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ENOI MIRANDA BARBOSA MENDES MÚSICA CAIPIRA – ORIGENS E ATUALIDADE – A REPRESENTAÇÃO DO HOMEM DO CAMPO NAS LETRAS DAS CANÇÕES SERTANEJAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA DEPARTAMENTO DE LETRAS, ARTES E CULTURA agosto de 2007

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ENOI MIRANDA BARBOSA MENDES

MÚSICA CAIPIRA – ORIGENS E ATUALIDADE – A REPRESENTAÇÃO DO HOMEM DO CAMPO NAS LETRAS

DAS CANÇÕES SERTANEJAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA

DEPARTAMENTO DE LETRAS, ARTES E CULTURA

agosto de 2007

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ENOI MIRANDA BARBOSA MENDES

MÚSICA CAIPIRA – ORIGENS E ATUALIDADE – A REPRESENTAÇÃO DO HOMEM DO CAMPO NAS LETRAS

DAS CANÇÕES SERTANEJAS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- -graduação em Letras da Universidade Federal de São João del-Rei, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras. Área de Concentração: Teoria Literária e Crítica da Cultura Linha de Pesquisa: Discurso e representação Orientador: Prof. Dr. Guilherme Jorge de Rezende

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA

DEPARTAMENTO DE LETRAS, ARTES E CULTURA

agosto de 2007

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À Maria José de Miranda (NEM), sempre

presente, força, luz, apoio incondicional na minha

caminhada...

Às minhas filhas Enói Maria e Glória Maria,

impulso, objetivo, razão de ser de eu estar aqui...

À minha MUSA INSPIRADORA, que sempre me

enviou do ALTO, na hora certa, o alento e o suporte

indispensáveis.

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AGRADECIMENTOS

A meus PAIS, pela luta e dedicação incansáveis em prol de minha formação pessoal e acadêmica. A meus IRMÃOS, Chico e João, pela compreensão, pelo apoio incondicional à minha luta em busca de uma realização. A meu irmão Jósimo, sempre presente, pela amizade constante que a mim dedicou durante o tempo que pudemos viver juntos. Ao DELAC – Departamento de Letras, Artes e Cultura da UFSJ, que soube compreender a minha aspiração pelo Mestrado e me tornou possível a sua realização. Aos meus Colegas-Professores do Departamento, que me acompanharam de perto nesta caminhada, pela atenção especial que me dispensaram. Aos meus Amigos, que souberam compreender a minha ausência durante a realização deste trabalho. Às minhas Companheiras do dia-a-dia em minha casa, Rosa e Lúcia, pela atenção, pelo carinho e pela disponibilidade que sempre me dedicaram. Ao Alencar, pelo companheirismo, e às minhas filhas, por terem sabido compreender a ausência materna durante esta trajetória com resignação e aceitação tamanhas. À UFSJ – Universidade Federal de São João del-Rei, pela oportunidade que por ela me foi concedida de realizar o meu Mestrado, e aos meus alunos, que sempre se fizeram presentes ao meu trabalho. Ao povo das áreas rurais brasileiras e, por conseqüência, à minha família, que é caipira, razão deste estudo. Aos meus colegas do Mestrado, pela amizade e colaboração. À ZEZÉ, fiel amiga-irmã e companheira de trabalho, pela carinhosa revisão deste trabalho. A todos os funcionários da UFSJ, em especial, à Lais e ao Anderson, pela atenção e pronto atendimento a mim dispensados. A DEUS, força suprema, por tudo.

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RESUMO Breve análise do gênero musical denominado sertanejo, de sua trajetória e dos

temas abordados em sua significação, não apenas para o homem do campo, mas também enquanto fundador e mantenedor de uma identidade brasileira, considerando as transformações ocorridas no país no curso de seu desenvolvimento durante o século XX, que provocou, entre outras conseqüências, o deslocamento massivo da população campesina para o universo urbano.

Reflexão sobre a idealização do sertanejo, a manutenção de sua identidade em contraponto à ausência desta percebida no universo urbano. Tal reflexão é feita a partir da análise dos significados inseridos nas canções e dos temas abordados, em suas possíveis significações no imaginário nacional, que provoca a expansão do gênero.

Discussão a respeito das possibilidades de expressão e/ou representação do homem do campo nas letras das canções sertanejas, entendidas como possibilidades de (re)identificação deste homem com o universo rural do qual se distanciou a partir da migração para as grandes cidades e como busca de integração do universo campesino ao urbano.

Essas discussões e reflexões amparam-se, de um lado, no que se convencionou chamar “Estudos culturais” e, por outro, nos conceitos de “desenraizamento”, tal como o mesmo é apresentado por Néstor Garcia Canclini, e no de “processo comunicacional” – conforme é apresentado por Stuart Hall – de modo a relacionar as formas de produção e inserção desse gênero junto a seu público alvo.

Palavras-chave: Brasil – música – sertaneja – análise – Estudos Culturais ABSTRACT

Brief analysis of the musical genre known as “sertanejo”, of its trajectory and themes approached in its signification not only for country folks but also as a founding and maintenance element for Brazilian identity, considering the transformations that occurred in the country throughout its development in the 20th Century, which provoked, among other consequences, massive migrations from the country to the urban space.

A reflection on the idealization of the “sertanejo” figure, the maintenance of his identity as opposed to his absence in the urban universe. Such reflection is based on the analysis of signfieds present in the songs and themes approached, and their possible signification for the national imaginary, which provokes the expansion of the genre.

Discussion on the possibilities of expression and/or representation of country folks in the lyrics of “sertaneja” songs, which are understood as possibilities of (re)identification of such people with the rural universe left behind after migration to the large cities and as a search for integration of the country universe within the urban space.

Discussion and analysis will rely, on the one hand, on what has conventionally been called “Cultural Studies”, and, on the other hand, on the concepts of “uprootedness”, as presented by Néstor Garcia Canclini, and “communicational process”, proposed by Stuart Hall, so as to relate the forms of production and insertion of this genre into its target audience.

Keywords: Brazil – sertaneja music – analysis – Cultural Studies

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SUMÁRIO

Introdução .................................................................................... 08 Capítulo 1 O “não-lugar” do homem do campo no meio urbano ..............17 Capítulo 2 A trajetória histórica da canção sertaneja ............................... 31 Capítulo 3 O público e o privado como produto de consumo .................. 40 Capítulo 4 “Tristezas do Jeca”: A dor da perda como grande tema do cancioneiro sertanejo.................................................................. 52

Considerações finais .................................................................. 68 Referências bibliográficas ......................................................... 72 Anexos.......................................................................................... 74

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INTRODUÇÃO

O trabalho ora apresentado pretende discutir alguns aspectos do

gênero musical denominado sertanejo (ou caipira)1. A dissertação parte da

análise da trajetória desse gênero de música e dos temas abordados em sua

significação, não apenas para o homem do campo, mas também enquanto

elemento fundador e mantenedor de uma identidade brasileira. Essa questão é

particularmente relevante num país cujo desenvolvimento trouxe, em seu bojo,

entre outras conseqüências, o deslocamento massivo de sua população

campesina para o universo urbano.

A pesquisa tomou como ponto de partida as reflexões de Letícia

Vianna (2003) a respeito das identidades sociais encontradas na música

popular. A autora, embora reconheça o estatuto de mercadoria da música “de

massa”, aponta um continente de significados coletivamente atribuídos (p. 71)

a esse produto. Desse modo, o que se buscou foi trabalhar os significados

inseridos na representação do homem do campo através da canção sertaneja

em suas relações com o público para o qual ela é, atualmente, direcionada.

Embora a alteridade constituída entre o sertão, a roça e a cidade na

música e no imaginário geral das artes (VIANNA, 2003, p. 74) estabeleça-se

no país desde o século XIX, as reflexões aqui desenvolvidas têm, como ponto

de partida e de referência, as primeiras décadas do século passado. Foi

naquele momento que, no Brasil, a música se tornou um importante vetor de

afirmação, transformando-se em “um lugar privilegiado para a construção e

afirmação de identidades regionais e nacionais” (Idem).

A referência temporal dos anos 1920 explica-se pelo fato de ser o

período marcado pelas migrações dos “sertanejos”2 das regiões centro-sul do

1 A nomenclatura “música sertaneja”, passa a ser usada a partir dos anos 50, na busca de afastamento do termo “caipira” para ampliação do mercado consumidor. Como, entretanto, ambos os termos tinham, originalmente, a mesma significação, serão aqui, utilizados indistintamente. 2 As denominações “caipira”, matuto, caboclo, ou “sertanejo”, são usadas para designação geral do homem do campo, com pouquíssimas diferenças de significação. Entre a primeira

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Brasil para as “cidades grandes”, que se industrializavam e “prometiam”, assim,

novas e maiores possibilidades de trabalho. Dessa forma, embora tratando do

universo rural, o movimento de consolidação de uma forma musical que será

chamada “caipira” ou “sertaneja” se dará, de fato, na “cidade”. Segundo autores

como Waldenir Caldas (1977) e Rosa Nepomuceno (1999), a caracterização

como um gênero urbano marcaria tão-somente as referências a matrizes de um

outro universo, já folclorizado, e que trazia, portanto, para a cidade, uma certa

nostalgia daquele cotidiano, de um mundo agropastoril distante do local de sua

produção.

Na reprodução urbana do universo agropastoril, observa-se que a

representação do sertanejo é bastante idealizada. Essa idealização parece, em

parte, fruto da decepção do homem do campo com a vida na cidade e, por

outro lado, devida a uma necessidade mais geral de busca de uma identidade

nacional. Conforme afirma Nelson Werneck Sodré, na impossibilidade de,

romanticamente, se eleger o índio como representante do que era nacional,

transfere-se ao sertanejo, ao homem do interior, o dom de exprimir o Brasil

(1976, p. 323), em contraponto a um “outro” Brasil que se formava e que,

aparentemente, perdia sua face.

O que se pretende discutir, portanto, é que, ao contrário da imagem do

“jeca”, do “caipira” incauto estabelecida ao longo do século XIX, a

representação do homem do campo nas canções sertanejas, que começam a

ser divulgadas nos anos 1920, vai tratar das especificidades do universo rural a

partir de um outro ângulo, o da idealização, o da manutenção de sua identidade

em contraponto com a ausência dessa percebida no universo urbano. Tal

discussão será proposta, como inicialmente mencionada, a partir da análise

dos significados ali inseridos e dos temas abordados, em suas possíveis

significações, considerando a eventual reavaliação funcional da categoria

‘sertão’ (VIANNA, 2003: 82) no imaginário nacional, que provoca a expansão

do gênero.

(caipira) e a última (sertanejo), a diferença estabelecida por Walter de Sousa, por exemplo, é de que a primeira se refere ao rústico sedentário, mais ligado à agricultura e, a segunda, ao homem ligado à pecuária e devido a essa atividade, mais nômade, sendo, entretanto, ambas utilizadas para designar a figura fronteiriça do homem do campo, seja agricultor, seja ligado à pecuária, migrado para o universo urbano.

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Justificativa

A nossa identificação com esta manifestação da cultura popular, a

música caipira ou sertaneja, é uma questão de origem, de berço. Nascemos e

crescemos no meio rural, embalados pelo melodioso canto dos pássaros, em

contato direto com a natureza e desfrutando de tudo que ela podia nos

oferecer.

Esse contato, ou melhor, essa vivência com a terra criou em nós raízes

profundas e um forte envolvimento afetivo com as canções, ouvidas na época,

que retratavam a alma de um povo simples, da gente que trabalha na roça, no

cabo de uma enxada, de uma foice ou de um machado. Era essa a vida que

levávamos e, assim, fomos criados.

A afinidade intensa que temos com essas canções transcende razões

intelectuais/científicas. São razões afetivas mesmo, porque elas reproduzem o

nosso jeito, o nosso falar dos grotões, renegado durante um período e, depois,

valorizado por Cornélio Pires. Em nossas reuniões familiares, na cozinha, em

volta do fogão de lenha, ou no terreiro, sob a luz do luar, as canções eram

entoadas e nos transmitiam sentimentos, emoções, ternura, pureza. Elas

desencadeavam histórias e anedotas, que ouvíamos com gosto. Assim foi a

nossa infância: correndo pelos pequenos rios e córregos, subindo em árvores,

armando arapuca para pegar saracura, ouvindo "causos" até tarde da noite e

cantarolando as canções da época.

Um pouco depois, ao nos deslocarmos para o centro urbano em busca

de estudo e de uma profissão, pudemos, com certeza, chorar de saudades

daquela vida deixada para trás, tão singela e simples, mas carregada de

beleza, de naturalidade e de espontaneidade. No contato com os livros,

durante todos os anos de estudo na cidade (sem perder o contato com aquele

universo), tivemos o propósito de trabalhar com um tema que realmente se

identificasse conosco. Ao conhecer o livro de Antonio Candido, Os Parceiros do

Rio Bonito, não tivemos dúvida. Ali estava o que procurávamos: a história de

como vivem, trabalham, comem, rezam e se divertem os habitantes de uma

comunidade rural, no interior de São Paulo. Um grupo de autênticos caipiras,

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como nós, com um tipo de vida muito parecido. Então, diante disso, ousamos

resgatar e resguardar esse tesouro constituído pelo repertório da música

caipira que nunca se apagou dentro de nós.

A relevância do presente trabalho ancora-se, também, na constatação

de quão parcos são os estudos a respeito das conseqüências culturais

decorridas das transformações do país ocorridas na década de 1920. Nesse

período, inicia-se um acelerado processo de industrialização que colocará em

campos opostos o Brasil agrário e o Brasil urbano. Verifica-se, nesse confronto,

um movimento de valorização do universo agrário em contraponto à

desintegração do tecido social provocada pela vida na “cidade grande”, que se

manifestou claramente na canção popular e, sobretudo, no caso em análise, na

música sertaneja.

Dessa forma, o trabalho aqui desenvolvido pretende discutir as

possibilidades de expressão e/ou representação do homem do campo nas

letras das canções sertanejas, considerando sua relevância para o

estabelecimento e/ou manutenção de uma identidade deste homem em sua

(in)adaptação ao universo urbano. Tal representação é entendida, por um lado,

como possibilidade de (re)identificação deste homem com o universo rural do

qual se distanciou a partir da migração para as grandes cidades e, por outro,

como busca de integração do universo campesino ao urbano.

Para efetuar, portanto, a breve análise de obras que aqui se apresenta,

julga-se ser importante considerar o contexto de sua criação, o público ao qual

elas se dirigem e o tipo de conteúdo abordado. Nesse sentido, a escolha das

canções aqui analisadas se deu em função não apenas dos temas abordados –

representativos de questões recorrentes na relação entre os personagens ali

retratados e seu universo – quanto da enorme aceitação dessas músicas pelo

público ao qual são dirigidas. Essa expressiva repercussão popular pode ser

confirmada pela inserção da música sertaneja ou caipira em rádios e

programas de televisão, assim como pelos expressivos números relativos à

venda de cds de seus intérpretes.

Por outro lado, este estudo considera, ainda, o histórico do movimento

de migração ocorrido no Brasil, que virá a provocar o surgimento do gênero

musical aqui analisado, em suas conseqüências sociais para ambos os

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universos (urbano e rural). Esta abordagem se realiza sobretudo a partir das

reflexões propostas por Antonio Candido de Mello e Souza, em Os parceiros do

Rio Bonito (2003), e por Walter de Sousa, em Moda inviolada (2005).

Para além da forma como se enuncia o discurso3 nas canções

sertanejas e do histórico do movimento no Brasil, acreditou-se ser igualmente

importante apreciar os conteúdos abordados nas letras das canções, que

desvelam, em boa parte, o universo a ser analisado e o das representações

simbólicas disseminadas nas letras das canções.

Para essa análise, contemplamos o processo comunicacional no qual

se verificam os momentos de “produção, circulação, distribuição / consumo,

reprodução”, conforme é apresentado por Stuart Hall. Segundo este autor,

cada aspecto é articulado com o outro, mas mantém suas peculiaridades

(HALL, 2003, p. 387), e na qual se ressaltariam o viés econômico– relação

produção-distribuição-produção e a idéia de “produção” discursiva em que o

produto aparece em cada momento da articulação proposta anteriormente.

Consideramos, ainda, relevante, na análise aqui apresentada, a

questão do desenraizamento verificado no homem do campo que se projeta no

discurso da canção sertaneja. Como diria Néstor Garcia Canclini, passamos de

sociedades dispersas em milhares de comunidades rurais, com culturas

tradicionais, a uma trama majoritariamente urbana, que dispõe de uma oferta

simbólica heterogênea, renovada por uma constante interação com redes

nacionais e transnacionais de comunicação. Esse fenômeno explica o

sentimento de perda de identidade constante nas letras daquelas músicas,

auxiliando na reflexão a respeito das dificuldades desse homem

desterritorializado no universo urbano.

Nota-se, assim, que a situação de inadequação de que tratam as

canções deve-se, por certo, ao que Néstor Canclini chama de movimentos de

desterritorialização e reterritorialização. As mudanças operadas por esses

movimentos caracterizariam o deslocamento entre a modernidade e a pós-

3 O termo é aqui usado na acepção utilizada, por exemplo, por Luiz Carlos TRAVAGLIA, para quem o discurso é “o resultado das condições de produção que englobam tudo o que envolve e subjaz ao enunciado e com ele interage constituindo-o e sendo por ele constituído: falante, ouvinte, suas naturezas, conhecimentos, pressupostos, imagens que fazem de si mesmo [sic], do outro e daquilo de que falam, lugar, tempo, o assunto, inferências, objetivos, intenções, o lugar social de que falam e ouvem etc.” (1987, p. 127)

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-modernidade e teriam origem a partir da transnacionalização dos mercados

simbólicos e das migrações.

