que:

“Enquanto a episteme concreta incluía o homem sobretudo como agente social e

econômico, apesar da propalada autonomia da cultura, o neoconcretismo repunha a

colocação do homem como ser no mundo e pretendia pensar a arte nesse contexto:

tratava-se de pensá-lo enquanto totalidade” (Brito, 1985: p. 57-58).

É esse “renascimento” do homem enquanto totalidade que chamo aqui de humanismo

neoconcreto.

Os neoconcretos tinham o homem como tema central em suas pesquisas artísticas. Era através

da integração do espectador no campo da arte que os artistas neoconcretos encontraram novas

formas de ações de caráter estético-plástico. O Manifesto Neoconcreto, escrito por Ferreira

Gullar nos mostra esta escolha pelo homem como totalidade:

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“O neoconcreto, nascido de uma necessidade de exprimir a complexa realidade dohomem moderno dentro da linguagem estrutural da nova plástica, nega a validez dasatitudes cientificistas e positivistas em arte e repôe o problema da expressão,incorporando as dimensões 'verbais' criadas pela arte não-figurativa construtiva. Oracionalismo rouba `a arte toda a autonomia e substitui as qualidades intransferíveisda obra de arte por noções da objetividade científica: assim os conceitos da forma,espaço, tempo, estrutura – que na linguagem das artes estão ligados a umasignificação existencial, emotiva e afetiva – são confundidos com a aplicação teóricaque deles faz a ciência.” (Gullar IN Ades, 1997: p. 336).

Refiro-me aqui a um humanismo de cunho existencialista, onde “By 'humanism' we might

mean a theory that takes man as an end and as the supreme value” (Sartre, 1947/2007: p.51)

e Sartre ainda nos diz claramente o que é esse humanismo:

“...is basically this: man is always outside of himself, and it is in projecting and losinghimself beyond himself that man is realized; and, on the other hand, it is pursuingtranscendent goals that he is able to exist. Since man is this transcendence, and graspsobjects only in relation to such transcendence, he is himself the core and focus of thistranscendence. The only universe that exists is the human one – the universe of humansubjectivity. This link between transcendence and constitutive of man (not in the sensethat God is transcendent, but in the sense that man passes beyond himself) andsubjectivity ( in the sense that man is not an island unto himself but always present ina human universe) is what we call 'existentialist humanism', This is humanismbecause we remind man that there is no legislator other than himself and that he must,in his abandoned state, make his own choices, and also because we show that it is notby turning inward, but by constantly seeking a goal outside of himself in the form ofliberation, or of some special achievement, that man realizes himself as truly human.”(Sartre, 1947/2007: p. 52-53).1

E com esta passagem tão completa termino a definição de humanismo que desejava deixar

aqui. É esse humanismo onde o homem toma as rédeas de sua vida e define o que deve fazer,

como deve agir, sempre tendo em mente que não está sozinho no mundo e que suas ações e

responsabilidades têm caráter “comunitário” (idem, p. 24).

2.1.2 Existencialismo (Sartriano):

O existencialismo é uma corrente filosófica surgida na Europa e que teve seu ápice na época

do pós-segunda guerra mundial. Nos desencantamentos deste período se notam alguns dos

mais importantes temas para o existencialismo, como explica Simon Blackburn em seu

1 Desejo informar que os livros lidos para este tese foram em língua portuguesa, espanhola e inglesa. Por meuconhecimento da língua francesa não ser bom o bastante para ler e compreender perfeitamente os conceitosexpressos, optei por usar as traduções em inglês, já que as traduções ao português não são de fácil acesso nasbibliotecas dos Países Baixos.

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Dictionary of Philosophy:

“A loose title for various philosophies that emphasize certain common themes: theindividual, the experience, the experience of choice, and the absence of rationalunderstanding of the universe with consequent dread or sense of absurdity in humanlife.” (Blackburn, 2006: p.125).

O tom do existencialismo foi dado quando os homens buscavam dentro de si mesmos as

explicações para a segunda guerra mundial e toda a miséria humana causada por esta guerra.

O existencialismo acompanha o momento emocional do pós-guerra, explorando a liberdade

de escolha dos homens e focando numa ontologia construtiva e mais solidária.

Os primeiros conceitos usados no existencialismo do século XX foram buscados na filosofia

de Kierkegaard (1813-55), um filósofo e teólogo dinamarquês que enfatizou a primazia da

vontade e da liberdade de escolha humanas não cerceadas por razão ou causa. Para esta tese,

no entanto, nos interessa o existencialismo ateu de Jean Paul-Sartre (1905-80) por ser um dos

filósofos que mais claramente definiu as questões dos estudos existencialistas. A corrente

não-atéia do existencialismo de linha cristã teve sua força nas obras dos filósofos Karl

Jaspers e Gabriel Marcel.

Na conferência L'existentialisme est un humanisme dada em 29 de Outubro de 1945, depois

transformada em livro, Sartre define claramente as bases de sua teoria existencialista. Ele diz

que “existência precede essência” (2007: p. 20), onde “... every truth and every action imply

an environment and a human subjectivity” (idem, p. 18), mostrando que o homem existe

através de sua liberdade de escolhas e experiências na vida real. O homem pode e deve

decidir sobre sua própria vida, mas não deve esquecer que suas ações podem ter efeito na vida

de outros. Se o homem é sempre livre para decidir, o homem é liberdade. E se o homem tem

toda esta liberdade, ele pode encontrar-se num estado de angústia de escolhas. Já que, para

Sartre, Deus não existe e cada homem é responsável por seus atos, essa angústia, esse

desânimo e esse desespero estão ligados às várias possibilidades de ação que podem ser

tomadas dentro dos limites de nossa avaliação e vontade.

É através da ação que o homem mostra o que vale. Porém, à cada ação corresponde sua

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responsabilidade. A liberdade, então, para Sartre é a fundação de todos os valores. A

liberdade de agir é o que move o homem no mundo. Sua existência não tem significado a

priori, mas deve ser vivida, e toda vida humana tem seu lado subjetivo:

“...subjective1 because they are experienced and are meaningless if man does notexperience them – that is to say, if man does not freely determine himself and hisexistence in relation to them. And, as diverse as man's projects may be, at least noneof them seem wholly foreign to me since each presents itself as an attempt to surpasssuch limitations, to postpone, deny, or to come to terms with them. Consequently,every project, however individual, has a universal value.” (Sartre, 1947/2007: p.42).

Ou seja, a condição em que uma pessoa nasce não define sua essência, e, ainda, os homens de

culturas diferentes são capazes de reconhecer um projeto em sua humanidade, daí o valor

universal de cada projeto individual. Este aspecto da teoria de Sartre nos faz reconhecer no

outro aquilo que somos e buscamos, numa solidariedade que nos une a todos. Sartre confirma

isto quando diz:

“In this sense, we can claim that human universality exists, but it is not a given; it is inperpetual construction. In choosing myself, I construct universality; I construct it byunderstanding every other man's project, regardless of an era in which he lives. Thisabsolute freedom of choice does not alter the relativity of each era. The fundamentalaim of existentialism is to reveal the link between the absolute character of the freecommitment, by which every man realizes himself in realizing a type of humanity – acommitment that is always understandable, by anyone in any era – and the relativityof the cultural ensemble that may result from such a choice.” (idem, p. 43).

Devo repetir aqui, para a melhor compreensão do tema, a frase fundamental da passagem

acima: “The fundamental aim of existentialism is to reveal the link between the absolute

character of the free commitment”. Ou seja, o existencialismo mostra-nos claramente que o

que escolhemos é importante, mas o poder escolher consciente e livremente ainda é mais

importante. Numa época de guerras e desgraças, quando nasce o Existencialismo, Sartre

implicita que essas desavenças são causadas pela própria liberdade de escolha, que somos

livres para escolher e devemos nos responsabilizar por nossas escolhas. Essas escolhas têm

um carater mais que pessoal, elas influenciam, de certo modo, todo o grupo. Ou seja, é a força

da ação, do fazer decidido, que tem valor maior.

Assim, o homem é definido pelas suas ações, pelos seus projetos. A covardia de um homem

se nota pelo não-atuar, pelo deixar pra trás um projeto, pelo abandono da ação. Sartre define

1 Sartre se refere aqui às condições subjetivas da vida humana, por exemplo: nascer senhor ou escravo.

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este homem:

“...man is nothing but a series of enterprises1, and that he is the sum, organization, and

aggregate of the relations that constitute such enterprises” (idem, p. 38).

E esse homem que age e se descobre em suas ações e projetos depende do outro para

reconhecer-se, esse homem se “contrói” no mundo:

“Man makes himself; he does not come into the world fully made, he makes himselfby choosing his own morality, and his circumstances are such that he has no optionother than to choose a morality2.”(idem, p. 46).

E ainda:

“The other is essential to my existence, as well as to the knowledge I have of myself.Under these conditions, my intimate discovery of myself is at the same time arevelation of the other as a freedom that confronts my own and that cannot think orwill without doing so for or against me. We are thus immediately thrust into a worldthat we may call 'intersubjectivity'. It is in this world that man decides what he is andwhat others are.” (idem, p. 42).

É o homem quem decide quem ele é, quem o outro é e o que representam-se mutuamente. E é

decidindo o que fazer que o homem compromete-se com toda a humanidade, pois suas

escolhas e ações irão interferir nas vidas dos outros:

“...the man finds himself in a complex social situation in which he himself iscommitted, and by his choices commits all mankind, and he can not avoid choosing.He will choose to abstain from sex, or marry without having children, or marry andhave children. Whatever he does, he cannot avoid bearing full responsibility for hissituation.” (idem, p. 45).

Essa relação que mantemos com os outros e com toda a humanidade, através da minhas

próprias escolhas, deve sempre almejar a liberdade, a minha liberdade e a liberdade do outro.

E é exatamente essa busca pela liberdade de agir de cada um que nos faz existir, segundo

Sartre:

“I cannot set my own freedom as a goal without also setting the freedom of others as agoal. Consequently, when, operating on the level of complete authenticity, I haveacknowledged that existence precedes essence, and that man is a free being who,under any circumstances, can only ever will his freedom, I have at the same time

1 “Enterprises” vistos aquí como uma série de ações.2 Moralidade esta que, como arte, é criada e inventada.

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acknowledged that I must will the freedom of others.” (idem, p. 49).

Já que nossa liberdade, segundo o existencialismo, é fundante para nossas escolhas, nossa

vida se baseia em escolher e formar-nos como pessoas. Sartre nos informa que:

“...life has no meaning a priori. Life itself is nothing until it is lived, it is we who give

it meaning, and value is nothing more than the meaning we five to it.” (idem, p. 51).

E como somos homens que estamos sempre nos construindo enquanto pessoas, descobrindo

novas coisas e praticando nossa liberdade, nossa vida será marcada por nossas ações e

escolhas no mundo. Então:

“...existentialism will never consider man as an end, because man is constantly in the

making. And we have no right to believe that humanity is something we could

worship, in the manner of Auguste Comte.” (idem, p. 52).

2.1.3 Fenomenologia de Merleau-Ponty:

Merleau-Ponty (1908-1961) é uma das figuras que mais influenciaram os artistas

neoconcretos brasileiros. Tanto que, Ferreira Gullar, ao escrever o Manifesto Neoconcreto,

em 1959, cita-o como um dos intelectuais que “denunciam preconceitos” (IN Ades, 1997: p.

336) do racionalismo. Uso uma passagem onde Gullar cita claramente os pensamentos de

Merleau-Ponty:

“Acreditamos que a obra de arte supera o mecanismo material sobre o qual repousa,não por alguma virtude extraterrena: supera-o por transcender essas relaçõesmecânicas (que a Gestalt objetiva) e por criar para si uma significação tácita (M.Ponty) que emerge nela pela primeira vez.” (Gullar, IN Ades, 1997: p. 336).

A área de estudo que fez conhecido Merleau-Ponty é a fenomenologia da percepção, sendo

este o título de sua obra mais conhecida: La Phénoménologie de la Perception, de 1945. A

fenomenologia tem como objeto de estudo o fenômeno, buscando a interpretação do mundo

através da consciência do sujeito formulada com base em suas experiências. Blackburn, em

seu Dictionary of Philosophy, define da seguinte maneira o trabalho de Merleau-Ponty e o

livro citado:

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“Merleau-Ponty's work draws upon empirical psychology as well as the tradition ofHusserl1 to explore the experiential relationship that we have with the world. Hisbook2 is particularly notable for its extended and illuminating description of ourrelationship with our own bodies in perception and action.” (Blackburn, 2006: p.231).

Colocando o corpo de quem percebe e age no centro do debate, Merleau-Ponty consegue

passar dos limites da Gestalt3 e da compreensão positivista (empírica e intelectualista) para

introduzir o corpo humano, com todas suas variantes, no processo de percepção. Nosso corpo

passa a ser, então, concebido como campo criador de sentidos em nossa existência no mundo,

como um conjunto de sentidos e significados que se relacionam com o mundo. Merleau-Ponty

nos fala da importância da necessidade da percepção de nós mesmos no ato de perceber:

“I could not possibly apprehend anything as existing unless I first of all experiencedmyself as existing in the act of apprehending it. They4 presented consciousness, theabsolute certainty of my existence for myself, as the condition of there being anythingat all; and the act of relating as the basis of relatedness.” (Merleau-Ponty, 1945/2008,preface: p. x).

Para a fenomenologia um objeto é como o sujeito o percebe, e tudo tem que ser estudado tal

como é para o sujeito e sem interferência de qualquer regra de observação, pois o objeto de

estudo é o fenômeno em si. Assim, um objeto, o outro ser humano, uma sensação, uma

recordação, enfim, tudo tem que ser estudado tal como é para o espectador (um ser capaz de

sentir-experimentar), levando em conta a liberdade de análise, as impressões de cada um e

todos os fatores que possam interferir no ato de perceber. Uso uma passagem de Merleau-

Ponty onde ele fala exatamente sobre o mundo estudado pela fenomenologia:

“The phenomenological world is not pure being, but the sense which is revealedwhere the paths of my various experiences intersect, and also where my own and otherpeople's intersect and engage each other like gears. It is thus, inseparable fromsubjectivity and intersubjectivity, which find their unity when I either take up my pastexperiences in those of the present, or other people's in my own.” (idem, p. xxii).

Assim, a análise atenta de tudo e de todos que nos cercam é o primeiro passo para a

1 Edmund Gustav Albert Husserl (1859-1938) foi um filósofo e matemático alemão; é considerado o pai defenomenologia. De seu professor Brentano “...he inherited the view that the central problem in understandingthought is that of explaining the ways in which an intentional direction, or content, can belong to the mentalphenomenon that exhibits it.” (Blackburn, 2006: p. 173).

2 Livro La Phénoménologie de la Perception, de 1945.3 Teoria conhecida pelos seus clássicos exemplos de figura versus fundo, onde “...a percepção é compreendida

através da noção de campo, não existindo as sensações elementares, nem objetos isolados. Desta forma, apercepção não é o conhecimento exaustivo e total do objeto, mas uma interpretação sempre provisória eincompleta.” (Nóbrega, 2008).

4 “Eles” são Descartes e Kant.

14

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percepção. Nossos sentidos nos introduzem a experiências as mais variadas, e esse processo

do “ver algo” até “o perceber algo” é o que, exatamente, interessa a Merleau-Ponty. Sua

introdução das variantes internas e externas relacionadas ao corpo de quem percebe se torna o

grande avanço de sua teoria. A introspecção de cada pessoa trabalha de maneira diferente, e

os objetos que são o foco da percepção não podem ter valores fixos, como nas teorias

anteriores. A importância da análise pessoal é fundamental para Merleau-Ponty. As

experiências pessoais e as variantes emocionais, temporais e locais (naturais ou não) podem

sempre modificar a maneira como percebemos:

“There is nothing in the appearance of a landscape, an object or a body whereby it ispredestinated to look 'gay' or 'sad', 'lively' or 'dreary', 'elegant' or 'coarse'.” (idem,p.27).

É através, então, de nosso corpo que percebemos, e tudo em nosso corpo pode alterar a

maneira como percebemos algo. Terezinha Petrucia da Nóbrega, uma estudiosa de Merleau-

Ponty, aponta a importância de nosso corpo para o processo de percepção:

“...é preciso enfatizar a experiência do corpo como campo criador de sentidos, istoporque a percepção não é uma representação mentalista, mas um acontecimento dacorporeidade e, como tal, da existência.” (Nóbrega, 2008).

Essa fundamentalidade do corpo e seus sentidos (não como receptores passivos) reforça a

teoria de que os seres humanos percebemos através de nossa experiências no mundo via nosso

“corpo fenomenal”. Nosso corpo já não é mais percebido em sua dicotomia corpo versus

mente, mas em sua inteireza. E este corpo que nos faz perceber, com todas as variantes

possíveis (internas e externas a ele), é o mesmo corpo que nutre o perceber estético. Nóbrega

nos fala sobre isso:

“A sensibilidade estética é um desdobramento da análise perceptiva de Merleau-Ponty, considerando os aspectos do corpo, do movimento e do sensível comoconfiguração da corporeidade e da percepção como criação e expressão da linguagem;considerando as referências feitas pelo filósofo1 às artes, especialmente à pintura,como possibilidade de se ampliar a linguagem, de aproximá-la da vida do homem ede seu corpo. A obra de arte está colocada no campo de possibilidades para aexistência do sensível, não como pensamento de ver ou de sentir, mas como reflexãocorporal.” (idem, 2008).

E ainda:

1 O filósofo aquí é Merleau-Ponty.

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“...a experiência da obra de arte em geral produz significações mais amplas que adefinem como um poema, um romance ou uma pintura. A obra de arte também seconstitui como um suplemento de sentido, formulando a partir da experiência vivida,e é essa modulação existencial que torna a narrativa ou o quadro significativo paranós.” (idem, 2008).

Hoje sabemos que a teoria da percepção de Merleau-Ponty encontra-se ultrapassada no seu

caráter científico, porém ainda é de extrema importância para o estudo das teorias

relacionadas à aprendizagem, psicologia, artes, biociências, ciências cognitivas e inteligência

artificial, entre outras. Ao relacionar a experiência vivida com a cognição, Merleau-Ponty dá

um salto em direção à validação da subjetividade individual no campo da fenomenologia da

percepção, e em nosso caso, no campo de estudo da experiência artística. Deixo aqui um

“conselho” do próprio Merleau-Ponty:

“We must discover de origin of the object at the very centre of our experience; wemust describe emergence of being and we must understand how, paradoxically, thereis for us an in-itself. In order not to prejudice the issue1, we shall take objectivethought on its own terms and not ask it any questions which it does not ask itself.”(Merleau-Ponty, 1945/2008: p. 83).

2.2 Material Religioso:

2.2.1 Misticismo:

Meu entendimento sobre misticismo para esta tese se dá via uma mescla de erotismo e

santidade. Esta mesma concepção de místico com relação ao sagrado e ao erótico pode ser

vista no período da arte barroca. Exemplo claro disto é obra de estatuária barroca de Bernini

chamada Êxtase de Santa Teresa (1645-52), localizada na igreja de Santa Maria della Vittoria

em Roma.

“A santa, arrebatada de amor divino, junta-se a seu esposo místico. A materializaçãodesse ato espiritual tem uma explicação formal, em que estão presentes aspectospuramente carnais e eróticos.” (Triadó, 1991: p.40).

E é esta dualidade entre o humano (erotismo, pecado) e o divino (santidade, perdão) que se

pode notar claramente nas obras barrocas. Também, no campo da poesia barroca brasileira,

1 O “issue” aquí é o entendimento dos processos da percepção.

16

Page 17: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

vemos nos poemas de Gregório de Matos essa mesma dualidade. Como descreve José Maria

de Souza Dantas, analisando o poema Buscando a Cristo de Gregório de Matos:

“O contexto do século XVII e parte do século XVIII, na literatura brasileira, mostra

esse caráter religioso, conforme já assinalamos. Todo um contexto sócio-cultural e

religioso permite uma poesia desse teor, em que o poeta reflete a tentativa de encontro

do homem com Deus, dentro de sua concepção de pecado, que busca perdão, de

acordo com um momento de crise, que busca harmonia na sabedoria divina, em sua

compreensão, conforme assim entendia o homem barroco. De fato, após a busca, toda

a ânsia de encontro com Deus, para obter a salvação, o poeta declara,

conscientemente, essa necessidade de ascensão, de conhecimento de Deus. O seu

objetivo é a união total, o conhecimento integral, a vontade urgente de encontrar

Deus.” (Dantas, 1984: p.23).

A utilização da mística barroca em arte pode ser vista ainda hoje. E é usando esta força

anacrônica de conceitos artísticos que produções atuais ainda podem ser definidas como

“barrocas”. Mieke Bal, em um artigo intitulado Ecstatic Aesthetics: Metaphoring Bernini,

reconhece no trabalho de estatuária entitulado Femme Maison (de 1983) de Louise Bourgeois

aspectos do barroco que “resistem tradução” quando comparados ao Êxtase de Santa Teresa

de Bernini. Louise Bourgeois se utiliza muito da ambigüidade entre o erótico feminino e a fé

barroca. Mieke Bal nos diz:

“Louise Bourgeois, in addition to calling herself a baroque artist, created a sculpturetitled Baroque (1970), as well as one called Homage to Bernini (1967).” (Bal, 2003:p.5).

E ainda,

“Bourgeois's metaphorizes baroque sculpture, in particular Bernini's Teresa, throughtwo elements that characterize both works. The first is the integration of interior andexterior of the represented body. The second is the integration of interior [fire] andexterior [flames] of the space where the viewer stands in relation to the body.” (idem,p.13).

Mieke Bal defende em seu artigo a visão, remetendo a Walter Benjamim, de que a história,

inclusive a história da arte, não pode ser uma reconstrução do passado, e nem mesmo uma

identificação com o passado, mas uma forma de tradução deste (idem, p.6). Ela defende a

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Page 18: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

idéia da utilização de valores de outros tempos, em sua visão anacrônica, como uma forma de

tradução do passado para o presente, como transformação e renovação. Assim, a utilização de

“valores barrocos” na obra de Louise Bourgeois pode ser vista como uma reinterpretação

desses valores do passado para os dias atuais.

E é pela mesma via mística, e anacrônica, de utilizar a força expressiva da santidade e do

erotismo barroco que trabalham Bourgeois e Adélia Prado. Então, como não pretendo

desenvolver este tema do misticismo extensivamente no corpo desta tese, gostaria de explicar

aqui um pouco mais sobre a maneira mística de Adélia Prado, pois essa explanação, neste

momento, tem o intuito de ajudar o melhor entendimento da obra de Adélia no decorrer desta

tese. Para isso utilizo três passagens da entrevista de Adélia concedida a Mariza Ferreira

Bahia:

“O caminho da poesia... ele se encontra com o caminho da mística. Porque a poesiaexatamente, ela é uma revelação do ser, não é? Você toca na unidade cada vez quevocê tem um poema direito, um poema verdadeiro, na sua frente. A experiênciamística é a mesma coisa. Então, na sua origem e na sua substância última, no seusubstrato último, toda a obra é religiosa...toda obra é religiosa...porque ela visa, elavisa a unidade. Você pega um quadro, a forma, você já está lidando com a unidade. Ea unidade para o místico é Deus. Você pode dar o nome quequiser...mas...Fundamento do ser. Fundamento do ser.” (Bahia, 1994: p.141).

E ainda em outra passagem:

“Eu não associei não1. Eles são coisas da mesma fonte. A coisa mais erótica que tem éo religioso, a celebração de Eros, da vida. Você vê que o Cristianismo oferece pragente um ban-que-te onde você come o seu Deus, né?... Então essas coisas são fontescomuns. É místico, é religião, é poesia... a fonte é uma só. Se você ler os textos dosmísticos, os textos religiosos... Se você ler São João da Cruz ou Santa Teresa de Ávila– ontem foi o dia dela – são dois dos maiores místicos da cristandade, são poemas deamor, altamente erotizados, dirigidos a divindades. Então não é que eu associei, não.Essa coisa já está junta.” (idem, p. 143).

E finalmente:

“Você quer comer o seu Deus. Você quer ser possuída pelo seu Deus e vice-versa.Então isso aí é da experiência mais profunda que tem. É experiência amorosa. É aexperiência do Eros. Então poesia, erotismo, mística, é tudo fruta de um balaio só...uma árvore só.” (idem, p. 145).

1 Adélia se refere à associação de erotismo com religião.

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Page 19: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

Destas passagens podemos verificar que a relação entre o que é místico, erótico e religioso se

dá de maneira igualitária na concepção de Adélia Prado, onde o místico é indivisível do

religioso e do erótico. É pelo amor ao seu Deus que Adélia se torna mística, já que esta união

de amor emana da relação com seu Deus. Esta busca de união com Deus também vimos na

análise de Dantas sobre o poema de Gregório de Matos.

Estas concepções de que o bem (ex: poesia, amor) emana de Deus e que se deve buscar uma

união mística com Deus aproxima Adélia Prado da filosofia do neoplatonista Plotino (205-

270BC), um filósofo antigo muito utilizado pelos filósofos medievais que definiram as bases

da doutrina católica (ex: S. Agostinho e S. Tomás de Aquino). Plotino verifica que o reino das

coisas inteligíveis se dividem em três: O Uno, o absolutamente transcendental; a inteligência,

que é o mundo das idéias e conceitos; e a alma, incorpórea, substancial, imortal e capaz de

transmigrar. As almas são puxadas para o mundo dos corpos terrestres. O Uno (Deus) emana

ou transborda, como os raios do sol, para criar os reinos da inteligência que, por sua vez,

emana ao mundo das almas.

Para clarificar meu ponto, incluo uma passagem do Dictionary of Philosophy de Blackburn

para melhor unir os pensamentos de Plotino e Adélia:

“In any event, it is in contemplation of the higher1, creative principle that the lowerreceives its form or impress. But it is also as reflections of the one cosmic Soul thatindividual souls exist, and their aim must be to direct their contemplation back up thehierarchy, eventually to obtain light and vitality by contemplative absorption in theOne.” (Blackburn, 2006: p.281).

