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LITERATURA COMPARADA III O Teatro de Língua Portuguesa Inara de Oliveira Rodrigues Letras Vernáculas . Módulo 5 . Volume 4 Ilhéus, 2013

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LITERATURA COMPARADA IIIO Teatro de Língua Portuguesa

Inara de Oliveira Rodrigues

Letras Vernáculas . Módulo 5 . Volume 4

Ilhéus, 2013

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Universidade Estadual de Santa Cruz

ReitoraProfª. Adélia Maria Carvalho de Melo Pinheiro

Vice-reitorProf. Evandro Sena Freire

Pró-reitor de GraduaçãoProf. Elias Lins Guimarães

Diretor do Departamento de Letras e ArtesProf. Samuel Leandro Oliveira de Mattos

Ministério daEducação

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Ficha Catalográfica

1ª edição | Agosto de 2013 | 462 exemplaresCopyright by EAD-UAB/UESC

Projeto Gráfico e DiagramaçãoJamile A. de M. C. OckéSheylla Tomaz Silva

CapaSheylla Tomaz Silva

Impressão e acabamentoJM Gráfica e Editora

Todos os direitos reservados à EAD-UAB/UESCObra desenvolvida para os cursos de Educação a Distância da Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC (Ilhéus-BA)

Campus Soane Nazaré de Andrade - Rodovia Ilhéus-Itabuna, Km 16 - CEP: 45662-000 - Ilhéus-Bahia.www.nead.uesc.br | [email protected] | (73) 3680.5458

Letras Vernáculas | Módulo 5 | Volume 4 - Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

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EAD . UAB|UESCCoordenação UAB – UESC

Profª. Drª. Maridalva de Souza Penteado

Coordenação Adjunta UAB – UESCProfª. Drª. Marta Magda Dornelles

Coordenação do Curso de Licenciatura em Letras Vernáculas (EAD)

Profª. Ma. Ângela Van Erven Cabala

Elaboração de ConteúdoProfª. Drª. Inara de Oliveira Rodrigues

Instrucional DesignProfª. Ma. Marileide dos Santos de Oliveira

Profª. Ma. Cibele Cristina Barbosa CostaProfª. Drª. Cláudia Celeste Lima Costa Menezes

RevisãoProf. Me. Roberto Santos de Carvalho

Coordenação de DesignMe. Saul Edgardo Mendez Sanchez Filho

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SUMÁRIO

AULA 1 COMPONDO FIOS PARA A LEITURA DE TEXTOS DRAMÁTICOS ........ 13 1 INTRODUÇÃO ................................................................................. 15 2 A ESPECIFIDADE DOS TEXTOS LITERÁRIOS DRAMÁTICOS .................. 15

2.1 Perspectiva histórica da literatura dramática ............................... 162.2 Para a leitura de textos literários dramáticos ............................... 42

ATIVIDADES ..................................................................................... 46 RESUMINDO ..................................................................................... 48 REFERÊNCIAS .................................................................................. 49

AULA 2 NO COMEÇO ERAM OS AUTOS... E ELES CONTINUAM EM CENA ........ 51 1 INTRODUÇÃO ................................................................................. 53 2 O TEATRO DE gIL VICENTE: TRADIÇõES E LEgADOS .......................... 54 3 DE AUTOS E OUTROS ATOS NA CENA BRASILEIRA ............................. 67

3.1 O Auto de Natal Pernambucano: a esperança na vida severina ...... 69 ATIVIDADES ..................................................................................... 79 RESUMINDO ..................................................................................... 81 REFERÊNCIAS ................................................................................... 81

AULA 3 O RISO SÉRIO DAS COMÉDIAS E SEUS DESDOBRAMENTOS ............ 83 1 INTRODUÇÃO ................................................................................. 85 2 A COMéDIA NO CLASSICISMO PORTUgUÊS ........................................ 85

2.1 O Renascimento Português e a Comédia de Sá de Mirandae de Camões ................................................................................ 862.2 As comédias de António José da Silva, O Judeu ........................... 93

3 A COMéDIA BRASILEIRA DO SéCULO XIX .......................................... 963.1 A crítica de costumes de Martins Pena e de Artur de Azevedo ........ 96

ATIVIDADES ..................................................................................... 102 RESUMINDO ..................................................................................... 103 REFERÊNCIAS ................................................................................... 104

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AULA 4 DE QUE PRANTO VIVEM OS DRAMAS NO SÉCULO XIX ..................... 107 1 INTRODUÇÃO ................................................................................. 109 2 OS NOVOS OLHARES ROMÂNTICOS .................................................. 110

2.1 Elementos da tragédia em Frei Luís de Souza .............................. 1102.2 Dramas românticos de gonçalves Dias e José de Alencar .............. 116

3 OS CHOQUES E ANTIDRAMAS DO MODERNISMO ................................ 1243.4 O Modernismo dramático de Fernando Pessoa ............................. 1243.5 Literatura dramática no Modernismo brasileiro ............................ 143

ATIVIDADES ..................................................................................... 151 RESUMINDO ..................................................................................... 154 REFERÊNCIAS ................................................................................... 155

AULA 5 O PALCO DA SOCIEDADE EM CRISE ................................................ 159 1 INTRODUÇÃO ................................................................................. 161 2 O TEXTO DRAMÁTICO NOS ANOS 1940/1950 ..................................... 162

2.1 Do Neorrealismo ao épico em Portugal ....................................... 1622.2 O engajamento na dramaturgia brasileira ................................... 1682.2.1 Sobre promessas de vida e histórias de morte:Santareno e Dias gomes ............................................................... 172

ATIVIDADES ..................................................................................... 185 RESUMINDO ..................................................................................... 186 REFERÊNCIAS ................................................................................... 187

AULA 6 CENÁRIOS CONTEMPORÂNEOS ....................................................... 189 1 INTRODUÇÃO ................................................................................. 191 2 A LITERATURA DRAMÁTICA BRASILEIRA NA ATUALIDADE ................... 192 3 PANORAMA DA ATUAL LITERATURA DRAMÁTICA PORTUgUESA .............. 197 4 A LITERATURA DRAMÁTICA NOS PAÍSES AFRICANOS .......................... 204 ATIVIDADES ..................................................................................... 216 RESUMINDO ..................................................................................... 218 REFERÊNCIAS ................................................................................... 219

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APRESENTAÇÃO DA DISCIPLINA

Além de gêneros do modo narrativo, como os romances, os contos, as novelas, e do modo lírico, com seus sonetos, canções, cantigas, para citarmos alguns, a literatura também se compõe de tragédias, comédias, dramas, autos, e outros gêneros do modo dramático. Nesta disciplina, vamos estudar as principais especificidades desses últimos textos que se correspondem muito diretamente com a arte teatral, visando ao reconhecimento de importantes obras literárias dramáticas em língua portuguesa. Essa seleção foi organizada a partir de uma linha diacrônica (sequencial), que permite a compreensão da historicidade dos textos, em um eixo sincrônico (simultâneo) de abordagem por temáticas afins. Desse modo, nosso estudo possibilitará um diálogo dinâmico entre passado e presente, sempre tendo por horizonte as incontornáveis relações da arte literária com a história, assim como um diálogo dos textos selecionados entre si, permitindo a riqueza dos diferentes contornos da intertextualidade. Fazemos, entretanto, uma importante observação: como em todo processo seletivo, há sempre certa dose de subjetividade daquele que escolhe, considerando-se a infinidade de textos disponíveis para este estudo. Fica, portanto, a certeza de que esta é apenas uma porta de entrada para muitas outras desse universo tão vasto e instigante dos textos dramáticos escritos em nossa língua, com seus diferentes falares e olhares sobre o mundo, sobre a arte e sobre nós mesmos.

Boas leituras e ótimo estudo!

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A AUTORA

Profª. Dra. Inara de Oliveira Rodrigues

Inara de Oliveira Rodrigues possui graduação em História

pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1987), mestrado em

Letras (Teoria da Literatura) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio

Grande do Sul (1996) e doutorado em Letras (Teoria da Literatura) pela

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2000). Atualmente

é professora do Curso de Letras e do PPGL Mestrado em Linguagens e

Representações da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC - Ilhéus-

BA). Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Outras Literaturas

Vernáculas, atuando principalmente nos seguintes temas: Literatura e

História, Literatura Portuguesa, Identidade, Literatura Brasileira, Leitura.

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DISCIPLINA

LITERATURA COMPARADA III: o teatro de língua portuguesa

EMENTA

Profª. Drª. Inara de Oliveira Rodrigues

Análise comparativa de textos dramáticos paradigmáticos das literaturas de Língua Portuguesa.

CARGA HORáRIA: 45 horas

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COMPONDO FIOS PARA A LEITURA DE TEXTOS

DRAMÁTICOS

Objetivo:• Compreender os principais aspectos que caracterizam

os textos dramáticos e reconhecer os principais aspectos da literatura dramática do mundo ocidental, a partir do estabelecimento de um repertório básico de elementos para a análise das obras literárias dramáticas.

1aula

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1 INTRODUÇÃO

Quais são as principais características dos textos dramáticos? Ou, de outro modo, o que diferencia os textos dramáticos de outros textos literários? Essas questões se-rão respondidas a seguir, somando-se a elas uma perspecti-va histórica sintética sobre o desenvolvimento da literatura dramática no Ocidente, numa tradição que vai dos gregos aos nossos contemporâneos. A partir desse conhecimen-to de base, vamos ainda nos orientar por certos elementos fundamentais que permitirão a análise das obras literárias dramáticas.

2 A ESPECIFIDADE DOS TEXTOS LITERÁRIOS DRAMÁTICOS

Para nos situarmos no amplo universo da literatu-ra dramática, vamos, inicialmente, reconhecer os primeiros passos do teatro ocidental e seus desdobramentos principais até a contemporaneidade. Nessa trajetória, revisitaremos os aspectos essenciais da Poética, de Aristóteles, pois esse foi o texto que fundamentou as características de dois gêneros de grande importância na constituição da dramaturgia ociden-tal: a tragédia e a comédia. A partir desses marcos, vamos nos deter em alguns elementos de análise para o estudo de obras literárias dramáticas.

TEXTO: vem do la-tim texere (construir, tecer), cujo particípio passado textus tam-bém era usado como substantivo, e signifi -cava ‘maneira de te-cer’, ou ‘tecido’, e ainda mais tarde, ‘estrutura’. A partir do século XIV, a evolução semântica da palavra atingiu o sentido de “tecelagem ou estruturação de pa-lavras”, ou ‘composi-ção literária’, e passou a ser usado em inglês, proveniente do francês antigo texte.

Fonte: www.diciona-rioetimologico.com.br

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2.1 Perspectiva histórica da literatura

dramática

Quando recuamos no passado em busca das origens do teatro no mundo ocidental, encontramos, de modo re-corrente, a referência a Téspis como o poeta que acrescen-tou um ator na cena, antes apenas marcada pelo canto coral, isso por volta do ano de 550 a.C. Estabelecia-se, assim, o início do diálogo que, via de regra, é considerado o elemen-to-chave da estética teatral e, por conseguinte, do texto dra-mático (RYNGAERT, 1995).

saiba mais

Téspis (610-550) foi um teatrólogo e ator grego nascido em Icárias [...], conside-rado o inventor de tragédia e do monólogo, além de reconhecido como o primeiro ator do mundo ocidental [e o] primeiro produtor teatral. [...] foi ele quem introduziu

Figura 1. Fonte: <professorfabioartes.blogspot.com.br/2011/11/conteudos-6-ano-vespertino.html>

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Importa entendermos que “teatro é antes de tudo di-álogo, ou seja, de que nele a palavra do autor é mascarada e partilhada entre vários emissores” (RYNGAERT, 1995, p. 12). Isso não significa, entretanto, que outras formas de apresentação dos textos dramáticos não tenham também importante tradição, como é o caso do monólogo. Ainda assim, nesse caso, se estabelece um diálogo muito próximo entre a cena e o público.

Mais relevante, entretanto, é compreendermos a in-dependência do texto em relação à representação teatral:

Um bom texto de teatro é um formidável potencial de representação. Esse potencial existe independentemente da representa-ção e antes dela. Portanto, esta não vem completar o que estava incompleto [...]. Trata-se de uma operação de outra or-dem, de um salto radical numa dimensão

novidade, como um ator atuando independente, criando o conceito de monólogo, ou dialogando com o Coro, como também máscaras, maquiagens e mudanças em outros procedimentos padrões. Até então, o ator era chamado de hipocritès, ou seja, fingidor, mas com a invenção do diálogo, a esse ator propriamente foi dado o nome de protagonista, termo ainda hoje empregado para nomear o personagem principal de uma peça. Conta-se que viajou pela grécia empurrando uma carroça que ficaria conhecida como o Carro de Téspis, seu transporte e seu palco, indo de uma festividade para outra. Onde estacionava, fazia suas exibições, especialmente peças envolvendo tramas moralistas, realçando os aspectos negativos do compor-tamento humano. Essa iniciativa e sua dramatização particular deu origem à ex-pressão ator tespiano. [...] Ousou ao apresentar-se munido de máscaras e vestindo uma túnica para interpretar em monólogo o deus Dionísio, na grande Dionisíaca da grécia Antiga, em Atenas, (534 a.C.). A sua ousadia maior estava no fato de que o papel de um deus era reservado aos sacerdotes ou aos reis. No mínimo tal atrevimento representava um desrespeito às autoridades da cidade como o arconte e o legislador. Porém, o sucesso foi tão avassalador que nada lhe aconteceu além da ovação popular. Com essa histórica apresentação lançava então, o monólogo, o papel do protagonista, os fundamentos da tragédia grega e o deuteragonismo, [ou seja] a arte de interpretar de uma só vez dois personagens distintos, usando duas máscaras, uma no rosto e outra na nuca.

Fonte: Disponível em: http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/TespisAt.html. Acesso em jan./2012.

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artística diferente, que por vezes ilumina o texto com uma nova luz, por vezes o amputa ou o encerra cruelmente (RYN-GAERT, 1995, p. 25).

Desse modo, não podemos perder de vista que a lei-tura do texto dramático é uma ação que basta a si mesma, que não necessita da representação “estando entendido que [também] ela não se realiza [sem] a construção de um pal-co imaginário [...] num movimento que apreende o texto a caminho do palco” (RYNGAERT, 1995, p. 25).

Essa “autonomia” do texto dramático em relação à ence-nação foi afirmada por Aristóteles em sua famosa obra, Poética. Nela, o filósofo grego expõe o seguinte:

Quanto ao espetáculo cênico, decerto que é o mais emocionante, mas também é o menos artístico e menos próprio da poesia. Na verdade, mesmo sem repre-sentação e sem atores, pode a tragédia manifestar seus efeitos; além disso, a re-alização de um bom espetáculo mais de-pende do cenógrafo que do poeta (ARIS-TÓTELES, 1993, p. 45).

Verificamos, assim, que o texto dramático é o funda-mento da poesia (do grego poiesis, o fazer literário, a lite-ratura), enquanto a arte teatral tem sua dinâmica própria e compõe relevante expressão artística, mas não se con-funde com o estudo da literatura dramática: “Espetáculo teatral e teatro podem ser considerados sinônimos, e se confundem como expressão artística específica” (MA-GALDI, 1985, p. 12). Reforcemos a ideia, contudo, de que, quando lemos uma obra literária dramática, nossa imaginação vai “a caminho do palco”, como vimos com Ryngaert (1995).

Para entendermos melhor essa última afirmati-va, apresentamos um fragmento da tragédia Édipo Rei,

atenção

Enfatizamos que, neste nosso estudo, prioriza-mos a literatura dramá-tica, pois o teatro é uma arte que tem suas espe-cificidades e precisa ser considerado sob outras perspectivas ligadas pro-priamente ao processo de encenação. Entretan-to, não deixaremos de fazer algumas observa-ções sobre a arte teatral em língua portuguesa, pois entendemos que essa inter-relação entre os textos e a(s) cena(s) possui uma confluência incontornável. Isso por-que, mesmo quando, no teatro, a textualidade se vale de muitas outras lin-guagens que colocam em suspenso ou até repu-diam a expressão verbal, essa negação do texto literário dramático, de todo modo, não deixa de significar reflexões sobre a literatura dramática. Em outras palavras e de forma ainda mais sintéti-ca: literatura dramática é uma arte e teatro é outra – mas transitaremos, por vezes, entre as duas por entendermos que elas possuem uma associação que vale a pena conside-rar.

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de Sófocles, considerada por Aristóteles como o melhor exemplo do gênero.

você sabia?

“No tempo de Péricles à frente do Estado entre 443 e 429 a.C., a grande Dionisíaca [festa ao deus Dionísio] era uma festividade de sete dias de duração. O primeiro dia era dedicado ao proágon, apresentação de todos os participantes no recinto coberto do Odeon. No segundo dia, uma procissão, pompé, se dirigia para o âmbito sagrado do templo de Dioniso, onde se sacrificava um touro, seguindo-se às provas ditirâmbicas, que consistiam em concursos corais por coros de homens e rapazes. O terceiro dia se reservava à comédia, com cinco dramaturgos na competição. Do quarto ao sexto dia, com cinco representações diárias, havia o festival de tragédias - três tragédias e um drama satírico fálico pela manhã e uma ou duas comédias à tarde. Três dramaturgos competiam, cada um com três tragédias e um drama satírico. No último dia, reunia-se a ekklesia, ou assembléia pública, para a entrega dos prêmios, com ampla discussão sobre o desenrolar do festival. A preparação para o concurso era feita algum tempo antes do festival. As peças eram cuidadosamente selecionadas pelo primeiro leitor profissional do teatro, o funcionário público ou arconte, que também escolhia o intér-prete principal ou protagonista”.

Fonte: TOLLENTINO, Cristina. Teatro Grego - parte I - O Festival de Teatro de Atenas e suas convenções. Disponível em: http://www.caleidoscopio.art.br/ Acesso em mar./2012.

ÉDIPOOh! Ai de mim! Tudo está claro! Ó luz, que eu te veja pela derradeira vez! Todos agora sabem: tudo me era in-terdito: ser filho de quem sou, casar-me com quem me casei... e... e... eu matei aquele a quem eu não poderia matar!

Desatinado, ÉDIPO corre para o interior do palácio; reti-ram-se os dois pastores; a cena fica vazia por algum tempo.

O COROÓ gerações de mortais, como vossa existência nada vale a meus olhos! Qual a criatura humana que já conheceu felicidade que não seja a de parecer feliz, e que não tenha re-caído após, no infortúnio, finda aquela doce ilusão? Em face de teu destino tão cruel, ó desditoso Édipo, posso afirmar que não há felicidade para os mortais.

Entra um EMISSÁRIO, que vem do interior do palácio:

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EMISSÁRIOÓ vós, que sereis sempre os chefes mais respeitados deste país, se ainda prezais a família de Lábdaco, ides ouvir tristes notícias, receber profundos golpes, e sofrer lutuosos desgostos! Creio que nem as águas do Íster, nem as do Fásio seriam bastantes para purificar esta ca-sa, tais e tantos são os crimes que nela se praticaram! Sa-bereis de novas desgraças, voluntárias, e não impostas; e os males que nós próprios nos causamos são precisam ente os mais dolorosos!

CORIFEUNada falta, ao que já sabemos, para que nos sintamos to-dos profundamente penalizados. No entanto, dize: que novas calamidades nos anuncias?

EMISSÁRIOUma coisa fácil de dizer, como de ouvir: Jocasta, a nossa rainha, já não vive.

CORIFEUOh! Que infeliz! Qual foi a causa de sua morte?

EMISSÁRIOEla resolveu matar-se... E o mais doloroso vos foi pou-pado: vós não vistes o quadro horrendo de sua morte. Dir-vos-ei, no entanto, como sofreu a infeliz. Aluci-nada, depois de transpor o vestíbulo, atirou-se em seu leito nupcial, arrancando os cabelos em desespero. Em seguida, fechou violentamente as portas, e pôs-se a cha-mar em altos brados por Laio, recordando a imagem do filho que ela teve há tantos anos, o filho sob cujos golpes deveria o pai morrer, para que ela tivesse novos filhos, se é que estes merecem tal nome! Presa da maior angústia, ela se lastimava em seu leito, onde, conforme

você sabia?

O mito de édipo, que foi eternizado pela tragédia homônima de Sófocles, serviu de base para o conceito psicanalítico de Freud sobre o Complexo de Édipo, cuja definição pode ser a seguinte:“Conjunto organizado de desejos amorosos e hostis que a criança sente em relação aos pais. Sob a sua forma dita positiva, o comple-xo apresenta-se como na história de édipo-Rei: desejo da morte do rival que é a perso-nagem do mesmo sexo e desejo sexual pela personagem do sexo oposto. Sob a sua for-ma negativa, apresen-ta-se de modo inverso: amor pelo progenitor do mesmo sexo e ódio ciumento ao progeni-tor do sexo oposto. Na realidade, essas duas formas encontram-se em graus diversos na chamada forma com-pleta do complexo de édipo. Segundo Freud, o apogeu do complexo de édipo é vivido entre os três e os cinco anos, durante a fase fálica; o seu declínio marca a entrada no período de latência. é revivido na puberdade e é supera-do com maior ou menor êxito num tipo especial de escolha de objeto. O complexo de édipo de-sempenha papel funda-mental na estruturação da personalidade e na orientação do desejo humano. Para os psica-nalistas, ele é o princi-pal eixo de referência da psicopatologia” (LA-PLANCHE; PONTALIS, 1992, p. 77).

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dizia, tivera um a dupla e criminosa geração. Como teria morrido, não sei dizer, pois Édipo, aos gritos, precipitou-se com tal fúria, que não pude ver a morte da rainha. Todos os nossos olhares voltaram-se para o rei, que, desatinado, corria ao acaso, ora pedindo um punhal, ora reclamando notícias da rainha, não sua esposa, mas sua mãe, a que deu a luz a ele, e a seus fi-lhos. No seu furor invocou um deus, — não sei dizer qual, pois isto foi longe de mim! Então, proferindo imprecações horríveis, como se alguém lhe indicasse um caminho, atirou-se no quarto. Vimos então, ali, a rainha, suspensa ainda pela corda que a estrangula-va... Diante dessa visão horrenda, o desgraçado solta novos e lancinantes brados, desprende o laço que a sustinha, e a mísera mulher caiu por terra. A nosso olhar se apresenta, logo em seguida, um quadro ain-da mais atroz: Édipo toma seu manto, retira dele os colchetes de ouro com que o prendia, e com a ponta recurva arranca das órbitas os olhos, gritando: “Não quero mais ser testemunha de minhas desgraças, nem de meus crimes! Na treva, agora, não mais verei aque-les a quem nunca deveria ter visto, nem reconhecerei aqueles que não quero mais reconhecer!” Soltando novos gritos, continua a revolver e macerar suas pál-pebras sangrentas, de cuja cavidade o sangue rolava até o queixo e não em gotas, apenas, mas num jorro abundante. Assim confundiram, marido e mulher, nu-ma só desgraça, as suas desgraças! Outrora gozaram um a herança de felicidade; mas agora nada mais resta senão a maldição, a morte, a vergonha, não lhes fal-tando um só dos males que podem ferir os mortais.

CORIFEUE o desgraçado rei está mais tranquilo agora?

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EMISSÁRIOEle grita que lhe abram as portas; que mostrem a todos os tebanos o parricida, o filho que... nem posso repetir-vos, cidadãos, as palavras sacrílegas que ele pronuncia... Quer sair, em rumo do exílio; não quer continuar no palácio depois da maldição terrível que ele mesmo pro-feriu. No entanto, ele precisa de um guia, e de um apoio, pois seu mal é grande demais para que sozinho o supor-te. Ele aí vem, e vo-lo mostrará. Ides ver um espetáculo que comoveria o m ais feroz inimigo...

Entra ÉDIPO, ensanguentado, e com os olhos vazados.

CORIFEUÓ sofrimento horrível de ver-se! Eis o quadro mais hor-ripilante que jamais tenho presenciado em minha vida! Que loucura, — ó infeliz! — caiu sobre ti? Que divinda-de levou ao cúmulo o teu destino sinistro, esmagando-te ao peso de males que ultrapassam a dor humana? Oh! Com o és infeliz! Não tenho coragem, sequer, para vol-ver meus olhos e contemplar-te assim; no entanto, eu quereria ouvir-te, interrogar-te, e ver-te! Tal é o arrepio de horror que tu me causas!

ÉDIPO(Caminhando sem rumo certo) Pobre de mim! Para on-de irei? Para que país? Onde se fará ouvir a minha voz? Ó meu destino, quando acabarás de uma vez?!...

Para o começo de nossa leitura, devemos considerar que as partes em itálico, chamadas de didascálias ou rubricas, são as indicações do autor para a contextualização das cenas. Por meio dessas indicações, podemos compor (“imaginar”) o cená-rio, a situação das personagens etc. Nesse sentido, ao lermos o

Drama – do grego drama, “peça, ação, feito” (especialmente relativo a algum gran-de feito, fosse positivo ou negativo); de dran: “fazer, realizar, repre-sentar”.

Fonte: Origem das palavras. Site de etimologia. Disponível em:

<http://origemdapalavra.com.br/palavras/drama/>

Acesso em mar. 2012.

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texto, vamos elaborando a sua representação – como se en-xergássemos o palco e o desdobrar das ações representadas.

Desse modo, Aristóteles afirma que mais importante do que os caracteres (as “marcas” características que sinalizam as personagens), da melopeia (forma como falam e a música que os acompanha), e mais importante do que o próprio es-petáculo é o MITO, ou seja, o arranjo das ações, a trama a ser dramaticamente apresentada.

Didascália: Tudo o que no texto dramáti-co não se destina a ser dito pelas personagens e que, na representa-ção cénica, desaparece enquanto discurso e surge diante dos es-pectadores como ação ou presença física (ob-jetos, guarda-roupa, cenário...). As didas-cálias, que são a voz direta do dramaturgo, diferenciam-se visual-mente do resto do tex-to por estarem escritas entre parêntesis ou por estarem impres-sas em itálico, ou de qualquer outra forma que marque bem que se trata de um texto à margem das falas das personagens. Tais indi-cações cumprem uma dupla função: situam o diálogo, a ação, num contexto imaginário [...] (aproximando-se do papel da descrição no género narrativo) e, [no âmbito] da re-presentação, fornecem instruções àqueles que transformam o texto em espetáculo (ence-nadores, atores, ce-nógrafo...). A segunda função evoca o signifi -cado da palavra grega que está na origem do termo “didascália” - di-daskália (“instrução”) e do verbo didáskein (“ensinar”).

Fonte: E-dicionário de termos literários Carlos Ceia.

Disponível em: http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_ee&task=viewlink&link_

id=741&Itemid=2.

Acesso em mar./2012.

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Aristóteles foi discípulo de Platão (século V a.C.), mas discor-dou do seu mestre em muitos aspectos. Um deles, que mais nos importa aqui, trata da concepção sobre a arte literária. Para Platão, o mundo se divide entre o plano sensível e o plano das ideias, sendo esse último o mundo da verdade, das essências, apenas alcançado com o pensamento lógi-co, fi losófi co. Assim, o mundo sensível é cópia imperfeita do mundo das ideias e a arte, por sua vez, é cópia da cópia, ou seja, como ele afi rma no livro X da sua obra República, a arte (literária) está três vezes distante da verdade. Por isso, em sua república ideal, não seriam admitidos os poetas. Já para Aristóteles o que existe é apenas o plano sensível, o mundo em que vivemos. E, nesse mundo, a arte é benéfi ca, pois, como ele registra na Poética, o homem sente prazer com a imitação (também no sentido de criação) e com ela aprende como agir, com ela tem bons e fundamentais exem-plos de conduta.

Figura 2: Aristóteles e Platão. Fonte: <brasilescola.com/fi losofi a/a-estetica-na-fi losofi a-platao-aristoteles.htm>

Para um estudo dos principais aspectos da Poética, apresentamos, a seguir, um quadro sintético de suas partes:

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Poética, de aristóteles, segundo a estrutura dos caPítulos

Capítulo Proposição

1 Definição de mímese (= imitação/criação)

1 a 3

Apresentação de uma teoria dos gêneros poéticos – diferenças de meio (ritmo, linguagem e harmonia); objeto (imitação de homens que praticam alguma ação – indivíduos de alta ou baixa índole - Homero imitou homens superiores; a Comédia imita homens piores e a Tragédia imita homens melhores do que são); modo (por narrativa, como Homero; ou mediante as pessoas imitadas agindo elas mesmas; por drama – imitação de agen-tes – drontas).

4 e 5

Origem da poesia, a arte poética e seus gêneros (a tragédia e a comédia) = o imitar é congênito no homem e por imitação aprende todas as no-ções; e os homens se comprazem no imitado; sobre a Comédia: imitação de homens inferiores pelo ridículo, torpeza inocente; as diferenças entre Tragédia e Epopeia.

6

Conceito de tragédia; definição de seus elementos essenciais: “É a Tragé-dia imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de certa exten-são, em linguagem ornamentada e com as várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes (do drama), imitação que se efetua não por narrativa, mas mediante atores e, que, suscitando o terror e a pieda-de, tem por efeito a purificação das emoções” [= CATHARSIS, catarse].

7 e 8

Definição da estrutura do mito; descrição de seus elementos constituin-tes: espetáculo cênico, melopeia, e elocução; caráter e pensamento; mito (composição dos atos). São essas as seis partes da tragédia. Dessas, a mais importante é o mito: trama dos fatos, pois a tragédia não é imitação de homens, mas de ações e de vida. A finalidade da tragédia são as ações e o mito; o espetáculo cênico é o mais emocionante, mas também é o menos artístico; mesmo sem representação e sem atores pode a Tragédia manifestar seus efeitos; além disso, a realização de um bom espetáculo depende mais do cenógrafo do que do poeta; a importância da ordem das ações – a grandeza e a necessidade do “todo”, que deve ser consequen-temente ordenado.

9

Distinção entre História e mito; descrição dos conceitos de verossimilhan-ça e de necessidade: “Não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade. Com efeito, não diferem o historiador e o poeta por escreverem verso ou prosa [...], diferem sim em que diz um as coisas que sucederam e outro as que poderiam suceder. Por isso a poesia é algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o particular”; o po-eta deve ser mais fabulador do que versificador, porque ele é poeta pela imitação e porque imita ações .

10Apresentação da tipologia de mito: mitos simples e complexos (nesse últi-mo caso, quando a mudança se faz pelo Reconhecimento ou pela Peripécia ou por ambos conjuntamente).

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Descrição da estrutura do mito – elementos qualitativos: peripécia – mu-tação dos sucessos no contrário, de acordo com verossimilhança e neces-sidade; reconhecimento é a passagem do ignorar ao conhecer; a melhor forma de reconhecimento é a que se dá com peripécia. Terceira parte do mito é a catástrofe.

12

Apresentação das partes quantitativas da tragédia: prólogo, episódio, êxodo, coral (párodo e estásimo). Prólogo – parte completa que antecede o coro; episódio é uma parte completa entre dois corais; êxodo é parte a que não sucede o coro.

13 e 14

Descrição da situação trágica e do herói trágico (O efeito trágico): a tra-gédia deve se dar na situação do homem (o herói trágico) que não se distingue muito pela virtude e pela justiça; se cai no infortúnio, não é por ser vil ou malvado, mas por força de algum erro e devem gozar de grande reputação e fortuna (como édipo). O terror e a piedade podem surgir do efeito cênico, mas também podem derivar da íntima conexão dos atos, e este é o procedimento preferível e o mais digno do poeta.

15Descrição dos caracteres – bons; convenientes; semelhança, coerência – exemplos; importância da verossimilhança e da necessidade. O desenlace não se deve dar por deus ex-machina*, nem pelo irracional.

16 Descrição do reconhecimento e dos tipos de reconhecimento: menos inventivo, por sinais; os melhores são pela própria intriga.

17 e 18A composição e o processo de composição: a diferença entre a epopeia e a tragédia: extensão x brevidade dos episódios. A importância do nó e desenlace; o coro deve fazer parte da ação (à maneira de Sófocles).

19

O pensamento (dianóia) e a elocução (lexis): Pensamento – retórica – efeitos produzidos pela palavra: demonstrar, refutar, suscitar emoções; o pensamento se revela pelo discurso; elocução: ao ator compete saber o que é uma súplica, ordem, explicação, etc.

19 a 22A elocução (expressão): partes e tipos: letra, sílaba, conjunção, nome, verbo, [artigo], flexão e proposição. A metáfora: consiste em transportar para uma coisa o nome de outra; qualidade da elocução é a clareza sem baixeza, sem termos vulgares.

23 e 24 A epopeia e a tragédia sob a regência das mesmas leis: as semelhanças, as diferenças.

25A crítica: proposição de normas: “na poesia é de preferir o impossível que persuade ao possível que não persuade”. Cinco críticas – representações impossíveis, irracionais, imorais, contraditórias ou contrárias ás regras da arte.

26Conclusão: a superioridade da tragédia sobre a epopeia: a Tragédia é superior porque contém todos os elementos da epopeia e mais o espetáculo e a melopeia, [produzindo a catarse = purgação dos sentimentos, emoções].

Fonte: ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Souza. 2. ed. Bilíngue grego-Português. São Paulo: Ars Poética, 1993.

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* “Expressão latina, significa literalmente ‘deus da máquina’ ou ‘deus de dentro da máquina’; alude a um instrumento mecânico utilizado na tragédia clássica e que permitia a uma divin-dade ou ser sobrenatural descer sobre o palco, oferecendo dessa forma uma saída para uma situação aparentemente irresolúvel; hoje em dia a expressão é geralmente utilizada num sentido mais lato, para designar uma resolução forçada ou fácil dos acontecimentos numa obra”. Fonte: E-dicionário de termos literários de Carlos Ceia. Disponível em: <http://www.edtl.com.pt>. Acesso mar./2012.

Desse quadro, devemos destacar a definição aristo-télica de tragédia (cap. 6), considerada pelo filósofo grego como a mais completa das artes miméticas, sendo seu maior exemplo a tragédia de Sófocles, Édipo Rei, conforme referi-mos anteriormente. Isso porque, para Aristóteles, a tragédia (cap. 26) possui todas as partes da epopeia e mais a encena-ção, sendo que produz, como principal efeito sobre o recep-tor (leitor ou espectador), a catarse, ou seja, uma purificação das emoções. São, por vezes, controversos os diferentes en-tendimentos dos especialistas sobre o sentido desse termo, entretanto, de modo geral, podemos compreender a catarse como uma vivência emocional que, por meio dos sentimen-tos de terror (diante dos castigos severos ou da autopunição do herói) e de piedade (pois o herói não erra por maldade ou falta de caráter, pelo contrário, muitas vezes seu maior erro é o orgulho, a certeza de estar tomando a decisão correta), permitem aprender com os erros alheios e aliviar as tensões cotidianas. Desse modo, o leitor/receptor do texto ou da encenação trágica pode retomar seu equilíbrio emocional e, assim, manter-se um cidadão apto a exercer suas obrigações sociais.

Considerando-se a situação do herói trágico, deve-mos entender que se trata de uma luta contra seu destino (moira) e com a força dos deuses: “As noções de moira e ananké (necessidade) apresentam o destino humano como imutável e mostram o cosmos como algo organizado onde não se pode intervir sob pena da instalação do caos” (COS-TA; REMÉDIOS, 1998, p. 8).

Devemos também compreender os seguintes aspec-

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Sófocles “nasceu [em] Colono, nas imediações de Atenas, provavelmente em 495 a.C., e mor-reu na mesma cidade, no ano 406 a.C. Sem-pre interpretava suas próprias peças, exerceu importante papel na vida pública, foi por vinte e quatro vezes vencedor de concursos dramá-ticos e escreveu mais de cem tragédias. O seu tema constante é o destino humano – o destino do herói que sofre e é destruído”. Outros dois dos maiores dramaturgos gregos foram Ésqui-lo (525/6-456/5 a.C.) e Eurípedes (485-406 a.C.). O primeiro “é considerado o mais antigo dos poetas trágicos cuja obra chegou até nossos dias. Aristóteles sustentava que foi ele o ver-dadeiro criador da tragédia ática à qual deu di-mensões literárias e sociais”. Já Eurípedes foi um renovador do teatro grego, com suas peças de fundo psicológico. Sugerimos a consulta deste site, no qual se encontram mais informações sobre esses autores e também a reprodução integral de algumas de suas principais tragé-dias.

Fonte: Encontros de dramaturgia. Disponível em: <www.encontrosdedramaturgia.com.br>. Acesso em jan. 2012.

tos do mito trágico: “Procurando guiar-se pelo próprio caráter (ethos), mas subordinado ao gênio mal (dáimon), o herói in-corre na falha trágica (harmatia), impulsionado pela desmedida (hybris); a conjugação desses elementos envolve o herói num acontecimento aterrorizante [...]” (PASCOLATI, 2009, p. 106).

Essa conjugação encontra-se na tragédia de Sófocles, Édipo-Rei, por isso, também, para Aristóteles, ela representava o maior exemplo do gênero.

Quanto à comédia, Aristóteles anuncia na Poéti-ca que fará um tratado sobre esse gênero, mas o que nos chegou foram apenas as indicações que ele assinalou na sua conhecida obra. Por meio dessas indicações, entendemos a comédia em contraponto com a tragédia: se esta última trata de ações de homens elevados, aquela trata de homens comuns, de caráter não elevado, que provoca o riso pelo ridículo: “o ridículo é apenas certo defeito, torpeza anódi-na e inocente, que bem demonstra, por exemplo, a máscara cômica, que sendo feia e disforme, não tem [expressão] de dor” (ARISTÓTELES, 1993, p. 34-35).

Figura 3: Tragediógrafos gregos: ésquilo, Sófocles e Eurípides. Óleo sobre tela de Jean Auguste Dominique Ingres. Estudo para o quadro “Apoteose de Homero” – 1866// Angers, Musée des Beaux-Arts © Kathleen Cohen, World Art Database.Fonte: http://greciantiga.org/img/index.asp?num=0910

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Assim, “ao contrário da tragédia e da epopeia, cujos assuntos são extraídos dos mitos ou da matéria histórica, o alvo da comédia é o cotidiano das pessoas comuns. [...] [Ao provocar o riso], o texto cômico conta com a cumplicidade do público [...] e tem uma função crítica” (PASCOLATI, 2009, p. 107).

Considerado um dos maiores comediógrafos gregos, Aristófanes nasceu (em torno de 455 a.C.) e morreu (por volta de 375 a.C.) em Atenas. De suas 44 comédias, resta-ram 11: Os acarnenses (425 a.C.), Os cavaleiros (424 a.C.), As nuvens (423 a.C.), As vespas (422 a.C.), A paz (421a.C), As aves (414 a.C.), Lisístrata (411 a.C.), As tesmoforiantes (411 a.C.), As rãs (405 a.C.), As mulheres na Assembléia (392 a.C.) e Pluto (388 a.C.). Acarnenses, Cavaleiros, Vespas, Paz e Lisístrata tratam da vida política; Nuvens, Tesmofóriantes e Rãs criticam a vida intelectual; Aves, Mulheres na Assembléia e Pluto são alegorias, ou comédias de fuga (“classificação” feita por STARZYNSKI, 1967, citada em RIBEIRO JR., 2012.).

Boa parte da produção literária de Aristófanes foi elaborada e encenada na época em que, no final do século V, a sociedade ateniense encontrava-se em crise “motivada pela de-cadência do sistema democrático posto em prática por Péricles, em virtude da extensa Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.), que opôs as duas maiores potências da Grécia, Atenas e Esparta, e das deficiências internas decorrentes dessa guerra fratricida” (GERVÁSIO, 2011, p. 156). Desse modo, “a comédia aris-tofânica trouxe à cena não somente situações do cotidiano cívico, mas também temas outros, como a religião, a litera-tura, a educação, pertencentes todos ao universo da cidade” (GERVÁSIO, 2011, p. 157).

Para conhecermos um pouco mais da comédia clássi-ca, vamos estudar As nuvens, de Aristófanes, encenada ori-ginalmente em 423 a.C. A peça desenvolve-se a partir do seguinte roteiro:

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[Trata-se das] peripécias de Estrepsíades, velho camponês de costumes rústicos, e de seu filho Fidípides, jovem amante de cavalos. Esse rapaz é fruto da união de um homem sem quaisquer aspirações culturais, rude, portanto, com uma mulher de hábitos da aristocracia citadina ateniense, que não se preocupava com gastos. Desse modo, ainda que Estrepsíades desejasse educar o filho se-gundo os princípios da educação tradicional, Fidípides, herdeiro dos hábitos advindos de sua mãe, era amigo dos cavaleiros de classe elevada e nem por um momento se mostrava comedido ao fazer gastos demasiados pela loucura que tinha por cavalos, tornando, com isso, seu pai vítima fácil dos credores (GERVÁSIO, 2011, p. 159).

Tentando se livrar das dívidas, o velho Estrepsíades resolve encaminhar o filho, Fidípides, para a escola de Só-crates (o “Pensatório”), na qual se desenvolvia o pensamento dos sofistas, capazes de, pela retórica, transformar o certo em errado, o justo em injusto: desse modo, ele pretendia en-ganar os seus credores. “Lá, é apresentado por Sócrates às Nuvens, as verdadeiras causadoras dos trovões e das chuvas (e não Zeus, o deus maior dos gregos)” (KURY, 1995, p. 8). Já aí está uma crítica ferrenha de Aristófanes às mudanças que aconteciam em Atenas: as transformações na educação, na religiosidade, até na arte teatral, pois além de Sócrates, re-presentante maior da filosofia seguida por Platão, o comedi-ógrafo não poupa recriminações às peças de Eurípedes, como se verá no excerto selecionado.

Conservador, portanto, Aristófanes desenvolverá as ações da peça até o ponto de demonstrar os resultados funes-tos dessas modificações pelas quais passava a sociedade de seu tempo: Fidípedes aprende a trocar o Raciocínio Justo pelo In-justo e, assim, livra a família de suas dívidas, porém, pelas mes-mas lições, o filho passa a espancar o pai e fundamenta-se em argumentos retóricos para provar sua justiça em praticar tal ato.

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Esses momentos da comédia As nuvens e seu desfecho encon-tramos no trecho a seguir:

(Dando um grito de dor e de terror, Estrepsíades pula para fora de casa, perse-guido de perto por Fidípades, que empunha um mortífero bastão.)

Estrepsíades Ai! Ai! Socorro! Ai! Ai! Ai! Em nomeDos deuses, me ajudai!

(Dirigindo-se ao público)Oh! Meus senhores!Amigos! Conterrâneos! Tios! Tias!Pais, irmãos e parentes, socorrei-me!Ele está me batendo! Ai! Ai! Que dor!Minha cabeça como está doendo!

(A Fidípades)Espancas o teu próprio genitor?

Fidípades E com o maior prazer, meu caro pai.

Estrepsíades Estais ouvindo? O bruto até confessa!Fidípades Não só confesso, mas também proclamo.

Estrepsíades Malfeitor ordinário! Filho ingrato! Bastardo!

Fidípades Agora estás me elogiando!

Estrepsíades Bate em teu próprio pai!

Fidípades Com muito gosto.E acho que foi muito merecido.Tenho uma boa justificativa.

Estrepsíades Que justificativa pode haverPara um filho espancar o próprio pai?

Fidípades Aceitarás uma demonstraçãoda Lógica nos princípios baseada?

Estrepsíades Uma demonstração? Estás dizendoQue és capaz de provar segundo a LógicaUm fato tão chocante?

Fidípades Exatamente.E mais: tu podes escolher a Lógica:A Lógica socrática ou pré-socrática.À tua escolha.[...]

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Estrepsíades Gostaria de ouvir! Duvido muito![...]

Corifaios (a Estrepsíades)

E agora, senhor, eu gostariaQue esclareças o coro começandoA nos contar teu insucessozinhoDesde que começou.

Estrepsíades Às vossas ordens.Tudo foi feio de princípio ao fim.Como sabeis nós dois nos reunimosPara comemorar. Nossos costumesDevem ser respeitados. Não há nadaMelhor do que uma música pra festaAlegrar. E assim sendo eu lhe pediPara pegar a lira, e uma cançãoEntoar, pois seria um bom começo:Por exemplo, “A Tosquia do Carneiro”De Simonides, ou outra semelhante.Sabe o que respondeu o malcriado?Que cantar no jantar era antiquado,Obsoleto, tolo, desusado,Só pelos velhos inda tolerado.

