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11 a 22 de Novembro de 2015 | Nº 95 | Ano IV Director: José Luís Mendonça •Kz 50,00 LETRAS 1975 – 2015 VOZES E RITMOS ANGOLANOS NA GRANDE ORQUESTRA DA INDEPENDÊNCIA PÁG. - 6-8

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11 a 22 de Novembro de 2015 | Nº 95 | Ano IV Director: José Luís Mendonça •Kz 50,00

LETRAS

1975 – 2015VOZES E RITMOS ANGOLANOS NA GRANDE ORQUESTRA DA

INDEPENDÊNCIAPÁG. - 6-8

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2 | ARTE POETICA 11 a 22 de Novembro de 2015 | Cultura

POEMA DE AGOSTINHO NETO

A VOZ IGUALNeste amanhecer vitalpara os acontecimentos extraordináriospor montes e rios, por anharas e preconceitoscaminhamos já vitoriosossobre a condição moribundaUm amanhecer vitalem que se transforma as sensações orgânicassobre o solo pátrioAs flores apenas pétalas e aromaos homens apenas homenso lavrador possuindo a terra em associação pereneo operário da fábrica consciencializado a máquinae a nossa voz gritando igual no seio da Humanidadena mesma hora em que a mentirase esconde na covarde violênciaOs homens saídos dos cemitérios da ignorânciadas ossadas insepultas dos arrabaldes das cidadesnas sanzalas e nas terras estéreissão os eleitosos participantes efectivos no festim da nova vidae das suas vicissitudesOs homenscuja voz descansou sob a condição e sob o ódioe construíram os impérios do Ocidenteas riquezas e as oportunidades da velha Europamantendo os seus pilares sobre a angústia pulsátil dos braçossobre a indignidade e a morte dos seus filhosos homens sacrificados nos traços paralelos das vias férreascujo sangue se encontra nas argamassaslançado com pontes e estradastambém prenderam as águas nas barragenscom as suas mãos formidáveis e com os seus mortosderam ao brilho das metrópoles ouro e diamantese das entranhas da terra mungiram óleos e farturaspara os sorrisos ingratose na sua bondade na sua visionária esperançapediram às estrelasapenas o complemento espiritual do dia escravoPovo genial heroicamente vivoonde outros pereceramde vitalidade inultrapassada na Históriaalimentou continentes e deu ritmos à Américadeuses e agilidade nos estádioscentelhas luminosas na ciência e na arte

Povo negrohomens anónimos no espírito da triste vaidade brancaagora construindo a nossa pátriaa nossa Áfricae no traço luminoso dos dias magníficos de hojedefinem a África solidária e esforçadacontra os desvarios duma natureza incongruentena independêncianum mundo novo com a voz igualchegada a hora das transformações cósmicasque atingem a terra e catalisam os fenómenoso raio mortífero da revoluçãopulveriza a submissão do homeme na força da amizade se encontram as mãosse beijam as facesNa hora das transformações humanaso chilreio infantil da mocidade felizcantando em rodas ensaiadas pelos avósfalando nas nossas línguas a tradição da nossa terraharmonizando as vozes na hora da independênciareconquistando o solo pátriopara o nosso homempreenche-lhe o vazioCantam nas praças e nos templos da sabedoriaas raparigas os poetas o brilhos das estrelasmergulhadas as raízes no húmus ancestral da ÁfricaChegados à horafervilha a impaciência nos corações que lutampelo fumegar das fábricas e chiar dos guindasteshomens e rodas, suor e ruidoconjugados na construção da pátria libertadaconscientemente na construção da pátriasem que o germe da exploração lhe penetresem que a voz nauseabunda do capatazanuncie o cair do chicotee os homens felizes na incomodidade de hojenos campos de batalha, nas prisões, no exílioconstruindo o amanhã, para uma terra nossa uma pátria nossaindependenteConstruçãoereencontroChegados à horacaminha o povo infatigável para o reencontropara de novo se descobrir e fazer