Podemos compreender, então, que a contemplação do sagrado, tanto para Plotino quanto para

Adélia, e mesmo para Gregório de Matos, deve levar a uma união com o Deus criador. E que

o misticismo é esse caminho de contemplação que tem como objetivo esta união com Deus,

essa absorção em Deus. Como tudo emana de Deus, o erotismo, a mística, a poesia, tudo deve

voltar a Deus. Neste mesmo sentido a compreensão do místico em Adélia Prado é muito

próxima da de Plotino.

1 O “mais alto” aqui é o Uno, Deus.

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Page 20: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

O misticismo em Adélia Prado se nota desta mesma maneira ambígua barroca: carnal e

erótico, porém religioso. Talvez essa mística “barroca” de Adélia tenha sido influenciada pela

catolicidade tradicional do interior mineiro, de onde ela vem e onde a cultura barroca obteve

extrema importância. A poesia de Adélia não é uma poesia barroca, mas sim, religiosa, porém

mantem algum cunho barroco enquanto tenta unir a religiosidade católica com a existência

humana no mundo. Ela trabalha com os conceitos barrocos de maneira anacrônica, buscando

colocá-los, traduzi-los ao dia de hoje, em sua obra. Em uma outra passagem de José Maria de

Souza Dantas, falando sobre a poesia do mesmo poeta barroco Gregório de Matos, ele define

resumida e claramente as intenções barrocas:

“...o barroco procurou contemporizar a religiosidade medieval e o humanismorenascentista.” (Dantas, 1984: p. 22).

Portanto, podemos verificar que o misticismo de que se utiliza Adélia Prado é, provavelmente,

algo que tem a ver com várias influências: religiosidade católica, valorização da vida humana

e sua existência no mundo, uma questão artística e, talvez, até estilística da relação do humano

e do sagrado. Porém, esta utilização anacrônica de valores marcadamente barrocos não fazem

da poesia de Adélia uma poesia barroca, mas uma poesia religiosa que se reutiliza de valores

barrocos em sua composição.

Êxtase de Santa Teresa de Bernini.

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Page 21: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

2.3 Materiais Artísticos e Literários:

2.3.1 Performance:

Para começar a definir o termo “performance”1 é necessário assinalar a múltipla aplicação

deste termo, sua ambigüidade de significados e sua pluralidade de interpretações. Por ser uma

modalidade artística multidiciplinária, mesclando teatro, dança, vídeo, música, poesia, e

outras formas de fazer artístico, sua aplicação é ampla e bastante variada. O termo

“performance” pode ser aplicado, nesta tese, às proposições de Lygia Clark, não somente pela

participação ativa do espectador na obra, mas também por sua tentativa de introdução de uma

arte-terapia fundada no uso de objetos sensoriais. Porém, a participação do artista e/ou dos

espectadores nas obras-proposições é um ponto que une todos as possibilidades do conceito

“performance”.

Utilizo aqui uma passagem de Regina Melim sobre o fundamento da participação na

performance e sobre o espaço da performação (onde a performance acha seu lugar como

potência de ação):

“Outra questão a ser abordada parte da idéia de participação e compartilhamento,conduzindo-nos a outros procedimentos igualmente performátivos. Para tanto, serálançada a noção de espaço da performação, traduzido como aquele que insere oespectador na obra-proposição, possibilitando a criação de uma estrutura relacional oucomunicacional. Ou seja, o espaço da ação do espectador ampliando a noção deperformance como um procedimento que se prolonga também no participador.”(Melim, 2008: p.9).

Uma importante pesquisadora na área da performance artística é Roselee Goldberg, que

trabalha com a noção de que performance tem seu começo com os Futuristas (já em 1910, nos

eventos no Teatro Rosetti em Trieste), os Contrutivistas, os Dadaístas e os Surrealistas

(Goldberg, 1984: p.24).

A performance artística se firmou como arte anti-comercial, experimental, livre de parâmetros

predeterminados e sempre com a participação do artista e/ou espectador(es). O termo pode ser

empregado também como uma classificação geral para happening, body art, poesia de ação,

1 Segundo Regina Melim, o termo performance “foi cunhado como categoria no início dos anos 1970” (2008:p.8).

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Page 22: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

noise music e fluxus, entre outras definições.

É importante lembrar que performance incorpora novas formas artísticas em sua realização,

por exemplo, desde a década de 1980 se nota a utilização de vídeos em performances. Sobre

essa multiplicidade de recursos e sobre a atualidade das performances, utilizo duas passagens

de Roselee Goldberg de seu artigo Performance: A Hidden History:

“Art historians have no ready category in which to place performance, and with goodreason. For performance has always developed along the edges of disciplines such asliterature, poetry, film, theatre, music, architecture, or painting. It has involved video,dance, slides, and narrative and has been performed by single individuals or bygroups, in streets, bars, theatres, galleries, or museums. As a permissive open-mindedmedium, with endless variables, it has always been attractive to artists impatient withthe limitations of more established art forms.” (Goldberg, 1984: p. 24-25).

Também:

“...the open charter of performance – anything can happen, any number of materialscan be used, and any length of time can be appropriated for the work – has resulted inan extraordinary diverse spectrum of productions.” (idem, p. 34).

Figuras também importantes para a arte da performance foram Yves Klein, Allan Kaprow,

Joseph Beuys, John Cage, Maciunas, George Brecht, Dick Higgins, Nam June Paik, Yoko

Ono e o grupo japonês Gutai (fundado por Shimamoto e Yoshihara), entre outros. No Brasil,

Flávio de Carvalho, Lygia Clark e Hélio Oiticica levaram a performance a um nível de

reconhecimento artístico merecido. Esses artistas fizeram arte via seus happenings,

acontecimentos artísticos memoráveis e irrepetíveis em sua exata especificidade.

Utilizo aqui uma passagem do Dicionário do Conhecimento Estético de Assis Brasil que

define happening como uma forma artística irrepetível e que depende da categoria “tempo”:

“É a forma mais radical de experiência estética, culminando com a destruição depermanência e imortalidade da arte de todos os tempos. O artista ou vários artistas, aoexecutarem um happening, fazem uma demonstração do que seja o ato de criar... Oimportante para eles é o momento da criação, que não pode se repetir igual. É umaespécie de show irrepetível.” (Brasil, 1984: p.104).

Para esta tese podemos caracterizar as proposições de Lygia Clark nas décadas de 1960, 1970

e mesmo as de 1980 como verdadeiros happenings, irrepetíveis da mesma maneira e sempre

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Page 23: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

como ações executadas pelo(s) participante(s) da obra-proposição. Esses happenings, ou

performances, demonstraram o que era o ato de criar, desestabilizando os conceitos de

permanência, imortalidade da obra de arte e do papel do artista na sociedade (tirando o artista

do pedestal da genialidade).

Como as performances têm em sua natureza serem livres de convenções e de número de

participantes, elas ajudam a terminar com a idéia de arte como criação de um objeto físico

produzido por um artista. A criação de performances impõe uma relação tempo versus lugar

que não pode ser repetida. Também, é a ação se faz arte na performance. A performance é

livre de convenções e pode utilizar várias formas de meios artísticas para expressar-se. Uso

aqui mais uma passagem de Goldberg para confirmar o que estou dizendo:

“Performance artists have acted against the overriding belief that art is limited to theproduction of art objects, insisting instead that art is primarily a matter of ideas andactions. Each performance calls on the audience to experience the making of anartwork rather than contemplating static objects within an exhibition framework.”(Goldberg, 1984: p. 36).

Para além da flexibilidade do conceito de performance, dos materiais empregados, de seu

número de participantes e de seu caráter irrepetível (devido às categorias tempo e lugar), a

performance se firmou, dentro do campo da arte, como uma nova forma de fazer, ou melhor,

de agir artisticamente. A performance deixa clara a criatividade latente do espectador, dando-

lhe espaço de participação e de expressão. Essa liberdade de ação se dá em vários lugares,

mesmo nos espaços públicos, o que, também, ajuda a reativá-los enquanto lugar de ação

criativa.

Utilizo uma passagem de Regina Melim onde ela fala sobre a obra Divisor de Lygia Pape, e

que acredito ser importante para a continuação do pensamento sobre performance:

“...o objeto apresenta-se inconcluso, como uma potencialidade aguardando o gestoparticipativo que o atualizaria. O objeto tornava-se assim um sinalizador, uma areaplay, a exemplo da 'maquete sem escala' de Hélio Oiticica, última obra, pensada eativada em fevereiro de 1980 em seu segundo Acontecimento Poético Urbano.”(Melim, 2008: p.27).

Essa “potencialidade aguardando o gesto participativo” é exatamente a característica mais

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Page 24: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

marcante da arte participativa brasileira de Clark, Oiticica e Pape. Essa potencialidade destrói

a neutralidade do espectador no momento em que instiga à ação e acaba com a passividade

dos espectadores que “contemplavam o quadro na parede”.

Para terminar, gostaria de deixar uma anotação pessoal sobre a performance: a performance é

o segundo readymade. Se Duchamp desestabilizou todas as categorias de arte com a seus

readymades em um determinado momento da história da arte, a performance o faz, com a

mesma intensidade, mas em outro momento histórico. Por ser uma forma de arte tão elástica e

flexível, ela evita categorizações fixas, fazendo com que se pense arte de uma maneira mais

aberta e fora das convenções sociais, artísticas e culturais. O mesmo se passou com os

readymades de Duchamp, eles foram como um “choque” que acordou as pessoas envolvidas

em pensar sobre o campo da arte. A performance termina com a passividade contemplativa

do espectador e se mostra inesperada e inclassificável dentro da rigidez das categorias

artísticas vigentes, tendo a mesma função que o readymade teve, de choque para despertar as

pessoas. Aqui utilizo uma passagem de Ligia Canongia que ajuda a compreender o

mecanismo de desarticulação colocado pelo readymade de Duchamp:

“O readymade era talvez o grito agonizante contra os sistemas racionalistas, que jáhaviam sido alvo tanto das críticas surrealistas e dadaístas, como das deformações doExpressionismo alemão. Com o readymade dava-se o derradeiro golpe contra osmodelos convencionais modernos. De certas forma, ele é a própria agonia da idéia demodernidade, pois desmantela os princípios e técnicas que regularam os programasmodernos e nega o sistema de valores que edificou a própria noção de objetoartístico. O readymade impõe-se como uma arte de subversão, que se rebela contra oformalismo e as convenções burguesas, que Duchamp acreditava ainda vigorarem nosmovimentos da modernidade.” (Canongia, 2005: p.16).

2.3.2 Tropicalismo:

O Tropicalismo (ou Tropicália, ou Movimento Tropicalista) aconteceu no Brasil, no final da

década de 1960 e começo da de 1970. O movimento Tropicalista teve suas maneiras de

articular o “nacional”, utilizando as mais diferentes referências ao que poderia ser

considerado “brasileiro”. O grupo tropicalista tinha como seus maiores representantes no

campo da música, onde ficou mais vastamente conhecido, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom

Zé, Torquato Neto, os Mutantes e Gal Costa.

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Page 25: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

O movimento tropicalista se dá durante a ditadura militar. A ditadura militar foi instaurada

no Brasil em 1964 e oficialmente terminada em 1985, sendo que o período mais autoritário

aconteceu depois da criação do Ato Institucional número 5 (AI-5), de 13 de dezembro de

1968, que suspendia todos os direitos civis dos cidadãos. Da instalação Tropicália de Oiticica

vem o nome do movimento musical. Tal instalação faz referência a vários aspectos da cultura

brasileira, porém colocados em um sistema de caos de significação, utilizando-se de vários

estereótipos1 sobre a cultura brasileira. Os elementos dessa “desordem” devem ser

rearranjados pelo próprio espectador com suas próprias referências.

Os tropicalistas trabalharam em suas obras os dilemas brasileiros da época. Como qualquer

movimento de vanguarda, este baseou-se em várias referências nacionais e internacionais de

sua época. Em meio à “confusão” política e social brasileira, o Tropicalismo se desenvolve

como movimento. As suas várias referências dão o toque interrogativo do movimento: somos

isso, ou aquilo, ou tudo isso, ou nada disso? Nessa busca artística os tropicalistas focam-se na

ambigüidade de significados e na pluralidade de interpretações, buscando criar uma idéia de

desordem criadora, regeneradora. Essa abertura a todas as possibilidades de fazer arte pode

ser lida em uma passagem de Tandt e Young sobre a Tropicália:

“...the Tropicália movement of the late 1960s, Gilberto Gil and Caetano Veloso, whoargued that Brazilian popular music needed to be open to all influences, bothtraditional and pop, including rock music and various forms of electronicinstrumentation” (Tandt e Young, 2004: p. 253).

Não podemos esquecer da situação política internacional que, de alguma maneira, influencia

todo o mundo ocidental. A guerra do Vietnã e os protestos contra esta guerra, os movimentos

de liberação feminina na década de 1960, o movimento homossexual e o movimento negro,

todos oriundos dos Estados Unidos, foram pontos importantes para que o Ocidente repensasse

o “caos” pelo qual passava. A intima ligação entre a criação artística e a política no mundo

ocidental era algo marcante do final da década de 1960 e começos da década de 1970:

“...the radical questioning of the art work´s status in the 1960s artistic practices was

1 Imagem criada para generalizar, limitando o que se estereotipa de acordo com algumas característicasfechadas. O estereótipo pode ser usado de maneira positiva ou negativa, bem ou mal humorada oupreconceituosa. Assim, por exempo, a imagem de “Carmem Miranda” pode ser considerada um estereótipode mulher brasileira. O perigo do estereótipo é que ele trabalha com características generalizantes e quepodem não ser verdadeiras. (Definição minha).

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Page 26: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

indissociable from the social and the political concern of the time” (Dezeuze , 2006:p.38).

O tropicalismo foi marcadamente um movimento de questionamentos, que acontece durante a

ditadura militar e que sofre as diretas influências do AI-5. O movimento inova pelas roupas,

cabelos, músicas, influências, instrumentos musicais utilizados e pelas várias referências

culturais, sociais e políticas de que se utilizava para criar arte e contestação. José Miguel

Wisnik, estudioso da música brasileira nos diz que:

“...o tropicalismo capta a vertiginosa espiral descendente do impasse institucional que

levaria ao AI-5.” (Wisnik, 1979-80: p.16).

Ao mesmo tempo em que a censura vigora no país, a criação artística se mostra

profundamente rica. O período entre 1965 e 1968 ficou conhecido como a Era dos Festivais,

onde jovens compositores e cantores disputavam nos chamados Festivais da Canção. Esses

festivais entraram pelos anos 70. Vários músicos, ainda hoje importantes, participaram destes

festivais, tais como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Nara Leão, Elis Regina,

entre outros. Esses festivais também davam conta de criticar o governo militar com músicas

de protesto, algumas vezes bastante diretas contra os militares e outras vezes bastante sutis.

Os festivais da canção não serviram somente para trazer as músicas de protesto ao grande

público, mas passaram a ter um lugar de destaque na mídia brasileira. A seguinte passagem

mostra a importância dos festivais para a divulgação de novos artistas e o crescimento da

indústria de produção, divulgação e consumo musical:

“...os festivais, que haviam surgido predominantemente como reveladores das cançõesde protesto, viram-se subtraídos, do ponto de vista do encontro, e se transformaramem vitrines para novas contratações da indústria fonográfica” (Pelegrini e Oliveira,2003: p. 286).

No âmbito da literatura, o tropicalismo é uma grande fonte de inspiração para autores e obras

que surgirão. Utilizo uma passagem de José Maria de Souza Dantas que retrata claramente o

que foi o tropicalismo no campo literário:

“Na literatura brasileira, o tropicalismo tem papel de relevo. Faz parte damodernidade que procura questionar o seu tempo, a sociedade, os costumes e astradições. Também encontrou no cafonismo e no consumo fontes para a sua produção

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poética. Nesse sentido, veio de encontro ao contexto Sócio-Cultural e literário,exatamente porque se vale de elementos [estereótipos] que acionam este contexto.Através do grotesco, da zombaria, do humor, o tropicalismo tem uma açãodesmistificadora. Propondo temas do consumo, ironiza esse consumo; apontando parao arcaico, zomba dos arcaísmos, no afã de desmistificar esses valores. Da mesmaforma, por intermédio de suas construções parodísticas, questiona a cultura, rompendocom o passado e, assim, desenvolve-se no processo de crítica que a literatura modernaapresenta.” (Dantas, 1984: p. 47).

A passagem de Dantas é bastante completa em sua forma resumida de definir o movimento

tropicalista. O que os tropicalistas queriam era realmente cruzar referências, estereótipos, de

maneira jocosa para desarticular as ideologias conservadoras, justapondo dados culturais

nacionais e internacionais os mais variados na busca de uma “geléia geral” da cultura.

Utilizando o jogo das várias referências onde o ouvinte, ou leitor, ou espectador, tem que “se

referenciar” de alguma maneira em meio a tantos estereótipos, o mecanismo da antropofagia,

de devorar todos os valores culturais e dar-lhes novo sentido, se mostra bastante eficaz como

método cultural re-organizador para o Tropicalismo.

2.3.3 Poesia Marginal:

A Poesia Marginal foi um movimento literário ocorrido durante as décadas de 1970 e 1980

nas grandes capitais brasileiras, onde poetas faziam seus próprio livros em mimeógrafos e os

vendiam nas portas de bares, cinemas, teatros, restaurantes, e em vários outros lugares

públicos. Esses poetas tentavam não compactuar com o mercado editorial e se rebelavam

contra o sistema oficial de criação de cultura. Esta geração de poetas ficou conhecida como a

“geração mimeógrafo”. Bastante influenciados pela cultura da “geléia geral” criada pelo

movimento tropicalista, esses poetas marginais ao sistema se fizeram ver e reconhecer.

Alguns nomes desta desta geração que ficaram conhecidos são: Ulisses Tavares, Chacal, Ana

Cristina César, e Nicolas Behr, entre outros.

Esses poetas produziam à margem do sistema editorial, tentando burlar a censura (que estava

em seu auge de cortes) com seu sistema de produção “caseiro” e suas vendas diretas aos

leitores. É no ambiente da contracultura e de forte influência tropicalista que esse autores

trabalham e encontram seus espaços de criação. Por estarem à margem do sistema editorial

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Page 28: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

oficial, esses poetas ficaram conhecidos como os “poetas marginais”, criando uma poesia,

também, “marginal”. Essa poesia marginal busca a contestação pelo “desbunde”, pelo

palavrão, pela apologia do lado sórdido da vida. Daí ser chamada também de “lixeratura”1, a

literatura do lixo, da sujeira.

No entanto, haviam grupos organizados que tentavam publicar, via mimeógrafos, os trabalhos

de seus componentes, autores ou poetas. Um desses grupos era o Nuvem Cigana, criado em

1972 por Ronaldo Bastos e amigos, entre eles Chacal. Uso aqui uma passagem da dissertação

de doutorado de Fernanda Teixeira de Medeiros, da UFF, sobre o grupo “Nuvem Cigana para

mostrar como funcionava tudo:

“Fazer àquela altura era potencialmente problemático, 'Barreiras institucionais fortes',como referiu-se Messeder Pereira ao quadro do início dos anos 70, é um termoeufemístico para descrever 'barra pesada', 'sufoco', 'anos de chumbo', censura. Fazersem dinheiro – como se dizia, 'a Nuvem era Cigana e Sem Grana' – era tomar para siuma atribuição de cidadania que só começou a ser posta em prática à veraaproximadamente duas décadas depois. Fazer sem dinheiro a várias mãos era colocar oato criador em evidência, que nunca podia deixar de ser crítico, devido ao próprioambiente político em que se vivia.” (Medeiros, 2002: p.191).

O movimento da poesia marginal também se identifica com as criações de Lygia Clark e

Hélio Oiticica não somente em relação às suas referências culturais mas, também, pela

tentativa de trabalhar com materiais mais precários e de pouco valor comercial, tentando

fugir, de alguma maneira, da comercialização da arte. Neste período dá-se grande atenção à

literatura feminista, com sua linguagem mundana sobre o amor, o sexo e as relações da

mulher com o mundo.

2.3.4 Vivência (e e xperiência vivida) :

A maneira como se utiliza a palavra “vivência” nesta tese se refere à maneira utilizada por

Hélio Oiticica, maneira esta que influencia Lygia Clark de forma fundamental em suas

proposições. Oiticica estava preocupado com as experiências dadas pelas cores aos

espectadores-manipuladores-participantes de suas obras. Seus trabalhos e suas pesquisas se

fundamentaram na maneira de apreciação e entronização sensorial das cores pelos

1 Termo criado por Affonso Romano de Sant'Anna.

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Page 29: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

participantes. Aqui utilizo uma passagem de Mari Carmen Ramírez de seu ensaio Hélio's

double-edged challenge sobre a relação cor versus tempo e sua vivência:

“...the temporal dimension of the Spatial Reliefs1 – summarized by the artist as color-time – emerges from the viewer's intense recollection of the 'vivência', here meaning alived experience of color, generated by the persuasive availability of the work itself.According to Hélio, as opposed to mere static contemplation, this type of experiencegives birth to a certain time that is 'even closer to the pure vitality to which Mondrian2

aspired.” (Ramírez, 2007: p.50). Não podemos esquecer que essas “vivências” são as experiências sensíveis e marcantes que

nos fazem refletir sobre as obras. Elas podem acontecer, por exemplo, no momento em que

experienciamos os Relevos Espaciais. Essas “vivências” se tornam, de alguma maneira,

marcantes para o participante da obra. Em Lygia Clark a palavra “vivência” também se

relaciona com um aspecto sensorial marcante, o ato da experiência singular marcante quando,

por exemplo, cheiramos, ou escutamos, ou falamos. Essas vivências são construtivas dos

participantes através de suas experiências sensoriais memoráveis. O ato de participar das

proposições de Lygia criam vivências, experiências, através da ação ativa e completa do

participante. “O espaço vivencial é o espaço real penetrado pelo corpo” (Fabbrini, 1994:

p.102), sendo as vivências os acontecimentos da relação sensorial do corpo do participante

com outras pessoas ou coisas enquanto participante das proposições.

Na área sensorial das artes visuais ou na área literária podemos dizer que as experiências

vividas, ou vivências, tem papel importante em como realizamos ações, como interpretamos o

mundo que nos cerca e como nos relacionamos com os outros sujeitos que vivem conosco.

Neste sentido, Simon Blackburn, falando da separação mundo versus mente em relação `a

experiência, nos dá uma passagem que eu gostaria de registrar aqui para esclarecer que a

vivência depende da experiência, pois as vivências somente acontecem através da

experimentação no mundo em que vivemos:

1 “Relevos Espaciais” foram uma série de obras de Oiticica, onde a cor se mostrava no espaço. Estes trabalhosseriam, como eu os defino, “formações arquitetônicas de cor no espaço”.

2 Piet Mondrian (1872-1944), pintor holandês neoplasticista (o movimento neoplasticista também foi chamadode De Stijl) de grande influência para os movimentos concreto e neoconcreto brasileiros, principalmente paraHélio Oiticica. Os quadros pintados por Mondrian, com suas linhas horizontais e verticais em preto oubranco e o uso de cores primárias, influenciaram as pesquisas sobre cor de Oiticica. A autora escreve o nome “Mondrian” com somente 1 letra “a”, como se usa de forma corrente na línguainglesa. Notei que há uma diferença entre a forma Holandesa de escrever este nome (Mondriaan) e a formada língua inglesa (Mondrian).

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Page 30: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

“The aim of much recent philosophy, therefore, is to articulate a less problematicconception of experience, making it objectively accessible, so that the facts about howa subject experiences the world are in principle as knowable as the facts about howthe same subject digests food. A beginning on this task may be made by observingthat experiences have contents: its is the world itself that they represent to us as beingone way or another, and how we take the world to be is publicly manifested by ourwords and behaviour1. My own relationship with my experience itself involvesmemory, recognition, and description, all of which arise from skills that are equallyexercised in interpersonal transactions.” (Blackburn, 2006: p.125).

Da passagem acima podemos verificar que a experiência tem um conteúdo que nos marca e

que se manifesta em nossas ações, dando-se o processo de relacionamento do sujeito com

suas experiências via a memória, o reconhecimento e a descrição. E os que essas experiências

deixaram em nós de mais marcantes são nossas vivências. É no espaço real do mundo em que

vivemos, através dos nossos corpos enquanto objetos de conhecimento e reconhecimento

sensorial, que se dá o espaço vivencial.

2.4 Material Sócio-Político:

2.4.1 Ditadura militar:

Na América Latina, durante as décadas de 1960, 1970 e 1980, vários países passaram por

regimes governamentais chamados “ditaduras militares”, onde os militares controlavam

completamente a máquina do Estado tentando eliminar “influências negativas ao regime

militar” que pudessem exercer algum tipo de poder sobre a sociedade. No Brasil, a ditadura

militar foi instaurada em 1964 e oficialmente terminada em 1985; sendo que o período mais

autoritário aconteceu depois da criação do Ato Institucional número 5 (AI-5), de 13 de

dezembro de 1968, que suspendia todos os direitos civis dos cidadãos. A partir deste ato a

vida cultural brasileira mudaria de rumo com a forte influência da censura pública sobre todos

os campos culturais. Randal Johnson clarifica este ponto dando especial atenção à literatura:

“The military coup d'état of 1964 that initiated twenty-one years of dictatorial ruleobviously had a major impact on Brazilian literature and culture. Numerous works offiction have explored the impact and ramifications of authoritarianism as well as theresistance movement that rose up against it” (Johnson, 2004: p.131).

A ditadura militar no Brasil ocorre num período confuso dentro da história política brasileira.

1 “Behaviour” aquí entendido, também, como ações.