Fidípades Tu tiveste o que muito merecias.Ora essa! Querendo que eu cantasseDe barriga vazia! Era demais!

Estrepsíades Pois foi assim. Negou-se e começouA zombar do meu gosto e de mim mesmo.Tentei conter a raiva, simplesmente,E contei até dez, pra não brigar.Pedi-lhe, então, depois, que me cantasseQualquer coisa de Ésquilo, e o grosseirãoMe respondeu que considera Ésquilo“Poeta de estatura colossal”.Sim. “O mais colossal, pretencioso.Pomposo, palavroso e bombásticoSensaborão da história da poesia”.

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E tive tanta raiva que custeiA me conter, porém, rilhando os dentes,Consegui esboçar leve sorrisoE lhe dizer: “Pois muito bem, meu filho.Canta-me algo de uma dessas peçasQue estão na moda e que de tanto gostas.”Ele então recitou... O quê? Eurípedes!Uma dessas tragédias pegajosasOnde há, nada mais, nem nada menos,

Um irmão que atarraxa a própria irmã!Foi demais, foi demais, senhoras minhas!Levantei-me de um pulo, ébrio de raiva,E não pude deixar de injuriá-loEm altos brados, e ele, de seu ladoInsultou-me também e, mais que isso,Espancou-me. Espancou o próprio pai![...]

Fidípades Tu provocaste, pai!

Estrepsíades Desnaturado!Eu te criei com amor e com cuidado.Quando eras bebê, eu te mimava.Acompanhei os teus primeiros passos,Dei-te a mão com carinho, te amparei,Para depois de grande me espancares.Ensinei-te a falar, com todo o empenho,Para depois de grande me insultares.[...]

Fidípades Senhores! A Eloquência é coisa boa,Muito melhor até do que esperava.Oh! O arrebatamento do discurso!Oh! A volúpia da articulação!Mas sobretudo o ático prazerDe poder à vontade subverterA ordem da Moral seguida e aceita![...]

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Encontro-me em perfeitas condiçõesDe demonstrar irrefutavelmenteA total conveniência filosóficaDe espancar o meu pai.

Estrepsíades Por Zeus, meu filho,Aos malditos cavalos volta logo.Prefiro uma cocheira a uma paulada.

Fidípades Por óbvios motivos não tomandoEm consideração a puerilIntervenção, eu continuo assimMinha demonstração. Responde agora:Quando eu era pequeno me bateste?

Estrepsíades É claro. Eu tinha de te educar.Bati porque te amava.

Fidípades Muito bem.Uma vez que tu mesmo reconhecesA sinonímia de espancar e amar,É mais do que natural que eu, agora,Por minha vez, com muito amor, te espanque.Mais que isso, aliás: com que direitoTu podes me espancar e pretenderesQue eu não possa fazer a mesma coisa.O que pensa que sou? Que sou escravo?Não nasci, como tu, um homem livre?Que me dizes, então?

Estrepsíades Mas...

Fidípades Mas o quê?“Poupas a vara e estragas a criança”?este é o teu argumento? Pois, se forEu posso responder com outro ditado:“Os velhos são crianças que cresceram”.É lógico, portanto, que os velhosMerecem muito mais ser espancados,Porquanto, experientes como são,São menos desculpáveis que as crianças.

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Estrepsíades Mas não é natural! É ilegal!Honrarás pai e mãe. Tal é a lei.

Fidípades E quem fez essa lei? Um homem igualA mim, a ti, um homem igual a nós.Um homem que lutou por seu projetoAté poder persuadir o povoQue o transformasse em lei. Somente isso.Pelo mesmo motivo, o que me impedeDe uma lei nova apresentar, mandandoQue os pais sejam espancados pelos filhos?Não seria vingança, é evidente.Estou mesmo inclinado a sugerirUma anistia que retroagisseFavorecendo os pais, e garantindoUma compensação pelas pancadasQue, por acaso, houvessem recebidoAntes que fosse promulgada a lei.Se, apesar disso tudo, não estásAinda convencido, todavia,Argumento com a própria Natureza.Por exemplo: observa como os galosSe comportam entre si. Vivem brigandoFilhos com pais, sem vãs hierarquias.E em que a sociedade galináceaSe difere da nossa: tão somentePorque a nossa tem leis e ela não.Estrepsíades Se estás disposto a imitar os galos,Por que não vais, então, comer titicaE dormir no poleiro?

Fidípades Ora! Porque...Porque não há no caso analogia.Se duvidas de mim, pergunta a Sócrates.

Estrepsíades Deixa os galos pra lá. Mas te aconselhoA não bateres mais em mim, pois issoVai acabar é te prejudicando.

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Fidípades Prejudicando-me? Eu duvido.

Estrepsíades Então,Presta atenção no que estou te dizendo:Quando eras menino eu te bati.Mas um dia terás, também um filho,Nele descontarás o que tiveste.Se, porém, me bateres, o teu filhoNaturalmente seguirá o exemploE contigo fará o que me fazes.

Fidípades E se eu não tiver filho? Nesse casoEu ficarei privado de baterEm qualquer um. E agora, o que me dizes?

(Há um silêncio prolongado, pois o argumento causou profunda impressão em Estrepsíades).

Estrepsíades Tenho de confessar que tens razão.

(Para o público.)

Falando para a geração mais velha,Sou obrigado a confessar, senhores,Derrotado saí. Meu douto filhoConseguiu demonstrar a sua tese:Deve ser espancado o pai faltoso.

Fidípades Naturalmente. Eu ia me esquecendo,De uma questão final, muito importante.

Estrepsíades Qual é? O funeral?

Fidípades Muito ao contrário.Eu acho até que vais ficar contente.

Estrepsíades Mais do que já estou? Acho difícil...

Fidípades Segundo dizem, “O sofrimento gostaDe companhia”. E terás, meu pai.Em tua desventura, companhia.Vou espancar também minha mãezinha.

Estrepsíades Bater em tua mãe?! Isso é pior,Dez mil vezes pior!

Fidípades Tu achas mesmo?

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E se eu provar, por Lógica socrática,Isso também, então o que dirias?

Estrepsíades O que eu diria? Digo agora mesmo:Se tal coisa provares, eu permitoQue juntes tua Lógica nojenta,E o teu Pensamental e dentro Sócrates,E enfie tudo no lugar devido!

(Dirigindo-se ao Coro das Nuvens – os corifaios)

Ó Nuvens, fostes vós que me arrastastesA esta situação em que me encontro.Ser assim enganado! Mentirosas!

Corifaios Foste tu o culpado, Estrepsíades.O único culpado foste tu.Não foi feita por nós a tua escolha,Porém por tua própria improbidade.

Estrepsíades Por que, então, em vez de aconselhardesUm pobre ignorante a se afastarDo mal, muito ao contrário, o incitastes?

Corifaios Porque é assim mesmo que nós somos:Insubstanciais nuvens onde o homemConstrói as suas frágeis esperanças,Brilhantes, tentadoras, mas formadasDe puro ar, miragens do desejo.E assim agimos nós, indiferentes.Seduzindo e atraindo os homens vãosNos desonestos sonhos da ambiçãoQue, como sonhos, logo se desfazem.E o sofrimento lhes ensina entãoA respeitar os deuses, e a temê-los.

Estrepsíades Não vou elogiar o vosso método,Mas fiz mal em lograr os meus credores,Eu confesso que fiz.

(A Fidípades)E tu, meu filho?Vamos vingar de Cairefonte e SócratesPor nos ludibriarem? Vens comigo?

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Fidípades Achas mesmo que posso te ajudarContra o meu Mestre de Filosofia?De modo algum![...]

(Sai Fidípades.)

Estrepsíades Ó asno, ó toleirão desmiolado,Ó imbecil que fui, deixando os deuses,Para seguir a Sócrates! Cretino!

(Pega o bastão de Fidípades e furiosamente despedaça o modelo de universo em forma de fogão, em frente ao Pensamental. Depois, corre em direção à sua própria

casa e cai de joelhos diante da estátua de Hermes).

Grande Hermes, te imploro, grande Hermes:Esquece a justa ira e compadeceDeste desventurado que te implora!Compadece de mim, dá-me um conselho.Achas que eu devo demandar, ou não?

(Encosta o ouvido junto à boca do deus, como se estivesse ouvindo um conselho sussurrado.)

O quê?... Hum... Hum... Sei... Hum... Não demandar.Pode continuar!... É mesmo?... É mesmo?Eu sei... Por fogo no Pensamental...Com a fumaça expulsar os charlatões...Incinerar as falsificações!Vou fazer! Vou fazer! Muito obrigado!

(Grita para o seu escravo)

Vem cá depressa, Xântias, com uma escadaE com um machado! Bem depressa![...] Ó deuses! Vou queimar esses tratantesPra pagar o que comigo fizeram,Ou meu nome não é Estrepsíades!

(Sobe na escada até o telhado, e, furioso, põe fogo nos barrotes e traves com a tocha, enquanto Xântias levanta as telhas com o machado. A fumaça se espalha em nuvens, e todo o telhado parece estar em chamas, enquanto dentro do Pen-

samental se ouvem os primeiros sinais de alarme e confusão.)

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Primeiro Alu-no (de dentro)

Fogo! Fogo! Socorro!

Estrepsíades Vou torrá-los!

(Quando Xântias pára, para olhar o espetáculo, Estrepsíades lhe passa a tocha, toma-lhe o machado e começa a dar machadadas nos barrotes, freneticamente.)

PrimeiroAluno

Patife, o que fizeste?(sai correndo do Pensamental e olha para o telhado)

Estrepsíades Estou apenasA Lógica aplicando a este telhado. [...]

(Arquejando e tossindo desesperadamente, Sócrates sai do Pensamental, seguido de perto por uma incrível procissão de Alunos, magros e pálidos como defuntos, todos gritando de medo. Atrás de todos, cacarejando como dois galos amedrontados, vêm

Filosofia e Sofisma.)

Sócrates O que é isso, patife, descarado?O que fazes aí no meu telhado?

Estrepsíades Estou andando no ar, e contemplandoO nosso Sol de cima para baixo.

Sócrates (sufocado pela fumaça e transtornado pela raiva.)Atrevido! Safado! Eu... Eu... Ui! Ui!Estou... Ui! Sufoca... Ui! Sufocado!

(Enquanto Sócrates cai, sufocado por um acesso de tosse, Estrepsíades e Xântias descem a escada, vindos do telhado. Depois, Cairefonte, inteiramente coberto de fuligem e cinza, e com o manto pegando fogo, sai do inferno Pensamental.)

Cairefonte Ai! O Pensamental virou um forno!E eu virei cinza! Ai!

Estrepsíades (espancando-o com um bastão, enquanto Xântias chicoteia Sócrates)Quem te mandouOs deuses blasfemar? Quem te mandouEspionar a Lua lá no céu?

Corifaios Vamos! Chibateai-os, espancai-os,Pelos seus crimes, mas principalmentePor se atreverem a blasfemar os deuses!

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Observando a estrutura formal do texto, vemos que são mantidos os versos, as rimas, e que as didascálias apenas têm a função de indicar sentidos gerais do ambiente e da si-tuação das personagens. O maior enfoque recai mesmo so-bre os diálogos entre pai e filho, operando o coro como uma voz a sintetizar as questões apresentadas na peça. O humor fica por conta do jogo verbal empreendido e das situações ridículas a que se submete Estrepsíades. Sobre esse aspecto do humor da peça é preciso não perder de vista o seguinte: “os alvos das críticas mordazes do comediógrafo eram de conhecimento do público em geral, pois, sem sombra de dú-vidas, era preciso ter conhecimento da situação para poder rir” (GERVÁSIO, 2011, p. 171).

Agora, propomos a você um exercício: releia os versos sublinhados e responda: encontramos, nessa passagem, uma justificativa para o título da obra: As nuvens?

Explique:

(Estrepsíades e seus escravos espancam Sócrates e seus seguidores, até que todos os pensadores, seguidos por Filosofia e Sofisma, correm apavorados para fora de cena. O Pensamental desaba, com grande barulho, transformado em uma ruína

em chamas).

Coro Agora, sem mais tardança,Vamos sair, sem mais essa.Acabou a nossa dança

E acabou também a peça.

(Vagarosa e majestosamente, o Coro se retira).

Fonte: Distribuído por www.oficinadeteatro.com. Acesso em jul./2012. (Sublinhados nos-

sos).

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Ao considerar a sua resposta, lembre-se que a comédia é um gênero marcado pela crítica – nesse caso, a crítica de Aristófanes dirigia-se aos novos rumos da educação atenien-se. Entretanto, não podemos desconsiderar que Sócrates não foi um sofista e desenvolveu suas bases filosóficas posterior-mente a essa ‘escola’. Platão, seu principal discípulo, foi um severo crítico do pensamento sofista. Provavelmente, então, como pensam alguns historiadores, o Sócrates de Aristófanes cumpre o papel de uma caricatura do filósofo quando jovem, “anterior à fase do magistério filosófico que influenciará Pla-tão, Antístenes, Xenofonte e outros pensadores” (PESSA-NHA, 1987, na contracapa da coleção Os pensadores – Só-crates).

Além da tragédia e da comédia, que foram as gran-des expressões da época clássica, quando se entendia que o mundo (grego) era governado pelos deuses, todos sujeitos às determinações do destino, outros gêneros marcaram o percurso da dramaturgia em âmbito histórico alargado. Já na Idade Média, foram recorrentes os mistérios, milagres, farsas e “não era raro que um drama religioso contivesse ce-nas de farsa” (RYNGAERT, 1995, p. 8).

Shakespeare (1564-1616), o grande nome inglês da literatura e do teatro dramático renascentista, reelaborou a tragédia e a comédia, sendo o dramaturgo de clássicos como Romeu e Julieta, Hamlet, Rei Lear, Sonhos de uma noite de verão, entre tantas outras obras que se eternizaram e con-tinuam recebendo releituras e adaptações variadas em dife-rentes meios (cinema, hipermídia etc.).

A tragicomédia, em que se misturam personagens de caráter elevado com personagens inferiores na mesma ação ou em ações paralelas, teve grande desenvolvimento no sé-culo XVII. Já, com o Romantismo, afirma-se o drama que, de acordo com Victor Hugo, ambicionava representar uma perspectiva totalizante do mundo. No prefácio de sua peça Maria Tudor, de 1833, escreveu:

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Seria a mistura, no palco, de tudo o que na vida está misturado [...] seria o riso, as lágrimas, o bem, o mal, o alto, o baixo, a fatalidade, a providência, o gênio o acaso, a sociedade, o mundo, a natureza, a vida; e por cima de tudo isso sentiríamos pairar algo grande! (apud RYNGAERT, p. 8).

Nessa perspectiva, o mundo deveria caber no teatro e o teatro seria a máxima expressão da vida. Essa pers-pectiva será reafirmada, revisada e problematizada na literatura dramática contemporânea, na qual, de modo geral, não há pre-ocupação com a definição de gêneros. Pelo contrário, ao longo dos anos de 1960 e 1970, a arte dramática passou a desconsi-derar o texto em nome da “teatralidade ancorada no corpo e na imaginação do ator” (RYNGAERT, 1995, p. 28). E, atual-mente, a literatura dramática abre-se às mais diversas formas de expressão textual e de concepções sobre o próprio teatro. Ao longo de nosso estudo, aprofundaremos essas questões.

Torna-se, assim, muito importante termos claro que as mudanças que se vão efetivando na compreen-são do que deve ser tematizado, como deve ser representa-do, e as variações de forma e gênero da literatura dramática são atravessadas pelas mudanças históricas e culturais que se processam nas diferentes realidades sociais.

saiba mais

Embora nosso objetivo seja o estudo sobre a literatura dramática em língua portuguesa, consideramos relevante que você conheça algumas expressões e qualificativos da arte teatral:COMMEDIA DELL’ARTE: popular expressão teatral que vigorou na Itália dos séculos XV ao XVII, expandiu-se “‘por toda a Europa e exerceu decisiva influência na posteridade. [Seu] fundamento é a improvisação, isto é, o ator tornar-se o autor do espetáculo que vai oferecendo. Mesmo a existência de lazzi, achados cômicos, e a preservação dos canovacci, roteiros seguidos pelos intérpretes, não invalidam a ideia de que os diálogos se conjuga-vam de acordo com a fantasia do momento” (MAgALDI, 1985, p. 26). “A família da Com-media dell’arte expandiu-se de tal maneira que todo mundo já travou relações com seus membros, freqüentemente sem saber de quem se trata. Arlequim, Colombina, Brighela, o Doutor e tantas outras máscaras pertencem ao folclore universal” (MAgALDI, 1989, p. 86).BOULEVARD: “Utiliza-se a expressão teatro de boulevard a propósito sobretudo da comédia ligeira, sem pretensões intelectuais e destinada a divertir o público (seria pleonasmo chamar esse público de burguês ou pequeno-burguês)” (MAgALDI, 1985, p. 100).

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2.2 Para a leitura de textos literários dramáticos

Quando efetivamos a análise de um texto literário dra-mático, podemos nos valer de diferentes proposições teórico-críticas, do mesmo modo como efetivamos a leitura analítica de toda e qualquer obra literária. Assim, são muitas e varia-das as maneiras de proceder a abordagem textual, que va-riam conforme os interesses do analista e de acordo com as igualmente variadas possibilidades de leitura que o texto “abre”. Para fins metodológicos básicos, entretanto, vamos apresentar certos elementos que podem nos orientar nesse percurso de reconhecimento das obras literárias dramáticas (RYNGAERT, 1995).

• O título: como em toda criação literária, o título é um elemento revelador de sentidos, mesmo que não no-meie diretamente a temática ou algum aspecto central do tema ou, ao contrário, revele-se como irônico ou paródico. Para Ryngaert, o título “possui em si uma dinâmica, um embrião da narrativa, o esboço de uma moral ou o anúncio de um desfecho; pode indicar um projeto de acordo com uma tradição cultural ou ma-nifestar ruptura” (p. 37). Por isso, toda a atenção ao título é sempre bem-vinda quando efetivamos a análi-se de um texto dramático.

• A indicação do gênero que se segue ao título (ou sua ausência): normalmente na forma de subtítulo, a indi-cação do gênero do texto fornece as mesmas “pistas” que o título, indicando uma tradição ou uma paródia etc..

saiba mais

HAPPENING: “O objetivo dos realizadores de happenings (acontecimentos, na tradução li-teral) é atingir uma totalidade [existencial]. [...] [Suas principais características são]: existe aqui e agora, transgride a lei da passividade, é a concretização de um sonho coletivo (não de um espetáculo), pratica uma espécie de regresso aos instintos (sobretudo ao instinto da vida), intensifica a sensibilidade, a festividade e agitação social [...]” (MAGALDI, 1985, p. 111).

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• A estruturação de suas partes (ou inexistência de-las): muitas vezes, a forma como são nomeadas as partes de um texto já indicam que se trata de de-terminada proposição estética. Por exemplo, quan-do uma obra literária dramática é dividida em atos, já sabemos que se trata de uma prática tradicional: normalmente, mas não rigidamente, contam-se cin-co atos para a tragédia e tragicomédia e três para co-média, divididos em cenas de acordo com entrada/saída das personagens. A partir do século XVIII, passa-se também a falar em quadros - concepção pictórica da cena (ou seja, as cenas assemelham-se a pinturas). Já autores contemporâneos tendem a nomear as partes dos seus textos como sequências, fragmentos, movimentos, partes etc.; ou nem as no-meiam, passando a indicar somente uma sequencia-lidade através de títulos e/ou números (como nos textos de Brecht, que conheceremos adiante). Pode-se também observar se apontam para um processo de continuidade ou descontinuidade temporal e es-pacial.

• O material textual: também é muito importante atentarmos para a forma como se apresenta o tex-to - se em diálogos, com falas alternadas, tendo ou não os discursos a mesma extensão; se em pequenos ou grandes monólogos ou até mesmo somente em monólogos alternados ou um único monólogo — aí muitas vezes reside o peso das personagens, a inten-cionalidade pragmática do texto (os efeitos preten-didos pelo texto sobre o leitor), a estética a que se vincula (por exemplo, se é mais ou menos ligado a uma concepção tradicional da arte dramática).

• Do material textual fazem parte as didascálias: quando inexistentes, indicam que todo “peso” de sentido deve ser atribuído ao texto destinado às

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personagens; quando são quantitativamente supe-riores ao próprio texto a ser representado, indicam claramente uma posição muito mais narrativa e de valorização da “quebra” de ilusão cênica. Além disso, as didascálias são importantes indicadores espaciais, pois determinam a existência de espaços bem demar-cados, detalhados ou, ao contrário, deixam toda loca-lização muito vaga e imprecisa, o que também ocorre com a determinação temporal. Por meio das rubricas, portanto podemos definir onde e quando se passa o texto, mas, se não há nenhuma indicação de espaço e tempo, também isso significa um sentido: a proposta do texto de ser “universalizado”, de valer para todas as épocas e lugares, por tratar-se (por exemplo) de uma reflexão sobre a condição humana.

• A estruturação do enredo e dos caracteres: a forma como estão “arranjadas” as ações, a maneira como agem as personagens, são os mais fortes indicativos estéticos e pragmáticos do texto. Inclusive a ine-xistência de um enredo propriamente dito ou até mesmo de personagens enquanto personalidades, também dizem muito da proposta da obra dramá-tica. No caso de uma comédia, por exemplo, deve-mos observar os elementos propiciadores do riso; no caso de um drama, os elementos que propiciam o conflito, enfim, como afirmou Aristóteles, toda nossa atenção maior deve estar voltada para o mito, para o arranjo das ações.

• A intriga: no caso do estudo do mito (Aristóteles), devemos identificar a progressão exterior de uma ação dramática para chegarmos ao reconhecimento do conflito central do texto, sem que se percam de vista as várias implicações contextuais que estão em jogo e a maneira como provocam seus efeitos (ca-tarse, reflexão etc.).

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• - O discurso das personagens: observando como se organiza o discurso das personagens, podemos verificar as relações entre os enunciadores, entre as palavras e seus emissores, o modo como as dizem e por que dizem; nesse caso, podemos perceber se as falas vão no sentido do esperado ou se rompem com o código previsível, por exemplo; também as oposições e semelhanças entre elas devem ser obser-vadas, assim como a formação ou não de duplos por diferenciação ou complementaridade.

• O nome das personagens: esse é um elemento mui-to revelador em toda obra literária, pois o nome das personagens estabelece o jogo das identidades representadas no texto; e do mesmo modo, se não são nomeadas, podem estar tipificadas, quer dizer, podem corresponder a tipos sociais (a fofoqueira, o esperto, o tolo etc.; ou profissionais, como o juiz, o padre, o comerciante etc.).

Combinadas essas várias redes de sentido do texto literário dramático, abrem-se as possibilidades para suas nu-merosas interpretações. Como afirma Ryngaert (1996, p. 147): “uma pista de leitura pede para ser desenvolvida, am-plificada, imaginada e, no entanto, revisitada e verificada. O leitor não passa acima do texto, expõe-se nele”.

Desse modo, a leitura do texto literário dramático per-mite, como toda obra literária, o nosso conhecimento sobre outras realidades, sobre diferentes culturas. Nesse sentido de alteridade (de encontro com o outro) também aprendemos a sonhar outros mundos possíveis e, sobretudo, reencontra-mos criticamente a nós mesmos.

você sabia?

Imagem 4: Máscaras gregas. Fonte: <http://migre.me/b2j8T>

Para o teatro grego, a persona é a máscara, o papel desempenhado pelo ator, e não a per-sonagem esboçada pelo autor dramático. O ator é somente um intérpre-te que não se confun-de com a ficção e que o público não assimila imediatamente a uma encarnação da perso-nagem textual (RYNgA-ERT, 1995, p. 126).

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1. Leia o texto integral da tragédia Édipo Rei, de Sófo-cles, (disponível no site http://www.dominiopubli-co.gov.br). Observe a seguinte “dica” do professor Jean-Pierre Ryngaert (que é docente titular no Ins-tituto de Estudos Teatrais da Sorbnonne, Paris III): Pratique a leitura em voz alta dos textos dramáticos, pois “trata-se de um exercício precioso, mesmo que não nos consideremos em absoluto atores [...]. Es-sas leituras constituem tentativas de dizer, que privi-legiam a materialidade do texto durante os primei-ros contatos, em que convém ser sério sem se levar a sério e, por que não, encontrar prazer no que se faz” (p. 49-50).

2. Leia o texto integral da tragédia Hamlet, de William Shakespeare (disponível em http://www.elivros-gratis.net/livros-gratis-william-shakespeare.asp).

3. Considere a seguinte abordagem:O trágico nasce do confronto do herói com uma fatalidade, inevitável e insolúv-el, geralmente provocada pelo conflito do homem com algo que lhe é superior (princípio moral, preceito religioso). [...] Em linhas gerais, pode-se dizer que a ação do herói trágico clássico é impulsionada pelo desejo de cumprir um dever a qualquer custo ([...] o rei Édipo deve livrar a cidade da peste e encontrar o assassino de Laio). Já o trágico moderno é marcado pelo con-flito entre o dever e o querer do herói; [nas peças de Shakespeare], o trágico surge da tensão entre o dever e o querer do herói, abrindo caminho para novas concepções do trágico e novas formulações da tragédia (PASCOLATI, 2009, p. 107).

ATIVIDADES

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Destacamos, a seguir, o famoso monólogo do prínci-pe Hamlet. Após a leitura das peças Édipo-Rei e Hamlet, e após a leitura do trecho seguinte da referida peça shakespe-ariana, responda:

a. Por que esta questão (“ser ou não ser”) não seria adequada ao rei Édipo?

b. Selecione trechos da peça de Sófocles que demons-trem a hybris (o que ultrapassa as medidas, a desmedida, a transgressão) do herói e explique os critérios de sua seleção:

c. Compare os finais de Édipo e de Hamlet e desen-volva um comentário sobre a dimensão do trágico em cada um deles:

“Hamlet – Ser ou não ser, eis a questão. Qual será a atitude mais nobre: suportar o fardo e as agressões de um destino injusto ou se levantar em armas contra um mundo de desventuras e acabar com elas resistin-do? Morrer, dormir, nada mais; dizer que dormindo podemos curar os sofrimentos do coração e os mil conflitos que con-stituem a natural herança da carne, é, na verdade, a solução que desejamos. Morrer! Dormir; dormir, sonhar, talvez? Eis o pon-to de interrogação. Quais serão os sonhos que teremos no sono da morte, quando escaparmos ao torvelinho da vida. Esta é a reflexão que prolonga a vida miserável; pois se assim não fosse, quem suportaria as humilhações de nossa época, as injúrias dos opressores, as afrontas dos poderosos, as agonias do amor desprezado, a lentidão da justiça, a valorização da mediocridade, se estivesse em suas mãos obter sossego na ponta de um punhal? Quem suportaria tão dura carga, gemendo e suando ao peso de uma vida de trabalho, se não fosse o medo de alguma coisa após a morte, terra mis-teriosa de onde nenhum viajante jamais regressou? É isto que nos inibe a vontade, nos fazendo aceitar os males conhecidos, com medo de encontrarmos outros que não conhecemos. A consciência nos faz

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a todos covardes. Nossas resoluções mais firmes empalidecem perante o débil clarão de nosso viciado raciocínio e é assim que nossas ações, com tais reflexões deixam de ser ação... Agora, silêncio!”

Disponível em: www.tesctheatre.org.br/.../cur-so_de_dramaturgia__completo_.doc/. Acesso em jan./2012.

4. Pesquise quem foi Aristófanes e elabore uma sin-tética biografia sobre este importante comediógra-fo grego (não esqueça de indicar a(s) fonte(s) de sua consulta):

5. Leia a comédia Lisístrata, de Aristófanes (disponível em 213.13.123.56/biblioteca/livros/teatro/lisistrata.pdf) e elabore um comentário sobre a forma como são apresentadas as personagens, como se desenro-lam as ações, a adequação do título da peça, se são ou não importantes as didascálias:

6. Com base no seu comentário anterior, responda: que elementos são caracterizadores do gênero co-média nessa peça de Aristófanes? O que ele está criticando com seu texto?

RESUMINDO

Nesta aula, tratamos dos principais aspectos que caracterizam os textos literários dramáticos. Assim, retomamos o estudo básico da Poética de Aristóteles, definimos os elementos fundamentais da tragédia e da comédia, e assinalamos, de modo introdutório, outros relevantes gêneros dramáticos.

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COSTA, Ligia Militz da; REMÉDIOS, Maria Luíza Ritzel. A tragédia: estrutura e história. São Paulo: Ática, 1988.

LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário da psicaná-lise. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

MAGALDI, Sábato. O texto no teatro. São Paulo: Pers-pectiva, 1989.

______. Iniciação ao teatro. São Paulo: Ática, 1985.

PASCOLATI, Sonia Aparecido Vido. Operadores de leitura do texto dramático. In: BONNICI, T.; ZOLIN, L. O. Teo-ria Literária – abordagens históricas e tendências contem-porâneas. Maringá: Eduem, 2009.

RYNGAERT, Jean-Pierre. Introdução à análise do teatro. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

REFERêNCIAS

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Suas anotações

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Objetivo:

• Estudar os principais elementos dos textos dramáticos de língua portuguesa na transição da Idade Média para a Idade Moderna, com destaque para os autos de Gil Vicente. Reconhecer a atualização do gênero em peças brasileiras contemporâneas.

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1 INTRODUÇÃO

Gil Vicente foi o primeiro dramaturgo que escreveu textos dramáticos em língua portuguesa. Isso não significa que antes dele não se realizassem, em Portugal, diferentes expressões artísticas relacionadas à arte teatral, mas coube a esse autor o mérito de dramatizar a vida portuguesa, tan-to em textos ainda muito marcados pelos valores medievais quanto em obras de forte espírito satírico. Essa dupla face de Gil Vicente, como artista defensor de valores herdados do mundo medieval e, ao mesmo tempo, um homem de seu tempo, humanista, crítico ferrenho da hipocrisia social, fez dele um nome muito singular no conjunto da literatura por-tuguesa. Seu teatro, muito vivo e envolvente, demarcou-se pela simplicidade formal e pelo humor corrosivo que não poupava a quase nenhum setor da sociedade de seu tempo.

Nesta aula, vamos retomar alguns aspectos do teatro vicentino para, principalmente, demonstrarmos a sua força expressiva, que permitiu a permanência de seus textos na dramaturgia em língua portuguesa. Como legado incontor-nável, a arte de Gil Vicente continua servindo de referência ao teatro contemporâneo. No caso da dramaturgia brasilei-ra, veremos como João Cabral de Mello Neto atualizou o auto medieval em sua peça Morte e vida Severina.

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2 O TEATRO DE gIL VICENTE: TRADIÇõES E LEgADOS

Pouco se sabe sobre o nascimento e a vida de Gil Vi-cente, mas, por dados contidos em sua própria obra e em al-gumas cartas e documentos familiares, estima-se que tenha nascido entre 1465 e 1470. Viveu, assim, sob os reinados de D. Manuel e de D. João III, quando Portugal passava “à fase decisiva de transformação da sociedade portuguesa em con-sequência dos descobrimentos e é essa mutação histórica que inspira grande parte de sua obra” (SARAIVA, 1975, p. 6).

Nesse contexto, a posição de Gil Vicente foi de crí-tica ao expansionismo português, pois julgava nefasto o re-sultado do enriquecimento fácil por parte dos navegadores, que levava a um relaxamento dos costumes, a uma desvalo-rização do trabalho do agricultor e, inclusive, à degeneração da família, como se pode ler no Auto da Índia. Nessa his-tória, um comerciante integra uma armada para navegar em busca das especiarias e deixa em casa a esposa que, apenas acompanhada de uma aia, passa a divertir-se com amantes. Vamos relembrar alguns trechos:

FARSA CHAMADA AUTO DA ÍNDIAFiguras: Ama, Moça, Castelhano, Lemos, Marido

À farsa seguinte chamam Auto da Índia. Foi fundada sobre que uma mulher, estando já embarcado pera a Índia seu marido, lhe vieram dizer que estava desaviado e que já não ia; e ela, de pesar, está chorando. Foi feita em Almada, representada à muito

católica Rainha D. Lianor, era de 1509 anos.

MOÇA Jesu! Jesu! que é ora isso?É porque se parte a armada?

AB

AMA Olhade a mal estreada!Eu hei-de chorar por isso?

BA

MOÇA Por minh’ alma que cuideie que sempre imaginei,que choráveis por nosso amo.

CCD

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AMA Por qual demo ou por qual gamo,ali, má hora, chorarei?Como me leixa saudosa!Toda eu fico amargurada!

D CAB

MOÇA Pois por que estais anojada?Dizei-mo, por vida vossa.

BA

AMA Leixa-m’, ora, eramá,que dizem que não vai já.

CC

MOÇA Quem diz esse desconcerto? DAMA Disseram-mo por mui certo

que é certo que fica cá.O Concelos me faz isto.

DC

MOÇA S’eles já estão em Restelo,como pode vir a pêlo?Melhor veja eu Jesu Cristo,isso é quem porcos há menos.

AMA Certo é que bem pequenossão meus desejos que fique.

MOÇA A armada está muito a pique.AMA Arreceio al de menos.

Andei na má hora e nelaa amassar e biscoutar,pera o o demo o levarà sua negra canela,e agora dizem que não.Agasta-se-m’o coração,que quero sair de mim.

MOÇA Eu irei saber s’é assim.AMA Hajas a minha benção.

Vai Moça e fica a Ama dizendo:

AMA A Santo António rogo euque nunca mo cá depare:não sinto quem não s’enfarede um Diabo Zebedeu.Dormirei, dormirei,boas novas acharei.

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São João no ermo estava,e a passarinha cantava.Deus me cumpra o que sonhei.Cantando vem ela e leda.

MOÇA Dai-m’alvíssaras, Senhora,já vai lá de foz em fora.

AMA Dou-te uma touca de seda.MOÇA Ou, quando ele vier,

dai-me do que vos trouxer.AMA Ali muitieramá!

Agora há-de tornar cá?Que chegada e que prazer!

MOÇA Virtuosa está minha ama!Do triste dele hei dó.

AMA E que falas tu lá só?MOÇA Falo cá co’esta cama.

AMA E essa cama, bem, que há?Mostra-m’essa roca cá:siquer fiarei um fio.Leixou-me aquele fastio sem ceitil.

MOÇA Ali eramá!Todas ficassem assi.Leixou-lhe pera três anostrigo, azeite, mel e panos.

AMA Mau pesar veja eu de ti!Tu cuidas que não t’entendo?

MOÇA Que entendeis? Ando dizendoque quem assi fica sem nada,coma vós, que é obrigada...Já me vós is entendendo.

AMA Ha ah ah ah ah ah!Est’era bem graciosa,quem se vê moça e fermosaesperar pola irá má.Hi se vai ele a pescarmeia légua polo mar,

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isto bem o sabes tu,quanto mais a Calecu:quem há tanto d’esperar?Melhor, Senhor, sé tu comigo.À hora de minha morte,qu’eu faça tão peca sorte.Guarde-me Deus de tal p’rigo.O certo é dar a prazer.Para que é envelheceresperando pelo vento?Quant’eu por mui nécia sentoa que o contrário fizer.

Fonte: Disponível em: http://www.bibvirt.futuro.usp.br. Acesso em jan. 2012.

A criada (Moça), aflita pelo choro da patroa (Ama), supõe que a tristeza seja motivada pela partida do patrão na armada para a Índia: “tra-ta-se da armada que saiu de Lisboa [da praia do Restelo] em 1506, sob o comando de Tristão da Cunha”.

Expressão da 3ª linha: “Olha a tola!”

gamo: marido enganado, traído.

Má hora: “locução de sentido vago mas de-preciativo, oposto a ‘embora’.

anojada: desgostosa, chorosa.

Leixa-me ora eramá: “deixa-me em paz! Era-má é o mesmo que má hora”.

desconcerto: disparate.

Concelos: “referência a Jorge de Vasconcelos, funcionário régio encarregado de abastecer e despachar as naus que partiam para a Índia”.

vir a pêlo: voltar atrás.

Ver Jesus Cristo: ir para o céu. “O sentido é, pois: assim tivesse eu certeza de ir para o Céu, como a tenho de que o embarcado não volta”.

a pique: pronta para partir.

NOTAS (adaptadas ou citadas de SARAIVA, 1975, p. 27 a 30):

“Ali muitieramá!”: expressão aproximada de “Era só o que faltava!”. Com os dois versos seguintes, completa-se o seguinte sentido: “a maior parte dos que partiam para a Índia não regressavam mais; a Ama exprime o desagrado por ver a Moça admitir a possibilidade de re-gresso”.

“E que falas tu lá só?”: nos dois versos ante-riores a esse, a moça fala em aparte (como se falasse sozinha ou se dirigisse ao público, de maneira dissimulada em relação a outra per-sonagem com quem contracena). Trata-se de um comentário irônico da moça, criticando a falta de virtudes da ama.

“Mostra-m’essa roca cá:/siquer fiarei um fio./Leixou-me aquele fastio sem ceitil: “o fiar era uma ocupação permanente da mu-lher casada. [...] A jura da ama é, portanto, um protesto contra as obrigações domésticas. [...] [Fastio era o marido, e ceitil era a “sexta parte de um real:] a mais pequena moeda da época”.

“Todas ficassem assi/ Leixou-lhe pera três anos/trigo, azeite, mel e panos”: em novo à parte, a criada está criticando a ama, desmen-tindo sua situação de penúria: “três anos foi, efetivamente, a duração da viagem da armada de Tristão da Cunha. O marido abastecera a

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Arreceio al de menos: “receio que, à ultima hora, falte alguma coisa e não parta”.

“a amassar e biscoutar,/pera o demo o levar/ à sua negra canela,/e agora dizem que não”: “Os embarcados deviam partir abastecidos de alimentos para muitos meses. O biscouto era o pão torrado, que a ama preparou para a viagem. [...] Canela = Índia” [pois a canela era uma das principais especiarias vindas da Índia]. E ela acha que pode ter trabalhado em vão, se ele não partir.

“Santo Antonio era o santo das coisas perdi-das; a Ama pede-lhe que nunca lhe ache (de-pare) o marido”.

quem não s’enfare: quem não se aborreça.

leda: alegre.

Nessa primeira passagem, observamos a composição da obra, designada pelo autor como uma farsa, gênero que estudaremos adiante, em redondilha maior e estrofes de no-ve versos. As rimas garantem a marcação sonora do texto, numa continuidade rítmica que demonstra o seu dinamis-mo (como assinalado nas duas primeiras estrofes, a título de exemplo, o sistema das rimas é ABBACCDDC, constante ao longo de todo o texto).

Nesses diálogos da Ama com a Moça, ou nos apartes da criada, vemos a crítica de Gil Vicente ao comportamento das mulheres que, deixadas por seus maridos, são facilmente desvirtuadas do papel social que deveriam exercer naquele tempo. Interessante é notarmos que a criada representa, de certo modo, a voz da consciência virtuosa que a patroa não tem. Entretanto, devemos saber que “há uma longa tradição de farsa medieval sobre o tema do adultério feminino, e a ela se liga esta veia vicentina, mas impressiona a extraordinária vivacidade destas figuras” (SARAIVA, 1996, p. 202).

Dentre essas figuras, destaca-se o Escudeiro como tipo sempre criticado por Gil Vicente:

[Trata-se] de um género de parasita ocio-so e vadio [...]. O Escudeiro imita os pa-

casa de gêneros para esse período; era, por-tanto, pessoa com certo nível econômico”.

esperar pola ira má: esperar pelo marido. As-sim, o sentido desta estrofe pode ser assim enten-dido: se ela não espera o marido quando vai pes-car (engano-o em qualquer oportunidade), tanto mais em distância e tempo tão longos (Calecut = Índia).

qu’eu faça tão peca sorte: tenha tão má sorte.

Quant’eu por mui nécia sento/ a que o con-trário fizer: esses versos podem ser lidos assim: “na minha opinião, quanto a mim, considero que é muito estúpida quem fica esperando pelo ma-rido”.

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drões da nobreza, toca guitarra, verseja, faz serenatas [...] pavoneia-se de bravo e cavaleiro, espera o seu ‘acrescentamento’ que o instalará de vez na nobreza. Mas não trabalha, passa fome, tem medo [...] Essa parasitagem faminta, que tendia multipli-car-se com a decadência da baixa nobreza e de seus ramos desqualificados, levantava protestos por parte de burgueses e artí-fices. [...] Gil Vicente se faz eco de um sentimento popular, mas cabe perguntar em que medida ele visa, através do Escu-deiro, o próprio ideal da vida nobre, [pois] os fidalgos também aparecem duramente atacados nos autos (SARAIVA, 1996, p. 200).

Na passagem seguinte, encontramos essa crítica do dramaturgo português ao tipo do Escudeiro, o personagem Lemos, um dos amantes da patroa, principalmente por meio da voz da Moça, que ironiza a situação decadente do rapaz, dando a entender que somente por interesse ele se acerca da Ama:

AMA Um Lemos andava aquimeu namorado perdido.

MOÇA Quem? O rascão do sombreiro?AMA Mas antes era escudeiro.

MOÇA Seria, mas bem safado;não suspirava o coitadosenão por algum dinheiro.

AMA Não é ele homem dessa arte.MOÇA Pois inda ele não esquece?

Há muito que não aparece.AMA Quant’ eu não sei dele parte.

MOÇA Como ele souber à fé.Que nosso amo aqui não é,Lemos vos visitará.

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LEMOS Hou da casa!AMA Quem é lá?

LEMOS Subirei?AMA Suba quem é.

LEMOS Vosso cativo, Senhora.AMA Jesu! Tamanha mesura!

Sou rainha porventura?LEMOS Mas sois minha imperadora.

AMA Que foi do vosso passear,com luar e sem luar,

AMA toda a noite nesta rua?LEMOS Achei-vos sempre tão crua,

que vos não pude aturar.Mas agora como estais?

AMA Foi-se à Índia meu marido,e depois homem nascidonão veio onde vós cuidais;e por vida de Constança,que se não fosse a lembrança...

MOÇA Dizei já essa mentira.AMA Que eu vos não consentira

entrar em tanta privança.LEMOS Pois agora estais singela,

que lei me dais vós, Senhora?AMA Digo que venhais embora.

LEMOS Quem tira àquela janela?AMA Meninos que andam brincando,

e tiram de quando em quando.LEMOS Que dizeis, Senhora minha?

AMA Metei-vos nessa cozinha,que me estão ali chamando.

CASTELHANO Ábrame, vuessa merced,que estoy aquí a la verguença![...]

AMA Calai-vos, muitieramáaté que meu irmão se vá!

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NOTAS (adaptadas de SARAIVA, 1975, p. 37 a 40):

Dissimulai por i, entanto.Ora vistes o quebranto?Andar, muitieramá!

LEMOS Quem é aquele que falava?AMA O Castelhano vinagreiro.

LEMOS Que quer?AMA Vem polo dinheiro

do vinagre que me dava.Vós queríeis cá ceare eu não tenho que vos dar.

Já na passagem em que o marido regressa, além da hi-pocrisia que mantém o casamento, o autor desvela sua críti-ca sobre a situação de Portugal diante da expansão marítima:

rascão do sombreiro: vadio de chapéu.

tão crua,/ que vos não pude aturar: ele achou-a tão pouco amável que não sen-tiu mais vontade de lhe fazer a corte.

e por vida de Constança: a Ama jura sobre a própria vida – ficamos sabendo, assim, que ela se chama Constança, ter-mo sinônimo de ‘fidelidade” (constân-cia), o que causa efeito cômico por não ser esse o caráter da Ama que, muito pelo contrário, é infiel ao marido.

Dizei já essa mentira: A moça, em aparte, assinala a falsidade da Ama em dizer-se virtuosa.

privança: privacidade.

que lei me dais vós, Senhora?: “que tipo de relações vamos ter?”

Digo que venhais embora: “Digo que sejais bem-vindo”.Metei-vos nessa cozinha,/que me estão ali chamando: a Ama trata de esconder o amante Lemos na cozinha, enquanto o outro, o Castelhano, atira pedras em sua janela para entrar.Abra-me vuessa merced,/que estoy aquí a la verguença: “Deixe-me entrar, senhora, pois estou passando vergonha aqui em público”. Dissimulai por hi, entanto/ Ora vistes o quebranto? “Disfarce, ou já vistes o que pode acontecer de mau (quebranto = mau-olhado)/’.

