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Ao final desta aula, você deverá :
• reconhecer a arte como criação;• perceber a criação literária como arte.
Compreender a natureza da obra literária.
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CRIAÇÃO LITERÁRIA
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AULA IIICRIAÇÃO LITERÁRIA
1 INTRODUÇÃO
A natureza da obra literária, ou seja, a compreensão da
especificidade do literário, de como se dá sua existência, como
é constituída sua essência, aquilo que tem de primordial, é uma
reflexão fundamentalmente filosófica, mas que tem preocupado
os estudiosos da arte e, particularmente, da literatura. Desta
forma, o empreendimento da compreensão da natureza do
literário significa penetrar nas questões primordiais que possam
auxiliar na constituição da obra. Nesta aula, você verá que
preocupações relevantes, tais como a existência do ato criativo
e sua manifestação como arte literária, se mostram de suma
importância para o entendimento da própria literatura em seus
vários aspectos ao longo do tempo.
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2 A ARTE COMO CRIAÇÃO
Em aula anterior, você estudou que, na Antiguidade
Clássica, é onde se encontram as primeiras manifestações
literárias, bem como as primeiras reflexões sobre literatura,
através de dois de seus filósofos: Platão e Aristóteles. Pois
bem, o ato criador tem sido pensado por filósofos, pensadores
e críticos, bem como parte daqueles que fazem a arte literária,
os escritores e poetas, desde aquela época. Em uma perspectiva
mais comum, o ato criador se mostra explicável, sendo que
o Homem busca incessantemente ao longo dos tempos essa
explicação.
Há elementos que podem nos auxiliar num conhecimento
descritivo do processo do ato criador, tais como os depoimentos
dos próprios artistas que detalham em muitos aspectos suas
produções, sendo um importante elemento de compreensão
da experiência artística como criação; as revelações a que
as obras literárias são submetidas e que proporcionam, em
vários momentos, uma sistematização que permite conhecer
o processo de criação; as críticas e cogitações dos filósofos,
estetas e conhecedores do assunto; bem como as informações
hoje propiciadas pelas ciências psicológicas.
Abaixo, você tem uma figura que ilustra o ato da criação
artística, relacionada à própria criação da vida:
Figura 1: O ato da criação expressa na pintura de Miguelangelo. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:God2-Sistine_Chapel.png
Para o crítico Harold
Osborne (apud
SILVA, 1986, p.95)
“todos os fenômenos
característicos da
inspiração são descritos
em termos idênticos
pelos bons e pelos maus
artistas; e nenhuma
investigação psicológica,
por mais penetrante que
seja, conseguiu discernir
as diferenças entre os
processos mentais que
acompanham a criação
de uma obra mestra e
as inspirações de um
aprendiz de terceira
ordem”.
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Na apreciação do ponto de vista histórico, acreditava-se,
até o século XVIII, que toda a criação literária assentava-se na
imitação de uma realidade, de uma natureza interna ou externa.
Sobretudo nas obras de Platão e Aristóteles, que originaram
boa parte do pensamento ocidental sobre arte, encontram-se
as primeiras elaborações teóricas da concepção de imitação da
arte, chamada então mimética.
Em Platão, o termo mimesis se desenvolve em várias
gradações, assumindo um sentido diversificado, como o
encontrado no livro X da República, que aponta a mimesis
como sendo um divertimento através do qual o artista reproduz
a aparência, não a verdade profunda das coisas e dos seres.
Já em outra obra, no Crátilo, a mimese é considerada como
decorrente da exigência humana de exprimir por imagens a
realidade circundante e, como meio de aprender as ideias
presentes nas coisas, lhe é dada um valor simbólico.
Há de se notar que o conceito
fundamental de mimese em Platão é
aquele encontrado na República, pois é
quando o filósofo sujeita toda a poesia,
entendida então como criação, afastada
três degraus da verdade. Assim,
pintores, escultores e artistas em geral
são tão somente os terceiros criadores
(poietes), visto que o primeiro é Deus,
que cria, por exemplo, a ideia de
cachimbo; o segundo é o artífice que
fabrica o cachimbo; o terceiro, sim, é o
artista que representa este cachimbo.