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Page 31: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

O presidente Jânio Quadros renuncia em 1961, deixando o cargo ao seu vice-presidente João

Goulart, que tinha novas idéias de reforma sociais e econômicas. De acordo com Da Costa e

Sergl:

“...o governo de Goulart é marcado pelo agravamento da crise econômica e pelaintensa vida política, bem como pelos conflitos sociais e políticos no país. Diantedisso, alegando combater a subversão e assegurar a ordem democrática, os militarestomam o poder na noite de 1 de abril de 1964.” (Da Costa e Sergl, 2007: p. 35-36)

Os efeitos do golpe militar na vida dos cidadãos não se fazem sentir bruscamente com a

entrada dos militares no poder em 1964. Somente com a instauração do Ato Institucional

número 5 (AI-5) de 13 de dezembro de 1968 é que um órgão de censura foi criado dentro do

governo, os direitos civis dos cidadãos foram suspensos e plenos poderes foram concedidos

ao presidente militar (tais como: de fechar o Legislativo por tempo ilimitado, cassar

mandatos, suspender direitos políticos, suspender a garantia do habeas corpos e efetuar

prisões sem mandado judicial). A partir deste momento, os militares mostram seu lado mais

autoritário. Durante este período tudo é proibido e os jovens estudantes politizados começam

a mostrar a grande insatisfação com o regime militar. A partir do AI-5 a classe artística

começa intensificar os “ataques” contra a ditadura. As obras de teatro, cinema, musica, artes

plásticas, entre outras, eram divididas entre as que protestavam contra o regime e as que

apóiavam ao regime.

2.5 Material Metodológico:

2.5.1 Sinestesia:

A sinestesia (sin=simultâneo + estesia=percepção) é uma figura de linguagem ou semântica

que tem como objetivo relacionar planos sensoriais diferentes. Como o próprio nome já diz,

ela se caracteriza pela percepção simultânea de sentidos diferentes. Assim como a metáfora

ou a comparação por similitude, são relacionadas categorias de ramos sensoriais distintos. Ela

aproxima sensações de diferentes órgãos dos sentidos, relacionando esses elementos. Esse

mecanismo utilizado pela sinestesia de união e relação de sentidos cria imagens poéticas de

grande valor.

Utilizo aqui uma passagem do livro Iniciación a los Estudios Literarios, de Duque e Cuesta,

31

Page 32: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

que mostra bem claramente como as imagens por sinestesia são formadas:

“Se elabora la imagen a base de relaciones o de vivencias psíquicas asociadas dealguna manera en la mente del poeta. Las imágenes son el recurso más rico que tieneel poeta para el embellecimiento de la creación poética. Al mismo tiempo el poetapuede hacer revivir y provocar diversas sensaciones en la mente del lector. Hayimágenes que provocan sensaciones de colores, olfativas, gustativas, ópticas, táctilesy sinestésicas. Las sinestésicas consisten en atribuir cualidades a cosas que no lastienen, pero con las cuales poseen cierta relación: Trino amarillo; se oye la luz.”(Duque e Cuesta, 1982: p.24).

Através da sinestesia compreendemos o mundo. É “olhando com as mãos” que compramos

algo, é “cheirando com o olhar” que miramos uma foto de uma rosa, é “comendo com os

olhos” que vemos uma imagem de um delicioso prato em uma revista. Assim, a percepção

sinestésica é uma regra para nosso entendimento do real que nos cerca. Não temos como viver

sem ela, e ela nos informa sobre nossa existência nesse mundo sempre sensorial. Nunca

paramos de sentir com os cinco sentidos, estamos sempre percebendo o mundo que nos rodea

e experienciando coisas novas com mais de um sentido.

A sinestesia, enquanto ferramenta de análise, nos ajudará a compreender as relações de

contato entre a obra de Clark e de Prado, por ser um meio de descoberta e interrogação do

campo sensório e existencial. É a sinestesia que faz com que percebamos o mundo real em

que vivemos. É através dos cinco sentidos, nosso modo de entrar em contato com o mundo

que nos cerca, que pode-se produzir arte. É a percepção sinestésica que faz com que sejamos

capazes de apreciar o mundo em que vivemos e reinvertá-lo através da arte. E Adélia utiliza-

se bastante, assim como Lygia, da sinestesia para compor suas obras; o que se verá mais

adiante nesta tese.

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Page 33: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

3- Hipótese:

Depois de definir os termos mais importantes para esta tese, devo mostrar minha hipótese:

minha hipótese para esta tese é que os trabalhos das duas artistas estão baseados em um

humanismo de cunho existencialista. É importante mencionar que o existencialismo teve um

renascimento na década de 1970, época em que produziam ativamente Adélia Prado e Lygia

Clark. Como a produção de ambas as artistas identifica-se tão completamente com as

vivências e experiências do homem no mundo, suas inquietações, suas angústias, suas

incertezas, suas dores de existir, e seus segredos do espírito, de maneira bastante

questionadora, acredito que estes fatores às aproximam da corrente filosófica que aflorou na

Europa no período entre-guerras e que teve forte impacto no período pós-segunda guerra

mundial.

Não podemos esquecer que vários fatores, entre eles a crise do petróleo da década de 1970, o

fracasso norte-americano na guerra do Vietnã, a expansão militar norte-americana ao

Camboja e as limitações às liberdades individuais implementadas pelas ditaduras militares na

América Latina, especialmente em nosso caso, no Brasil, foram acontecimentos históricos da

década de 1970 que, entre outros, trouxeram consigo uma carga de insatisfação e de reflexão

sobre o existir num mundo tão caótico, e que, de certa forma, retomavam as angústias do pós-

segunda guerra mundial. A “solução” encontrada pelos artistas da época foi utilizar-se do

existencialismo como suporte filosófico1 para seus trabalhos, principalmente na área da

performance art, como Gorsen nos informa:

“...towards de end of the 1970s, there seems to be nothing left of that hope. This canbe seen in the broken, agnostic expression of today's living art, which has been robbedof its political basis, and therefore in many ways looks like a new edition of theexistentialist and existentially philosophical reduction to experience of oneself, of away of thought going back to the 1930s.” (Gorsen, 1984: p. 136).

Outro autor que analisa a década de 1970 sob o mesmo ângulo angustiado é Sam Gathercole.

Utilizo uma passagem deste autor, proveniente do artigo “I'm sort of sliding around in

places...ummm...”: Art in the 1970s:

1 Teoria defendida por Peter Gorsen no artigo The Return of Existencialism in Performance Art. Verbibliografia.

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Page 34: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

“The 1970s lack the clear identity that decades on either side of it are thought toposses. The radical, progressive 1960s and the reactionary backlash of the 1980sframe a decade of disappearance, disintegration, and fragmentation.” (Gathercole,2006: p. 60).

Na década de 1970 Adélia vive sua vida de interior mineiro e retrata os pequenos atos de sua

fé, de suas relações sociais e familiares, e de seus usos e costumes através de sua poesia

singular que exalta cada pequeno acontecimento da vida cotidiana ao nível do místico, vendo

a vida como mistério insolúvel dentro do binômio erotismo-religiosidade. Não podemos

esquecer que Adélia Prado fez o curso de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Ciências e

Letras de Divinópolis, o que provavelmente a colocou em contato com a teoria existencialista.

Enquanto Adélia produz na província, Lygia, na cidade grande, vive uma vida artística

direcionada à humanização da arte (influenciada pela fenomenologia da percepção de

Merleau-Ponty e pelas conversas e cartas com outros artistas, principalmente Hélio Oiticica),

pela quebra das correntes do comercialismo dos objetos artísticos, tentando repensar a

importância e o papel do artista na sociedade e buscando no espectador-participante a chave

para uma arte sem objeto, uma arte pensada como filosofia de vida, uma arte sempre em

potência de acontecer.

Lygia Clark, com sua arte sem objeto, aproxima-se do espectador de maneira singular, e

Adélia Prado, com uma obra de transcendência da vida cotidiana do interior brasileiro, se

vêem, ambas, ligadas a um humanismo transformador e pouco convencional que dá

importância ao sensorial do mundo, às memórias do passado e ao ato de viver cada momento

com a maior intensidade possível, fazendo da vida um caminhar quase místico, na esperança

de um existir cheio de imagens memoráveis. Por isso, pela via do existencialismo como chave

interpretativa da obra de Lygia e Adélia, creio haver ligações possíveis e bastante

interessantes para analisar e unir os trabalhos dessas duas artistas.

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Page 35: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

4- Estado da Questão:

Para dar uma visão clara do que Adélia Prado e Lygia Clark representam na área cultural,

literária e artística brasileiras, devo mostrar como a crítica se refere às duas artistas e aos seus

trabalhos. Aqui pretendo mostrar os pontos de vistas dos críticos que são de maior interesse

para a análise das obras de Adélia Prado e Lygia Clark. Vou começar pela obra de Adélia

Prado. Ela, nascida em Divinópolis, MG, em 1935, foi professora por 24 anos e formou-se em

Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Divinópolis.

Adélia própria, em uma entrevista à Mariza Ferreira Bahia, de 16.10.1992, diz que a primeira

teórica a analisar sua poesia foi a professora Margarida Salomão, da UFJF-MG (Universidade

Federal de Juiz de Fora):

“A primeira apreciação crítica do texto que eu tive foi da Margarida Salomão enessa crítica, que faz parte até de Bagagem, ela fala que é moderna1, e dá asrazões, mas eu, sinceramente, não poderia discutir isso” (Bahia, 1994: p. 125).

Salomão escreve o prefácio de Bagagem, publicado em 1976, dizendo que “...a poesia brutal,

maravilhosa e surpreendente de Adélia Prado” (Prado, 1976: p. 8) havia nascido seguindo a

tradição literária dos grandes mestres brasileiros, como Drummond e Cabral, e que continuava

essa tradição sem desvirtuar do “bom caminho poético”2.

Salomão vê na poesia de Adélia a mulher como este ser desdobrável, reconhece seu diálogo

direto com Drummond e Guimarães Rosa, e define sua poesia como religiosa:

“...estamos diante de uma poesia religiosa, talvez a mais autêntica em línguaportuguesa. Não se trata de imposição de um modelo institucional externo (a fécatólica) sobre a feitura do texto: trata-se de uma magnífica tessitura recíproca dapoesia e da religião. O divórcio com as poéticas contemporâneas é evidente: aoinvés de carpir sobre a falta de solução, ou mesmo ao invés de propor algumasolução, tudo o que temos é dissolução mística” (Prado, 1976: p. 11).

Adélia não somente vem caminhando pelo mesmo caminho dos mestres-poetas brasileiros

1 “é moderna” significa aqui que é poesia moderna.2 O “bom caminho poético” é o de seguir os mestres sem copiá-los, mas de maneira original e autêntica. E isso

faz Adélia, segue os passos de seus mestres, porém compondo seus poemas de uma maneira singular, única.

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Page 36: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

como, também, continua seguindo os passos desses mestres como poderemos ver em suas

várias referências a esses autores em seus poemas. Adélia, em vários de seus poemas, nos

mostra que foi influenciada por vários autores. Como em parte do poema A INVENÇÃO DE

UM MODO1, onde ela descreve a influência da Bíblia e do livro de João Guimarães Rosa

chamado Grande Sertão: Veredas:

Porque tudo que invento já foi ditonos dois livros que eu li:as escrituras de Deus,as escrituras de João.Tudo é Bíblias. Tudo é Grande Sertão

Outro interessante analista da obra de Adélia Prado é Vilson de Oliveira, da UNISA-SP, que

escreveu um artigo intitulado Ecos na poesia de Adélia Prado2, onde analisa o seu diálogo

com o discurso bíblico e com a obra de Drummond. Ele cita a passagem onde Drummond

comenta a obra de Adélia:

“Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo: esta é a lei,não dos homens, mas de Deus. Adélia é fogo, fogo de Deus em Divinópolis”.

E este sentido existencial da poesia de Adélia pode ser claramente visto em sua produção.

Sentido este, reconhecido por Carlos Drummond e que desejo buscar tanto nas poesias de

Bagagem como nas performances de Lygia Clark, como já informei na hipótese.

Vilson comenta, também, sobre os autores que influenciam Adélia, o que antes chamei de

autores da “tradição literária” brasileira:

“O texto poético, mais do que o discurso ordinário, se faz atravessado por outros:é múltiplo, multifacetário, heterogêneo. Nele, diversos dizeres se cruzam,entrelaçam-se, mesclam-se. Os de Adélia Prado não são diferentes, nele váriasreferências literárias são facilmente perceptíveis – Drummond, João Cabral deMelo Neto, Nélida Piñon, Casimiro de Abreu, Jorge de Lima, Manuel Bandeira,Guimarães Rosa, Clarice Lispector, San Juan de la Cruz, Santa Teresa D'Ávila”.

1 Todos os nomes dos poemas de Adélia Prado estão colocados nesta tese em letra maiúscula seguindo ostítulos dos poemas na edição de Bagagem pesquisada, onde todos os títulos de poemas estão em letramaiúscula.

2 Palestra no IX Congresso Nacional de Lingüística e Filologia. Texto publicado nos Cadernos do CNLF,

Volume IX, no11. Ver bibliografia.

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Page 37: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

Esse diálogo estreito que mantêm Adélia com a obra de vários autores é um dos pontos da

poesia adeliana que retomarei quando faça a análise detalhada de alguns dos poemas de

Bagagem.

O colunista do Jornal do Brasil, Felipe Fortuna, falando sobre o fingimento da crise do

poema, cita a obra de Adélia como “...confessional, catártica, concentrada nas 'pequenas

coisas da vida” (JB, 05/12/2008), mostrando o valor da poesia adeliana em relação aos falsos

defensores da crise do poema e diferenciando a obra de Adélia da obra de outros poetas

contemporâneos, como, no exemplo dado pelo colunista, do poeta Marcos Siscar, que abusa

do recurso do corte na composição de seus poemas, deixando o leitor em estado de

estranhamento.

Creio interessante notar que as análises sobre a obra de Adélia sempre se voltam ao cotidiano,

ao papel da mulher na sociedade e à religiosidade, deixando de lado fatores muito

interessantes de serem analisados, tal como os valores estéticos das artes plásticas inseridos

em seus poemas, como, por exemplo, cores. Adélia se utiliza de muita matéria do campo das

artes visuais para compor seus poemas, algo que veremos, detalhadamente, mais tarde,

durante a análise de seus poemas.

Um outro ponto da obra de Adélia é o psicológico. Uma das pessoas que se interessaram pelo

valor psicanalítico da obra adeliana foi Cristiana Facchinetti, doutora em teoria psicanalítica

da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), que em seu artigo A poesia de Adélia

Prado e a Psicanálise: a encarnação do real escreve:

“A poesia de Adélia Prado está justamente compreendida naquilo que aponta parao impossível: o real. Tal modo associa-se ao corpo erógeno, à carnalidade dodesejo, que se apresenta como uma obra onde o campo da afetação e o daintensidade pulsional comparecem com sua força, onde pode irromper o novo emsua brutalidade carnal e surpreendente.” (Facchinetti, 2001).

Talvez a pesquisadora que mais cobriu os aspectos da poesia de Adélia Prado em suas

pesquisa tenha sido Vera Queiroz, que escreveu um livro intitulado O vazio e o pleno. A

poesia de Adélia Prado, publicado pela editora da UFG (Universidade Federal de Goiás).

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Page 38: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

Neste livro Vera Queiroz analisa vários aspectos da poesia adeliana, entre eles, o uso das

frases-clichês proferidas por pessoas do âmbito familiar de Adélia e colocadas de forma única

dentro dos poemas; o olhar desde a província; a tradição e a diferenciação da tradição

mineira1 em sua escrita e em sua vida; a questão da fala reportada; suas influências literárias;

e seus diálogos com outros escritores, entre outros importantes aspectos da poesia adeliana.

Queiroz vê na tagarelice das conversas das mulheres da província um dos aspectos relevantes

na transposição de elementos da língua falada para o campo do poético:

“A linguagem coloquial é um dos traços determinantes na constituição do lirismoadeliano, não apenas como tema, mas também como um dos fatores que oorganizam internamente” (Queiroz, 1994: p. 53).

A fala proferida por seus pais se torna poesia adeliana, frases memorizadas que se entregam a

seus poemas e que neles acham seu lugar material. Como, por exemplo, em parte do poema

FIGURATIVA:

A mãe falou pra mim: “Vai na sua avó buscar polvilho,vou fritar é uns biscoitos pra nós.”A voz dela era sem acidez. “Arreda, arreda,”o pai falava com amor

Este aspecto da fala familiar inserida no poema é outro ponto que exemplificarei mais

detalhadamente durante a análise dos poemas de Adélia Prado.

O crítico Ivan Junqueira vê na poesia de Adélia as várias possibilidades de análises que esta

poeta nos dá:

“Haveria muitíssimo ainda que dizer da poesia de Adélia Prado, de sua maestriaem inserir textos do mais banal prosaísmo dentro dos contextos poemáticos, dotalento com que manipula a autora o estilete do susto e do abrupto, da sublimeironia com que expõe a vida ao ridículo ou da pertinência agílima com que se valedos esquemas rímicos...” (IN Prado, 1986)2

A singularidade da obra poética de Adélia e a natureza existencial do ser humano em seus

1 Minas Gerais é um estado conhecido no Brasil pelos seus valores sociais tradicionais ligados à família e àreligião católica, um estado onde a Arte Barroca aflorou, apartir do século XVII, como forma artística porexelência. A força das histórias orais passadas de pai(mãe) para filho(a) são muito conhecidas em MinasGerais. Há uma forte tradição oral que ainda persiste nas áreas provinciais de Minas Gerias.

2 Contracapa do livro Terra de Santa Cruz, de Adélia Prado, de 1986. Ver bibliografia.

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poemas abrem o caminho de ligação para falar da obra de outra grande humanista, Lygia

Clark.

Lygia Clark (Belo Horizonte 1920 – Rio de Janeiro 1988), era mineira, assim como Adélia

Prado. Viveu em Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Paris. Começou a ter projeção dentro do

movimento concreto brasileiro na década de 1950, seguindo, com outros artistas de sua

geração, tais como Hélio Oiticica, Ferreira Gullar, Franz Weissmann e Amilcar de Castro, as

trilhas de experimentação do neoconcretismo carioca. Suas obras buscavam a ação do

espectador-participante, começando por seus trabalhos intitulados Bichos. Foi professora na

Sorbonne entre 1970 e 1975, onde desenvolveu vários exercícios de sensibilização artística.

Foi uma mestra por excelência, levando seus alunos a participarem ativamente de suas

experiências artísticas.

O crítico de arte Guy Brett, um admirador e pesquisador da artes latino-americanas nos

informa, analisando a arte de Clark que ela e os neoconcretos “...deixaram de enfatizar o

sentido visual para pôr em jogo o conjunto dos sentidos, mais precisamente o corpo inteiro,

concebido em termos de 'plenitude” (IN Ades, 1997: p. 264). Os objetos produzidos pelos

neoconcretos lembravam organismos naturais e exploravam as ações e reações sensoriais do

espectador, transformando o corpo do espectador-participante em um campo de

experimentação dos sentidos.

Lygia começa seus trabalhos na pintura, fazendo com que essas pinturas buscassem o espaço

e saíssem da moldura; a partir daí cria os Casulos (esculturas com um espaço interior que

ainda busca certa organicidade). Em 1960 cria a famosa série chamada Bichos, onde o

espectador tem que participar movimentando o objeto para que este aconteça. Depois dos

Bichos vêm as Obras Moles e os Trepantes, objetos de borracha que lembravam formas

orgânicas. Guy Brett nos informa, ainda, sobre a última fase da carreira de Lygia:

“A partir do extraordinário rumo tomado pela obra de Lygia Clark e de suasexperiências corporais que culminam com os trabalhos intitulados Terapia, cujasimplicações vão aos poucos tornando-se conhecidas e entendidas (e que nãopodem ser vivenciadas em uma sala convencional de exposição), ficamos sabendoque a coisa importante é o diálogo, o objeto como 'relacional'. A geometria inicial

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– como as sacolas de ar, as tiras elásticas, as pedras – é apenas um veículo pormeio do qual os 'espectadores' podem fazer desabrochar sua própria poética”(Brett, IN Ades, 1997: p. 264).

De acordo com Anna Dezeuze, uma importante pesquisadora das obras de Clark e Oiticica, os

trabalhos de Lygia Clark nas décadas de 1960 e 1970 se voltam completamente para o

espectador-participante. Dezeuze diz:

“...Clark's quest to create forms of dialogue between the spectator, and betweentwo or more spectators.”(Dezeuze, IN Jones ed., 2006: p.50).

E ainda:

“...Clark's 1966 Sensory Objects all consisted in everyday objects such as stones,shells, and plastic bags filled with air or water, which solicited the touch of theviewer.” (idem, p.50).

O corpo do espectador é o lugar de experimentação sensorial por excelência e de onde toda

energia transformadora e participativa provirá. Ela criará as obras Máscaras Sensoriais de

1966 a 1968, objetos para serem vestidos pelos participantes no intuito de viverem suas

próprias interioridades. Edward J. Sullivan fala um pouco sobre estes objetos de vestir:

“...she created articles of clothing that could be worn and used to temporarily alterthe personality of the wearer. In participatory works such as these, Clark reachedfar beyond conventional definitions of art” (Sullivan, 2002: p. 452).

Sullivan acredita, ainda, que o treinamento no ateliê de Burle Marx tenha influenciado Clark

de maneira bastante forte para trabalhar com formas orgânicas, conforme ele mesmo comenta:

“Clark's early training took place in Rio de Janeiro with the noted landscapearchitect and painter Roberto Burle Marx, whose intense involvement withnatural forms undoubtedly inspired her. She constantly struggled to integrate theenergy of life forces in her art, and a tension between rigid abstraction andorganic growth is evident in her work” (Sullivan, 2002: p. 452).

Apesar da natureza orgânica de algumas das primeiras criações neoconcretas de Lygia, como

Bichos, Obras Moles ou Trepantes, Lygia começa a incluir, na época, como Oiticica e Pape,

um certo humanismo em sua arte. Sua arte é feita pela participação do espectador, já não

sendo somente sua arte, mas a arte dos que a vivenciam. Ligia Canongia, escritora do livro O

legado dos anos 60 e 70, nos mostra como os neoconcretos, e principalmente Clark,

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humanizaram, dramatizaram e reverteram a arte à posição de uma geometria sensível:

“Ao recuperar a idéia de arte como algo que se dá na experiência, incluindo asnoções de tempo, processo e diálogo entre sujeito e objeto; ao resgatar asintenções expressivas no seio mesmo da criação, o artista neoconcreto recolocano objeto um dado essencial: o imponderável. Para ele, somente a expressão dosujeito, no ato vivido daquela experiência, podia tornar esse objeto um fatopoético” (Canongia, 2005: p. 39).

Nesse sentido, a arte e a vida passam a trilhar o mesmo caminho, num eixo de união que

confundirá as categorias artísticas com a vida do participante.

Essa função de artista como propositor1 foi, segundo Maria Alice Milliet (1994: p. 94), uma

função que Lygia Clark executou ativamente, levando os participantes de suas performances a

um envolvimento total com seus corpos e mentes. Sua arte se volta, sem restrições, para o

participante, reavaliando o papel do objeto de arte na sociedade de consumo, e o papel do

artista e suas funções na sociedade. Milliet nos informa:

“A partir de 1964, o envolvimento ativo do público torna-se para Lygia Clark ocerne de suas preocupações. Abandonando a construção de objetos torna-seimprodutiva, no sentido material da produção e como conseqüências ausente domercado. Contestando a racionalidade econômica, nega o valor positivo que osconcretos emprestam à sociedade tecnológica. A ação individual ou conjunta, noparque, na rua ou na escola, proposta a partir da manipulação de objetos em sisem importância é denominada por Pedrosa2 'exercício experimental daliberdade'.” (Milliet, 1992: p. 94).

O artista passa a ser o instigador dos atos do espectador-participante, já não mais o gênio

criador da obra para ser contemplada. Regina Melim, em seu livro Performance nas artes

visuais nos dá a visão da arte brasileira da época:

“...nos anos 1960 e 1970, quando a participação do espectador diante dareavaliação do objeto era imprescindível, estabelecendo ao artista a condição deum propositor de ações, que seriam levadas a termo pelo espectador-participador.Obras como as de Hélio Oiticica ou Lygia Clark, diante das quais o espectador erasempre solicitado a usá-las ou manipulá-las, pois a mera contemplação nãobastava para revelar o sentido” (Melim, 2008: p. 57).

1 Propositor das performances, não sendo o artista o performer, mas o público. O artista se torna o propositorda “atividade artística”. Dando importância à idéia da criação da proposição e à ação do público-participante.

2 Mário Pedrosa.

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E ainda, na visão de Maria Alice Milliet:

“A negação da obra e da autoria, a substituição do artista pelo 'propositor' eautodenominar-se 'não-artista' dão a medida da clara determinação com que Lygiavive o processo de desestruturação da tradição artística e o investimento emoutras áreas” (Milliet, 1994: p. 28)

As obras de Lygia Clark, como os Bichos, funcionavam como organismos vivos pedindo para

serem manipulados e tinham em sí uma potência transformadora. Esse “corpo-a-corpo” entre

a obra e o espectador tendia a humanizar a arte e a trazê-la para o mundo real, para o mundo

das pessoas, não se encorporando à estaticidade contemplativa dos museus e galerias de arte.

Ariel Jimenez, curador da exposição Paralelos, arte brasileira da segunda metade do século

XX em contexto (Coleccion Cisneros) falando das obras de Clark dentro da coleção Cisneros,

nos diz que:

“Lygia Clark definiu o tipo de relação que estabelecia todo aquele que sedeparasse com seus bichos como uma vital inter-relação entre a obra e oespectador. O gesto primeiro que modifica a obra, modificava ao mesmo tempo –pela resposta orgânica dos bichos – a conduta do espectador” (Jimenez, 2008:p.50).