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MOÇA É noss’amo, como rima!AMA Teu amo? Jesu, Jesu,

Alvíssaras pedirás tu.MARIDO Abraçai-me minha prima.

AMA Jesu, quão negro e tostado!Não vos quero, não vos quero.

MARIDO E eu a vós a si, porque esperoserdes mulher de recado.

AMA Moça, tu que estás olhando,vai muito asinha saltando,faze fogo, vai por vinhoe a metade dum cabritinho,enquanto estamos falando.Ora como vos foi lá?

MARIDO Muita fortuna passei.AMA E eu, oh quanto chorei,

quando a armada foi de cá.E quando vi desferirque começastes de partir,Jesu, eu fiquei finada,três dias não comi nada,a alma se me queria sair.

MARIDO E nós cem léguas daquisaltou tanto sudueste,sudueste e oés-suduesteque nunca tal tromenta vi.

AMA Foi isso à quarta-feira,aquela logo primeira?

MARIDO Si, e começou n’alvorada.AMA E eu fui-me de madrugada

a nossa Senhora d’Oliveira.E com a memória da cruzfiz-lhe dizer uma missa,e prometi-vos em camisaa Santa Maria da Luz.E logo à quinta-feira

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fui ao Spírito Santocom outra missa também.Chorei tanto que ninguémnunca cuidou ver tal pranto.Correstes aquela tormenta?Andar...

MARIDO Durou três dias.AMA As minhas três romarias

com outras mais de quarenta.MARIDO Fomos na volta do marMARIDO quasi a quartelar:

a nossa Garça voavaque o mar se espedaçava.Fomos ao rio de Meca,pelejámos e roubámose mui risco passámos:a vela, árvore seca.

AMA E eu cá esmorecer,fazendo mil devações,mil choros, mil orações.

MARIDO Assi havia de ser.[...]

MARIDO Lá vos digo que há fadigas,tantas mortes, tantas brigase perigos descompassados,que assi vimos destroçadospelados como formigas.

AMA Porém vindes vós mui rico?...MARIDO Se não fora o capitão,

eu trouxera, a meu quinhão,um milhão vos certifico.Calai-vos que vós vereisquão louçã haveis de sair.

AMA Agora me quero eu rirdisso que me vós dizeis.Pois que vós vivo viestes,

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que quero eu de mais riqueza?Louvado seja a grandezade vós, Senhor que mo trouxestes.A nau vem bem carregada?

MARIDO Vem tão doce embandeirada.AMA Vamo-la, rogo-vo-lo, ver.

MARIDO Far-vos-ei nisso prazer?AMA Si que estou muito enfadada.

Vão-se a ver a nau e fenece esta farsa.

NOTAS (adaptadas/citadas de SARAIVA, 1975, p. 48 a 50):

Nos versos destacados, “Fomos ao rio de Meca,/ pe-lejámos e roubámos” e em “tantas mortes, tantas brigas/ e perigos descompassados”, encontra-se a crítica de Gil Vi-

minha prima: forma de tratamento afetuoso, usado de maneira independente à relação de parentesco.

mulher de recado: mulher cumpridora de seus deveres, fiel.

fortuna: tempestade

e prometi-vos em camisa: prometer o equivalente do peso (sem vestuário) em cera.

rio de Meca: mar Vermelho

a vela, árvore seca: navegação sem velas ou com as velas fechadas.

Se não fora o capitão,/eu trouxera, a meu quinhão,/um milhão vos cer-tifico: “Cada elemento da tripulação tinha o direito de trazer consigo certa quantidade de mercadoria (a quintalada); se era pimenta, fazia-se a venda na Casa da Índia e recebia metade (a outra metade era para o rei); no caso de se tratar de outros gêneros, a venda era livre. A quantidade era propor-cional à patente, e era o capitão do navio que fiscalizava o peso das quin-taladas. Um milhão: um milhão de reais [moeda daquele tempo], o que também se chamava conto, era a mais alta unidade de contagem (=conto); era uma quantia muito elevada [...]”

quão louçã: que elegante

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cente ao processo de enriquecimento dos comerciantes: O sentimento popular faz vibrar os autos vicentinos, mas também salta aos olhos que esse sentimento popular se cristaliza em torno de valores tradicionais. Gil Vi-cente aceita-os, como tinha de aceita-los o povo. O grupo deveras inovador nessa época, e perigoso para a hierarquia feudal, não era o do camponês nem o do artesão, mas sim o do mercador (SARAIVA, 1996, p. 203).

Se considerarmos que “a viagem de 1506 teve obje-tivos comerciais e não militares” (SARAIVA, 1975, p. 50), podemos concluir que ao referir as lutas e os roubos prati-cados pelos portugueses, o que se acentua é a contestação de Gil Vicente à ação dos portugueses nas Ìndias. Além disso, demonstra, com os versos seguintes sobre as mortes, bri-gas e perigos, que a cobiça acarretava muito mais danos ao povo português do que possíveis aspectos positivos, prin-cipalmente quando esses ficavam concentrados na mão de uma minoria que desestabilizava a ordem conservadora da sociedade estamental portuguesa.

Sobre esse último aspecto, o contexto histórico-so-cial português à época de Gil Vicente, não podemos esque-cer o seguinte: “a exploração econômica do ultramar faz-se grandemente em regime de monopólio da Coroa”. Assim, embora tenha obtido avanços, a burguesia rural e comer-cial portuguesa continuou perdendo espaço para a nobre-za, pois “as expansões econômicas foram absorvidas como renda feudal, sob formas variadas, [...] o que dificultou a acumulação de capital propriamente dito e seu posterior in-vestimento na agricultura e, em geral, na produção interna” (SARAIVA, 1996, p. 171).

Assim, podemos compreender que o teatro vicentino respondeu, a seu modo, às novas configurações do mundo social de seu tempo, sendo que o Auto da Índia é considera-

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do a sua primeira obra mais elaborada. Antes dela, Gil Vicente encenou alguns monólogos:

A primeira peça vicentina, o Auto da visita-ção, é o simples monólogo de um vaqueiro, destinado a festejar o nascimento de um príncipe (o futuro D. João III), e filia-se di-retamente em representações de outro poeta palaciano, o castelhano Juan del Encina, cuja linguagem dialetal imitava. A corte portugue-sa era bilíngue, sendo castelhanas as esposas dos reis de Portugal no século XVI. Por via dos contatos entre as cortes peninsulares, Gil Vicente [...] conhecia familiarmente os po-etas de língua castelhana. [...] Mas, à medida que vai avançando e enriquecendo as suas formas e repertório teatral, [o autor] integra novos elementos da tradição europeia [como sermões burlescos, fantasias alegóricas, mis-térios de origem francesa e inglesa, romances de cavalaria, etc.] (SARAIVA, 1996, p. 192).

Os méritos criativos de Gil Vicente estão justamente em sua capacidade de se servir dessa tradição e a ela incorporar sempre novos elementos, capazes de responder a questões de sua realidade histórico-cultural. Nesse sentido, adaptou, inclu-sive, em muitas de suas obras, histórias e tipos humanos que figuravam em contos orais da Península Ibérica.

No caso da peça que estudamos, é interessante anotar-mos que se trata de uma “farsa a que chamam Auto da Índia”. Considerando-se essa apresentação do texto, “’auto’ parece ser a designação geral para qualquer texto de teatro de Gil Vicen-te. [...] A mudança de designação [corresponde] a uma ma-neira diferente de ocupar teatralmente o tempo e o espaço” (MATEUS, 1984, p. 12). Essa mudança deveu-se, sobretudo, ao fato de que, neste texto vicentino, há uma história completa contada, não se trata de um episódio ou alguns episódios en-cenados sem um “enredo” que sustente as ações representadas. E deve-se atentar também para o fato de que, com exceção do personagem Castelhano, todos os demais personagens falam

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em português: “E um português que produz efeito de real pró-ximo, de real contemporâneo do momento da representação. O teatro gera um clima que [recria] o cotidiano e menciona gentes e lugares conhecidos pelo espectador” (MATEUS, 1984, p. 13).

Com relação ao gênero farsa, “na sua forma mais sim-ples, reduz-se a um episódio cômico colhido em flagrante na vida da personagem típica” (SARAIVA, 1996, p. 195). Na far-sa, “a história corre em contos dialogados no palco, sem qualquer preocupação de unidade de tempo, e sem qualquer compartimen-tação de quadros ou atos a marcar descontinuidades temporais” (SARAIVA, 1995, p. 196). No caso de Gil Vicente, são exemplares, além do Auto da Índia, as farsas Auto de Inês Pereira, Farsa dos Al-mocreves, Quem tem farelos?, O clérigo da Beira, para citarmos as principais.

Assim, mesmo marcado pela simplicidade, por uma arte ainda de traços medievais, o teatro vicentino conseguiu grande vi-vacidade e, por isso, permaneceu no tempo, para além da impor-tância de sua história como precursor da literatura dramática em Língua Portuguesa. Ainda hoje, suas peças ganham sabor de atua-lidade quando questionam aspectos da vida humana como as falsas virtudes, a falsa modéstia, os interesses egoístas e muitos outros.

3 DE AUTOS E OUTROS ATOS NA CENA BRASILEIRA

A literatura dramática brasileira só se inicia, de fato, com a Independência do país; antes disso, apenas se registram expressões esparsas (COUTINHO, 2004).

Considera-se que o início de manifestações teatrais re-alizadas no Brasil foi marcado pela atividade jesuítica. A ca-tequese dos índios era o objetivo maior dos autos do padre Anchieta:

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Colocar junto não só a representação religiosa como a língua européia: tal foi o trabalho a que se dedicaram os jesuítas e os conquistadores a partir da segunda metade do século XVI no Brasil. As representações teatrais, feitas no in-terior das tabas indígenas, comportam [...] um diálogo escrito metade em português e outra metade em tupi-guarani, ou, de maneira mais precisa, o texto em português e sua tradução em tupi-guarani. [...] Pouco a pouco, as repre-sentações teatrais propõem uma substituição definitiva e inexorável: de agora em diante, na terra descoberta, o código lingüístico e o có-digo religioso se encontram intimamente liga-dos, graças à intransigência, à astúcia e à força dos brancos. Pela mesma moeda, os índios per-dem sua língua e seu sistema sagrado e recebem em troca o substituto europeu (SANTIAGO, 2000, p. 14).

Esse processo de aculturação violenta, portanto, con-tribuiu de maneira muito profunda na desestruturação e eli-minação de muitas culturas indígenas e sabemos o quanto a situação dos índios continua sendo um dos grandes problemas não resolvidos em nosso país. A ele somam-se as profundas desigualdades que ainda exigem muito das políticas públicas e dos movimentos sociais, sendo que a arte teatral e a literatura dramática brasileiras, ao longo de sua história, não deixaram de contemplar essas perspectivas críticas.

Nesse sentido, vamos estudar, a seguir, um auto escrito na década de 50 do séc. XX: mantendo os principais elemen-tos formais do gênero de tradição medieval, o poema Morte e Vida Severina: Auto de Natal Pernambucano, de João Cabral de Mello Neto direciona seu olhar crítico para a situação de injustiça social vivida no nordeste brasileiro. Ainda que, ob-viamente, com outros esquadros e compassos, de certo modo podemos encontrar nesse texto um legado importante da tra-dição de Gil Vicente.

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3.1 O Auto de Natal Pernambucano: a esperança

na vida severina

Assim como os períodos históricos só se de-limitam retrospectivamente, assim também os movimentos artísticos e literários só passam à história depois que as mudanças a que deram origem, já estabilizadas no âmbito da geração que as promoveu, transferem-se às gerações seguintes como herança cultural (NUNES, 2007, p. 142).

Publicado em 1956, o poema dramático Morte e vida severina, que tem por subtítulo Auto de Natal pernambuca-no, do escritor pernambucano João Cabral de Melo Neto, foi encenado pela primeira vez dois anos depois, “por um grupo amador, o Norte Teatro Escola do Pará, que o levou a palcos do Recife por ocasião do 1º Festival Nacional de Teatros dos Estudantes. A montagem valeu a João Cabral o Prêmio de Me-lhor Autor Teatral daquele ano” (ARAÚJO, 2006). O reco-nhecimento e a ampla divulgação da obra, entretanto, ocorre-ram em 1965, “quando foi encenado no teatro da PUC-SP e do Rio de Janeiro e posteriormente no Festival Universitário de Nancy (França), com música de Chico Buarque de Holanda” (ARAÚJO, 2006).

Morte e vida severina já fora encenado em 1958 sem muito sucesso por Walmor Chagas e Cacil-da Becker. Porém, a identificação com a realida-de do país e a predileção por um autor nacional foram as razões que levaram o grupo de teatro universitário TUCA a escolher o texto de João Cabral de Melo Neto. Às 21 horas do dia 11 de setembro de 1965, a estreia. Uma hora depois, dez minutos de aplausos e a angústia dá lugar ao alívio. No dia seguinte, jornais publicam crí-ticas elogiosas à peça. O auditório Tibiriçá esta-va inaugurado, porém, a partir daquela data, o nome torna-se outro: TUCA [Teatro da Univer-sidade Católica de São Paulo]. (SOUZA; Revista CULT, 132).Disponível em: <http://revistacult.uol.com.br/home/2010/04/registros-de-uma-historia>.

para conhecer

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Começaremos nosso estudo pelo título desta obra ca-bralina: sabemos que Severino é um dos mais recorrentes nomes nordestinos e é essa a designação do protagonista – no título, porém, há a passagem do substantivo próprio para a condição de adjetivo: a situação de Severino torna-se, ao longo do texto, uma qualidade de vida, a vida Severina, além de podermos aludir à equivalência com o sentido de severidade, de dificuldade. A vida, entretanto, vem nome-ada depois da morte, pois o padecimento seria o primeiro destino da maioria da população mais empobrecida do Nor-deste, diante da opressão social; no texto, entretanto, res-surge a esperança na vida a partir da solidariedade e da luta dos trabalhadores por justiça social (ABDALA JÚNIOR; CAMPEDELLI, 2000) – assim, a vida sucede e sobrepõe-se à morte.

Com relação ao personagem central, é impor-tante reconhecer o seguinte:

[trata-se] de uma figura exemplar, como costumam ser, nos autos, as personae dra-matis (personagens, máscaras dramáti-cas), que representam tipos e encarnam princípios, num plano alegórico, de sig-nificado religioso-ético. O bem e o mal, o pecado e a graça nos mistérios, como figu-rações típicas, são substituídas, no Auto de Natal pernambucano, pela Vida e pela Morte [...]

A exemplaridade de Severino, na sua trajetó-

ria, consiste na sua persistência em tentar melhor sorte na cidade, partindo do sertão para o Recife, buscando as águas do Rio Capibaribe, sem corromper-se ao longo do caminho. A figura do rio é importante, pois, de certo modo, o trajeto do retirante é o mesmo caminho do rio, conforme poema homônimo de João Cabral, publicado em 1953, no qual há uma antropomorfização das águas do Capibaribe – é ele que tudo vê e sente, como quando se depara com o agreste:

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A mesma dor calada,o mesmo soluço seco,mesma morte de coisa

que não apodrece mas seca.

Na seca, a marca da pobreza do povo:

Eles são gente apenassem nenhum nome que os distinga;

que os distinga na morteque aqui é anônima e seguida.

São como ondas de mar,Uma só onda, e sucessiva.

De forma ampla, pode-se reconhecer que a “viagem” do rio e a do retirante têm um mesmo fundo contextual e crítico: a grande propriedade exploradora. No caso de “O rio”, porém, a ênfase recai no sistema das usinas que substi-tuem os engenhos, na monocultura da cana que tudo devora pela “boca” da usina, enquanto em Morte e vida severina, “particulariza-se mais o fenômeno da grande propriedade territorial, sendo o latifúndio expressamente referido co-mo dado material mais próximo, fonte de tensões dramá-ticas que a existência dos indivíduos interioriza” (NUNES, 2007, p. 60). Assim, podemos entender que a situação social opressora “marca” os retirantes e, no caso do poema dramá-tico em estudo, cabe ao protagonista relatar essa sua histó-ria, que ao longo do texto vai sendo confirmada como uma história coletiva, de todo um povo.

Imagem 7: Rio CapibaribeFonte: http://static.panoramio.com/photos/original/6713035.jpg

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Vamos acompanhar a apresentação de Severino:

O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI

— O meu nome é Severino, como não tenho outro de pia, como há muitos Severinos, que é santo de romaria, deram então de me chamar Severino de Maria; como há muitos Severinos com mães chamadas Maria, fiquei sendo o da Maria do finado Zacarias. Mas isso ainda diz pouco: há muitos na freguesia, por causa de um coronel que se chamou Zacarias e que foi o mais antigo senhor desta sesmaria. Como então dizer quem fala ora a Vossas Senhorias?Vejamos: é o Severinoda Maria do Zacarias,lá da serra da Costela,limites da Paraíba.Mas isso ainda diz pouco:se ao menos mais cinco haviacom nome de Severinofilhos de tantas Mariasmulheres de outros tantos,já finados, Zacarias,vivendo na mesma serramagra e ossuda em que eu vivia.Somos muitos Severinosiguais em tudo na vida:na mesma cabeça grandeque a custo é que se equilibra,no mesmo ventre crescidosobre as mesmas pernas finas,e iguais também porque o sangueque usamos tem pouca tinta.E se somos Severinosiguais em tudo na vida,

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morremos de morte igual,mesma morte severina:que é a morte de que se morrede velhice antes dos trinta,de emboscada antes dos vinte,de fome um pouco por dia(de fraqueza e de doençaé que a morte severinaataca em qualquer idade,e até gente não nascida).Somos muitos Severinosiguais em tudo e na sina:a de abrandar estas pedrassuando-se muito em cima,a de tentar despertarterra sempre mais extinta,a de querer arrancaralgum roçado da cinza.Mas, para que me conheçammelhor Vossas Senhoriase melhor possam seguira história de minha vida,passo a ser o Severinoque em vossa presença emigra.

Dividida em monólogos e diálogos, essa trajetória de Severino atinge o clímax dramático quando ele, entendendo que já não tem saída, decide por fim a sua vida afogando-se no Rio Capibaribe. A explicação de tanta desesperança é marcada no diálogo que estabelece com seu José, “mestre carpina”, e se interrompe com a notícia do nascimento de uma criança.

O RETIRANTE APROXIMA-SE DE UM DOS CAIS DO CAPIBARIBE

— Nunca esperei muita coisa,é preciso que eu repita.Sabia que no rosáriode cidade e de vilas,e mesmo aqui no Recifeao acabar minha descida,

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não seria diferentea vida de cada dia:que sempre pás e enxadasfoices de corte e capina,ferros de cova, estrovengaso meu braço esperariam.Mas que se este não mudasseseu uso de toda vida,esperei, devo dizer,que ao menos aumentariana quartinha, a água pouca,dentro da cuia, a farinha,o algodãozinho da camisa,ao meu aluguel com a vida.E chegando, aprendo que,nessa viagem que eu fazia,sem saber desde o Sertão,meu próprio enterro eu seguia.Só que devo ter chegadoadiantado de uns dias;o enterro espera na porta:o morto ainda está com vida.A solução é apressara morte a que se decidae pedir a este rio,que vem também lá de cima,que me faça aquele enterroque o coveiro descrevia:caixão macio de lama,mortalha macia e líquida,coroas de baronesajunto com flores de aninga,e aquele acompanhamentode água que sempre desfila(que o rio, aqui no Recife,não seca, vai toda a vida).[...] [Diálogo com Seu José, mestre car-pina]— Severino, retirante,o meu amigo é bem moço;sei que a miséria é mar largo,não é como qualquer poço:mas sei que para cruzá-lavale bem qualquer esforço.— Seu José, mestre carpina,

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e quando é fundo o perau?quando a força que morreunem tem onde se enterrar,por que ao puxão das águasnão é melhor se entregar?— Severino, retirante,o mar de nossa conversaprecisa ser combatido,sempre, de qualquer maneira,porque senão ele alagae devasta a terra inteira.— Seu José, mestre carpina,e em que nos faz diferençaque como frieira se alastre,ou como rio na cheia,se acabamos naufragadosnum braço do mar miséria?— Severino, retirante,muita diferença fazentre lutar com as mãose abandoná-las para trás,porque ao menos esse marnão pode adiantar-se mais.— Seu José, mestre carpina,e que diferença fazque esse oceano vaziocresça ou não seus cabedais,se nenhuma ponte mesmoé de vencê-lo capaz?— Seu José, mestre carpina,que lhe pergunte permita:há muito no lamaçalapodrece a sua vida?e a vida que tem vividofoi sempre comprada à vista?— Severino, retirante,sou de Nazaré da Mata,mas tanto lá como aquijamais me fiaram nada:a vida de cada diacada dia hei de comprá-la.— Seu José, mestre carpina,e que interesse, me diga,há nessa vida a retalhoque é cada dia adquirida?

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espera poder um diacomprá-la em grandes partidas?— Severino, retirante,não sei bem o que lhe diga:não é que espere comprarem grosso tais partidas,mas o que compro a retalhoé, de qualquer forma, vida.— Seu José, mestre carpina,que diferença fariase em vez de continuartomasse a melhor saída:a de saltar, numa noite,fora da ponte e da vida?

UMA MULHER, DA PORTA DE ONDE SAIU O HOMEM, ANUNCIA-LHE O QUE SE VERÁ

— Compadre José, compadre,que na relva estais deitado:conversais e não sabeisque vosso filho é chegado?Estais aí conversandoem vossa prosa entretida:não sabeis que vosso filhosaltou para dentro da vida?Saltou para dento da vidaao dar o primeiro grito;e estais aí conversando;pois sabei que ele é nascido.

Desse momento em diante, “Severino retira-se da ação [...] e passa a presenciar uma outra – a comemoração natalina – representada para ele e apresentada ao espectador como um auto de Natal dentro do Auto propriamente dito [...]” (NUNES, 2007, p. 61).

Se, de um modo geral, a comemoração de recorte re-ligioso acaba servindo para uma acomodação e neutralização dos conflitos sociais, apontando para a transcedência da vi-da, no caso do poema em estudo essa função ideológica não se confirma. O que se apresenta é uma dimensão irônica e

saiba mais

Segundo o profes-sor Benedito Nunes (2007, p. 61), “é a alegoria natalina do pastoril, forma dra-mática folclórica arrai-gada ao estrato rural de nossa sociedade, e particularmente ati-vo no Nordeste, que se decompõe no Auto de Natal pernambu-cano”. Quando se es-tabelece a parte do auto dentro do Auto, são retomados “os tradicionais quadros e personagens do pas-toril ou pastoral [que podem ser reconheci-dos cena a cena]: uma mulher do povo substi-tui o anjo da Anuncia-ção; os vizinhos, com seus elogios, tomam o lugar dos anjos que guardam e adoram o menino, e, com seus presentes o dos reis magos; o mocambo é o presépio do Menino-Deus e seu José, São José” (p. 62).

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crítica pela situação do contexto em que se dá o nascimento: a criança nasce entre os habitantes pobres do mangue, “cujo destino, segundo as previsões das ciganas que vêm ler-lhe a sorte, partilhará da penúria comum” (NUNES, 2007, p. 63). Essa penúria consiste na manutenção da vida severina até a vida adulta, quando, então, o menino recém-nascido poderá elevar sua condição para a de operário – continuará, sendo, portanto, um trabalhador explorado.

[...] (Fala de uma das ciganas:)

Minha amiga se esqueceude dizer todas as linhas;não pensem que a vida delehá de ser sempre daninha.Enxergo daqui a planuraque é a vida do homem de ofício,bem mais sadia que os mangues,tenha embora precipícios.Não o vejo dentro dos mangues,vejo-o dentro de uma fábrica:se está negro não é lama,é graxa de sua máquina,coisa mais limpa que a lamado pescador de maréque vemos aqui, vestidode lama da cara ao pé.E mais: para que não pensemque em sua vida tudo é triste,vejo coisa que o trabalhotalvez até lhe conquiste:que é mudar-se destes manguesdaqui do Capibaribepara um mocambo melhornos mangues do Beberibe.

O que assim se desvela é o caráter de que essa “sina”, esse “destino” da vida severina pode ser ultrapassado pela cons-cientização dos fatores da opressão social. Dito de outro modo: no provável percurso do retirante ao operário, denuncia-se o sistema de exploração a que o trabalhador brasileiro, sobretudo o que fica

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abandonado de políticas públicas efetivas é submetido.

O CARPINA FALA COM O RETIRANTE QUE ESTEVE DE FORA, SEM TOMAR PARTE EM NADA

— Severino retirante,deixe agora que lhe diga:eu não sei bem a respostada pergunta que fazia,se não vale mais saltarfora da ponte e da vida;nem conheço essa resposta,se quer mesmo que lhe diga;é difícil defender,só com palavras, a vida,ainda mais quando ela éesta que vê, severina;mas se responder não pudeà pergunta que fazia,ela, a vida, a respondeucom sua presença viva.

E não há melhor respostaque o espetáculo da vida:vê-la desfiar seu fio,que também se chama vida,ver a fábrica que ela mesma,teimosamente, se fabrica,vê-la brotar como há poucoem nova vida explodida;mesmo quando é assim pequenaa explosão, como a ocorrida;mesmo quando é uma explosãocomo a de há pouco, franzina;mesmo quando é a explosãode uma vida severina.

Assim encerra-se este auto, no qual o canto à vida não se transforma em esperança acomodada: transforma-se em conhecimento para a mudança, efetivado tanto por meio da leitura quanto da representação cênica.

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1. Sobre os autos vicentinos:Leia o Auto da Barca do Inferno (disponível no site www.domi-niopublico.br) e responda a partir da seguinte citação:

“Na obra vicentina, o realismo mais estreme vizinha com a mais solta fantasia e com o mais refinado simbolismo; semelhantemente, de auto para auto, e com freqüência dentro do mesmo auto, acotovelam-se personagens irreais (mitológicas, alegóricas, lendárias) e personagens diretamente arrancadas à vida real [...]” (REBELO, 1991, p. 23).

a. Que personagens ligam-se à realidade – e o que representam – e quais figuras cênicas são retiradas do plano da fantasia?

b. De que modo esse jogo entre o real e a fantasia, da forma como foi elaborado por Gil Vicente, permite que ele seja considerado como “o último dramaturgo medieval e o primeiro dramaturgo moderno” em Portugal (RABELO, 1991, p. 25)?

2. Sobre Morte e vida Severina:Escute a música “Funeral de um lavrador”, composta por Chico Buarque com versos de Morte e vida Severina e responda:

a. Qual é o tema central da música? Esse tema pode ser considerado como um dos pontos fundamentais da crítica à realidade social presente no auto de João Cabral de Melo Neto? Explique:

b. Releia o diálogo entre Severino e mestre carpina; que resposta, no âmbito de uma perspectiva sociológica e/ou histórica, você daria a seguinte questão colocada pelo protagonista?

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— Seu José, mestre carpina,que diferença fariase em vez de continuartomasse a melhor saída:a de saltar, numa noite,fora da ponte e da vida?

3. Vamos conhecer, em linhas gerais, outro importante auto da literatura brasileira: O auto da compadeci-da, de Ariano Suassuna. Para isso: Leia o texto, veja o filme.

Do mesmo modo que o texto de João Cabral de Melo Neto, esse auto também foi escrito na década de 1950 e tema-tiza a situação da desigualdade social brasileira, com enfoque sobre a região nordestina. O texto gira em torno da dupla João Grilo e Chicó, suas aventuras e desventuras, e culmina numa representação alegórica do Juízo Final, cena na qual intercede Nossa Senhora, sobretudo em favor dos humildes e humilha-dos.

a. Selecione trechos em que se percebe a perspectiva crí-tica do texto em relação: à corrupção dos representan-tes da igreja; à situação de exploração do homem pobre nordestino; ao autoritarismo da figura dos coronéis; ao sentido de violência quando há desassistência do Esta-do:

b. Elabore um comentário sintético sobre esta obra dra-mática, confirmando a seguinte afirmativa: em O auto da compadecida, “a concepção de mundo aproxima e mescla o elevado e o rebaixado, o popular e o erudito, as hierarquias sociais, o divino e o humano, o sagrado e o profano” (BROSE, 2010, p. 65):

c. Aproxime a resposta anterior com as principais carac-terísticas do teatro vicentino e responda: também neste texto de Ariano Suassuna encontramos um legado do teatro de Gil Vicente? Explique:

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ARAÚJO, Adriana de F. B. A oposição sertão/cidade do ponto de vista do retirante de Morte e vida Severina. Dis-ponível em:www.letras.ufrj.br/ciencialit/garrafa11/v1/adrianaaraujo.html. Acesso em ago. 2012.

BROSE, Elizabeth R. Z. O auto da compadecida – trans-textualidade do sério-cômico. In: MITIDIERI, André Luis; SILVA, Denise Almeida (Orgs). Texto dramático. Frederi-co Westphalen: URI;FW, 2010.

GERVÁSIO, Tharlles Lopes. Cadernos do CNLF, Vol. XV, Nº 5, t. 1. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2011, p. 156.

NUNES, Benedito. João Cabral: a máquina do poema. Or-ganização e prefácio de Adalberto Müller. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2007.

REBELLO, Luiz Francisco. História do Teatro. Lisboa: Imprensa Nacional, 1991.

RIBEIRO JR., W. A. Aristófanes. Portal Graecia Antiqua, São Carlos. Disponível em www.greciantiga.org/arquivo.asp?num=0196. Acesso em: 25/10/2012.

Nesta aula, estudamos os principais aspectos das pri-meiras expressões da arte literária dramática em língua por-tuguesa, autos de Gil Vicente. A partir do reconhecimento dos aspectos mais importantes da dramaturgia vicentina, podemos estabelecer relações com autos contemporâneos, destacando-se o poema dramático Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, bem como o Auto da Compade-cida, de Ariano Suassuna.

RESUMINDO

REFERêNCIAS

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Suas anotações

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O RISO SÉRIO DAS COMÉDIAS E SEUS

DESDOBRAMENTOS

Objetivo:

• Reconhecer os aspectos mais importantes do gênero comédia no Classicismo português, com destaque para as obras de Sá de Miranda, Camões e António José da Silva. Compreender as principais características da comédia brasileira no séc. xIx.

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1 INTRODUÇÃO

Nesta aula, estudaremos os aspectos mais relevantes da comédia, introduzida em Portugal por Sá de Miranda, no século XVI, e desenvolvida também por Camões. Posterior-mente, colocaremos em cena a situação da literatura dramá-tica portuguesa quando a Inquisição era uma infeliz realidade para a sociedade portuguesa do século XVII, contexto em que António José da Silva, o Judeu, produziu importantes obras teatrais. Por fim, apresentamos as questões mais rele-vantes relacionadas às comédias brasileiras de Martins Pena e Artur de Azevedo.

2 A COMÉDIA NO CLASSICISMO PORTUgUêS

Em linhas muito gerais, sabemos que no Renasci-mento se torna mais fraco o domínio eclesiástico na cultu-ra. A burguesia começa a frequentar as Universidades e, aos poucos, vão arrefecendo os valores medievais e afirmam-se valores novos, como antropocentrismo, e nova perspectiva econômica no sistema capitalista que iniciava, com o mer-cantilismo.

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Nesse contexto, desenvolveu-se o Classicismo, com a retomada da mitologia pagã, da perfeição estética, da pureza das formas. A Antiguidade, os valores greco-romanos passam a definirem-se como marcos para os ideais do Bem, da Beleza e da Verdade, assim grafados em maiúsculas como essências a serem alcançadas pela imperfeição humana. A natureza, nesse quadro, torna-se símbolo da plena harmonia do Universo e es-paço.

Em Portugal, o início do Classicismo registra-se em 1527, com retorno do escritor Sá de Miranda da Itália, quando introduziu o novo conceito de poesia: o chamado doce estilo novo, ou medida nova: trata-se do verso decassílabo (já usado por Dante e Petrarca), e de outras formas poéticas de origem clássica, como os sonetos, as odes (de exaltação), as éclogas (amorosas, pastoris), as epístolas, entre outras. Por esse retor-no ao mundo clássico, Sá de Miranda intenta renovar a arte dramática portuguesa, contrapondo-se ao teatro vicentino: propondo a superação do teatro simples e com traços ainda medievais, escreve comédias de acordo com a tendência nor-mativista da leitura sobre a Poética, de Aristóteles.

Com igual sentido de retomada do mundo clássico, Ca-mões desenvolveu comédias que, no entanto, não se igualaram à sua reconhecida obra lírica e à grandiosidade d’Os Lusíadas. Essas comédias camonianas foram denominadas de Autos, mas, ao con-trário dos textos de Gil Vicente, balizaram-se pelas normas clássi-cas.

2.1 O Renascimento Português e a Comédia de Sá

de Miranda e de Camões

Francisco Sá de Miranda nasceu em 1481 e morreu em 1558. Fidalgo, gozava de regalias na Corte, mas viveu a maior parte de sua vida na quinta, como dizem os portugueses (ou seja, na fazenda ou sítio = propriedade rural) de Tapada, no

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Minho. Formado em Direito, deixou a convivência urbana e refugiou-se no Português rural em função de incompatibi-lidades com membros do governo monárquico. Passou, en-tão, a criticar a felicidade fácil advinda do grande comércio, que, segundo ele, deixava o setor produtivo desamparado, além de ser também um crítico das guerras de colonização (África), dispendiosas e que não visavam nada mais do que o enriquecimento da Corte e da Igreja (SARAIVA; LOPES, 1999).

Dentre suas comédias, destaca-se a peça Os Estran-geiros. Para acompanhar o estudo a seguir, acesse o site:<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/pv000004.pdf>.

Você encontrará a versão integral do texto e a sua lei-tura será fundamental para o bom êxito desta nossa aula. Vejamos alguns tópicos importantes:

• A ação se localiza na Itália convencional, representan-do o mundo corrupto que nela se agita (amores com-prados/fingidos, com alcoviteiras, cortesãs, militares fanfarrões, criados astuciosos e crédulos enamora-dos), mas retrata, como aparece no Prólogo, o que é próprio da Comédia: “uma pintura da vida comum”, que por artifício estlístico, transporta-se, aplica-se ao mundo português da primeira metade do século XVI. Existe a polêmica sobre até que ponto as propostas de Sá de Miranda não seriam uma provocação direta aos Autos de Gil Vicente, contra sua popularidade, pois, na dedicatória do autor ao Infante Cardeal Dom Hen-rique, deixou registrado que “a Comédia qual é, tal vai, aldeã e mal ataviada”.

• Propondo-se a seguir as normas estabelecidas para a comédia, Sá de Miranda adaptou seu texto do seguinte modo:

Figura 8: Sá de MirandaFonte: http://www.ovilaverdense.com/images/stories/sa%20miranda.jpg

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• Das partes qualitativas:1. Mito, ou seja, o enredo das ações: trata-se do caso de

amor de Amente por Lucrécia, cortejada pelo Doutor que tem posses e é velho. Em meio à situação de ins-tabilidade na Itália, o protagonista e seu aio são espa-nhóis (os estrangeiros), e, depois, fica-se sabendo que também é esse o caso de Lucrécia. O romance não é visto com bons olhos pelo aio, que sabe o quanto o pai vai censurar o rapaz por gastar dinheiro ao invés de prosseguir sua viagem (está de passagem pela Itá-lia). O protagonista, entretanto, conta com o auxílio de Calídio, que propõe artimanhas para que ele engane o pai. Procurando tirar lucro da situação, aparecem os intermediários do casamento de Lucrécia: as alcovitei-ras, o truão Devorante, outros servidores. Como rival de Amente, aparece Briobris, soldado romano fanfar-rão, que não ganha nada com a história. O final é fe-liz, sendo o castigo devido a Amente por parte do pai recebido por Calídio. Outro desdobramento releva-se sobre a situação de Lucrécia: ela era protegida do Dou-tor que abusou de sua situação de protetor, querendo casar-se com a moça; no final, contudo, ela reencontra o pai que a procurava e fica livre para receber Amente.A ação é fragmentada e o enredo básico apresenta as oposições entre amor x dinheiro, moralidade x ines-crupulosidade, ser x parecer. A comicidade, a partir do enredo das ações, se dá pela sátira aos costumes, no embate dessas oposições apontadas, a partir dos recur-sos empregados como, principalmente, as conversas paralelas, nas quais se complementam jogos de duplo sentido. No final, porém, prevalece a virtude, o amor genuíno.

2. Caracteres e Pensamento: os personagens, em geral, são homens inferiores: inferioridade por falha, que le-va ao ridículo. No caso de Amente, sua falha é o amor

Truão - sm.:1 Saltimbanco que, na Idade Média, di-vertia o público com graças e momices.; 2 Indivíduo, ger. de aparência grotesca, empregado pelos reis da Antiguidade para divertir a corte com graças e zombarias; BOBO; BUFÃO.: “Na-quela época, o cargo de truão correspondia até certo ponto ao dos censores da república romana.” (Alexandre Herculano, O bobo); 3 Ator cômico que geralmente trabalha com gestos espalha-fatosos e faz comici-dade de caráter sim-ples, popular; 4 Bobo, palhaço: “Não tinha rosto com que apare-cer, nem roupas - bu-fão, truão, tranca...” (guimarães Rosa, ‘ Darandina’, in Primei-ras estórias); 5 Indi-víduo inconveniente, dado a graçolas.Fonte: Dicionário Au-lete Digital.

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desmedido, inconsequente e quem paga por seus erros é Calídio, pois, afinal, o criado é que demonstrou ver-dadeira falta de caráter.Enquanto comédia de costumes, os personagens são tipificados, como é o caso do Doutor, que parece an-tecipar uma das personagens da Comédia Dell’Arte: representa o tipo pedante, vaidoso e com certa dose de ingenuidade, uma mistura de fanfarrão e bufão; além dele, há Calídio como uma espécie de Arlequim: pertencente ao grupo dos criados, é ao mesmo tempo esperto e estúpido; e, ainda, os demais intermediários casamenteiros e o soldado fanfarrão.Lucrécia, que é o mote de toda a ação, nunca aparece em cena: ou seja, como objeto de desejo do herói, bas-ta que seja indicada.Os duplos, que provocam o humor, se estabelecem nas oposições de complementaridade de caráter en-tre os amos e os servos: Amente/Cassiano; Galbano/Vidal; Amente/Calídio - e entre os próprios criados: Calídio - impostura; Cassiano: sobriedade na manu-tenção da tradição.A comicidade pelos caracteres também se apresenta na gula de Devorante (como já indica o nome - e é tam-bém gula por conseguir viver de favores) e na fanfar-ronice de Briabris, o soldado (a base de Sá de Miranda, aqui, é Plauto e sua obra O soldado fanfarrão, na qual o personagem tem uma arrogância proporcional a sua falta de inteligência.

3. Elocução - recursos da fala provocadores do riso: nes-se caso, há os jogos de palavras e sentidos, como são exemplos o diálogo de Alda e Ambrósia, que Cassiano escuta e comenta de forma “complementar, bem como na trova de Devorante, gozando das surras de Calídio, mas falando em sentido figurado, entre muitos outros.

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Também não se deve deixar de notar que o latim do Doutor marca seu pedantismo e, ao mesmo, sua po-sição social. E há os sentidos que ficam subtendidos, como os de conotação sexual (reler, na página 25 do referido site, especialmente, a passagem em que Cas-siano comenta a carta de Lucrécia).

Com relação às partes quantitativas, podemos ve-rificar que se trata de uma comédia em cinco atos, com a seguinte distribuição:• A já mencionada “DEDICATÓRIA”, na qual consta

a defesa do autor pela comédia e um jogo de senti-dos com o título e situação dos estrangeiros. A peça é dedicada ao Infante Cardeal Dom Henrique, filho de D. Manuel e tio-avô de D. Sebastião, que subiu ao trono em 1578, dois anos antes da chamada Unifica-ção Ibérica (eufemismo empregado para a situação do domínio da monarquia espanhola sobre a portuguesa, que foi de 1580 a 1640).

• O referido PRÓLOGO: da tradição latina, como em Plauto, tem a função de situar a ação, mas não antecipa acontecimentos. Também como o autor latino, é qua-se uma “poética’ da comédia (ou seja, funciona como a chamada Parabase), pois há um comentário sobre o possível receio do público português com a novidade da Comédia, há esclarecimentos sobre a posição do autor em relação às guerras e à situação de Portugal – que vivia uma fragilizada situação de paz, e a referên-cia crítica aos Autos, compreendidos como criações dramáticas esgotadas (o que, como mencionado, aca-ba sendo uma efetiva crítica a Gil Vicente). Ainda no Prólogo, o autor situa a ação em Palermo, na Itália, mas afirma língua portuguesa.

• Os EPISÓDIOS desenrolam-se com a presença de párodos (coros) estilizados, que parecem ser a função

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dos solilóquios (cenas em que personagens ficam so-zinhos no palco) como na cena 2 do Ato 1, ou 5 do Ato 5, por exemplo.

• O ÊXODO: ou seja, o final da ação, com a cena 7 e o comentário do REPRESENTADOR.

Apesar da sua proposta de renovar o teatro portu-guês seguindo o que havia de mais atual no seu tempo sobre a literatura dramática, a maioria dos historiadores e críticos da Literatura Portuguesa considera que Sá de Miranda aca-bou criando um texto muito atrelado às normas e, por isso, marcado por certa artificialidade de estilo. Assim, mesmo reconhecendo-se as louváveis intenções do autor, ele não conseguiu superar o teatro tão vivo e espontâneo de Gil Vi-cente.

Por sua vez, Luis de Camões escreveu os textos Fi-lodemo; Anfitriões e El-rei Seleuco. Reunidas no livro Teatro Completo (2005), a prefaciadora Theresa Passos esclarece que, nessas peças, definidas como Autos pelo autor, «Ca-mões escolheu para os seus textos dramáticos a estrutura do auto peninsular, entrelaçando nesta elementos estilísticos e formais tomados de outras fontes» (p. 9-10).

O tema central das três peças é o mais recorrente para o poeta português: o amor. De modo geral, os textos variam diálogos em verso e em prosa e não apresentam divisões en-tre atos ou cenas. No caso de El-rei Seleuco, por exemplo, a prosa estende-se pela terça parte da peça: “Assim, ainda que a temática seja inspirada em temas clássicos, Camões pro-cura fazer uma estruturação formal que ultrapasse as fontes de todo o teatro, inclusive aquele que obedecia às conven-ções do seu tempo” (PASSOS, disponível em: triplov.com/letras/teresa_ferrer/camoes.htm).

Sobre esse aspecto, devemos entender que, como dramaturgo, Camões procurou “conciliar os dois espíritos

Figura 9: Luiz de CamõesFonte: pt.wikipedia.org

Para leitura dos textos dramáticos camonia-nos, acessar os seguin-tes links: para Filode-mo: http://www.nead.unama.br/biblioteca-virtual/livros/pdf/Auto-ChamadodeFilodemo.pdf; para a leitura de El-rei Seleuco: http://www.falares.hpg.com.br.

para conhecer

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da Idade Média e da Renascença, pelo modo como aliou as formas populares do auto [...] com temas mitológicos imi-tados pelos autores greco-romanos” (BRAGA, citado por REBELLO, 1991, p. 33). De todo modo, em sua obra, fica muito clara a superação da vontade dos deuses pela ideia da força da natureza – perspectiva claramente renascentista.

Outro registro importante é sobre a língua, no caso, as línguas utilizadas por Camões nos seus textos dramáti-cos: “é curioso como usa indiferentemente o português ou o castelhano (línguas faladas oralmente, sem distinção, entre camadas populares, nobres e também igualmente utilizadas pelos escritores)” (PASSOS).

Sobre a forma como foram divulgadas essas obras, é interessante sabermos (PASSOS) que tanto Anfitriões quanto Filodemo foram impressos somente sete anos após a morte do autor “e inseridos numa colectânea com vários outros dramaturgos seus contemporâneos como António Prestes ou Anrique Lopes… E El-Rei Seleuco é apenas publicado por Paulo Craesbeeck em 1645, sessenta e cinco anos após a morte de Luís de Camões”.