Para além desse sentimento de inadequação exposto nas letras das

canções, outros temas são discutidos. Nesse sentido, quanto ao estudo das

temáticas abordadas, há que se observar que vivemos o tempo do consumo. E

nesse tempo, ininterruptamente, consumimos os mais diferentes conteúdos

assimiláveis. Com relação aos produtos que são oferecidos, a busca de um

público variado requer uma variedade na informação para satisfazer todos os

interesses e gostos de modo a obter o máximo de consumo. Nesse processo,

estão disponíveis não apenas conteúdos considerados públicos, mas também

a vida privada é dada à degustação das platéias nas mais variadas formas de

comunicação.

Essa relação “oferta excessiva – consumo máximo” designa um dos

sinais da contemporaneidade, dado que, conforme diz Edgar Morin, a partir dos

anos 30, a comunicação de massa impõe seu caráter próprio, ao dirigir-se a

todos, abolindo barreiras de idade, sexo, classe social, identidade cultural. As

fronteiras culturais são eliminadas no mercado comum dos meios de

comunicação e, nesse sentido, a cultura industrial é o único grande terreno de

comunicação entre as classes sociais (1967, p.43).

Nessa indefinição de fronteiras, as manifestações culturais aproximam-

-se, inexoravelmente, tanto na forma de difusão quanto nos conteúdos

abordados. A indústria da cultura manifesta-se assim nos mais diferentes

meios: a literatura massifica-se e torna-se produto de mercado, o texto torna-se

imagem, e a música abre um leque cada vez mais amplo de alcance. Quanto

aos conteúdos, observa-se cada vez mais o entrelaçamento do público e do

privado nos temas abordados.

Dentre esses conteúdos – a se deter na análise da exposição de

situações que há pouco tempo seriam consideradas do domínio da privacidade,

ou da intimidade, e que se tornaram comuns, quais sejam (no caso do presente

projeto, as relações amorosas) – cabe lembrar que a música, hoje, não é

apenas ouvida nas rádios. Seus intérpretes se apresentam na TV para

divulgarem seu trabalho, e a TV, por sua vez, transforma essa apresentação

em um verdadeiro “show” ou “espetáculo”.

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Conforme John B. Thompson, este tornar público o seu sentimento ou o

de outrem, expondo-o a uma visibilidade máxima, é outra das características

de nosso tempo e contribui para a construção da “imagem do artista”. Assim,

também esse aspecto é abordado no trabalho aqui apresentado.

Metodologia

A metodologia de trabalho utilizada constou de três etapas. Na

primeira, uma pesquisa bibliográfica propiciou a leitura de artigos e obras que

pudessem auxiliar a estabelecer um referencial teórico para a construção das

reflexões ora propostas, bem como aqueles relacionados diretamente à música

popular.

A segunda etapa do trabalho abrangeu uma pesquisa em fontes

secundárias, na qual se realizou o levantamento de publicações periódicas

(jornais, revistas) que contivessem comentários e/ou críticas sobre a música

sertaneja, com objetivo de buscar mais informações sobre este objeto de

análise.

Na terceira, o contato direto com fontes primárias se efetivou na

apreciação das letras das canções sertanejas integrantes do corpus

selecionado. Essa apreciação se deu mediante a análise, por comparação,

entre as reflexões teóricas apresentadas e a representação do homem

sertanejo nas obras estudadas.

O corpus a ser analisado foi selecionado a partir de uma classificação

temática e inclui as seguintes canções: Cabocla Tereza (João Pacífico e Raul

Torres), É disso que o velho gosta (Gildo Campos e Berenice Azambuja),

Cavalo enxuto (Moacyr e Lourival dos Santos), retratando as diferentes vozes

da tradição; No Rancho Fundo (Ary Barroso e Lamartine Babo), Saudade de

minha terra (Goia e Belmonte), Caboclo na cidade (Dino Franco e Nhô Chico),

retratando o não-lugar do homem do campo; Ligação urbana (Bruno &

Marrone), Deixa eu te amar (Edson e Flávio), Ainda ontem chorei de saudade

(Moacir Franco), retratando os ecos da canção sertaneja na atualidade e

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Tristezas do Jeca (Angelino de Oliveira), uma "música emblema" da nostalgia

observada no homem do campo.

Estrutura

Para estabelecer o referencial teórico necessário, foram utilizadas

obras que convergiam para o ponto de vista desta análise, qual seja sua

análise contextual, do ponto de vista dos estudos culturais, além da análise de

seus temas e/ou conteúdos, realizada paralelamente ao estudo de cada

aspecto teórico.

Nesse sentido, inicia-se a dissertação resultante do trabalho

desenvolvido com uma reflexão teórica a respeito das representações

simbólicas disseminadas nas letras das canções, no processo de

(re)identificação do homem do campo desenraizado com o universo que o

cerca.

Na seqüência das reflexões sobre a inadequação do sertanejo no

universo urbano, é trabalhada a idealização de seu passado utópico, verificável

nas letras das canções e, com essas reflexões, encerram-se as discussões

teóricas sobre a situação do homem sertanejo e é iniciada a análise das letras

de algumas canções.

Antes de se passar à análise das letras propriamente ditas é, no

entanto, estabelecido um histórico do movimento de migração que as provoca,

em suas conseqüências sociais para ambos os universos. Outro aspecto

considerado relevante para as reflexões propostas é o estudo e análise das

temáticas abordadas, no sentido de buscar a compreensão de seu significado

para o público ao qual se dirigem as músicas em questão.

Com a busca de algumas conclusões pertinentes às reflexões

realizadas, encerra-se o trabalho ora apresentado.

Com o intuito de se atingir o objetivo geral, o desenvolvimento do

trabalho se dará a partir da subdivisão do mesmo em objetivos específicos,

sendo estes discutir a construção de uma identidade nacional a partir da

representação do universo agrário na canção sertaneja; refletir sobre os

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significados subjacentes às letras das canções; estudar e descrever os temas

abordados nas canções analisadas a partir de sua exposição nas letras de

algumas dessas canções e descrever o processo de identificação social do

sertanejo em contraponto com a cultura e a sociedade urbanas, tomando como

base sua representação nas letras das músicas analisadas.

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CAPÍTULO I – O “NÃO-LUGAR” DO HOMEM DO CAMPO NO MEIO URBANO

(...) o horizonte do camponês deserdado de terra e do cuidado dos animais foi ampliado. Acenaram-lhe com a possibilidade da emigração fácil para os grandes centros urbanos, tornados carentes de mão de obra barata. Os pobres são anacrônicos de outra forma, agora no contraste com o espetáculo grandiloqüente do pós-moderno, que os convocou nas suas terras para o trabalho (...). Esse novo expediente do capital (...) ancora o camponês em terras estrangeiras, onde seus dependentes pouco a pouco perderão o peso e a força da tradição original (SANTIAGO, 2004, p. 51).

No desenrolar da história da humanidade em geral, a familiaridade do

homem com a Natureza vai sendo atenuada, à medida que os recursos

técnicos se interpõem entre ambos, e que a subsistência não depende mais de

maneira exclusiva do meio circundante.

Como observa Antonio Candido (2003, p. 221), o meio artificial,

elaborado pela cultura, cumulativo por excelência, destrói as afinidades entre

homem e animal, entre homem e vegetal. Em compensação, dá lugar à

iniciativa criadora e a formas associativas mais ricas, abrindo caminho à

civilização. Assim, a situação presente se caracteriza pelo desligamento

relativo em face do meio natural imediato, da aceleração do ritmo de trabalho,

da maior dependência do campo em relação aos centros urbanos.

Tudo isso não poderia deixar de repercutir na esfera da cultura, em que

podemos notar uma reelaboração de técnicas, práticas e conceitos. Nesse

sentido, as novas necessidades têm grande importância na configuração da

mudança de cultura, pois esta se apresenta, sob certos aspectos, como

restrição, ampliação ou redefinição de necessidades.

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O “caipira” e as transformações de seu modus vivendi no Brasil

Se considerarmos a posição e o papel dos indivíduos e as suas

relações uns com os outros, notaremos no caipira brasileiro atual sintomas de

acentuada mudança. Nas fases iniciais da sua formação como tipo humano,

havia relativa indiferenciação de papéis e, por conseguinte, limitação dos

critérios para definir posição social. A incorporação à economia capitalista

altera as posições na estrutura tradicional e possibilita a definição de outras,

fora dela.

Conforme Darcy Ribeiro, a rápida expansão das culturas de café no

sudeste brasileiro faz deslanchar um processo de reordenação social. Nessa

nova situação, primeiramente,

o capira é compelido a engajar-se no colonato, como assalariado rural, ou refugiar-se na condição de parceiro, transferindo-se para as áreas mais remotas ou para terras cujos proprietários não têm recursos para explorar os novos cultivos (RIBEIRO, 1995: p. 384-385).

Gradativamente, a incorporação da economia capitalista impõe

circunstâncias ainda mais restritivas ao caipira, obrigando-o a optar pelo

engajamento como assalariado rural ou a procurar terras muito distantes e

atrasadas para manter uma precária autonomia como meeiro. No final do

século XIX, o problema se agrava com a chegada ao Brasil de milhares de

imigrantes europeus e japoneses para substituírem o negro no trabalho das

fazendas, em condições inaceitáveis para a altivez do caipira.

Darcy Ribeiro reporta-se à figura do Jeca Tatu, caricatura que Monteiro

Lobato constrói para descrever o caipira totalmente despreparado para

conquistar o título de propriedade de sua terra. Anos mais tarde, Lobato reviu

sua posição ao compreender que o caipira era sim uma vítima de um

“traumatismo cultural” (...) marginalizado pelo despojo de suas terras, resistente

ao engajamento no colonato e ao abandono compulsório de seu modo

tradicional de vida (RIBEIRO, 1995: p. 387).

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O êxodo do campo para a cidade

Assim, a mobilidade de hoje conduz, muitas vezes, ao abandono

completo dos gêneros tradicionais de vida, quer levando o caipira ao trabalho

em zonas de agricultura moderna, onde se incorpora aos novos padrões, quer,

sobretudo, incorporando-o ao proletariado urbano. O pessoal das indústrias,

dos transportes rodoviários e ferroviários, da construção civil, das obras

públicas, é, em grande parte, recrutado no seu meio. Da mesma maneira, nele

se recrutam as empregadas domésticas e os empregados em toda sorte de

atividades, qualificadas ou não, requeridas pelos centros urbanos (CANDIDO,

2003, p. 234).

O que origina essa transformação são, na realidade, as dificuldades

que começam a ser enfrentadas na manutenção da vida campesina tal como

era até fins do século XIX. Essas dificuldades foram agravadas pela derrocada

da oligarquia rural, provocada pela decadência de muitas fazendas, sobretudo,

as de café.

Assim, contingentes passaram a migrar para os grandes centros, a

capital federal ou São Paulo, onde a industrialização acontecia mais

rapidamente. Isso reforça o quadro de diáspora do interior do país para os

centros urbanos. Os saídos da zona rural para “arriscar a sorte” acalentavam a

nostalgia da vida tranqüila na roça, longe dos “desaforos e da má educação” do

povo da cidade. Nesse sentido, como diria Walter de Sousa

esse apego ao “paraíso perdido”, um arquétipo universal tão arraigado, tornava aquele estrato social, acostumado às instâncias fronteiriças, um público fiel da música caipira, já tornada popular pelos processos de adaptação à urbanidade e aos meios técnicos de reprodução (2005, p. 114).

Nesse contexto, observa-se a existência de uma espécie de

saudosismo transfigurador – uma verdadeira utopia retrospectiva, se coubesse a expressão contraditória. Ele se manifesta, é claro, sobretudo nos mais velhos, que ainda tiveram contato com a vida tradicional e podem compará-la com o presente; mas ocorre também nos moços, em parte por influência daqueles (CANDIDO, 2003, p. 244).

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e consiste em comparar, a todo propósito, as atuais condições de vida com as

antigas; as modernas relações humanas com as do passado, o que acaba

tornando toda representação das antigas condições de vida “colorida” com as

tintas desta memória ancestral.

O não-lugar do sertanejo urbano Para discutir a questão do desenraizamento verificado nesse homem

do campo que se projeta no discurso da canção sertaneja, tomaremos algumas

das reflexões expostas por Néstor Garcia Canclini. Canclini explica que a perda

da identidade do homem do campo se dá na passagem de sociedades

dispersas em milhares de pequenas comunidades rurais – com culturas locais

e homogêneas, e em algumas regiões com fortes raízes indígenas, com pouca

comunicação com o resto de cada nação – a uma trama majoritariamente

urbana.

A questão da substituição dos mass media pela realidade justifica-se,

segundo o mesmo Canclini, a partir dos processos descontínuos de

constituição da cultura urbana que requerem, também, observar os processos

(combinados) de descolecionamento e desterritorialização. Para esse autor, a

cultura pós-moderna deixa claro o desvanecimento das coleções e do

estabelecimento de classificações que distinguiam antes o culto do popular e

ambos do massivo. As culturas já não se agrupam em grupos fixos e estáveis

e, com isso, desaparece a possibilidade de se ser culto conhecendo o

repertório das “grandes obras”, ou de se ser popular porque se domina o

sentido dos objetos e mensagens produzidos por uma comunidade mais ou

menos fechada (uma etnia, um bairro, uma classe). As novas formas de

coleção reproduzem e permitem um repertório mesclando o culto e o popular, o

nacional e o local.

Para Canclini, há, além disso, uma proliferação dos dispositivos de

reprodução que não podemos definir como cultos ou populares. Neles se

perdem as coleções, desestruturam-se as imagens e os contextos, as

referências semânticas e históricas que amarravam os sentidos.

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Segundo esse autor, a coexistência desses usos contraditórios revela

que as interações das novas tecnologias com a cultura anterior as torna parte

de um processo muito maior do que aquele que elas desencadearam ou

manejam. Uma dessas transformações é a reorganização dos vínculos entre

grupos e sistemas simbólicos : os descolecionamentos e as hibridações já não

permitem vincular rigidamente as classes sociais com os estratos culturais.

Com isso, não se quer dizer que essa circulação mais fluida e complexa tenha

dissolvido as diferenças entre as classes, ele apenas afirma que a

reorganização dos cenários culturais e os cruzamentos constantes das

identidades exigem investigar de outro modo as ordens que sistematizam as

relações materiais e simbólicas entre os grupos.

Nesse sentido, segundo Canclini, a descentralização das empresas, a

simultaneidade planetária da informação e a adequação de certos saberes e

imagens internacionais aos conhecimentos e hábitos de cada povo; a

disseminação dos produtos simbólicos pela eletrônica e pela telemática; o uso

de satélites e computadores (interação digital) favorecem os projetos de

reterritorialização e a dissolução de fronteiras. Dessa forma, os migrantes

assumem todas as identidades disponíveis, de modo a se agregar ao novo

universo. A esse processo de desterritorialização pode-se aplicar uma frase

que fica bem em um migrante tanto quanto num jovem roqueiro, a de que

nosso mais profundo sentimento de geração é o da perda que surge da partida

(Apud CANCLINI, 1997, p. 324).

Assim, os conceitos de descoleção e desterritorialização se relacionam

com reflexões utópicas e com práticas de artistas e intelectuais, o que faz com

que as práticas artísticas, agora, fujam de paradigmas consistentes. Dessa

forma, o pós-modernismo pode ser definido como uma co-presença tumultuada

de todos: o mercado dispersa e ressemantiza o valor da obra de arte e do

artesanato ao vender esses bens a consumidores heterogêneos.

Ainda segundo Canclini, uma visão mais ampla permite ver outras

transformações econômicas e políticas, apoiadas em transformações culturais

de longa duração, que dão uma estrutura diferente aos conflitos. Os

cruzamentos entre o culto e o popular tornam obsoleta a representação polar

entre ambas as modalidades de desenvolvimento simbólico e relativizam,

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portanto, a oposição política entre hegemônicos e subalternos, concebida como

se se tratasse de conjuntos totalmente diferentes e sempre confrontados.

Nesse sentido, observa-se que as hibridações culturais e políticas

passam a se disseminar na esfera pública por meios massivos de comunicação

(os mass media) que proporcionam uma pseudoconvergência, da cultura e dos

grupos sociais, devido à eficácia simbólica de representação desses meios que

definem as relações entre o campo cultural e o político.

Dessa forma, a busca de mediações, de vias diagonais para gerir os

conflitos, dá às relações culturais um lugar proeminente no desenvolvimento

político. Assim, para Canclini, quando não conseguimos mudar o governante,

nós os satirizamos, nas danças do carnaval, no humor jornalístico, nos grafites.

Diante da impossibilidade de construir uma ordem diferente, erigimos nos

mitos, na literatura, nas histórias em quadrinhos e, em nosso caso específico,

nas canções, não apenas desafios mascarados, mas todo um passado.

Quando a volta ao passado trai a memória O ferramental teórico para a reflexão a respeito da idealização daquele

universo nos é dado pelos estudos de Fredric Jameson, que afirma que a

produção estética do pós-modernismo está integrada à produção de

mercadorias, sendo uma de suas questões centrais a mercantilização e o

fetichismo das mercadorias (JAMESON, 1997, p. 29).