Assim, não só o espectador manipula a obra, mas esta reage com uma resposta inesperada. Há

um sentido de ação e reação, de diálogo direto entre manipulador e objeto manipulado.

Outro autor a escrever sobre a obra de Lygia Clark foi Ricardo Nascimento Fabbrini que, em

seu livro O espaço de Lygia Clark nos dá uma visão sobre os vários aspectos da obra da

artista mineira. Fabbrini comenta sobre os textos escritos por Clark:

“A série teórica, marcadamente francesa, que atravessou sua trajetória alinha entrea fenomenologia e o pós-estruturalismo, o existencialismo1, a antropologiaestrutural e a revisão freudiana. São apreciações sempre parciais, movidas muitasvezes pela vertigem da analogia, com suas correspondências inesperadas, quetambém alcançaram a antipsiquiatria anglo-americana de R. D. Laing e D. G.Cooper, a psicanálise de Melaine Klein e a psicologia de D. W. Winnicott. Umolhar semiótico que interligou a estética, a ética e o conhecimento em sua revisãoda percepção corporal, da relação entre sujeito e objeto” (Fabbrini, 1994: p. 16-17).

1 Itálico meu.

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Além disto, Lygia Clark foi bastante influenciada pela correspondência que manteve com

Hélio Oiticica, Mário Pedrosa, Mário Schemberg e Ferreira Gullar, entre outros, deixando-se

“emprenhar pelos ouvidos”, como ela mesma dizia.

As experiências sensoriais propostas por Lygia, durante os anos em que está em Paris, se

tornam cada vez mais grupais. Esse “corpo-coletivo” em expressão mostrava que a liberdade

ou repressão do indivíduo passava pelo social. Em seu livro Lygia Clark: Obra-Trajeto,

Maria Alice Milliet acredita que Lygia Clark tenha atingido um “singular estado da arte sem

arte”, onde o artístico independe de um objeto para ser admirado, ou seja, uma arte sem

objeto:

“Clark age nos confins da arte quando aborda as estruturas espaço-temporais da obra1 e posteriormente quando adere à antiarte recusando a obra acabada e sujeita àcontemplação e propondo o corpo-expressão” (Milliet, 1992: p. 154).

A partir da obra Caminhando, Lygia Clark reinforça, segundo Ricardo Nascimento Fabbrini,

reinforça sua trajetória em direção à desmaterialização da obra de arte, em busca da “...ação

que nunca se perfaz, sempre provisória e efêmera” (1994: p. 92). A própria artista nos diz:

“Caminhando é o nome que dei à minha última preposição. Daqui em dianteatribuo uma 'importância absoluta' ao 'ato imanente realizado pelo participante'”(Clark, IN Fabbrini,1994: p. 92).

Lygia Clark, em sua trajetória artística, vista por Milliet e Fabbrini, após os experimentos

sensoriais individuais e de grupos, volta ao Brasil e começa a aperfeiçoar seu método

terapêutico, utilizando objetos relacionais em pessoas interessadas. Milliet nos informa que:

“A técnica terapêutica desenvolvida por Lygia Clark consiste, em síntese, emfazer viver, num contexto regressivo, o que ficou registrado na 'memória docorpo'2. Para isso, usa estímulos sensoriais, alheia à verbalização associada àpsicanálise. Trabalha vivências arcaicas gravadas em nível sensorial nas primeirasetapas da vida , fase primitiva, anterior à aquisição da linguagem. Registrosbiológicos de um tempo sem história porque precede à capacidade da mente detomar conhecimento. Material bruto que ressurge na fantasia inconsciente e na

1 Como no caso de Caminhando. Caminhando é uma proposição composta de uma fita de Moebius de papel euma tesoura. O ato consiste em cortá-la longitudinalmente percorrendo toda a extensão, até o esgotamentodas possíveis trajetórias” (Fabbrini, 1994: p.93).

2 Itálico meu para demostrar a importância que esta “memória do corpo” terá na análise da obra de LygiaClark.

43

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atuação fantasmática, a ser nomeado, metabolizado e finalmente integrado àestrutura psíquica do indivíduo” (Milliet, 1992: p.165).

Outro teórico a analisar a obra dos artistas neoconcretos foi Ronaldo Brito. Em seu livro

Neoconcretismo, vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro ele faz uma análise dos

fatores que levaram os neoconcretos cariocas a se desvencilharem da idéias dos concretos

paulistas. Ele analisa a obra de Lygia Clark no âmbito da vanguarda dos rompimentos com as

categorias artísticas vigentes:

“No âmbito da escultura, por exemplo. As preocupações de Clark com asupressão da base – suporte que isola a peça do espaço circundante,privilegiando-a e assim 'platonizando' suas relações com o espectador – sãoprovas de uma atenção crítica às formas vigentes” (Brito, 1985: p. 89).

E segundo Fabbrini, a experiência corporal única, intraduzível e irresgatável é outro ponto de

inovação explorado por Lygia Clark:

“A artista foi substituída pela propositora (“não-artista”), a obra cedeu aodispositivo sensório, o colecionador viu-se furtado de seu objeto-fetichecostumeiro, os marchands, previdentes empreendedores, não encontraram nasproposições a segurança garantida pela imutabilidade da arte. E mais: asproposições não ficaram limitadas ao circuito de galerias e museus: tambémforam vividas na sala de aula, no atelier, na rua e no consultório; de algumasrestam documentos (a fotografia e o filme) que apenas registram a vivênciaconstrutiva do participante – simples materiais informativos e indicativos oumeros vestígios visuais de uma experiência irresgatável (Fabbrini, 1994: p. 103-104).

Estas passagens mostram a preocupação de Lygia com o anti-convencional em arte, com uma

arte sem objeto de arte para consumo e com a criação de poéticas artísticas dependentes do

espectador-participante.

Assim, após ter dado uma visão das várias vertentes de análise que os críticos observam

sobre as obras de Adélia Prado e Lygia Clark, pretendo explorar as obras de cada uma

separadamente para, depois, analisá-las em suas relações e diálogos.

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5- Análise do livro Bagagem e alguns de seus poemas:

O livro Bagagem foi o primeiro livro escrito por Adélia Prado. Publicado em 1976, o livro

teve o apoio intelectual de vários escritores, entre eles Antonio Houaiss, Carlos Drummond de

Andrade, Clarice Lispector, Affonso Romano de Sant'Anna, Nélida Piñon e Alphonsus de

Guimaraens Filho, como relata Vilson de Oliveira da UNISA-SP, em seu artigo Ecos na

poesia de Adélia Prado, para o CIFEFIL (Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e

Lingüísticos)1.

A cena poética brasileira na década de 1970 era caracterizada pelo que se denominou “poesia

marginal”, poetas ligados à contra-cultura que produziam livrinhos artesanais que eram

vendidos por eles nas portas de cinemas, de teatros, de bares, de boites, em praças, e em

vários outros lugares. Utilizo uma passagem de Célia Pedrosa que mostra as vertentes nesse

dado momento na literatura brasileira:

“...no momento em que esse panorama parece dominado, de um lado, pela dicçãovanguardista concreta em que se aliam a morte do verso e a do lirismo, pelaentronização de um João Cabral tornado símbolo exclusivo de rigor intelectualista emetalingüistico; de outro, pela retomada simplificadora da dicção modernistacoloquializante, proposta por poetas em cuja concepção de marginalidade o apego àvida exigia o desapego à biblioteca, o interesse pelo afetivo-existencial pareciacondicionado pela afirmação alegremente ligada ao ego.” (Pedrosa, 2002: p. 94).

Do outro lado da vertente marginal aparece Adélia Prado com seu livro Bagagem. Adélia

enviou alguns poemas a Affonso Romano de Sant'Anna, e este os enviou a Drummond.

Ambos ficaram sinceramente convencidos do valor poético singular da produção de Prado, o

que facilitou a publicação de Bagagem. Os elogios vieram antes da fama de poeta, como nos

diz Vera Queiroz:

“Antes mesmo de ter seu primeiro livro publicado, o próprio Drummond já lhe fizerauma crônica elogiosa2 e Affonso Romano de Sant'Anna afirma, no prefácio a Ocoração disparado, seu entusiasmo pelos inéditos de Adélia, que lera por volta de1972.” (Queiroz, 1994: p.11).

O livro Bagagem foi divido em 5 partes pela poeta: Prefácio, escrito por Margarida Salomão;

1 Ver bibliografia.2 Em 9 de outubro de 1975.

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O MODO POÉTICO, composta de 67 poemas; UM JEITO E AMOR, composta de 19

poemas; A SARÇA ARDENTE – I; composta de 14 poemas; A SARÇA ARDENTE – II,

composta de 13 poemas; e ALFÂNDEGA, composta de 1 poema. Os nomes destas partes são

bastante sugestivos, assim como o nome do livro: Bagagem, aquilo que levamos conosco em

nossas viagens. Para um campo vivencial, a palavra “bagagem” poderia ser traduzida como a

carga, o fardo, as memórias, as marcas, as cicatrizes, que trazemos em nós mesmos, e que

levamos conosco por toda a vida.

A meu ver, a parte chamada O MODO POÉTICO, a parte com o maior número de poemas,

define o modo de Adélia Prado pensar e fazer poesia, suas influências e suas motivações. Esta

parte traz poemas dedicados a Fernando Pessoa, Guimarães Rosa e Carlos Drummond de

Andrade; a parte chamada UM JEITO E AMOR traz poemas de aspecto romântico e ligados à

situações da vida das mulheres em geral, onde se encontra um poema dedicado a seu marido

(PARA O ZÉ); a parte intitulada A SARÇA ARDENTE – I e II são de caráter mais delicado

no que se refere às sensibilidades das mulheres, também de caráter mais religioso e com mais

relação às memórias da poeta; e a última parte, ALFÂNDEGA traz somente um poema, que

vejo como a passagem definitiva do mundo dos não-poetas para o mundo dos poetas, é onde

“mostra suas credenciais”, onde viaja para ver o Rio de Janeiro e passa a ser poeta.

A melhor maneira de conhecer a obra de Adélia Prado é analisar alguns de seus poemas no

livro Bagagem. Pretendo utilizar o método usado por Antonio Candido em seu livro Na Sala

de Aula, Caderno de análise literária, onde Candido diz:

“...as maneiras possíveis de trabalhar o texto, partindo da noção de que cada um1

requer tratamento adequado à sua natureza, embora com base em pressupostosteóricos comuns. Um desses pressupostos é que os significados são complexos eoscilantes. Outro, que o texto é uma espécie de fórmula, onde o autor combinaconsciente e inconscientemente elementos de vário tipo.” (Candido, 2008: p. 5)

E ainda:

“A multiplicação de leituras suscita intuições, que são o combustível neste ofício”...sendo que “...cada abordagem de um texto poético pode alterar a maneira deentendê-lo” (idem, p.6).

1 “cada um” por ser entendido como “cada poema”.

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Assim, pretendo analisar os poemas utilizando-me dos parâmetros tradicionais (análise da

linguagem, das formas, da rima, da métrica e da versificação), de que também se utiliza

Antonio Candido em seu livro, mas tendo sempre em mente os pressupostos de que “os

significados são oscilantes” e de que “o texto é uma espécie de fórmula” a ser desvendada e

enriquecida com várias interpretações.

O primeiro poema a analisar é também o primeiro poema do livro Bagagem. Numero os

versos para facilitar a análise dos poemas. Este poema chama-se:

COM LICENÇA POÉTICA

1 Quando nasci um anjo esbelto, 2 desses que tocam trombeta, anunciou:3 vai carregar bandeira.4 Cargo muito pesado para mulher,5 esta espécie ainda envergonhada.6 Aceito os subterfúgios que me cabem,7 sem precisar mentir.8 Não sou tão feia que não possa casar,9 acho o Rio de Janeiro uma beleza e10 ora sim, ora não, creio em parto sem dor.11 Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina.12 Inauguro linhagens, fundo reinos13 (dor não é amargura).14 Minha tristeza não tem pedrigree,15 já a minha vontade de alegria,16 sua raiz vai ao meu mil avô.17 Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem.18 Mulher é desdobrável. Eu sou.

Este primeiro poema, como o próprio nome já menciona, é um pedido de licença para

começar a ser poeta, para começar seu primeiro livro. Aí, a poeta conta sua própria história

enquanto pessoa, poeta e mulher. Os versos 1 e 2 anunciam seu nascimento por um anjo1,

como no nascimento de Jesus, de alguém especial, uma imagem extremamente católica; o

carregar bandeira do verso 3 pode estar ligado às pessoas das procissões religiosas que levam

1 O Dictionary of Symbols de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (1969, edição de 1996) diz sobre os anjos:“Akkadian, Ugaritic, Biblical and other texts mention under different guises who act as intermediariesbetween God and the world. They are either purely spiritual beings, or spirits endowed with ethereal or airybodies. However, they can only assume a human appearance. They act as God's ministers, his messengers,guardians, steering the course of the stars, giving effect to his laws, protecting his elect and so on, and areranked in hierarchies of seven orders, nine choirs or three triads.” (1996: p.22). Ver bibliografia.

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as bandeiras dos santos das irmandades católicas, e como as bandeiras são pesadas,

geralmente são levadas por homens; ou pode estar ligado ao árduo labor de ser poeta e

carregar a carga de (Manuel) Bandeira. Os versos 4 e 5 introduzem o ser mulher no mundo da

poesia, a mulher é frágil (não tem força para carregar bandeira) e envergonhada (volta à Eva e

à criação do mundo narrada na Bíblia). Nos versos 6 e 7 a poeta aceita sua posição no mundo

sem mentir; e nos versos 8, 9 e 10 coloca pensamentos que poderiam ser classificados como

“estereótipos femininos da província”, onde o adjetivos feia e o substantivo beleza nos

demonstram a preocupação com o estético. No verso 10 se nota, pela primeira vez, a palavra

dor, que aparecerá várias vezes no livro. Aqui a dor aparece enquanto possibilidade (ora sim,

ora não). O parto é o que caracteriza o ser feminino, a possibilidade do dar-à-luz uma

criança, de colocar outro ser humano no mundo, de diferenciar-se do ser masculino. “Parto

sem dor” também pode ser visto como uma “creença”, um estereótipo interiorano. Nos versos

11 e 12 a poeta reconhece que ser poeta é sua verdadeira sina, e o faz com todo seu

sentimento e honestidade. E ser um poeta do sexo feminino é ser de uma linhagem especial,

capaz de fundar reinos de imagens distintas das dos masculinos. A palavra dor aqui, se separa

de amargura e se coloca no ramo da tristeza, da melancolia, da saudade. A frase “dor não é

amargura” colocada entre parênteses, está como que destacada dentro do poema, como uma

observação, já que sua dor não se tornou amargura, mas é uma dor transformadora, criadora,

produtiva. Toda essa tristeza, no verso 14, remonta à “saudade” sem um antepassado

importante, sem pedigree. Enquanto a alegria do verso 15 remonta ao seu mil avô, esta se

reconhece em família, em linhagem, em hereditariedade. Nos versos 17 e 18 ela diferencia o

ser homem-poeta e o ser mulher-poeta. O homem-poeta aqui é Carlos Drummond de

Andrade, o ser coxo, o ser gauche1, enquanto a mulher-poeta é a própria Adélia, desdobrável,

capaz de fazer várias coisas ao mesmo tempo. Esse diálogo direto com Drummond se verá

muito no livro Bagagem, é como se Drummond fosse a referência primeira de Adélia na área

1 Affonso Romano de Sant'Anna em entrevista informa sobre o ser gauche drummondiano: “A partir dosestudos que fiz sobre sua obra, percebi que a chave mestra para entender suas poesias estava na primeiraestrofe do primeiro poema de seu primeiro livro, que diz resumidamente: "Quando eu nasci um anjo torto,daqueles que vivem meio à sombra, me disse: vai Carlos, vai ser gauche na vida". Nesta estrofe, podemosresumir de certa forma toda a obra do poeta, que descreve ao longo de sua trajetória, a maneira como oindivíduo gauche (à margem, errado, à esquerda) se posiciona diante do mundo. E como se não bastasse elese considerar 'gauche', Drummond ainda diz que foi um anjo torto que o concebeu, ou seja, o avesso do anjoiluminado.” Passagem retirada da entrevista à Fernanda Nidecker ao Jornal do Brasil, em Maio de 2001,entitulada Affonso Romano Sant’Anna "desparafusa" Drummond. Itálico meu.

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da poesia. Drummond é conhecido nas letras brasileiras como sendo “o Poeta”1, portanto,

neste poema, Adélia não somente pede licença ao POETA para começar sua vida na poesia,

mas dialoga com ele enquanto ser feminino no mundo.

Em seu poema COM LICENÇA POÉTICA, como informa Vera Queiroz (1994: p.28-29),

Adélia dialoga com Drummond. Ela parodia o “Poema das sete faces” drummondiano do

livro De Alguma Poesia (de 1930):

Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens que correm atrás de mulheres. A tarde talvez fosse azul, não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas: pernas brancas pretas amarelas. Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. Porém meus olhos não perguntam nada.

O homem atrás do bigode é sério, simples e forte. Quase não conversa. Tem poucos, raros amigos o homem atrás dos óculos e do bigode,

Meu Deus, por que me abandonaste se sabias que eu não era Deus se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo, se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, não seria uma solução. Mundo mundo vasto mundo,

1 Darly Nicolanna Scornaienchi, no livro Projeto Euro-Brasileiro (ver bibliografia), quando se refere a CarlosDrummond de Andrade, o faz com letra “P” maiúscula: “o Poeta”. Este é o único poeta a ter este tratamentoem seu livro. “Carlos Drummond de Andrade, mineiro, de Itabira, estreou nas letras com o livro AlgumaPoesia, em 1930. Há neste livro, bem como no Brejo das Almas, de 1934, um tom jocoso, um sorriso quaseimperceptível do Poeta ao observar a fragilidade dos bens materiais, da vida. Em Sentimento do Mundo, Josée A Rosa do Povo, fala com frequencia do aniquilamento do Homem pelo medo, pela solidão, pelo tempo,pela impossibilidade de lutar, de readir.”(pag. 242-3). Ainda: “Além das obras citadas, o Poeta compôsPoesia até agora, Novos Poemas, Viola de Bolso, Lição de Coisas, Boitempo.” (p.242-243).

Também Vera Queiroz menciona que Carlos D. de Andrade é conhecido como “O POETA” (1994: p.28), emletras maiúsculas.

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mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer mas essa lua mas esse conhaque botam a gente comovido como o diabo.

É interessante notar que essa imagem do anjo que anuncia um nascimento é uma imagem

muito utilizada pelos pintores góticos e do renascimento. Acredito que essa imagem passou a

ser usada com mais força na poesia brasileira depois que foi utilizada por Drummond e ficou

popularizada em seu “Poema das sete faces”. Isto podemos observar em um poema de

Torquato Neto (musicado por Jards Macalé) “Let´s play that”, que começa assim:

Quando eu nascium anjo louco muito loucoveio ler a minha mãonão era um anjo barrocoera um anjo muito louco, tortocom asas de avião

Ou no início do poema de Chico Buarque de Hollanda intitulado “Até o fim”:

Quando nasci veio um anjo safadoO chato dum querubimE decretou que eu tava predestinadoA ser errado assimJá de saída a minha estrada entortouMas vou até o fim

Para além da imagem do anjo anunciador, a forte oposição entre ser homem e ser mulher

domina o poema. A poeta se coloca no mundo, se apresenta, pede licença como um ser do

sexo feminino informando seu espaço nas letras brasileiras e no mundo em que vive. Este

poema é uma ode ao ser mulher e ser capaz de fazer tudo que os homens fazem, porém de

maneira diversa.

A figura do gauche de Drummond se relaciona à mulher desdobrável (mãe, esposa,

professora, poeta) de Adélia. Adélia como que explica a diferença entre o ser feminino e

masculino, explicitando estas diferenças. Essa relação entre o feminino e o masculino está

bastante clara em uma passagem de Vera Queiroz:

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Page 51: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

“Ao mundo masculino do gauche, conotado semanticamente em negatividade ('anjotorto'; 'vivem nas sombras'), opor-se-á um mundo feminino marcado por imagens depositividade: o anjo que anuncia seu nascimento é 'esbelto' e 'toca trombeta'. Secarregar bandeira é cargo pesado para mulher, ser coxo é igualmente pesado e porisso recusado como maldição tipicamente masculina” (Queiroz, 1994: p. 29).

Acredito que a linguagem de Adélia é de plurissignificância, como podemos ver na utilização

da palavra bandeira no verso 3: pode relacionar-se a Manuel Bandeira ou a carregar a

bandeira da procissão da irmandade. Seu diálogo com Drummond é claro e direto, ela parodia

o “Poema das sete faces” para pedir sua licença e mostrar suas credenciais para tornar-se

poeta. Sua linguagem é simples, natural, e a rima é inexistente. Sua métrica é livre e baseada

na musicalidade de suas paradas dadas pelas vírgulas e pontos. Não há pontos de exclamação,

interrogação ou reticências no poema, dando uma sensação de certeza e convicção sobre o

que diz.

O poema, em minha análise, se divide em três partes: do verso 1 ao 5, o anúncio do

nascimento de alguém especial, uma mulher especial; do verso 6 ao 16, demonstra a condição

do ser feminino; e do verso 17 ao verso 18 a diferenciação entre o ser mulher-poeta e o ser

homem-poeta. Essa divisão se pode ver em termos de tempos verbais: nos versos 1 e 2 os

verbos estão no passado, somente o anúncio do anjo remete ao futuro, e a condição de ser

mulher e ter que carregar bandeira dos versos 3 ao 5 confirmam o nascimento da menina, esta

espécie ainda envergonhada; do verso 4 ao 16 os verbos estão no presente, demonstrando

com firmeza o que as pessoas na província pensam sobre as mulheres, e com que força os

estereótipos sobre as mulheres se fazem, ainda hoje, presentes no interior brasileiro; e os

versos 17 e 18 fecham o poema marcando a diferenciação no presente, apesar da frase Vai ser

coxo na vida remeter a um futuro como coxo ou à fala de alguém (ex: Esse menino vai ser

coxo na vida!).

A contradição entre o homem e mulher dentro do poema tem um caráter jocoso, de uma ironia

amigável, porém muito informativa. A lógica do poema é a anunciação do nascimento de uma

poeta, reconhecimento do pesado fardo que terá que carregar a menina-poeta, a poeta

enquanto mulher, e a relação do poeta-homem (Drummond) versus a poeta-mulher (Adélia).

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Há palavras dentro do poema que parecem “opôr-se”, como por exemplo: tristeza versus

alegria, não tem pedigree versus ao meu mil avô, mulher feia versus a beleza do Rio de

Janeiro. A meu ver, esse sentido de oposição de algumas palavras somente reforça as relações

do masculino e feminino e as imagens dentro do poema. Como nos versos abaixo onde a

alegria é tão profunda (como uma raiz de uma árvore antiga) e tão envelhecida de sabedoria

como o seu mil avô: “Minha tristeza não tem pedrigree, / já a minha vontade de alegria, / sua

raiz vai ao meu mil avô.”

Assim, o assunto deste poema é não somente sua introdução ao mundo poético e aos poetas

da tradição literária brasileira, mas, também, uma afirmação de que mulher pode ser poeta e

fazer várias outras coisas. Aqui Adélia deixa claro que, mesmo compartindo da tradição

poética nacional e reconhecendo seu valor, ela chegou para marcar seu lugar de poeta-mulher

nas letras nacionais. Seu diálogo com a tradição não se resume ao fazer referências, mas ao

expandir este diálogo e mostrar-se nele de uma maneira muito singular, muito própria.

No livro Bagagem não é somente o poema COM LICENÇA POÉTICA que dialoga com e

recebe influências de Drummond, há também o poema TODOS FAZEM UM POEMA A

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE; para Fernando Pessoa, o poema REZA PARA AS

QUATRO ALMAS DE FERNANDO PESSOA; para Guimarães Rosa, o poema POEMA

COM OBSERVÂNCIA NO TOTALMENTE PERPLEXAS DE GUIMARÃES ROSA; e

para Castro Alves o poema BILHETE EM PAPEL ROSA. Esses são poemas com referências

já nos títulos, mas muito se encontra sobre esses autores e outros (como Manuel Bandeira ou

João Cabral de Melo Neto) no corpo dos poemas.

O próximo poema que desejo analisar é o poema intitulado ROXO, tentando complementar a

análise de Vera Queiroz sobre o uso das cores na poesia de Adélia Prado. A utilização das

cores das maneiras mais variadas nos poemas de Adélia foi descrito por Vera Queiroz como

que criando imagens que dão a sensação da utilização de vários sentidos ao mesmo tempo -

“...a cor e os sons se misturam na tentativa de criar uma imagem por similitude com o

movimento” (1994: p. 72) - quando da análise do poema ANÍMICO.

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Aqui, tento complementar a análise das cores utilizando o poema com o título ROXO:

1 Roxo aperta.2 Roxo é travoso e estreito.3 Roxo é a cordis, vexatório,4 uma doidura pra amanhecer.5 A paixão de Jesus é roxa e branca,6 pertinho da alegria.7 Roxo travoso, vai madurecer.8 Roxo é bonito e eu gosto.9 Gosta dele o amarelo.10 O céu roxeia de manhã e de tarde,11 uma rosa vermelha envelhecendo.12 Cavalgo caçando o roxo,13 lembrança triste, bonina.14 Campeio amor pra roxeamar paixonada,15 o roxo por gosto e sina.

O roxo, ou a cor violeta, é o tema desse poema. A utilização de cores pode ser vista em vários

poemas de Adélia Prado. As cores são categorias basicamente usadas no campo das artes

visuais, porém Adélia as emprega como adjetivos, substantivos, verbos, e para compor novas

palavras como podemos ver na análise do poema ROXO. O roxo a que se refere Adélia no

poema se aplica a várias formas e pode ser interpretado de várias maneiras, sendo a mais

nítida no poema, a cor de luto na religião católica.