O outro grande filósofo da Era helênica, Aristóteles,
concebe à mimesis um papel fundamental, seja na caracterização
da natureza da literatura, seja na justificativa. Assim, para
Aristóteles, na origem da criação literária está a imitação,
pois esta seria uma tendência inerente ao próprio homem. No
entanto, esta imitação não é uma representação literal dos
aspectos sensíveis da realidade, pois a criação literária concebe
o geral no particular das coisas. O artista é aquele que capta
as formas existentes nas coisas naturais, representando essa
forma na imitação.
Portanto, há uma diferença profunda entre a doutrina da
FIGURA 2 - “O Cachimbo” de René Magritte.
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René Magritte (Lessines, 21 de novembro de
1898 - Bruxelas, 15 de agosto de 1967) foi um dos principais artistas do século XX que, a
partir de uma estética surrealista, se esmerou
em questionar a representação, dizendo fazer representações de pintura e não pinturas,
como na figura 2 ao lado, em que a inscrição “Isto não é cachimbo” resume o propósito
conceitual do artista.
Fonte: www.infopedia.pt/rene-magritte
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mimese em Platão e Aristóteles; no entanto cabe
ressaltar a identificação entre as duas teorias, que
consiste na manutenção de semelhança que toda
obra de arte tem com a realidade existente.
Deste modo, temos que a arte literária, até o
século XVIII, é concebida em termos de imitação,
imagem, cópia ou representação. Neste sentido, é
comum, desde a Renascença, a comparação que
se faz entre o ato criador e o espelho que reflete a
realidade, revelando o caráter mimético, como você
pode ver, ao lado, na figura 3.
3 A CRIAÇÃO LITERÁRIA COMO ARTE
Na Grécia Antiga ou Era helênica, a literatura era vista
como imitação ou cópia. Deste modo, ainda na Antiguidade,
concebe-se o épico como a representação, cópia, das
ações generosas do homem; já a comédia se mostra como
representação dos costumes do tempo. Assim, seu caráter de
obra de arte estava relacionado à representação que fazia do
real. Quanto mais fiel à realidade mais a capacidade de a obra
literária se manifestar e ser aceita como arte, a arte literária.
A capacidade de criação estava demasiadamente relacionada à
capacidade de copiar o real.
A partir do século XIX, há um crescente declínio das
teorias de imitação, devido, sobretudo, à crescente importância
adquirida pelo personagem no instante do ato criador. A primeira
constatação desse fato está no deslocamento do objeto para o
sujeito na criação artística e literária, que é representado em
termos epocais pelo advento do Romantismo. Neste momento
especialmente, a imitação deixa de refletir a natureza ou as
coisas naturais da vida e passa a expressar os sentimentos,
os desejos, as emoções do próprio autor, artista. O texto,
então, passa a expressar não mais o real objetivo, mas, sim,
a atmosfera interior, em que a criação possibilita relevância
primordial.
A criação romântica passa, dessa forma, a dar ênfase
ao artista enquanto criador do mundo interior manifestada em
sua arte. É fundamental, neste momento, o conceito de criação
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que o Romantismo inaugura, rompendo com as concepções
clássicas advindas desde a Antiguidade.
O Romantismo configurou mais que um período literário,
uma estética, pois abrangeu todos os seguimentos do espírito
cotidiano. Iniciado em fins do século XVIII na Alemanha, no
chamado pré-romantismo, tem na figura emblemática de
Goethe, com a publicação da obra Os sofrimentos do jovem
Werter, sua grande força. Após este período inicial, o espírito
romântico se difunde pelo restante da Europa, sobretudo
França e Inglaterra, onde encontra terreno fértil para
experimentação das teorias então difundidas, que se resumem
a uma subjetividade extremada, expressa nas mais diferentes
interpretações da realidade, seja na tendência à solidão, à
morte, ou mesmo a propensão ao sonho e ao exílio.
Com o Romantismo, pela primeira vez há uma
preocupação em criar mundos e não mais em descrevê-los ou
copiá-los à semelhança do real. Sob influência do idealismo
filosófico alemão de Fichte e Novalis, os românticos concebem
o Eu interior como a realidade fundamental, que absorve toda
e qualquer potencialidade do ato criador. Assim, o processo de
criação passa a ser expresso pela liberdade e potencialidade
inerente ao sujeito poético.