“Os Anfitriões datam, ao que se crê, dos anos de estudante [de Camões] na Uni-versidade de Coimbra, cujos estatutos [exigiam] a representação anual obrigatória de uma comédia de Plauto ou Terêncio. Tais representações tê-lo-iam levado a eleger o tema de uma das mais célebres comédias plautinas [...]. Uma narração de Plutarco (que Camões teria conhecido através de referência que lhe é feita no Espelho dos ca-sados de João de Barros, impresso em 1540), e talvez os Trionfi, de Petrarca, estão por sua vez na base de El-rei Seleuco, representado em Lisboa entre 1542 e 1549, em casa de um fidalgo da Corte de D. João III. Quanto ao Filodemo, que se sabe ter sido levado à cena na Índia, em 1555, por ocasião das cerimônias de investidura do governador Francisco Barreto, é uma comédia romanesca [...]. De estrutura mais complexa que as suas antecessoras, nos seus cinco actos contesta-se sutilmente o ‘regimento do mundo’, estigmatizam-se as diferenças de casta e opõe-se ao amor contemplativo o amor “pela activa”, que zomba das hierarquias e dos preconceitos – ao mesmo tempo que por eles fluentemente circula aquele admirável lirismo que impregna toda a obra do maior poeta de que a história da literatura porruguesa se ufana” (REBELLO, 1991, p. 33).

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O que realmente se destaca, entretanto, e o que deve-mos ter bem presente em relação à literatura dramática camo-niana, é que suas peças foram marcadas por “qualidades humo-rísticas e sarcasmo social [...] para fazer uma inclemente crítica social aos costumes e aos modos de ser da sociedade do seu tempo” (PASSOS). De todo modo, foram obras da juventude do autor e, como a maioria dos críticos reconhece, não chegou a alcançar o brilho de sua lírica e de sua épica.

2.2 As comédias de António José da Silva, O

Judeu

Antônio José da Silva, o Judeu (Rio de Janeiro, 1705/Lisboa, 1739), foi um importante nome do teatro português do século XVIII, considerado autor de óperas de cunho popu-lar. Sua obra, de tons cômicos e críticos, desenvolveu-se numa época de difíceis e complexas relações em Portugal: enquanto na Europa anunciava-se e afirmava-se o luminismo e Libera-lismo, nas terras portuguesas a Inquisição atravessava os mo-mentos mais cruentos de sua História, perseguindo judeus e cristãos-novos.

Esse era o período de reinado de D. João V, cuja corte vivia de maneira luxuosa, com ostentação, alimentando-se “dos fabulosos lucros do ouro do Brasil. Esta [aparência de riqueza] ofuscava, na verdade, as misérias de uma sociedade desestru-turada do ponto de vista social e economicamente degradada” (CARDOSO, 2008).

Nascido no Brasil, António José da Silva vinha de uma família que aqui se refugiara do Santo Ofício: “durante algum tempo milhares de judeus tinham vivido em paz em terras bra-sileiras. Mas, em 1711, tinha António José seis anos, toda a sua família é obrigada a abandonar o Rio de Janeiro e a regressar a Portugal na seqüência de uma intensificação da atividade inqui-sitorial [...]” (CARDOSO, 2008).

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Em Coimbra, estudou na Faculdade de Direito, po-rém não chegou a concluir os estudos, sendo encarcerado e duramente torturado pela Inquisição, já havia prendido também sua mãe e irmão. Pouco se sabe de sua vida depois disso; o que se registra é que, em 1733, no Teatro do Bairro Alto de Lisboa, “representa a sua primeira ópera, A vida do grande D.Quixote de La Mancha e do gordo Sancho Pança” (CARDOSO, 2008).

Devemos saber que o teatro espanhol, nesse período, vivia o que se passou a chamar seu “Siglo de Ouro” (Século de Ouro), e Portugal sentiu profundamente essa influência: “O teatro de A. J. da Silva não podia, pois, deixar de refle-tir influências notórias da comédia espanhola do séc. XVII, nomeadamente dos seus maiores expoentes, Lope de Vega e Calderon” (CARDOSO, 2008).

O crítico Silvio Rome-ro, na sua História da Literatura Brasileira, de1888, entendia que António José da Silva deveria ser visto tam-bém como autor brasi-leiro; e Machado de As-sis concedeu a ele um breve estudo, em 1879, na Revista Brasileira, defendendo sua espon-taneidade e criativida-de, ainda que possuísse alguns desequilíbrios em suas composições, definidas pelo escritor brasileiro como verda-deiras farsas.

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“Desde o período da dominação castelhana, que o pujante tea-tro espanhol do Siglo de Oro se impusera em Portugal, aliás, um pouco por toda a Europa, e a produção teatral de raiz nacional era insignificante e muito influenciada pelo modelo espanhol. Há mais de um século que, pelos pátios das comédias, (recintos teatrais encaixados em espaços interiores do casario da cidade, em forma de ferradura, nos quais o público se posicionava no chão, em frente do palco, ou em galerias dispostas à volta do espaço) passavam as companhias do país vizinho apresentando um reportório que fazia grande sucesso junto do público popu-lar, da burguesia e da nobreza arruinada que frequentavam o Bairro-Alto” (CARDOSO, 2008)Não deixe de ler, na íntegra, esse texto de João Paulo Seara Cardoso. Disponível em: <http://www.marionetasdoporto.pt/joao-paulo-seara-cardoso/73-ha-na-gloria-padecer>.

As óperas joco-sérias, como António José da Silva definia sua obra, eram apresentadas, via de regra, por mario-netes – feitos de madeira, arame e cortiça, as personagens ganhavam vida. Com esse tipo de proposta cênica, o Judeu consolida-se como um autor barroco, pois:

como criador vive em pleno o espírito dos

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tempos e, assim, aspira a uma nova arte teatral, menos vinculada à retórica e mais voltada para o deleite dos sentidos, que marcará definitivamente o teatro portu-guês. É na forma e na estrutura dramática que o Judeu inova. Por um lado escre-vendo em prosa, uma novidade [...]; por outro, incorporando a música na intriga dramática, criando um modelo original de transição entre a comédia espanhola e o melodrama italiano e dando início, de forma incipiente, ao projeto da ópera na-cional (CARDOSO, 2008).

No teatro de António José da Silva, as marcas do Barroco se (re)apresentam por meio “do recurso ao mara-vilhoso, de diálogos engenhosos ao serviço de intrigas que propiciam malabarismos de ilusão que deleitam os especta-dores e os surpreendem a cada passo” (CARDOSO, 2008).

Uma curiosidade importante, que marca a obra desse singular dramaturgo português, é o fato de suas peças não terem sido editadas por ele:

Ainda em vida do autor seriam publica-das, por Isidoro da Fonseca, o Labirinto de Creta (1736), as Variedades de Proteu e as Guerras de Alecrim e Manjerona, ambas em 1737. Após a sua morte, o editor Fran-cisco Luís Ameno, homem culto da Lisboa setecentista, poeta, conhecedor de línguas e tradutor de Goldoni e Metastásio, viria a fazer justiça à grandeza de António José, reunindo, em 1744, toda a sua obra em dois volumes intitulados Teatro Cómico Português (CARDOSO, 2008).

Nesse processo de publicação, estudos posteriores demonstraram que há diferenças significativas entre o tex-to original do autor e as posteriores edições de sua obra, abrandadas dos termos fortes e licenciosos que divertiam o público.

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Em 18 de outubro de 1739, depois de nova e pro-longada prisão e tortura, António José da Silva foi morto, queimado, como era praxe nas cerimônias macabras do San-to Ofício. Entretanto sua obra manteve-se viva e autores como Gonçalves de Magalhães (António José ou o Poeta e a Inquisição, de 1836), Camilo Castelo Branco (O Judeu, novela histórica de 1866) e Bernardo Santareno (O Judeu, teatro épico de 1966), entre outros escritores, trataram des-se autor-personagem com a atenção e a justiça merecida.

3 A COMÉDIA BRASILEIRA DO SÉCULO XIX

3.1 A crítica de costumes de Martins Pena e de

Artur de Azevedo

Luis Carlos Martins Pena (Rio de Janeiro, 5 de no-vembro de 1815 — Lisboa, 7 de dezembro de 1848) inicia sua dramaturgia com a comédia de costumes, e costumes de um Brasil ainda muito rural, como são exemplos os seus títulos O Juiz de paz na roça; A família e a festa na roça, podendo-se reconhecer nesses textos, que obtiveram grande sucesso de público, a forma desse viver na roça, as comidas, os hábitos de convivência e seus falares. Mais tarde, em suas peças, “o campo cede lugar à cidade, a descrição cuidadosa ao movimento e teatralidade, a comédia de costumes à farsa (COUTINHO, 2004, p. 15).

Para muitos críticos, a importância desse autor foi a de ter descrito tipos que marcaram a tradição do teatro cômico popular brasileiro: “o matuto ingênuo, o estrangeiro esperto e embromador, a velha ranzinza, o malandro simpá-tico ficaram para sempre em nossos palcos”.

Selecionamos, a seguir, um trecho da comédia Quem casa quer casa, de 1845:

... que Antônio José ou o poeta e a inquisição, de gonçalves de Ma-galhães, foi “a primei-ra tragédia de assunto nacional, representada por companhia nacional (João Caetano estreou o espetáculo em 1838) [e que] adaptava ao Brasil as lições do Ro-mantismo”? (MAgALDI, 2004, p. 13).

você sabia?

leitura recomendada

Para aprofundar o seu conhecimento sobre este importante autor do teatro português, recomendamos a leitu-ra de Concerto barroco às óperas do Judeu, de Francisco Maciel Silvei-ra (São Paulo: Pers-pectiva, 1992). Nesse texto são discutidas as várias facetas do Judeu, inclusive ques-tionando a possibilida-de de ter sido o dra-maturgo não um herói destemido contra as forças da reação con-servadora (do Estado e da Igreja), mas um homem marcado pe-las contradições de seu tempo, que, enfim, sempre concluía seus textos com finais feli-zes.

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QUEM CASA, QUER CASAProvérbio em 1 ato

A cena passa-se no Rio do Janeiro, no ano de 1845.

ATO ÚNICOSala com uma porta no fundo, duas à direita e duas à esquerda; uma mesa com o que

é necessário para escrever-se, cadeiras, etc.

CENA IPAULINA e FABIANA. PAULINA junto à porta da esquerda e FABIANA no meio

da sala mostram-se enfurecidas.

PAULINA,batendo o pé

Hei de mandar!...

FABIANA,no mesmo

Não há de mandar!

PAULINA,no mesmo

Hei de e hei de mandar!...

FABIANA Não há de e não há de mandar!...

PAULINA Eu lhe mostrarei. (Sai.)

FABIANA Ai, que estalo! Isto assim não vai longe....... Duas senhoras a mandarem em uma casa.... é o inferno! Duas senhoras? A se-nhora aqui sou eu; esta casa é de meu marido, e ela deve obe-decer-me, porque é minha nora. Quer também dar ordens; isso veremos...

PAULINA,aparecendo à porta

Hei de mandar e hei de mandar, tenho dito! (Sai.)

FABIANA, arre-pelando-se de raiva

Hum! Ora, eis aí está para que se casou meu filho, e trouxe a mulher para a minha casa. É isto constantemente. Não sabe o senhor meu filho que quem casa quer casa... Já não posso, não posso, não posso! (Batendo com o pé:) Um dia arrebento, e então veremos! (Tocam dentro rabeca.) Ai, que lá está o outro com a maldita rabeca... É o que se vê: casa-se meu filho e traz a mulher para minha casa.... É uma desavergonhada, que se não pode aturar. Casa-se minha filha, e vem seu marido da mesma sorte morar comigo... É um preguiçoso, um indolente, que para nada serve. Depois que ouviu no teatro tocar rabeca, deu-lhe a mania para aí, e leva todo o santo dia – vum, vum, vim, vim! Já tenho a alma esfalfada. (Gritando para a direita:) Ó homem, não deixarás essa maldita sanfona? Nada! (Chamando:) Olaia! (Gritando:) Olaia!

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CENA II

OLAIA, entrando pela direita

Minha mãe?

FABIANA Não dirás a teu marido que deixe de atormentar-me os ouvidos com essa infernal rabecada?

OLAIA Deixar ele a rabeca? A mamãe bem sabe que é impossível!

FABIANA Impossível? Muito bem!..

OLAIA Apenas levantou-se hoje da cama, enfiou as calças e pegou na rabeca – nem penteou os cabelos. Pôs uma folha de música diante de si, a que ele chama seu Trêmolo de Bériot, e agora verás – zás, zás! (Fazendo o movimento com os braços.) Com os olhos esbugalhados sobre a música, os cabelos arrepiados, o suor a correr em bagas pela testa e o braço num vaivém que causa vertigens!

FABIANA Que casa de Orates é esta minha, que casa de Gonçalo!

OLAIA Ainda não almoçou, e creio que também não jantará. Não ouve como toca?

FABIANA Olaia, minha filha, tua mãe não resiste muito tempo a este mo-do de viver...

OLAIA e estivesse em minhas mãos remediá-lo...

FABIANA Que podes tu? Teu irmão casou-se, e como não teve posses para botar uma casa, trouxe a mulher para a minha. (Apontando:) Ali está ela para meu tormento. O irmão dessa desavergonhada vinha visitá-la frequentemente; tu o viste, namoricaste-o, e por fim de contas casaste-te com ele... E caiu tudo em minhas costas! Irra, que arreio com a carga! Faço como os camelos...

OLAIA Minha mãe!

FABIANA Ela, (apontando) uma atrevida que quer mandar tanto ou mais do que eu; ele, (apontando) um mandrião romano, que só cuida em tocar rabeca, e nada de ganhar a vida; tu, uma pateta, inca-paz de dares um conselho à boa jóia de teu marido.

OLAIA Ele gritaria comigo...

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Nessas duas cenas temos uma síntese do que foi em parte o teatro de Matins Pena: oposições dramáticas basea-das em brigas, em insultos, falta de compostura. “A comba-tividade é, de resto, a maior arma destas criaturas medíocres em tudo, exceto em discutir, enganar, em mentir, em usar expedientes escusos” (COUTINHO, 2004, p. 15).

Outro nome importante desse período foi o de Ar-tur Nabantino Gonçalves de Azevedo (São Luís, 7 de julho de 1855 — Rio de Janeiro, 22 de outubro de 1908). Segundo alguns críticos, Artur de Azevedo “já nasceu homem de te-atro. Aos nove anos escreveu e representou, com os irmãos, o seu primeiro drama, aos onze a sua primeira tragédia [...]. Aos vinte anos, [...] adapta aos costumes brasileiros uma opereta do autor francês Lecocq, sob o título de a Filha de Maria Angu [...]” (COUTINHO, 2004, p. 25). A peça foi um sucesso e marcou a obra do autor; pois, a partir desse su-cesso, seus textos, de modo geral, baseavam-se em enredos fáceis, de atos ligeiros e burlescos, mas, se assim agradavam o público menos exigente, nem por isso deixou de represen-tar grande vivacidade com seus improvisos.

Dentre seus textos mais conhecidos, destaca-se A capital federal, encenada em 1897. Destacamos a seguinte passagem desse texto:

FABIANA Pois grita tu mais do que ele, que é o meio das mulheres se faze-rem ouvir. Qual histórias! É que tu és uma maricas. Teu irmão, casado com aquele demônio, não tem forças para resistir à sua língua e gênio; meu marido, que como dono da casa podia pôr cobro nestas coisas, não cuida senão na carolice: sermões, terços, procissões, festas, e o mais disse, e sua casa que ande ao Deus da-rá... E eu que pague as favas! Nada, nada, isto assim não vai bem; há de ter um termo... Ah!

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A CAPITAL FEDERALATO I

Quadro I

(Suntuoso vestíbulo do Grande Hotel da Capital Federal. Escadaria ao fundo. Ao levantar o pano, a cena está cheia de hóspedes de ambos os sexos, com malas nas

mãos, e criados e criadas que vão e vêm. O gerente do hotel anda daqui para ali na sua faina.)

— Cena I —Coro e Coplas - Os Hóspedes

De esperar estamos fartosNós queremos descansar!Sem demora aos nossos quartosFaz favor de nos mandar!Os CriadosDe esperar estamos fartos!Precisamos descansar!Um hotel com tantos quartosO topete faz suar!

Um Hóspede Um banho quero!Um Inglês Aoh! Mim quer come!Uma Senhora Um quarto espero!Um Fazendeiro Eu estou com fome!O Gerente Um poucochinho de paciência!

Servidos todos vão ser, enfim!Eu quando falo, fala a gerência!Fiem-se em mim!

Coro Pois paciência, uma vez que assim quer a gerência!Coplas - O Gerente

— I —Este hotel está na berra!Coisa é muito natural!Jamais houve nesta terraUm hotel assim mais tal!toda a gente, meus senhores,Toda a gente, ao vê-lo, diz:Que os não há superiores

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Na cidade de Paris!Que belo hotel excepcionalO Grande Hotel da Capital Federal!

Coro Que belo hotel excepcional, O Grande Hotel da Capital Fe-deral!

O Gerente— II —

Nesta casa não é raroProtestar algum freguês:Acha bom, mas acha caroQuando chega o fim do mês.Por ser bom precisamente,Se o freguês é do bom-tomVai dizendo a toda a genteQue isto é caro mas é bom.Que belo hotel excepcional!O Grande Hotel da Capital Federal!

Coro Que belo hotel excepcional, etc...O Gerente(Aos criados.)

Vamos! Vamos! Aviem-se! Tomem as malas e encaminhem estes senhores! Mexam-se! Mexam-se!...

(Vozeria. Os hóspedes pedem quartos, banhos, etc... Os criados respondem. Tomam as malas, saem todos, uns pela escadaria, outros pela direita.)

Este texto, em sua versão integral, também se en-contra disponível no site www.dominiopublico.gov.br e será muito importante que você realize esta leitura para com-preender devidamente que, ao reunir variados tipos - “o fazendeiro simplório, deslumbrado com a cidade, presente nos palcos de Martins Pena; a mocinha ingênua; a cocote es-panhola” (COUTINHO, 2004, p. 27), Artur de Azevedo, aliando o estilo de vaudeville francês (teatro de variedades) à farsa brasileira, conseguiu unificar sua obra com intensa teatralidade. Sobretudo, entretanto, é importante reconhe-cer que, com seus textos, fechava-se a cena do século XIX:

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[Com o final do século XIX] o teatro, minado pela concorrência do cinema, do gramofone, do rádio, do esporte, irá perder sua importância como centro da vida social do país, lugar onde as mulheres exibiam-se, os homens tramavam negócios ou discutiam política, e onde a opinião pública, nos intervalos ou no término do espetáculo, tinha ensejo de se manifestar livremente, transformando os camarotes e frisas em outras tantas tribunas popu-lares, como na campanha abolicionista (COUTINHO, 2004, p. 27).

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Um nome singular na dramaturgia do século XIX foi o do escritor gaúcho José Joaquim de Campos Leão, mais conhecido por seu pseudônimo Qorpo-Santo, “que fi cou esquecido por cem anos, quando descobriu-se um autor original, de perspectiva moderna e olhar crítico. Foi precursor do Teatro do Absurdo e esteve muito além de seu tempo. Torna-se professor primário passa a lecionar em escolas públicas, fi xando-se na capital da província. Também chega a exercer a função de delegado de polícia. Em 1862, as autoridades escolares passam a suspeitar de sua sanidade mental, e Qorpo-Santo é obrigado a internar-se. Em 1868 é considerado inapto para continuar lecionando e também para a administração de seus bens e família. Em jornal que ele mesmo funda, A Justiça, protesta veementemente contra a de-cisão da justiça, que o torna inapto. No mesmo período cria a Enciclopédia ou Seis Meses de Uma Enfermidade, composta por nove tomos, dos quais só se conhecem seis atualmente. é considerado um trabalho revolucionário e desnorteante na época. No IV volume, publica todas as suas comédias que hoje conhecemos. A Edição, impressa em tipografi a própria, foi lançada em 1877. Qorpo-Santo rompeu com os padrões da época e, no provinciano fi nal do século XIX, esteve mais próximo de nossos tempos, do que no qual viveu”Fonte: http://www.encontrosdedramaturgia.com.br/?page_id=987.

1. Comparando a forma (a organização das partes, a pro-posta cênica – personagens, cenários etc.) da comédia As nuvens, de Aristófanes, com Os estrangeiros, de Sá de Miranda, ou Filodemo, de Camões, encontram-se muitas similaridades? Comente.

2. Desenvolva um comentário sintético sobre os mais importantes aspectos da obra de António José da Sil-va, o Judeu.

ATIVIDADES

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3. Faça uma breve pesquisa sobre a situação da realida-de socioeconômica brasileira no final do século XIX e estabeleça relações com o contexto das comédias de Martins Pena e Artur de Azevedo.

4. Para que você perceba os jogos de cena, as peripécias que, afinal, representavam uma perspectiva crítica so-bre a realidade social de parte da sociedade carioca, propomos a leitura integral do texto de Martins Pena citado, disponível no site www.dominíopublico.gov.br. Depois da leitura, responda:• além das oposições entre nora e sogra, genro e so-

gra, que outros conflitos são apresentados na peça?• Esses conflitos nos permitem reconhecer alguns

valores sociais daquela época? Explique:• Por fim, qual a relação do texto com seu titulo

(“Quem casa quer casa?)’

5. Acesse o site http://www.encontrosdedramaturgia.com.br/?page_id=987 e leia a peça As relações naturais, de Qorpo Santo. Posteriormente, elabore uma sinopse sobre o texto, como se essa sinopse fizesse parte de um anúncio em jornal sobre a chegada da peça em sua cidade.

A comédia, enquanto gênero baseado nas perspec-tivas formais do mundo clássico, teve como precursor, em Portugal, Sá de Miranda. Também Camões desenvolveu o gênero, ainda que nomeasse seus textos de autos, seguindo a tradição lusitana. Cômicas igualmente foram as peças de António José da Silva, o Judeu, dramaturgo perseguido pela Inquisição, que renovou o Barroco português com suas co-

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O RISO SÉRIO DAS COMÉDIAS E SEUS DESDOBRAMENTOS

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médias de marionetes. No Brasil, no século XIX, Martins Pena e Artur de Azevedo desenvolveram textos cômicos, no estilo do teatro de variedades, aliados a composições pró-prias, demarcadas por obras cujo humor recaía nos costu-mes de uma sociedade que ainda tinha no teatro o principal veículo para se (re)conhecer, encontrar e rir de si mesma.

CARDOSO, João Paulo Seara Cardoso. Há na Glória Pa-decer: reflexões sobre a vida e a obra de António José da Sil-va, o Judeu. Disponível em: http://www.marionetasdoporto.pt/joao-paulo-seara-cardoso/73-ha-na-gloria-padecer.

COUTINHO, Afranio. Evolução da Literatura Dramática. In: ______. A literatura no Brasil – relações e perspectivas – conclusão. v. 6. São Paulo: Global, 2004. p. 10-44.

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REFERêNCIAS

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Suas anotações

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DE QUE PRANTO VIVEM OS DRAMAS NO SÉCULO XIX

Objetivo:• Apresentar as principais questões implicadas na estética

romântica e na estética modernista, no Brasil e em Portugal, em relação aos gêneros do modo dramático.

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1 INTRODUÇÃO

Na primeira metade do século XIX, a estética ro-mântica afirmava seus princípios, propugnando, de variadas formas, uma valorização das características nacionais, locais, sem abrir mão da dimensão “universal” que deveria revestir toda obra capaz de elevar os espíritos humanos. Com a li-teratura dramática não foi diferente: veremos que autores como Garrett, em Portugal, Gonçalves Dias e José de Alen-car, no Brasil, esforçaram-se por renovar o teatro nacional, desenvolvendo peças que fossem capazes de “traduzir” a ansiedade por mudança de seu tempo, nas suas respectivas realidades histórico-sociais.

A segunda metade do século XIX e a transição para o século XX foram períodos, de modo geral, pouco revela-dores em termos de arte dramática nesses mesmos países. Com o Modernismo, já nos primeiros anos do século XX em Portugal, e na segunda década, no Brasil, também não se chegou a realizar uma efetiva mudança nesse quadro, em-bora se deva reconhecer a importância da proposta antidra-mática de Fernando Pessoa no teatro, por um lado, e, por outro, sua alta dramaticidade existencial ao se (des)perso-nalizar nos seus muitos heterônimos. No Brasil, autores co-mo Álvaro Moreyra e Oswald de Andrade, numa realidade posterior à da Semana de 22, também buscaram reavivar a arte dramática, mas seu empenho acabou sendo reconheci-do bem depois. É o que passaremos a estudar a seguir.

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2 OS NOVOS OLHARES ROMÂNTICOS

2.1 Elementos da tragédia em Frei Luís de

Souza

Considerado o iniciador da estética romântica em Portugal, Almeida Garrett (1799-1854) – cuja obra poéti-ca, em seus principais aspectos, já foi estudada na discipli-na Literaturas de Língua Portuguesa: História, Sociedade e Cultura - desempenhou importante papel de renovação no teatro lusitano. Não devemos esquecer que o Romantismo português foi marcado pelas disputas políticas entre liberais e conservadores, sendo o liberalismo a principal bandeira dos românticos. Com essa perspectiva ideológica, a serviço do governo liberal de Passos Manuel, Garrett recebeu a in-cumbência de revitalizar a vida teatral do país e assim o fez com a criação da Inspeção Geral dos Teatros, do Conserva-tório de Arte Dramática e do Teatro Nacional D. Maria II.

Tal atenção especial à dramaturgia, naquele momen-to, deveu-se, sobretudo, ao papel importante que o teatro desempenhava no século XIX: tratava-se de uma das formas artísticas capazes de reunir maior número de público, um público letrado e burguês. Entretanto, a cena teatral portu-guesa estava dominada por companhias estrangeiras – “so-bretudo francesas – repertórios também de origem estran-geira ou então descaradamente plagiados, [que] não podiam corresponder ao impulso de nacionalismo cultural que o liberalismo e o romantismo articuladamente propugnavam” (REIS, 1990, p. 20). Ou seja, o teatro representava um espa-ço privilegiado para colocar em cena os valores, as perspec-tivas críticas e políticas dos românticos liberais, dentre os quais Garrett foi um grande expoente. Nesse sentido, pos-tulava uma dramaturgia capaz de levar ao questionamento da história portuguesa, no sentido de revigorá-la enquanto leitura de um passado marcado por conquistas populares,

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por lutas que elevaram o orgulho nacional, afirmando-se essa vertente, comumente chamada como primeira geração romântica, no nacionalismo. Por isso releva-se a importân-cia da presença de figuras históricas ou literárias em suas pe-ças: “Gil Vicente, Bernardim Ribeiro e a Infanta D. Beatriz (em Um Auto de Gil Vicente, de 1838); Nuno Álvares Perei-ra (n’I Alfageme de Santarém, de 1841); D. João de Portugal e Manuel de Souza Coutinho (no Frei Luís de Souza, 1843)” (REIS, 1990, p. 45).

Assim, sobre a obra de Garrett, devemos lembrar que foi marcada e moldada no entrecruzamento muito direto com sua vida, como era comum ao pensamento romântico, para o qual não havia fronteiras nítidas entre o homem, o escritor e a sua criação literária. Por isso as marcas biográfi-cas da literatura garrettiana são sempre muito fortes, como é o caso exemplar dessa peça de teatro que vamos estudar. Além disso, precisamos considerar que Garrett, como ini-ciador do Romantismo, ainda estava muito impregnado das convenções e valores estéticos clássicos, daí a necessidade de observamos uma questão central na análise de Frei Luís de Souza: trata-se, sem dúvida, como veremos, de um drama romântico, mas com muitos traços e fundamentos da tragé-dia clássica.

Para compreendermos devidamente esse texto literá-rio dramático de Almeida Garrett, iniciaremos com alguns esclarecimentos a respeito de seu contexto histórico: a peça foi escrita em 1843, mas a história representada desenrola-se no início do século XVII, quando efetivamente viveu o protagonista que dá nome ao texto: Manuel de Souza Cou-tinho, que se tornou o Frei Luís de Souza. O enredo do dra-ma, portanto, está baseado em fatos reais, históricos: vivia-se o tempo da dominação espanhola em Portugal, quando também a peste bubônica espalhava-se pela Europa.

atenção

Para que você possa acompanhar e ter um efetivo aproveitamen-to desta aula, leia, pri-meiramente, a versão integral da peça Frei Luís de Souza, de Al-meida garrett, disponí-vel em:http://web.portoedito-ra.pt/bdigital/pdf/NT-SITE99_FreiLuisSou.pdf.

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A dominação espanhola em Portugal ficou conhecida como União Ibérica, ocorrida como consequência da morte de D. Se-bastião na batalha de Alcácer-Quibir: sem ter deixado herdeiros, o sucessor do jovem rei foi o Infante Cardeal D. Henrique, que, já ancião, logo veio a morrer. “Com o fim dos Avis, de imediato dois partidos surgiram. O partido nacional, que tinha magras esperan-ças de vir alcançar o trono, congregou-se ao lado de D. Antônio, o prior do Crato, que aos olhos de muitos se desqualificava por ser bastardo (o que porém não o impediu de pegar em armas para reclamar a coroa de Portugal). Do outro lado, formou-se o partido castelhano, majoritário, que entendia ser bem melhor naquelas circunstâncias, entregar os louros a Felipe II da Espanha (filho de mãe portuguesa e neto de D. Manoel o Venturoso). Era desejo antigo dos reis espanhóis abocanhar Portugal. Eis que agora surgia aquela oportunidade. Felipe II não a deixou passar. [...] O Duque de Alba, comandante espanhol, invadira Portugal em nome de Feli-pe II, para bater o prior do Crato. Em Alcântara, em 3 de agosto de 1580, foi-se a última esperança de manter Portugal longe da mão do castelhano. D. Antônio, o prior do Crato, derrotado, refugiou-se no exterior, na Inglaterra da Rainha Isabel. O caminho estava livre para a triunfal chegada do futuro rei. Felipe II da Espanha iria se tornar Felipe I de Portugal. Devido com ao rebate de peste em Lisboa, decidiu-se reunir os Estados gerais (nobreza, clero e povo) na cidade de Tomar, ao norte da capital, [...]. Felipe II, vindo da cidade fronteira de Badajoz, aceitou perante aquela assembléia - aberta de 16 de abril até 23 de abril de 1581 - o princípio de um rei, duas coroas, jurando manter a autonomia administrativa e jurídica dos portugueses. Portugal seria governado por um vice-rei indicado por ele, Felipe II, mas os cargos públicos, no Reino e nas possessões ultramarinas, seriam preenchidos com gente da casa, por portugueses. O interesse maior do monarca não eram as rendas e tenças de Portugal ou do seu império colonial, mas manter a tão querida integridade política da Península Ibérica. O que pareceu a maioria dos portugueses bem razoável. Assim é de se entender a entusiasmada recepção que os lisboetas fizeram a Felipe II quando ele, finalmente, desembarcou da galera imperial, nas proximidades do Paço de Lisboa, em 24 de abril de 1581[...]”. Os seus sucessores entretanto, Felipe III e Felipe IV, não con-seguiram, entretanto, manter a grandiosidade do poder exercido pelo rei anterior. “A isso, a estes ‘reis que sonhavam que eram reis’, somou-se a desastrosa guerra dos Trinta Anos (1618-1648), para sugar os últimos recursos da dinastia Habsburgo [...]. Os anos de 1640-1 foram particularmente fatídicos para a Espanha. [...] E, como pá de cal na Unidade Ibérica, em 1º de dezembro de 1640, deu-se a rebelião bem sucedida do Duque de Bragança em Portugal, apoiada de longe pelo Cardeal Richelieu da França. Proclamando-se Rei de Portugal como D. João IV, Portugal recupe-rara a autonomia pondo fim ao quem os historiadores românticos chamaram, com o seu reconhecido exagero, de “cativeiro”, “noite longa”, ou ainda de “submissão” ao castelhano. Durante 60 anos, de 1580 a 1640, Portugal estivera ligado à Espanha. E o Brasil Colonial também. A grandeza da Espanha, entrementes, fora-se para sempre”. Fonte: HISTÓRIA, por Voltaire Schilling, disponível em: http://educaterra.terra.com.br/voltaire/500br/uniao_iberica.htm.

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Nesse quadro, desenrola-se a trama da peça mais fa-mosa de Garrett: Manuel de Souza Coutinho é marido de D. Madalena de Vilhena, supostamente viúva de D. João, importante nobre que teria morrido na batalha de Alcácer-Quibir, mas cujo corpo nunca fora encontrado (numa alu-são direta ao rei D. Sebastião e, consequentemente, ao mito sebastianista). Eles têm uma filha, D. Maria, cujo preceptor é Telmo, o mesmo que serviu a D. João durante toda a vida até seu desaparecimento. O conflito reside, principalmen-te, na seguinte situação: sempre atormentada com o fato de nunca terem encontrado os restos mortais do marido, D. Madalena é uma mulher dividida entre o grande amor que sente pelo seu segundo marido e o remorso de não ter con-tinuado à espera do (improvável) retorno do seu primeiro esposo. Esse remorso causa-lhe apreensão principalmente por causa de sua filha, pois a menina poderia ser fruto de um casamento ilegítimo.

Para entendermos o drama vivido por D. Madalena, precisamos considerar que o fato de o corpo do marido não ter sido encontrado, mesmo após alguns anos, significava uma possível esperança de retorno de D. João; e que, ocor-rendo esse retorno, ela estaria em situação de adultério, o que significava também a condição de a filha ser considerada bastarda. Daí podemos perceber por que a protagonista, já na primeira cena, apresenta-se angustiada. Essa tensão vai ganhando amplitude durante o desenrolar dos acontecimen-tos, e chega ao clímax quando, enfim, disfarçado de romei-ro, D. João retorna. O desenlace não pode ser outro a não ser o final das duas famílias: Maria, a filha, que sempre tivera saúde frágil, morre quando os pais decidem entrar para a vida religiosa – ela tornando-se Soror e ele o Frei Luís de Souza. Assim, eles “morrem” para a vida social, mas salvam seus valores e princípios morais.

Podemos, já com essa síntese, perceber os traços trá-gicos que estruturam o texto, destacando-se os seguintes:

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• todos os personagens são de condição elevada, nobres que possuem distinção em sua sociedade;

• a fábula (mythos) é organizada segundo as regras da ve-rossimilhança e necessidade e, nesse sentido, desenvolve-se com peripécia (mutação de uma situação no seu con-trário) e reconhecimento; o clímax leva à catástrofe pela fatalidade dos acontecimentos: a revelação da verdade (que D. João está vivo) provoca a destruição das perso-nagens. Entretanto,

• como a hybris de D. Madalena, ou seja, o crime de des-medida de quem age para além da limitada condição hu-mana, foi ter levado às últimas consequências o seu amor por Coutinho; e justamente nessa desmedida também re-side a hybris do personagem que dá nome ao texto; logo, trata-se de uma catástrofe que nos provoca terror (phóbos - pela crueldade do Destino, que gera castigo tão severo) e piedade (éleos - pois não houve abalo em sua moral, em seu caráter; eles pagam por seu amor desmedido). “Esse efeito purificador e pedagógico da tragédia gera a catarse (kátarsis)” (MENDES, 1983, p. 59).

Trata-se, porém, de uma drama romântico, se entender-mos que, apesar desses traços trágicos, a ordem sociocultural na qual se desenrola a peça e no tempo em que é escrita gira em torno do capitalismo mercantil e dos valores cristãos: a fatali-dade trágica é, assim, atenuada pela certeza romântica de que o sacrifício em vida é condição para a boa imortalidade da alma; o amor não concretizado em vida o poderá ser, na sua plenitude, na dimensão eterna etc.

Além disso, deve-se atentar para um personagem es-pecialmente: Telmo Pais. A sua crise de consciência leva-o a debater-se enquanto indivíduo dividido pelo amor a seu amo, que também criou desde menino, e o amor maior que sente pela nova filha, D. Maria. Esse conflito interior é típico da al-ma romântica, imersa em culpa e paixão (paixão no sentido do

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amor “passional”, dilacerante, ainda que de ordem paternal, nesse caso):

Cena III, 4:TELMO: [...] Meu honrado amo, o filho de meu nobre senhor, está vivo... o filho que eu criei nestes braços... Vou saber novas certas dele, no fim de vinte anos de julgarem todos perdido ; e eu, eu que sempre esperei, que sempre suspirei pela sua vida... – era um milagre que eu espe-rava sem o crer! – eu agora tremo... É que o amor destoutra filha, desta última filha, é maior e venceu... venceu... apagou o outro... Perdoai-me, Deus, se é pecado.

Nesse dilema, seu maior castigo é a morte da menina e a certeza da “morte” afetiva de D. João – nesse conflito, perde-se em amargura.

Também o dilema de D. Madalena é um conflito de consciência cristã: ela admite, em certa altura (II, 10), que “o pecado estava-me no coração”, pois apaixonara-se por Coutinho já na primeira vez que o viu, ou seja, trata-se do romântico “amor à primeira vista”, só que, no caso da nobre senhora, um amor “pecaminoso” pelas regras da Igreja, pois ela ainda era casada. Conflito interior, portanto, escondido “no segredo da sua consciência, na profundeza de seu foro íntimo, onde ela tem acesso. Só ela e ... Deus” (MENDES, 1983, p. 31).

Muitos outros elementos podem ser analisados nes-te texto dramático de Garrett, e daí sua grandeza. Por fim, devemos lembrar que, para muitos especialistas da obra do autor, a intenção desse escritor português era, com Frei Luís de Souza, e enquanto homem romântico, homem das letras e de ação concomitantemente, levar à reflexão um público burguês que o julgara pelo mesmo crime: o amor desmedi-do. Trata-se de uma série de analogias que podem ser esta-belecidas entre a peça e sua vida:

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[Trata-se] da vivência do próprio autor, nas suas relações com Luísa Cândida Minosi, a esposa de quem se separou, com Adelaide Pastor Deville, com quem passou a viver, e com a filha sobrevivente, Maria Adelaide, objeto de desvelos e dos cuidados do pai. (MENDES, 1983, p. 64).

A referência à “filha sobrevivente” deve-se ao fato de que Adelaide, a mãe, morreu de tuberculose, e assim “D. Maria [tinha] de ser forçosamente inteligente e linda, [e frágil]” para “teatralizar a querida menina órfã [...] que lhe ficara e tanto receava perder (SALGADO JÚNIOR, 1960, apud MENDES, 1983, p. 64).

Desse modo, ao dar a público Frei Luís de Souza, Gar-rett apropria-se da história portuguesa e, sobretudo, da sua própria história, para os efeitos pedagógicos a que se propu-nha: afirmar a grandiosidade da pátria, com os vultos nobres que encena, bem como do sentimento amoroso, que deve ser superior às contingências sociais, ainda que o preço a pagar se-ja alto; o que, por isso mesmo, eleva ainda mais a dignidade e heroicidade dos amantes.

2.2 Dramas românticos de gonçalves Dias e José

de Alencar

O teor nacionalista dos românticos confirma-se tam-bém na produção literária dramática brasileira. Gonçalves Dias, a exemplo de Garret, propugnava igualmente uma renovação do teatro no Brasil e, com a forte impressão gerada por Frei Luís de Souza, que assistiu enquanto estudava em Portugal, tratou de escrever a peça Leonor de Mendonça, “para a qual todos os dias desde às 9 da manhã às 2 da tarde estou enca-fuado na Biblioteca revolvendo Crônicas velhas das primeiras edições” (DIAS apud MARTINS, 1992, p.355).O resumo dessa peça teatral pode ser assim apresentado:

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Como o drama de Garrett, Leonor de Men-donça parte de um episódio autêntico da história portuguesa: o jovem Alcoforado ama a Duquesa de Bragança com o amor puro, elevado e sem esperança, que tanto atraía a ficção romântica; a Duquesa, cuja vida fora salva por ele em circunstâncias perigosas, tem-lhe o amor de gratidão e dos sentimen-tos, não o do coração, menos ainda o dos sentidos. O Duque, entretanto, alimenta tenebrosas suspeitas e pensa confirmá-las ao surpreender-lhes um encontro noturno de despedida, antes da partida do cavalheiro para a África (MARTINS, 1992, p. 356).

Entretanto, nada substituirá a sua leitura completa: por-tanto, mãos à obra! Vamos parar aqui, por enquanto, até você terminar de ler todo o texto que se encontra no site www.do-miniopublico.gov.br.

Então? Concluída a leitura? O que achou da cena final?Sem dúvida, trata-se, como podemos perceber, de um

texto com muitos ingredientes da tragédia (todos os persona-gens têm caráter elevado, são nobres de diferentes estratos; o enredo se move pela fatalidade etc.), mas marcadamente ro-mântico pelos ideais propostos.

saiba mais

ANTÔNIO GONÇALVES DIAS (1823‑1864) “nasceu em Caxias, no Maranhão, filho de pai português e mãe cafuza. Estudou em Coim-bra, onde obteve o grau de bacharel em Direito em 1844. De volta ao Brasil, exerceu a docência e funções públicas, incluindo a diplomacia na Europa. Faleceu na costa do Maranhão, no naufrágio do navio no qual regressava da Europa, onde fora em busca de tratamento de saúde”.(Verbete de Paulo FRANCHETTI para o site: www.brasiliana.usp.br/node/375). Sua contribuição ao teatro efetivou-se com quatro textos dramáticos, escritos entre 1843 e 1846: Patckul; Beatriz Cenci; Leonor de Mendonça; e Boabdil; entretanto, apenas a terceira foi publicada em vida do poeta, as demais ficaram conhecidas em suas Obras Póstumas, de 1869.

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Importante estudo sobre esta obra encontra-se em artigo de Décio Almeida Prado, publicado na revista do Instituto de Estudos Brasileiros, da USP, de 1970, do qual destacamos alguns aspectos. Fica o convite para que você se aprofunde nessa leitura: o link é o seguinte: http://www.ieb.usp.br/catalogo_eletronico/.

Seguindo: para Prado (1970), Leonor de Mendon-ça carrega-se de tons românticos principalmente na figura do jovem Alcoforado que incorpora a imagem do herói ro-mântico, com linguagem lírica e capaz de sacrifícios últimos apenas pela sinceridade de seu amor, ainda que não corres-pondido:

Esse é o paradoxo da sua posição dentro da peça: ele é, ao mesmo tempo, o mais culpado, se o julgarmos por suas ações, e o mais puro moralmente, se atentarmos ao seu caráter. A contradição, apenas apar-ente, desfaz-se se levarmos em conta a na-tureza implacável do amor romântico, que tudo vence e tudo leva de roldão: -“Que doido aquele!... – exclama Paula ao saber de sua paixão proibida. “Enlouqueceis, Senhor?”, pergunta-lhe D. Leonor, em face de suas primeiras tímidas insinuações, a que ele responde com a mesma incerteza: “Que sei eu, Senhora Duquesa, eu mesmo não sei o que digo”. A imagem da loucura retornará a seus lábios, como justificativa, no momento gravíssimo da declaração de amor: “mas dizei, dizei ao menos que vos compadeceis da minha loucura, e que não amaldiçoareis ao mísero que se deixou ren-der por um amor insensato!” (PRADO, 1970, s/p.).

Assim, o que se encontra na figura desse personagem é a caracterização típica do herói romântico, entretanto, ao mesmo tempo, coube a ele todo desfecho nefasto do dra-ma. De igual modo, e isso é o mais interessante, também

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há duplicidade de sentidos nas condutas de D. Leonor e de D. Jaime, o Duque. Ela, porque, apesar de não ter come-tido efetivamente nenhum deslize, permite e se compraz, ainda que sem alarde nem para sua consciência, com a corte do rapaz, o que se justificaria pela forma fria com a qual sempre foi tratada pelo marido. Esse, por sua vez, embora tenha todos os motivos aparentes para condenar a esposa, age de maneira demasiadamente cruel para uma situação de cumprimento de justiça, de acordo com os padrões da épo-ca. Essa crueldade poderia ser explicada pela imposição do casamento a D. Jaime, que por vocação preferiria pertencer aos quadros da Igreja – à vingança estaria somada uma dose de ódio pelo destino, incorporado em D. Leonor.

Desse modo, parece ser este o convite de Gonçalves Dias: em lugar do julgamento simples e tão fácil ao compor-tamento dos indivíduos, o reconhecimento das limitações e contradições humanas e nisso residiria a grandeza desse texto (PRADO, 1970).