O verso 1 diz claramente que o Roxo aperta, aperta o peito de dor. O verso 2 mostra a

qualidade de fechar, travar, estreitar. No verso 3 o roxo é a cordis, o próprio coração, e é

vexatório, que nos causa vergonha. No verso 4 parece definir que roxo é a cor do amanhecer e

como uma cor que nos deixa loucos. No verso 5, A paixão de Jesus é roxa e branca, a cor

roxa se une à branca para referir-se ao tempo litúrgico da morte de Jesus, ou à paixão por

Jesus. E essa morte de Jesus é o mais sublime da vida católica, a alegria eterna de morrer por

seu irmão, no verso 6. No verso 7 o roxo é visto como trava, tranca, difícil, e que vai

amadurecer, vai melhorar (talvez com o tempo). No verso 8 a poeta deixa claro seu gosto pela

cor: Roxo é bonito e eu gosto. No verso 9 ela relaciona o roxo com o amarelo, personificando

as cores como se fossem amigos. No verso 10 a poeta volta a dar a imagem do começo e do

fim do dia em relação à cor roxa, tornando a cor um verbo, e compara, no verso 11, esse

“roxear” a uma rosa vermelha morrendo. No verso 12, Cavalgo caçando o roxo, a imagem do

cavalgar e caçar, uma imagem rural, pastoril, na busca da cor. De acordo com Antonio

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Candido, “...o cavalo é o símbolo de força viril na literatura popular e erudita” (2008: p. 51).

O verso 13, lembrança triste, bonina, se liga ao verso 12 pela memória triste, branca, pois

bonina pode significar uma espécie de planta também conhecida por margarida. O verso 14,

Campeio amor pra roxeamar paixonada, é uma composição complicada do verbo campear,

que têm vários significados dependendo da região do Brasil, porém, o mais apropriado neste

verso seria o de reproduzir, proliferar, espalhar-se pelos cantos; o verbo roxeamar é a

conjunção de roxo e amar. Transcrevendo este verso poderemos ter: Espalho amor para

roxeamar apaixonada, num sentido de que a poeta distribui amor e ama de uma forma

apaixonada, roxa. Desejando assim o amor e amando roxamente, ela quer o roxo por gosto e

sina.

Pode-se notar, analisando a maneira como a poeta utiliza o adjetivo “roxo”, o processo de

substantivação dos adjetivos. Por exemplo: Roxo aperta. / Roxo é travoso e estreito. / Roxo é

a cordis, vexatório. Aqui a palavra “roxo” toma lugar de substantivo abstrato, o que se pode

notar claramente se substituímos a palavra “roxo” por “amor”. Sintaticamente, a palavra

“roxo” toma o lugar de sujeito da oração.

Creio que este poema trata da relação do roxo enquanto cor com suas variantes conceituais de

amor místico a Jesus e da alegria da morte e ressurreição deste. Relembro aqui, mais uma vez,

a estátua de Bernini, Êxtase de Santa Teresa, que se vê arrebatada de amor pelo seu Deus, um

arrebatamento de gozo místico. Também posso ver nesse poema, o uso de um linguajar

imitativo dos habitantes pouco escolarizados da província, com a utilização da palavra

doidura, e da forma das palavras sem a letra “a” inicial, como madurecer ou paixonada

mostrando uma certa proximidade com as pessoas pouco escolarizadas do interior e com a

religiosidade simples dessas pessoas. A poeta se utiliza de uma “simplicidade ao escrever”

artificialmente construída para o bem da composição do poema. Essa simplicidade é um

procedimento estilístico. Ela o utiliza tentando buscar o que há de especial no prosaico, no

dia-a-dia, nas atividades diária de cada pessoa, no cotidiano de cada um, mesmo dos mais

simples habilitantes da província.

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Detalhe de Santa Teresa de Bernini.

Vejo neste poema uma relação de amor com Jesus e para com a paixão de Jesus. O roxo

lembra o amor e a vergonha da “virgem moça” de amanhecer ao lado do esposo amado, que

recebe sua rosa vermelha a cada manhã e tarde. O cavalgar atrás de seu amado para encontrá-

lo e morrer de amores por ele é sua sina e seu gozo. Este poema de Adélia está muito próximo

dos escritos de Santa Teresa de Ávila, como podemos ler em Castelo Interior (ou Moradas)

as instruções da santa às suas irmãs:

“É coisa muito engraçada que ainda estejamos com mil embaraços e imperfeições e asvirtudes que ainda não sabem andar, pois só há pouco começaram a nascer, e mesmopraza a Deus que estejam começadas; e não temos vergonha de querer gostos naoração e de nos queixarmos de aridez? Nunca isto vos aconteça, irmãs; abraçai-voscom a cruz que vosso Esposo tomou sobre Si e entendei que esta deve ser a vossaempresa. A que mais puder padecer, que padeça mais por Ele e será a que melhor seliberta. O resto, como coisa acessória, se vo-lo der o Senhor, dai-Lhe muitas graças.”(De Ávila, “Segundas Moradas”, versículo 7)1

Uma análise mais detalhada dos significados das cores mencionadas no poema talvez traga

mais clareza para esta interpretação. Estão presentes no poema 4 cores: roxo, branco, amarelo

e vermelho. A palavra “roxo” está mencionada 7 vezes dentro do poema de forma masculina

e 1 vez de forma feminina. O verbos “roxear” e “roxeamar” têm estreita relação com a cor

roxa. O dicionário de símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant define essas cores da

seguinte maneira:

1 Itálico meu.

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Roxo: “Composed of equal proportions of RED and BLUE, violet is the colour oftemperance, clarity of mind, deliberate action, of balance between Heaven and Earth,senses and spirit, passion and reason, love and wisdom.” e “...violet is the colour ofsecrecy since the invisible mystery of reincarnation [de Jesus Cristo] or at least oftransformation takes place. This is why in medieval symbolic art Christ is depicted ina violet robe during his Passion.” (Chevalier e Gheerbrant, 1996: p. 1068-1069)

Branco: Like its opposite colour, BLACK, white can stand at either end of thespectrum. Absolute in itself, with only the variations of mattness or gloss, it cansignify either the absence of colour or the sum of all colours. Thus it is set sometimesat the start and sometimes at the finish of daily round and of the manifested world,which endows it with ideal and asymptotic properties. However, the finish of life – theinstant of death – is also the moment in which we cross the bridge between the visibleand the invisible and is therefore another starting-point.” (idem, p. 1105)

Amarelo: “Yellow is the hottest, the most expansive and the most burning of allcolours in its intensity, violence and almost strident shrillness; or else it is a broad andas dazzling as a flow of molten metal, being hard to put out and always overflowingthe limits which one tries to confine it” e “Since gold yellow is part of the divineessence, on Earth it became the attribute of the power of princes, kings and emperorsand proclaimed the divine source of that power.” (idem, p.1137)

Vermelho: “Red, the colour of FIRE and of BLOOD and regarded universally as thebasic symbol of the life-principle, with its dazzling strength and power, neverthelesspossesses their same symbolic ambivalence; speaking visually, this doubtless dependsupon whether the red is bright or dark. Bright, dazzling, centrifugal red is diurnal,male, tonic, stimulating activity and, like the Sun, casting its glow upon all things,with vast and irresistible strength. Dark red is its complete opposite. It is nocturnal,female, secret, and, ultimately, centripetal and stands, not for manifestation, but forthe mystery of life.” (idem, p. 792)

O simbolismo das cores nos leva a confirmar a conclusão de que o poema ROXO é um poema

de amor místico a Jesus Cristo; sendo o roxo a cor da reencarnação de Cristo, no poema

aparece claramente no verso 5: A paixão de Jesus é roxa e branca. O branco representa o fim

da vida e o começo de outra fase, também ligado à reencarnação de Jesus. O vermelho pode

ser visto no verso 11 ligado a uma rosa que chega à noite de seus tempos: uma rosa vermelha

envelhecendo. A rosa representando o cálice da vida, a alma, o coração, o amor, ou as chagas

de Cristo (idem, p. 813).

Podemos classificar este poema de Adélia Prado como sendo um Madrigal (poema breve do

tipo amoroso) a seu amado Jesus Cristo, onde a cor roxa é o símbolo de seu amor, Jesus

crucificado, uma cor de grande valor místico. O ritmo do poema é dado pela anáfora, a

repetição da palavra “roxo” no começo dos versos, terminando com a declaração de amor ao

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Page 57: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

seu amado. A anáfora acontece nos versos 1, 2, 3, 7, 8 e 15 com o artigo “o”.

Também há outros poemas de Adélia no livro Bagagem que utilizam cores nas mais diversas

maneiras. Contei, pelo menos, 14 poemas onde cor é um elemento importante na composição

do poema. Aqui dou algumas passagens desses poemas:

UM SONHO - “O meu cabelo limpo refletia vermelhos, / o meu vestido era num tom azul,

cheio de panos, lindo, / o meu corpo era jovem, as minhas pernas gostavam / do contato da

seda.”

Ou:

AMOR FEINHO - “Planta beijo de três cores ao redor da casa / e saudade roxa e branca, /

da comum e da dobrada.”

Ou ainda:

LOUVAÇÃO PARA UMA COR - “O amarelo faz decorrer de si os mamões e sua polpa, / o

amarelo furável. /... / O amarelo engendra.”

Trabalhando ainda no campo da sensorialidade nos poemas de Adélia, desejo analisar o

poema de nome muito sugestivo:

SENSORIAL

1 Obturação, é da amarela que eu ponho.2 Pimenta e cravo,3 mastigo à boca nua e me regalo.4 Amor, tem que falar meu bem,5 me dar caixa de música de presente,6 conhecer vários tons pra uma palavra só.7 Espírito, se for de Deus, eu adoro,8 se for de homem, eu testo9 com meus seis instrumentos.10 Fico gostando ou perdôo.11 Procuro sol, porque sou bicho de corpo.12 Sombra terei depois, a mais fria.

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Page 58: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

O primeiro verso começa já na boca, onde temos o paladar. O amarelo se ajusta ao sentido da

visão. O verso 2 mostra condimentos que não somente ativam o paladar, mas também o

olfato. O verso 3 complementa o verso 2 dando relevância à expressão à boca nua, que aguça

a sensação do paladar. Os versos 4, 5 e 6 se referem à audição e ao que a poeta gostaria de

ouvir de seu amado. Os versos 7 e 8 se referem ao espiritual (o que não se pode sentir com os

cinco sentidos) e ao humano (sensível ao corpo humano). O verso 9 mostra que a poeta utiliza

os cinco sentidos (audição, paladar, tato, olfato e visão) mais um sentido que eu chamaria de

“espiritual”; com estes “seis instrumentos” ela testa o que é humano. No verso 10 ela aprova

ou desaprova o que sentiu. Os versos 11 e 12 dão a visão da corporeidade do eu lírico, com o

sol que aquece o corpo, ou o Espírito Santo que aquece a alma, e a sombra fria da morte da

lápide que a cobrirá mais tarde, no fim da vida. Porém, enquanto está viva, a poeta sente com

seus “seis sentidos”.

Vejo que nesse poema não há nenhuma rima. Também, analisando os poemas do livro

Bagagem, pode-se notar que não encontramos o uso de rimas nos poemas adelianos. A rima

não é uma das ferramentas de que se utiliza Adélia para compor seus poemas.

Este é um bom poema para ser recitado, pois é expressivo, simples no seu linguajar e de muita

naturalidade expressiva. A intenção do poema, a meu ver, é deixar claro o valor dos 6

sentidos de que dispõe a poeta, um valor para além do sensorial, um valor criativo que se

inspira no uso dos sentidos e que vai além deles.

O poema, a meu ver, se divide em: Versos 1 ao 3 se referem ao paladar e olfato; os versos 4

ao 6 se referem à audição; os versos 7 ao 10 mostram a referência do espiritual versus o

humano, sendo o espiritual um outro “sentido”; os versos 11 e 12 se referem ao tato, de sentir

o sol e a sombra na pele, da vida (sol, luz) e da morte (sombra, fria), e de certo modo ao

espiritual, à passagem da vida ao abandono no Espírito Santo.

Uma figura de linguagem que se nota muito comumente nas poesias de Adélia Prado é a

sinestesia. A poeta relaciona planos sensoriais diferentes para formar suas imagens. Um

exemplo disto seria: Obturação, é da amarela que eu ponho. / Pimenta e cravo, / mastigo à

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Page 59: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

boca nua e me regalo. Todos sabemos que esses condimentos não são usados somente por

seus sabores, mas principalmente pelos seus efeitos aromáticos, assim a poeta mescla paladar

e olfato. Utilizo aqui uma passagem de Vera Queiroz sobre o poema LOUVAÇÃO À UMA

COR, onde a autora demonstra a utilização da sinestesia por Adélia:

“O processo sinestésico concentra as sensações do tato ('amacia', 'furável'), da visão('luminoso', 'pura luz') e auditivas ('flauta encantada', 'oboé').” (Queiroz, 1994: p.73)

Essa utilização dos 5 sentidos nos poemas é uma constante na obra de Adélia e se pode

verificar em outros poemas de Bagagem, tais como nas partes de poemas abaixo:

GRANDE DESEJO – “Quando dói, grito ai, / quando é bom, fico bruta, / as sensibilidades

sem governo. /Mas tenho meus prantos, / claridades atrás do meu estômago humilde / e

fortíssima voz para cantos de festa.”

Ainda em:

A FLOR DO CAMPO – “Mais que a amargosa pétala mastigada, / seu aspro odor e seiva

azeda, / a lembrança atingida das camadas do sono:”

E em:

MODINHA – “A alma dele zoando de tão grave, tocável / como o ar de sua garganta

vibrando. / No juízo final, se Deus permitisse, / eu acordava um morto com este canto, / mais

que o anjo com sua trombeta.”

O próximo poema a analisar é ANTES DO NOME, onde a poeta fala de seu modo de fazer

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poesia:

ANTES DO NOME

1 Não me importa a palavra, esta corriqueira.2 Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,3 os sítios escuros onde nasce o “de”, o “alias”,4 o “o”, o “porém” e o “que”, esta incompreensível5 muleta que me apóia.6 Quem entender a linguagem entende Deus7 cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.8 A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,9 foi inventada para ser calada.10 Em momentos de graça, infrequëntíssimos,11 se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.12 Puro susto e terror.

No verso 1 pode-se notar a preferência pela palavra não-corriqueira, a palavra não usada no

seu sentido “normal”, mas transformada, esvaziada de sentido e depois cheia com um sentido

novo. No verso 2 a poeta diz que a sintaxe emerge de um caos esplêndido, tendo a sintaxe a

função de especificar a estrutura interna e o funcionamento das palavras e frases. O caos aqui

parece dar a idéia de desordem, de instabilidade, de multiplicidade desorientada de palavras.

No verso 3 vemos que as palavras nascem, segundo a poeta, em sítio escuros, incertos,

instáveis. A preposição “de”, que tem a função de ligar duas palavras. O advérbio “alias” de

origem latina, que dá uma imagem de adição. No verso 4 a letra “o” se mostra em suas

múltiplas funções, que pode ser de artigo definido masculino singular (localizador,

demarcador), ou substantivo (caso do tipo sangüíneo), pronome pessoal ou pronome

demonstrativo; e o “porém”, que pode ser conjunção ou substantivo; e o “que”, que pode ter

função de substantivo, adjetivo, pronome, conjunção ou advérbio. Nos versos 4 e 5 a poeta

fala que essas palavras são as muletas que a apóiam, ou seja, essa multiplicidade de usos

(talvez daí a idéia de caos) lhe dão ferramentas bastantes (sintaxe) para seu trabalho de

compor poemas. Os versos 6 e 7 comparam a função católica do Verbo, Jesus Cristo, ao

mecanismo de funcionamento da linguagem, esse mecanismo instável e incerto. Ou seja,

quem entender completamente este mecanismo, poderá entender o Verbo, e este morrerá,

conforme o final do verso 7. No verso 8, onde a poeta diz que A palavra é disfarce de uma

coisa mais grave, surda-muda, se refere aos significados que as palavras podem ter e às suas

várias utilidades. O silêncio da palavra surda-muda pode ser lido como o silêncio antes da

Criação do mundo (Chevalier e Gheerbrant: 1996, p. 882), metaforicamente antes da criação

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Page 61: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

do poema. O verso 9 completa o 8: foi inventada para ser calada. Assim as palavras em

“estado de dicionário” não representam nenhum “perigo”, mas quando utilizadas, podem

tornar-se “fatais”, por isso devem ser caladas1. Nos versos 10 e 11 vejo uma ligação mística

católica do “estado de graça”2 e o uso preciso das palavras: Em momentos de graça,

infrequëntíssimos, / se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão. Esses momentos de

graça são momentos quando se pode compor poemas utilizando-se as palavras de maneira

singularíssima e adequadamente. Aqui a metáfora do peixe vivo na mão mostra a força da

infreqüência deste estado de graça para compor poemas.

Podemos notar a forma mística da utilização da palavra “graça”. Na oração, a palavra de

origem latina aparece: Ave Maria, gratia plena. A meu ver, este tipo de graça (gratia) a que

se refere Adélia, um quase-milagre momentâneo, medido com o lapso de tempo da palavra

“infreqüentíssimo”, superlativo de infreqüente, comparada a um peixe vivo que quer escapar

da mão, escorregadio, movimentando-se sem parar. O verso 12 fecha o poema: Puro susto e

terror. Susto por não saber como reagir e terror pelo medo de matar o peixe, ou pelo “temor a

Deus”.

Este poema de Adélia dialoga, a meu ver, com o poema de Drummond chamado “A procura

da poesia”3. Aqui trascrevo parte dos poemas:

Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos. Estão paralisados, mas não há desespero há calma e frescura na superfície intata Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário. Convive com teus poemas, antes de escrevê-los. Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam. Espera que cada um se realize e consuma com seu poder de palavra e seu poder de silêncio

Onde Adélia responde:

1 Sartre cita Heidegger dizendo que “...silence, in the words of Heidegger, is the authentic mode of speech.Only he who can talk keeps silence.” (2007: p.87).

2 "Estado de graça" - É a condição do fiel após a confissão sacramental e sua aversão ao pecado.”Ou seja, umestado de sem-pecado. Definição dada no website http://www.carmelosantateresa.com/links/indulgencias.htmdas Irmãs Carmelitas Descalças.

3 Transcrevo todo o poema de Drummond como Anexo 1 no final desta tese.

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Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,os sítios escuros onde nasce o “de”, o “alias”,o “o”, o “porém” e o “que”, esta incompreensívelmuleta que me apóia.

Vejo que, se lemos os dois poemas comparativamente, a atitude de Adélia se nota mais

corajosa e mais desbravadora de limites das palavras. O poema de Adélia, como o de

Drummond são, em realidade, metapoemas, pois refletem abertamente sobre o fazer poético e

se debruçam sobre este fazer como tema para estes poemas. Utilizo uma passagem de Vera

Queiroz sobre este poema de Adélia para melhor clarificar os significados dos últimos versos

do poema:

“Construído na quase literalidade comum aos metapoemas, há nele um verso, porém,que atualiza formalmente o que o sujeito anuncia como desejo maior: a sintaxe. Nopenúltimo verso ('se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão'), a inversão abruptado sintagma 'com a mão' reproduz o instante mesmo em que a iluminação poética sedá: a frase desliza e quebra-se para a inserção do sintagma 'peixe vivo' (metáfora depoesia), que surge na cadeia sintagmática como instantaneidade, visto que a frase secompleta sintaticamente com o que lhe segue. O verso ratifica a idéia de fulguração,como é compreendida a poesia.” (Queiroz, 1994: p.45).

Noto que o simbolismo do peixe vivo como metáfora para poesia pode ser lido em relação ao

elemento onde os peixes vivem, a água; elemento este sempre móvel, mesmo quando parece

que está parado, pode relacionar-se com os múltiplos usos das palavras e suas instabilidades

de significados. Como sabemos que Adélia Prado utiliza os símbolos cristãos em sua poesia,

fui buscar no dicionário de símbolos de Chevalier e Gheerbrant a significação do peixe para a

religião católica:

“The fish has provided Christian artists with a wealth of iconography. Carrying a shipupon its back, it symbolizes Christ and his Church; lying upon a plate with a basket ofbread upon it, it stands for the Eucharist; while in the Catacombs it is Christ himself.”(Chevalier e Gheerbrant, 1996: p. 384).

Assim, podemos ver que o uso do peixe não é gratuito. Adélia mede as palavras que utiliza

para buscar imagens e sentidos singulares. A referência ao “Verbo”, à “graça” e ao “peixe”

somente nos remetem ao campo da doutrina católica, que ela vai ligar ao mecanismo do fazer

poético. Quem descobre como funciona este mecanismo, descobre a Deus, e morre como

conseqüência de tamanho “abuso”. Aqui vemos como as palavras somente não bastam para

dar o sentido ao poema. Elas não conseguem traduzir tudo o que se sente e se deseja

transmitir. É desse caos de palavras embaralhadas e fora do lugar que o poeta deve buscá-las e

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Page 63: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

colocá-las em ordem (ou até evitá-las), dando-lhes vida na composição do poema.

Também, noto que enquanto Drummond mostra uma atitude mais calma em relação ao fazer

poético, Adélia tem uma atitude mais ativa, tentando segurar o peixe (a poesia) com a mão,

tentando ter controle sobre a feitura de seus poemas enquanto a poesia “insiste feito água no

fundo da mina, levantando morrinho de areia” (trecho do poema TABARÉu), viva como um

peixe. A poesia de Adélia é como um ser pulsante, vivente, incontrolável.

O poema se estrutura, na minha visão, da seguinte maneira: dos versos 1 ao 5 a poeta diz o

que deseja: a sintaxe; e dos versos 6 ao 12 ela demonstra o que sabe sobre o mecanismo de

funcionamento da sintaxe, comparando-a com o reino divino. Assim, o poema, que vejo

dividido em duas partes, metaforiza a maneira de usar as palavras para compor um poema

com a maneira de funcionamento do reino dos céus. Como o nome do poema já diz, ANTES

DO NOME há que saber como fazê-lo, ou seja, antes de dar o nome há que buscar o

mecanismo de feitura do poema.

Em outros poemas do livro Bagagem Adélia se refere ao ato de escrever e fazer poesia.

Alguns trechos destes poemas destaco embaixo:

O QUE A MUSA ETERNA CANTA - “...letras eu quero é pra pedir emprego, / agradecer

favores, / escrever meu nome completo. / O mais são as mal-traçadas linhas.”

Ainda:

EXPLICAÇÃO DE POESIA SEM NINGUÉM PEDIR – “Um trem-de-ferro é uma coisa

mecânica, / mas atravessa a noite, a madrugada, o dia, / atravessou minha vida, / virou só

sentimento.”

E o seguinte:

TABARÉU – “Porque, mercê de Deus, o poder que eu tenho / é de fazer poesia, quando ela

insiste feito / água no fundo da mina, levantando morrinho de areia.”

E por último:

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Page 64: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

O MODO POÉTICO – “Muito maior que a morte é a vida. / Um poeta sem orgulho é um

homem de dores, / muito mais é de alegrias.”

O metapoema, de caráter mais analítico sobre a própria maneira que o poeta tem de conceber

seus poemas, é sempre uma reflexão sobre o fazer poético. Outras formas de reflexão com

características mais pessoais, ou seja, poemas que falam sobre a própria vida da poeta e suas

criações imagéticas sobre sua vida, podem ser encontrados, também, na obra de Adélia Prado.

Continuando a analisar os poemas de Prado, passamos, agora, à analise de um poema de

caráter mais pessoal, a próxima análise busca as influências das memórias da poeta e das falas

inseridas em sua poesia. O aspecto da utilização da memória como fonte para seus poemas me

servirá, mais adiante, quando das relações à obra de Lygia Clark. Para isso quero analisar o

poema embaixo:

ENSINAMENTO

1 Minha mãe achava estudo2 a coisa mais fina do mundo.3 Não é.4 A coisa mais fina do mundo é o sentimento.5 Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,6 ela falou comigo:7 “Coitado, até essa hora no serviço pesado.”8 Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.9 Não me falou de amor.10 Essa palavra de luxo.

Os versos 1 e 2 se completam para dar idéia à toda a oração. Esses versos mostram que a mãe

de Adélia valorizava muito a instrução escolar. O verso 3 é a resposta direta da poeta aos

versos 1 e 2, e mostra o seu “descontentamento” em relação às idéias da mãe. O verso 4 diz

claramente o que é a coisa mais fina do mundo para a poeta: sentimento. Os versos 5 ao 8

mostram as atividades diárias da mãe e a piedade da mãe em relação às horas prolongadas de

trabalho do pai. No verso 7 a inclusão da fala materna como matéria poética: Coitado, até

essa hora no serviço pesado. Os versos 9 e 10 mostram a resposta mental de Adélia, sua

reflexão sobre o fato familiar, sua “surpresa” com a mãe por não falar em sentimentos, mas

somente nas atividades práticas da vida. A poeta vê “amor” como uma palavra de luxo,

pronunciada poucas vezes por sua mãe, pouco usada na fala materna. As tensões “estudo

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Page 65: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

versus sentimento” e “amor versus praticidade” marcam o poema e deixaram marcas na

memória da poeta. Porém, a praticidade da mãe pode ser vista como um ato de amor. A mãe

não fala de amor, porém faz amor. A mãe cumpre suas atividades diárias com o amor que não

sabe dizer.

Analisando o poema vejo que se trava um diálogo entre a memória da poeta em relação à sua

mãe, como se fosse a própria mãe, e suas próprias respostas e pensamentos. Divido o poema

como um diálogo: versos 1 e 2, a mãe “fala” via a memória de Adélia; versos 3 e 4, Adélia

responde em pensamento; versos 5 ao 8, Adélia relembra as atividades da mãe e transcreve

sua fala diretamente; e nos versos 9 e 10, Adélia responde em pensamento: Não me falou de

amor. / Essa palavra de luxo. Todo o poema funciona como um diálogo da memória da poeta,

diálogo de profunda intensidade, emotividade e subjetividade.