Neste período, há uma completa liberdade em relação à
realidade preexistente, pondo em realce a capacidade do artista
de utilização das formas e das palavras. Mesmo
no romance, onde a dissociação
do real se torna de extrema
dificuldade, há a tendência
ao esvaziamento do
conteúdo realístico,
dando-se ênfase ao
poder demiurgo do
escritor.
Na contempo-
raneidade, há uma
rejeição às teorias
que remetem à
imitação, sobretudo
quando a aproximação
à natureza se torna mais
Idealismo é qualquer doutrina que sustente que a natureza da realidade
é fundamentalmente mental. Corresponde,
sobretudo, ao movimento filosófico alemão, que ampliou seus domínios
como fenômeno artístico e literário. É caracterizado
pelo conceito de criatividade e liberdade do espírito, bem como o desenvolvimento, e, por
conseguinte, a valorização da nacionalidade e da
religião, que são produtos históricos.
FIGURA 4UAB/UESC
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fidedigna. Reside aí a principal discussão em torno da mimesis,
quando admite desde a Antiguidade certo falseamento ao propor
que o objeto, a obra artística, é independente da natureza real.
Os teóricos da literatura, da arte e da estética apontam,
em certo consenso, que a obra literária ou artística tem de
manter inegavelmente relação com a realidade, seja um poema,
um romance ou uma tela de um pintor; neste sentido toda obra
de arte seria realista. No entanto, é grosseiro equívoco pensar
que a obra de arte deve manter relação de subordinação e
de identidade com a natureza que a cerca, numa palavra com
a própria realidade. Esta interpretação nos leva a ignorar o
caráter simbólico da obra de arte.
A obra literária deve possuir uma relação com objetos,
fatos e mesmo com o espírito social, mas jamais deve ser
confundida a sua dimensão de apreensão deste real com a
subordinação a ele.
Podemos discutir o legado e a natureza da literatura, ao
notarmos que a literatura não nomeia a realidade da mesma
maneira que o fazem historiadores ou sociólogos. Aristóteles já
alertava, em sua poética, para este diferencial, quando observa
que o poeta, aí sinônimo de escritor, artista, consegue trabalhar
com o que pode ou poderia ser; enquanto que o historiador
trabalha com o que é.
É lícito depreender que, embora não se valha da ausência
do real para se constituir, a literatura mascara, através do
simbólico, muitos aspectos deste real, mas afinal de contas
sempre conduz de maneira inequívoca a ele.
Agora, vamos às atividades!
FIGURA 5
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ATIVIDADES
1. O Romantismo significou um importante passo no quadro de entendimento da mimese. Por quê?
2 Por que o Romantismo pode ser entendido além de um estilo de época literário?
3. O que é mimesis?
4. A imitação da natureza sempre foi um problema relacionado à criação literária.
RESUMINDO
Nesta aula, você estudou que a criação artística, desde a Antiguidade Clássica, se revela como ponto de questionamento. Viu, também, que um dos principais problemas colocados em relação à criação artística é a sua capacidade de imitar ou não a realidade, o que foi chamado de mimesis, tanto em Platão como em Aristóteles; que o entendimento de mimesis vigorou até o Romantismo, no século XIX, quando se observou a autonomia da obra de arte, que passou a refletir não só o aspecto exterior, a natureza, mas também o aspecto interior, subjetivo do ser humano.
LEITURA RECOMENDADA
Para complementar esta aula, recomendo a leitura de HAUSER, Arnold. História social da literatura e da arte. Lisboa: Mestre Jou, (sd) e WELLEK, Rene et al. Teoria da literatura. Lisboa: Europa-América, 1987.
FIQUE ATENTO! Na próxima aula, compreenderemos a literatura a partir de seus elementos específicos.
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Em que consiste esta imitação?
AMORA, Antonio Soares. Introdução à teoria da literatura. São Paulo: Cultrix, 2004.
GOMES, Heidi Strecker. Análise de texto: teoria e prática. 10 ed. São Paulo: Atual, 1991.
GONÇALVES, Magaly Trindade; BELLODI, Zina C. Teoria da literatura ‘revisitada’. Petrópolis: Vozes, 2005.
JOBIM, José Luis. Introdução aos termos literários. Rio de Janeiro: Eduerj, 1999.
MOISÉS, Massaud. A criação literária. São Paulo: Melhoramentos, 1973.
SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da literatura. 5. ed. Coimbra: Almedina, 1986.
Suas anotações
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