Outro relevante nome do Romantismo brasileiro que não deixou de escrever para o teatro, pelas questões que já estudamos (gênero mais concorrido na época, com grande público, caráter pedagógico etc.) foi José de Alencar. Aqui vamos conhecer alguns dos principais aspectos de sua prin-cipal peça, a mais conhecida e comentada: O demônio fami-liar, que você também encontra em versão integral no site www.dominiopublico.gov.br. Então, vamos iniciar a leitura desse texto?

Leitura concluída, continuemos com nosso estudo, cujo principal foco será reconhecer o nacionalismo presente nesse texto dramático alencariano.

Vamos começar situando a literatura dramática de José de Alencar no contexto de sua produção artística:

Ao teatro, Alencar dedica, e não comple-tamente, apenas quatro anos de sua ativ-idade literária: entre os vinte e oito e os

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trinta e dois anos (1857–1861), nas quais leva à cena uma ‘revista de costumes’ (Rio de Janeiro, verso e reverso, 1857), duas co-médias abolicionistas (O demônio famil-iar, 1857; Mãe, 1861), uma versão “para o brasileiro” da Dama das Camélias (As asas de um anjo, 1860), com dois apên-dices pré-naturalistas, sempre sobre o tema do amor-culpa e do amor pago (O crédito, 1857; A expiação, representada em 1868, mas escrita muito antes), e, por fim, um trabalho histórico-dramático (O jesuíta, 1861, mas representado apenas em 1875) juntamente com exercícios menores (como o libreto de ópera, depois musica-do por Elias Álvares Lobo, A noite de São Paulo). (STEGAGNO-PICCHIO, 1997, p. 234).

Para muitos estudiosos da obra alencariana, essa sua incursão à literatura dramática se fez pelo irrecusável apelo do teatro como arte então privilegiada do grande público burguês que se formava e que havia de ser “doutrinado” na perspectiva dos valores românticos:

Alencar estrutura as suas peças de maneira maniqueísta, o que lhe permite um duplo movimento: ao mesmo tempo em que faz a crítica ao que considera moralmente errado na vida social brasileira, propõe caminhos para o seu aprimoramento. [...] Enquanto dramaturgo, Alencar pôde di-rigir-se quase que diretamente ao seu pú-blico, revelando-lhe as vantagens de uma organização social com base nos valores éticos da burguesia. Como um capitalismo incipiente proporcionara a formação de uma classe média de profissionais liberais, comerciantes e negociantes na década de 1850, o teatro tornou-se por excelência o espaço adequado para o dos problemas da vida urbana (FARIA, 1998, p. 53).

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Para este estudo panorâmico sobre a obra dramática de José Alencar, vamos nos deter no texto O demônio fa-miliar, traçando alguns de seus principais aspectos que nos permitem reconhecer a importância e os limites da criação teatral deste que é considerado justamente como um dos maiores nomes do Romantismo brasileiro. Nesse sentido, nossa primeira observação deve ser feita sobre a “classifica-ção” dessa peça como “abolicionista”, ponto nada pacífico nos estudos críticos sobre o autor. Vamos, então, adentrar no mundo do texto a partir dos elementos de análise que nos são já conhecidos:• Considerando o título – esse “demônio familiar” é Pe-

dro, um serviçal muito ligado à figura das comédias europeias do criado enganador, trapaceiro e esperto, que tenta sempre fugir de seu trabalho para se “dar bem” de algum modo. O fato desse serviçal ser um escravo doméstico, situação ainda vigente no Brasil da segunda metade do século XIX, e o responsável pelas confusões da intriga, o que ficamos sabendo logo no início da peça, conduz o leitor/espectador à valoração depreciativa estampada no título. Essa condução, en-tretanto, levanta muitas questões sobre o caráter mais ou menos conservador do texto diante da escravidão naquele momento da vida social brasileira. Voltaremos a isso.

• Se observarmos as partes constitutivas da peça, confir-mamos se tratar de uma comédia dividida em quatro atos, mas sem grande mobilidade de cenários, sendo que o material textual não apresenta muitas didascálias, prio-rizando-se o diálogo.

• A intriga tem como base as ardilosas trapalhadas de Pedro, o escravo de Eduardo, médico liberal, que colo-cam em risco a felicidade de dois casais e desvelam os valores sociais daquele tempo. Essa é uma das questões importantes para a proposição estético-literária de Jo-

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sé de Alencar: desenvolver uma comédia moralizante, tendo como referências fundamentais Molière e Du-mas Filho, ou seja “duas escolas – a clássica e a realista. Dois objetivos, a moralidade e a naturalidade. A ‘alta comédia’ seria, em suma, um daguerreótipo – mas um ‘daguerreótipo moral’” (PRADO, 1974, p. 29).

Trata-se assim, nesse texto de Alencar, de fazer uma fotografia da realidade vivida então, daí a referência ao da-guerreótipo, o antigo aparelho fotográfico, mas uma repro-dução capaz de demonstrar os maus hábitos sociais, a falta de virtude dos casamentos arranjados e o seu contraponto, a grandeza das uniões baseadas no amor mais sincero. Esse intento moralizante, entretanto, acabou por tornar o texto pouco ágil, considerando-se os grandes discursos de Edu-ardo, representante dos melhores ideais burgueses. É por meio desse personagem que se eleva, também, o tom crítico à situação dos escravos domésticos – quando, por fim, são esclarecidas as tramoias de Pedro, o castigo de seu amo é a concessão da carta de alforria, com a seguinte consideração:

EDUARDO – [...] Eu o corrijo, fazendo do autômato um homem; restituo-o à so-ciedade, porém expulso-o do seio de minha família e fecho-lhe para sempre a porta de minha casa. (A Pedro) Toma: é a tua carta de liberdade, ela será a tua punição de hoje em diante, porque as tuas faltas recairão unicamente sobre ti; porque a moral e a lei te pedirão uma conta severa de tuas ações. Livre, sentirás a necessidade do trabalho ho-nesto e apreciarás os nobres sentimentos que hoje não compreendes. (Pedro beija-lhe a mão). (Grifos nossos)

É nesse ponto que as opiniões divergem, pois, para alguns críticos, esta peça de José de Alencar eleva seu au-tor na cena brasileira pela virtude abolicionista (Machado de Assis assim se posicionou); mas, para outros, o aspecto

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conservador é que se sobressai. Vejamos algumas leituras a esse respeito:

O enredo desta comédia, para o público contemporâneo do autor, era uma espécie de alerta (contra os escravos domésticos, e sua má influência nos lares burgueses). E, contudo, um alerta que não figura soz-inho na peça, mas entremeado da defesa lógica de uma solução viável e efetiva – apresentada pelo raisonneur de Alencar, a personagem Eduardo, ao entregar a Pedro sua carta de alforria, libertando-o e liber-tando-se desta convenção social tão con-traditória aos ideais de um país moderno e em vias de evolução (tanto política quanto social). (TARDIN, 2010, s/p.).

Na visão de Flávio Aguiar, essa peça é abolicionista, mas de modo conservador: olha a escravidão enquanto “mal social”, embora esse olhar se aproxime mais do senhor branco e sua pureza familiar que dos inconvenientes para o negro escravo. O movimento da peça aponta para uma melhor forma de organização social, tida como mais civilizada e libertadora frente à prisão moral da escravidão, porque além de o escravo ascender ao mundo do trabalho livre, o senhor também ficaria livre daquele escravo e dos inconvenientes causados por suas intrigas (MORAES, s/d, s/p).

Agora, releia o trecho citado do final da peça e reflita novamente sobre os seus possíveis sentidos: por um lado, a liberdade não acaba sendo a condenação de Pedro? Essa condenação traz implícita a ideia de que o escravo gozava de privilégios por... ser escravo! Como se ele pudesse não o ser se não o quisesse. Por outro lado, não podemos ler o texto fora de seu contexto – e a moralidade pretendida com o ato de Eduardo se traduzia em efetiva elevação social do seu criado – logo, a escravidão doméstica (pelo menos a do-

Raisonneur: fi gura do teatro francês, expres-sa a visão moralista central do texto, pon-tua os valores ideo-lógicos seguidos pelo autor.

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méstica) era vista, por Alencar, como um atraso ao país. Portanto, no questionamento a alguns valores sociais do

Brasil de seu tempo, se expressa o nacionalismo alencariano. Essa perspectiva nacionalista se apresenta seja nesse centro da intriga, pelo fim da escravidão doméstica, seja pela afirmação do amor nas relações familiares, ou ainda na própria afirmação da língua nacional, nas passagens em que o personagem Aze-vedo é criticado por seu francesismo exagerado – pois elevar o país ao conhecimento da Europa, sim, era um objetivo impor-tante, mas com uma leitura própria e afirmativa de sua cultura:

O ponto de partida de Alencar é a Europa. É de lá que ele recebe a inspiração primeira, os instrumentos de trabalho, a forma e parte do conteúdo teatral. Mas o ponto de chegada é o Brasil. Disfarçado em comédia, O demônio familiar é, na verdade, uma longa reflexão so-bre a sociedade brasileira, com o fim de elim-inar-lhe as contradições, de unifica-la social-mente e moralmente (PRADO, 1974, p. 57).

Agora, nosso convite é para que você retome a peça – re-leia o texto a partir dessas considerações e elabore seu comentá-rio crítico, considerando que, se hoje esse tipo de comédia não produz mais os seus efeitos previstos, foi uma expressão artística muito importante para sua época. E, por meio da ótica dramática de Alencar, conhecemos mais a história e a cultura do nosso país. Realmente não é pouco.

3 OS CHOQUES E ANTIDRAMAS DO MODERNISMO

3.4 O Modernismo dramático de Fernando Pessoa

Na segunda metade do século XIX, a chamada Gera-ção de 70, da qual fizeram parte Eça de Queirós, Antero de Quental, Oliveira Martins, entre outros, não desconsiderou

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a importância da literatura dramática e do teatro, de modo geral, como arte necessária à elevação do gosto do público burguês lusitano (REBELLO, 1991). Na sua proposição en-gajada do Realismo/Naturalismo, entretanto, o romance foi o gênero escolhido como potencialmente voltado às diretri-zes estético-políticas que defendiam:

Ao contrário do que sucedera com as ge-rações imediatamente anteriores, nenhum verdadeiro dramaturgo saiu de suas filei-ras: Eça, de quem alguns romances foram por outros adaptados à cena, e Ramalho Ortigão limitaram-se a traduzir obras do repertório romântico e espanhol [...] (RE-BELLO, 1991, p. 72).

Alguns escritores do período tentaram certa investi-da no cenário dramático, como Teófilo Braga (com Auto por desafronta, de 1869, sobre a vida de Gil Vicente), Teixeira de Queirós (autor de O grande homem, 1881, sátira política pre-tensamente com traços naturalistas) e Guilherme de Azevedo (com Rosalino, de 1877, uma contundente crítica à burguesia lisboeta). Trataram-se, contudo, “de experiências isoladas [...], [evidenciando] a permanência do legado romântico, que iria aliás prolongar-se por muito tempo ainda na cena portuguesa (REBELLO, 1991, p. 72).

Já nos primeiros anos do século XX, ganham a cena portuguesa peças representadas pelo grupos Teatro Livre e Te-atro Moderno, esse uma dissidência daquele, com o intuito de renovar a dramaturgia em Portugal. Porém, “de valor desigual, por vezes [eram] excessivamente panfletárias e discursivas, [no combate à] a moral convencional e denúncia às injustiças sociais [...] (REBELLO, 1991, p. 76).

Assim, somente quando, em 1915, é publicada a re-vista Orpheu, marco inicial do Modernismo português, encontra-se uma efetiva renovação dos questionamentos sobre a literatura dramática em Portugal. Nessa revista, em

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seu primeiro número, publicou Fernando Pessoa o seu “dra-ma estático em um quadro”, O marinheiro, escrito em 1913 (REBELLO, 1991, p. 87), que passaremos a conhecer em suas linhas principais.

Para isso, leia, primeiramente, a seguir, o trecho ini-cial da peça:

O MarinheiroDrama estático em um quadro

Fernando Pessoa

Um quarto que é sem dúvida num castelo antigo. Do quarto vê-se que é circular. Ao centro ergue-se, sobre uma mesa, um caixão com uma donzela, de branco. Quatro to-chas aos cantos.À direita, quase em frente a quem imagina o quarto, há uma única janela, alta e estreita, dando para onde só se vê, entre dois montes longínquos, um pequeno espaço de mar.Do lado da janela velam três donzelas. A primeira está sentada em frente à janela, de costas contra a tocha de cima da direita. As outras duas estão sentadas uma de cada lado da janela. É noite e há como que um resto vago de luar.

PRIMEIRAVELADORA

Ainda não deu hora nenhuma.

SEGUNDA Não se pode ouvir. Não há relógio aqui perto. Dentro em pouco deve ser dia.

TERCEIRA Não: o horizonte é negro.PRIMEIRA Não desejais, minha irmã, que nos entretenhamos contando o que

fomos? É belo e é sempre falso...SEGUNDA Não, não falemos nisso. De resto, fomos nós alguma cousa?PRIMEIRA Talvez. Eu não sei. Mas, ainda assim, sempre é belo falar do passa-

do... As horas têm caído e nós temos guardado silêncio. Por mim, tenho estado a olhar para a chama daquela vela. Às vezes treme, outras torna-se mais amarela, outras vezes empalidece. Eu não sei por que é que isso se dá. Mas sabemos nós, minhas irmãs, por que se dá qualquer cousa?... (uma pausa).

A MESMA Falar do passado — isso deve ser belo, porque é inútil e faz tanta pena...

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SEGUNDA Falemos, se quiserdes, de um passado que não tivéssemos tido.TERCEIRA Não. Talvez o tivéssemos tido...PRIMEIRA Não dizeis senão palavras. E tão triste falar! É um modo tão falso

de nos esquecermos! ... Se passeássemos?...TERCEIRA Onde?PRIMEIRA Aqui, de um lado para o outro. Às vezes isso vai buscar sonhos.TERCEIRA De quê?PRIMEIRA Não sei. Porque o havia eu de saber? (uma pausa)SEGUNDA Todo este país é muito triste... Aquele onde eu vivi outrora era

menos triste. Ao entardecer eu fiava, sentada à minha janela. A janela dava para o mar e às vezes havia uma ilha ao longe... Muitas vezes eu não fiava; olhava para o mar e esquecia-me de viver. Não sei se era feliz. Já não tornarei a ser aquilo que talvez eu nunca fosse...

PRIMEIRA Fora de aqui, nunca vi o mar. Ali, daquela janela, que é a única de onde o mar se vê, vê-se tão pouco!... O mar de outras terras é belo?

SEGUNDA Só o mar das outras terras é que é belo. Aquele que nós vemos dá-nos sempre saudades daquele que não veremos nunca...(uma pausa)

PRIMEIRA Não dizíamos nós que íamos contar o nosso passado?SEGUNDA Não, não dizíamos.TERCEIRA Por que não haverá relógio neste quarto?SEGUNDA Não sei... Mas assim, sem o relógio, tudo é mais afastado e misterio-

so. A noite pertence mais a si própria... Quem sabe se nós podería-mos falar assim se soubéssemos a hora que é?

PRIMEIRA Minha irmã, em mim tudo é triste. Passo Dezembros na alma... Estou procurando não olhar para a janela. Sei que de lá se veem, ao longe, montes... Eu fui feliz para além de montes, outrora... Eu era pequenina. Colhia flores todo o dia e antes de adormecer pedia que não mas tirassem... Não sei o que isto tem de irreparável que me dá vontade de chorar... Foi longe daqui que isto pôde ser... Quando virá o dia?...

TERCEIRA Que importa? Ele vem sempre da mesma maneira... sempre, sem-pre, sempre... (uma pausa)

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Nessa espécie de monólogo a três vozes está estrutu-rado o texto que, logo se pode entender, não se trata efeti-vamente de um texto dramático, se por drama se definir um gênero de ação. No modernismo de Fernando Pessoa, sua originalidade criadora tentou, justamente, criar o antidrama, o drama sem ação:

Chamo teatro estático àquele cujo enredo dramático não constitui ação – isto é, onde as figuras não só não agem porque nem se deslocam nem dialogam sobre desloca-rem-se, mas nem sequer têm sentidos ca-pazes de produzir uma ação; onde não há conflito nem perfeito enredo (PESSOA apud SEABRA, 1991, p. 28).

Assim, se não há ação, o que se dramatiza nessa peça é a própria linguagem: “Não parece sequer que Pessoa tenha concebido este drama como representável: ele destina-se mais a ser lido do que a ser visto, ou antes, a ser visualizado através das palavras” (SEABRA, 1991, p. 28). Nesse senti-do, é interessante observarmos aquela indicação das didas-cálias sobre o ambiente em que se passa o texto: “[...] quase em frente a quem imagina o quarto [...]” – nesse imaginar parece localizar-se o endereçamento do autor ao seu leitor, principalmente, muito mais do que a um possível encenador.

Ainda sobre essa questão do espaço, à qual podemos somar a do tempo, fica bem evidente que não há marcação temporal (há a passagens das horas em uma madrugada in-definida) nem espacial, definida para além das indicações mínimas do lugar em que se encontram as personagens. Ao contrário, o que se afirma é somente a fluidez de sentidos no jogo das palavras, como verbaliza a primeira veladora: “Não dizeis senão palavras. E tão triste falar! É um modo tão falso de nos esquecermos!”. Toda a peça, entretanto, está baseada nessa “falsidade” e se levarmos um pouco adiante o senti-do “falso” das palavras, podemos cair no campo da ficção,

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que outro não é do que o do “fingimento” – fingir, fazer de conta, criar, eis o campo semântico da ficcionalidade. E toda arte literária, seja ela dramática, ou lírica, ou narrativa, não se afirma nesse “fingimento”? Lembremos os versos de Pessoa: “O poeta é um fingidor/ finge tão completamente/que chega a fingir que é dor/ a dor que deveras sente”. De certo modo, portanto, podemos relacionar esse sentido do fingimento enquanto criação como elemento também afir-mado na dramaturgia pessoana: é na arquitetura das pala-vras, nos seus sentidos e não sentidos que se estabelece toda a arte literária, o que não seria diferente em relação ao texto dramático.

Continuando nossa leitura, vamos conhecer mais um pouco do texto a partir do ponto em que paramos anterior-mente:

SEGUNDA Contemos contos umas às outras... Eu não sei contos nenhuns, mas isso não faz mal... Só viver é que faz mal... Não rocemos pela vida nem a orla das nossas vestes... Não, não vos levanteis. Isso se-ria um gesto, e cada gesto interrompe um sonho... Neste momento eu não tinha sonho nenhum, mas é-me suave pensar que o podia estar tendo... Mas o passado — por que não falamos nós dele?

PRIMEIRA Decidimos não o fazer... Breve raiará o dia e arrepender-nos-emos... Com a luz os sonhos adormecem... O passado não é senão um sonho... De resto, nem sei o que não é sonho. Se olho para o presente com muita atenção, parece-me que ele já passou... O que é qualquer cousa? Como é que ela passa? Como é por dentro o mo-do como ela passa?... Ah, falemos, minhas irmãs falemos alto, fale-mos todas juntas... O silêncio começa a tomar corpo, começa a ser cousa... Sinto-o envolver-me como uma névoa... Ah, falai, falai!...

SEGUNDA Para quê?... Fito-vos a ambas e não vos vejo logo... Parece-me que entre nós se aumentaram abismos... Tenho que cansar a ideia de que vos posso ver para poder chegar a ver-vos... Este ar quente é frio por dentro, naquela parte que toca na alma... Eu devia agora sentir mãos impossíveis passarem-me pelos cabelos — é o gesto com que falam das sereias... (Cruza as mãos sobre os joelhos. Pau

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sa). Ainda há pouco, quando eu não pensava em nada, estava pen-sando no meu passado.

PRIMEIRA Eu também devia ter estado a pensar no meu...TERCEIRA Eu já não sabia em que pensava... No passado dos outros talvez...,

no passado de gente maravilhosa que nunca existiu... Ao pé da casa de minha mãe corria um riacho... Por que é que correria, e por que é que não correria mais longe, ou mais perto?... Há alguma razão para qualquer cousa ser o que é? Há para isso qualquer razão ver-dadeira e real como as minhas mãos?...

SEGUNDA As mãos não são verdadeiras nem reais... São mistérios que ha-bitam na nossa vida... às vezes, quando fito as minhas mãos, te-nho medo de Deus... Não há vento que mova as chamas das velas, e olhai, elas movem-se... Para onde se inclinam elas?... Que pena se alguém pudesse responder!... Sinto-me desejosa de ouvir mú-sicas bárbaras que devem agora estar tocando em palácios de ou-tros continentes... É sempre longe na minha alma... Talvez porque, quando criança, corri atrás das ondas à beira-mar. Levei a vida pela mão entre rochedos, maré-baixa, quando o mar parece ter cruzado as mãos sobre o peito e ter adormecido como uma estátua de anjo para que nunca mais ninguém olhasse...TERCEIRA — As vossas frases lembram-me a minha alma...

SEGUNDA É talvez por não serem verdadeiras... Mal sei que as digo...Repito-as seguindo uma voz que não ouço que mas está segredando... Mas eu devo ter vivido realmente à beira-mar... Sempre que uma cou-sa ondeia, eu amo-a... Há ondas na minha alma... Quando ando embalo-me... Agora eu gostaria de andar... Não o faço porque não vale nunca a pena fazer nada, sobretudo o que se quer fazer... Dos montes é que eu tenho medo... É impossível que eles sejam tão pa-rados e grandes... Devem ter um segredo de pedra que se recusam a saber que têm... Se desta janela, debruçando-me, eu pudesse deixar de ver montes, debruçar-se-ia um momento da minha alma alguém em quem eu me sentisse feliz...

PRIMEIRA Por mim, amo os montes... Do lado de cá de todos os montes é que a vida é sempre feia... Do lado de lá, onde mora minha mãe, costumávamos sentarmo-nos à sombra dos tamarindos e falar de ir

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ver outras terras... Tudo ali era longo e feliz como o canto de duas aves, uma de cada lado do caminho... A floresta não tinha outras clareiras senão os nossos pensamentos... E os nossos sonhos eram de que as árvores projetassem no chão outra calma que não as suas sombras... Foi decerto assim que ali vivemos, eu e não sei se mais alguém... Dizei-me que isto foi verdade para que eu não tenha de chorar...

SEGUNDA Eu vivi entre rochedos e espreitava o mar... A orla da minha saia era fresca e salgada batendo nas minhas pernas nuas... Eu era peque-na e bárbara... Hoje tenho medo de ter sido... O presente parece-me que durmo... Falai-me das fadas. Nunca ouvi falar delas a nin-guém... O mar era grande de mais para fazer pensar nelas... Na vida aquece ser pequeno... Éreis feliz, minha irmã?PRIMEIRA — Começo neste momento a tê-lo sido outrora... De resto, tudo aquilo se passou na sombra... As árvores viveram-no mais do que eu... Nunca chegou nem eu mal esperava... E vós irmã, por que não falais?

TERCEIRA Tenho horror a de aqui a pouco vos ter já dito o que vos vou dizer. As minhas palavras presentes, mal eu as digo, pertencerão logo ao passado, ficarão fora de mim, não sei onde, rígidas e fatais... Falo, e penso nisto na minha garganta, e as minhas palavras parecem-me gente... Tenho um medo maior do que eu. Sinto na minha mão, não sei como, a chave de uma porta desconhecida. E toda eu sou um amuleto ou um sacrário que estivesse com consciência de si pró-prio. É por isto que me apavora ir, como por uma floresta escura, através do mistério de falar... E, afinal, quem sabe se eu sou assim e se é isto sem dúvida que sinto?...

PRIMEIRA Custa tanto saber o que se sente quando reparamos em nós!... Mesmo viver sabe a custar tanto quando se dá por isso... Falai, por-tanto, sem reparardes que existis... Não nos íeis dizer quem éreis?

TERCEIRA O que eu era outrora já não se lembra de quem sou... Pobre da feliz que eu fui !... Eu vivi entre as sombras dos ramos, e tudo na minha alma é folhas que estremecem. Quando ando ao sol a minha som-bra é fresca. Passei a fuga dos meus dias ao lado de fontes, onde eu molhava, quando sonhava de viver, as pontas tranqüilas dos meus

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dedos... Às vezes, à beira dos lagos, debruçava-me e fitava-me... Quando eu sorria, os meus dentes eram misteriosos na água... Ti-nham um sorriso só deles, independente do meu... Era sempre sem razão que eu sorria... Falai-me da morte, do fim de tudo, para que eu sinta uma razão para recordar...

PRIMEIRA Não falemos de nada, de nada... Está mais frio, mas por que é que está mais frio? Não há razão para estar mais frio. Não é bem mais frio que está... Para que é que havemos de falar?... É melhor can-tar, não sei porquê... O canto, quando a gente canta de noite, é uma pessoa alegre e sem medo que entra de repente no quarto e o aquece a consolar-nos... Eu podia cantar-vos uma canção que can-távamos em casa de meu passado. Por que é que não quereis que vo-la cante?

TERCEIRA Não vale a pena, minha irmã... quando alguém canta, eu não posso estar comigo. Tenho que não poder recordar-me. E depois todo o meu passado torna-se outro e eu choro uma vida morta que trago comigo e que não vivi nunca. É sempre tarde de mais para cantar, assim como é sempre tarde de mais para não cantar... (uma pausa)

PRIMEIRA Breve será dia... Guardemos silêncio... A vida assim o quer. Ao pé da minha casa natal havia um lago. Eu ia lá e assentava-me à beira dele, sobre um tronco de árvore que caíra quase dentro de água... Sentava-me na ponta e molhava na água os pés, esticando para bai-xo os dedos. Depois olhava excessivamente para as pontas dos pés, mas não era para os ver. Não sei porquê, mas parece-me deste lago que ele nunca existiu... Lembrar-me dele é como não me poder lembrar de nada... Quem sabe por que é que eu digo isto e se fui eu que vivi o que recordo?...

SEGUNDA À beira-mar somos tristes quando sonhamos... Não podemos ser o que queremos ser, porque o que queremos ser queremo-lo sempre ter sido no passado... Quando a onda se espalha e a espuma chia, parece que há mil vozes mínimas a falar. A espuma só parece ser fresca a quem a julga uma... Tudo é muito e nós não sabemos na-da... Quereis que vos conte o que eu sonhava à beira-mar?

PRIMEIRA Podeis contá-lo, minha irmã; mas nada em nós tem necessidade de que no-lo conteis... Se é belo, tenho já pena de vir a tê-lo ouvido. E se não é belo, esperai..., contai-o só depois de o alterardes...

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Nessa continuidade do texto, podemos perceber ain-da mais claramente o que já apontamos: o quanto, em lugar de uma ação, é a própria linguagem dramatizada que está em cena. A ficcionalidade ganha o espaço da reflexão proposta pela peça: como personagens, as veladoras colocam em cena a dúvida sobre sua existência e reforçam a importância do “sonhar’, do contar histórias: “Contemos contos umas às outras”, diz a segunda veladora; e a terceira, a certa altura, reflete: “As minhas palavras presentes, mal eu as digo, per-tencerão logo ao passado, ficarão fora de mim, não sei onde, rígidas e fatais... Falo, e penso nisto na minha garganta, e as minhas palavras parecem-me gente...”.

Finalizemos nossa leitura – e, enfim, “entra em cena” o marinheiro que dá título à peça (já reserve uma resposta para o sentido desse título: por que o destaque fica com o marinheiro?).

SEGUNDA Vou dizer-vo-lo. Não é inteiramente falso, porque sem dúvida nada é inteiramente falso. Deve ter sido assim... Um dia que eu dei por mim recostada no cimo frio de um rochedo, e que eu tinha esque-cido que tinha pai e mãe e que houvera em mim infância e outros dias — nesse dia vi ao longe, como uma coisa que eu só pensasse em ver, a passagem vaga de uma vela. Depois ela cessou... Quando reparei para mim, vi que já tinha esse meu sonho... Não sei onde ele teve princípio.. . E nunca tornei a ver outra vela... Nenhuma das velas dos navios que saem aqui de um porto se parece com aquela, mesmo quando é lua e os navios passam longe devagar...

PRIMEIRA Vejo pela janela um navio ao longe. É talvez aquele que vistes...SEGUNDA Não, minha irmã; esse que vedes busca sem dúvida um porto qual-

quer... Não podia ser que aquele que eu vi buscasse qualquer por-to...

PRIMEIRA Por que é que me respondestes?... Pode ser... Eu não vi navio ne-nhum pela janela... Desejava ver um e falei-vos dele para não ter pena... Contai-nos agora o que foi que sonhastes à beira-mar...

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SEGUNDA Sonhava de um marinheiro que se houvesse perdido numa ilha lon-gínqua. Nessa ilha havia palmeiras hirtas, poucas, e aves vagas pas-savam por elas... Não vi se alguma vez pousavam... Desde que, nau-fragado, se salvara, o marinheiro vivia ali... Como ele não tinha meio de voltar à pátria, e cada vez que se lembrava dela sofria, pôs-se a sonhar uma pátria que nunca tivesse tido: pôs-se a fazer ter sido sua uma outra pátria, uma outra espécie de país com outras espécies de paisagens, e outra gente, e outro feitio de passarem pelas ruas e de se debruçarem das janelas... Cada hora ele construía em sonho esta falsa pátria, e ele nunca deixava de sonhar, de dia à sombra curta das grandes palmeiras, que se recortava, orlada de bicos, no chão areento e quente; de noite, estendido na praia, de costas e não reparando nas estrelas.

PRIMEIRA Não ter havido uma árvore que mosqueasse sobre as minhas mãos estendidas à sombra de um sonho como esse!...

TERCEIRA Deixai-a falar... Não a interrompais... Ela conhece palavras que as sereias lhe ensinaram... Adormeço para a poder escutar... Dizei, mi-nha irmã, dizei... Meu coração dói-me de não ter sido vós quando sonháveis à beira-mar...

SEGUNDA Durante anos e anos, dia a dia, o marinheiro erguia num sonho con-tínuo a sua nova terra natal... Todos os dias punha uma pedra de sonho nesse edifício impossível... Breve ele ia tendo um país que já tantas vezes havia percorrido. Milhares de horas lembrava-se já de ter passado ao longo de suas costas. Sabia de que cor soíam ser os crepúsculos numa baía do norte, e como era suave entrar, noite alta, e com a alma recostada no murmúrio da água que o navio abria, num grande porto do sul onde ele passara outrora, feliz talvez, das suas mocidades a suposta... (uma pausa)

PRIMEIRA Minha irmã, por que é que vos calais?SEGUNDA Não se deve falar demasiado... A vida espreita-nos sempre... Toda a

hora é materna para os sonhos, mas é preciso não o saber... Quando falo de mais começo a separar-me de mim e a ouvir-me falar. Isso faz com que me compadeça de mim própria e sinta demasiadamente o coração. Tenho então uma vontade lacrimosa de o ter nos braços para o poder embalar como a um filho... Vede: o horizonte empali

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deceu... O dia não pode já tardar... Será preciso que eu vos fale ainda mais do meu sonho?

PRIMEIRA Contai sempre, minha irmã, contai sempre... Não pareis de contar, nem repareis em que dias raiam... O dia nunca raia para quem encos-ta a cabeça no seio das horas sonhadas... Não torçais as mãos. Isso faz um ruído como o de uma serpente furtiva... Falai-nos muito mais do vosso sonho. Ele é tão verdadeiro que não tem sentido nenhum. Só pensar em ouvir-vos me toca música na alma...

SEGUNDA Sim, falar-vos-ei mais dele. Mesmo eu preciso de vo-lo contar. À me-dida que o vou contando, é a mim também que o conto... São três a escutar... (De repente, olhando para o caixão, e estremecendo). Três não... Não sei... Não sei quantas...

TERCEIRA Não faleis assim... Contai depressa, contai outra vez... Não faleis em quantos podem ouvir... Nós nunca sabemos quantas coisas realmen-te vivem e vêem e escutam... Voltai ao vosso sonho... O marinheiro. O que sonhava o marinheiro?

SEGUNDA (mais baixo, numa voz muito lenta) — Ao princípio ele criou as paisagens, depois criou as cidades; criou depois as ruas e as traves-sas, uma a uma, cinzelando-as na matéria da sua alma — uma a uma as ruas, bairro a bairro, até às muralhas dos cais de onde ele criou depois os portos... Uma a uma as ruas, e a gente que as percorria e que olhava sobre elas das janelas... Passou a conhecer certa gen-te, como quem a reconhece apenas... Ia-lhes conhecendo as vidas passadas e as conversas, e tudo isto era como quem sonha apenas paisagens e as vai vendo... Depois viajava, recordando, através do país que criara... E assim foi construindo o seu passado... Breve ti-nha uma outra vida anterior... Tinha já, nessa nova pátria, um lugar onde nascera, os lugares onde passara a juventude, os portos onde embarcara... Ia tendo tido os companheiros da infância e depois os amigos e inimigos da sua idade viril... Tudo era diferente de como ele o tivera — nem o país, nem a gente, nem o seu passado próprio se pareciam com o que haviam sido... Exigis que eu continue?... Causa-me tanta pena falar disto!... Agora, porque vos falo disto, aprazia-me mais estar-vos falando de outros sonhos...

TERCEIRA Continuai, ainda que não saibais porquê... Quanto mais vos ouço, mais me não pertenço...

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PRIMEIRA Será bom realmente que continueis? Deve qualquer história ter fim? Em todo o caso falai... Importa tão pouco o que dizemos ou não dizemos... Velamos as horas que passam... O nosso mister é inútil como a Vida...

SEGUNDA Um dia, que chovera muito, e o horizonte estava mais incerto, o marinheiro cansou-se de sonhar... Quis então recordar a sua pátria verdadeira..., mas viu que não se lembrava de nada, que ela não exis-tia para ele... Meninice de que se lembrasse, era a na sua pátria de sonho; adolescência que recordasse, era aquela que se criara... Toda a sua vida tinha sido a sua vida que sonhara... E ele viu que não podia ser que outra vida tivesse existido... Se ele nem de uma rua, nem de uma figura, nem de um gesto materno se lembrava... E da vida que lhe parecia ter sonhado, tudo era real e tinha sido... Nem sequer podia sonhar outro passado, conceber que tivesse tido outro, como todos, um momento, podem crer... Ó minhas irmãs, minhas irmãs... Há qualquer coisa, que não sei o que é, que vos não disse... Qualquer coisa que explicaria isto tudo... A minha alma esfria-me... Mal sei se tenho estado a falar... Falai-me, gritai-me, para que eu acorde, para que eu saiba que estou aqui! ante vós e que há coisas que são apenas sonhos...

PRIMEIRA (numa voz muito baixa) — Não sei que vos diga... Não ouso olhar para as cousas... Esse sonho como continua?...

SEGUNDA Não sei como era o resto.... Mal sei como era o resto... Por que ha-verá mais?...

PRIMEIRA E o que aconteceu depois?SEGUNDA Depois? Depois de quê? Depois é alguma cousa?... Veio um dia um

barco... Veio um dia um barco... — Sim, sim... só podia ter sido as-sim... — Veio um dia um barco, e passou por essa ilha, e não estava lá o marinheiro.

TERCEIRA Talvez tivesse regressado à pátria... Mas a qual?PRIMEIRA Sim, a qual? E o que teriam feito ao marinheiro? Sabê-lo-ia alguém?SEGUNDA Por que é que mo perguntais? Há resposta para alguma coisa? (uma

pausa)TERCEIRA Será absolutamente necessário, mesmo dentro do vosso sonho, que

tenha havido esse marinheiro e essa ilha?SEGUNDA Não, minha irmã; nada é absolutamente necessário.

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PRIMEIRA Ao menos, como acabou o sonho?SEGUNDA Não acabou... Não sei... Nenhum sonho acaba... Sei eu ao certo se o

não continuo sonhando, se o não sonho sem o saber, se o sonhá-lo não é esta coisa vaga a que eu chamo a minha vida?.. Não me faleis mais... Principio a estar certa de qualquer coisa, que não sei o que é... Avançam para mim, por uma noite que não é esta, os passos de um horror que desconheço... Quem teria eu ido despertar com o sonho meu que vos contei?... Tenho um medo disforme de que Deus tives-se proibido o meu sonho... Ele é sem dúvida mais real do que Deus permite... Não estejais silenciosas... Dizei-me ao menos que a noite vai passando, embora eu o saiba... Vede, começa a ir ser dia.. Vede: vai haver o dia real...Paremos... Não pensemos mais... Não tentemos seguir nesta aventura interior... Quem sabe o que está no fim dela?.... Tudo isto, minhas irmãs, passou-se na noite... Não falemos mais dis-to, nem a nós próprios... É humano e conveniente que tomemos, cada qual, a sua atitude de tristeza.

TERCEIRA Foi-me tão belo escutar-vos... Não digais que não... Bem sei que não valeu a pena... É por isso que o achei belo... Não foi por isso, mas deixai que eu o diga... De resto, a música da vossa voz, que escute ainda mais que as vossas palavras, deixa-me, talvez só por ser música, descontente...

SEGUNDA Tudo deixa descontente, minha irmã... Os homens que pensam can-sam-se de tudo, porque tudo muda. Os homens que passam pro-vam-no, porque mudam com tudo... De eterno e belo há apenas o sonho... Por que estamos nós falando ainda?...

PRIMEIRA Não sei... (olhando para o caixão, em voz mais baixa) — Por que é que se morre?

SEGUNDA Talvez por não se sonhar bastante...PRIMEIRA É possível... Não valeria então a pena fecharmo-nos no sonho e es-

quecer a vida, para que a morte nos esquecesse?...SEGUNDA Não, minha irmã, nada vale a pena...TERCEIRA Minhas irmãs, é já dia... Vede, a linha dos montes maravilha-se... Por

que não choramos nós?... Aquela que finge estar ali era bela, e nova como nós, e sonhava também... Estou certa que o sonho dela era o mais belo de todos... Ela de que sonharia?...

PRIMEIRA Falai mais baixo. Ela escuta-nos talvez, e já sabe para que servem os

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sonhos...(uma pausa)SEGUNDA Talvez nada disto seja verdade... Todo este silêncio, e esta morta, e este

dia que começa não são talvez senão um sonho... Olhai bem para tudo isto... Parece-vos que pertence à vida?...

PRIMEIRA Não sei. Não sei como se é da vida... Ah, como vós estais parada! E os vossos olhos tão tristes, parece que o estão inutilmente...

SEGUNDA Não vale a pena estar triste de outra maneira... Não desejais que nos calemos? É tão estranho estar a viver... Tudo o que acontece é inacre-ditável, tanto na ilha do marinheiro como neste mundo... Vede, o céu é já verde... O horizonte sorri ouro... Sinto que me ardem os olhos, de eu ter pensado em chorar...

PRIMEIRA Chorastes, com efeito, minha irmã.SEGUNDA Talvez... Não importa... Que frio é isto?... Ah, é agora... é agora!...

Dizei-me isto... Dizei-me uma coisa ainda... Por que não será a única coisa real nisto tudo o marinheiro, e nós e tudo isto aqui apenas um sonho dele?...

PRIMEIRA Não faleis mais, não faleis mais... Isso é tão estranho que deve ser verdade. Não continueis... O que íeis dizer não sei o que é, mas de-ve ser de mais para a alma o poder ouvir... Tenho medo do que não chegastes a dizer... Vede, vede, é dia já... Vede o dia... Fazei tudo por reparardes só no dia, no dia real, ali fora... Vede-o, vede-o... Ele consola.. Não penseis, não olheis para o que pensais... Vede-o a vir, o dia... Ele brilha como ouro numa terra de prata. As leves nuvens arredondam-se à medida que se coloram.. Se nada existisse, minhas irmãs?... Se tudo fosse, qualquer modo, absolutamente coisa nenhu-ma?... Porque olhastes assim?...(Não lhe respondem. E ninguém olhara de nenhuma maneira.)

A MESMA Que foi que dissestes e que me apavorou?... Senti-o tanto que mal vi o que era... Dizei-me o que foi, para que eu, ouvindo-o segunda vez, já não tenha tanto medo como dantes... Não, não... Não digais nada...Não vos pergunto isto para que me respondais, mas para falar apenas, para me não deixar pensar... Tenho medo de me poder lem-brar do que foi... Mas foi qualquer coisa de grande e pavoroso como o haver Deus... Devíamos já ter acabado de falar... Há tempo já que a nossa conversa perdeu o sentido... O que é entre nós que nos faz falar prolonga-se demasiadamente... Há mais presenças aqui do que

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as nossas almas.. O dia devia ter já raiado.. Deviam já ter acordado... Tarda qualquer coisa... Tarda tudo... O que é que se está dando nas coisas de acordo com o nosso horror?... Ah, não me abandoneis... Falai comigo, falai comigo... Falai ao mesmo tempo do que eu para não deixardes sozinha a minha voz... Tenho menos medo à minha voz do que à idéia da minha voz, dentro de mim, se for reparar que estou falando...

TERCEIRA Que voz é essa com que falais?... É de outra... Vem de uma espécie de longe...

PRIMEIRA Não sei... Não me lembreis isso... Eu devia estar falando com a voz aguda e tremida do medo... Mas já não sei como é que se fala... Entre mim e a minha voz abriu-se um abismo... Tudo isto, toda esta con-versa e esta noite, e este medo — tudo isto devia ter acabado, devia ter acabadode repente, depois do horror que nos dissestes... Come-ço a sentir que o esqueço, a isso que dissestes, e que me fez pensar que eu devia gritar de uma maneira nova para exprimir um horror de aqueles...

TERCEIRA (para a

SEGUN-DA)

Minha irmã, não nos devíeis ter contado essa história. Agora estra-nho-me viva com mais horror. Contáveis e eu tanto me distraía que ouvia o sentido das vossas palavras e o seu som separadamente. E parecia-me que vós, e a vossa voz, e o sentido do que dizíeis eram três entes diferentes, como três criaturas que falam e andam.

SEGUNDA São realmente três entes diferentes, com vida própria e real. Deus talvez saiba porquê... Ah, mas por que é que falamos? Quem é que nos faz continuar falando? Por que falo eu sem querer falar? Por que é que já não reparamos que é dia?...

PRIMEIRA Quem pudesse gritar para despertarmos! Estou a ouvir-me a gritar dentro de mim, mas já não sei o caminho da minha vontade para a minha garganta. Sinto uma necessidade feroz de ter medo de que alguém possa bater àquela porta. Por que não bate alguém à porta? Seria impossível e eu tenho necessidade de ter medo disso, de saber de que é que tenho medo... Que estranha que me sinto!... Parece-me já não ter a minha voz... Parte de mim adormeceu e ficou a ver... O meu pavor cresceu mas eu já não sei senti-lo... Já não sei em que parte da alma é que se sente...Puseram ao meu sentimento do meu corpo uma mortalha de chumbo... Para quefoi que nos contastes a

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vossa história?SEGUNDA Já não me lembro... Já mal me lembro que a contei... Parece tersido

já há tanto tempo!... Que sono, que sono absorve o meu modo de olhar para as coisas!... O que é que nós queremos fazer? o que é que nós temos idéia de fazer? — já não sei se é falar ou não falar...

PRIMEIRA Não falemos mais. Por mim, cansa-me o esforço que fazeis para fa-lar... Dói-me o intervalo que há entre o que pensais e o que dizeis... A minha consciência bóia à tona da sonolência apavorada dos meus sentidos pela minha pele... Não sei o que é isto, mas é o que sinto... Preciso de dizer frases confusas um pouco longas, que custem a di-zer... Não sentis tudo isto como uma aranha enorme que nos tece de alma a alma uma teia negra que nos prende?

SEGUNDA Não sinto nada... Sinto as minhas sensações como uma coisa que se sente... Quem é que eu estou sendo?... Quem é que está falando com a minha voz?... Ah, escutai...

PRIMEIRA e

TERCEIRA

Quem foi?

SEGUNDA Nada. Não ouvi nada... Quis fingir que ouvia para que vós supusés-seis que ouvíeis e eu pudesse crer que havia alguma coisa a ouvir... Oh, que horror, que horror íntimo nos desata a voz da alma, e as sensações dos pensamentos, e nos faz falar e sentir e pensar quando tudo em nós pede silêncio e o dia e a inconsciência da vida... Quem é a quinta pessoa neste quarto que estende o braço e nos interrompe sempre que vamos a sentir?