O fato de transcrever diretamente a fala da mãe no verso 7 nos leva ao que falamos sobre a

tagarelice mencionada por Vera Queiroz. No entanto, eu acredito que, não somente a

tagarelice das mulheres está incluída nos poemas de Adélia, mas também as frases proferidas

pelos pais como ensinamentos de vida, as próprias “falas da poeta” enquanto transcrições da

memória, e a fala dos conhecidos fazem parte deste repertório de falas reportadas nos poemas.

Exemplos disto são vistos em outros poemas, como, por exemplo, em AS MORTES

SUCESSIVAS: “Deixa, tá bom assim” (a fala paterna), ou em TODOS FAZEM UM

POEMA A CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE: “Por que não nasci eu um simples

vaga-lume?” (a própria escrita de seu antigo caderno de versos), e em VIGÍLIA: “...as bodas

de prata / do homem que fala sempre: “Qual é meu erro que / a minha vontade é estar

morto?”.

Acredito que as falas transcritas nos poemas de Adélia não são somente as falas da tagarelice

das mulheres interioranas (como afirma Vera Queiroz), mas que vários outros tipos de falas,

as falas que marcaram suas memórias mais íntimas, seus sentimentos para com os seus pais e

conhecidos e as falas dos momentos importantes de sua vida, se deixam ler nos poemas

adelianos. Parece-me que a memória de Adélia se dá pela fala, pela oralidade que se coloca no

poema. Suas frases repetidas não são somente versos para compor o poema, mas trazem em sí

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Page 66: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

algo “intraduzível” a nível de sentimentos que remetem à memória oral da poeta. Utilizo uma

passagem de Margarida Salomão que ajudará a compreender este ponto:

“Em Adélia Prado, a fala não é reportada: comparece concreta/faz parte da vida. Omundo, que a linguagem evoca, não é refletido: existe como própria linguagem.”(Salomão, IN Prado, 1976/1979: p.13).

Há uma demonstração de “um certo descontentamento” em relação à frieza da mãe em

relação a falar sobre sentimentos. Essa certa tristeza, ou descontentamento, se vê nos poemas

de Adélia como essa dor que não é amargura. Em vários poemas as palavras “dor”, “choro” e

o verbo “chorar” aparecem. Isto se pode ver em poemas como: ATÁVICA: “Mas eu vim pra

cidade fazer versos tão tristes / que dão gosto, meu Jesus misericórdia. / Por prazer da

tristeza eu vivo alegre”; ou em TARJA: “É necrofilia não, é simpatia, dor / que aos

domingos me adula, açula um galo, / o gosto da melancolia”; e como último exemplo, em

TOADA: “Cantiga triste, pode com ela / é quem não perdeu a alegria”. Esta luta entre

alegria e tristeza se nota claramente nos poemas de Adélia Prado.

Os dois últimos versos do poema são muito interessantes para esta análise, pois mostram a

correlação feita pela poeta entre palavra e sentimento. Os versos Não me falou de amor. /

Essa palavra de luxo mostram uma inversão. Os versos poderiam ter sido escritos assim: Não

me falou a palavra amor, esse sentimento de luxo.

A meu ver, podemos verificar nesses últimos versos do poema que sentimento e palavra

andam juntos, compartilham do mesmo reino explorado por Adélia, posso, ainda, dizer que

são iguais em seu nível de pensamento. Ela deixa claro que é com palavras que os

sentimentos se exprimem e, ainda mais, que não há sentimento sem palavras, sendo as

palavras o meio privilegiado de exprimir sentimentos. Talvez por isso Adélia utilize tanto as

falas dos seres mais amados em seus poemas, pois é reportando suas falas que ela demonstra

que os ama, utilizando suas próprias palavras.

As rimas neste poema são inexistentes, a métrica é livre e o poema se utiliza de um

imaginário bastante ligado à vida provincial, como se pode ler no verso: Arrumou pão e café,

deixou tacho no fogo com água quente.

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Page 67: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

Vemos que tudo na poesia de Adélia Prado nos remete ao reino da memória, das sensações

mais puras do convívio familiar do interior brasileiro, da aparente existência das frases faladas

por seus entes-passados, da vida interiorana e de sua específica mística (mescla de erotismo e

religiosidade) que a aproximaria da de Santa Teresa de Ávila, e do existir no mundo com suas

dores, choros, melancolias, tristezas e alegrias. Sua utilização de palavras se demonstra ao

nível do pavor (como pegar um peixe com a mão), do místico (do roxo que demonstra a

paixão de seu Cristo amado), da tradição (em seu diálogo com outros poetas), da

singularidade de sua obra em relação à esta tradição, da metalinguagem, da memória e do

memorável em sua vida (representado pelas falas de outras pessoas).

Analisar a obra de Adélia, é analisar uma obra de grande teor dramático e sinestésico, onde,

na vida cotidiana, as alegrias e tristezas se misturam, mostrando os dilemas de cada dia,

procurando buscar os atos, as facetas das coisas e dos sentimentos, as mesclas dos sentidos e

todos os aspectos do mundo material (existencial) e espiritual (místico).

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Page 68: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

6- Análise das obras de Lygia Clark do final da década de 1960 e começo da década de 1970:

Gostaria de começar este análise das obras de Lygia Clark utilizando uma passagem de

Edward J. Sullivan que sumariza alguns momentos importantes da obra da artista:

“After creating a series of hard-edge abstract paintings, such as Egg (1959), Clarkmoved on to produce three-dimensional metallic sculptures. In her Trepantes of the1960s, she combined metal and wood, setting up a series of correlations between thetwo surfaces and textures. Also from the 1960s, Bichos – free-form objects that maybe installed anywhere and in any configuration chosen by the viewer/participant –combine hints of living, breathing beings with the coolness of metal. Clark's laterwork reflects her practice as a psychotherapist. For example, she created articles ofclothing that could be worn and used to temporarily alter the personality of thewearer. In participatory works such as these, Clark reached far beyond conventionaldefinitions of art.” (Sullivan, 2002: p. 452)

A passagem anterior mostra várias fases da carreira de Lygia, sendo que a fase que mais nos

interessa para este trabalho é a do período de finais dos anos 60 de começos dos anos 70,

período em que exerce suas atividades na Sorbonne como “propositora”1 de sensibilizações

dos participantes de seus projetos artísticos. Vale mostrar aqui, para a melhor compreensão do

leitor, o background da artista e as fases de seu trabalho, antes de começar a analisar algumas

obras.

Ovo, 1959. Tinta industrial sobre madeira, dimensão diagonal 33 cm. Col. Adolpho Leirner.

1 Lygia Clark não se definia como artista, mas como propositora.

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Clark, formada dentro da tradição do movimento concreto brasileiro dos anos 1950s, se

distancia dos concretistas paulistas para juntar-se ao grupo carioca que se chamou de

Neoconcretos. Este novo movimento era formado principalmente pelos seguintes artistas:

Lygia Clark, Hélio Oiticica, Lygia Pape, Franz Weissmann, Amilcar de Castro, Ferreira

Gullar e Mário Pedrosa. Clark como todos os artistas que assinaram o Manifesto

Neoconcreto, estava insatisfeita com o racionalismo geométrico dos artistas concretos

paulistas e decidiu concentrar suas pesquisas na direção de uma arte mais humana e menos

convencional em relação ao mercado da arte. Utilizo aqui parte do Manifesto Neoconcreto

(1959), escrito pelo poeta Ferreira Gullar, onde ele mostra esta insatisfação dos artistas

cariocas com os procedimentos racionalistas concretos:

“O racionalismo rouba à arte toda a autonomia e substitui as qualidadesintransferíveis da obra de arte por noções da objetividade científica: assim osconceitos da forma, espaço, tempo, estrutura – que na linguagem das artes estãoligados a uma significação existencial, emotiva e afetiva – são confundidos comcom a aplicação teórica que deles faz a ciência.” (Gullar, IN Ades, 2002: p. 336)

Essa não-adesão dos neoconcretos cariocas aos padrões formais precisos e mecânicos dos

concretos paulistas foi o ponto de partida para a organicidade das obras de Lygia Clark e a

participação ativa do espectador, agora transformado em participante da obra. Essa ruptura

entre o concretismo e o neoconcretismo teve seu fundo intelectual baseado no humanismo das

novas teorias da percepção e em uma ontologia que distanciava o homem do cientificismo

concreto. Aqui uso uma passagem de Ronaldo Brito que mostra essa separação intelectual:

“Foi sem dúvida em torno da linguagem (visual e literária) que se estabeleceram ospontos centrais da polêmica concretismo-neoconcretismo. De certo modo, o últimodeslocou o eixo das preocupações concretistas neste sentido. Passou-se da semióticasaxônica (Peirce1) e da teoria da informação (Norbert Wiener2) para a filosofia mais

1 Charles Sanders Peirce (1839-1914). Filósofo da ciência e da língua Norte-Americano. Pierce foi uma dasfiguras fundadoras do Pragmatismo. Ele é conhecido pelos seus trabalhos no campo da semiótica, onde aplica arelação entre Signo, Objeto e Interprete. “...he has permanent importance as the founding figure of Americanpragmatism, perhaps best expressed in his essay 'How to Make our Ideas Clear” (1878)” (Blackburn, 2006: p.271).

2 Norbert Wiener (1894-1964). Fundador da Cibernética e propositor do slogan “A organização é a mensagem”.“Na metáfora à qual dedico este capítulo, o organismo é visto como uma mensagem. O organismo se opõe aocaos, à desintegração, à morte, como a mensagem ao ruído. Para descrever um organismo, não tentamosespecificar cada uma de suas moléculas, catalogando-as uma a uma, mas antes responder a certas questões sobrea aestrutura, o seu padrão (pattern): um padrão que é mais significante e menos provável à medida que o

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especulativa (Merleau-Ponty e Suzanne Langer1); passou-se do âmbito da rigorosamanipulação dos elementos discretos para uma área que, sem renegar de todo essespostulados, recolocava questões ontológicas no centro das teorizações sobre alinguagem.” (Brito, 1985: p.55).

Não podemos negar que a obra de Lygia Clark se voltou para os aspectos mais ontológicos do

fazer artístico. A inserção essencial do participante, em oposição à contemplação do

espectador, foi fato singular em sua obra. Outro importante ponto a mencionar é que Lygia

Clark firma o Manifesto Neoconcreto escrito por Ferreira Gullar e efetivamente utiliza as

bases ideológicas deste manifesto em sua arte. Também, Ferreira Gullar, neste manifesto, se

desvincula da poesia concreta e busca novas bases para o campo literário neoconcreto.

Agora, detendo-nos mais precisamente sobre a obra de Lygia Clark, podemos analisar

algumas de seus projetos do final da década de 1960 e da primeira metade da década de 1970.

Para melhor compreender esta fase da carreira de Clark utilizo uma passagem de Maria Alice

Milliet que traduz as questões básicas exploradas por Clark nos principios dos anos 70:

“A dialética básica de Clark é a tensão entre o dentro e o fora, o eu e o outro, ointelecto e o sensório, o prazer e a realidade. À arte como consolo, como refúgio,como prazer sublimado, contrapõe a criação como liberdade do reprimido, comocorpo ressurrecto em agenciamento coletivo” (Milliet, 1992: p. 109).

Esta passagem mostra a importância das relações entre as proposições de Clark e os

participantes, numa liberdade total para o autoconhecimento e adequação a si mesmo. Não se

reprimem os atos, mas, em contrapartida, estimula-se a vivência sensorial dos participantes.

Esta fase de instrução sensorial na Sorbonne, onde os experimentos artísticos se ligam a um

grupo de pessoas ou “corpo coletivo”, é a continuação da fase que se chamou “nostalgia do

corpo”, onde objetos manufaturados eram transformados e usados para exercícios de

sensibilização. Esses objetos eram os mais simples possíveis (ex: luvas, óculos, cintos, sacos

organismo se torna, por assim dizer, mais organismo.(Aqui poderíamos ainda inserir uma aproximaçãojustificada com a psicologia da gestalt.)” (IN Pignatari, 1997: p.13). Ver Bibliografia.

1 Susanne K. Langer (1895-1985). Filósofa da arte que atribui valor símbólico às emoções humanas no campoda arte. “...a pensadora norte-americana acha que o homem usa os símbolos para organizar e obter seusconhecimentos do mundo e ao mesmo tempo criar uma sensação de segurança com estes conhecimentos. Poroutro lado, a atividade simbólica do homem pode fornecer dados importantes para o seu próprio comportamentomental, implícito a interpretação da criação arística [como é o caso da música para Langer], pois a arte foi aprimeira manifestação humana tida como simbólica.” (Brasil, 1984: p. 203).

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Page 71: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

plásticos, entre outros) e não eram considerados como obras de arte, mas eram voltados à

percepção sensorial do(s) participante(s). Um desses objetos, da série “roupa-corpo-roupa”,

de 1967 é O Eu e o Tu.

Essa vestimenta, projetada para um homem e uma mulher, é composta por dois macacões de

material plástico ligados entre sí, com zíperes e com máscaras onde não há viseiras. Os

participantes devem, através do toque mútuo, do olfato e da audição explorarem os “corpos”

um do outro. A desorientação espacial provocada pela vestimenta faz com que os

participantes descubram uma nova posição no mundo, além de necessitarem-se mutuamente,

pois estão ligados. Os participantes “...sentem-se a si mesmos como carência do outro; e para

superarem esta expiação, movidos pela fome da comunhão, atiram-se ao mundo externo

procurando no encontro o esquecimento da solidão” (Fabbrini, 1994: p.119).

No momento inicial do contato, os participantes, através do tato, encontram o corpo do

parceiro(a). A partir daí começam as descobertas mais íntimas através da abertura dos zíperes

e do contato com o corpo do outro. Esse contato direto com a corporeidade do outro, matéria

que se diferencia da minha, volta-se para o indivíduo como consciência de seu corpo que se

relaciona com outro corpo. O corpo é receptáculo e doador do toque, mostrando não somente

a exterioridade do outro mas também a minha em relação ao outro. Nesta proposição de Lygia

há uma busca de relacionamento e correspondência com o corpo do outro, há a descoberta da

realidade pungente da própria vida através do contato com o corpo do outro.

Esta proposição trata de reforçar a própria conscientização enquanto pessoa humana, fazendo-

nos refletir sobre nós mesmos, sobre o outro, sobre nossa realidade existencial, sobre a

realidade do outro e sobre o meu comprometimento em relação ao outro no mundo. Há aqui

uma “dor” da procura e da busca do outro, e uma “alegria” de encontro ou reencontro com o

outro. Há, também, a realidade da relação entre o feminino e o masculino, e as carícias com

seus aspectos sentimentais e de abertura emocional para com o outro.

As máscaras, que não permitem a visão, fazem com que a interiorizarão das sensações

percebidas através desta proposição sejam mais fortes. O não-ver faz com que dependamos

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mais dos outros sentidos, que valorizemos mais as outras formas de experimentar os outros e

nós mesmos, e que confiemos mais nos outros sentidos (que não sejam a visão) como formas

de conhecimento do mundo exterior. Assim como a proposição O Eu e o Tu, as preposições

Cesariana (1967) e A Casa é o Corpo: Labirinto (1968) lidam com a noção do próprio corpo

como objeto sensorial e como depositório de memórias e experiências.

O Eu e o Tu, 1967.

A proposição A Casa é o Corpo: Labirinto (1968) é uma instalação-labirinto onde o

participante volta ao útero da mãe, mas desta vez de maneira consciente e reflexiva. Esta

instalação foi montada no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro em 1968 e na

Bienal de Veneza, também em 1968. A utilização destas instalações que criavam ambientes

era muito usual para os artistas conceituais da época. Desta mesma época é também a famosa

instalação de Hélio Oiticica chamada Tropicália. Uso, aqui, uma passagem de Milliet onde

ela descreve a instalação de Clark:

“Em 1968, é criada uma ambiciosa instalação chamada A Casa é o Corpo para serpenetrada pelo visitante como 'abrigo poético'. Passando por compartimentos [quesomavam em total 8 metros de comprimento] chamados 'penetração', 'ovulação','germinação' e 'expulsão', o indivíduo é levado a experimentar sensações táteis, deperda de equilíbrio, de deformação, resgatando a vivência intra-uterina..” (Milliet,1992: p.111)

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Page 73: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

Reparo que a criação desta instalação marca um momento importante na carreira de Lygia

Clark: a busca das sensações regressivas. Ela cria a instalação A Casa é o Corpo: Labirinto

visando resgatar as sensações do processo de formação sensorial dentro da barriga de nossas

mães. É na busca de um processo regressivo de vivências passadas que Lygia Clark instala

suas pretensões. Se começamos nossa caminhada de seres humanos experimentando

sensações dentro do corpo de nossas mães, por que não revivenciar (reviver, relembrar) estas

sensações? Os vários objetos utilizados por Clark nesta instalação (como as mucosidades, as

protuberâncias e a amorfia dos materiais) tendem à simulação do processo reprodutivo

humano e às nossas vivências durante este processo.

A Casa é o Corpo: Labirinto. De 1968.

Transcrevo aqui a explicação que Lygia Clark dá sobre a preposição A Casa é o Corpo:

Labirinto. Vejo esta explicação como essencial para compreender as intenções da artista, a

maneira como foi concebida a obra e as implicações sensoriais da obra para o participante:

“É uma estrutura de oito metros de comprimento, com dois compartimentos laterais.O centro dessa estrutura constitui-se de um grande balão de plástico. As extremidadessão fechadas com elásticos e as pessoas ao se encostarem neles, provocam as maisvariadas formas. Ao penetrar no labirinto, o visitante afasta os elásticos da entrada,sentindo um rompimento semelhante ao de um hímen complacente e tendo acessoassim ao primeiro compartimento, chamado 'penetração'. Nesta cabine a pessoa pisanuma lona estendida pouco acima do chão e perde o equilíbrio: no escuro ela apalpaas paredes, que cedem, da mesma forma que o chão. Prosseguindo o caminho atravésdo tato, encontrará uma passagem semelhante à da entrada, e a pessoa chega na'ovulação', espaço igual ao anterior, cheio de balões. Ao prosseguir, o visitantealcança o amplo espaço central, onde é possível ver e ser visto do exterior. Neste localhá uma imensa boca, através da qual a pessoa entra na 'germinação', ali tomando asposições que lhe convier. De volta ao túnel, continuando o passeio, penetra nocompartimento da 'expulsão', que além de bolinhas macias de vinil espalhadas pelo

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chão, possui uma floresta de pêlos pendentes do teto. Esses pêlos começam muitofinos e se tornam gradativamente bastante grossos, e o visitante vai abrindo caminhono escuro em meio a essa massa peluda, de contexturas diferentes. Após uma curva apessoa encontra um cilindro giratório. Através da manipulação o cilindro gira e ela sevê diante de um espelho deformante todo iluminado. É o fim do labirinto.” (LygiaClark, IN Fabbrini, 1994: p.145-146).

Essa instalação de Clark, em termos da história da arte, remonta aos estudos de Leonardo da

Vinci sobre o feto no útero da mãe (anexo 2), de cerca de 1510, e à contemporâneos artistas

como a francesa Niki de Saint-Phalle em sua escultura-instalação-arquitetura para o Museu de

Arte Moderna de Estocolmo chamada "hon-en katedral" ("ela-a catedral")1, uma imensa

Nana, produzida em 1966 (anexo 3) juntamente com os artistas Jean Tinguely e Per Olof

Ultvedt. Claramente vemos que a intenção de cada artista era diferente. Leonardo da Vinci

tinha uma intenção científica em seus desenhos, uma intenção de entendimento biológico do

mundo. Niki de Saint-Phalle fazia que os visitantes entrassem pela “vagina” da escultura-

instalação, onde, dentro desta, encontrariam vários compartimentos (um bar, um tobogã e um

pequeno cinema). A escultura-instalação de Saint-Phalle não compartilha do grau de

sensibilização da instalação de Lygia Clark. A imensa escultura de Niki tinha a intenção de

deixar o visitante em choque com a monumentalidade da Nana, demonstrando que a mulher é

de verdade uma catedral, uma casa, um abrigo acolhedor, com a possibilidade de gerar e

guardar por nove meses uma nova vida.

A instalação de Clark faz com que o “visitante” percorra os lugares onde sua vida começou,

“recriando” o corpo da mãe. No primeiro compartimento da instalação, com suas superfícies

úmidas e maleáveis como os músculos da vagina, o visitante, no escuro, caminha sobre o chão

de lona. No compartimento seguinte, “ovulação”, o participante se vê cercado de balões,

representando os óvulos já penetrados pelos espermatozóides. O compartimento da

“germinação” é o compartimento do aconchego, de tomar a posição que se quiser, de formar o

corpo num lugar confortável. A parte da “expulsão”, com as bolinhas no chão e os pêlos de

vários tamanhos e texturas, representa o colo do útero e o ato do nascimento, da efetiva saída

1 Fabbrini nos fala sobre esta obra: “...uma mulher de 25 metros de comprimento e 9 metros de altura(“Nana”), deitada de costas, tem sua vagina atravessada pelos visitantes que, em seu interior, em meio aefeitos visuais e sonoros, encontram um bar, um tobogã e um pequeño cinema. Apesar dos pontos de contato– a curiosidade que impele à ação, a participação, a dessacralização da obra, etc – há traços distintivos que asepara da Casa é o Corpo: as formas d'Ela são anedóticas e caricatas, a artificialidade de seu interiortransforma o estranhamento inicial em indiferenca, etc.” (1994: p.150).

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do corpo da mãe. Quando o visitante sai do túnel, encontra-se, então, em frente a um espelho

deformante iluminado, como que vendo a luz do dia e a sua própria luz, verificando sua

própria existência no mundo. Esse é o momento da volta, do regresso ao que somos, onde

tomamos consciência de nossa existência real e, então, analisamos as experiências do

“regressar ao útero da mãe”.

Todo esse processo do regressar às entranhas da própria mãe é extremamente simbólico e

sensorial, objetivando vivênciar e, também, “des-vivênciar” situações que nos marcaram. As

sensações provocadas pelos vários materiais produzem experiências únicas, vivências

singulares de retorno ao que fomos um dia. Essa segurança que nos deu o útero1 é re-

experimentada pelo visitante, uma segurança, agora, regeneradora do encontro consigo

mesmo.

Acredito que a dominância do gestual, do sensorial, sobre o verbal dá a liberdade necessária

ao visitante de experimentar, sem barreiras, pois o gesto é insubmisso à qualquer regra pré-

estabelecida dentro da proposição. Há uma certa “precariedade” dos materiais utilizados, já

que são objetos que podem ser encontrados em qualquer parte. Não são materiais ricos, caros,

ou mesmo super-elaborados, mas há algo mesmo de uma “improvisação organizada” na

instalação A Casa é o Corpo: Labirinto. Esta “improvisação organizada” das proposições de

Clark remete à multitude de significados2 do movimento Tropicalista (movimento

marcadamente brasileiro dos finais da década de 1960 e princípios da de 1970), que nunca

fechava significações, que deixava o resultado final da significação aberto ao espectador,

utilizando um processo de incitação à múltiplas referências.

Ainda sobre a mesma instalação, gostaria de usar uma passagem de Ricardo Nascimento

Fabbrini que nos dá a relação da instalação com o seu nome:

“À medida que se aprofunda no labirinto ele vive 'o choque do resgate do passado';

1 O dicionário de símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant nos dá a seguinte definição do útero: “Wombsymbolism is universally connected with manifestation, natural fertility and even with spiritual generation.From Europe to China alchemists quite explicitly envision the return to the womb as a prelude toregeneration and imortality. Residing in the womb is a timeless central state in which, Hindu writings insist,'one has knowledge of all births'.” (1996: p.1122).

2 Trabalhando sempre com estereótipos da cultura brasileira e seus múltiplos significados.

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como um refúgio para o náufrago, este regresso à concha vazia reaviva-lhe ternasrecordações da infância:' - Vá para o Ocidente ou para o Oriente, mas é em casa ondevocê melhor se sente'. Destacando as camadas do hábito reencontra seu lugar naturalno aconchego de uma Casa que irradia vestígios íntimos: um espaço onde sereconhece em cada fibra de sua arquitetura..” (Fabbrini, 1994: p. 149)

A próxima obra de Lygia Clark que gostaria de analisar é a proposição de nome Baba

Antropofágica, de 1973. Este trabalho foi criado no período em que Clark trabalhou como

professora na Sorbonne, entre 1970 e 1976. Nesse período Lygia começa a fazer proposições

para serem experimentadas por um número considerável de pessoas, em oposição à

proposições pensadas para um ou dois participantes. Este período das proposições de

participação coletiva foi chamado de Espaço do Corpo (ou Corpo Coletivo).

Primeiramente, gostaria de utilizar a descrição da criação da proposição que dá a própria

Lygia Clark para depois analisá-la:

“Tudo começou a partir de um sonho que passou a me perseguir o tempo inteiro. Eusonhava que abria a boca e tirava sem cessar de dentro dela uma substância, e namedida em que isso ia acontecendo eu sentia que ia perdendo a minha própriasubstância interna e isso me angustiava muito, principalmente porque não parava deperdê-la. Um dia, depois de ter feito as máscaras sensoriais, me lembrei de construiruma máscara que possuísse uma carretilha que fizesse a baba ser engolida. Foirealizada em seguida o que se chamou Baba Antropofágica, onde as pessoas passavama ter carretéis dentro da boca para expulsar e introjetar a baba..” (Lygia Clark, INMilliet, 1992: p.139)

Essa proposição foi vivenciada pelos alunos da Sorbonne. O claro vínculo com a teoria

antropofágica criada por Oswald de Andrade1 durante os primeiros anos do Modernismo

brasileiro é contundente. O Manifesto Antropofágico (anexo 4) vai buscar o ato da

antropofagia2 (um canibalismo ritual) nas tradições de algumas tribos brasileiras e resgata a

1 Escritor, ensaísta e dramaturgo, nascido em São Paulo em 1890. Foi um dos expoentes mais importantes doModernismo brasileiro, tendo sido um dos colaboradores da Semana de Arte Moderna de 1922 no TeatroMunicipal de São Paulo, evento que marca simbolicamente o início do movimento modernista no Brasil.Faleceu em 1954.