Ocorre que com o despontar do sujeito pós-moderno –

desaparecimento do sujeito individual – há um esmaecimento do afeto na

cultura pós-moderna, seguido da estranheza e da falta de expressão. Em uma

lógica esquizofrênica (que poderíamos entender como desconexão da cadeia

de significantes), a fascinação é um indispensável e eterno “presente” e os

sentimentos são substituídos por intensidades.

Nesse sentido, vende-se a imagem de um presente utópico em um

outro universo que não o urbano, através da fetichização da volta ao ponto de

origem como solução para os males pelos quais passa esse homem

desterritorializado.

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Não necessariamente, entretanto, a efetiva volta ao lugar de origem se

revelará como a solução sonhada...

A personagem descrita em “No Rancho Fundo” (Ary Barroso e

Lamartine Babo), por exemplo, já passou pela experiência do regresso, o que

não lhe garantiu, todavia, a felicidade lembrada pelo narrador de “Caboclo na

Cidade”, ou almejada pelo de “Saudade de minha terra”. Ao contrário, para o

sertanejo que voltou ao lugar no qual nasceu, estavam reservadas “a dor e a

saudade”,

Porque o moreno Vive louco de saudade Só por causa do veneno Das mulheres da cidade.

Observa-se, assim, que o processo de (des)identificação do sujeito

sertanejo se dá de forma completa: se, no universo urbano, ele sonha com o

campo ou mantém viva a memória desse campo ao qual não mais voltará ou

que certamente não é mais – mesmo quando esta volta é projetada – o

universo deixado para trás, no retorno ao local de partida, esse sujeito se

revela também contaminado pelo que deixou ou viveu na cidade.

Nesse sentido, retomamos o raciocínio desenvolvido por Jameson,

para o qual, no mundo pós-moderno, há uma mudança da patologia cultural,

em que a alienação e a ansiedade do sujeito são deslocadas pela própria

fragmentação e descentramento desse sujeito. Por essa razão, o presente é

abordado através da linguagem artística do simulacro, ou do pastiche do

passado estereotípico, o que empresta à realidade presente o encanto e a

distância de uma miragem reluzente.

Ocorre, entretanto, que essa mesma modalidade estética hipnótica

funciona como elaboração de um sintoma do esmaecimento de nossa

historicidade e/ou de nossa possibilidade de vivenciar e de experimentar a

história ativamente. Ou seja, é exatamente pela perda de identidade, pela

fragmentação, pela impossibilidade de alteração do cotidiano, pelo

desenraizamento do homem contemporâneo – sobretudo aquele que, saído do

universo agropastoril, se urbaniza – que se faz necessária a fetichização do

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presente e a “venda” de um passado, ou de um “universo paralelo” utópico,

que passa a ser mecanismo de compensação, ou de mediação, para esta

situação de “entre-lugar” vivida pelo homem do campo em seu embate com o

mundo pós-moderno.

A “fala” sertaneja e seus significados Assim, a reprodução do sertanejo e do universo agropastoril, tanto nas

letras das músicas caipiras quanto em outras formas, é bastante idealizada. E

se essa idealização é, de uma parte, efetivamente o fruto da decepção do

homem do campo com a vida na cidade, ela também se explica por uma

necessidade mais geral de busca de uma identidade nacional. São, então, as

possibilidades de mediação entre esse homem, que passa a ser um “ideal”

escolhido de brasilidade, e o universo urbano que o cerca, o assunto de que

trataremos aqui. Para melhor compreender a absorção dos significados e mensagens,

disseminados nas letras das canções sertanejas, entretanto, é necessário

considerar a classificação do processo comunicacional no qual se verificam os

momentos de “produção, circulação, distribuição / consumo, reprodução”,

apresentada por Stuart Hall.

Para esse autor, o modelo “emissor / mensagem / receptor” do

processo comunicativo tem sido criticado pela sua linearidade. Por essa razão,

Hall apresenta a proposta de uma articulação mais complexa desses

momentos distintos, mas interligados, o que seria pensar o processo como uma

“complexa estrutura em dominância”, em que cada aspecto é articulado com o

outro, mas mantém suas peculiaridades (HALL, 2003, p. 387). Há que se

ressaltar, também, nesse sentido, a importância do aspecto econômico –

relação produção-distribuição-produção – do processo e a idéia de “produção”

discursiva em que o produto aparece em cada momento da articulação

proposta anteriormente.

Concretamente, o “objeto” dessas práticas é composto por significados

e mensagens sob a forma de signos-veículos que são, por exemplo, o jornal, a

revista, a TV, a mídia em geral. Assim, o processo de comunicação se

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estabelece pelo lado da produção material (meios), mas é sob a forma

discursiva que a circulação do produto se realiza, daí a necessidade da

produção de sentidos, do entendimento por parte do público, para que o

consumo se realize. Dessa forma, devemos reconhecer que a forma discursiva

da mensagem tem uma posição privilegiada na troca comunicativa (em relação

à circulação) e que os momentos de “codificação” e “decodificação” são

momentos determinados.

Considerando, então, que, ainda segundo Hall, a “forma-mensagem” é

a necessária “forma de aparência” do evento na sua passagem da fonte para o

receptor, observamos que

a transposição para dentro e para fora da ‘forma-mensagem’ (ou o modo de troca simbólica) não é um ‘momento’ aleatório, que nós podemos considerar ou ignorar conforme nossa conveniência. A ‘forma-mensagem’ é um momento determinado; embora, em outro nível, compreenda apenas os movimentos superficiais do sistema de comunicações e requeira, em um outro estágio, integração nas relações sociais do processo de comunicação como um todo, do qual forma apenas uma parte (HALL, 2003, p. 389).

Nesse sentido, a codificação deve passar pelas regras discursivas da

linguagem para que seu produto seja “concretizado”, o que inicia, segundo Hall,

um outro momento diferenciado, no qual as regras formais do discurso e

linguagem estão em dominância. Antes que essa mensagem possa ter um

“efeito”, satisfaça uma “necessidade” ou tenha um “uso”, deve primeiro ser

apropriada como um discurso significativo e ser significativamente

decodificada. É esse conjunto de significados decodificados que, “tem um

efeito”, influencia, entretém, instrui ou persuade, com conseqüências

perceptivas, cognitivas, ideológicas ou comportamentais complexas.

Isso ajuda a esclarecer a confusão na distinção entre “conotação”

(sentidos menos fixos, associativos) e “denotação” (sentido literal de um signo),

dado que, para Hall, essa distinção é somente analítica e não deve ser

confundida com as distinções do mundo real. Assim, poucas vezes, os signos

organizados em um discurso significarão somente seus sentidos “literais”, ou

terão um sentido quase universalmente consensual. Em um discurso de fato

emitido, a maioria dos signos combinará seus aspectos denotativos e

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conotativos. É no nível conotativo do signo que as ideologias4 alteram e

transformam a significação, mas a presença da ideologia se faz sentir tanto no

nível conotativo quanto no denotativo.

Esses códigos são os meios pelos quais a ideologia é levada à sua

significação em discursos específicos. Os signos remetem aos “mapas de

sentido” e esses “mapas da realidade social”, além de distintos, contêm

significados sociais, práticas e usos, poderes e interesses específicos.

Tal polissemia não deve, entretanto, ser confundida com pluralismo,

uma vez que toda sociedade impõe suas classificações (uma ordem cultural

dominante) do mundo social, cultural e político, embora essa ordem cultural

dominante não seja nem unívoca nem incontestável. Nesse sentido, vale

mencionar ainda o conceito de “estrutura dos discursos em dominância”,

proposto por Stuart Hall, para quem as diferentes áreas da vida social parecem

ser dispostas dentro de domínios discursivos hierarquicamente organizados

através de sentidos dominantes ou preferenciais (HALL, 2003, p. 396).

Nesse sentido, para o autor,

A questão da “estrutura dos discursos em dominância” é um ponto crucial. As diferentes áreas da vida social parecem ser dispostas dentro de domínios discursivos hierarquicamente organizados através de sentidos dominantes ou preferenciais. Acontecimentos novos, polêmicos ou problemáticos que rompem nossas expectativas ou vão contra os “construtos do senso comum”, o conhecimento “dado como certo” das estruturas sociais, devem ser atribuídos ou alocados aos seus respectivos domínios discursivos, antes que “façam sentido”. A maneira mais comum de “mapeá-los” é atribuir o novo a algum domínio dos “mapas existentes da realidade social problemática”. Dizemos dominante e não “determinado”, porque é sempre possível ordenar, classificar, atribuir e decodificar um acontecimento dentro de mais de um “mapeamento”. Mas dizemos “dominante” porque, de fato, existe um padrão de “leituras preferenciais”, e ambos – dominante e determinado – têm uma ordem institucional / política / ideológica impressa neles e ambos se institucionalizaram. Os domínios dos “sentidos preferenciais” têm, embutida, toda a ordem social enquanto conjunto de significados, práticas e crenças: o conhecimento cotidiano das estruturas sociais, do “modo como as coisas funcionam para todos os propósitos práticos nesta cultura”; a ordem hierárquica

4 O termo é aqui utilizado em sua acepção dicionarizada de um conjunto articulado de idéias, valores, opiniões e crenças, que expressam e reforçam as relações que conferem unidade a determinado grupo social (HOLANDA, Aurélio Buarque, 1999, p. 1072).

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do poder e dos interesses e a estrutura das legitimações, restrições e sanções (HALL, 2003, pp. 396-397).

Ou seja, para que algo faça sentido, deve ser relacionado aos domínios

dos “mapas existentes da realidade social problemática” que conjugam os

“sentidos preferenciais” e que variam de acordo com aspectos culturais, sociais

e políticos.

A partir dessas considerações, observamos que, no universo aqui

analisado, a canção sertaneja “faz sentido” para suas platéias por estar

relacionada a determinados “mapas da realidade social”, entre os quais

identificamos, por exemplo, o grupo formado pelo homem do campo

desenraizado e buscando uma (re)identificação com o universo que o cerca.

A expressão da “deslocalização” nas letras das canções

É na esperança de ascensão econômica que o sertanejo abandona o

campo. A dura realidade do meio urbano, entretanto, para além da não-

-realização do “sonho”, possibilita para ele a idealização do universo deixado

para trás. O tema da nostalgia do passado, da perfeição da vida anterior, será,

assim, recorrente no discurso da canção sertaneja.

Nesse sentido, letras como “Caboclo na Cidade”, de Dino Franco e Nhô

Chico (interpretação de Chitãozinho e Xororó), ou “Saudade de minha terra”, de

Goia e Belmonte, gravada por Sérgio Reis, tratarão do tema da nostalgia do

campo. E, se cada uma fala da situação do homem do campo a partir de um

diferente ponto de vista, ambas trarão para o centro do discurso a

desterritorialização deste homem e sua inadequação ao universo do qual faz

parte. Passamos, então, a uma breve aplicação desse conceito nas letras

dessas canções.

A letra de “Caboclo na Cidade”, por exemplo, retrata a insatisfação do

sertanejo com sua mudança para o “grande centro” (“Como eu tô

arrependido”), sua “inadaptação” com o espaço e o povo da cidade Aqui tudo é diferente

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Não me dô com essa gente Penso até que a cidade Não é lugar de caboclo.

e sua constatação de que a vida na cidade não lhe trouxera nenhuma

realização:

Quando eu vendi o sítio

Pra vir morar na cidade

Seu moço, naquele dia

Eu vendi minha família

E a minha felicidade.

A mesma inadequação pode ser constatada em “Saudade de minha

terra”, que se inicia com o lamento do sertanejo em viver na cidade:

De que me adianta viver na cidade Se a felicidade não me acompanhar Adeus, paulistinha do meu coração Lá pro meu sertão, eu quero voltar.

Não serão as mesmas, entretanto, as reações dos protagonistas ante

essa sensação de inadequação ao universo urbano. O primeiro – em ações

que comprovam a afirmação de Néstor Canclini de que os migrantes decidem

assumir todas as identidades disponíveis – indica as transformações ocorridas

em sua família na tentativa de adaptação ao mundo citadino, como podemos

comprovar nas estrofes seguintes,

Até mesmo a minha “véia” Já tá mudando de idéia Tem que ver como passeia Vai tomar banho de praia Tá usando minissaia E arrancando a sobrancelha Nem comigo se incomoda Quer saber de andar na moda Com as unhas todas vermelhas Depois que ficou madura Começou usar pintura Credo em cruz, que coisa feia

ele, ao mesmo tempo, assume sua impossibilidade de retorno para o universo

original, como se observa a seguir:

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Voltar pra Minas Gerais Sei que agora não dá mais Acabou o meu dinheiro.

O narrador de “Saudade de minha terra”, por sua vez, informa a seu

ouvinte que

Pra minha mãezinha já telegrafei E já me cansei de tanto sofrer Nesta madrugada estarei de partida Pra terra querida que me viu nascer.

Essa terra é descrita pelo narrador como o lugar ideal onde, não

apenas, ele “Aos domingos ia passear de canoa / Nas lindas lagoas de águas

cristalinas”, como também ele ia a festanças “onde tinha dança e lindas

meninas” e sua memória, presente ao longo de toda a letra da canção, é o que

consola o sertanejo em seu “exílio” na “cidade grande”. Essa mesma memória

é o que o embala quando finalmente informa estar de partida para a terra que o

viu nascer:

Já ouço sonhando o galo cantando O nhambu piando no escurecer A lua prateada clareando a estrada A relva molhada desde o anoitecer Eu preciso ir pra ver tudo ali Foi lá que nasci, lá quero morrer

Esse mundo idealizado, entretanto, não necessariamente será o que o

“caboclo” encontrará em seu regresso: vale ressaltar que, hoje, grande parte do

meio rural está conectada diretamente com as inovações modernas. Houve

uma mudança “quase” radical de pensamento e de gostos dos habitantes da

zona rural, através de interações comerciais com as cidades e através da

recepção da mídia eletrônica nas casas rurais. Efetivamente, na atualidade, há

poucas amostras dos caboclos “puros” e “genuínos” como os das letras das

canções.

Nesse sentido, voltando ao referencial teórico de que nos munimos

para essa reflexão, constatamos que a coexistência cultural de várias

identidades proporciona fragmentações cada vez mais difíceis de totalizar.

Assim, a sociabilidade e a interação dos diferentes modos de organização tanto

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da esfera pública quanto da privada são proporcionadas pela mídia que simula

uma integração dos imaginários, tanto urbano quanto sertanejo, desagregados.

Ou seja, acompanhando o pensamento de Néstor Canclini, observa-se que, no

caso em questão – o da canção sertaneja – os mass media buscam substituir,

de forma espetacular, outros processos de unificação e criam a ilusão de que

grupos, antes reunidos em sindicatos, reuniões e assembléias, conforme suas

identidades, possam ser representados.

A situação de inadequação de que tratam as canções deve-se, por certo, ao que Néstor Canclini chama de movimentos de desterritorialização e reterritorialização, que caracterizariam o deslocamento entre a modernidade e a pós-modernidade, e que teriam origem a partir da transnacionalização dos mercados simbólicos e das migrações.

Nesse sentido, também a partir dos estudos de Néstor Canclini,

podemos afirmar que o discurso explicitado nas letras das canções sertanejas

insere-se na busca de uma mediação ou, como quer aquele autor, de uma via

diagonal para gerir o conflito provocado pelo deslocamento do homem do

campo para a cidade. É por essa “via diagonal” que, diante da impossibilidade

de esse homem construir uma ordem diferente no novo ambiente, ou mesmo

de se adaptar ao novo universo, erige-se o mito tanto do sertanejo quanto de

seu mundo original, através da construção de uma identidade utópica para ele

e de um passado ideal vivido num universo também utópico.

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CAPÍTULO II – A TRAJETÓRIA HISTÓRICA DA CANÇÃO SERTANEJA

(...) a música caipira é um fato de nossa vida, um valor cultural inegável, chegando a ser vista “como legítima representante da faixa culta na canção brasileira”. (...) a música caipira, sobretudo a viola caipira, vive agora uma espécie de renascimento, de revalorização e de mudança (RIBEIRO, 2006, pp. 24-25).

Embora tenhamos aqui ininterruptamente utilizado o termo “caipira”, na

realidade, não se sabe ao certo sequer a origem dessa palavra. Amadeu

Amaral, no seu estudo sobre o dialeto caipira, “traduz” o vocábulo como

“habitante da roça, rústico” (Apud SOUSA, 2005, p. 21), mas a primeira

pesquisa apurada sobre o universo “caipira” vem de Cornélio Pires, o primeiro

estudioso a levar a cultura caipira ao centro urbano. Segundo Walter de Sousa,

em Musa caipira (1912), aquele autor busca, inclusive, as raízes do termo e

vai encontrar o sinônimo em tupi-guarani para “aldeão”, que é capiâguara. A

raiz dessa palavra, caí, significa o gesto do macaco escondendo o rosto. Ela

aparece também em capipiara, “o que é do mato”, e em capiã, “dentro do

mato”. Enfim, aparece em caapi, “trabalhar na terra” e em caapiára, “lavrador”.

donde, enfim, redundaria em “caipira” (Idem, ibidem), nomenclatura dada, de

modo geral, ao universo aqui analisado.

O êxodo rural

Se o não-lugar do homem contemporâneo pode ser observado em

todos os estratos socioculturais, o desenraizamento do homem do campo em

nosso país tem um momento de início claro. Está demarcado pelo começo do

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processo de industrialização que atrairá imensos grupos do interior para os

grandes centros urbanos.

Esse processo, iniciado nos anos 1920, se estenderá pelos anos

subseqüentes e terá seu auge nos anos 1950. Nesse período, adota-se um

modelo desenvolvimentista externo que propiciará ao país a instalação de

novas formas comunicacionais e de novas relações entre os centros urbanos e

agrícolas.