PRIMEIRA Para quê tentar apavorar-me? Não cabe mais terror dentro de mim... Peso excessivamente ao colo de me sentir. Afundei-me toda no lodo morno do que suponho que sinto. Entra-me por todos os sentidos qualquer coisa que nos pega e nos vela. Pesam as pálpebras a todas as minhas sensações. Prende-se a língua a todos os meus sentimentos. Um sono fundo cola umas às outras as idéias de todos as meus ges-tos. Por que foi que olhastes assim?...

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Concluída nossa leitura, vamos problematizar mais alguns aspectos de O marinheiro, seguindo as orientações do professor José Augusto Seabra, no seu livro Fernando Pessoa ou o poetodrama (1991). Retomemos as personagens:

[...] as três Veladoras só aparentemente são personagens distintas. As suas falas retomam-se umas às outras ao longo do drama, numa espécie de solilóquio obses-sivo, reduzindo-se a três vozes que entre si ecoam, até que sua própria identidade se dissolve: ‘Quem é que eu estou sendo? Quem é que está falando com a minha voz?’ (SEABRA, 1991, p. 29).

E quanto ao marinheiro? Já elaborou sua resposta so-bre as possíveis motivações do título? Vamos adiantar, en-tão, que esse parece ser, enfim, o único personagem efetivo do texto, personagem “simbólico e mítico, evocado através do sonho” (Idem, ibidem). Nesse sentido, você não con-corda com a ideia de que essa evocação pelo sonho evidencia o quanto é muito tênue o limite entre a ficção e o real? E indo mais além, não está nessa peça de Fernando Pessoa uma

TERCEIRA(numa voz

muito lenta e apagada)

Ah, é agora, é agora... Sim, acordou alguém... Há gente que acorda... Quando entrar alguém tudo isto acabará... Até lá façamos crer que todo este horror foi um longo sono que fomos dormindo... É dia já. Vai acabar tudo... E de tudo isto fica, minha irmã, que só vós sois feliz, porque acreditais no sonho...

SEGUNDA Por que é que mo perguntais? Porque eu o disse? Não, não acredi-to...Um galo canta. A luz, como que subitamente, aumenta. As três ve-ladoras quedam-se silenciosas e sem olharem umas para as outras.Não muito longe, por uma estrada, um vago carro geme e chia.

Fonte: texto disponível em: http://www.planonacionaldeleitura.gov.pt/clubedeleituras/upload/e_livros/clle000163.pdf. Acesso em

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constante pergunta ao sentido da nossa existência: afinal, o que somos? De que matéria somos feitos? Existimos para além das lembranças que temos sobre nós e que, muitas ve-zes, nos foram contadas por outros? Existimos fora do senti-do da alteridade (do outro). Enfim, são questionamentos que vão ganhando densidade ao longo da peça, amplificando-se no terror das veladoras diante da possibilidade do Nada, do não sentido da existência. Esse clímax, aceitando-se as vozes das personagens como a voz de um coro, permite-nos definir a di-mensão da literatura dramática pessoana como essencialmente trágica (SEABRA, 1991). Em um comentário em inglês, as-sim se reporta o poeta português ao seu O marinheiro: “O fim desta peça contém o mais sutil terror intelectual jamais visto. Uma cortina de chumbo tomba quando elas não têm mais na-da a dizer uma às outras, nem mais nenhuma razão para falar” (PESSOA apud SEABRA, 1991, p. 31 – trecho traduzido pelo autor).

Para finalizar nosso breve estudo sobre este drama de Fernando Pessoa, cabe lembrarmos o sentido da palavra personagem: persona, que na sua origem etimológica e his-tórica, como vimos, remete a máscara – as máscaras do tea-tro grego. No caso da poética pessoana, devemos considerar que essa dramatização sem drama, no sentido de ação, foi muito além de sua escrita dramatúrgica: revelou-se na sua própria dispersão nas máscaras dos heterônimos. Cada um deles formando “individualidades distintas”, cada uma como “espécie de drama, e todas elas juntas um outro drama: um drama em gente em vez de atos” (PESSOA apud REBELLO, 1991, p. 87). Ou dito de outro modo, também pelo próprio Pessoa: “Trata-se simplesmente do temperamento dramático elevado ao máximo; escrevendo em vez de dramas em atos e ação, dramas em almas” (apud SEABRA, 1991, p. 34).

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3.5 Literatura dramática no Modernismo

brasileiro

De um modo geral, quando falamos em Modernismo no Brasil, logo nos reportamos à famosa Semana de 1922, durante a qual a arte brasileira – no campo da literatura, das artes plásticas e da música, principalmente – foi motivo de questionamentos e de novas proposições estéticas. Naquele momento, tratavam de romper com certa tradição acade-micista e procuravam inovar a linguagem artística de forma própria, a partir do legado das grandes manifestações das vanguardas do final do séc. XIX início do XX.

A literatura dramática, porém, e a arte teatral, de modo amplo, não tiveram a mesma atenção nesse período, entre outros aspectos, pelo fato de que as companhias e os espaços de encenação priorizavam o bom retorno financeiro propiciado por atuações fáceis, ancoradas em grandes cele-bridades do momento, com comédias e farsas estrangeiras, sobretudo, que garantiam um bom público. Renovar, sacu-dir e transformar essa situação era tarefa das mais difíceis e foi preciso algum tempo para que ocorresse alguma modi-ficação nesse panorama. Assim, somente no final dos anos de 1920 e durante a década de 1930 é que se registram pre-ocupações “com a modernização da dramaturgia e do espe-táculo teatral, com Renato Viana, Álvaro Moreyra, Flávio de Carvalho, Antônio de Alcântara Machado e Oswald de Andrade, espíritos sintonizados com as conquistas moder-nistas” (FARIA, 1998, p. 114).

Desses autores, destacamos dois: Alvaro Moreyra e Oswald de Andrade.

O primeiro escreveu, em 1925, a peça Adão, Eva e outros membros da família, dividida em quatro atos, “cons-truída com linguagem, personagens e problemas que de fato não tinham ainda aparecido na dramaturgia brasileira” (FA-RIA, 1998, p. 110). O enredo pode ser assim apresentado de maneira sintética:

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Um mendigo e um ladrão, enriquecidos, tornam-se homens poderosos na sociedade. “Um”, como proprietário de uma agência de informações, e “Outro”, como dono de um jornal. A “Mulher”, no primeiro ato uma viciada em cocaína e nos seguintes uma rica e bem-sucedida atriz, torna-se amante do “Outro”. Mas “Um”, traindo o amigo, con-vence-o a abandoná-la e a toma para si. No momento do acerto de contas, as duas per-sonagens trocam insultos, porém logo põem os interesses financeiros acima das questões pessoais. Sócios, fundam mais um jornal (FARIA, 1998, p. 111).

saiba mais

“Álvaro Moreyra (ÁLVARO Maria da Soledade Pinto da Fonseca Velhinho Rodrigues MOREIRA da Silva), poeta, cronista e jornalista, nasceu em Porto Alegre, RS, em 23 de novembro de 1888, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 12 de setembro de 1964. Era filho de João Moreira da Silva, autor teatral, cronista e poeta, e de Maria Rita da Fonse-ca. Simplificou o longo nome de família para Álvaro Moreyra, com y (para que esta letra “representasse as supressões”). [Foi] para o Rio de Janeiro em 1910, onde concluiu o curso de Direito. Tornou-se amigo de Felipe d’ Oliveira e Araújo Jorge. Entre 1912 e 1914 esteve em Paris e viajou também à Itália, à Bélgica e à Inglaterra. De volta ao Brasil, encetou a carreira jornalística no Rio, tendo sido redator de várias publicações: Fon-Fon, Bahia Ilustrada, A Hora, Boa Nova, Ilustração Brasileira, Dom Casmurro, Diretrizes e Para Todos. Admirador da arte cênica, fundou no Rio, em 1927, o “Teatro de Brinquedo”, o primeiro movimento estruturado no país de renovação do teatro. Em 1937, apresentou à Comissão de Teatro, do Ministério da Educação e Cultura, um plano de organização de uma “Companhia Dramática Brasileira”, que foi aceito. Com ela, Álvaro Moreyra excur-sionou aos estados de São Paulo e Rio grande do Sul, e fez temporada de três meses no Teatro Regina, do Rio de Janeiro. [...] Quarto ocupante da Cadeira 21 da Academia Brasileira de Letras, eleito em 13 de agosto de 1959, na sucessão de Olegário Mariano e recebido pelo Acadêmico Múcio Leão em 23 de novembro de 1959”.Fonte: Site da Academia Brasileira de Letras. Disponível em: http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=115&sid=229.

É interessante notar essa forma de representar as perso-nagens: “Um, “Outro”, “Mulher”, para citarmos os principais, que, na peça, sugerem a sua constituição como máscaras ou marionetes, “já que no desfecho se resignam a ‘morrer’: ‘Cor-taram os nossos fios. Tivemos início, meio e fim. Contamos uma história. Fim...’ (FARIA, 1998, p. 110).

Com a importância histórica de ter tentado renovar a cena brasileira, a peça foi encenada no Rio de Janeiro em 1927 com montagem realizada “pelo Teatro de Brinquedo, grupo

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amador idealizado pelo próprio Álvaro Moreyra, que con-tou com a colaboração de sua mulher, a atriz e declamadora Eugênia Moreyra, Joracy Camargo, Di Cavalcanti, Brutus Pedreira, Alvarus e vários outros” (FARIA, 1998, p. 112). Sobre os objetivos e o nome dado ao grupo, assim se pro-nunciou o autor:

Eu sempre cismei um teatro que fizesse sor-rir, mas que fizesse pensar. Um teatro com reticências... Um teatro que se chamasse Teatro de Brinquedo e tivesse como única literatura uma epígrafe do velho Goethe: “Humanidade divide-se em duas espécies, a dos bonecos que representam um papel aprendido e a dos naturais,espécie menos numerosa de entes que nascem, vivem e movem-se segundo Deus as criou...” Um teatro de bonecos? Sim. Mas supondo que nessa estação do século XX, os bone-cos, de tal maneira aperfeiçoados, dessem a sensação de gente de carne, osso, alma, espírito... Por que de brinquedo? Porque os cenários imitam caixas de brinque-dos, simples, infantis (MOREYRA apud RIEGO, 2006, p. 81).

O grupo, entretanto, teve vida breve, conseguindo realizar apenas mais uma montagem, o que não diminui sua importância nesse contexto da vida teatral brasileira. De to-do modo, somente no final dos anos de 1930 desenvolveu-se de modo mais efetivo a renovação do teatro no país com a atuação de dois grupos amadores do Rio de Janeiro: “o Teatro do Estudante, criado por Paschoal Carlos Magno, em 1938, e Os Comediantes, grupo que estreou em 1940 e que contou com o trabalho de intelectuais como Santa Rosa, Brutus Pedreira e Adacto Filho” (FARIA, 1998, p. 114).

Quanto a Oswald de Andrade, muitos críticos consi-deram que coube a ele “a mais genial tentativa malograda de um teatro modernista, daquele teatro que poderia ser e não foi [...]” (STEGAGNO-PICCHIO, 1997, p. 506). Três são

saiba mais

Sobre o grupo Teatro do Estudante, assim declarou seu criador, Paschoal Carlos Mag-no: “Esse teatro de jovens imediatamen-te obteve ressonância nacional. Que fez ele? Impôs a presença de um diretor como res-ponsável pela unidade artística do espetácu-lo. Valorizou a contri-buição do cenário e dos figurinistas traba-lhando sob a orienta-ção do diretor. Exigiu melhoria do repertó-rio e maior dignidade artística. [...] Impôs a fala brasileira no nosso palco infestado de sotaque lusitano. Abriu caminho, serviu de exemplo” (apud FARIA, 1998, p. 115).Já sobre o grupo Os Comediantes, deve-mos saber que, para muitos críticos, sua importância esteve em modificar o panorama brasileiro, “em que o intérprete principal assegura o prestígio popular da apresen-tação independente-mente do texto, do resto do elenco e dos acessórios [transferin-do] para o encenador o papel de vedete” (MAgALDI apud FA-RIA, 1998, p. 115).

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as principais criações de seu repertório dramático: O homem e o cavalo, de 1934; A morta, em 1937, e O rei da vela, escrita em 1933 e publicada em 1937. Trata-se, portanto, de uma incursão mais tardia de Oswald na dramaturgia se considerada a sua atu-ação como poeta e ativista da Semana de 1922, o que só con-firma os limites da renovação teatral (de modo amplo) naquele momento. Importa sabermos, também, que a encenação de O rei da vela só aconteceu em 1967, pois no ano de sua publicação instaurava-se a ditadura do Estado Novo que censurou a peça, além de outros fatores importantes: “um exame dos espetácu-los realizados no Brasil, na década de 1930, permitirá concluir sem dificuldade que não havia lugar para serem montadas as suas peças” (MAGALDI, 2004, p. 8), o que nos leva a concluir que “Oswald pagou o tributo de estar muito à frente de seu tempo [...]. Foi preciso esperar 30 anos, desde a sua publicação, para que O rei da vela irrompesse na montagem do Teatro Ofi-cina, dirigida por José Celso Martinez Correa, como espantosa obra de vanguarda” (MAGALDI, 2004, p. 8).

Vamos acompanhar um resumo da peça apresentado por Sábato Magaldi:

Escrita a partir de 1933, depois da crise de 1929 (que o arruinara), da Revolução de 1930 e da Revolução Constitucionalista de 1932 (quando ele já aderira ao comunismo), O rei da vela representa a análise furiosa feita por Oswald da realidade brasileira e das classes dominantes a que pertencia por origem e cu-jos reveses tornaram tão agudo o seu conhe-cimento dos problemas.[...]Que personagens exprimiriam melhor esse retrato sem retoques do Brasil? Antes de todo o mundo, o industrial incipiente de um país subdesenvolvido, fabricante do único produ-to de consumo certo – a vela que acompanha todos os mortos. E a vela simboliza também a outra profissão de um país hipotecado – a ag-iotagem, esperança de devedores contumaz-es, entre os quais se incluía o próprio Oswald.

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A esse industrial de vela e agiota Oswald deu o nome de Abelardo, para enriquecê-lo com a conotação do famoso amante do século XII, um dos símbolos do amor desesperado e romântico, vítima da sociedade, ao tentar quebrar-lhe as barreiras, no amor de Heloí-sa. Se há Abelardo, é claro que Heloísa deve estar a seu lado, como na história. Só que o século XX não admitiria efusões românticas e Oswald faz a paródia do amor puro e per-feito. Heloísa é filho do Coronel Belarmino, aristocrata rural de São Paulo, arruinado com a crise do café, e tentando, com a aliança da burguesia urbana em ascensão, a saída que não traz um Banco Hipotecário, sempre adi-ado. Esse é o painel das classes dominantes brasileiras, [cada vez mais tributárias] da norte-americana (não mais da inglesa), e o tabuleiro de forças precisava conter a figura indefectível de um Mr. Jones, presidindo os negócios (nesse universo, tudo é negócio). Essas são as peças-mestras do jogo armado por Oswald, que preferiu desmontar a engre-nagem nos seus elementos fundamentais, em vez de escamoteá-la com criaturas menos ex-emplificativas (MAGALDI, 2004, p. 66-67).

Conhecido, assim, o núcleo central desse texto dramá-tico de Oswald de Andrade, vamos ler um fragmento do tex-to, fazendo o convite para que você leia o texto integral (para adiantar sua leitura, sugerimos que acesse o site books.google.com.br/books?isbn=8525036692, para conhecer todo o 1º ato de O rei da vela).

É interessante assinalarmos a dedicatória da peça:

“A Álvaro MoreyraeEugênia Álvaro Moreyrana dura criaçãode um enjeitado – o teatronacional, O.A.São Paulo, junho de 1937”

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Ao dedicar a obra ao casal Álvaro Moreyra, confirma-se o reconhecimento de Oswald de Andrade a seus colegas de ofício na tentativa de “criação” de um teatro efetivamente na-cional. Nesse sentido, O rei da vela explicita a crítica oswal-diana ao atraso do país, fruto principalmente das falcatruas da elite dirigente, com apoio governamental, num contexto con-turbado, como foi apontado por Sábato Magaldi. Vamos ler o seguinte trecho:

Heloísa (mos-trando a Giocon-da)

Por que que você tem esse quadro aí...

Abelardo I A Gioconda... Um naco de beleza. O primeiro sorriso burguês...

Heloísa Você é realista. E por isso enriqueceu magicamente. Enquanto os meus pais, lavradores de cem anos, empobreceram em dois...

Abelardo I Trabalharam e fizeram trabalhar para mim milhares de seres du-rante noventa e oito... (Silêncio absorto).

Heloísa Dizem tanta coisa de você, Abelardo...

Abelardo I Já sei... Os degraus do crime... que desci corajosamente. Sob o silêncio comprado dos jornais e a cegueira da justiça da minha classe! Os espectros do passado... Os homens que traí e assassi-nei. As mulheres que deixei. Os suicidados... O contrabando e a pilhagem... Todo o arsenal do teatro moralista dos nossos avós. Nada disso me impressiona nem impressiona mais o público... A chave milagrosa da fortuna, uma chave yale... Jogo com ela!

Heloísa O pânico...

Abelardo I Por que não? O pânico do café. Com dinheiro inglês comprei café na porta das fazendas desesperadas. De posse de segredos governamentais, joguei duro e certo no café-papel! Amontoei ruínas de um lado e ouro do outro! Mas, há o trabalho constru-tivo, a indústria... Calculei ante a regressão parcial que a crise provocou... Descobri e incentivei a regressão, a volta à vela... sob o signo do capital americano.Heloísa – Ficaste o Rei da Vela!

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Abelardo I Com muita honra! O Rei da Vela miserável dos agonizantes. O Rei da vela de sebo. E da vela feudal que nos fez adormecer em criança pensando nas histórias das negras velhas... Da vela pequeno-burguesa dos oratórios e das escritas em casa... As em-presas elétricas fecharam com a crise... Ninguém mais pode pa-gar o preço da luz... A vela voltou ao mercado pela minha mão previdente. Veja como eu produzo de todos os tamanhos e cores. (Indica o mostruário). Para o Mês de Maria das cidades caipiras, para os armazéns do interior onde se vende e se joga à noite, para a hora de estudo das crianças, para os contrabandistas no mar, mas a grande vela é a vela da agonia, aquela pequena velinha de sebo que espalhei para o Brasil inteiro... Num país medieval como o nosso, quem se atreve a passar os umbrais da eternidade sem uma vela na mão? Herdo um tostão de cada morto nacional!

Heloísa (Sonhan-do)

Meu pai era o Coronel Belarmino que tinha sete fazendas, aquela casa suntuosa de Higienópolis... ações, automóveis... Duas filhas viciadas, dois filhos tarados... Ficou morando na nossa casinha de Penha e indo à missa pedir a Deus a solução que os governos não deram...

Abelardo I Que não deram aos que não podem viver sem empréstimos.Heloísa Meus pais... meus tios... meus primos...Abelardo I Os velhos senhores da terra que tinham que dar lugar aos novos

senhores da terra!Heloísa No entanto, todos dizem que acabou a época dos senhores e dos

latifúndios...

Abelardo I Você sabe que o meu caso prova o contrário. Ainda não tenho o número de fazendas que seu pai tinha, mas já possuo uma área cultivada maior que a que ele teve no apogeu.

Heloísa Há dez anos... A saca de café a duzentos mil-réis!Abelardo I Estamos de fato num ponto crítico em que podem predominar,

aparentemente e em número, as pequenas lavouras. Mas nun-ca como potência financeira. Dentro do capitalismo, a peque-na propriedade seguirá o destino da ação isolada nas socieda-des anônimas. O possuidor de uma é mito econômico. Senhora minha noiva, a concentração do capital é um fenômeno que eu apalpo com as minhas mãos. Sob a lei da concorrência, os fortes comerão sempre os fracos. Desse modo é que desde já os latifún-dios paulistas se reconstituem sob novos proprietários.

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Heloísa Formidável trabalho o seu!Abelardo I Não faça ironia com a sua própria felicidade! Nós dois sabemos

que milhares de trabalhadores lutam de sol a sol para nos dar farra e conforto. Com a enxada nas mãos calosas e sujas. Mas eu tenho tanta culpa disso como o papa-níqueis bem colocado que se enche diariamente de moedas. É assim a sociedade em que vivemos. O regime capitalista que Deus guarde...

Heloísa E você não teme nada?Abelardo I Os ingleses e americanos temem por nós. Estamos ligados ao

destino deles. Devemos tudo, o que temos e o que não temos. Hipotecamos palmeiras... quedas d’água. Cardeais!

Heloísa Eu li num jornal que devemos só à Inglaterra trezentos milhões de libras, mas só chegaram aqui trinta milhões...

Abelardo I É provável! Mas compromisso é compromisso! Os países infe-riores têm que trabalhar para os países superiores como os po-bres trabalham para os ricos. Você acredita que New York teria aquelas babéis vivas de arranha-céus e as vinte mil pernas mais bonitas da Terra se não se trabalhasse para Wall Street de Ribei-rão Preto a Cingapura, de Manaus a Libéria? Eu sei que sou um simples feitor do capital estrangeiro. Um lacaio, se quiserem! Mas não me queixo. É por isso que possuo uma lancha, uma ilha e você...

Fonte: ANDRADE, Oswald. Literatura comentada. Seleção de textos, notas, estudos biográfico e histórico por Jorge Schwartz. São Paulo: Abril, 1980, p. 77-78.

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Encontramos muito claramente, nesse diálogo, a crí-tica mordaz de Oswald de Andrade à sociedade capitalista. O personagem Abelardo incorpora o oportunista que trata de enriquecer a qualquer custo: “Abelardo não investe em ne-nhum campo que possa significar progresso. A vela simboliza o atraso, a permanência da superstição, o medo religioso para-lisador...” (MAGALDI, 2004, p. 74). Agora, sua vez: selecione trechos desse fragmento do 1º Ato que desvelam a perspectiva de crítica social e política do autor em relação ao Brasil dos anos de 1930:

Desenvolva suas respostas em arquivo à parte.Retomaremos esse tópico nas atividades, logo a seguir.

Encerramos este estudo com as seguintes considera-ções de Sábato Magaldi (2004, p. 10): “Quando o Oficina lançou O rei da vela, com um sucesso que se estendeu até a excursão do elenco pelo Brasil, em 1971, não era mais possí-vel pôr em dúvida a excelência do texto. A posteridade fez a Oswald a justiça que ele não teve em vida. A única vantagem é que esse juízo costuma ser duradouro”.

1. Sobre a peça de Garrett, Frei Luís de Souza:

a. Elabore uma descrição básica das personagens princi-pais (D. Madalena, D. Maria, D. João, Manuel de Sou-za Coutinho e Telmo Pais) com passagens do texto, reafirmando, assim, uma das marcas trágicas do dra-ma: o de serem figuras de caráter elevado:

b. Selecione trechos da peça que exemplifiquem a parte sublinhada da seguinte afirmação: “a fábula (mythos)

ATIVIDADES

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é organizada segundo as regras da verossimilhança e necessidade e, nesse sentido, desenvolve-se com pe-ripécia (mutação de uma situação no seu contrário) e reconhecimento” e justifique suas escolhas:

c. Por que a História era tão importante como “ingre-diente” em muitas tramas românticas, a exemplo desse texto literário dramático português?

2. Sobre os textos literários dramáticos de Gonçalves Dias e José de Alencar:

a. Selecione do prefácio escrito por Gonçalves Dias na sua peça Leonor de Mendonça um posicionamento crí-tico do autor em relação aos valores sociais que pode ser considerado como justificativa para o título desta sua obra literária dramática (ou seja, por que ele esco-lheu Leonor como a figura chave do drama a ponto de nomeá-lo?):

b. Leia, a seguir, a avaliação de Machado de Assis sobre a peça de José Alencar, O demônio familiar; posterior-mente, selecione trechos da peça que condizem com a leitura de Machado e, por fim, elabore um comentário próprio sobre o nacionalismo alencariano nesta sua obra literária dramática:

Parece-nos ter compreendido bem a sig-nificação do personagem principal d’O Demônio Familiar; esta foi, sem dúvida, a série de reflexões feitas pelo autor para transportar ao teatro aquele tipo emi-nentemente nosso. Ora, desde que entra em cena até o fim da peça, o caráter de Pedro não se desmente nunca: é a mesma vivacidade, a mesma ardileza, a mesma ig-norância do alcance dos seus. atos; se de certo ponto em diante, cedendo às ad-moestações do senhor, emprega as mes-

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mas armas da primeira intriga em uma nova intriga que desfaça aquela, esse novo traço é o complemento do tipo. Nem é só isso: delatando os cálculos de Vasconcelos a respeito do pretendente de Henriqueta, Pedro usa do seu espírito enredador, sem grande consciência nem do bem nem do mal que pratica; mas a circunstância de desfazer um casamento que servia aos in-teresses de dois especuladores dá aos olhos do espectador uma lição verdadeiramente de comédia.[...] não falta ainda que apreciar n’O Demônio Familiar, como, por exemplo, os tipos de Azevedo e de Vasconcelos, as duas amigas Henriqueta e Carlotinha, tão brasileiras no espírito e na linguagem, e o caráter de Eduardo, nobre, generoso, amante.[Publicado na “Semana Literária”, seção do Diário do Rio de Janeiro, 6, 13 e 27 mar.1866].

3. Sobre o teatro no Modernismo português e brasileiro:

a. Selecione trechos de O Marinheiro e comente-os, res-pondendo a questão seguinte: podemos dizer que, de certo modo, esse antidrama pessoano trata da “ficção dentro da ficção” (SEABRA, 1991, p. 29)?

b. Leia, a seguir, a primeira rubrica do 1º Ato de O rei da vela e responda: nessa marcação do espaço, na apre-sentação dos detalhes do escritório de Abelardo já en-contramos o tom de crítica social que o autor imprime na peça? Complemente sua resposta com os comen-tários feitos sobre outras passagens do texto a respei-to dessa mesma temática (a crítica social e política de Oswald de Andrade como marca de sua dramaturgia):

Em São Paulo. Escritório de usura de Abe-lardo & Abelardo. Um retrato da Giocon-da. Caixas amontoadas. Um divã futurista.

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Uma secretária Luís XV. Um castiçal de latão. Um telefone. Sinal de alarme. Um mostruário de velas de todos os taman-hos e de todas as cores. Porta enorme de ferro à direita correndo sobre rodas hori-zontalmente e deixando ver no interior as grades de uma jaula. O prontuário, peça de gavetas com os seguintes rótulos: MAL-ANDROS – IMPONTUAIS – PRON-TOS – PROTESTADOS – Na outra di-visão: PENHORAS – LIQUIDAÇÕES – SUICÍDIOS – TANGAS.Pela ampla janela entra o barulho da manhã na cidade e sai o das máquinas de escrever da antessala.

Estudamos, nessa aula, os principais elementos ca-racterizadores do drama romântico em Portugal e no Brasil, com especial atenção à peça que é considerada, por muitos críticos, como a obra-prima de Garrett, Frei Luís de Souza e, nela, as marcas do trágico que convivem com o drama burguês. De modo semelhante, enfocamos as peças de dois nomes considerados os maiores do Romantismo brasileiro, Gonçalves Dias e José de Alencar, demonstrando a impor-tância e os limites de suas proposições dramáticas num país recém-independente e carente de autonomia artística-cul-tural, embora a buscasse. Esse limite de renovação da arte teatral persistirá ainda no início do Modernismo brasileiro, mas novas tentativas de ultrapassagem serão realizadas por autores como Álvaro Moreyra e Oswald de Andrade, ainda que no final dos anos de 1920 e 1930, respectivamente. Já em Portugal, o Modernismo trouxe à cena uma textualidade antidramática na peça O marinheiro, de Fernando Pessoa, mas não podemos esquecer que a própria poética pessoana personificou a dramaticidade existencial do poeta.

RESUMINDO

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REFERêNCIAS

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Suas anotações

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O PALCO DA SOCIEDADE EM CRISE

Objetivo:

• Reconhecer os principais aspectos histórico-culturais da dramaturgia brasileira e portuguesa no período de 1940 à década de 1970, destacando-se o caráter político e social das obras dos mais relevantes autores desse período e suas consequentes propostas estéticas, com ênfase sobre o teatro épico.

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1 INTRODUÇÃO

Dos anos quarenta ao início da década de sessenta do século XX, efetivava-se, de forma crescente, a interna-cionalização do capital oriunda da conjuntura mundial do pós-guerra, que levou à polarização político-econômica da chamada Guerra Fria. No Brasil, o crescimento urbano per-mitiu o desenvolvimento da classe média e o país ‘moderni-zava-se’, embora muito aos moldes do sistema norte-ame-ricano, quando os EUA passaram a despontar como nova potência mundial.

As contradições entre campo e cidade, as limitações da pequena burguesia urbana, a necessidade de mudanças conjunturais foram alguns dos temas caros aos novos dra-maturgos que se voltavam a um texto dramático crítico, em diferentes gêneros. Autores como Nelson Rodrigues, Jorge Andrade e Guarnieri, para citarmos alguns dos mais impor-tantes desse período, renovaram a dramaturgia brasileira. De igual modo, na esteira do teatro épico, que estudaremos, os textos dramáticos de Boal visavam à conscientização po-pular diante da injustiça, da opressão e dos desmandos de toda ordem, quando nosso país enfrentava os anos violentos da ditadura militar.

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Já em Portugal, despontava o movimento neorrealista e sua proposta estético-política de revolução social por meio da arte. Nos anos de 1950, mais especificamente, verificam-se diferentes perspectivas políticas na vida portuguesa e bra-sileira: nesta última, a política desenvolvimentista de Jusce-lino Kubitschek com seu slogan “50 anos em 5”, privilegiava o crescimento econômico, via industrialização, mas a reboque do capital estrangeiro, gerando-se um processo inflacionário que aumentou a tensão social entre capital x trabalho. A reali-dade portuguesa, por sua vez, era a de continuidade do regime salazarista, ditadura apoiada pela conservadora elite agrária do pais, que freava o crescimento industrial e sustentava a manu-tenção do sistema colonial.

Diante desse quadro, Portugal e Brasil apresentavam, em comum, sérias desigualdades sociais e regionais, marcadas na acentuada disparidade entre a vida urbana e o meio rural ou interiorano. A representação do embate desses dois mo-dus vivendi é um dos pontos temáticos dos textos dramáticos de Bernardo Santareno e Dias Gomes, que escreveram, res-pectivamente, A promessa, em 1957, e O pagador de promes-sas, em 1960, que estudaremos nesta aula. Estabeleceremos um diálogo entre essas duas peças significativas da literatura dramática portuguesa e brasileira, apontando suas aproxima-ções e distanciamentos quanto à temática, ambientação e ca-racterização das personagens.

2 O TEXTO DRAMÁTICO NOS ANOS 1940/1950

2.1 Do Neorrealismo ao Épico em Portugal

A dramaturgia portuguesa ganhou renovado impulso com a inauguração do Teatro-Estúdio do Salitre, em 1946, revelando novos autores e atores, entre os quais destacaram-se os escritores neorrealistas, como Alves Redol (Maria

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Emilia, de 1946; Forja, de 1949), Pedro Bom (A menina e a maçã, 1947; Para lá da máscara, 1950), Luiz Francisco Re-bello (O mundo começou às 5 e 47; O dia seguinte, 1953), para citar-se apenas alguns expoentes (REBELLO, 1991).

Sobre o Neorrealismo português, precisamos saber que se tratou de um movimento artístico-político preocu-pado em combater, via arte literária, a opressão, a injus-tiça e toda forma de exploração desencadeada pelo siste-ma capitalista. Questionando as diretrizes do Realismo/Naturalismo, então em voga no Portugal dos anos trinta do século passado, assentadas basicamente na concepção positivista, o Neorrealismo caracterizou-se, assim, pela busca de uma arte literária engajada, preocupada não só em denunciar os problemas de seu tempo - quando se vi-via a afirmação da ditadura salazarista - como em apontar possíveis caminhos de mudança.

Outro aspecto sempre salientado nos estudos sobre o Neorrealismo é o seu direcionamento à construção de tex-tos literários em que as personagens, suas ações e interações, bem como suas órbitas espaciais e temporais situam-se no âmbito privilegiado do coletivo sobre o individual. Não é difícil entender que as razões para esse privilégio estão an-coradas, justamente, nas prerrogativas ideológicas do mo-vimento neorrealista, ou seja, na intencionalidade estético-política de afirmação de um humanismo renovado, que tem por base a noção de solidariedade e organização coletiva dos despossuídos como fundamentais para a transformação da realidade social.

Ao longo dos anos de 1950, de modo geral, a tônica neorrealista se manterá atuante na dramaturgia portuguesa, desembocando, a partir dos anos de 1960, e apesar da censu-ra do governo ditatorial de Salazar, no teatro épico, de acor-do com as proposições de Bertold Brecht. Assim, antes de continuarmos a estudar os principais aspectos da literatura dramática em Portugal nesse período, precisamos conhecer

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mais detidamente as importantes contribuições desse autor alemão para a dramaturgia ocidental.

O termo teatro épico foi usado inicialmente por Erwin Piscator (1893-1966), mas foi Bertold Brecht (1898-1956) quem desenvolveu uma teoria e uma práxis consisten-te sobre a matéria:

Trata-se de um estilo anti-ilusionista, cuja essência consiste na apresentação, não das relações interpessoais, mas das que decor-rem de determinantes sociais. [...] As téc-nicas do teatro épico incluem a utilização de canções, narração, projeções, além de uma exposição através de enredo episódi-co, o que evita o processo de identificação entre espectador e personagem, ao mesmo tempo em que fortalece a participação in-telectual do espectador (VASCONCEL-LOS, 2001, p. 195).

Ao romper com a ilusão cênica, o objetivo do teatro épico é, portanto, levar o público à reflexão crítica, mas por uma via diferente da aristotélica – ao invés de proporcionar a identificação pelo “imitado”, possibilita um distanciamen-to que implica em tomada de posição. Ou seja, no lugar da catarse, que permite ao espectador sair satisfeito, conforma-do e passivo, a intenção de Brecht é levar ao inconformis-mo, de modo que as emoções sejam elevadas ao raciocínio (ROSENFELD, 1994, p. 148). Nesse processo, destaca-se o materialismo dialético como fundamento e método de aná-lise da realidade social, a partir do qual se edificam as obras brechtniana, como Mãe Coragem (1939); O senhor Puntila e seu Servo Matti (1940/1941); O círculo de giz caucasiano (1944/45).

Sinteticamente, podemos perceber as diferenças en-tre as formas do teatro dramático e do teatro épico do se-guinte modo:

leitura recomendada

Para estudo mais apro-fundado, sugerimos a leitura de O teatro épi-co, de Anatol Rosenfeld [São Paulo: Perspectiva, 1994], no qual o autor aborda os mais impor-tantes aspectos dos gêneros literários para explicar o sentido dessa espécie de épico na dra-maturgia. Além disso, Rosenfeld demonstra a presença de elementos épicos desde o próprio teatro grego até a mo-dernidade, chegando à teoria de Brecht.

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[Adaptado de: ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 1994, p. 149].

Forma dramática do teatro

Atuando,

envolve o espectador numaação cênica,

gasta-lhe a atividade,

possibilita-lhe emoções.

Prioriza o reconhecimento deuma vivência.

O espectador identifica-se, convive.

O homem é pressuposto como conhecido.

Visão essencialista do homem(imutabilidade).

Encadeamento pleno das cenas.

Visão orgânica do drama(ênfase no crescimento).

Desenvolvimento linear.

Necessidade evolutiva.

O pensar determina o ser.

Emoção

Forma épica do teatro

Narrando,

torna o espectador um observador,

despertando sua atividade,

força-o a tomar decisões.

Questiona visão de mundo.

O espectador permanece em face de, estuda.

O homem é objeto de pesquisa.

O homem é mutável, visto como pro-cesso.

Tensão visando ao desenvolvimento.

Cada cena por si.

Prerrogativa da montagem.

Desenvolvimento em curvas.

Estruturação em saltos.

O ser social determina o pensar.

Raciocínio.

Em Pequeno Organon (1948), Brecht apresenta uma síntese da teoria épica, defendendo que “mesmo didático, [o teatro] deve continuar plenamente teatro e, como tal, diver-tido” (ROSENFELD, 1994, p. 151), mas esse divertimento deve propiciar “o olhar épico da distância”, para podermos nos desacostumar com uma realidade que parece natural e, ao contrário, exige atenção crítica e desalienada.

Por essa perspectiva crítica de cunho marxista é que

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o teatro épico foi tão bem recebido e dinamizado na drama-turgia portuguesa de herança neorrealista com nomes como o de José Cardoso Pires, por exemplo, e sua peça O render dos heróis (1960).

Esta “narrativa dramática”, como define o autor, di-vide-se em três partes, antecedidas de um Prólogo, com um final em que se anuncia “uma apoteose grotesca» (PIRES, 1970, 231). No texto são revisitados acontecimentos histó-ricos do século XIX, especialmente o levantamento popular que ficou conhecido como Maria da Fonte, contra o gover-no de António Bernardo da Costa Cabral, em 1846. Essa retomada histórica se estabelece como uma crítica às rela-ções autoritárias de poder, demonstrando as possibilidades da resposta popular em levantes e movimentos de contesta-ção. Fica claro, desse modo, tratar-se de uma volta ao pas-sado para uma reflexão sobre o presente, quando em Portu-gal se intensificavam os desmandos da ditadura salazarista, considerando-se, sobretudo, o início da guerra de libertação colocada em marcha pelos países africanos de colonização portuguesa, como Angola e Moçambique.

saiba mais

Para aprofundar estudos sobre esta peça de José Cardoso Pires, recomenda-se a leitu-ra da Dissertação de Márcia Regina Rodrigues, disponível no site Domínio Público, com o título “Traços épico-brechtianos na dramaturgia portuguesa: O render dos heróis, de Cardoso Pires, e Felizmente há luar, de Sttau Monteiro” (UNESP-Araraquara, 2010]. Nesse trabalho, fica-se conhecendo melhor o contexto histórico no qual se insere o texto dramático de Cardoso Pires, conforme exemplificam as seguintes passagens:Sobre a Revolta de Maria Fonte: “De acordo com Oliveira Marques (1998), historica-mente, [esse movimento] passou por duas fases: a primeira foi deflagrada pela revolta popular, com duração de apenas um mês (Abril-Maio de 1846), tendo como resultado a demissão de António Bernardo da Costa Cabral, do governo; a segunda, chamada Patuléia, bem mais longa e configurada como guerra civil, teve duração de oito meses (Outubro de 1846 a Junho de 1847), sendo finalizada com intervenção estrangeira – apoiada pelo governo de Lisboa. O fim da revolta trouxe como consequência o regresso dos Cabrais” (p. 58).// Sobre os Cabrais: “António Bernardo da Costa Cabral, nomeado ministro do Reino pela Rainha em 1842, era o verdadeiro dirigente do governo, presi-dido pelo Duque da Terceira. Costa Cabral foi um estadista autoritário e o seu governo “estabeleceu no País um regime de repressão e de violência, embora a imprensa con-tinuasse livre” (OLIVEIRA MARQUES, 1998, p. 40). Segundo Oliveira Martins (1895, p. 268), depois da Maria da Fonte e da Patuléia, “Costa-Cabral – o conde de Thomar: era mais que um homem: era um systema e um phantasma”. António Bernardo da Costa Cabral era apoiado por seu irmão, José Bernardo da Silva Cabral, por isso a designação popular de governo dos Cabrais ou Cabralismo” (p. 58).

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Para compreendermos melhor essa ideia de que em O render dos heróis encontramos as principais proposições de Brecht para o teatro épico, vamos tomar como exemplo a cena de abertura da peça. Trata-se da narração da primeira ação da Revolta:

Na noite de quinze para dezasseis de Abril um povo dos confins do Alto Minho de-ixou casas, deixou tudo, e espalhou-se pela serrania bárbara. Fazia luar, um luar negro, se assim se pode dizer. Cá em baixo tudo escuro e torvo: carvalhos velhos, torcidos, carvalhos dos tempos do Dilúvio, urzes e medronheiros pelados e cobertos por uma espécie de ferrugem da terra que lembrava cinza e mundos devastados. Depois o ro-lar das águas nas profundezas das brechas; depois os fossos de silvedo, os labirintos dos lobos e as bocarras dos desfiladeiros – tudo tornava a noite medonha e traiçoeira. Um pano negro, a serrania. E diante do pano ne-gro aparecem-nos as primeiras figuras em debandada [...]. Salta a velha do bordão, foge a outra, desvairada, espanta-se a cabra, e não há quem não procure uma saída [...]. (Con-ta-se que certa mocinha, na ânsia do deses-pero, se quis lançar a um barranco – isto é: do palco para baixo – e que a muito custo foi salva por aquela multidão tresnoitada que, bem ou mal, sempre conseguiu escapar à ameaça do feroz cornetim) (CARDOSO PIRES, 1978, p. 11-13).

Apenas as duas referências ao cenário – “Um pano negro, a serrania” e “do palco para baixo” – indicam que não se trata de um romance ou conto, mas de um texto dramá-tico. Desse modo, o prólogo destina-se, certamente, a um narrador, “apesar de não haver nenhuma indicação na peça de como esse prólogo deve ser de fato encenado. [De igual modo], todos os outros textos de mesmo caráter narrativo que aparecem geralmente no início de cada parte ou de cada

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cena podem ser narrados, na encenação, por uma personagem qualquer que assume o papel de narrador” (RODRIGUES, 2010, p. 60).

Por esse caráter narrativo do texto, pela quebra da ilusão cênica ao ser colocado no palco um narrador ou os persona-gens exercerem essa função, costuma-se designar esta peça de Cardoso Pires como o primeiro texto dramático português que se aproximou do teatro épico. Assim, o espectador é levado a refletir sobre a realidade histórica que se descortina diante de seus olhos e que permite, afinal, uma reflexão sobre o seu presente.

Após a Revolução dos Cravos, ocorrida em 25 de abril de 1974, a redemocratização política permitiu maior expansão do teatro português. Foram definidas leis de incentivo que pro-porcionaram o impulso para criação de novos centros culturais, bem como “estímulo a companhias já existentes – Grupo 4, Teatro-Estúdio de Lisboa, Comuna, Cornucópia, Bonecreiros, Casa da Comédia, Teatros Experimentais do Porto e de Cas-cais [entre outros]” (REBELLO, 1991, p. 98). Desse modo, a cena portuguesa renovou-se por uma diversidade de caminhos e propostas artísticas.

2.2 O engajamento na dramaturgia brasileira

Nos anos quarenta, chegam ao Brasil diversos direto-res, cenógrafos e atores estrangeiros que propõem uma reno-vação na arte teatral. Com o polonês Zbigniev Ziembinski, foi fundada a companhia “Os comediantes”, em 1941; e, em 1948, funda-se o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), com a parti-cipação de diretores italianos como Adolfo Celi, Gianni Rato, entre outros (STEGAGNO-PICCHIO, 1997, p. 683).

Foi sob a direção de Ziembinski que, em 1943, estreou Vestido de Noiva, peça que deu notoriedade a Nelson Rodri-gues, embora sua estreia como dramaturgo tenha ocorrido, sem

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tanto sucesso, em 1939, com A mulher sem pecado. Expondo as mazelas, as hipocrisias e o falso moralismo da conservadora classe média carioca, a obra rodrigueana marcou seu lugar na dramaturgia nacional.

Em Vestido de noiva, no entanto, mais do que a crueza da linguagem, o que causou positivo espanto foram as novida-des cênicas:

A representação plástica em três planos (re-alidade, alucinação e memória) do delírio de uma jovem mulher [Adelaide]. Em estado de choque provocado por um acidente au-tomobilístico, enquanto é operada (plano da realidade, presente), ela revive a sua história (plano da memória, do passado) ao mesmo tempo em que o público é arrastado, quase com violência, para o conhecimento dos pro-cessos mentais que se realizam em seu cére-bro, do qual as personagens surgem como [...] materializações da lembrança (plano de alucinação, possibilidade) (STEGAGNO-PICCHIO, 1997, p. 684).

para conhecer

”Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico.”

Nelson Falcão Rodrigues nasceu da cidade do Recife - PE, em 23 de agosto de 1912, e faleceu no Rio de Janeiro em 21 de dezembro de 1980. Em 1916, sua família mudou-se para o Rio de Janeiro, cidade que foi o cenário mais constante de sua obra. Além do teatro, foi escritor de contos e romances e dedicou-se ao jornalismo, escrevendo sobre futebol e sobre comportamento, como na sua conhecida e polêmica coluna “A Vida Como Ela é…”. No site da Fundação Nacional de Artes (FUNARTE) encontram-se muitas e importantes informações e reflexões sobre a arte dramática de Nelson Rodrigues. Con-sulte:http://www.funarte.gov.br/brasilmemoriadasartes/acervo/nelson-rodrigues/bate-papo-em-torno-da-obra-de-nelson-rodrigues/.