2 Numa descrição de Padre José de Anchieta, o ritual ocorria da seguinte forma: “Em morrendo este preso, lê-se em Frei Salvador, logo as velhas o despedaçam e lhe tiram as tripas e fressura, que mal lavadas cozempara comer, e reparte-se a carne por todas as casas e pelos hóspedes que vieram a esta matança, e delacomem logo assada e cozida, e guardam alguma, muito assada e mirrada, a quem chamam moquém, metidaem novelos de fios de algodão e posta em caniços ao fumo, para depois renovarem o seu ódio e fazeremoutras festas, e do caldo fazem grandes alguidares de migas e papas de farinha de carimã, para suprir na faltade carne, e poder chegar a todos", comentou Joaquim Thomaz em seu livro Anchieta. São Paulo: Bibliex,1981.

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antropofagia como um mecanismo cultural para dar solução ao problema de identidade

brasileiro e mesmo como “antídoto” contra o imperialismo Europeu da época.

O ato de comer o outro, fazer com que o outro faça parte de sí mesmo e colocar para fora o

“sujeito” já digerido é uma estatística cultural que ainda hoje é válida para o Brasil, já que o

anti-imperialismo cultural tem fortes seguidores nos países ditos de “terceiro mundo”1.

Devorar para digerir, re-significar, e usar o que nos interessa pode servir para nosso próprio

bem. Utilizo aqui uma passagem de Maria Alice Milliet que me parece elucidativa para

compreender a estratégia antropofágica:

“...a antropofagia é o constante exercício da possibilidade. É o que o brasileiropopularmente chama de 'dar um jeito', 'se virar'. O caráter antropofágico da artista estána desorganização e na barbarização de uma civilização – 'que estamos comendo' –numa destrutividade saudável do componente aurático da arte e do artista. O corpodessublimado e liberto do princípio de desempenho, em sua potencialidade espaço-temporal, é o lugar irredutível dessa aventura. E nisso se aproxima da 'antropofagiacarnal' que, segundo Oswald, 'traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos osmales identificados por Freud, males catequistas'.” (Milliet, 1992: p. 147).

A proposição de Lygia Clark trabalha com o lado mais ritualístico da antropofagia. Sua

proposição é baseada na canibalização rital do que nos é imposto socialmente,

economicamente e culturalmente. Somente o dar ao outro não interessa. Temos que aprender

a dar e a receber, ou melhor, a buscar, mesmo “pela força” aquilo que nos é devido e nos foi

negado. O participante deve perceber o mundo em que vive como um lugar de entrega e

retribuição, de participação total. Essa participação entre os alunos de Lygia era algo tão

marcante que eles modificavam suas atitudes sociais perante os outros. Uso uma passagem de

Clark sobre os resultados positivos com essas proposições:

“O que mais me gratifica é saber, por exemplo, que os alunos que freqüentam o meucurso continuam a se comunicar quando se encontram na rua. Pois, como é sabido, osalunos que freqüentam a Sorbonne quando entram ali se cumprimentam mas depois,lá fora, se desconhecem. A França é isso. Mas no meu caso a comunicação é tãointensa e tão próxima que o relacionamento continua além das paredes da classe, na

1 Essa visão de descentralização cultural atual se nota claramente nas teorias pós-colonialistas (ex. Spivak eBabba), onde a criação de cultura se desvincula da Europa e EUA e se abre às outras partes do mundo. Nestesentido, a antropofagia é ainda um mecanismo de “digestão” de formas culturais dominantes vindas doestrangeiro e que não representam a cultura do país onde tenta implantar-se. Para além de um mecanismo dereformulação cultural, a antropofagia é um mecanismo de rebelião contra os dominadores, que foram,historica e inicialmente, os conquistadores do Novo Mundo.

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vida. Então eu digo: o que proponho a eles, no fundo, é o exercício experimental daliberdade na vida1. O que pretendo é que amem melhor, façam amor melhor, comammelhor, sintam melhor o próprio corpo.” (Lygia Clark, IN Fabbrini, 1994: p. 162).

E é exatamente este exercício experimental da liberdade que Lygia Clark oferece a seus

alunos: intensificação do contato com o corpo do outro, a sensibilização do próprio corpo e do

corpo coletivo do grupo. Há uma noção de unidade que funciona dentro das proposições

como Baba Antropofágica. Há uma liberalização dos movimentos e dos sentidos que desinibe

os participantes, os aparta de seus medos de rejeição e os fazem comunicar. Há uma poética

do corpo de que se utiliza a propositora para que os participantes desfrutem o máximo da

experiência de estar ali e de ser parte integrante de um todo, mas mantendo sua própria

liberdade de expressão.

Baba Antropofágica, 1973.

A “baba”, a gosma salivar, que se mistura ao sair e é colocada na boca novamente é

compartilhada por todos. Essa baba é a substância interna de cada sujeito que baba, se

misturando com as outras babas, transformando-se em uma mescla de todos. A antropofagia

é, no campo da antropologia, um processo ritual para reforçar os laços culturais e sociais

dentro de um grupo. Uso aqui uma passagem de Boris Wiseman e Judy Groves do livro Lévi-

Strauss and Structural Anthropology para clarificar a importância do rito nesta proposição:

“Rituals are the opposite of games. Games – an activity characteristic of 'hot' societies

1 Itálico meu.

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– use structures (the rules of the game) to produce events (victories or defeats). Theyare fundamentally disjunctive1, as their aim is to separate the winner from the loser.Rituals are conjunctive – their aim is to bring together.”(Wiseman e Groves, 1997:p.94).

Da passagem acima podemos ver que os rituais existem para fortalecer e unir o grupo (são

conjuntivos, criam um conjunto), enquanto os jogos existem para separar o ganhador do

perdedor (são disjuntivos). Por isso vemos o caráter ritualístico da proposição de Lygia Clark

ser de fundamental importância para sua inteira compreensão. Não é por nada que Oswald de

Andrade se pergunta: “Tupi, or not tupi that is the question.”, sendo tupi2 um tronco

lingüístico indígena que dominava no Brasil até o século XVIII. Não se trata de voltar a ser

índio, mas de utilizar estruturas culturais que têm a ver conosco e com nossa tradição.

Em outra proposição, também de 1973, com o nome de Canibalismo, o mecanismo ritual do

canibalismo também é utilizado. Milliet descreve a obra da seguinte maneira:

“O banquete canibal se dá metaforicamente na proposição Canibalismo (1973): umapessoa deitada é cercada por outras de olhos vendados que devoram as frutas que lhecobrem o corpo.” E em Canibalismo e Baba Antropofágica “...existe apropriação eperda: quem come subtrai ao outro, quem baba perde substância que o outro agrega.Entretanto, o comer pode ser indigesto e a baba sufocante, verso e reverso de umasituação. Lygia esteve consciente desses movimentos físico-psíquicos e suasimplicações no nível do indivíduo e do social.” (Milliet, 1992: p. 146)

Em realidade, a proposição se dá através da utilização de um macacão especial, uma

vestimenta projetada para esta proposição, onde, em um compartimento com um zíper à altura

da cintura, se encontram frutas que serão comidas pelos outros participantes. Todos os

participantes têm os olhos cobertos, também o que está deitado(a) no chão vestindo o

macacão. Canibalismo é uma proposição do âmbito do sensível e, também, do social e do

psicológico. Essa antropofagia construtiva de Lygia Clark se transporta da conjuntura

intelectual de Oswald de Andrade para a realidade simbólica de devorar o que está dentro do

outro, o que faz parte do outro.

Utilizo aqui uma passagem do antropólogo belga Arnold Van Gennep sobre a importância do

ato tribal de comer e beber juntos:

1 Negrito do autor.2 Também conhecido como Tupinambá, Tupi Antigo, Língua Brasílica, e Abañeenga do Norte.

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“The rite of eating and drinking together, which will be frequently mentioned in thisbook, is clearly a rite of incorporation, of physical union, and has been called asacrament of communion. A union by this means may be permanent, but more often itlasts only during the period of digestion.” (Van Gennep, 1984: p. 29).

Podemos notar que esta união, fortificada pelo ato de comer juntos, deveria conectar os

participantes das preposições de Lygia Clark. Sua intenção de união e de ação era

fundamental para a proposição, também, as frutas servidas neste banquete canibal eram frutas

tropicais, geralmente desconhecidas dos participantes ou pouco consumidas na França na

década de 1970. Era um banquete também para o paladar. Esse devorar coletivo unia os

alunos, ajudando-os no âmbito da comunicação social e sensorial.

Imagem do banquete canibal descrito por Hans Staden em seu livro Viagem ao Brasil, de 1557.

Outro ponto a destacar sobre esta preposição é a desorientação causada pelos tapa-olhos. Uma

desorientação visual, decretando o fim da primazia do visual em detrimento dos outros

sentidos menos utilizados ao explorar as obras de arte.

A última proposição que pretendo analisar é a proposição chamada Rede de Elásticos, de

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1974. Aqui uso a definição desta preposição dada por Fabbrini:

“Os componentes do grupo fiam em conjunto o trançado de uma rede de arrasto queacaba por envolvê-los ao ponto de limitar seus movimentos.” (Fabbrini, 1994: p. 176).

Um dos participantes, ou mais, se coloca(m) no centro, onde a rede é “lançada” sobre ele/a(s).

O ato de manufaturar a rede, de tecê-la com suas próprias mãos e de usá-la de maneira

singular enriquece muito o trabalho. A própria Lygia fala disto:

“O tecer a rede, ou seja, o exercício da criatividade é tão importante quanto vivenciaro trabalho depois de pronto.” (Lygia Clark, IN Fabbrini, 1994: p.176).

O ato de confeccionar a rede, a utilização da rede para integrar o grupo na mesma trama de

relações, os eventuais toques corporais, todas as ações conjuntas tentam unificar o grupo. O

contato corporal pode ter conotação lúdica, erótica, sensual ou de amizade. Nesta proposição

todos estão fisicamente ligados e interligados, não podendo agir sem que suas ações

interfiram no movimento do grupo. Essa rede de relações criada pelos participantes define um

único corpo em movimento.

Rede de Elásticos, 1974.

Nesta parte de fechamento deste capítulo da tese, gostaria de falar um pouco sobre o período

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final dos trabalhos de Lygia: Depois de dar aulas na Sorbonne, Lygia volta ao Brasil em 1976,

onde se dedica à sensibilização individual utilizando objetos relacionais em direto contato

corporal com os pacientes (entre 1977 e 1985). Esses objetos eram dos mais variados, de

sacos plásticos com ar à almofadas com areia, bolinhas de ping-pong colocadas em meias

femininas, algodão, pedras, e vários outros objetos. Lygia queria alcançar um processo

“artístico-terapêutico” que prescindisse da linguagem verbal e que se baseasse nos outros

sentidos (adição, tato, olfato e paladar). Ela explica este seu processo experimental:

“Há dois anos (desde 1977) venho fazendo experiências de utilização dos objetosrelacionais para fins terapêuticos. No início utilizava-os aplicando o método de Sapir1

pelo qual passara em Paris: relaxação baseada em indução verbal; uma sessão porsemana. Pouco a pouco abandonei a indução passando a utilizar unicamente meusmateriais, aumentando o número de sessões para três por semana com duração de umahora. O processo se torna terapêutico pela regularidade das sessões, que possibilita aelaboração progressiva da fantasmática provocada pelas potencialidades dos 'objetosrelacionais'.” (Lygia Clark, IN Fabbrini, 1994: p. 215)

A busca de uma terapia independente das possibilidades verbais e de uma desabituação de

todo o corpo sensório levou Lygia Clark a experimentar em seus pacientes uma sensibilização

mais pessoal e voltada para os problemas psicológicos singulares de cada um. Lygia, um

pouco antes à época de sua morte em 1988, ainda atendia seus “pacientes” em seu

apartamento de Copacabana, em sessões de completo silêncio, já que a fala era interdita em

suas sessões.

1 Edward Sapir (1884-1939), juntamente com Benjamin Lee Whorf (1897-1941), seu aluno, criaram a hipóteseconhecida como Sapir-Whorf hipótese, onde “...the language people speak determines the way they perceivethe world” e “Categories that may be very different include those of time, causation, and the self. It should benoted that some superficial examples of diversity that are frequently cited are in fact spurious. It is not true,for example, that Indo-Aleut languages have a vast number of words for different varieties of snow.”(Blackburn, 2006: p. 326-327)

Aqui o método de Sapir se refere a um método através da “palavra” como parte de um “sistema simbólicoprimário” do grupo, produto de um hábito social. “Enquanto que para Lygia, a memória do corpo é anterior àaquisição da palavra: a análise regressiva 'mostra que o ponto de partida de elaboração das estruturas'perceptivas elementares não é a linguagem verbal. A 'memória corporal' reúne as 'incrições primitivas' de um'corpo libidinal', 'sem imágens', que não podem ser traduzidas em estruturas verbais.” (IN Fabbrini, 1994:p.215)

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Page 83: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

7- Contatos entre Adélia Prado e Lygia Clark:

Neste momento da tese tentarei buscar os contatos entre as duas artistas, os pontos que as

iluminam quando são relacionadas. Parto da minha hipótese de que há um retorno do

existencialismo na década de 1970, o que se pode notar nas obras de Adélia Prado e Lygia

Clark executadas durante a mesma década.

Objetos Relacionais, 1977-1985.

Não podemos esquecer o momento sócio-cultural e político, brasileiro e no mundo, no final

da década de 1960 e começo da de 1970: a ditadura militar e sua forte censura sobre as

atividades culturais e os desaparecimentos de produtores de cultura e opositores ao regime, a

emergência do Tropicalismo como movimento contestador da identidade brasileira, e a

emergência da poesia marginal como forma de contestação das políticas culturais e do seu

protesto conta os modelos institucionalizados das editoras, são os fatores que, a meu ver,

marcaram a produção cultural da década de 1970 no Brasil. A nível mundial, os fracassos dos

movimentos de protestos da década de 1960 (Gorsen, 1984: p. 137) deixaram a dor do “não-

conseguir” viva, os regimes autoritários na América Latina, Asia, África e Europa ainda

persistiam, a crise do petróleo que levou os Estados Unidos à recessão, as guerras de

independências na África (ex: Angola, Moçambique, Guiné Bissau), a humilhação norte-

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Page 84: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

americana por perder a guerra do Vietnã, a volta a formas de espiritualidade oriental (ex:

hinduísmo e budismo), e a guerra fria, entre outros pontos, foram acontecimentos marcantes

dos anos 70. Esses e outros aspectos contribuiam para um certo “descontentamento” do

homem da década de 1970 e a um retorno ao existencialismo, onde o próprio homem se

contestava sobre como usou sua liberdade de escolha e o que saiu errado nesse processo.

Esses aspectos no campo da arte, principalmente das artes plásticas, levaram a uma produção

artística quase sempre individual. Talvez pelo malogro dos movimentos coletivos da década

de 1960, as pessoas ligadas à cultura começaram a produzir de maneira mais isolada e

individual. Uso aqui uma passagem de Sam Gathercole que revela esse sentimento de

individualismo da década de 1970:

“...the 1970s can be seen as being characterized by this shift from the 1960s notion ofcoordinated and organized collective groups, trusting ideologies and agitating forsocial change, to the subsequent decade's stress on localized points of protest, and thepower of individual act.” (Gathercole, 2006: p. 61).

Essa individualização da produção artística pode ser vista nas várias formas de performance

que tomam força na década de 1970. Também a desintegração dos grupos hippies norte-

americanos nesta mesma década prova esta desintegração do coletivo e um retorno à

individualização. Como os protestos dos grupos não levaram a nada factualmente forte na

década de 1960, a forma de protesto da década de 1970 se tornou mais individual.

Artistas internacionais que se tornaram famosos por seus trabalhos, tais como Robert

Smithson e Christo (artistas de land art, uma forma de arte que não pode ser apresentada em

uma galeria ou museu), Gordon Matta-Clark (artista que interferia em edifícios fazendo furos

e ligando o exterior ao interior), Richard Serra (escultor de folhas de ferro gigantes), Chris

Burden (performer), entre vários outros, mostram a preferência pela criação individual. O

mesmo acontece em outros países. No Brasil, a produção artística também é individual1 (ex:

Clark e Oiticica), porém destinada a uma ordem mais participativa em relação ao público.

Essas arte individual da década de 1970, principalmente do ponto de vista da performance, já1 A idéia que dá origem à criação da obra de Clark, Oiticica e Pape era um processo de pensar individual. As

proposições eram concebidas somente como idéias a serem concretizadas. A ação dos participantes dava vidaàs idéias (proposições). As proposições em ação demonstravam, então, a força potencial das idéiasindividuais desses artistas.

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Page 85: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

reconhecida como forma artística à esta altura, se coloca dentro do ponto de vista das coisas

do dia-a-dia. A importância do cotidiano, do individual e da vida humana de cada artista toma

forma em várias performances. Neste sentido, “a vida de todo dia” se liga à arte. Peter Gorsen

nos mostra este ponto:

“The basic idea of overstepping the mark is relating of art to the cohesion of life, tothe preexistence of art in empirical everyday terms, whose historical figure at anygiven time has produced totally opposite interpretations on the meaning and aim ofthis relating.” (Gorsen, 1984: p. 136)

E ainda, numa passagem que se mostra bastante significativa para a arte da performance:

“There is something striking about the unsymbolic reflection on one's owncorporeality and its nonverbal language, on the aesthetics of an unseeinglyunconditional 'naked existence' (Sartre), which shows similarities with the modern 'Iam in my body' tautology, and, in connection with this, the determined stand againstdeclarations that crop up to assert the claims of the scientific approach, of finality, andof exclusiveness.” (idem, p. 136-137)

Esta individualização e o pensamento em torno às ações do cotidiano e essa importância do

corpo (aqui com forte influência de Merleau-Ponty1) para a arte da performance podem ser

claramente vistos nas proposições de Lygia Clark. Porém, acredito que várias formas de arte

tenham incorporado essa visão vanguardista (de avant garde) em relação ao mundo. Assim

sendo, pode-se notar na poesia de Adélia Prado a predileção pelo cotidiano e suas memórias

relacionadas à ele. Essa predileção pelo cotidiano se opõe aos movimentos de grupo, ou seja,

o artista produz solitariamente e tem as pequenas coisas da vida como matéria de trabalho

individual, singular e pessoal. A visão existencialista se nota, assim, na vida de cada um, no

acontecimento do dia-a-dia, na tristeza, na angústia, na “dor” (para usar uma palavra muito

utilizada por Adélia Prado), no “choro” (também outra palavra muito usada por Adélia em

Bagagem) e nas pequenas alegrias de estar no mundo. Sam Gathercole nos fala sobre essa arte

baseada na experiência pessoal que toma significância coletiva:

“With the project of totalizing shown thus to be ultimately impossible, the artist-as-individual became an active purveyor of personal experience transformed into

1 As teorias da percepção de Merleau-Ponty abriram caminho para a exploração do corpo como objetosensorial. Isto se nota nas obras de arte participativa dos neoconcretos cariocas (ver Gullar, ManifestoNeoconcreto). As proposições de Clark, que chamo aquí de performances coincidem na utilização do corpocomo um dos pontos fundamentais para tal forma de arte (Goldberg, 1984: p.24).

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collective significance, and the artist's corollary, the viewer/interpreter, was shown tobe an active participant in an art work (image, object, performance, text, film, etc.)understood to be open and contingent, rather than constitutive.” (Gathercole, 2006:p.77)

É também na década de 1970 que a arte produzida por mulheres começa a ter mais projeção,

dando conta das visões femininas do mundo. Na poesia marginal, dentro do contexto

brasileiro, por exemplo, surgem mulheres escritoras de valor, como Ana Cristina César. É

nesta mesma década de 1970 que Adélia Prado lança seu primeiro livro (Bagagem) e Lygia

Clark ensina em Paris. Não nos esqueçamos aqui dessa mulher de Adélia, um “ser

desdobrável”, cheio de possibilidades.

E continuando sobre a produção das mulheres, Gathercole notou que as artes, vistas como

campo de saber geralmente masculino, foram criticadas pelas feministas na década de 1970,

principalmente nos Estados Unidos. Artistas que se posicionaram contra a exclusão das

mulheres no sistema mundial das artes foram: Linda Nochlin (historiadora da arte), Lucy

Lippard (escritora e curadora), Miriam Shapiro (pioneira da feminist art), Georgia O'Keeffe

(artista plástica), Ana Mendieta (performer), Carolee Schneemann (artista plastica), Martha

Rosler (performer), entre outras (Gathercole, 2006: p. 70-75).

Neste sentido, minha escolha de trabalhar com mulheres-artistas (Lygia Clark e Adélia Prado)

que fazem arte com o seu dia-a-dia, transformando as ações diárias em algo simbólico e quase

ritualístico, me leva a verificar “o existir no mundo” como matéria de criação artística. Essa

arte baseada em uma “certa desilusão” da década de 1970 (que acredito seja característica do

Zeitgeist1 da década citada), também vista na arte de performance, transformou o artista em

“contador das histórias de sua própria existência” como uma “amostra de vida” para outros

seres humanos. Uso duas passagens de Peter Gorsen que falam exatamente sobre isso:

“The living of life made stageable through performances is certainly not a naturalisticrepetition of everyday events but their symbolic interpretation.” (Gorsen, 1984: p.140).

E ainda:

1 É um termo em alemão, criado pelos escritores românticos da Alemanha, que define o espírito socio-político-cultural de uma determinada época (Definição minha).

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“The existentially experienced moment, and with it an 'emotional motif stemmingfrom one's own biography', which one 'would not like to allow to be engulfed', isdecisive.” (idem, p. 140)

Essa nova “estética da existência” (new aesthetics of existence), como chama Peter Gorsen a

produção dos anos 1970 voltada para a própria existência como material de produção

artístico, é a característica mais marcante do retorno do existencialismo nas artes da década de

1970. E essa “estética da existência” pode ser vista tanto na produção de Adélia Prado como

na produção de Lygia Clark. Porém, para verificar essa visão, trabalharei com a sinestesia

como formula cabal de existir no mundo, já que a experiência do existir se baseia

primariamente nos sentidos. E é esta “estética da existência” que os artistas da década de 1970

utilizaram bastante bem como mecanismo, trabalhando com um retorno ao corpo e aos

sentidos. O resgate do saber enquanto gerado através do corpo e “a percepção, compreendida

como acontecimento da existência” (Nóbrega, 2008) fazem da sinestesia uma modalidade de

análise privilegiada para esta tese e confirmam uma realidade vivida através dos sentidos, da

corporeidade.

Podemos notar a sinestesia nos seguintes versos de Adélia Prado do poema SENSORIAL:

1 Obturação, é da amarela que eu ponho.2 Pimenta e cravo,3 mastigo à boca nua e me regalo.4 Amor, tem que falar meu bem,5 me dar caixa de música de presente,6 conhecer vários tons pra uma palavra só.

A obturação (na boca, paladar) é amarela (visão). Pimenta e cravo são postas na comida pelo

aroma (olfato) e são mastigados (paladar). Amor, sentimento mais íntimo, tem que falar meu

bem, dar caixa de música e conhecer vários tons para uma palavra só (todas as imagens

ligadas à audição). Essa mescla de sentidos, sua linguagem corriqueira e de atos da vida real,

provam a existência da própria poeta como pessoa que sente e que se auto-referência. Aqui

não notamos as dores e angústias existencialistas, mas a cabal verdade do existir no mundo.

Outro exemplo de sinestesia na obra de Adélia Prado pode ser visto no poema BUCÓLICA

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Page 88: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

NOSTÁLGICA:

1 Ao entardecer no mato, a casa entre2 bananeiras, pés de manjericão e cravo-santo,3 aparece dourada. Dentro dela, agachados,4 na porta da rua, sentados no fogão, ou aí mesmo,5 rápidos como se fossem ao Êxodo, comem6 feijão com arroz, taioba, ora-pro-nobis,7 muitas vezes abóbora.8 Depois, café na canequinha e pito.9 O que um homem precisa pra falar,10 entre enxada e sono: Louvado seja Deus”

Esse poema mostra, também, as imagens que se referem aos vários sentidos, porém, descreve

uma cena exterior à poeta, vivida por outro, mostrando a existência camponesa do outro. Os

versos 1 ao 3 mostram imagens relacionadas à visão (entardecer, dourada) e olfato

(manjericão, cravo-santo) mescladas. Os versos 3 ao 5 mostram a maneira como estão

posicionados e o lugar onde estão. Os versos 5 ao 8 mostram a relação às comidas (paladar e

olfato). Os versos 9 e 10 estão mais ligados à religiosidade, ao ora et labora da mística

monástica e ao agradecimento a Deus.

Como podemos notar, a sinestesia é fator importante na composição dos poemas adelianos,

não somente nos poemas mais pessoais, mas, também, nos poemas onde outros seres humanos

são retratados. A sinestesia confirma aqui a adesão ao mundo da corporeidade, dos sentidos, e

da vivência diária das pessoas, de suas existências provincianas. A poeta percebe o mundo

que a cerca como uma experiência corporal, onde todos os sentidos funcionam juntos,

mostrando que a percepção sinestésica é uma regra do estar no mundo e de vivenciá-lo de

maneira completa. Margarida Salomão, no prefácio de Bagagem, fala desta “sina” de estar no

mundo dentro da obra de Adélia:

“...sina essencialmente corpórea, carnal: estar no mundo não implica recusá-lo – namelhor hipótese, esquivar-se dele; antes implica uma comunhão sensorial com ascoisas, aquela proporcionada pelas 'sensibilidades sem governo'.” (Salomão, INPrado, 1976/1979: p.9).