Dessa forma, o que se observa é que o desenvolvimento do

capitalismo no Brasil, acompanhado pela industrialização e pela urbanização,

especialmente ao longo do século XX, provocou o rompimento do “equilíbrio

ecológico e social” do homem do campo, resultando na desintegração de sua

cultura, embora se perceba que inúmeros aspectos dessa cultura ainda

sobrevivem na memória de boa parcela da população brasileira (ZAN, 2007,

p.2).

O “caipira” como veículo de formação de uma identidade nacional

Antes de Cornélio Pires publicar a Musa Caipira, ou da polêmica do

Jeca Tatu (1918) e de O Dialeto Caipira de Amadeu Amaral (1920), a figura

caricatural do caboclo – ou sertanejo, como era chamado no sentido genérico

de matuto – já servia, entretanto, de matéria-prima à literatura do século XIX

(SOUSA, 2005, p. 63). Aparentemente, o primeiro autor brasileiro a transformá-

-lo em personagem foi o autor teatral Martins Pena (1815 –1848), cujas

comédias O Juiz de Paz da Roça (escrita em 1833), A família e a festa na roça

(18...), Um sertanejo na Corte (entre 1833 e 1837) e O Diletante (de 1844),

tinham todas temática rural.

Nesse mesmo sentido, também no teatro, a partir de 1914, as revistas

começaram um movimento cultural de defesa dos valores nacionais, iniciando

uma grande safra de peças com temática caipira. Nas trilhas das peças de

Martins Pena, autores iniciantes passaram a utilizar o caipira como

personagem em suas peças. Assim, por volta de 1914, houve um grande

despontar de autores nacionais e, em 1920, por exemplo, a Companhia Arruda

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levava a São Paulo autênticas duplas caipiras à maneira de Cornélio Pires,

uma década antes.

Mazzaropi – O Jeca imagético

Da mesma forma que no teatro, também no cinema, o caipira será

representado através, sobretudo, do personagem do Jeca criado por Amácio

Amadeu Mazzaropi. Herdeiro direto da figura do pícaro, característica da

literatura espanhola, também o Jeca criado por Mazzaropi ver-se-á confrontado

com situações-problema das quais se livra por meio de artimanhas.

Por outro lado, esse popular personagem das telas brasileiras confirma

a imagem de desenraizamento apresentada pelas letras das canções de

temática caipira. As situações-problema que tem de resolver, de modo geral,

tratam do confronto entre a “modernidade” (ou uma pseudo-modernidade)

urbana e o modo de vida e valores do campo.

Nesse sentido, para Jesana Pereira,

o Jeca-Mazzaropi é uma síntese audiovisual das formas de representação do caipira, desde a iconografia de almanaques de farmácia à tradição teatral e circense: indolente, simples e conformado, mas também astuto, manhoso e valente quando necessário, além de honesto, sempre. Mas, nos seus dramas, seu ‘Jeca’ é uma contraposição, sob alguns aspectos, daquelas formas de representação. Ele vive no liame do contraste entre o mundo moderno-urbano e conservador-rural (2003, p. 104).

Assim, da mesma forma que se observa nas canções, também nos

filmes de Mazzaropi, o contraste entre os mundos “moderno-urbano e

conservador-rural” se dará em forma de dura crítica ao primeiro, e se fará

através da exaltaçao do homem do campo, tanto de sua engenhosidade quanto

de seus valores morais.

Personagem de grande sucesso durante décadas, o Jeca de

Mazzaropi, vem, assim, juntar-se e confirmar o modelo do caipira já expresso,

desde os anos 1910, nas canções sertanejas.

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Ações e transformações do gênero musical sertanejo

Os esforços de Cornélio Pires lhe valem um espaço marcante na

década de 20. Tanto assim que esse pioneiro, ao participar das comemorações

do centenário da Independência, introduziu a cultura caipira no processo de

formação de uma identidade cultural brasileira – o movimento político de 1922

desembocou na revolução de 1930 (SOUSA, 2005, p. 92).

Desde o movimento de 1930 até 1956, o país, envolto em revoluções,

guerra, autoritarismo, ainda não havia testemunhado um mandato completo de

um presidente civil. Mesmo Vargas, que dotou o país de uma boa infra-

-estrutura, propiciando um desenvolvimento baseado na produção siderúrgica

(CSN) e a criação da Petrobrás, acaba suicidando-se antes do final do

mandato, em 1954.

Assim, a revolução rompe a tensa malha urdida pelas práticas políticas

oligárquicas que dava suporte à República Velha. O movimento se converte,

historicamente, num marco político e socioeconômico, pois a partir do momento

em que a elite rural brasileira perde sua hegemonia, inicia-se a ascensão dos

movimentos de urbanização e industrialização do país. Isso, embora a força de

trabalho dessa elite cafeeira permanecesse indiferente aos acontecimentos.

É, todavia, a partir desse marco que começa a surgir um nacionalismo

populista que, em se tratando de formalização de uma cultura urbana, busca

legitimidade na essência das culturas populares. Acontece, então, a

consolidação no país da tecnologia de reprodução cultural em que o rádio e a

indústria fonográfica se incluem (Idem, p. 93).

Devido à presença das tropas revolucionárias nas ruas do Rio de

Janeiro, entretanto, os espaços musicais se tornaram raros, as gravadoras

diminuem, em muito, as suas atividades e as rádios passam a se ocupar mais

com os acontecimentos da época. Dessa forma, o movimento musical

transfere-se para São Paulo, onde as gravadoras e as rádios mantiveram suas

atividades, mesmo em meio às adversidades políticas.

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O impulso através do rádio

Por volta de 1924, surge, em São Paulo, a SQ-B1, Rádio Cruzeiro do

Sul. Pouco depois desaparece para ressurgir em 1927, com novo prefixo, SQ-

BA. Houve novo fracasso. Somente em 1929, através do grupo Byington

(Columbia), sob a direção de Wallace Downey, a Cruzeiro do Sul se firma,

alicerçada em esquema inédito até então: o patrocínio da Atlantic Motor Oil,

que custeou as curtas demonstrações do período de experiência da emissora.

Ainda em 1929, ela passa a ser PR-AO e, logo depois, PR-B6. Com

sua homônima do Rio de Janeiro, é criada a primeira rede radiofônica do Brasil:

a rede Verde-Amarela. Em sua inauguração, além de diversos espetáculos,

entre eles apresentações humorísticas com personagens caipiras, foi

interpretada a música "Coração", de Marcelo Tupinambá, com letra de

Ariovaldo Pires.

Nessa época, São Paulo contava com três emissoras de rádio: a

Cruzeiro do Sul, a Record e a Educadora (mais tarde, Gazeta). Elas,

juntamente com os teatros e circos, transformariam centenas de intérpretes

musicais, que se apresentavam em bares, em artistas do microfone. Assim, na

esteira dessa tendência, seguiram os compositores, músicos e instrumentistas,

que através desse tipo de divulgação, associado à evolução das gravações em

disco, se tornariam populares: nasciam os ídolos!

O importante é que com o disco e o rádio se descortinou um infinito

leque de oportunidades para a divulgação da música rural5 que, graças à

perseverança de alguns "heróis", pôde ganhar espaço dentro das várias

manifestações culturais que compõem a variedade cultural brasileira.

(http://www.sertanejo.com/hradio.html)6.

Assim, na década de 30, o rádio se expande e se consolida como

veículo hegemônico de comunicação, especialmente após ter se tornado

comercial. Com a inauguração, em São Paulo, da rádio Tupi, base dos Diários

5 Uma outra denominação da música sertaneja. 6 Acessado em 07/04/2005.

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Associados de Assis Chateaubriand, aconteceu o principal impulso do rádio,

que culminou com a inauguração, em 1934, da Rádio Nacional.

Na seqüência do sucesso alcançado pelas emissões radiofônicas é

lançado na rádio Difusora, em São Paulo, um dos mais populares programas

de rádio do período, o Arraial da Curva Torta que, dirigido por Ariovaldo Pires,

acabará lançando, em 1943, uma das também mais populares duplas de

música caipira de todos os tempos, Tonico e Tinoco. Assim batizada pelo

próprio diretor do programa, a dupla só se desfaria em 1998, com a morte de

um de seus integrantes.

Tonico e Tinoco trabalharam com Palmeirinha e Piraci, contratados do

programa. Depois, trabalharam na Rádio Nacional e junto a outras duplas –

como Mariano e Caçula, a primeira a fazer sucesso no disco e no rádio – que

preenchiam o cenário musical caipira da época. Tonico e Tinoco contribuiram

substantivamente para a institucionalização do formato da dupla caipira, com

duas violas e, às vezes, um violão.

Essa dupla caipira foi a primeira a cantar na TV, primeira a gravar LP,

primeira a apresentar-se no Teatro Municipal de São Paulo e no

Maracanãzinho, no Rio de Janeiro. Ou seja, Tonico e Tinoco foram pioneiros

em quase tudo (RIBEIRO, 2006, p. 52). O tom do canto em dupla, diferenciado

em terças – enquanto uma voz canta em dó, a outra, canta em mi – o que o

torna mais fácil e harmônico, era o mesmo usado nas manifestações

interioranas, o que mantinha a identidade original do gênero.

Em todo o caso, é esse formato (mesmo que alterado ou adulterado)

que será eleito ao longo dos últimos sessenta anos, tanto pelas mídias como

pela própria classe média, como aquele que mais se adequaria a traduzir a

identidade através da qual se reconhecem as gentes de nosso país.

A música sertaneja na indústria cultural

Em 1955, Juscelino Kubitschek vence as eleições para a presidência.

Seu projeto, em termos culturais, foi eficiente. O modelo econômico e de

desenvolvimento passou a ser o de fora, especialmente, o hegemônico, dos

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Estados Unidos. Em termos de cultura de massa, o país já estava vivendo a

era da televisão, meio de comunicação que, com o passar dos anos, superou o

rádio (SOUSA, 2005, pp. 153 – 154).

Segundo Walter de Sousa (idem, pp 154-155), a televisão instaura de

vez o processo de produção industrial da comunicação, que passa a ser

definitivamente de massa. O consumidor desse tipo de programação era a

emergente classe média, que se encantava com o estilo de vida dos países

estrangeiros e tornava a televisão a melhor janela para vislumbrar seus sonhos

de consumo.

É durante esse período de implantação da indústria cultural no Brasil

que se estabelece, em 1964, a ditadura militar, que cerceará direitos e imporá

severa censura às manifestações culturais. O tempo de dureza política para a

música brasileira em geral transformou-se num profundo golpe que restringiu a

efervescência fonográfica.

Na época, a válvula de escape para a música popular foram os

Festivais de MPB. Para a música caipira, a saída era o rádio, meio essencial

dos artistas caipiras e “sertanejos”, que alcançava o interior, onde estava seu

público remanescente. Nos centros urbanos e mesmo nas periferias das

grandes cidades, havia consumidores das velhas modas-de-viola e dos

pagodes animados por Tião Carreiro (Idem, p. 156).

Ainda segundo Walter de Sousa, a música caipira continuou sendo,

entretanto, a música das classes menos favorecidas. Tinha como

consumidores, de um lado, o público desvinculado da produção social, que

vivia nas portas dos circos e das rádios na esperança de encontrar seus ídolos

(a minoria), e de outro, o cidadão recém-chegado à metrópole, fosse do interior

do Estado de São Paulo, fosse de outros estados.

Nesse mesmo período, estoura – oriundo das hostes da “jovem

guarda” – o cantor Sérgio Reis no universo caipira. Sua entrada triunfal marca

transformações no modo de cantar (uma vez que, em lugar de participar de

uma dupla, ele cantava só) e gravar do gênero – com a adoção de

instrumentos eletrônicos para as gravações.

Ainda na mesma década, em 1970, uma dupla de garotos de Astorga,

no Paraná, por intermédio do apresentador Geraldo Meireles, foi apresentada

ao grande público. José e Durval, Chitãozinho e Xororó, interpretavam o

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clássico de Serrinha e Athos Campos. O sucesso obtido com a interpretação

fez com que a dupla adotasse o título da toada como seu próprio nome.

A partir de então, o gênero híbrido ali gerado se estabelece

definitivamente. Nesse sentido, uma pesquisa feita pela TV Tupi, em 1976,

revelou que a chamada “música sertaneja” representava 22% do mercado

fonográfico (cf RIBEIRO, 2006). Algumas gravadoras, assim, criaram

departamentos específicos para os artistas “sertanejos”. Isso revela a

acomodação do gênero caipira (ou “sertanejo”) ao chamado star system –

sistema de “fabricação” de estrelas que encantam as platéias – das

gravadoras, enquadrando-o nas regras da indústria cultural, 40 anos depois

das primeiras gravações de Cornélio Pires, do qual falaremos mais

detalhadamente, adiante.

O final da década de 1970 marca também o fim do ciclo ditatorial militar

iniciado 21 anos antes (cf SOUSA, p. 177). O primeiro presidente civil,

Tancredo Neves7, encontra o país afogado em dívidas, interna e externa e sob

o domínio da inflação, o que de certa forma ofusca a reconquista da

democracia. É nesse panorama, entretanto, que a indústria cultural massiva vai

se encontrar com a música “sertaneja”.

Assim, no início da década de 80, há uma certa euforia em torno da

música “sertaneja”, embora a música caipira ainda pegasse nela uma certa

carona (cf nota à p. 09). O maior exemplo que temos é Sérgio Reis, cantando

velhas modas e cururus com arranjos de guitarras, chapéu de cowboy e ar de

cantor country, inaugurando uma nova apresentação visual do artista

“sertanejo”.

A ascensão da música “sertaneja”, segundo Walter de Sousa, é

impulsionada pelas rancheiras de Milionário e José Rico e do Trio Parada Dura.

Para a solidificação desse gênero musical, foi decisiva a sua ligação a um novo

contingente da classe média, que, com seu grande desejo por discursos

simbólicos que a aproximassem do universo das classes dominantes, foi se

interessando pela temática romântica das novas duplas “sertanejas”.

7 Este presidente, embora eleito com maioria esmagadora de votos pelo colégio eleitoral instaurado em 1984, não tomou posse devido a seu falecimento, tendo sido substituído na presidência por José Sarney.

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As letras das novas canções “sertanejas”, de um romantismo

exacerbado, sem vergonha de se expor, eram o caminho certo para conquistar

uma fatia do mercado apta a consumir o tal “sertanejo romântico” que

começava a ser esboçado. Enfim, a música “sertaneja” estava quase

conquistando o gosto da classe média, o que ampliaria definitivamente o

público consumidor daquele tipo de música (SOUSA, 2005, p. 182).

Observa-se, nesse sentido, que a grande maioria da classe média alta,

ligada ao campo, se beneficiou dos avanços tecnológicos da agricultura

nacional. Dessa forma, o “sertanejo romântico” se consolida como referência

musical dessa classe ascendente, com uma estética importada, baseada no

pastiche da cultura hegemônica norte-americana. Como no panorama da

globalização, os elementos da cultura são apropriados pela classe de

excluídos, que vêem neles uma possibilidade de socialização, os da música

“sertaneja” são prontamente absorvidos. Assim, o final do século XX foi

marcado pela explosão inventiva nos campos da gravação e reprodução de

sons e imagens, culminando com o advento do CD, fazendo com que a música

se tornasse um dos mais importantes campos de atuação da indústria cultural

(Idem, p. 188).

Toda a evolução tecnológica e mercadológica da época evidencia o

nível de avanço da indústria cultural e sua atuação num mercado de cultura de

massa. Os mecanismos de massificação foram eficientes no desenvolvimento

de produtos agradáveis a uma massa cada vez mais homogênea de

consumidores. Concomitantemente, esses consumidores precisavam

reconhecer nesses produtos algum traço que remetesse à sua identidade

cultural, referenciada, na maior parte das vezes, por seus antepassados. Dessa

forma, por mais que se afastasse de sua fonte de identidade – no caso da

música “sertaneja romântica”, a música caipira – o produto estilizado guardaria

sempre elementos de identificação com o consumidor. Devido a isso, o formato

de interpretação do “sertanejo romântico” permaneceu sendo o da dupla,

configuração original empregada pela música caipira (Idem, p. 188). Nesse

sentido, segundo José Roberto Zan, embora o canto em duas vozes, em

intervalo de terça, característico das duplas caipiras, possa ser reconhecido

como herança européia, é provável que as vozes agudas dos cantores, seu

outro traço característico, tenham raízes ameríndias (2007, p. 3).

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CAPÍTULO III - O PÚBLICO E O PRIVADO COMO PRODUTO DE CONSUMO

Todo sistema industrial tende ao crescimento, e toda produção de massa destinada ao consumo tem a sua própria lógica, que é a de máximo consumo (MORIN, 1967, p.37).

Uma das características fundamentais do pós-modernismo é o

apagamento da fronteira entre a alta cultura e a cultura de massa. São também

marcas de nosso tempo o fascínio pela paisagem degradada do brega e do

kitsch e a proeminência publicitária sobre a literatura que vê implicações

desses traços incorporados à sua substância. Nesse sentido, tomaremos como

respaldo as reflexões de Fredric Jameson, para quem, entretanto,

essa ruptura não deve ser tomada como uma questão puramente cultural: de fato, as teorias do pós-modernismo – quer sejam celebratórias, quer se apresentem na linguagem da repulsa moral ou da denúncia – têm uma grande semelhança com todas aquelas generalizações sociológicas mais ambiciosas que, mais ou menos na mesma época, nos trazem as novidades a respeito da chegada e inauguração de um tipo de sociedade totalmente novo, cujo nome mais famoso é ‘sociedade pós-industrial” (Daniel Bell), mas que também é conhecida como sociedade de consumo, sociedade das mídias, sociedade da informação, sociedade eletrônica ou high-tech e similares “ (JAMESON, 1997, p. 28 –29).