Figura 1: Nelson RodriguesFonte: http://novapaulista.files.wordpress.com/2012/06/nelson-rodrigues-1.jpg

De modo geral, e por interesse de âmbito didático so-bretudo, pode-se dividir a obra de Nelson Rodrigues em três grandes linhas temáticas:

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Peças psicológicas – A mulher sem pecado; Vestido de Noiva; Valsa n. 6; Viúva, porém honesta; Anti-Nelson Rodrigues; Peças míti-cas – Álbum de família; Anjo Negro; Doro-téia; Senhora dos Afogados; Tragédias cari-ocas: A falecida; Perdoa-me por me traíres; Os sete gatinhos; Boca de Ouro; Beijo no asfalto; Bonitinha, mas ordinária; Toda nu-dez será castigada; A serpente (MAGALDI, 1981, p. 9).

Não devemos esquecer, contudo, que, como toda di-visão de uma obra (e essa foi realizada quando da publica-ção do Teatro Completo de Nelson Rodrigues), os critérios não são definitivos e, de certo modo, pode até levar a um empobrecimento do universo do escritor. No caso do autor carioca, é preciso entender que em suas peças psicológicas encontram-se elementos míticos e trágicos; nas míticas, res-soam componentes psicológicos e certas marcas das tragé-dias que, por sua vez, assimilaram “o mundo psicológico e o mítico das obras anteriores. Poucos dramaturgos revelam, como Nelson Rodrigues, um imaginário tão coeso e origi-nal, e com um espectro tão amplo de preocupações psicoló-gicas, existenciais, sociais e estilísticas” (MAGALDI, 1981, p. 9).

Outro nome que merece destaque é o de Jorge An-drade, que estreou, em 1955, sua mais conhecida peça, A moratória. Nesse texto dramático, ganha destaque a situação da aristocracia paulistana falida com a crise do café e o pro-gressivo empobrecimento e proletarização das gerações se-guintes dos velhos fazendeiros (STEGAGNO-PICCHIO, 1997, p. 685).

Podemos considerar que a proposta desse autor foi criar “um teatro que refletisse a realidade brasileira, através de sua história e seu povo. [Desse modo], Jorge Andrade acabou por escrever um conjunto de textos, organizado num único corpo, composto por dez peças, conhecido co-

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Aluízio Jorge Andra-de Franco nasceu em Barretos-SP em 1922 e faleceu em 13 de março de 1984, em São Paulo. Dentre suas principais obras destacam-se: O te-lescópio; Senhora da boca do lixo; A esca-da; Ossos do Barão; O Sumidouro.

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mo o ciclo Marta, a Árvore e o Relógio” (AZEVEDO, 2001, p. 51).

Também voltado a retratar a realidade brasileira, Gianfrancesco Guarnieri destacou-se por colocar em ce-na as contradições do desenvolvimento econômico do país, que reservava aos trabalhadores os mais altos ônus, gerando uma sociedade excludente e injusta. Sua estreia, em 1958, com Eles não usam Black-tie, marcou o início exitoso de sua carreira como dramaturgo.

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“gianfrancesco Sigfrido Benedetto Martinenghi de guarnieri nas-ceu em Milão, filho de músicos antifascistas que decidiram mudar-se para o Rio de Janeiro em 1936, quando ele tinha dois anos. Na dé-cada de 50, mudam-se para São Paulo, onde ele se torna líder estu-dantil e começa a fazer teatro amador com Oduvaldo Vianna Filho. Em 1955, eles criam o Teatro Paulista do Estudante, com orientação de Ruggero Jacobbi. Um ano depois, unem-se ao Teatro de Arena de São Paulo, fundado e dirigido por José Renato. Durante dois anos, atua nos espetáculos “Escola de Maridos” e “Dias Felizes”, direção de José Renato, e “Ratos e Homens”, dirigido por Augusto Boal. Em 1958, durante uma crise do Teatro de Arena, o texto “Eles Não Usam Black-Tie”, escrito por guarnieri, é o escolhido para driblar a situa-ção econômica deficitária. O público recebe bem a estreia do novo

dramaturgo que coloca em cena, pela primeira vez na história do teatro brasileiro, a vida de operários durante uma greve. A montagem, dirigida por José Renato, transforma-se num sucesso estrondoso e guarnieri passa para a história como um autor preocupado com a rea-lidade, com densidade dramática, e coragem em abordar problemas sociopolíticos”. Escreveu mais de vinte peças teatrais, dentre as quais destacam-se, além da já citada, as seguintes: 1965- Arena Conta Zumbi; 1971- Castro Alves Pede Passagem; 1973- Um Grito Parado no Ar; 1976- Ponto de Partida; 1979- Crônica de um Cidadão sem Nenhuma Importância; 2001- Luta Secreta de Maria da Encarnação. Faleceu em 22 de julho de 2006. Fonte: http://www.spescoladeteatro.org.br/enciclopedia/index.php/gianfrancesco_guarnieri.

Na peça de estreia, que em 1981 ganhou versão cine-matográfica de Leon Hirszman, o núcleo dramático encon-tra-se nos desencontros de uma família operária: Otávio, o pai, é um operário e líder grevista; Tião, seu filho, questiona a posição do pai e não adere a seus valores. Desse embate, emergem os conflitos da sociedade brasileira em suas con-tradições nas relações entre capital x trabalho.

Considerando-se o conjunto da obra desse autor, podemos perceber que se trata de uma proposta inovadora:

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[em termos] de linguagem de palco, am-parada no apelo popular da música, sufi-cientemente flexível para abraçar a um só tempo o documento histórico e o co-mentário moderno bordado à sua volta – alguma coisa, quanto aos objetivos, entre o teatro documentário e o teatro épico, mas com soluções próprias e originais (COUTINHO, 2004, p. 36).

Ainda no final dos anos de 1950, estreou a obra Barrela, de Plínio Marcos, dramaturgo e escritor que ficou mais conhecido nos anos de 1960, sobretudo com a peça Dois perdidos numa noite suja (1966), uma das mais ence-nada do autor e que recebeu, também, versões cinemato-gráficas. Igualmente reconhecidas são as peças Navalha na carne (1967) e O Abajur Lilás (1969). Uma de suas tiradas conhecidas informa sobre os problemas que enfrentou com a ditadura militar: “Fui perseguido pela censura, mas fiz por merecer”.

2.2.1 Sobre promessas de vida e histórias de

morte: Santareno e Dias gomes

Vamos agora estudar duas peças importantes no con-junto da literatura dramática desse período histórico que es-tamos enfocando. São elas A promessa (1957), do português Bernando Santareno, e O pagador de promessa (1959), do bra-sileiro Dias Gomes.

Dividida em três atos e três quadros, A promessa, de Bernardo Santareno (pseudônimo de António Martinho do Rosário - 1920/1980), põe em cena a vida de uma aldeia, cuja ambientação, segundo as didascálias, “resuma os usos e cre-dos dos pescadores portugueses: não apenas os duma certa região [...], mas os da costa em geral”. O cenário principal é a casa dos protagonistas, o casal José e Maria do Mar, onde

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Para conhecer mais o escritor Plínio Mar-cos e sua obra, aces-se o site: http://www.p l i n i omarcos . com/teatro/2perdidos.htm.

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também moram o pai, Salvador, e o irmão caçula do marido. A temporalidade externa, no entanto, não é marcada, quer dizer, não ficamos a saber exatamente de que época específi-ca se trata, o que nos leva a trazer a peça para o presente em que ela foi publicada.

A trama gira em torno do descontentamento de Ma-ria do Mar com a promessa feita pelo marido para que Sal-vador retornasse com vida de uma tempestade que causou muitos naufrágios. Realizado o que todos consideraram um milagre, a sobrevivência do velho pai, o filho mais velho tra-tou de colocar em prática o prometido: a abstinência sexual dele e da mulher, então recém-casados.

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Bernardo Santareno (Santarém, 18-11-1920 – Lisboa, 29-08-1980) é o pseudónimo lite-rário de António Martinho do Rosário, cujo exercício da medicina (em Psiquiatria) conciliou, durante anos, com a escrita para teatro, alcançando, desde a sua estreia nos anos sessen-ta, um papel de primeiro plano no teatro português. Entre registos realistas, de tonalidade mais naturalista ou com traços épicos, a sua escrita foi essencialmente de denúncia, atenta à realidade do país e visando uma consciência social, o que lhe valeu a proibição de algumas das suas peças e a perseguição pelo regime salazarista.A promessa foi publicada pela primeira vez em 1957, numa edição de autor, juntamente com dois outros textos de teatro [...]. Levada à cena pelo Teatro Experimental do Porto em 1957, a peça foi rapidamente retirada de cena, por força da censura, só voltando a ser autorizada a sua subida aos palcos dez anos depois.Fonte: Disponível em: http://cvc.instituto-camoes.pt/teatro-em-portugal-textos-lista/2158-a-promessa.html.

Mesmo tendo aceitado e sendo parte do que prome-teram a Nossa Senhora, Maria do Mar não consegue refrear seu desejo e sua irritação diante da obstinação do compa-nheiro em manter a palavra dada à Santa. Começa, inclusive, a sentir-se rejeitada e passa, assim, a rejeitar as virtudes reli-giosas do marido:

SALVADOR – [...] Vai falar com o pa-dre, Maria do Mar: promessas assim, não devem fazer-se. Mas se, num momento de aflição, um pobre mortal as faz... deve mudá-las. Vai ter com o senhor Prior, Ma-ria do Mar! [...] Vocês não são santos!...MARIA DO MAR - (Desdém e raiva) É.

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Ele é. O seu filho quer ser santo! (SAN-TARENO, , p. 14-15).

As discussões na família começam a ser frequentes, contando a moça com a ajuda e anuência da mãe, Rosa, que, quando chega de visita na casa da filha, conta as novidades: os conflitos armados decorrentes da repressão ao contraban-do, que vai se tornando uma alternativa para a difícil situa-ção dos trabalhadores do mar. Segundo Rosa, entretanto, os moradores da aldeia não aderiram à prática ilegal, combatida a tiros pela polícia. Durante um desses tiroteios, próximo à casa da família protagonista, onde estão todos reunidos, o clima é de comoção geral. Explicita-se, então, a situação e o sentido dos nomes das personagens principais, a começar por Salvador: o sobrevivente do mar, que não salvou mas foi salvo, queixa-se de sua condição de inválido:

SALVADOR – (A tentar erguer-se, com as muletas.) Se eu pudesse ... (deixa-se cair) não, não posso... não presto! ... Ai, tia Rosa, eu já estou morto... (SANTAR-ENO, p. 23).

O irmão caçula de José, Jesus, aparece para se inteirar dos acontecimentos, mas é cego e não pode ajudar direta-mente a ninguém, embora seja sensitivo, aproximando-se do oráculo grego ou dos adivinhos cegos que são os únicos a verem as verdades humanas mais profundas do destino hu-mano. Quanto à Maria do Mar, não só renega a pureza que lhe impõe a promessa e a aproximação (até pelo nome) com a Virgem Maria, como rejeita o mar, em vários momentos do texto. José, inicialmente, mantém a postura de máxima fidelidade aos seus princípios religiosos até o momento em que também se rebela.

A rebeldia de José, seu descontrole e mudança de ca-ráter (de postura) efetiva-se quando entra em cena António Labareda, um dos caçados pela polícia, que, ferido, ganha

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abrigo na casa de Maria do Mar e José. Trata-se do elemento desencadeador do máximo desequilíbrio que levará ao clí-max da ação dramática: com a marca do fogo no nome, o forasteiro despertará o desejo de Maria e os ciúmes de José.

Já Dias Gomes, em O pagador de Promessas, põe em cena a história de Zé do Burro que, acompanhado de sua mulher Rosa, dirige-se à cidade de Salvador, distante 42 qui-lômetros da região onde mora, cujo percurso é feito a pé, carregando uma cruz que pretende colocar no altar da Igreja de Santa Bárbara, como pagamento da promessa feita a es-sa santa por ter salvado seu burro Nicolau. Observa-se, na apresentação do texto, a definição da época atual como o tempo das ações. A tensão dramática se estabelece quando, ao informar o padre de seus objetivos, o protagonista vê-se repentinamente num jogo de forças e interesses que lhe são alheios, incompreendido por ter lançado mão de um recurso católico para salvar o animal, ainda mais porque estabeleceu sua tarefa sagrada em um terreiro de candomblé, a partir do sincretismo que aproxima Iansã de Santa Bárbara.

para conhecer

“Dias gomes (Alfredo de Freitas D. g.), romancista, contista e teatrólogo, nasceu em Salvador, BA, em 19 de outubro de 1922. Faleceu em São Paulo no dia 18 de maio de 1999. [...] Estreou no teatro profissional em 1942, com a comédia Pé-de-cabra, en-cenada no Rio de Janeiro e depois em São Paulo por Procópio Ferreira, que com ele excursionou por todo o país. Em 1959, es-creveu a peça O pagador de promessas, que estreou no TBC, em São Paulo, sob direção de Flávio Rangel e com Leonardo Vilar no papel principal. Dias gomes ganhou projeção nacional e interna-cional. A peça, traduzida para mais de uma dúzia de idiomas, foi encenada em todo o mundo. Adaptada pelo próprio autor para o cinema, O pagador de promessas, dirigido por Anselmo Duarte, recebeu a Palma de Ouro no Festival de Cannes, em 1962. [...] Em 1964, Dias gomes foi demitido da Rádio Nacional, da qual era diretor-artístico, pelo Ato Institucional n. 1. [...]. A partir de

então, participou de diversas manifestações contra a censura e em defesa da liberdade de expressão. Ele próprio teve várias peças censuradas durante a vigência do regime militar. [...] Apesar da censura, não interrompeu a produção teatral, e várias peças suas foram en-cenadas entre 1968 e 1980, destacando-se Dr. getúlio, sua vida e sua glória (Vargas), em parceria com Ferreira gullar, encenada no Teatro Leopoldina, de Porto Alegre, em 1969; O bem-amado, encenada no Teatro gláucio gil, do Rio de Janeiro, em 1970; O santo inquérito, no Teatro Teresa Rachel, do Rio, em 1976; e O rei de Ramos, no Teatro João Caetano, em 1979. Em 1980, em decorrência da decretação da Anistia, foi reintegrado aos quadros da Rádio Nacional, e trabalhos seus, como Roque Santeiro, foram liberados para apresentação”.Fonte:http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=448&sid=231.

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Isolado em sua convicção e princípios, Zé do Burro não pode contar com a adesão de Rosa, sua mulher e compa-nheira de jornada, que acaba seduzida pelos encantos fáceis de Bonitão, um agenciador da prostituição local. Entretanto, o protagonista ganha a simpatia dos negros e populares que não aceitam as imposições da Igreja Católica, porém estes também são impotentes para resolver o conflito que vai tomando pro-porções inesperadas, principalmente com as artimanhas de um repórter que, por meio de manchetes sensacionalistas, trans-forma Zé do Burro em um agitador revolucionário:

GUARDA – Vejam! Primeira página com retrato e tudo! (Mostra o jornal a Rosa, que corre ansiosamente). [...]ZÉ – [...] Afinal, o que diz aí?GUARDA – [...] “O novo Messias prega a revolução”.ZÉ – (Estranha) Revolução? [...]GUARDA – É, revolução. Está aqui. (Con-tinua) “Sete léguas carregando uma cruz, pela reforma agrária e contra a exploração do homem pelo homem”. (Entreolham-se sem entender).ZÉ – Eu bem achei que aquele camarada não era certo da bola... (GOMES, 2002, p.88)

Nesse desencontro de perspectivas, o próprio nome do protagonista já “acentua certo teor quixotesco e a obra de Cer-vantes, como se sabe, baseia seu humor no tema do herói me-dieval, perdido no mundo moderno” (ROSENFELD, 1996, p. 75). No entanto, o caráter resoluto e cristalino do pagador de promessas de Dias Gomes o aproxima mais do herói trágico.

A partir dessa constituição dos protagonistas, percebe-se que tanto o texto dramático português quanto o brasilei-ro estruturam-se a partir dos principais elementos da tragédia grega. A esse respeito, são similares as avaliações de dois im-portantes estudiosos dessas obras, Sábado Magaldi e Anatol Rosenfeld:

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Os recursos mais remotos desse teatro são tributários da ideia de destino, bebida na tragédia grega, da qual não se separam, por compreensível metamorfose, os mistérios da Páscoa e da Natividade, na religião cristã. (p. 452). [A Santareno interessam] as emoções violentas, os encontros fatais, os presságios determinantes, os instintos desencadeados. Tudo acontece numa atmosfera imantada, em que o homem comunga com a natureza e os animais. [...] É evidente que tal visão do mundo se ajusta mais aos aglomerados primi-tivos, que não conheceram ainda o desen-raizamento do processo civilizador. Por isso , a maioria das peças se passa entre pescadores, nos povoados rústicos e no meio de Campi-nas, onde a vida se resume a um quase diálogo com a natureza (MAGALDI, 1989, p. 452).

[...] O pagador de promessas é uma das raras peças brasileiras modernas em que aparece um verdadeiro ‘herói trágico’, de certo cunho mítico. Distinguem-no a simplicidade e a in-flexibilidade quase monumentais e a pureza elementar das suas reações, bem condizentes com o mundo primitivo de onde provém ao invadir a cidade [...] (ROSENFELD, 1996, p. 52).

A partir desse embate entre a realidade das forças primi-tivas diante do mundo degradado, desvela-se o alto preço que as vidas prometidas e resgatadas impõem: a justeza de princí-pios dos heróis vai de encontro a um mundo que não comporta mais condutas determinadas, pautadas pela irredutibilidade da palavra, assumida como própria afirmação do indivíduo, sem o reconhecimento de sua dimensão e sentido simbólico.

Desse modo, tendo-se em vista o desenrolar das ações dramáticas, estabelece-se o que se define como crise de identi-dade: a ação conjunta de um duplo deslocamento, a descentra-lização dos indivíduos tanto do seu lugar no mundo sociocul-tural quanto de si mesmos.

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Pode-se admitir, nos textos dramáticos em foco, a rele-vância da concepção de sujeito sociológico, que reconhece a importância dos outros, o peso da alteridade, por meio da qual os valores, sentidos e símbolos do mundo por ele habitado são mediados. Assim, do sujeito centrado no Iluminismo, dá-se um salto da individualização para a interação entre o indiví-duo e a sociedade. Embora o “eu real” permaneça, sua postura é terminantemente modificada pelo diálogo contínuo com o mundo exterior.

para conhecer

A concepção de sujeito sociológico, bem como do sujeito cen-trado do Iluminismo é do teórico Stuart Hall (Kingston/Jamaica, 03/02/1932), quando reflete sobre as mudanças que levaram ao atual sujeito pós-moderno. Vamos ler a passagem em que ele define essas concepções:“Para os propósitos desta exposição, distinguirei três concepções muito diferentes de identidade, a saber, as concepções de identida-de do: a) sujeito do Iluminismo; b) sujeito sociológico; e c) sujeito pós-moderno. O sujeito do Iluminismo estava baseado numa con-cepção da pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo “centro” consistia num núcleo interior, que pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo — continuo ou ‘idêntico’ a ele — ao longo da existência do indivíduo. O centro essencial do eu era a identidade de urna pessoa. Direi mais sobre isto em seguida, mas pode-se ver que essa era uma concepção muito “individualis-

ta” do sujeito e de sua identidade (na verdade, a identidade dele: já que o sujeito do Ilumi-nismo era usualmente descrito como masculino).A noção de sujeito sociológico refletia a crescente complexidade do mundo moderno e a consciência de que este núcleo interior do sujeito não era autônomo e autossuficiente, mas era formado na relação com ‘outras pessoas importantes para ele, que mediavam para o sujeito os valores, sentidos e símbolos — a cultura — dos mundos que ele/ela habitava. [...] De acordo com essa visão, que se tornou a concepção sociológica clássica da questão, a identidade é formada na ‘interação’ entre o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o ‘eu real’, mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais ‘exteriores’ e as identidades que esses mundos oferecem.A identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre o ‘interior’ e o ‘exte-rior’— entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato de que projetamos a ‘nós próprios’ nessas identidades culturais, ao mesmo tempo que internalizamos seus significados e va-lores, tornando-os ‘parte de nós’, contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade, então, costura (ou, para usar uma metáfora médica, ‘sutura’) o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os su-jeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados e predizíveis.

Figura 4: Stuart HallFonte: socialniteorie.cz

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Argumenta-se, entretanto, que são exatamente essas coisas que agora estão ‘mudando’. O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornan-do fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas. Correspondentemente, as identidades, que compunham as paisagens sociais ‘lá fora’ e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as ‘ne-cessidades’ objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como resultado de mudanças estruturais e institucionais. O próprio processo de identificação, através do qual nos proje-tamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático.Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado como não tendo uma iden-tidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma “celebração móvel’: for-mada transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. E definida historicamente, e não biologicamente” (HALL, 2006, p. 10-13).

Se a identidade é a responsável pela estabilização e localização do sujeito, o que se percebe nos heróis masculi-nos das peças de Santareno e Dias Gomes é o conflito per-manente entre, por um lado, na obra do primeiro, a força da tradição afirmando o reconhecimento de José como sujeito, inicialmente integrado ao meio; e, no segundo, a incomu-nicabilidade irredutível de Zé Burro com as representações sociais do mundo urbano.

Quanto às figuras femininas centrais, se Maria do Mar sente-se responsável pela promessa feita, isso não a impede de externar seu descontentamento e de desafiar sua posição identitária como mulher honrada e fiel aos princí-pios do marido e, por extensão, do grupo social a que per-tence. Rosa, por sua vez, não está presa ao prometido pe-lo companheiro, mas a ele sente-se ligada como forma de reconhecer-se, ainda que venha a efetivamente sucumbir aos seus desejos, mesmo sob o peso da culpa de ter, principal-mente, traído uma identificação com os princípios de Zé do Burro, os quais reconhece como “puros” e legítimos.

O clímax de A promessa se dá quando Maria do Mar decide seguir sua vida ao lado de Labareda, em confidên-cia que faz a Jesus, na madrugada do domingo da Páscoa, enquanto José realizava as atividades de sacristão junto do Prior da aldeia. Em face do pedido de Jesus para que a cunhada não se vá encontrar com o forasteiro, Maria do Mar responde firme:

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Maria do Mar: - Isso é que vou. E já! Está resolvido. Mas fica descansadinho, ra-paz: ele não me toca! A Maria do Mar só morde o anzol de sua livre vontade. Vou. E sabes para quê? Para lhe dizer que se vá embora, que vá esperar-me lá na terra dele. Eu irei logo que possa. Amanhã! Quem me dera, quem me dera! Irei ter com ele. Mas primeiro quero falar com teu irmão Zé. Estás a ouvir? Eu não intrujo ninguém, não preciso disso: sou clara como a espu-ma do mar! Mas gosto do Labareda e hei-de viver com ele... (SANTARENO, 1966, p. 91).

Enquanto Maria está fora, chega José perguntando pela mulher, dizendo que a viu para o lado oposto da Igreja onde ele estava. Deduz e pergunta ao pai e ao irmão se ela teria ido encontrar-se com Labareda; possesso, trata com brutalidade o pai, desdiz sua promessa e a própria santa:

JOSÉ – Cale-se meu pai! Vossemecê não presta, pai. Não serve para nada. Para nada deste mundo, ouviu? Aqui, sempre fechado nesta casa, e nem a minha honra ... nem a honra da sua família, foi capaz de guardar! (Num urro feroz, para a ima-gem do oratório). Acabou-se, acabou-se a promessa! Mentiste-me, atraiçoaste-me, tu também. Mas vais ver, vais ver como eu sei tirar a desforra! Tu, santa, tu também não prestas: és de barro, não falas, não ouves... Mentiradeira! Acabou-se, já não te quero! Estás a ouvir-me, santa? Olha, cuspo-te... Enganaste-me... Não te quero ver mais! (Atira pela janela, a imagem para o mar). Que te beba o mar ruim! (SAN-TARENO, 1966, p. 94).

Essa atitude de José pode ser entendida como a revol-ta do indivíduo contra as crenças asfixiantes, contra o peso de uma tradição obscurantista (MAGALDI, 1996). Segue-

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se a essa situação o momento realmente crítico, quando a personagem, ao sair, carrega sua espingarda e, ao voltar, sujo de sangue, encontrando todos juntos, inclusive sua mulher, revela ter castrado e matado Labareda.

Maria do Mar já havia afirmado para Salvador e Jesus que, enfim, não teve coragem de seguir seu desejo e ao ser questionada sobre o porquê de sua desistência, responde:

Maria do Mar - Eu sei lá... Olhe, tive medo! Foi lá em riba, quando ia a passar no cemitério: estão lá os corpos do meu pai, dos meus avós, da minha gente toda... Não pude ir para diante: tive respeito, tive medo!... Até o mar parecia que gritava: Perdida! Perdida! (SANTARENO, 1966, p. 98).

No entanto, já era tarde e, depois da revelação, sozi-nho, o casal entrega-se a uma furiosa luta de posse, desejo e raiva: “(Maria do Mar e José rolam pelo chão. Durante mo-mentos, só ruídos animais, ferozes)” (p. 103).

O final da peça é marcado pelo cortejo de Labareda, acompanhado à distância por um Jesus perplexo e alheio a tudo, e a ordem de prisão a José, que se entrega sem resis-tência, enquanto Maria do Mar, juntamente com a mãe e Salvador, fecha-se em casa.

Por último, o “coro final das velhas, que maldizem a heroína e a responsabilizam pela tragédia. Depois de pro-meterem-lhe um feitiço, encerram a peça fazendo, em sua porta, o sinal-da-cruz” (MAGALDI, 1996, p. 462).

Devemos lembrar o quanto à mulher, na sociedade patriarcal, foi imputada a culpabilidade dos “desregramen-tos” familiares, pois cabia a ela o zelo e a imagem maternal da retidão e da abnegação (de desejos, vontade própria etc.). Assim, nesse texto, encontramos essa dimensão crítica: em-bora acabe se submetendo à ética de seu grupo, ao preceito

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da honra, a rebeldia de Maria do Mar é a responsável pelo trágico fim dos dois homens: a morte de Labareda, e a morte social de José (MAGALDI, 1996).

Em síntese, estabelece-se, n’A Promessa, a ideia de que a oposição entre o indivíduo que tenta se rebelar contra o grupo retrógrado que o circunda em limites sufocantes se transforma em uma luta inglória. Ou por outra, a promessa violada não libertou as forças naturais e limitadamente humanas das per-sonagens; o que se afirma, enfim, é a permanência do peso da tradição no rompimento com o sagrado.

Já em O pagador de promessas, o final trágico de Zé Burro mostra a inadequação do protagonista a seu tempo, podendo-se compreender a sua incapacidade de transformar seus atos em efetiva ação política:

Da sua consciência de herói de traços primiti-vos decorre a força empolgante de Zé do Bur-ro, enquanto representativo das virtualidades humanas (integridade absoluta, mantida com sua firmeza de rocha contra todos os obstácu-los), mas também a sua fraqueza operativa no mundo moderno. Ele poderia ser líder, mas só de movimentos míticos inconsequentes. Dis-tribuindo terras, não poderá fazê-lo, de acordo com a simplicidade do herói mítico, conforme princípios objetivos de justiça social mas por impulso pessoal e intransferível [...] (ROSEN-FELD, 1989, p. 74).

Essa irredutibilidade do protagonista de Dias Gomes faz com que seu extremismo aproxime-se da falha grega, a “cegueira” do herói trágico, mas permeado da realidade de-corrente de suas convicções profundas, ligadas aos “padrões arcaicos do sertão. A estas convicções ele não pode renun-ciar sem renunciar à sua dignidade e, portanto, à sua própria substância humana que se afirma no cumprimento do impe-rativo, para ele absoluto” (MAGALDI, 1989, p. 58).

Desse modo, pode-se reconhecer nessa impossibili-dade de renúncia de Zé do Burro o quanto o conceito de

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identidade unificada constrói-se por uma “narrativa do eu”. Tal narrativa estrutura-se, entre outros aspectos, por meio da relação do homem com o espaço. No caso do herói de Dias Gomes, ele não consegue transitar na cidade, onde, no seu microcosmo, a praça central, ocupam posições os co-merciantes, os negros, a polícia, a igreja, com suas beatas e romeiros. Trata-se de um convívio frágil, que é desequilibra-do pela permanência de um interiorano decidido a ocupar esse lugar, mas incapaz de reconhecer e aderir à elasticidade dos papéis sociais. Com o desequilíbrio, instaura-se o con-flito – que a cena final da peça mantém em suspenso: a der-rota de Zé do Burro foi sua vitória, mas como a sua ação, e a dos populares, não comportava efetivamente um projeto ou denúncia social, não se forja exatamente um mártir e sua morte passa a significar, muito mais, a incontornável extin-ção de uma singularidade:

ZÉ (Decidido a resistir)

Não! Ninguém vai me levar preso! Não fiz nada pra ser preso!

DELEGADO Se não fez não tem o que temer, será solto depois. Vamos à Delegacia.

ROSA Não, Zé, não vá!GUARDA É melhor... na Delegacia o senhor explica tudo.

DEDÉ Não caia nessa, meu camarado.ZÉ Agora eu decidi: só morto me levam daqui. Juro por Santa

Bárbara, só morto.SECRETA (Vê a faca na mão de Zé-do-Burro) Tome cuidado, Chefe, que

ele está armado! (Observa a atitude hostil dos capoeiras). E es-sa gente está do lado dele!

COCA Estamos mesmo. E aqui vocês não vão prender ninguém!DELEGADO Não vamos por quê?MANOELZI-

NHOPorque não está direito!

DELEGADO Estão querendo comprar barulho?COCA Vocês que sabem...

DELEGADO Não se metam, senão vão se dar mal!

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SECRETA E é melhor que se afastem.ROSA Zé!

ZÉ Me deixe, Rosa! Não venha pra cá!

(Zé-do-Burro, de faca em punho, recua em direção à igreja. Sobe um ou dois degraus, de costas. O Padre vem por trás e dá uma pancada em seu braço, fazendo com que a faca vá cair no meio da praça. Zé-do-Burro corre e abaixa-se para apanhá-la. Os policiais aproveitam e caem sobre ele, para subjugá-lo. E os capoeiros caem sobre os policiais para defendê-lo. Zé-do-Burro desapareceu na onda humana. Ouve-se um tiro. A multidão se dispersa como num estouro de boiada, Fica apenas Zé-do-Burro no meio da praça, com as mãos sobre o ventre Ele dá ainda um passo em direção à

igreja e cai morto).

ROSA (Num grito) Zé! (corre para ele)PADRE (Num começo de reconhecimento de culpa).

Virgem Santíssima!DELEGADO (Para o Secreta) Vamos buscar reforço. (Sai, seguido do Secreta

e do Guarda).O Padre desce os degraus da igreja, em direção do corpo de Zé-do-Burro.ROSA (Com rancor) - Não chegue perto!

PADRE Queria encomendar a alma dele...ROSA Encomendar a quem? Ao Demônio?

O Padre baixa a cabeça e volta ao alto da escada. Bonitão surge na ladeira. Mestre Coca consulta os companheiros com o olhar. Todos compreendem a sua intenção e respondem afirmativamente com a cabeça. Mestre Coca inclina-se diante de Zé-do-Burro, segura-o pelos braços, os outros capoeiras se aproximam também e ajudam a carregar o corpo. Colocam-no sobre a cruz, de costas, com os braços estendidos, como um crucificado. Carregam-no assim, como numa padiola e avançam para a igreja. Bonitão segura Rosa por um braço, tentando levá-la dali. Mas Rosa o repele com um safanão e segue os capoeiras. Bonitão dá de ombros e sobe a ladeira. Intimidados, o Padre e o Sacristão recuam, a Beata foge e os capoeiras entram na igreja com a cruz, sobre ela o corpo de Zé-do-Burro. O Galego, Dedé e Rosa fecham o cortejo. Só Minha

Tia permanece em cena. Quando uma trovoada tremenda desaba sobre a praça.

MINHA TIA (Encolhe-se toda, amedrontada, toca com as pontas dos dedos o chão e a testa) Êparrei minha mãe!

E O PANO CAI LENTAMENTE.

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Textos demarcados em um tempo e espaço reconhe-cíveis, A promessa, de Santareno, e O pagador de promessas, de Dias Gomes, revelam, apesar disso, uma dimensão mais ampla, ao apontarem para temas que assinalam as angústias de nossa condição humana (no plano da sociedade ociden-tal judaico-cristã): seja enfocando o conflito do indivíduo diante das forças da conservação de um imaginário religioso e social que coíbe seus desejos; seja pela trágica situação de homens e mulheres isolados e marginalizados por não “assi-milarem” os valores de uma sociedade reificada.

1. O excerto a seguir integra a obra Pequeno Organon para o Teatro, de Bertold Brecht. Após sua leitura, e retomando os principais aspectos do teatro épico de-senvolvidos nesta unidade, responda: como se pode definir, de maneira sintética, as proposições centrais da teoria brechtniana?

Necessitamos de um teatro que não nos proporcione somente as sensações, as idé-ias e os impulsos que são permitidos pelo respectivo contexto histórico das relações humanas (o contexto em que as ações se realizam), mas, sim, que empregue e sus-cite pensamentos e sentimentos que des-empenhem um papel na modificação desse contexto (BRECHT).

2. Leia uma das peças de Nelson Rodrigues e elabore uma sinopse do enredo, destacando a importância da dramaturgia desse autor:

3. Comparando as duas “promessas” das peças estudadas de Santareno e Dias Gomes:

Reifi cação: conceito cunhado pelo teórico húngaro georg Lukács (1885/1971) em His-tória e Consciência de Classe (1923), refere-se, de modo sintético, à coisifi cação da socie-dade capitalista: em nome do lucro (mais-valia), o valor de troca se sobrepõe ao valor de uso, estabelecen-do-se a mercadoria como base do sistema e, assim, as relações de trabalho se tornam alienadas, os homens se tornam “coisas”.ATIVIDADES

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a. elabore um quadro sintético sobre suas principais se-melhanças e diferenças em relação à situação dos pro-tagonistas masculinos e femininos;

b. desenvolva um comentário sobre as motivações cen-trais de cada peça em relação à crítica social que apre-sentam:

Nesta aula, foram apresentados alguns dos principais autores/obras da dramaturgia brasileira e portuguesa das décadas de 1940 a 1970, demonstrando-se as preocupações sociais e a crítica política como principais fios condutores desses textos. Por essa dimensão crítica, ganhou destaque entre os dramaturgos de Portugal e do Brasil a teoria teatral de Bertold Brecht, o teatro épico. Para explicitar o diálogo entre obras dramáticas desses dois países, realizou-se a aná-lise comparativa entre as peças A promessa, de Santareno, e O pagador de promessas, de Dias Gomes.

RESUMINDO

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AZEVEDO, Elizabeth. O uso da rubrica na obra de Jorge Andrade. In: Sala Preta. Revista do ECA/USP, v. 1., n. 1., São Paulo, 2001, p. 49-57.

GOMES, Dias. O pagador de promessas. 36. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernida-de. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 1998.

MAGALDI, Sábato. O texto no teatro. São Paulo: Pers-pectiva, 1989.

ROSENFELD, Anatol. O mito e o herói no moderno tea-tro brasileiro. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1996.

SANTARENO, Bernardo. A promessa. 3. ed. Lisboa: Áti-ca, 1966.

VASCONCELLOS, Luiz Paulo. Dicionário de teatro. Porto Alegre: L&PM, 2001.

REFERêNCIAS

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Suas anotações

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Objetivo:

• Compreender as principais tendências da literatura dramática em língua portuguesa na atualidade.

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1 INTRODUÇÃO

O Brasil do início dos anos de 1970 experimentava um dos momentos mais opressores do regime militar, enquanto em Portugal, em 25 de abril de 1974, a Revolução dos Cra-vos colocava fim à ditadura de António de Oliveira Salazar. As transformações posteriores à redemocratização portugue-sa implicaram na independência das colônias que possuía na África: assim, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Ver-de e São Tomé e Príncipe tornaram-se países independentes.

Nesta aula, vamos conhecer os principais percursos da literatura dramática e do teatro, de modo alargado, reali-zados nesses países de língua portuguesa a partir da década de 1970 até a atualidade. Por certo, trata-se de um painel muito genérico sobre tema tão vasto, mas, reafirmando o que colocamos na “Apresentação” desta disciplina, por meio dele você está convidado a aprofundar seus estudos, com-plementando a leitura das obras e autores aqui citados e des-cobrindo outros nomes e títulos que vêm se revelando neste dinâmico e tão importante cenário da dramaturgia em nossa língua.

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2 A LITERATURA DRAMÁTICA BRASILEIRA NA ATUALIDADE

Os anos de 1970 são conhecidos, no Brasil, como os “anos de chumbo”, pois, com o Ato Institucio-nal nº 5, que suprimia todos os direitos políticos dos cida-dãos, a ditadura militar chegava ao seu momento mais duro e opressor. Os rigores da censura atingiam todos os setores da comunicação e da cultura e, assim, o teatro também foi diretamente atingido: “qualquer referência crítica a um ou outro aspecto da realidade brasileira, a mínima alusão ao cli-ma de sufoco e insegurança em que estávamos mergulhados bastava para que uma peça teatral fosse proibida” (FARIA, 1998, p. 165).

Somente a partir de 1975 houve uma maior tranquili-dade, com a lenta distensão política prometida pelo regime, mas a repressão continuava a mesma, apenas disfarçada com algumas liberações. É o caso, por exemplo, de, nesse mesmo ano, a censura ter proibido a representação da peça Rasga co-ração, de Oduvaldo Vianna Filho, e permitido a representa-ção de Gota d’Água, de Chico Buarque de Holanda e Paulo Pontes. Sobre essa peça, devemos saber que se trata de um intertexto que os autores fizeram com a tragédia Medéia, de Eurípedes:

[...] uma mulher abandonada se vinga do ex-amante, envenando os filhos e comet-endo suicídio. Mas o enredo surgia rechea-do por tipos colhidos na paisagem carioca, especificamente num conjunto residencial do subúrbio. Por meio de versos trabal-hados com muita competência, músicas extraordinárias e situações exemplares, os autores descarnaram os mecanismos de dominação que regem as relações so-ciais entre os poderosos e os subalternos. O enorme sucesso de Gota d’Água foi uma demonstração cabal de que a plateia brasileira estava novamente aberta a esse

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tipo de dramaturgia que se apresentava como reflexão crítica (FARIA, 1998, p. 170).

Voltada igualmente ao questionamento da realida-de do país, em 1978 foi encenada Murro em ponta de faca, de Augusto Boal, sobre a situação dos exilados brasileiros, “representados por três casais que se refugiam no Chile de Allende, mas que são obrigados a fugir [novamente] da di-tatura de Pinochet. Na bagagem, levam principalmente as imagens dos amigos mutilados e mortos, as lembranças da violência policial [ ...], as marcas da derrota política” (FA-RIA, 1998, p. 172).

Sobre este dramaturgo, Augusto Boal, devemos sa-ber que foi o responsável pela criação de uma poética teatral destinada à conscientização política sobre as relações de po-der: o “Teatro do Oprimido”. Sobre sua proposta estética e política assim ele se posicionou em 1974:

[...] todo teatro é necessariamente políti-co, porque políticas são todas as atividades do homem, e o teatro é uma delas. Os que pretendem separar o teatro da política, pretendem conduzir-nos ao erro – e esta é uma atitude política. [...] o teatro é uma arma. Uma arma eficiente. Por isso, é ne-cessário lutar por ele. Por isso, as classes dominantes permanentemente tentam apropriar-se do teatro e utilizá-lo como instrumento de dominação. Ao fazê-lo, modificam o próprio conceito do que seja o ‘teatro’. Mas o teatro pode igualmente ser uma arma de libertação. Para isso é ne-cessário criar as formas teatrais correspon-dentes. É necessário transformar. [e isso vem] atualmente ocorrendo em [muitos] países da América Latina: a destruição das barreiras criadas pela classe dominante. Primeiro se destrói a barreira entre atores e espectadores: todos devem representar, todos devem protagonizar as necessárias

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transformações da sociedade. [...] Depois, destrói-se a barreira entre os protagonistas e o Coro: todos deve ser, ao mesmo tempo, coro e protagonistas [...]. Assim tem que ser a ‘Poética do Oprimido’: a conquista dos meios de produção teatral (BOAL, 1983, p. 14).

Podemos perceber que se trata de uma proposição de dramaturgia filiada ao teatro épico de Brecht, destinada ao questionamento da realidade social e ao próprio papel do te-atro como meio de produção cultural. Nesse sentido, com muitas variações temáticas e formais, a cena brasileira viven-ciou, nos anos de 1970 e 1980, uma retomada crítica do pro-cesso histórico por que passou o país, reeditando e finalmen-te apresentando peças que tinham sido censuradas.

Para outros críticos, como Sábado Magaldi (2004, p. 314), “talvez o marco da contemporaneidade [do teatro bra-sileiro] caiba ser definido como o ano de 1978, pelo lança-mento de Macunaíma e pelo fim do Ato Institucional nº 5”. Isso porque, segundo Magaldi, iniciou-se, nesse momento, a fase de domínio dos “encenadores a partir da montagem de Antunes Filho para a adaptação cênica da ‘rapsódia’ de Mário de Andrade” e, com o abrandamento do regime, registrou-se “uma mudança na linha da dramaturgia [...]” (Idem, ibidem). Essa mudança processou-se, sobretudo, com os novos pres-supostos que passaram a orientar a teoria dramática:

O reconhecimento do teatro como arte autônoma, embora devedora de várias for-mas artísticas, e não mera ilustração da lit-eratura, provocou importantes mudanças práticas. Admite-se hoje que, se o drama-turgo é o autor do texto, o encenador é o autor do espetáculo. E, pela autoria com-pete-lhe assumir uma criação. Criação sui generis, já que fundada em outra, mas que tem o direito à plenitude (MAGALDI, 2004, p. 316).

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Nessa perspectiva, José Possi Neto pode ser conside-rado o primeiro encenador a obter êxito com a montagem, em 1974, da peça De braços abertos, de Maria Adelaide Ama-ral: “Ele soube inocular no placo uma atmosfera mágica, em que a luz dirigia a flexibilidade dos movimentos, evitando os prosaicos pormenores realistas, para instaurar a fluência do sonho” (MAGALDI, 2004, p. 318).

Muito outros encenadores, entretanto, merecem ser citados, dentre os quais se destacam Cacá Rosset, diretor do grupo Ornitorrinco, criado em 1977; José Celso Martinez Corrêa, importante nome da cena brasileira, diretor do Tea-tro Oficina; Antônio Abujamra; Celso Nunes; Fauzi Arap; Bia Lessa e tantos mais.

O caminho do atual teatro brasileiro, contudo, vem procurando ajustar todas as dimensões de sua plenitude artística e cultural: “O encenador [...] deseja o equilíbrio com os outros elementos do espetáculo. A harmonia de to-das as funções é o ideal perseguido” (MAGALDI, 2004, p. 322).

Assim, devemos reconhecer também outros nomes relevantes da dramaturgia contemporânea brasileira como Ivo Bender, Naum Alves de Souza e “chega-se a dois drama-turgos de suma relevância para o atual panorama do teatro brasileiro: Bosco Brasil e Samir Yazbek” (ÉBOLI, 2010, p. 18). Em relação ao primeiro, devemos saber que:

Bosco Brasil nasceu em São Paulo, no ano de 1960, e formou-se em Teoria do Teatro – Dramaturgia e Crítica Teatral – pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. É considera-do um dos expoentes da nova geração de dramaturgos brasileiros, tendo integrado o movimento de renovação dramatúrgica da década de 90, destacando-se a partir da estréia de Budro, peça com a qual rece-beu os Prêmios Shell e Molière de melhor autor no ano de 1994. Em 1995, funda o Teatro de Câmara de São Paulo, na Praça

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Roosevelt, com repertório integralmente dedicado à dramaturgia contemporânea. De suas criações dramatúrgicas destacam-se: Atos e omissões (1995), Qualquer um de nós (1995), O acidente (1995), Os cov-eiros (1998), Novas diretrizes em tempos de paz (2001), Blitz (2001) e Cheiro de Chuva (2002). [...] O autor é o primeiro brasileiro a ser publicado na coleção Palco sur Scène, que apresenta em edição bilíngue a nova produção em dramaturgia brasileira e fran-cesa (ÉBOLI, 2010, p. 19).