Buscando a sinestesia na obra de Lygia Clark, podemos achá-la na proposição O Eu e o Tu. O

toque cego dos participantes; as máscaras que não permitem a visão fazendo com que os

participantes “vejam pelo toque”, se busquem sem olhar; os tubos que os ligam

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Page 89: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

simbolicamente de ar e de sentimentos; os zíperes que se abrem para a descoberta do tato,

todos esses aspectos têm profundo caráter sinestésico. Não se utiliza somente um sentido

nessa descoberta do outro, mas quase todos (a parte do da visão) ao mesmo tempo.

Outro exemplo de sinestesia na obra de Lygia Clark que pode ser analisado é a instalação A

Casa é o Corpo: Labirinto, onde Clark tenta “refazer” o ambiente de sensações do processo

de penetração, ovulação, germinação e expulsão de uma nova vida humana. A experiência de

todo esse processo depende, basicamente, dos cinco sentidos. Na descrição já dada sobre a

instalação, a artista usa termos como “pisa” (tato), “no escuro” (visão, ou ausência de visão),

“apalpa” e “tato”, “ver e ser visto” (visão), “bolinhas macias de vinil” (tato), “floresta de

pêlos” (tato), “massa peluda, de contextura diferentes” (tato), e “espelho” (visão). Essa

mescla de objetos sensoriais que privilegiam o tato, fazem da proposição um labirinto

sensorial, sinestésico e do corpo em movimento. A obra se coloca no plano das possibilidades

de experiências do sensível. Utilizo aqui uma passagem de Terezinha Petrucia da Nóbrega

falando da análise que faz Merleau-Ponty sobre a obra de Cezanne e que pode se encaixar no

contexto da instalação de Lygia Clark:

“...a experiência da obra de arte em geral produz significações mais amplas que adefinem como um poema, um romance ou uma pintura. A obra de arte também seconstitui como um suplemento de sentido, formulado a partir da experiência vivida, eé essa modulação existencial que torna a narrativa ou quadro significativo para nós.”(Nóbrega, 2008).

Esta mesma proposição de Clark tenta trabalhar de maneira regressiva, buscando reconhecer

sensações pelas quais passamos no processo de vir a este mundo. Essa comunicação entre os

sentidos faz com que a obra crie significações importantes para os participantes. Uma dessas

significações é a busca das memórias para relacioná-las com o presente. E isto é exatamente o

que a instalação A Casa é o Corpo: Labirinto se predispõe a fazer: dar-nos material de nossa

memória do passado para trabalhar com o presente, com o material experiencial vivido

durante a participação, que é um material de conhecimento a partir do corporal. Este

conhecimento vivido pelo próprio corpo se torna conhecimento pessoal, de auto referência,

que ajuda o indivíduo a localizar-se no mundo, a o ajuda a pensar sobre sua própria

existência. Utilizando Sartre, podemos concordar que:

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Page 90: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

“...life has no meaning a priori. Life itself is nothing until it is lived, it is we who giveit meaning, and value if nothing more than the meaning that we give it.” (Sartre,1947/2007: p. 51)

E dar meaning é significar as experiências vividas. E é exatamente neste sentido que as duas

artistas trabalham, dando significação aos atos vividos, à cada utilização dos sentidos. E

continuando no mesmo caminho de descobertas sensoriais, podemos ver que a proposição

Baba Antropofágica de Lygia Clark, também trabalha no sentido de dar significação, ou

melhor de “re-significar” as experiências vividas. E é na memória, nosso “arquivo” de

experiências vividas, que vamos buscar os materiais para serem reorganizados.

Em Baba Antropofágica a intenção é reestruturar, reorganizar e reinventar partindo do

material existencial pessoal dado por nossa memória. É no comer (paladar) simbólicamente o

outro e devolvê-lo ao mundo como “produto mesclado-a-mim” que a proposição acha seu

lugar como experiência válida. O ritual imemorável da antropofagia nos remete às nossas

próprias memórias. Coisas que experienciamos no passado e que voltamos a experienciar, o

que nos ajuda em nosso próprio auto-reconhecimento enquanto pessoa no mundo de nossa

subjetividade. Já que “...man is nothing other than what he makes of himself” (Sartre,

1947/2007: p. 22), e suas experiências guardadas na memória são parte constitutiva dele.

Gostaria de utilizar aqui uma passagem de Terezinha Petrucia da Nóbrega sobre a auto-

referencialidade, o reconhecer-se a sí mesmo através de suas experiências, de suas memórias:

“A auto-referencialidade favorece a autonomia do sistema vivo, pois rompe com odeterminismo do meio ambiente, gerando outro tipo de relação: uma relação recursivaque garante a dinâmica das interações entre o todo e as partes, gerandoautonomia”.(Nóbrega, 2008).

E é nessa mesma linha de auto-reconhecimento e nesse “controle” sobre nossas próprias

decisões que podemos ler na poesia de Adélia Prado as frases pronunciadas por suas pessoas

mais amadas e por pessoas que a marcaram, escolha da poeta de utilizar suas memórias como

matéria poética. Essas frases constituem a memória da poeta, um traço marcado em sua

personalidade, uma parte fundamental de quem ela é enquanto pessoa no mundo. É a fala um

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Page 91: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

dia proferida e relembrada, parte fundamental de sua poesia, que lemos em seus poemas. Um

exemplo disto pode ser visto nos poema METAMORFOSE:

1 “Foi assim que meu pai me disse uma vez:2 você anda feito cavalo velho, procurando grota.”

3 As cigarras atrelavam as patas nos troncos4 e zuniam com decisão os seus chiados.5 As árvores cantavam no quintal,6 refolhadas de novíssimo verde.7 Arregacei as narinas e fui pastar8 com minha cabeça minúscula.9 O que mais quente e amarelo pode ser,10 era o sol, um dia de pura luz.11 Mugi entre as vacas, antidiluviana,12 sei de moitas, água que achei e bebi.13 Na volta sacudi pescoço e rabo.14 Só dois sinais restaram:15 Um modo guloso de cheirar os verdes;16 um modo de pisar, só casco e pedras.

Neste poema, o auto-reconhecimento e o auto-conhecimento se dão a começar pela memória

da fala do ente amado nos versos 1 e 2. O poema se desenvolve a partir de um dado da

memória da poeta. Os versos 3 ao 10 descrevem a natureza e seus aspectos sensoriais de

visão, olfato, paladar, tato, audição e visão. Nos versos 11 ao 14 ela se compara a um cavalo

velho, como que concordando com o pai e se auto-reconhecendo em alguns aspectos. Os

versos 14 ao 16 remetem à memória e ao que ela é hoje. Ou seja, o poema é construído a

partir da memória da fala do pai em sentido jocoso. A poeta se autoreconhece em alguns

aspectos, como no modo guloso de cheirar os verdes (notemos a forte imagem sinestésica de

paladar, olfato e visão) e no modo de pisar (tato). É através da memória, através da fala dos

entes queridos e das pessoas marcantes em sua vida, que Adélia se coloca no mundo, se auto-

referenciando, mostrando sua maneira individual de existir.

Analisando as obras das duas artistas dentro de alguns aspectos mais existencialistas

sartrianos, podemos notar uma certa “angústia”1 pelo estar no mundo. Utilizo passagens de

Sartre onde ele explica essa forma de angústia e outros aspectos da teoria existencialista para

começar a análise mais dentro deste campo:

1 A agústia foi, também, um dos conceitos fundamentais da filosofia de Heidegger (1889-1976).

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Page 92: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

“Existentialists like to say that man is in anguish. This is what they mean: a man whocommits himself, and who realizes that he is not only the individual that he chooses tobe, but also a legislator choosing at the same time what humanity as a whole shouldbe, cannot help but be aware of his own full and profound responsability. True, manypeople do not appear especially anguished, but we maintain that they are merelyhiding their anguish or trying not to face it.” (Sartre, 1947/2007: p. 27)

E ainda:

“...man is therefore without any support or help, condemned at all times to inventman1.” (idem, p. 29)

E sobre o “abandono”, “desespero” e ação existencialistas, Sartre nos diz:

“This is what 'abandonment' implies: it is we, ourselves, who decide who we are to be.Such abandonment entails anguish. As for 'dispair', it has a very simple meaning. Itmeans that we must limit ourselves to reckoning only those things that depend on ourwill, or on the set of probabilities that enable action2. Whenever we desire something,there are always elements of probability.” (idem, p. 34)

Ainda:

“I operate within a realm of possibilities. But we credit such possibilities only to thestrict extend that our action encompasses them. From the moment that the possibilitiesI am considering cease to be rigorously engaged by my action, I must no longer takeinterest in them...” (idem, p. 35)

Assim, a memória adeliana, usada diretamente em sua poesia, faz parte desta “angústia”

existencialista, uma angústia do existir no mundo e responsabilizar-se por seus atos. A

angústia relacionada à memória, transformada em tristeza de que tudo é transitório, de tudo

que passa, fato verídico do existir em relação ao tempo, é, no final, matéria que se transforma

em poesia adeliana. Essa memória triste adeliana, recontada na poesia, recolocada na vida

através das palavras, vive dentro do poema. Isso pode ser visto no poema ATÁVICA:

1 Minha mãe me dava o peito e eu escutava, 2 o ouvido colado à fonte dos seus suspiros:3 “Ó meu Deus, meu Jesus, misericórdia.”4 Comia leite e culpa de estar alegre quando fico.5 Se ficasse na roça ia ser carpideira, puxadeira de terço,6 cantadeira, o que na vida é beleza sem esfuziamentos,7 as tristezas maravilhosas.8 Mas eu vim pra cidade fazer versos tão tristes9 que dão gosto, meu Jesus misericórdia.10 Por prazer da tristeza eu vivo alegre.

1 Já que o homem é liberdade.2 Não há nada mais clarkiano que suas proposições, que são concebidas exatamente como um “set of

probabilities that enable action”.

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Page 93: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

Podemos nitidamente verificar a ação da memória triste na poesia de Adélia. Os versos 1 ao 4

remetem ao tempo em que era amamentada por sua mãe e recebia dela o leite e as culpas; os

versos 5 ao 7 demonstram a escolha por vocações tristes, que lidam com a angústia, as ofícios

tristes da vida do interior; os versos 8 ao 10 falam de sua vocação de ser poeta, de uma

tristeza alegre e de uma alegria triste. Ou seja, tristeza e alegria andam juntas, vivem juntas.

Nesse poema há uma angústia do existir no mundo (versos 5 ao 10), uma angústia em

escolher entre ser carpideira ou poeta, e uma apreciação pelas “tristezas maravilhosas” como

material de trabalho poético.

Adélia mostra, também, que os vários estereótipos sobre a mulher participam do mesmo

mecanismo tropicalista da antropofagia. Ela potencializa a antropofágica no momento em que

joga com os estereótipos acerca da mulher interiorana, como o faz no poema COM LICENÇA

POÉTICA: “Não sou tão feia que não possa casar, / acho o Rio de Janeiro uma beleza e /

ora sim, ora não, creio em parto sem dor”. Ou seja, os estereótipos nestes versos são: “mulher

feia não casa” e que “parto não dói”. Já na obra de Clark vimos que a antropofagia é usada

como mecanismo de conhecimento do outro, de devorar para conhecer, para “ser-parte-de”,

onde os participantes devoram as frutas que estão dentro da roupa da pessoa (da vítima) que

está deitada.

Não podemos nos esquecer de Lygia Clark e suas proposições, onde os espectadores

livremente participavam, como em suas “aulas” na Sorbonne, e praticavam o próprio

“exercício experimental da liberdade na vida”. Nessas proposições os alunos-participantes

eram convidados a juntar-se em um grupo, onde todos participavam de uma “poética

existencial”, reconhecendo seus sentidos e seus corpos e experimentando sensações e

memórias as mais variadas. São nas proposições de Lygia, tais como A Casa é o Corpo:

Labirinto, que o próprio ato (neste caso o ato da criação da vida humana) passa a ser

analisado, buscando experiências arcaicas que deixaram marcas no corpo do participante. As

proposições de Clark deste período passam a oferecer “condições para revivências

psicossensoriais” (Milliet, 1992: p. 114), tratando de buscar nas memórias sensoriais do corpo

o objeto de sua análise. Há, também, nessa poética do corpo clarkiana uma certa tristeza

alegre ou alegria triste, há algo de intraduzível na busca pela auto-referência que reinforça a

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Page 94: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

existência dos participantes.

A ação na obra de Lygia Clark é a ação vivenciada, o ato está em experimentar, em viver de

novo, em re-viver as sensações passadas dentro desta “nostalgia do corpo” e, daí, passar a

uma análise mais consciente de todas essas memórias “marcadas” no corpo. O participante

deve agir, pois sem a ação do participante as proposições se tornam idéias vazias e sem

sentido de ser. É no espaço da liberdade que o participante trabalha experimentando, em suas

próprias escolhas ao participar, em deixar-se tocar pelo outro, em tocar o outro, enfim, em

escolher conscientemente o que deseja. Neste sentido, as proposições de Lygia são

proposições existencialistas, onde a liberdade de escolha implica na angústia de possibilidades

que se abrem aos participantes de suas proposições. Tomam parte das proposições os que

querem participar. A obra de arte consiste, então, no ato de fazer a obra, de participar

ativamente e com toda a liberdade de ação e de escolhas.

Uma proposição que pode demonstrar bem essa livre escolha de participação e essa angústia

de escolher vista pelos existencialistas é a proposição Túnel, de 1973. Nesse trabalho

realizado na Sorbonne, Lygia cria um túnel de tecido onde os participantes podem passar.

Lygia descreve a proposição desta forma:

“Este trabalho consiste em um túnel de pano de 50 metros de extensão. Entrando pelotúnel, as pessoas muitas vezes se sentem sufocadas. Então eu abro frestas no pano...aspessoas 'nascem' através desses buracos.” (Lygia Clark, IN Milliet, 1992: p.140).

Podemos notar que o participante, escolhendo entrar neste túnel (que pode ser comparado à

nossa vida), algumas vezes se angustia e se sufoca. É neste momento em que Lygia “liberta” o

participante de seus medos e o deixa ver “o lado de fora” do túnel (que pode ser a vida e

angústias das outras pessoas que “sofrem” como o participante), acalmando, assim, o

participante, fazendo-o “nascer” para novas experiências. As preposições de Lygia são

sempre baseadas na vida, na existência do homem no mundo, nos medos, angústias e

desesperos do estar vivo e na ação transformadora, livre e que liberta. Neste sentido, as

preposições de Lygia Clark são extremamente existencialistas.

Outra proposição que deveríamos analisar pelo seu caráter coletivo é a proposição Rede de

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Elásticos, de 1974, onde os participantes tecem uma rede de elástico e a utilizam como um

“abrigo poético” de encontro. A rede, depois de tecida, é utilizada pelos participante que se

colocam, alguns deles, debaixo dela, enquanto outros a manipulam. Nada mais coletivo que

esta preposição. Aqui o contato corporal e a responsabilidade das ações do indivíduo em

relação ao outro é bastante visível. Os participantes tecem, juntos, a rede; outros a manipulam,

enquanto uns outros se colocam sob ela. A liberdade de movimentos corporais e de escolhas

dentro desta proposição se opõem a qualquer tipo de repressão sensorial, provando que é no

ato de existir e experimentar consciente e livremente que a vida humana se baseia.

Podemos notar que é através da sinestesia que as duas artistas trabalham a questão da

corporeidade das sensações, do real, da vida enquanto existência vivida através do corpo, e o

corpo como objeto receptor de sensações e emoções. As duas trabalham vastamente o uso dos

sentidos, Adélia em suas poesias e Lygia em suas proposições, e, sendo os sentidos nosso

primeiro canal de contato com o mundo em que vivemos, é através deles que percebemos na

obra das duas artistas a força do real.

Também, as obras das duas se tocam nos vários pontos existencialistas descritos. A noção da

liberdade de escolhas que angustiava o homem da década de 1970 se nota nas proposições de

Lygia Clark e nos poemas de Adélia Prado. Há uma tristeza no ar, uma busca pela felicidade

perdida, uma busca que começa pelo real, pelo estar no mundo, pelo sensorial (com o uso da

sinestisia), pela existência de cada e todo homem. Há um certo descontentamento existencial

que pode ser notado na obra das duas artistas, que, ao meu ver, buscam soluções para o existir

no mundo. Adélia através de sua poesia cotidiana, de sua alegria triste ou tristeza alegre, e dos

detalhes do dia-a-dia que nos passam desapercebidos. Adélia mostra que cada pequeno

detalhe faz parte de nossa existência. Lygia através de suas proposições que incorporam a

liberdade de ação, a busca por uma pessoa existindo de uma maneira mais consciente de suas

“marcas corporais”, de seus medos e suas ações no coletivo. Lygia mostra que a liberdade de

ação é o princípio fundante de estar no mundo.

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8- Conclusão:

Termino esta tese com um poema de Adélia chamado MOMENTO, onde o corpo é valorizado

enquanto objeto de expressividade e a onde ela nos convida a “ser”, a existir no mundo com

todas nossas potencialidades:

Enquanto eu fiquei alegre, permaneceramum bule com um descascado no bico,uma garrafa de pimenta pelo meio,um latido e um céu limpíssimocom recém-feitas estrelas.Resistiram nos seus lugares, em seus ofícios,constituindo o mundo pra mim, anteparopara o que foi um acontecimento:súbito é bom ter um corpo pra rire sacudir a cabeça. A vida é mais tempoalegre do que triste. Melhor é ser.

Notamos que as duas artistas “compactuaram” com o retorno do existencialismo nas

produções da década de 1970, com as mesmas buscas do humanismo existencialista,

ensinando que é através da nossa própria existência que podemos significar algo, que

podemos tentar mudar a nós mesmos através de nossas próprias ações. E nossa existência

começa por nossa percepção do mundo, ou seja, através de nossos sentidos.

As proposições de Clark, que podem ser vistas como experiências radicais criadas para

expandir a noção do objeto de arte para a “potencialidade da ação” e acabar com a

passividade do espectador, acabam por inserir a vida do espectador-participante na obra, sua

existência enquanto ser humano no mundo. Também, é a completa liberdade de ação dos

participantes das proposições de Clark, a importância do agir, o uso da vontade de escolha e a

relevância da vida do participante na proposição que caracterizam as obras de Lygia como

existencialistas.

As poesias de Bagagem, por sua vez, mostram o tom existencialista no simples ato de estar no

mundo e vivenciá-lo nos menores detalhes. Cada detalhe tomando relevância de grande ato. E

é no ato, na ação, no agir, que o existencialismo tem sua base. O agir consciente como

fundante do ser humano, já que é o próprio homem quem define sua essência através de sua

existência. O homem que, com liberdade age, já que “freedom [is] the foundation of all

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values” (Sartre, 1947/2007: p.48), define-se em sua existência. E é o que faz Adélia quando

escreve, define sua existência nas mínimas coisas da vida. Ela agrega um valor existencial aos

objetos e momentos mais ínfimos.

A riqueza da obra dessas duas artistas, que produziram num mesmo período histórico, se

mostra forte no caráter vivencial, das experiências no mundo. Tudo é sensação a ser

“provada”, enfim, vivida. Nada deve escapar aos detalhes da percepção atenta. Mesmo a

“ironia” que faz pensar de Adélia e a maneira “lúdica” de fazer arte de Lygia se mostram

produtivas nas obras destas artistas. Nada passa despercebido do olhar atento das duas. As

pequenas coisas e sensações da vida se notam por toda parte. Como nota Adélia: “um bule

com um descascado no bico, / uma garrafa de pimenta pelo meio, / um latido e um céu

limpíssimo / com recém-feitas estrelas”. Os materiais poéticos de Adélia e Lygia são, então,

suas (e nossas) próprias vidas, seus detalhes, gestos e memórias, materiais pessoais e

cotidianos do existir no mundo.

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Page 98: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

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Page 103: A arte vivencial de Adélia Prado e Lygia Clark em contato

10- Anexos:

10.1 Anexo 1:

A procura da poesia

Carlos Drummond de Andrade

Não faças versos sobre acontecimentos.Não há criação nem morte perante a poesia.Diante dela, a vida é um sol estático,não aquece nem ilumina.As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.Não faças poesia com o corpo,esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escurosão indiferentes.Não me reveles teus sentimentos,que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem.O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linhade espuma.

O canto não é a naturezanem os homens em sociedade.Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.A poesia (não tires poesia das coisas)elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,não indagues. Não percas tempo em mentir.Não te aborreças.Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de famíliadesaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhastua sepultada e merencória infância.Não osciles entre o espelho e a

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memória em dissipação.Que se dissipou, não era poesia.Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.Lá estão os poemas que esperam ser escritos.Estão paralisados, mas não há desespero,há calma e frescura na superfície intata.Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Convive com teus poemas, antes de escrevê-los. Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.Espera que cada um se realize e consumecom seu poder de palavrae seu poder de silêncio.Não forces o poema a desprender-se do limbo.Não colhas no chão o poema que se perdeu.Não adules o poema. Aceita-ocomo ele aceitará sua forma definitiva e concentradano espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.Cada umatem mil faces secretas sob a face neutrae te pergunta, sem interesse pela resposta,pobre ou terrível que lhe deres:Trouxeste a chave?

Repara:ermas de melodia e conceito elas se refugiaram na noite, as palavras.Ainda úmidas e impregnadas de sono,rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

******************

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10.2 Anexo 2:

Vistas do feto no útero, Leonardo da Vinci, cerca de 1510.

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10.3 Anexo 3:

"hon-en katedral" ("ela-a catedral"), Niki de Saint-Phalle, 1966.

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10.4 Anexo 4:

Manifesto Antropofágico.

Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.

Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. Detodas as religiões. De todos os tratados de paz.

Tupi, or not tupi that is the question.

Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.

Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.

Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama. Freud acabou com oenigma mulher e com outros sustos da psicologia impressa.

O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. Areação contra o homem vestido. O cinema americano informará.

Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade,pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes. No país da cobra grande.

Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que eraurbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil.

Uma consciência participante, uma rítmica religiosa.

Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida. E a mentalidadepré-lógica para o Sr. Lévy-Bruhl estudar.

Queremos a Revolução Caraiba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltaseficazes na direção do homem. Sem n6s a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitosdo homem.

A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls.

Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Ori Villegaignon print terre. Montaig-ne. O homem natural.Rousseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução Bolchevista, à Revolução Surrealistae ao bárbaro tecnizado de Keyserling. Caminhamos..

Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer naBahia. Ou em Belém do Pará.

Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós.

Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei-analfabetodissera-lhe : ponha isso no papel mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcarbrasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia.

O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vacinaantropofágica. Para o equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as inquisições exteriores.

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Só podemos atender ao mundo orecular.

Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da Magia. Antropofagia. Atransformação permanente do Tabu em totem.

Contra o mundo reversível e as idéias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que édinâmico. O indivíduo vitima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E oesquecimento das conquistas interiores.

Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.

O instinto Caraíba.

Morte e vida das hipóteses. Da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos parte do eu.Subsistência. Conhecimento. Antropofagia.

Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo.

Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo dePitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses.

Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro.

Catiti Catiti Imara Notiá Notiá Imara Ipeju

A magia e a vida. Tínhamos a relação e a distribuição dos bens físicos, dos bens morais, dos bensdignários. E sabíamos transpor o mistério e a morte com o auxílio de algumas formas gramaticais.

Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício dapossibilidade. Esse homem chamava-se Galli Mathias. Comi-o.

Só não há determinismo onde há mistério. Mas que temos nós com isso?

Contra as histórias do homem que começam no Cabo Finisterra. O mundo não datado. Não rubricado.Sem Napoleão. Sem César.

A fixação do progresso por meio de catálogos e aparelhos de televisão. Só a maquinaria. E ostransfusores de sangue.

Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas.

Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um antropófago, o Visconde deCairu: – É mentira muitas vezes repetida.

Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo,porque somos fortes e vingativos como o Jabuti.

Se Deus é a consciênda do Universo Incriado, Guaraci é a mãe dos viventes. Jaci é a mãe dos vegetais.

Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação. Tínhamos Política que é a ciência dadistribuição. E um sistema social-planetário.

As migrações. A fuga dos estados tediosos. Contra as escleroses urbanas. Contra os Conservatórios e otédio especulativo.

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De William James e Voronoff. A transfiguração do Tabu em totem. Antropofagia.

O pater famílias e a criação da Moral da Cegonha: Ignorância real das coisas+ fala de imaginação +sentimento de autoridade ante a prole curiosa.

É preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à idéia de Deus. Mas a caraíba não precisava.Porque tinha Guaraci.

O objetivo criado reage com os Anjos da Queda. Depois Moisés divaga. Que temos nós com isso?

Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.

Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D.Antônio de Mariz.

A alegria é a prova dos nove.

No matriarcado de Pindorama.

Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada.

Somos concretistas. As idéias tomam conta, reagem, queimam gente nas praças públicas. Suprimarnosas idéias e as outras paralisias. Pelos roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nasestrelas.

Contra Goethe, a mãe dos Gracos, e a Corte de D. João VI.

A alegria é a prova dos nove.

A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura – ilustrada pela contradição permanente dohomem e o seu Tabu. O amor cotidiano e o modusvivendi capitalista. Antropofagia. Absorção doinimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. Porém, só aspuras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida eevita todos os males identificados por Freud, males catequistas. O que se dá não é uma sublimação doinstinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e criaa amizade. Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos aoaviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo – a inveja, a usura, a calúnia,o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo.Antropófagos.

Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do céu, na terra de Iracema, – o patriarca João Ramalhofundador de São Paulo.

A nossa independência ainda não foi proclamada. Frase típica de D. João VI: – Meu filho, põe essacoroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça! Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar oespírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte.

Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, semloucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama.

OSWALD DE ANDRADE. Em Piratininga Ano 374 da Deglutição doBispo Sardinha." (Revista de Antropofagia, Ano 1, No. 1, maio de 1928.)

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