Assim, podemos considerar que o produto final obtido pela assimilação,

tanto do passado caipira, quanto do pastiche da cultura hegemônica para a

qual o país se voltava naquele momento, pode não significar uma rendição,

mas uma adaptação dos costumes a serem preservados ante aqueles que

demonstravam a efetiva “inauguração de um tipo de sociedade totalmente

novo”. E é nesse sentido que a exposição de situações que há relativamente

pouco tempo seriam consideradas do domínio da privacidade, ou da

intimidade, passam a se tornar comuns enquanto conteúdos de produtos da

indústria cultural.

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Além da exposição dessa intimidade nas canções, a apresentação na

“telinha” da TV extrapola das obras dos compositores ou intérpretes para

vasculhar suas vidas com o fim exclusivo de atrair, cada vez mais, o maior

número de consumidores possível. Nesse movimento, exploram, de forma

acintosa, a junção vida pública – vida privada desses artistas, de modo a

estabelecer relações entre o que foi criado e as emoções reais do(s)

criador(es), violando, assim, a sua privacidade. Esse tornar público o seu

sentimento ou o de outrem, expondo-o a uma visibilidade máxima – afinal, uma

boa imagem é um produto facilmente vendável (fácil de ser consumido) – faz

com que a música seja de grande interesse de nosso mundo midiático.

A superexposição do artista e de suas músicas não apenas torna

pública a sua imagem, como também cria uma familiaridade (intimidade) muito

grande com o público. Quando o recebemos em nossa casa, através da tela da

TV, sentimos este artista como se fosse uma pessoa bem próxima de nós,

participando de nossa própria vida íntima, o que ratifica a afirmação de

Thompson de que hoje, estamos acostumados a pensar que os indivíduos que

aparecem em nossos televisores pertencem a um mundo público aberto para

todos (1998, p. 109).

Cabe observar que consideraremos aqui a distinção estabelecida por

esse autor entre público e privado. Para Thompson,

(...) “público” significa “aberto” ou “acessível ao público”. Público é o que é visível ou observável, o que é realizado na frente de espectadores, o que está aberto para que todos ou muitos vejam ou ouçam. Privado é, ao contrário, o que se esconde da vista dos outros, o que é dito ou feito em privacidade ou segredo, ou entre um círculo restrito de pessoas. Nesse sentido, a dicotomia tem a ver com publicidade versus privacidade, com abertura versus segredo, com visibilidade versus invisibilidade (p. 112).

Nesse sentido, o que caracterizará nosso tempo é justamente o

apagamento da fronteira anterior entre o que se passa “entre um círculo restrito

de pessoas” e o que é “realizado na frente de espectadores”. Inúmeras ações e

emoções antes consideradas do domínio estrito do “privado” passam a ser

discutidas, expostas, publicadas, instaurando aquilo que chamaria Richard

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Sennett (1988) de “tirania da intimidade” nos assuntos comuns da sociedade

atual.

As formas de atração

Assim, o que se analisará no presente capítulo é a interpenetração

público-privado no mundo contemporâneo, a partir da forma de “apelação”

junto ao público, dada pelas características das funções da linguagem, tal

como utilizadas pelos compositores. Essa “apelação” é exemplificada através

de três letras de músicas, que expõem cada uma um sentimento pessoal

(privado) expresso pelo compositor, tornado público, aberto, visível, e

buscando uma identificação com o universo íntimo vivido cotidianamente pelos

ouvintes.

O assunto base das letras de música em estudo é o amor, exposto

entretanto a partir de diferentes pontos de vista. Mas se as três letras

selecionadas falam, ainda que de maneira diferenciada, de amor, sua

abordagem do tema, entretanto, não será a mesma, já que em cada uma delas

observa-se a utilização de uma função da linguagem específica (de acordo com

a classificação das funções da linguagem de Roman Jakobson). A função

fática, que tem como tarefa a explicitação do contato comunicativo mesmo

(Ligação urbana); a função expressiva (emotiva), que é centrada no destinador

(Ainda ontem chorei de saudade) e a função conativa (apelativa), centrada no

destinatário, cujo objeto é a interpelação e o objetivo é convencer (Deixa eu te

amar).

Cabe lembrar, nesse contexto, que outros teóricos aplicaram a

classificação proposta por Jakobson, ampliando suas discussões. Segundo

Jesús Gonzáles Requena, as constantes interpelações do enunciador ao

enunciatário reatualizam o vínculo comunicativo e, portanto, a função fática é

que o evidencia. Para esse autor, portanto, a função fática constitui uma

característica relevante de todo dispositivo espetacular e de todo jogo de

sedução (1995, p. 86).

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Essas interpelações do enunciador ao enunciatário marcam o jogo de

sedução presente nas letras das canções, que se torna mais evidente ainda

quando os intérpretes se apresentam ao vivo, como, por exemplo, na

televisão, em programas de auditório.

Nessa forma de exposição ainda mais explícita, cabe mencionar que o

mesmo Requena afirma que, no discurso televisivo, há um forte predomínio

das funções expressiva, conativa e fática, além de uma função referencial

muito diversificada quanto ao gênero e produtora, globalmente, de um discurso

sistemático sobre o mundo.

Para esse autor, isso permite estabelecer uma conclusão sobre a

macroestrutura semântica do discurso televisivo: a produção, como efeito de

sentido global, consiste na oferta ao destinatário potencial de um vínculo

comunicativo constante com um enunciador que pretende atuar como mediador

permanente entre o enunciatário e o mundo (cf REQUENA, 1995, p. 86-87).

Observa-se, assim, que o que realmente envolve, no discurso

televisivo, é o predomínio das funções expressiva, conativa e fática, que

transformam esse discurso numa verdadeira fonte espetacular de atrações

para o telespectador. O que poderia, por exemplo, ser uma simples

apresentação de cantores, transforma-se em um verdadeiro espetáculo, com o

envolvimento total do auditório, do apresentador e do telespectador, tudo em

nome da espetacularização.

Essa espetacularização é bastante explorada na atual forma de

divulgação da música sertaneja, dita romântica, que “rasgará”, para seu

público, sob luzes e cores, suas dores de amor.

O cotidiano do ouvinte nas letras das canções

Entre as características dos meios de comunicação de massa, uma das

mais marcantes é a busca de proximidade entre o universo descrito, “vivido”

nos textos, programas, novelas ou canções e o universo do espectador /

ouvinte. As mesmas angústias, as mesmas dificuldades, os mesmos problemas

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vividos pelo receptor na vida real são expressos pelos compositores, autores,

intérpretes, de modo a aprofundar os vínculos do meio com seu receptor.

Em Ligação Urbana – atualíssima “música sertaneja”, na qual a função

de linguagem utilizada é a fática – o discurso que tece o enunciado é o da

manutenção do contato do narrador com a pessoa amada, a qual pode ser

percebida através da preocupação exposta na fala do narrador, e sua

cotidianeidade se estabelece na medida em que o narrador diz que está

ligando de um “orelhão”.

Outra característica do tempo real expressa no texto da canção é a

pressa com que todos nós vivenciamos até mesmo nossas experiências

amorosas: nesta letra, o autor (compositor) se constitui num narrador

preocupado com a exigüidade do tempo, para externar todo o desejo de

encontrar sua amada.

Alô amor, tô te ligando de um orelhão Tá um barulho, uma confusão Mas eu preciso tanto te falar Depois das seis, tô te esperando no mesmo lugar Pois estou louco pra te encontrar Pra outra noite de aventura

Para exprimir seu sentimento, seu amor, ele se expõe (no sentido

literal) de maneira aberta e pública (em um “orelhão”), dizendo-se apaixonado e

se rendendo ao amor da amada. Reafirma a sua preocupação com a pressa

(com o tempo), porque “tem mais gente pra ligar” e, ainda, reafirma sua

urgência em encontrá-la.

Fui eu que fiz amor por brincadeira E acabei me apaixonando Meu amor eu me rendo a você Pois estou te amando Você deixou em mim uma saudade Com seu jeito de fazer paixão Você fez maravilhas, loucuras No meu coração Um beijo pra você Não posso demorar Tô numa ligação urbana Tem mais gente pra ligar

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Um beijo pra você Não posso demorar Tô numa ligação urbana Vem correndo me encontrar

Podemos perceber pela letra da canção (composta por Jaílton Vieira e

interpretada por Bruno e Marrone) a instantaneidade, a rapidez com que ele

declara o seu amor. Para ele, o tempo urge, ele tem pressa, afinal, está

fazendo uma ligação urbana, em um telefone público se expondo não apenas

para a sua amada, mas também para todos os que aguardam para falar. E

mais, esse ritmo alucinante se estende também ao desejo de encontrá-la para

uma eventual concretização desse amor, que lhe tira a razão (eu tô louco pra te

amar) e lhe dá uma visível sensação de urgência (vem correndo me encontrar).

O ritmo alucinante que a letra dessa canção retrata traduz de maneira

exata o mesmo ritmo que compõe a linguagem midiática ou televisiva,

conforme é observada por Ciro Marcondes Filho:

A linguagem de televisão é marcada por uma pulsação, um

ritmo acelerado que se reconhece em todos os tipos de emissão. (...) A televisão é um meio de comunicação que tem pressa. Tem pressa porque o componente mais importante em toda a sua estrutura de produção é o tempo. Ele é o eixo de todo o sistema televisivo. Ele tem a ver tanto com o custo publicitário do segundo de emissão como com a necessidade de fixação do receptor. (...) eu também tenho que ter em cada segundo de televisão um produto fascinante, de forma que o telespectador não salte para outro canal e inicie seu circuito a partir do telecomando (1993, pp. 23-24).

A letra revela, portanto, essa mesma pulsação, o mesmo ritmo

acelerado de que fala Marcondes Filho, para quem

velocidade, pulsação, seqüenciamento nervoso da produção em busca de um contínuo impacto visual são as marcas da televisão na atualidade. As imagens têm que ser muito rápidas, atraentes, conter uma grande quantidade de informações e apelos ao inconsciente, de tal forma que este fascínio prolongue-se e produza-se durante um tempo contínuo (Idem, p. 24).

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O produto cultural como estratégia de convencimento Em Deixa eu te amar – na qual a função de linguagem utilizada é a

conativa – o narrador se dirige diretamente ao destinatário, que é a pessoa a

quem ele ama, interpelando-a, questionando-a sobre sua vida, querendo

interpretar o seu olhar, conhecer o seu medo, implorando para que ela lhe diga.

Por que você me olha assim? Qual o seu medo? Alguém já te fez sofrer? Qual o seu medo? Diz pra mim

Ele continua utilizando o recurso da interpelação com o objetivo de

convencê-la a desabafar com ele.

Se por amor já veio a sofrer E agora tem medo De amar e se envolver Qual o seu medo? Diz pra mim

Como não obtém resposta a suas perguntas, ele se mostra amigo,

oferece seu consolo e sua confiança.

Sei que palavras não vão adiantar Se o coração não quer acreditar Confie em mim, não vai se arrepender O que eu mais quero É não te ver sofrer

E, por fim, ele oferece a ela o seu (dele) amor, mostra-se seu

companheiro na dor, e grande conhecedor dessa causa, convida-a a se dar

uma chance, e implora-lhe que o deixe amá-la.

Amor sincero tenho dentro de mim

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Pra te dar, é só você querer e arriscar Pois não é ilusão Nem tampouco atração È mais forte do que pode pensar Não sabe o quanto Já sofri por amor Conheço bem essa dor Que destrói e causa insegurança demais Pra você superar Tem que uma chance se dar E não ter medo de se apaixonar Deixa eu te amar

Na letra dessa canção (interpretada por Edson e Hudson e composta

por Edson/Flávio) temos a predominância da função apelativa da linguagem,

cujo objeto é a interpelação. O receptor é posto em destaque, ou seja, a

linguagem se organiza no sentido de convencer o receptor, através do

emprego de verbos no modo imperativo (diz, confie, tem, deixa) como acontece

nos textos (falados ou escritos) de publicidade e propaganda. Aqui, o objetivo

do narrador é convencer a pessoa a quem ele ama, mas por quem não é

correspondido, a deixá-lo amá-la. Daí a importância da persuasão para atingir a

meta, o alvo (o coração da pessoa amada).

E essa busca da persuasão, do convencimento, é uma das marcas da

linguagem dos meios de comunicação de massa. Também, por exemplo, na

linguagem televisiva, como nessa música, somos bombardeados o tempo todo

com interpelações que buscam nos convencer, cada vez mais, a consumirmos

este ou aquele produto, a assistirmos a este ou àquele programa, a usarmos

esta ou aquela roupa etc. Somos diretamente influenciados pela mídia e

transformados assim em consumidores.

O que se observa é que todo o tempo somos alvejados com uma

tentativa de convencimento para aderirmos a esta ou àquela idéia, a este ou

àquele produto. Nesse sentido, é como se estivéssemos a todo momento

assistindo a comerciais, sobre os quais Requena diz que o ‘spot’ publicitário

(...) é introduzido insistentemente no contexto comunicativo de uma incessante

interpelação ‘cara a cara’. E acrescenta:

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No âmbito dos programas informativos, o contexto espetacular tende a se superpor de uma maneira cada vez mais sistemática e intensificada: – tendência a ‘personalizar’ os programas informativos; (...) – presença na imagem do informador (...);– discurso informativo caracterizado pelo predomínio das funções conativa e fática; – tendência das reportagens a conceder maior protagonismo ao ato informativo (a aventura do repórter na conquista da informação) (...);– tendência à manipulação da imagem... (1995, pp. 93-94 – tradução nossa).

Ou seja, da mesma forma que a publicidade invade a nossa casa, a

nossa vida, incitando-nos a ouvir (consumir) mais e mais, a agir da mesma

forma, também o que se não se propõe a ser um “spot” acaba demonstrando

ser um “veículo de publicidade” da conquista ao ser amado, por exemplo, como

bem retrata a letra da canção ora em pauta.

Nesse mesmo sentido, Requena diz, ainda, que

O predomínio da função fática e do contexto espetacular, no marco de uma emissão ininterrupta e incessante, conduz, pois, necessariamente, a uma progressiva auto-referencialidade: o discurso televisivo dominante, erigido no universo auto- -suficiente, tende, necessariamente, a não falar de outra coisa que de si mesmo. (...) As horas de máxima audiência televisiva são ocupadas por segmentos, cada vez mais com maior duração, que têm por único objetivo anunciar os programas que serão oferecidos ao longo da semana. (...) O tempo potencialmente mais intenso da emissão televisiva – aquele em que a comunicação poderia ser mais eficaz quantitativa e qualitativamente – não se oferece informação alguma sobre o mundo, somente sobre a própria televisão constituída no referente-espetacular-absoluto” (idem, pp. 96-97 – tradução nossa).

A partir das colocações desse estudioso a respeito do universo

televisivo, poderíamos inferir muitas conclusões a propósito do conteúdo da

letra da canção mencionada como exemplo. Também na letra de Deixa eu te

amar, o compositor é auto-referente, anuncia o que ele tem para oferecer à

pessoa amada e o que pode fazer para conquistar o amor dela, funcionando de

fato como um “anúncio de si mesmo” e das possibilidades de seu amor.

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Entre tapas e beijos, a dor de amor em exposição Além da interpelação e da manutenção do canal de comunicação,

observa-se, ainda, na construção de letras das canções, a expressão de

sentimentos íntimos, também esses em aproximação a sensações conhecidas

do espectador/ouvinte.

Em Ainda ontem chorei de saudade – na qual a função de linguagem

utilizada é a emotiva – é a expressão da rejeição o que o autor descreve. Aqui,

o narrador se dirige diretamente ao destinatário, objeto de seu amor, dizendo a

ela que o que ela lhe pede, por carta, é, em parte, impossível de ser atendido.

Você me pede na carta Que eu desapareça Que eu nunca mais te procure Pra sempre te esqueça Posso fazer sua vontade Atender seu pedido Mas esquecer é bobagem É tempo perdido

O emissor demonstra à sua amada que ele pode fazer a sua vontade

de não mais procurá-la, ou atender ao seu pedido de que ele desapareça, mas

que esquecê-la é, para ele, impossível.

É interessante observar em que nível se dá a exposição a que ele

submete seus próprios sentimentos e os de sua amada. Ele recebe uma

“carta”, algo pessoal (privado), e a torna pública em forma de uma resposta-

-desabafo. A mensagem está centrada na expressão dos seus sentimentos

mais dolorosos, o que se observa quando este emissor diz:

Ainda ontem chorei de saudade Relendo a carta, sentindo o perfume Mas que fazer com essa dor que me invade Mato esse amor ou me mata o ciúme

Ele continua o seu desabafo, mostrando o dilema em que vive entre

AMAR X ODIAR a mulher que o abandona. Como não encontra saída, é no

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plano dos sonhos (exclusivos dele) que encontra uma válvula de escape e

através deles se realiza, ou melhor, concretiza seu amor.