Considerando-se dois de seus textos, Cheiro de Chu-va e Novas diretrizes em tempos de paz, pode-se observar que a sua dramaturgia é marcada por transformações, alterações e deformações do tempo e do espaço, por alternâncias de monólogos e diálogos, colocando em relevo os conflitos das relações humanas: “O sentido de dualidade e a relação de alteridade [se] transformam em chave para a expressão de questionamentos particulares e existenciais [e] surgem nes-ses textos como base fundamental para o desenvolvimento da narrativa dramática de Bosco Brasil” (ÉBOLI, 2010, p. 24).

Com relação a Samir Yazbek, também paulista, nas-cido em 1967, trata-se de um autor, ator e diretor teatral formado no Centro de Pesquisa Teatral do SESC-CPT, coordenado por Antunes Filho. “De sua criação literária, destacam-se os dramas Uma família à procura de um autor (1988), Arquipélago (1994), Antes do fim (1998), O fingidor (1999) – texto com o qual recebe o Prêmio Shell de drama-turgia de melhor autor – A terra prometida (2001), A entre-vista (2004), e O invisível (2006)” (ÉBOLI, 2010, p. 25). Os trabalhos mais recentes do autor incluem, ainda, Diálogos das Sombras (2007); A Noite do Barqueiro (2009) e As Folhas do Cedro (2010).

Em comum, esses dois dramaturgos, Bosco Brasil e Samir Yazbek, possuem os desafios da criação estética, no

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âmbito teatral, num tempo em que tudo é possível, “tudo é reproduzível, o espaço expressivo é imenso, o tempo e su-as variantes é o protagonista” (ÉBOLI, 2010, p. 28). Nesse sentido, pode-se dizer que essas questões se alargam para to-da dramaturgia brasileira contemporânea: trata-se de como expressar “a multiplicidade e a possibilidade de diferentes caminhos a serem percorridos na busca de uma construção individual e, consequentemente, coletiva e representante de uma época” (ÉBOLI, 2010, p. 29).

3 PANORAMA DA ATUAL LITERATURA DRAMÁTICA PORTUgUESA

Com a redemocratização de Portugal após a Revolu-ção dos Cravos de 25 de abril de 1974, o teatro português, livre da censura e das amarras criativas impostas pela ditadu-ra salazarista, abriu-se a variados caminhos e possibilidades:

[Ocorreram] rupturas verificadas no nível da escrita e da produção teatral, a refor-mulação das relações entre o teatro e o público, a abertura a novos espaços em detrimento da cena tradicional ‘à italiana’, a acentuação do divórcio entre o teatro empresarial e o teatro independente, o declínio crescente daquele e a progressiva ascensão deste – tudo isso apesar da in-definição de uma política para o setor [...] (REBELLO, 1991, p. 99).

Essa renovação, contudo, não significou crescimento da literatura dramática portuguesa propriamente, pois per-maneciam em cena principalmente “textos de proveniência estrangeira ou quando portugueses, selecionados de entre os clássicos” (REBELLO, 1991, p. 99). Devem ser citados alguns nomes, entretanto, que colaboraram para a renovação da dramaturgia em Portugal nesse período pós-revolução:

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é o caso de Jaime Salazar Sampaio, Prista Monteiro, Jaime Gralheiro, Virgílio Martinho, Luiz Francisco Rebello, José Saramago, Helder Costa, Carlos Coutinho, Júlio Valarinho (idem, ibidem).

Devem igualmente ser citados grupos de atuadores independentes ou voltados ao teatro infantil, como, no pri-meiro caso, o grupo Comuna e, no segundo, O Bando, di-rigido por João Brites e, ainda, o teatro musicado, no qual se destaca o nome de João de Freitas Branco (REBELLO, 1991, p. 103-4).

Dentre os destacados nomes da dramaturgia portugue-sa nos anos de 1990 até a atualidade, encontra-se o de Luísa Costa Gomes. Dessa dramaturga, reproduzimos, a seguir, a primeira cena de sua peça A vida em Vênus:

A Terra, no futuro não muito distante, é um planeta em que as pessoas veem televisão e jogam jogos de vídeo o tempo todo. Assim que nascem, é-lhes implantado no cére-bro um chip de televisão e um terminal de multibanco [terminal de autoatendimento bancário]. Os programas das escolas são programas de televisão. Os testes avaliam os conhecimentos que os meninos têm dos jogos de vídeo e de computador. As pessoas não têm curiosidade, não pensam, não conversam, não passeiam, não têm amigos. Veem televisão e fazem compras. MIGUEL, por acaso, encontra num canto do sótão uns “objectos” do passado, que não sabe o que são nem para que servem. Aquele passa a ser o seu “tesouro” e o seu segredo. Os objectos intrigam-no e ele começa a fazer perguntas a si próprio e a procurar as respostas. Entretanto, chega de Vénus o tio Zabulão, que vai ser muito importante para o ajudar a decifrar aquele mistério. Porque a vida em Vénus é bastante diferente da vida aqui na Terra. Bastante diferente, mesmo.

Personagens MIGUEL; JOAQUIM; ADÃO e EVA, pais de MIGUEL e JOAQUIM; ZABULÃO, irmão de ADÃO; MADALENA, mulher de ZABULÃO; XPTO, um robô; ANTUNES, o robô gerente do Banco; SCHLOPF, o “venusiano”; PASSAGEIROS DO AUTOCARRO [autocarro = ônibus] CLIENTES DO SUPERMERCADO; CONVIDADOS DA FESTA; VÁRIOS ROBÔS DOMÉSTICOS

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Cena I (Todos em palco, vestidos de igual. Quanto mais figurantes, maior o efeito de unifor-midade e “cinzentismo”. Camisola [= camisa ou camiseta] cinzenta, calças cinzentas, ténis, chapéu, gorro ou touca cinzenta. Na camisola trazem um grande número colado. Todos trazem óculos escuros que são pequenos écrans [= telas] onde se projecta a tele-visão. Todos usam auriculares [fones de ouvido] brancos. ADÃO tem umas grandes luvas cinzentas. O número na camisola dele é o 990. No meio da “multidão” cinzenta, estão três ROBÔS também cinzentos. Os actores estão todos muito próximos uns dos outros. Olham para a frente, apáticos, a ver as suas televisões privadas. Ouve-se uma “música” constituída por um único som contínuo, que depois se transforma em duas notas. De vez em quando um dos figurantes sai do torpor, abana a cabeça e grita “mu-da!” para mudar de canal. ADÃO vai entretido a ver um programa, ZABULÃO quer conversar).

ZABULÃO Então? Estás bom? ADÃO (encolhe os ombros) - Cá estamos.ZABULÃO Estão todos bem? (Espera resposta de ADÃO, que não vem) A

Eva? Os meus sobrinhos? Devem estar crescidos… (ADÃO não responde, olha em frente, concentrado na televisão) Já não os vejo há quatro anos, desde que…

PRIMEIRO PASSAGEIRO

(abana a cabeça) Muda!

SEGUNDO PASSAGEIRO

(abana a cabeça) Muda!

ZABULÃO E tu? Que é que tens comprado? ADÃO (maçado) – Ferraris.ZABULÃO Mas quantos Ferraris é que já tens? ADÃO Estás louco? Achas que eu sei contar? Tens cada uma, tu! ZABULÃO Peço desculpa.ADÃO Filhos sei que tenho dois, porque são poucos, mas mais que is-

so… Uma pessoa com a minha classe! ZABULÃO Claro, já me tinha esquecido. ADÃO Daqui a nada vais perguntar-me a idade, se calhar! ZABULÃO Tens cento e cinquenta anos, isso sei eu. TERCEIRO PASSAGEIRO

(abana a cabeça) Muda!

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ZABULÃO Eu sou mais velho dois anos. A nossa encarregada de educação estava sempre a chamar-me a atenção para isso. Eu é que tinha de dar o exemplo, porque fui feito dois anos antes. (O autocar-ro [= ônibus] pára. Três passageiros encaminham-se para a porta abraçados uns aos outros, como se estivessem com medo de sair. Os outros empurram-nos para fora).

ADÃO (sempre distraído a ver televisão) Que será feito da nossa encar-regada de educação?

ZABULÃO Está muito bem, fui visitá-la, vive numa praia em Vénus. Trans-formou-se em…

ADÃO (interrompe, desinteressado da resposta) Mas houve uma altura em que não foste dois anos mais velho, pois não?

ZABULÃO …sereia. Transformou-se em sereia e está feliz da vida.

(Pausa)

PRIMEIRO PASSAGEIRO

Muda! (Abana a cabeça)

SEGUNDO PASSAGEIRO

Muda! (Abana a cabeça)

ZABULÃO Sim, houve uma altura em que fui mais novo do que tu, foi quan-do pus a cabeça nova.

ADÃO Ficaste mais novo e ficaste mais parvo. ZABULÃO A cabeça era mesmo uma porcaria. Não volto a comprar cabeças

da Nike. Mas as cabeças que eles têm em Vénus… ADÃO (desinteressado) Sereia é o quê? Tem a ver com música?ZABULÃO Pôs um rabo de peixe para nadar mais depressa. ADÃO Peixe? Não sei o que é. QUARTO PASSAGEIRO

Muda! (Abana a cabeça)

ZABULÃO E novidades, para além dos Ferraris? Estive fora tanto tempo, mas parece-me que está tudo…

ADÃO Estiveste fora? ZABULÃO … na mesma. Sim, estive em Vénus, quatro anos! ADÃO Olha, não dei por nada. ZABULÃO Que é que estás a ver? ADÃO O programa com uma bola. E tu? ZABULÃO O programa com uma bola no gelo.

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ADÃO O meu é melhor. ZABULÃO Então e Lamborghinis? Em quantos é que já vais?

(ADÃO boceja)ADÃO Compro para aí dois por dia. Às vezes mais um. ZABULÃO E onde é que pões esses carros todos? ADÃO Comprei outro parque de estacionamento. ZABULÃO Quantos parques já tens? ADÃO (zangado) - Os meus robôs é que fazem essa chatice das

contagens. Ganhaste cá uns hábitos em Vénus! [= ficaste com

uns hábitos estranhos depois de viver em Vênus].

ZABULÃO E andas de autocarro [=ônibus]? ADÃO Com os engarrafamentos que há, claro. É mais rápido. Olha,

vamos descer na próxima paragem.ZABULÃO Não, espera lá, a tua casa ainda não é aqui. ADÃO (olhando pela janela) - Não é aqui? Tens a certeza? Olha que eu

não posso enganar-me na paragem, depois não sei voltar para casa! (O autocarro pára, saem mais três passageiros, sempre agar-rados uns aos outros, como se tivessem medo de sair do autocarro e os outros empurram-nos para fora).

ZABULÃO Pois, é natural. As paragens são todas iguais. É tudo muito ver-dinho, o céu sempre azul celeste, fazem só vinte modelos de árvores, as nuvens…

ADÃO (ansioso) - Mas que paragem era aquela?ZABULÃO Em Vénus as nuvens não são feitas por computador, como aqui.

São todas diferentes. ADÃO Isso é tudo muito confuso. Vê lá o meu número na camisola! ZABULÃO Tu sais na paragem 9-9-0, é o que diz a tua camisola. Aquela era

6-6-0. ADÃO É que nunca mais encontro o caminho para casa! (Dá uma pan-

cada ao de leve na cabeça). Tenho impressão que o GPS ava-riou… (Outra pancada na cabeça, ansioso) Estou com o GPS avariado!

ZABULÃO Não te preocupes, leva o meu. (Dá-lhe um mapa).ADÃO (cada vez mais ansioso, remexendo no mapa sem perceber como é

que aquilo se lê) Mas que raio de coisa é esta? O que é que queres que eu faça com isto?

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ZABULÃO É um mapa! Serve para…. ADÃO Não! Não! Não quero saber! Não me digas! ZABULÃO Mas não queres saber porquê? ADÃO Já sei tudo o que preciso de saber! Não tenho espaço para mais

nada! ZABULÃO Mas não consegues chegar a casa sozinho sem o GPS?! ADÃO (nervoso, agarrando-se ao irmão) Pois não! Pois não!ZABULÃO Deixa, eu levo-te lá. PRIMEIRO PASSAGEIRO

(abana a cabeça) Muda!

SEGUNDO PASSAGEIRO

(abana a cabeça) Muda!

TERCEIRO PASSAGEIRO

(abana a cabeça) Muda!

(Fonte: Disponível em: http://www.luisacostagomes.net/teatro.htm)

Pelo trecho selecionado, podemos entender a pro-posta crítica da autora: refletir sobre os avanços da tecno-logia e a mecanização da vida humana. Nesse sentido, des-taque alguma passagem que mais lhe chamou a atenção e comente os motivos de seu destaque:

Para conhecer mais so-bre essa autora, acesse o site: http://www.lui-sacostagomes.net/te-atro.htm e leia, inclu-sive, mais um trecho de “A vida em Vênus”.

para conhecer

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Outros nomes importantes são: Eduarda Dionísio, Carlos J. Pessoa, A. Dasilva O., Abel Neves, Jorge Silva Me-lo e Mário de Carvalho. Esses autores, entre muitos outros relevantes dramaturgos portugueses, de diferentes modos lançam um olhar crítico sobre a realidade atual e esta parece ser a marca distintiva do teatro português contemporâneo:

Creio ser este olhar [...] o traço mais mar-cante de uma dramaturgia que, saída de uma violenta opressão, de uma absoluta necessidade de usar toda a espécie de dis-farces (formais e temáticos) para sobre-viver, ousa agora configurá-lo em discur-sos e ações para serem realizados em cena. Essas diversas orientações ou caminhos da escrita de teatro [...] possuem, talvez, um denominador comum: abdicaram de “en-sinar” ao espectador o sentido do real, (em tempos como os nossos não são credíveis verdades universais) e insistem em con-vidá-lo a percepcionar, com persistente es-tranheza, a banalidade, os estereótipos, a violência, o sofrimento, a ausência de sen-tido presentes nos fragmentos/ estilhaços do mundo representado (BRILHANTE, 2003).

saiba mais

Acesse http://www.youtube.com/watch?v=sJGfg-lTS6E e assista a um vídeo com a divulgação da peça Provavelmente uma pessoa, de Abel Neves. No comentário de apresentação, fica-mos sabendo um pouco mais sobre esse texto dramático: “Arredores de Lisboa. Um quintal na margem sul. Dois casais, pequenos comerciantes. gente vulgar! Numa noite de Verão, o insólito. Aparece um corpo estatelado no chão do quintal. Quem será? De onde terá vin-do? Como é que veio aqui parar? Pela cor da pele é um africano. Mas também pode ser um brasileiro ou... Provavelmente é uma pessoa! Alguém vindo de longe para inadvertidamen-te transtornar a quietude de uma noite de Verão num quintal da margem sul. Podia muito bem ter caído ali ao lado, na esplanada do café! Alguém que podia ter ido cair noutro sítio qualquer! Mas logo ali no quintal ao rés da oliveira ! Um estranho e inquietante tema, onde consciências e cumplicidades se confrontam atormentando vidas emocionalmente instáveis onde se cruzam sinais de diferentes identidades e se produzem contraditórios de sociabilida-de. Contextos onde se desencadeiam gestos inconscientemente recortados no desrespeito e violência. E tudo isto ao pé de nós, no quintal de um vizinho ou num café de bairro na região da grande Lisboa. Provavelmente uma pessoa é um exercício irónico sustentado por uma escrita prenhe de realidade rebuscada em acontecimentos factuais, sob o olhar ora divertido ora trágico de um dos mais representativos dramaturgos portugueses no nosso tempo”.Encenação: Gil Salgueiro Nave Cenografia e Figurinos: Luís Mouro Sonoplastia: Helder F. gonçalves Interpretação: Fernando Landeira, Pedro da Silva, Rui Raposo Costa, Sónia Bote-lho e Vânia Fernandes Desenho de luz: Jay Collin

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3 A LITERATURA DRAMÁTICA NOS PAÍSES AFRICANOS

Quando nos referimos aos países africanos que têm o português como língua oficial, não devemos esquecer que estamos tratando de realidades muito distintas: Angola, Ca-bo Verde, Moçambique, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe são países que, embora possuam uma história colonial que os aproxima, apresentam muitas particularidades históricas e socioculturais que não podem ser desconsideradas.

Nesse sentido, conhecer a literatura dramática desen-volvida nesses países é tarefa que aqui apenas parcialmente podemos realizar, ficando o convite para que você aprofun-de seus estudos sobre cada uma delas. De um modo geral, os principais aspectos que devemos considerar são os que a seguir apresentamos a modo de síntese, construindo um painel apenas sinalizador da potencialidade artística que es-sas literaturas possuem.

Em Angola, a atividade teatral teve início com as ações doutrinárias da Igreja, desenvolvidas por padres mis-sionários, a fim de converter a população local. Mais tarde, em meados do século XX, companhias portuguesas per-correram o país, mas somente a partir dos anos de 1960 se desenvolve, junto à literatura “de combate” contra a colo-nização, um teatro local, com perspectivas socialistas. De um modo geral, segundo Neves (s/d), essas três linhas de percurso estão “presentes, em maior ou menor grau, na evo-lução teatral de todos os países africanos de língua portu-guesa” (www.instituto-camoes.pt/revista/teatros.htm).

Somente em 1976, um ano após a independência do país, foi criada, em Luanda, capital de Angola, a Escola de Teatro e Dança, que “deu novo impulso à produção e monta-gem de textos dramáticos de autores como Costa Andrade, Ruy Duarte Carvalho ou António Van-Dúnem, produção essa que sobreviveu às dificuldades provocadas pela guerra

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civil, demostrando a vitalidade da tradição teatral angolana” (NEVES, s/d).

Sobre esse momento pós-independência, destaca-se que

a expressão teatral, no país acabado de nascer e que se dizia socialista, era insti-tucional e por vezes engajado no discurso político. De existência efémera e activi-dade irregular, surgiram alguns grupos. Ligados à Secretaria de Estado da Cultura, por exemplo, houve o GAT (Grupo de Animadores de Teatro), o GIT (grupo de Instrutores de Teatro) e o GET (Grupo Experimental de Teatro). Dessa altura era também o Kapa-Kapa, grupo tutelado pela UNTA (Central Sindical) e, como indício de grupos independentes, o Tchinganje e o Xilena (LANÇA, s/d).

Durante os anos oitenta e os conflituosos anos 90, em meio à sangrenta guerra civil, a cena teatral angolana viu-se muito reduzida, mas se destacaram grupos como Júlu, (1992), Etu-Lene (1993), Miragens (1995), de Henrique Artes (2000), um dos mais importantes atualmente, assim como o Elinga Teatro, de José Mena Abrantes, o Pitabel (2001), entre outros.

O percurso do teatro em Moçambique segue, gene-ricamente, essas mesmas etapas. Durante a época colonial, apenas podiam ser encenadas, cantadas e dançadas as ex-pressões artísticas do colonizador português, o que só se alterou com as lutas pela independência, quando o teatro, como, aliás, a literatura em geral, tornou-se arma de com-bate pela liberdade política e cultural. Em 1975, quando o país conquistou sua autonomia política, o teatro continuava exercendo esse papel conscientizador, durante a afirmação do governo socialista, mas a guerra civil que se seguiu, ter-minada apenas em 1992, deixou marcas traumáticas e perdas enormes.

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Nesse contexto de luta, bem como na atualidade, a expressão teatral do país continua em busca de sentidos para a construção de sua moçambicanidade, ou seja, a sua identi-dade cultural. Com esse propósito, destacam-se as ativida-des da atriz Lucrécia Paco, fundadora do grupo Mutumbela Gogo, em 1986 (GOMES, 2011). Em entrevista, a atriz su-blinha as características do teatro em seu país:

Nosso teatro não é de escrita, porque a tradição africana é baseada na oralidade. Nosso grupo opta por fazer adaptações de obras, contos, crônicas. Trabalhamos muito com Mia Couto, por exemplo. Buscamos e adotamos um processo de retextualização, passando esses textos escritos, para o teatro. Trabalhamos também com improvisação e, mais tarde, com a dramatização. Vamos con-tinuamente acompanhar os problemas de nosso país. [...]Nós vamos buscar formas de representação baseadas na oralidade, em nossas danças, no nosso gestual, na nossa tradição. Também buscamos esses elementos tradicionais. Te-mos uma dança, o Mapiko que é puro teatro. Nós nos apropriamos dele para usar em cena. Tudo que é linguagem teatral a gente busca. Há um expressar típico de determinadas regiões. Se vamos fazer uma peça com base na improvisação, vamos buscar também de-stas histórias um ponto de partida. Auscul-tamos e compomos os personagens. Por exemplo, precisávamos de informação para a montagem de uma peça que fizemos sobre crianças que vivem na rua. Mas não havia tex-to, nem romance. Então conversamos com as crianças, trabalhamos com elas e partimos da realidade para a cena (PACO, citada por GOMES, 2011).

Essa busca pelo registro artístico de formas tradi-cionais moçambicanas vem combinada, muitas vezes, com a tradição do teatro europeu, garantindo uma originalidade

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própria. É muito importante, nesse sentido, ultrapassarmos a ideia de uma África exótica, distante, incompreensível – Moçambique, como de resto os demais países africanos de língua portuguesa, vive, na contemporaneidade, os seus desafios de construção identitária. A declaração do ator e escritor Rogério Manjate é muito interessante sobre esse aspecto:

Uma vez num festival em Zurique apre-sentamos “Os meninos de ninguém”, cin-co dias esgotados, as pessoas iam lá para ver danças, o exótico, o africano selvagem, que é o que vêm habitualmente dos africa-nos que aparecem por lá. Ficaram quedos: de onde vocês são? Estudaram na Europa? [...] Porque era o teatro que eles conhe-cem, mas, com uma dose africana na ex-pressão, no ritmo - música e danças, por acaso urbanas, o rap. E o grande desafio para nós é termos de abordar temas sociais actuais, que a priori são óbvios, e termos de transcender através da arte... (MAN-JATE, s/d).

Esse empenhamento do teatro moçambicano é re-gistrado, igualmente, por Alvim Cossa, do Teatro de Opri-mido. Para esse ator, a cena teatral moçambicana apresenta muitas carências, que vão da infraestrutura à formação de profissionais na área. Entretanto, nos anos de 1990, apesar de todas as dificuldades “aconteceu um boom no nosso tea-tro. Em todas as esquinas, nos bairros e ou quarteirões havia pelo menos um grupo de teatro, o que ajudou a despertar a sociedade para os benefícios sociais e culturais que uma modalidade como esta tem” (COSSA, s/d). Assim, a partir desse crescimento quantitativo, o que hoje se demarca do teatro em Moçambique é, para Cossa, uma crescente quali-dade, atestada pelo reconhecimento artístico de muitos gru-pos importantes do país.

Em Cabo Verde, foi na década de setenta, após o

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período colonial, que um “grupo de jovens amadores do Liceu do Mindelo se lançou numa experiência teatral bem sucedida, que serviu de exemplo a posteriores companhias” (NEVES, s/d). Assim como em Moçambique e demais pa-íses africanos, o teatro cabo-verdiano possui uma “ligação profunda à tradição oral e ao espírito musical dos seus habi-tantes” (NEVES, s/d). Ao considerar as principais questões ligadas ao teatro de seu país, assim se colocou o diretor tea-tral João Branco:

Existirá um Teatro Nacional? Atingiu o te-atro cabo-verdiano a sua maturidade? Po-demos inscrever em Cabo Verde um Teatro Moderno? O que é ser Moderno, hoje em dia? Que palavras-chave? Ilhas, miscigena-ção, sol, mar, partidas e regressos, o crioulo, são ingredientes que compõem o teatro ca-boverdiano. Também aquilo que desejamos ainda não alcançámos. Será isso algum dia possível, sendo o Teatro a arte da constante insatisfação, da utopia, do inalcançável, do tornar visível o invisível? (BRANCO, s/d).

A partir desse questionamento, o que o diretor afir-ma é o desafio constante da atividade teatral em Cabo-Verde para desenvolver-se de forma crescente e cada vez mais reco-nhecida. Entretanto, hoje, ainda não existe profissionalismo nessa área no país – as ações são todas de grupos amadores, experientes, contudo, pela persistência em manter viva sua arte. E há outra característica importante, há uma “dicoto-mia geográfica, explicada pelo facto de os grupos teatrais mais activos se concentrarem principalmente em S. Vicente e Santo Antão, ilhas vizinhas, também no teatro; nas ilhas do Fogo, Brava, Maio, Sal, Boavista e S. Nicolau tem-se feito muito pouco no campo teatral” (BRANCO, s/d). A es-sa dicotomia soma-se outra, de acordo com João Branco: o fato de, apesar do crescente número de grupos teatrais nessas ilhas citadas, ainda ser relativamente baixo o número

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de apresentações por ano. Nesse sentido, ganha muita im-portância um festival que acontece sempre em setembro na Ilha do Mindelo:

A criação da Associação Mindelact,e as suas actividades, de 1995 até hoje, [...] constituída por pessoas interessadas no desenvolvimento do Teatro em Cabo Verde – conseguiu dar uma outra dimen-são ao teatro nas ilhas. [...] conseguiu, nestes anos de existência, tornar-se deci-sivo para dar alguma consistência ao teatro caboverdeano, que caminha, na minha opinião, a passos largos para a maturi-dade. A título de informação é importante referir que o primeiro festival com a sigla Mindelact ocorreu em 1995, ainda com um carácter regional, participando ap-enas grupos teatrais de S. Vicente e Santo Antão. No Mindelact 96, o Festival teve um cunho nacional pois já participaram 14 grupos teatrais oriundos de 5 ilhas do país, a saber, Sal, S. Nicolau, Santo An-tão, Santiago e S. Vicente, esta última com mais de metade do total dos grupos par-ticipantes. Em 1997, o Festival foi orga-nizado conjuntamente com a III Estação da Cena Lusófona (um programa de inter-câmbio entre os países lusófonos, impor-tante parceiro da Associação Mindelact) e, pela primeira vez, trouxe ao Mindelo grupos oriundos de outros países, como o Brasil, Portugal e Angola. Desde então nunca mais parou e hoje é o mais impor-tante evento teatral da África Ocidental. Para além disso, a Associação tem pro-movido acções de formação, juntamente com as Câmaras Municipais, no sentido de incentivar cada vez mais pessoas para o teatro. A Mindelact tem ainda implantado um importante projecto editorial, com a edição de uma revista semestral, “Minde-lact – Teatro em Revista”, e que tem sido, e visa continuar a ser no futuro, uma impor-tante fonte documental e de estudo sobre

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o nosso teatro, com artigos de opinião, de estudo retrospectivo, de relatórios sobre acções várias na área da formação, com referência a todos os espectáculos que são apresentados em território nacional, com informações sobre os grupos teatrais em actividade e seus espectáculos, com arti-gos de apoio sobre as mais diversas áreas de estudo, como a representação, encena-ção, iluminação, entre outros. De destacar ainda o Centro de Documentação e Inves-tigação Teatral do Mindelo, que promove o tratamento, conservação, catalogação e digitalização de todo o material referente ao teatro cabo-verdiano (BRANCO, s/d).

Nessas palavras do diretor, fica o convite para co-nhecermos mais sobre o teatro cabo-verdiano por meio da Mindelact Teatro em Revista. E registramos alguns dos mais reconhecidos grupos de teatro desse país: Grupo de Tea-tro do Centro Cultural Português do Mindelo; Grupo de Teatro da Alliance Française de Mindelo; Grupo de Teatro Pedras Vivas do Calhau; Marionetas do Centro Cultural Português; TIM - Teatro Infantil do Mindelo; Grupo de Teatro Dionísios; Grupo Atelier Teatrakácia; Companhia de Teatro Solaris.

Em São Tomé e Príncipe existem duas representações populares “do ciclo das histórias de Carlos Magno, nome-adamente A Tragédia do Marquês de Mântua e do Impera-dor Carloto Magno, em São Tomé, e o Auto de Floripes, no Príncipe, apresentado tradicionalmente em 15 de agosto, Dia de São Lourenço” (SEIBERT, 2010). Trata-se de ex-pressões teatrais que exemplificam a “crioulização cultural e do teatro sincrético” (idem). A primeira dessas expressões é conhecida por tchiloli, “palavra crioula sinónima de teatro e [que] deriva etimologicamente do português tiroliro (pí-faro), a flauta transversal que se toca durante o espectácu-lo” (idem). O tchiloli é a manifestação cultural que possui maior divulgação e que está mais bem documentada do ar-

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quipélago “pois, desde os anos de 1960, e apareceram vários livros e trabalhos áudio-visuais sobre esse teatro popular, não apenas em português, mas também em inglês, francês e alemão” (idem).

Os grupos de tchiloli são conhecidos na ilha por tragédias e, segundo Gerhard Seibert (2010), “têm cerca de trinta elementos cada um, e pertencem todos a uma deter-minada localidade de forros (assim se chamam os crioulos nativos de São Tomé). Dentro de certos limites dramatúr-gicos, cada tragédia representa uma versão própria da pe-ça”. Apenas os homens podem participar dos espetáculos, assumindo, portanto, até mesmo os papéis femininos, e é interessante sabermos, também, que as personagens, “o guarda-roupa e os textos transmitem-se no seio das famí-lias” (SEIBERT, 2010).

Vamos conhecer melhor essa expressão cultural do teatro são-tomense:

O tchiloli baseia-se num texto escrito por volta de 1540 por Baltazar Dias, um dra-maturgo cego, madeirense da escola de Gil Vicente (1465-1536). O seu drama inspi-ra-se em seis romances cas-telhanos que, por sua vez, derivam do ciclo carolíngio do século XI. Este teatro medieval conta a história de Dom Carloto, filho e herd-eiro do imperador Carlos Magno, que as-sassina o seu melhor amigo, Valdevinos, sobrinho do marquês de Mântua, durante uma caçada, porque se apaixonou por Sib-ila, a esposa de Valdevinos. O crime leva as duas famílias e os seus representantes a debaterem questões de lei, de justiça e de governação. Os temas chave desse drama são a traição e a igualdade perante a lei. O imperador é confrontado com o dilema de escolher entre [...] o interesse nacional e o seu amor paternal. Finalmente, o seu filho é condenado à morte e executado na fortaleza imperial. [...] [Existem vários grupos em atuação e] segundo informa-ções da Direcção Nacional da Cultura,

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em 2007, permaneciam 12 tragédias. Ger-almente um espectáculo tem a duração de cerca de seis horas e é apresentado em terra batida num quintal ou numa praça pública, ao ar livre, durante a gravana (estação seca), sobretudo por ocasião das festas anuais dos santos católicos das vilas e de outras fes-tividades. A influência africana, em termos da noção de tempo, estendeu as poucas pá-ginas do texto original para representações bem mais longas. O palco rectangular, aberto pode ser visto de todos os lados. Os especta-dores participam activamente no espectáculo através de comentários durante as cenas. [...] A maior parte dos versos de sete sílabas de B. Dias são utilizados sem quaisquer alterações, contudo, textos adicionais de prosa em por-tuguês moderno foram integrados na repre-sentação. Estes dominam as partes relativas à investigação criminal e aos procedimentos legais. Em contraste com o texto original, os textos modernos são constantemente adapta-dos e improvisados pelos actores. Enquanto o argumento da peça assume a sua importân-cia, a dança, a pantomima e a música não são menos relevantes no contexto do espectá-culo. Todo o tchiloli é uma mistura de dança e pantomima. Uma orquestra composta de tambores de diferentes tamanhos, um sino, flautas de bambu e sucalos (chocalhos) - in-strumento local feito por um pequeno cesto contendo sementes - fornecem a música que acompanha os actores dançando de um lado para o outro. A música é caracterizadamente monótona, uma única melodia é retomada.

Sobre a introdução do Tchiloli em São Tomé e Príncipe, existem diferentes versões, mas “não existe nenhum documen-to sobre a introdução ou a apresentação do tchiloli em São To-mé anterior ao final do século XIX” (SEIBERT, 2010).

Quanto a Guiné-Bissau, o teatro, no país, vem ganhan-do crescente desenvolvimento e o apoio da Cena Lusófona, entidade criada pelos países de língua portuguesa para o inter-

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câmbio e apoio de ações teatrais e culturais, tem sido muito importante. Entre os grupos que merecem destaque estão Os Fidalgos, o KCena, o P-Stage. Esse último vem produ-zindo o espetáculo As Orações de Mansata (2007), de Abdu-lai Sila, um dos nomes mais importantes da literatura gui-neense. A peça de sua autoria em referência consiste “numa livre adaptação de Macbeth, de Shakespeare, à realidade afri-cana, com direção de Antônio Augusto Barros (Coimbra) e participação de atores portugueses, brasileiros (integran-tes do Bando de Teatro Olodum), angolanos, guineenses e são-tomenses” (informativo do TEATRO VILA VELHA). Nesse mesmo informativo ficamos sabendo que

Criado pela Cena Lusófona, o projeto P-STAGE é uma parceria com a Companhia de Teatro Elinga (Angola) e com a ONG AD-Ação para o Desenvolvimento (Gui-né-Bissau), tendo ainda como associados o Centro de Intercâmbio Teatral de São Tomé (São Tomé e Príncipe), o Teatro Vila Velha (Salvador, Brasil), as companhias de teatro profissional A Escola da Noite e Companhia de Teatro de Braga (Portugal) e o Centro Dramático Galego (Espanha) (Informativo do TEATRO VILA VEL-HA).

Assim, deve-se registrar esse importante intercâmbio entre os países de língua portuguesa que, entretanto, precisa ser ainda muito mais intensificado, em todos os níveis, mas sobretudo no âmbito cultural.

Para encerrarmos esta unidade, reproduzimos um trecho do referido texto dramático de Abdulai Sila, As ora-ções de Mansata, primeira peça escrita por um autor guine-ense, que aponta questões importantes e desafiadoras para o futuro de Guiné-Bissau:

para conhecer

Figura 5: Abdulai Sila – autor guineense

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AS ORAçõES DE MANSATA(Fragmento da cena 1 do 6º acto, pp.: 98-100)

YEWTA YAWTA Espera aí, que não estou a entender tudo isso... O que é que nós, que já estamos assim tão velhos e cansados, que não vamos certamente assistir à chegada dessa paz e do progresso, temos a ver com tudo isso? Não há nada que possamos fazer.

AMAMBARKA Há uma coisa que vocês, vocês três que aqui estão, podem fazer para que tudo isso, a paz, a estabilidade, o progresso e a felicida-de, todas as nossas ambições, sejam realidade...

YEWTA YAWTA Ah, sim? E que coisa é essa? Vocês ouviram isso? (olha para os dois companheiros)

AMAMBARKA Um acto muito simples... Tão simples que acho que vão fazê-lo ainda hoje. Um acto que eu não esquecerei nunca, pelo qual serão devidamente recompensados.

YEWTA YAWTA Surpresa número dois. De que estás a falar agora, Amambarka?AMAMBARKA Estou a falar de como chegar àquela mulher...DJINNA HARA Que mulher?AMAMBARKA Mansata! (os três Homens-Grandes não conseguem esconder a

surpresa. Trocam olhares durante alguns instantes) Quero que me levem até junto de Mansata.

DJINNA HARA E quem é... Mansata?AMAMBARKA Isso vocês sabem melhor do que eu... Foi dela que falaram no

outro dia, lembram-se, naquele dia em que prometeram ajudar Mwankeh... É ela que apareceu nos búzios, que você, Yewta Ya-wta, você mesmo lançou. É a ela que se referiram quando fala-ram de uma mulher muito sofisticada, poderosa demais. Pro-meteram ajudar Mwankeh, hoje ele não está, vão-me ajudar a mim. Preciso desses poderes, não para benefício pessoal, mas para fazer progredir a Nação. Com esses poderes, não vamos pedir esmola a nenhuma outra nação ou instituição estrangeira, vamos ser auto-suficientes, respeitados em todo o mundo, ter tudo o que precisamos. Com esses poderes, vamos construir hospitais, estradas, pontes, casas bonitas em todo o lado, para toda a gente... Vamos ter escolas para as crianças, universidades em todo o país, para todos os jovens, rapazes e meninas, estuda-rem e serem grandes Homens, cientistas de valor, com conhe-

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cimentos profundos da ciência e da tecnologia que vão fazer inveja aos brancos! Vocês não querem a paz e a prosperidade para a nossa querida Nação? Não querem escolas para as nossas crianças, para os vossos netos e bisnetos? Não querem ter hos-pitais com equipamento moderno, medicamentos gratuitos e médicos bem formados para vos tratar? Não desejam ter luz em casa e nas ruas? Não querem nada disso? Nada? Reparem numa coisa: hoje é o branco que tem todos os poderes do mundo. Se precisarmos de viajar, temos que pedir ao branco, tem que ser com o carro ou o avião que o branco construiu; se precisarmos de construir casas grandes e bonitas tem que ser com modelos e materiais do branco; até falar com os nossos semelhantes ago-ra só pode ser na língua do branco... Eles têm todos os pode-res. Mas todos! Qualquer dia, se não tomarmos as providências necessárias, pode dar-lhes na gana usar esses poderes para nos escravizar de novo. E vamos todos, jovens e velhos, homens e mulheres, ser cativos deles... Não, não posso acreditar que não queiram ver esta nossa querida Nação, todo o nosso querido povo, a viver como os brancos vivem na terra deles... Ou será que acham que o preto não tem direito ao bem-estar? Só o bran-co é que tem? Foi isso que Deus disse? Não, Deus disse que somos todos iguais, somos todos filhos d’Ele, com os mesmos direitos. E se é assim, porquê é que só o branco tem poderes neste mundo? (faz uma ligeira pausa para observar os seus in-terlocutores) Meus amigos, mostrai-me o caminho que leva a Mansata e juro por Deus que farei acontecer aqui e em todo o lado o que Deus desejou para todos os Seus filhos. Ajudai-me a aceder a esses poderes que Mansata anda a distribuir a torto e a direito, a gente que não o merece e nem sabe o que fazer com eles... Eu sou o Supremo Chefe da Nação, sei como e onde apli-car esses poderes... Dai-me esses poderes de Mansata...

KAMALA DJONKO

Mansata é um mito...

AMAMBARKA Não acredito!

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I. Sobre a literatura dramática brasileira contemporânea:

1. Leia a peça Gota d’Água, de Chico Buarque de Holanda e Paulo Pontes (disponível em: http://mouraria.reino-dosacores.org/arquivos/Gota%20D’%C3%A1gua%20-%20Chico%20Buarque%20e%20Paulo%20Pontes.pdf).

a. Ouça a música que dá nome à peça (disponível no you-tube com Chico Buarque, Simone ou Bibi Ferreira).

b. Leia o artigo de Isabel Jasinski sobre a impor-tância da música na peça (disponível em: http://mouraria.reinodosacores.org/arquivos/Gota%20D’%C3%A1gua%20-%20Chico%20Buarque%20e%20Paulo%20Pontes.pdf).Elabore um comentário sobre: o tema da peça; o que representam os principais personagens; a importância da música para o espetáculo; a relação da peça com o contexto sociopolítico que representa.

2. Sobre a peça Novas diretrizes em tempos de paz, de Bosco Brasil (disponível em: http://www.ingresso.ufu.br/sites/

KAMALA DJONKO

Mansata é um mito... Não existe!

AMAMBARKA Mansata existe, os poderes existem!KAMALA DJONKO

Puro mito!

Fonte: Disponível em:http://www.triplov.com/guinea_bissau/abdulai_sila/oracoes_de_mansata/index.

htm. Acesso em jan./2012.

ATIVIDADES

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default/files/certificacao/Teatro_Novas_diretrizes_pa-ra_tempos_de_paz_Bosco_Brasil.pdf):

a. Considere a seguinte afirmativa: “Inicialmente, perce-be-se a referência direta ao drama A vida é sonho, do espanhol Calderòn de La Barca, através do nome da personagem do interrogador” (ÉBOLI, 2010, p. 24). A peça espanhola é do século XVII. Pesquise sobre esse texto dramático e indique os possíveis sentidos do jogo intertextual estabelecido por Bosco Brasil, explicando o tema central da peça brasileira.

b. Pode-se perceber, na peça, um jogo entre as identidades do interrogador e do imigrante polonês; você concorda que, nesse jogo, parece se estabelecer “uma luta [entre eles] para não deixar que a relação provoque a temida e vital inversão de papéis”? (ÉBOLI, 2010, p. 24) Expli-que.

c. De que modo, portanto, a partir das respostas anterio-res, podemos entender que Novas diretrizes em tempos de paz dialoga com a realidade contemporânea?

II. Sobre a atual literatura dramática portuguesa:

a. Pesquise na internet sobre estes autores e suas princi-pais obras: Eduarda Dionísio, Carlos J. Pessoa, A. Da-silva O., Abel Neves, Jorge Silva Melo e Mário de Car-valho.

b. Elabore “verbetes” descritivos sobre cada um, compon-do uma espécie de minidicionário de autores da litera-tura portuguesa atual (NÃO ESQUEÇA de informar os devidos créditos = referências).

III. Sobre a literatura dramática dos países africanos de língua portuguesa:

a. Investigue na internet e faça uma relação de pe-ças dramáticas angolanas e moçambicanas, com

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seus respectivos autores; selecione uma de cada país que achar mais interessante e desenvolva um comentário justificando seu interesse (indique os respectivos temas, a composição das persona-gens, a composição das cenas etc.):

b. No que consiste o tchiloli? Explique suas caracte-rísticas e importância cultural:

c. Explique quais são os objetivos de Amambarka, personagem do texto dramático As orações de Mansata, do guineense Abdulai Sila, ao propor a busca pela figura mística que dá nome à peça.

A literatura dramática em língua portuguesa per-corre, atualmente, muitos caminhos: dos questionamentos majoritariamente sociopolíticos que marcaram os tempos de luta contra as ditaduras (no Brasil, em Portugal, em Angola, em Moçambique, em Cabo Verde, em Guiné-Bissau e em São Tomé e Príncipe), passou-se a uma variedade temática que continua questionando a realidade social e política, mas abarca também problemáticas identitárias, reflexões sobre sentidos da memória, das inter-relações atuais entre tempo e espaço, das relações e conflitos humanos diante da fragmen-tação dos papeis sociais, entre muitos outros. A cena teatral, por sua vez, conhece hoje muitas possibilidades e várias pro-postas artísticas prescindem do texto dramático. Podemos reconhecer, entretanto, como vimos nesta aula, que a lite-ratura dramática continua sendo um campo fundamental na arte contemporânea e que o teatro é uma expressão cultural viva e imprescindível para o (auto)conhecimento humano.

RESUMINDO

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BOAL, Augusto. Teatro do oprimido – e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.

BRANCO, João. Tendência do Teatro em Cabo Verde - com os pés nas ilhas e os olhos nas estrelas. 2010. Disponí-vel em: http://www.buala.org/pt/palcos/tendencia-do-teatro-em-cabo-verde-com-os-pes-nas-ilhas-e-os-olhos-nas-estrelas. Acesso em jan./2012.

BRILHANTE, Maria João. Caminhos da escrita dramática em Portugal no final do século XX. Publicado por Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras da Universi-dade de Lisboa. 2003. Disponível em: http://www.fl.ul.pt/cet-publicacoes/cet-edicoes-online/cet-artigos/682. Acesso em jan./2012.

COSSA, Alvim. Entrevista. Disponível em: http://nan-diiwe.blogspot.com.br/2013/03/teatro-de-mocambique-celebra-se-hoje-27.html. Acesso em jan./2012.

ÉBOLI, Luciana. Teatro e escrita: novos olhares sobre a dra-maturgia brasileira. In: SILVA, Denise Almeida; MITIDIE-RI, André Luis (Orgs). Texto dramático. Frederico Wes-tphalen, RS: URI/FW, 2010.

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REFERêNCIAS

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REBELLO, Luiz Francisco. História do teatro. Lisboa: Im-prensa Nacional/Casa da Moeda,1991.

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Suas anotações

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