O dia inteiro te odeio, te busco, te caço Mas em meu sonho de noite, eu te beijo e te abraço Porque os sonhos são meus, ninguém rouba e nem tira Melhor sonhar na verdade Que amar na mentira

Na letra dessa canção (composta por Moacir Franco, interpretada por

João Mineiro e Marciano), temos a predominância da função emotiva

(expressiva) da linguagem. O emissor é posto em destaque, tratando-se, então,

de um texto pessoal, subjetivo, com o predomínio de pronomes e verbos em

primeira pessoa (eu, me, posso, chorei, odeio, busco ...).

A forma de exposição extrapola o que seria recomendável como

público há cerca de, por exemplo, cinqüenta anos, quando certas emoções, ou,

sobretudo, o abandono, não seriam tornados matéria de produtos culturais.

Nesse sentido, Maria Rita Kehl diz:

(...) Durante pelo menos dois séculos, o bom gosto burguês nos ensinou que algumas coisas não se dizem, não se mostram e não se fazem em público. Essas mesmas coisas, até então reservadas ao espaço da privacidade, hoje ocupam o centro da cena televisiva (2004, p. 141).

Em Ainda ontem chorei de saudade, podemos constatar a observação

de Maria Rita Kehl. O que seria reservado ao espaço da privacidade (uma

carta) é exposto em forma de música, divulgado em todos os meios de

comunicação. E o que seria, também, íntimo, só dele (do emissor), os seus

sentimentos, o seu amor pela amada, o seu abandono, o seu desabafo, é

divulgado da mesma forma, através da canção, nos meios de comunicação,

tornando-se público.

O narrador dessa canção, assim como aquele que, do telefone público,

proclama seu amor e seu desejo, e o que interpela, através da letra de Deixa

eu te amar, alguém que não lhe quer a ofertar-lhe e aceitar seu amor, são

exemplos claros da forma com a qual se lida com as emoções mais íntimas nos

dias atuais, numa relação inteiramente promíscua entre o que deveria ser

privado e o que é, diuturnamente, tornado público.

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A exposição de si para atração do outro O mundo moderno é, como se sabe, o mundo da “tirania da

intimidade”. Somos obrigados a conviver com conversas completamente

pessoais entabuladas em telefones celulares, nas quais participamos, sem o

querer, de problemas os mais íntimos. Somos invadidos ininterruptamente pela

linguagem interpelativa da publicidade. Somos intoxicados pela

espetacularidade de nossa sociedade que colocou na exposição pessoal seus

mais altos interesses. Parece-nos atualmente uma necessidade inerente da

maioria dos seres humanos, o serem vistos. A imagem é tudo para a grande

maioria. Sobre isso, Maria Rita Kehl descreve

(...) A certeza subjetiva que nos garante, muito precocemente, que “eu sou”, não provém da nossa capacidade de pensar, mas da nossa identificação a uma imagem. A imagem corporal. Antes de saber que pensa, o filhote de homem já “sabe” que existe, a partir do olhar que o outro dirige à sua imagem. (...) O que garante o ser, para um sujeito, é sua visibilidade – para outro sujeito (p. 148).

Em síntese, num mundo que se fez espetáculo, imagem a ser exposta,

o conceito de privado perdeu-se numa “publicização” de sentimentos e

emoções que, na realidade, banaliza e consome as sensações mais íntimas

que o ser humano possui, no intuito único de atrair para si a atenção do outro.

Nesse sentido, a “atualização” da música caipira para o “sertanejo romântico”,

que expõe em fortes tintas a saudade, as dores e amores do “peão”, insere-a

nas estratégias de espetacularização do mundo pós-moderno.

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CAPÍTULO IV – “TRISTEZAS DO JECA”: A DOR DA PERDA COMO GRANDE TEMA DO CANCIONEIRO SERTANEJO

Assim, mundo caipira e mundo da cidade apareciam como lugares simbólicos, demarcados, que não eram exatamente correlatos a espaços geográficos. O sentimento e visão de mundo caipira não se perdem quando, na cidade, o imigrante canta o desejo de retorno e o arrependimento de ter migrado (VIANNA, 2003, p. 84).

Se a exposição das emoções mais íntimas, característica da

contemporaneidade, é um dos temas recorrentes da canção sertaneja, também

o embate entre o homem do campo e o mundo urbanizado – que passa a ser

sua referência – aparece como temática que não se traduzirá, apenas, através

da declaração formal das diferenças encontradas entre o universo deixado para

trás e aquele para o qual se transferiu. Nesse sentido, de diferentes formas e

situada no próprio universo campesino, a “tradição” sertaneja será reafirmada,

ou mesmo confrontada com as alterações trazidas pelo “progresso” material,

com evidente vantagem para a primeira.

Essa reafirmação poderia se explicar pelo que Antonio Candido

chamaria de fatores de persistência, ou permanência, que são aqueles que

contribuem para a continuidade dos modos tradicionais de vida. Nesse sentido,

observa-se, ainda de acordo com esse mesmo autor, que todas as vezes que

os indivíduos e os grupos se encontram em presença de novos valores,

propostos ao seu comportamento, a passagem de um tipo de cultura a outro

depende, em grande parte, para seu êxito, do ritmo com que se dá a

incorporação dos traços. Sob esse ponto de vista, a acomodação do caipira

aos padrões urbanos se dará conforme ele possa ou não encontrar condições

satisfatórias de substituição dos seus próprios (cf CANDIDO, 2003, p. 253).

Por outro lado, mesmo nos indivíduos que migram e buscam assimilar

esses novos padrões no intuito de adaptar-se às novas práticas impostas pela

vida na urbes, observa-se que há uma constante revalorização do passado. A

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cada conversa sobre as dificuldades presentes, surge uma referência a ele, ora

discreta e fugidia, ora tornando-se tema de exposição (idem, p. 245).

Observada sob outro ponto de vista, essa nostalgia do “antes”, ou do

campo de modo geral, acompanha a construção da ideologia de ingenuidade

que se “cola” à figura do “personagem” um tanto mítico que é o caipira, tão

afastada da realidade da cidade que se torna capaz de realçar-lhe os aspectos

mais deploráveis. Ou seja, como diria José de Souza Martins,

A elaboração ideológica da figura do caipira incorpora a aparência da sua realidade, e não a sua transparência, constituída desde o século XVIII por força dos dinamismos da economia colonial que o excluíram da condição de mão-de- -obra fundamental. Na sua realidade ele aparece como excluído e estranho. Ideologicamente, a sua condição de ‘estranho’ é elaborada e ele acaba se constituindo na única figura ‘desvinculada’ que pode observar criticamente a sociedade mais ampla (1975, p. 133).

Pensando-se, então, nessa imagem que se constrói de um caipira e de

um mundo campesino ideal, podemos concordar com esse mesmo autor, que

afirma que não é o “verdadeiro” caipira quem compõe e canta. Cada

compositor e cantor procura adequar-se à imagem do caipira, como se fosse

um caipira nato, emprestando-lhe emoções e sensações a princípio ligadas ao

campo, razão pela qual essa idealização será feita a partir de diversos e

variados pontos de vista. Assim, se aceitamos a imagem do “caipira” enquanto personagem

construído que, de sua posição ideal, configura o crítico ideal de uma

modalidade de consciência dominante (MARTINS, 1975, p. 134),

transformando o que poderia ser apenas mudança em processos de

decadência, compreendemos a utilização desse personagem e de seu mundo

como elementos mantenedores de uma forma de vida também idealizada. Esse

personagem visivelmente se perde nos caminhos da globalização que leva ao

campo boa parte dos atributos da vida moderna. Observa-se, portanto, uma

postura de valorização de hábitos e/ou costumes sertanejos através das letras

das canções que se poderiam chamar de tradicionalismo ou, no mínimo, de

reafirmação da tradição, que se traduzem em diferentes formas.

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Buscaremos, então, neste momento, refletir sobre os diferentes pontos

de vista utilizados para discutir a relação idealizada entre a tradição inerente

aos comportamentos da “gente do campo” e as atitudes citadinas ou, de

alguma forma, contaminadas pela suposta “civilização”.

Para a exemplificação da reafirmação da tradição através das letras

das canções, serão utilizadas três composições que, a nosso ver, retratam

claramente a questão a ser abordada. As letras analisadas tratam, ainda que

de maneira diferenciada, da questão da manutenção de uma tradição, seja de

hábitos, seja de comportamentos mais ligados à moral.

Assim, o tema Tradição é abordado nas três diferentes canções, a

partir de um sistema de preservação de comportamentos familiares patriarcais

mantido através da cultura oral em É disso que o velho gosta; de uma

confrontação com o progresso tecnológico, em Cavalo Enxuto; ou ainda da

manutenção do pacto afetivo elaborado no âmbito do casamento, em Cabocla

Tereza.

Estes três aspectos de abordagem (Tradição oral; Tradição x

Progresso; Tradição moral), pinçados entre os tantos possíveis, constituem-se

em representações de outras dificuldades enfrentadas pelo meio rural no

confronto com as transformações trazidas pela modernidade nos últimos

cinqüenta anos. Essas transformaçoes afetarão, como já foi dito, a sociedade

brasileira como um todo e o meio agrícola, em particular.

Os “parceiros” da tradição...

Antes de abordar diretamente as letras das canções, cremos ser

razoável refletir sobre os “parceiros” envolvidos nessa valorização das

tradições do universo campesino. É Importante verificar a que ponto os

compositores das canções – considerados por José de Souza Martins como

“adequados” artificialmente ao “verdadeiro” caipira – se relacionam a seus

ouvintes. Mediante esse procedimento, consideramos que se possa

compreender de que modo se constitui o processo de comunicação entre as

duas partes e a que ponto dividiriam elas as mesmas posições ideológicas.

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Nesse sentido, para que se possa estabelecer o lugar ocupado pelos

parceiros essenciais do “processo comunicativo” aqui analisado – vale dizer os

autores e seus ouvintes – é necessário que busquemos formular o “lugar” onde

se estabelece esse processo, considerando que o discurso ali utilizado

constitui-se, sobretudo, em um contexto de signos e experiências partilhados.

Esses signos e experiências dependem inexoravelmente dos “mapas da

realidade social” de que nos fala Hall (cf Cap I, p. 26) ou, utilizando a mesma

terminologia “geográfica”, de uma topografia social sobre os falantes que aí

vêm se inscrever (MAINGUENEAU, 1997, p. 32).

Nesse sentido, embora não “verdadeiros” caipiras – já que de ambos

os lados esses “parceiros” não se encontram mais geograficamente no campo

–, tanto os autores quanto os ouvintes desse processo de comunicação

transitam num mesmo espaço de referências. Ambos são ligados a um mesmo

universo eminentemente rural, agrário, ambos enquadrados num mesmo

“estatuto” social, o que viabiliza e estabelece o “lugar” onde o processo se

estabelecerá.

Quanto aos autores das músicas sertanejas que serão analisadas,

nasceram de modo geral fora dos grandes centros e tiveram sua formação num

meio rural, embora tenham todos se transferido para a “cidade grande” e lá

tenham iniciado suas carreiras.

Berenice Azambuja (É disso que o velho gosta, com Gildo Campos),

autora da qual tivemos o menor número de informações, nasceu no Rio Grande

do Sul e iniciou sua carreira de cantora, instrumentista e compositora em Porto

Alegre.

Lourival dos Santos (1917-1997), nasceu em Guaratinguetá, SP, e foi

um dos mais importantes compositores da música sertaneja. Compôs cerca de

1300 músicas, entre elas o Cavalo Enxuto, em parceria com Moacyr dos

Santos (1932-1996), também paulista, de Monte Aprazível.

João Pacífico (1909-1998) foi registrado em Cordeirópolis, SP, mas

teve uma vida rural relativamente curta, mudando-se para a cidade com

apenas sete anos. Escreveu cerca de 1450 canções e, mesmo sem saber tocar

nenhum instrumento musical, compunha a melodia para as suas letras. Fez

muito sucesso em parceria com Raul Torres (Botucatu, SP, 1906-1970), com o

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qual compôs Cabocla Tereza, aproximadamente em 1940. Segundo Rolando

Boldrin, ele pode ser considerado uma espécie de Noel Rosa da música

sertaneja.

Por sua vez, o grupo mais expressivo ao qual se dirigem o público

desses autores é formado, a princípio, por migrantes rurais habitantes da

cidade. Por encontrar dificuldades para se inserir no sistema urbano-industrial,

esse grupo busca, nas referências comuns expostas nas letras das músicas

“sertanejas”, reorientar seu estoque simbólico tomando de novo o contexto

rústico de origem como quadro de referência positiva, invertendo assim a

posição da matriz de significações em que fora socializado por antecipação

(MICELI, 1972, p. 203; apud MARTINS, 1975, p. 114).

Nesse sentido, ao retomar sua “matriz de significações”, esses ouvintes

se esforçam para reconstituir seu universo simbólico no próprio contexto

urbano, apropriando-se positivamente de determinadas mensagens culturais

que, embora produzidas na cidade, recorrem a modos rústicos de estruturação

da experiência (Idem, Ibidem). Ao incorporarem de forma positiva essa

memória – ou, se preferirmos, seus comportamentos tradicionalmente ligados a

suas matrizes culturais – encontram um ponto de apoio para o enfrentamento

do universo urbano com o qual se defrontam.

Os ouvintes constituem-se, portanto, num público que divide com os

autores a mesma formação, num mesmo universo, embora estejam, os

“parceiros” do processo, afastados de suas referências de origem.

Assim, no processo comunicativo estabelecido entre autores e público,

ainda que o componente comunicacional se realize através de um canal ou

meio (o disco, fita-cassete, CD etc), que de modo geral distancia o compositor

de seu destinatário apriorístico, os parceiros pertencem a um mesmo contexto

psicossocial. Dessa forma, o componente de intencionalidade é facilmente

reconhecível, já que os autores constroem seu discurso fazendo apelo a

saberes partilhados com seus ouvintes, participando de um jogo em que ambos

transitam num mesmo universo imaginário.

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As vozes da tradição

É na análise direta das letras, entretanto, atravessadas que são pela

preocupação com a manutenção ou revalorização de uma tradição, quiçá

perdida, que podemos perceber os significados ali manifestados. Assim, se a

voz da tradição se faz ouvir de maneira absoluta em É disso que o velho gosta,

o confronto entre sua manutenção ante as modificações trazidas pela

modernidade pode ser apresentado de uma forma lúdica, como em Cavalo

Enxuto, ou de forma mais densa, ou melhor, mais trágica, em Cabocla Tereza,

como se verá a seguir.

Em É disso que o velho gosta, o discurso que se tece é o da

manutenção dos costumes patriarcais. Pode-se perceber essa intenção através

da preocupação exposta na fala do pai para seu filho, de reproduzir um

comportamento masculino que lhe fora ensinado por seu próprio pai, a partir de

um modelo oral.

Nesta letra, o autor/narrador fala de suas origens e de seu aprendizado

na convivência com o pai.

Eu sou um peão de estância Nascido lá no galpão E aprendi desde criança A honrar a tradição Meu pai era gaúcho Que nunca conheceu o luxo Mas viveu folgando, enfim

Para exprimir o ensinamento do pai, esse narrador insere diretamente

esse novo personagem, que, ao invés de se dirigir ao filho como destinatário,

dirige-se aos possíveis ouvintes. Os versos destacam que era “quando alguém

perguntava do que ele mais gostava” que o velho gaúcho, em verso, numa

quadrinha – forma por sinal comum ao universo rural que permeia o texto e que

caracteriza a oralidade através da qual era expresso o ensinamento – expunha

sua “fórmula de bem viver”.

Churrasco, bom chimarrão Fandango, trago e mulher É disso que o velho gosta

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É isso que o velho quer

Na seqüência da letra, o narrador retoma a posição de interlocutor

direto de seus ouvintes e promete seguir os costumes que aprendeu e passá-

-los da mesma forma ao filho que possa ter.

Em Cavalo Enxuto, por sua vez, o narrador é um homem da roça,

conservador, que será o protagonista do embate a ser estabelecido entre o

“progresso” – representado pelo automóvel – e a tradição, representada pelo

cavalo e seu experiente cavaleiro. O texto traz, além desse, o tema já de si

tradicional da disputa de dois homens pelo amor de uma mulher.

O tema do amor é, todavia, atravessado pelo discurso subjacente do

conservadorismo, que propõe a preservação das tradições contra o progresso

técnico. Esse propósito conservador, que extrapola a própria canção,

caracteriza a discussão entre urbes e campo de que tratam essas reflexões.

Dessa forma, o autor inicia sua narrativa com a descrição, aos

ouvintes, de seu modus vivendi em contraponto ao de seu opositor em ambas

as disputas.

Eu tenho um vizinho rico Fazendeiro endinheirado Não anda mais a cavalo Só compra carro importado Eu conservo a minha tropa O meu cavalo ensinado O fazendeiro moderno Só me chama de quadrado

Na seqüência dessa primeira descrição, o narrador insere a

personagem da amada, que ganha voz e passa a ter como destinatários ambos

os apaixonados. Através dessa moça, objeto da disputa entre os dois lados da

moeda, se impõe o desafio entre a tradição e a modernidade. É interessante

notar que nele se misturam os temas tratados, quais sejam: conservadorismo

versus modernização e a disputa pelo amor da mulher.

Um dia a moça falou Pra não haver discussão

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Vamos fazer uma aposta A corrida da paixão Granfino corre no carro Você no seu alazão Eu vou pra minha fazenda Esperar lá no portão Quem dos dois chegar primeiro Vai ganhar meu coração

Cabe observar que, do ponto de vista dessa nova personagem, que

oferece como prêmio ao vencedor seu próprio coração, já se estabelece uma

proximidade (leia-se, uma maior intimidade) com o representante do universo

conservador. Ao lançar seu desafio, a moça está se dirigindo mais ao matuto

(“você no seu alazão”), enquanto o outro rapaz parece ser objeto de uma certa

discriminação, na medida em que, ao se referir a ele, ela o trata por “granfino”.

Se em É disso que o velho gosta, a “defesa” da tradição que perpassa

o texto se faz ouvir apenas como proposta de perpetuação de uma forma de

vida, em Cavalo Enxuto, essa tradição se revela vitoriosa num confronto direto

com o progresso – mostrado todavia de forma lúdica.

Em Cabocla Tereza, por sua vez, o que se constata é uma reação

radical ante a quebra do vínculo matrimonial – outra característica da

modernidade – e que nessa canção terá conseqüências funestas.

Nesse sentido, acreditamos que caberia, antes de nos determos

especificamente na letra da canção, discorrer brevemente sobre a questão do

“final amargo”. Para José de Souza Martins, essa é uma característica

importante da música sertaneja – sobretudo no que se refere a seu contraste

com o padrão do ‘final feliz’ que marca praticamente toda a produção da

indústria cultural: a música, a novela de folhetim, o cinema, a novela

radiofonizada, a novela televisada, a fotonovela, etc (MARTINS, 1975, pp. 152-

153). Segundo Martins, esse final amargo atrairia para esse tipo de canção

uma certa “repugnância” do ouvinte de classe média, habituado àquele padrão

água-com-açúcar, determinado pelo esquema geral das mídias.

Para esse autor, a narrativa de “final triste” ou, muitas vezes, trágico,

seria uma das formas de manutenção do conteúdo moral do que é “narrado”

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pelas letras, na busca de revalorização de determinados valores ali inseridos.

Dessa forma, segundo Martins,

A discrepância em relação ao padrão do ‘final feliz’ da cultura de massa é uma indicação de que a música sertaneja atende a imperativos éticos conservadores. Esse conservadorismo nada tem, no entanto, diretamente, com o conservadorismo dominante, contra o qual aliás, pode se apresentar (p. 155).

Outro ponto a ser observado em Cabocla Tereza é sua forma, que se

divide entre narração introdutória falada e a continuação cantada, já em desuso

na música sertaneja atual. Nesse sentido, a divisão da letra entre conto e canto

procede da necessidade de separar a “informação sobre o acontecimento” da “explicação e justificação do acontecimento”. A parte declamatória atende formalmente às necessidades do noticiário jornalístico: a suspeita, a inferência do crime ou de uma tragédia e o seu imediato enquadramento nos procedimentos legais e formais ‘corretos’ (a denúncia ao delegado). Essa separação parece caracteristicamente urbana, pois no rural o cantado e o vivido coincidem (MARTINS, 1975, 157).

Essa separação “caracteristicamente urbana” manifesta-se ainda em

outro ponto. Em Cabocla Tereza, o narrador da parte falada é um “espectador”,

que nada tem a ver com o acontecimento, mas apenas dá a notícia, sem viver

o noticiado, que só será vivido pelo cantor-personagem. Sua “notícia”, assim,

serve como introdução descritiva do “ambiente” em que se desenrolou o

drama:

Lá no alto da montanha Numa casa bem estranha Toda feita de sapé Parei uma noite o cavalo Por causa de dois estalos Que ouvi lá dentro bater Apeei com muito jeito Ouvi um gemido perfeito Uma voz cheia de dor...

Ou seja, nessa dissociação entre o vivido e o visto,

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o declamador é participante circunstancial do acontecimento – é testemunha e informante. Permanece nos limites exteriores do acontecido; lida com evidências, mas não com a essência do ocorrido. Sobre esta (e implicitamente sobre a própria conceituação da essência) falará o personagem-cantor” (MARTINS, 1975, p. 157).

O sobrevivente da tragédia que, neste caso não está no assassinato de

Tereza (como a notícia declamada faria supor) (Idem, ibidem) é, na realidade, a

maior vítima do caso. Assim, ao iniciar a narrativa cantada de suas desditas, o

cantor-personagem explicita o plano ético em que se insere, que por sua vez

inverte as informações iniciais de que seria “apenas” um assassino.

Há tempo eu fiz um ranchinho Pra minha cabocla morar Pois era ali nosso ninho Bem longe deste lugar No alto lá da montanha Perto da luz do luar Vivi um ano feliz Sem nunca isso esperar E muito tempo passou Pensando em ser tão feliz Mas a Tereza, doutor Felicidade não quis Pus meu sonho nesse olhar Paguei caro o meu amor Por causa de outro caboclo Meu rancho ela abandonou Senti meu sangue ferver Jurei a Tereza matar O meu alazão arriei E ela eu fui procurar Agora já me vinguei É esse o fim de um amor Essa cabocla eu matei É a minha história, doutor.

A sinceridade da narrativa cantada, expondo a dor do “abandonado” e

seu amor que tudo construíra para a amada, antepõe-no à letra fria da lei, para

transportá-lo ao universo do passional, cujo conteúdo é mais afetivo-moral do

que legal. O caboclo, então, passa a ser personagem ambígua, na qual o

racional e o emocional se confrontam, para além do enquadramento puramente

urbano. Nesse caso,

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Essa dupla condição explicita a vivência de uma realidade social igualmente dupla por um único personagem, que experimenta a duplicidade histórica do afetivo e do racional em termos de uma ambigüidade ética, imediatamente traduzida na própria estrutura da toada (MARTINS, 1975, p. 157).

A superposição de planos, tanto narrativos quanto éticos, é, para José

de Souza Martins, um “recurso de dissimulação” que permitiria, ao mesmo

tempo, explicitar a ética do dominante – traduzida pelo passante que narra de

forma declamada o que viu – e a linguagem dos dominados – traduzida pelo

cantor-personagem – que, embora aceitando o enquadramento da primeira,

julgam-se e justificam-se pela ética que se expressa na segunda (MARTINS,

1975, p. 158). Dessa forma, o que se observa é a efetiva existência de uma

violência passiva que é, na realidade, apenas uma resposta à violência

principal, vivida pelo caboclo, de confronto com o universo urbano ao qual

dificilmente se adapta, mas com o qual tem de conviver.

Pelo exposto, pode-se eventualmente concluir, então, que apesar do

desenraizamento que caracteriza o “lugar” ocupado pelo homem do campo no

mundo contemporâneo, o que se observa é que é justamente a preocupação

com a preservação das tradições – que freqüenta o imaginário do universo

agrário – o que dá a esse homem sua “localização”. Ou seja, se os parceiros

essenciais dos “processos comunicativos” aqui analisados são frutos de um

mesmo universo rural, enquadrados num mesmo “estatuto” social, e transitam

no mesmo espaço de referências, o que possibilita seu pacto de comunicação.

Esse pacto é mais que tudo referendado pela constatação de que é na

reafirmação das tradições campesinas que esses parceiros se (re)identificam

com aquele universo.

No universo caipira, uma música emblema: Tristeza do Jeca

É no período de estabelecimento das rádios que estoura um dos

clássicos da “música caipira”, das poucas canções que, à época, ultrapassava

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o público restrito do gênero: Tristezas do Jeca, de Angelino de Oliveira. Essas

Tristezas, compostas no mais legítimo estilo caipira, atravessaram fronteiras e

preencheram o bojo da viola dos mais populares e obscuros violeiros do país.

Reconhecida pelo público e cantada popularmente no interior paulista

durante o hiato de tempo que separou os momentos da sua composição e da

gravação, Tristezas do Jeca foi compreendida como uma resposta genuína do

próprio caboclo – representado por Angelino de Oliveira – à polêmica

inaugurada por Monteiro Lobato a respeito do Jeca Tatu e acabou adquirindo a

aura de “hino do caipira”.

A música foi composta em 1918, mas a versão integral mais conhecida

só seria gravada, enfim, em 1937, por Paraguassu, um amigo de Angelino de

Oliveira que a cunhou, enfim, como Tristeza do Jeca, no singular, sem o “s”

que existia originalmente. Seu “estouro”, entretanto, se dará em 1944, com a

transformação da toada original em moda de viola pela dupla Tonico e Tinoco.

O sucesso da música, quando apresentada no programa de rádio

Arraial da curva torta, acabou atraindo os donos de circos, que convidaram a

dupla para apresentações. Assim, nova fase no processo de popularização da

música caipira tem início. E mais, além de alcançar o público pelos meios

eletrônicos de comunicação, aparece, também, a alternativa das turnês

musicais, o que caracterizará as duplas que surgirão depois de Tonico e

Tinoco. Mesmo, entretanto, recebendo diferentes arranjos e mudança da

entonação do canto, ela sempre exprimiria o desalento do caipira ao pé do seu

rancho de telha-vã.

O não-lugar do “Jeca”

Efetivamente configurada como uma espécie de síntese poética do

caboclo, a Tristeza do Jeca resumia boa parte do gabarito cultural legado pelo

caipira. Era uma toada atemporal, que falava de uma tristeza atávica que

envolve o caboclo, a mata e o sabiá, embora seu principal impacto talvez tenha

sido o fato de ter sido concebida por um “autêntico” caipira. Mas de quem fala

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sua letra? Para Walter de Sousa, inúmeros poderiam ser os protagonistas

daquela melancolia...

Seria o colonizador português que, atraído pela febre da riqueza se deparou, assustado, com a hostilidade oculta nas matas? Seria o índio espoliado de sua terra e de sua cultura, sentado à beira do mato? Seria o negro arfante, oculto na noite, cantando em silêncio seus cânones de liberdade? Talvez somente o caipira atento ao “baruião” da passarada no estertor da madrugada... (2005, p. 67-68).

Permitimo-nos, todavia, discordar das dúvidas a respeito do narrador

das “tristezas”, apresentadas pelo jornalista. Pelo modo de se expressar, pela

razão da melancolia, parece claro, mesmo numa breve leitura, que não poderia

se tratar nem do português, nem do índio, nem do negro. Referia-se ao mesmo

homem do campo, híbrido, fronteiriço – eventualmente uma mistura de todas

essas raças – mas em todo caso desenraizado, com o qual iniciamos nossa

análise do corpus em questão, e cuja representação vem sendo feita, como se

observou, na maior parte dos casos, pelo viés de uma tristeza quase atávica,

causada não apenas por dores de amores, mas pelo afastamento de sua terra

original.

E se nas canções anteriormente analisadas essa nostalgia do passado,

ou ao menos da terra de origem é mais explicitada, aqui ela é designada por

uma vaga ausência que marca entretanto o caboclo indelevelmente.

Nesta viola eu canto e gemo de verdade. Cada toada representa uma saudade.

Mas mesmo para esse matuto que não explicita a razão de sua

saudade, a tristeza dada pela distância das origens se revela, por exemplo, no

olhar do narrador, que ao falar do lugar onde nasceu mostra-o longe,

caracterizando um local no qual não mais se encontra:

Eu nasci naquela serra num ranchinho à beira-chão todo cheio de buraco onde a lua faz clarão

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A terra, portanto, é “aquela”, longínqua, distanciada do local de onde

fala o caboclo. Como se observa, então, a noção de não-lugar, que marcará o

homem do campo em seus enfrentamentos face ao novo universo urbano que

se estabelece, mantém-se presente no cancioneiro caipira desde suas mais

remotas manifestações e faz parte dessa que é considerada a mais

emblemática das músicas do gênero.

As "Tristezas...” enquanto símbolo maior da perda do “chão”

Segundo Antonio Candido, a vida social do caipira assimilou e

conservou os elementos condicionados pelas suas origens nômades. O autor

explica ainda que e a combinação dos traços culturais indígenas e portugueses

obedeceu ao ritmo nômade do bandeirante e do povoador, conservando as

características de uma economia largamente permeada pelas práticas de presa

e coleta, cuja estrutura instável dependia da mobilidade dos indivíduos e dos

grupos (cf CANDIDO, 2003, p. 48).

Com as mudanças propiciadas pela modernização, o caipira substitui

esses traços anteriores, não apenas pela mudança no ritmo de trabalho e

perda de habilitação técnica, mas também por influxo da relativa importância

conferida pela adoção dos novos traços. Essas mudanças, entretanto,

alteraram sobremaneira sua forma de lidar com o mundo e sua própria relação

com a terra.

Nesse sentido, a nostalgia que perpassa inúmeras letras de “músicas

sertanejas” – e que aparece mais diluída em Tristezas do Jeca – revela-se,

mais que tudo, a nostalgia de uma perda maior: a das relações de produção

anteriores, a de uma ingenuidade” que se desvanece no passado, ou a dos

“pactos” de outrora, nos quais a “palavra” do caboclo tinha valor de lei.

Ou seja, por maiores que sejam as tentativas de manutenção de um

“modo de ser” reconhecível, é inevitável que hoje, ao se refletir sobre a “vida

caipira”, tenhamos que nos reportar a sua incorporação progressiva à esfera da

cultura urbana. Não podemos nos reter em seu universo de outrora, por assim

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dizer, fechado, mas sim avaliá-la a partir de sua posição no conjunto da vida do

estado e do país e das transformações que sofreu.

Essa mudança no “olhar” que se debruça sobre o homem do campo

deve-se não somente à transformação externa pela qual passou esse homem

isoladamente mas também pelas transformações internas pelas quais passou

seu próprio universo. Ou seja, se antes os grupos campesinos se sentiam

equilibrados e providos do necessário à vida, quando se equiparavam aos

demais grupos, hoje em dia esses mesmos grupos sentem-se desajustados,

mal aquinhoados, quando se equiparam ao morador das cidades, cujos bens

de consumo e equipamento material penetram hoje no recesso da sua vida.

Assim, considerando que a ampliação de suas necessidades não é

compensada pelo aumento do poder aquisitivo, o caipira atual que não emigra

e se proletariza, rejeitando em bloco suas condições de vida anteriores – mas

mantendo uma memória ideal do universo deixado para trás – permanece na

lavoura, ajustando-se como possível e trazendo em si, indelevelmente, a marca

de uma mesma nostalgia pelo tempo que passou, o que explica a imensa e

indefinida “tristeza” do “Jeca”:

Lá no mato tudo é triste desde o jeito de falá quando riscam da viola dá vontade de chorar num tem um que cante alegre todos vivem padecendo cantando pra se aliviá. Vô pará co’a minha viola já num posso mais cantá pois o jeca quando canta tem vontade de chorá E o choro que vai saindo devagá vai se sumindo como as água vão pro má.

O que se esconde, entretanto, por trás dessa “vontade de chorá”? Para

alguns autores, como Antonio Candido, por exemplo, o conflito de classes

insolúvel determinado pela ruptura sociocultural vivida pelos migrantes do

campo... Para outros, como Néstor Garcia Canclini, a necessidade de

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estabelecimento de um “lugar” – sabidamente desaparecido – onde “ancorar”

memórias e esperanças.

Que explicação seria a mais apropriada?

Talvez seja difícil estabelecer... Optamos, então, por não escolher nenhuma delas. Acreditamos que no

universo comum dividido entre compositores e ouvintes da música sertaneja há

também, simplesmente, espaço para o estabelecimento de laços partilhados de

origem e objetivos. Esses laços justificam tanto a produção desse tipo de

canção quanto sua absorção pelo imenso mercado a que ela atende.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Romildo Sant'Anna, no prefácio do livro Música Caipira, de José

Hamilton Ribeiro, diz que os costumes caipiras nunca estiveram tão em

evidência como agora. Basta ligar a TV, para a canção tingir de nostalgia esses

costumes. Segundo Sant'Anna, se a música é um sorriso inspirado da cultura

de um povo, a moda caipira de raiz é emblema dos sentimentos e identidade

simbólica das regiões Sudeste e Centro-Sul do país (2006, p. 6).

A moda caipira, definida por Sant'Anna,

é poesia musicada, entre as mais singelas expressões da literatura oral-popular brasileira. Ela é literatura lírico-narrativa nascida da espontaneidade dos cantores, que atravessa as veredas do tempo no galope das gerações (Idem, ibidem).

Ou seja, para o mesmo autor,

A moda caipira é branca nas formas e rimas, e africana, indígena e européia nos pensamentos e afetos. Escreveu Darcy Ribeiro que coube aos mestiços a travessia de costumes, normas e sentimentos pelos eitos dos sertões. Nos campos e cidades, e com um contentamento nostálgico a espantar os males, possui um fundo de tristeza e desolação. Explícito ou nas entrelinhas, fala de um vazio, uma saudade, uma coisa que, lá no fundo, nos foi arrancada. Pulsam três etnias e sabenças do mundo tingidas pela agonia do desterro: o português degredado e saudoso; o indígena exilado em sua terra; o afro-brasileiro usurpado pela indecência escravista. Chora, viola! Essa moda é o dizer tristonho do sem-terra, no encantado da existência ao rés do chão (RIBEIRO, 2006, pp. 6-7).

Continuando a nos reportar a esse autor, cabe ressaltar que, para ele,

na moda caipira de raiz, quem fala é o caboclo nativo e seus descendentes,

desconfiados, intuitivos, místicos, sonhadores e, mais do que isso, sabidos

(Idem, p. 07). É nesse mesmo sentido que se dá nossa própria relação

pessoal com o assunto em questão.

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Nossa relação com o universo caipira, de onde vêm nossas origens e

nossa história nos levou às reflexões aqui apresentadas. Nesse sentido, foi não

apenas um dever, mas certamente um prazer, rever e discutir canções com as

quais convivemos por boa parte de nossa vida, não apenas na infância como

também ainda agora, na idade adulta.

Entre as reflexões a que nos propusemos, foi da maior importância a

descoberta de valores outros, agregados, àquele tipo de música que nos

acompanhou e nos acompanha ainda. Constatamos, por exemplo, que ali se

estabelecia a expressão de uma decalagem entre o “sertanejo” e o mundo

urbano para o qual foi transferido.

Nessas canções, são representados comportamentos afetivos e/ou

tradicionalistas, que falavam e falam de maneira simples das angústias

amorosas e do conflito entre o homem do campo e o universo urbano com o

qual se defronta, em sua quase obrigatória convivência com esse universo.

E mais, nessas canções – para nós, antes – singelas letras

interpretadas tão-somente por minha mãe (pois não conhecíamos o rádio),

podia se esconder um ainda indissolúvel conflito de classes, imposto pela

aproximação forçada de indivíduos cujas origens e horizontes eram, até data

relativamente recente, tão distantes.

Alguns anos depois, vivenciamos de perto esse conflito, com a vinda,

para o centro urbano, de uma parte da família, em busca de um caminho

diferente daquele trilhado pelos meus pais. Fizemos isso a duras penas, mas

sem perder o contato com a parte da família, que continuava na luta para

sobreviver com o fruto do trabalho retirado, com muito esforço, da terra.

Nesse sentido, foram esclarecedores os estudos de Antonio Candido

de Mello e Souza, ao concluírem que o conflito nascia de uma nova situação.

Agora, achavam-se, frente a frente, homens do campo e da cidade, sitiantes e

fazendeiros, assalariados agrícolas e operários. Esses grupos, bruscamente

reaproximados no espaço geográfico e social, acabavam por participar de um

universo que desvenda dolorosamente suas discrepâncias econômicas e

culturais. Com Candido percebemos que nesse diálogo, em que se empenham

todas as vozes, a mais fraca e menos ouvida é certamente a do caipira que

permanece no seu torrão (cf CANDIDO, 2003, p. 279-280).

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Foi-nos também sobremaneira importante a verificação de que o

confronto em questão manifestou-se sobretudo na primeira metade do século

XX, período de produção das obras analisadas em nosso trabalho. Esse

período foi marcado particularmente pelas transformações trazidas pela

indústria aos modos de produção, que colocaram em xeque o modelo

econômico eminentemente rural do país até então, o que provocaria uma

natural reação daquela parte da sociedade mais afetada. Assim,

compreendemos que

(...) ao defrontar-se a sociedade da Primeira República com a opção entre o Brasil do passado e suas perspectivas futuras, a escolha recaía, quase unanimemente, na idéia de país já estabelecida. Esta escolha encontra explicações sobretudo na nova conjuntura econômica que ali se fundava: a constante defesa do Brasil agrário, em detrimento do país moderno que se avizinhava, pode ser compreendida como temor perante as transformações ocasionadas pela industrialização, cujas conseqüências eram, de certa forma, imprevisíveis (BRAGA, 2003, p. 20).

e que essa “nova conjuntura econômica”, traduzida sobretudo pela

industrialização, é que imporia a transferência do homem do campo para a

cidade, estabelecendo o conflito mencionado, que se mantém até a atualidade.

Por outro lado, foi-nos também enriquecedora a reflexão a respeito das

formas através das quais esse conflito se “resolve”, entre elas a da canção,

mesmo se pensarmos que a música sertaneja é mais que tudo destinada ao

consumo daqueles que se encontram em posição inferior no mercado e que,

Neste caso, a música não medeia as relações sociais na sua qualidade de música, mas na sua qualidade de mercadoria. Do que decorre que as relações sociais nas quais a música sertaneja se insere não são relações caracteristicamente derivadas da mediação da música, mas a música é um dos produtos de certo tipo de relação social, a relação mercantilizada (MARTINS, 1975, p. 13).

Esse tipo de análise não é exatamente nossa aproximaçao inicial.

Mesmo, entretanto, que assimilemos o aspecto mercantil do tipo de canção que

analisamos aqui, fica-nos, em todo o caso (enquanto partícipes de seu universo

desde a mais tenra infância), um conforto: o de constatar que é justamente

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essa figura social e tradicionalmente depreciada do caipira, a mais apropriada

para explicitar a crítica ao mundo urbano contemporâneo.

O caipira é, então, nesse sentido, um representante de um mundo

estável, natural, romântico, puro, etc (MARTINS, 1975, p. 134), qualidades

essas invocadas, sobretudo, para situar os sentimentos ‘desnaturados’ que a

cidade gera e cultiva.

Finalmente, cabe observar que o debruçarmo-nos sobre um universo

que nos era e é tão caro, forçou-nos à descoberta de aspectos subliminares e

eventualmente não-agradáveis – como, por exemplo, a mercantilização de um

gênero musical com o qual convivemos por toda a nossa vida – e ao

desvelamento de tantos outros aspectos inseridos nas letras daquelas canções

que tanto conhecíamos, mas sobre as quais pouco havíamos refletido.

Se isso nos fez amadurecer e olhar com outros olhos aquelas obras,

esse estudo trouxe-nos, também, um novo orgulho em pertencer – por origem

e formação – ao mundo ingênuo dessas canções, ao universo que se oferece

como opção – ainda que apenas fictícia – ao desagregado mundo urbano no

qual transitamos cotidianamente.

Sim, com muito orgulho, também eu sou caipira.

Graças a Deus!

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ANEXOS

CABOCLO NA CIDADE

Dino Franco e Nhô Chico

(Interpretação: Chitãozinho e Xororó)

Seu moço eu já fui roceiro No Triângulo Mineiro Onde eu tinha meu ranchinho Eu tinha uma vida boa Com a Isabel minha patroa E quatro barrigudinhos Eu tinha dois boi carreiro Muito porco no chiqueiro E um cavalo bom arreado Espingarda cartucheira Quatorze vaca leiteira E um arrozal no banhado Na cidade eu só ia cada quinze ou vinte dias Pra vender queijo na feira E no mais tava folgado Todo dia era feriado pescava a semana inteira Muita gente assim me diz Que não tem mesmo raiz essa tal felicidade Então aconteceu isso Resolvi vender o sítio e vir morar na cidade Já faz mais de doze anos que eu aqui já tô morando Como eu tô arrependido Aqui tudo é diferente Não me dô com essa gente Vivo muito aborrecido Não ganho nem pra comer Já não sei o que fazer Tô ficando quase louco É só luxo e vaidade Penso até que a cidade Não é lugar de caboclo

Minha filha Sebastiana Que sempre foi tão bacana Me dá pena da coitada Namorou um cabeludo Que dizia ter de tudo Mas fui ver não tinha nada Se mandou pra outras bandas Ninguém sabe onde ele anda E a filha tá abandonada Como dói meu coração Ver a sua situação Nem solteira e nem casada Até mesmo a minha “véia” Já tá mudando de idéia Tem que ver como passeia Vai tomar banho de praia Tá usando minissaia E arrancando a sobrancelha Nem comigo se incomoda Quer saber de andar na moda Com as unhas todas vermelhas Depois que ficou madura Começou usar pintura Credo em cruz, que coisa feia Voltar pra Minas Gerais Sei que agora não dá mais Acabou o meu dinheiro Que saudade da palhoça Eu sonho com a minha roça No Triângulo Mineiro Nem sei como se deu isso Quando eu vendi o sítio Pra vir morar na cidade Seu moço, naquele dia Eu vendi minha família E a minha felicidade.

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NO RANCHO FUNDO

Ari Barroso e Lamartine Babo

(Interpretação: Chitãozinho e Xororó)

NoBeOnCo NoDeUmTe PoQu

TuSóQPa SeDaMTo PoViSóDa ElOQO E SeA Le

Rancho Fundo m pra lá do fim do mundo de a dor e a saudade ntam coisas da cidade...

rancho fundo olhar triste e profundo moreno canta as "mágoa"

ndo os olhos rasos d'água

bre moreno e de tarde no sereno

Espera a lua no terreiro Tendo um cigarro por companheiro Sem um aceno Ele pega a viola E a lua por esmola Vem pro quintal desse moreno No Rancho Fundo Bem pra lá do fim do mundo Nunca mais houve alegria Nem de noite nem de dia Os arvoredos Já não contam mais segredos E a última palmeira Já morreu na cordilheira Os passarinhos Internaram-se nos ninhos De tão triste esta tristeza Enche de trevas a natureza

do por quê? por causa do moreno

ue era grande, hoje é pequeno ra uma casa de sapê

Deus soubesse tristeza lá da serra

andaria lá pra cima do o amor que há na terra

rque o moreno ve louco de saudade por causa do veneno s mulheres da cidade

e que era cantor da primavera ue até fez do Rancho Fundo céu maior que tem no mundo

o sol queimando uma flor lá desabrocha

montanha vai gelando mbrando o aroma da cabrocha

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SAUDADE DE MINHA TERRA

Goia e Belmonte

(Interpretação: Sérgio Reis)

De que me adianta viver na cidade Se a felicidade não me acompanhar Adeus, paulistinha do meu coração Lá pro meu sertão, eu quero voltar Ver a madrugada, quando a passarada Fazendo alvorada, começa a cantar Com satisfação, arreio o burrão Cortando estradão, saio a galopar E vou escutando o gado berrando Sabiá cantando no jequitibá Por nossa senhora, Meu sertão querido Vivo arrependido por ter te deixado Esta nova vida aqui na cidade De tanta saudade, eu tenho chorado Aqui tem alguém, diz que me quer bem Mas não me convém, eu tenho pensado eu fico com pena, mas esta morena não sabe o sistema que eu fui criado To aqui cantando, de longe escutando Alguém está chorando, com o rádio ligado Que saudade imensa do campo e do mato Do manso regato que corta as campinas Aos domingos ia passear de canoa Nas lindas lagoas de águas cristalinas Que doce lembrança daquela festança Onde tinha dança e lindas meninas Eu vivo hoje em dia sem ter alegria O mundo judia, mas também ensina Estou contrariado, mas não derrotado Eu sou bem guiado pelas mãos divinas Pra minha mãezinha já telegrafei E já me cansei de tanto sofrer Nesta madrugada estarei de partida Pra terra querida que me viu nascer Já ouço sonhando o galo cantando O nhambu piando no escurecer A lua prateada clareando a estrada A relva molhada desde o anoitecer Eu preciso ir pra ver tudo ali Foi lá que nasci, lá quero morrer

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É DISSO QUE O VELHO GOSTA

Gildo Campos/ Berenice Azambuja Eu sou um peão de estância Nascido lá no galpão Churrasco, bom chimarrão E aprendi desde criança Fandango, trago e mulher A honrar a tradição É disso que o velho gosta É isso que o velho quer Meu pai era gaúcho Que nunca conheceu o luxo Mas viveu folgando, enfim E quando alguém perguntava Do que ele mais gostava O velho dizia assim Churrasco, bom chimarrão Fandango, trago e mulher É disso que o velho gosta É isso que o velho quer E foi assim que aprendi A gostar do que é bom A tocar minha cordeona Cantar sem sair do tom Ser amigo dos amigos Nunca fugir do perigo Meu velho pai me ensinou Eu que vivo a cantar Sempre aprendi a gostar Do que o meu velho gostou Churrasco, bom chimarrão Fandango, trago e mulher É disso que o velho gosta É isso que o velho quer Saí da minha fazenda E me soltei pelo pago E hoje tenho uma prenda Para me fazer afago E quando vier um piazinho Para enfeitar vou ter E se ele me perguntar Do que se deve gostar Como meu pai vou dizer

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CAVALO ENXUTO Moacyr dos Santos/Lourival dos Santos

Eu tenho um vizinho rico Cheguei no portão primeiro Fazendeiro endinheirado Dei um beijo na donzela Não anda mais a cavalo Quando o granfino chegou Só compra carro importado Eu já estava nos braços dela Eu conservo a minha tropa O progresso é coisa boa O meu cavalo ensinado Reconheço e não discuto O fazendeiro moderno Mas aqui no meu sertão Só me chama de quadrado Meu cavalo é absoluto Namoramos a mesma moça Foi Deus e a natureza Veja só o resultado Que criou esse produto Um dia a moça falou Essa vitória foi minha Pra não haver discussão E do meu cavalo enxuto Vamos fazer uma aposta A menina hoje vive A corrida da paixão Nos braços deste matuto Granfino corre no carro Você no seu alazão Eu vou pra minha fazenda Esperar lá no portão Quem dos dois chegar primeiro Vai ganhar meu coração Ele calibrou os pneus Apertou bem as arruelas Eu ferrei o meu cavalo Que tem asas nas canelas O granfino entrou no carro Pulei em cima da sela Ele funcionou o motor E fechou bem as janelas Chamei o macho na espora Bem por baixo das costelas Eu entrei pelos atalhos Pulando cerca e pinguela Quando terminou o asfalto Ele entrou numa esparrela Numa estrada boiadeira Toda cheia de cancela

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CABOCLA TEREZA

João Pacífico / Raul Torres Lá no alto da montanha E muito tempo passou Numa casa bem estranha Pensando em ser tão feliz Toda feita de sapé Mas a Tereza, doutor Parei uma noite o cavalo Felicidade não quis Por causa de dois estalos Pus meu sonho neste olhar Que ouvi lá dentro bater Paguei caro o meu amor Apeei com muito jeito Por causa de outro caboclo Ouvi um gemido perfeito Meu rancho ela abandonou Uma voz cheia de dor: “Você, Tereza, descansa Senti meu sangue ferver Jurei de fazer vingança Jurei a Tereza matar Por causa do meu amor” O meu alazão arriei Pela fresta da janela E ela eu fui procurar Por uma luzinha amarela Agora já me vinguei De um lampião quase apagando É esse o fim de um amor Vi uma cabocla no chão Essa cabocla eu matei E um cabra tinha na mão É a minha história, doutor. Uma arma alumiando Virei meu cavalo a galope Risquei de espora e chicote Sangrei a anca do tal Desci a montanha abaixo E galopando aquele macho O seu doutor fui chamar Voltemos lá pra montanha Naquela casinha estranha Eu e mais seu doutor Topei um cabra assustado Que chamando nós prum lado A sua história contou Há tempo eu fiz um ranchinho Pra minha cabocla morar Pois era ali nosso ninho Bem longe deste lugar No alto lá da montanha Perto da luz do luar Vivi um ano feliz Sem nunca isso esperar

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LIGAÇÃO URBANA

Bruno & Marrone

(Letra: Jaílton Vieira) Alô amor, tô te ligando de um orelhão Tá um barulho, uma confusão Mas eu preciso tanto te falar Depois das seis, tô te esperando no mesmo lugar Pois estou louco pra te encontrar Pra outra noite de aventura Fui eu que fiz amor por brincadeira E acabei me apaixonando Meu amor, eu me rendo a você Pois estou te amando Você deixou em mim uma saudade Com seu jeito de fazer paixão Você fez maravilhas, loucuras No meu coração Um beijo pra você Não posso demorar Tô numa ligação urbana Tem mais gente pra ligar Um beijo pra você Não posso demorar Tô numa ligação urbana Vem correndo me encontrar Uô Uô Uô Uô, eu tô louco pra te amar Uô Uô Uô Uô, vem correndo me encontrar Uô Uô Uô Uô, eu tô louco pra te amar Uô Uô Uô Uô, vem correndo me encontrar Alô amor!!!

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DEIXA EU TE AMAR

Edson e Hudson (Letra: Edson/Flávio)

Por que você me olha assim? Qual o seu medo? Alguém já te fez sofrer? Qual o seu medo? Diz pra mim Se por amor já veio a sofrer E agora tem medo De amar e se envolver Qual o seu medo? Diz pra mim Sei que palavras não vão adiantar Se o coração não quer acreditar Confie em mim, não vai se arrepender O que eu mais quero É não te ver sofrer Amor sincero tenho dentro de mim Pra te dar, é só você querer e arriscar Pois não é ilusão Nem tampouco atração É mais forte do que pode pensar Não sabe o quanto Já sofri por amor Conheço bem essa dor Que destrói e causa insegurança demais Pra você superar Tem que uma chance se dar E não ter medo de se apaixonar Deixa eu te amar

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AINDA ONTEM CHOREI DE SAUDADE

João Mineiro e Marciano

(Letra: Moacir Franco)

Você me pede na carta Que eu desapareça Que eu nunca mais te procure Pra sempre te esqueça Posso fazer sua vontade Atender seu pedido Mas esquecer é bobagem É tempo perdido Ainda ontem chorei de saudade Relendo a carta, sentindo o perfume Mas que fazer com essa dor que me invade Mato esse amor ou me mata o ciúme O dia inteiro te odeio, te busco, te caço Mas em meu sonho de noite, eu te beijo e te abraço Porque os sonhos são meus, ninguém rouba e nem tira Melhor sonhar na verdade Que amar na mentira

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TRISTEZAS DO JECA

Angelino de Oliveira Nestes versos tão singelo minha bela, meu amô. Pra mecê quero contá o meu sofrê a minha dô eu sou como o sabiá Que quando canta é só tristeza desde o gaio onde ele está Nesta viola eu canto e gemo de verdade. Cada toada representa uma saudade. Eu nasci naquela serra num ranchinho à beira-chão todo cheio de buraco onde a lua faz clarão E quando chega a madrugada lá no mato a passarada principia o baruião. Lá no mato tudo é triste desde o jeito de falá quando riscam da viola dá vontade de chorar num tem um que cante alegre todos vivem padecendo cantando pra se aliviá. Vô pará co’a minha viola já num posso mais cantá pois o jeca quando canta tem vontade de chorá E o choro que vai saindo devagá vai se sumindo como as água vão pro má.