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ARTE POETICA | 3Cultura | 11 a 22 de Novembro de 2015

Reencontrar nos álcooisNo sangue demoníaco das entranhas feiticistas da terraonde se espelham os horizontes infernais da mortee se cruzam razão e loucurabílis amaríssima no encarceramento da prudênciae da capacidadebuscar nos álcooiso amor à cultura à investigação à criaçãoà explicação do cosmoso domínio da seta veloz sobre a vida do antílopeda água sobre as chamas ateadas pelo raioa forma e o âmagodo estilo africano de vidaDo caos para o reinício do mundopara o começo progressivo da vidae entrar no concerto harmonioso do universaldigno e livrepovo independente com voz iguala partir deste amanhecer vital sobre a nossa esperança.Arquipélago de Cabo Verde

Ponta do SolDezembro de 1960

nas melodias e nos cheiros ancestraisna modificação progressiva dos sacrifícios aos deusesnas violências sagradas e nos ritos sociaisna revivificação e na carinhosa adoração dos mortosno respeito do vivosnas orgíacas práticas do nascimento e da mortena iniciação da vida e do amorno milagroso pacto entre o homem e o cosmosReencontrar a África no sorrisono choque diário com os fantasmas da vidana consagração da sabedoria e da pazlivres do constrangimento livres da opressão livresReencontrar-se nos campos de trabalhona socializaçãona entreajuda gloriosa nos camposnas construçõesnas caçadasna colectivização das catástrofes e alegriasna congregação dos braços para o trabalhoreencontrar-se nas tradições e nos caminhos feiticeirosno medo no furor dos rios e cataratasna floresta na religião na filosofiaa essência para a nova vida de ÁfricaRessuscitar o homemnas explosões humanas do dia a diana marimba no chingufo no quissange no tamborno movimento dos braços e corposnos sonhos melodiosos da músicana expressão do olhare no acasalamento sublime da noite com o luarda sombra com o fogo do calor com a luza alegria dos que vivem com o sacrifício gingado dos diasReencontrarnos sagrados refúgios das horas de angústiaos homens perdidos nos labirintos alcoólicosvícios da escravidãoe socorro extremo para a fome crónicados dias de frio e de calor de tristeza e de alegriados dias de farra e dos dias de rusgados minutos importantíssimos da existência imediataimprevisível indispensávelcom ódios amizades traições riso choro forçafadiga energia ânimo desânimo silêncioruídos de terramoto soltos pelas mãosansiosas de êxito e de esquecimentoe de sonoras palavras nas letras das músicas desesperadaslançadas nos bailes de sábado sobre as poeiras dos quintaise o desejo incontido de se realizarde ser homemde encontrar o calor supremo na superfície carnal do outroa voz amiga na laringe longínqua do outroafagando um pouco a vidanum artifício monstro da liberdade ansiada

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4 |ECO DE ANGOLA 11 a 22 de Novembro de 2015 | Cultura

Conselho de AdministraçãoAntónio José Ribeiro (presidente)

Administradores ExecutivosCatarina Vieira Dias CunhaEduardo MinvuFilomeno ManaçasSara FialhoMateus Francisco João dos Santos JúniorJosé Alberto Domingos

Administradores Não ExecutivosVictor SilvaMateus Morais de Brito Júnior

PROPRIEDADE

Sede: Rua Rainha Ginga, 12-26 | Caixa Postal 1312 - Luanda Redacção 222 02 01 74 |Telefone geral (PBX): 222 333 344Fax: 222 336 073 | Telegramas: ProangolaE-mail: [email protected]

CulturaJornal Angolano de Artes e Letras

Um jornal comprometido com a dimensão cultural do desenvolvimento

Nº 95 /Ano IV/ 11 a 22 de Novembro de 2015

E-mail: [email protected]: www.jornalcultura.sapo.aoTelefone e Fax: 222 01 82 84

CONSELHO EDITORIAL:

Director e Editor-chefe: José Luís MendonçaSecretária: Ilda RosaAssistente Editorial: Coimbra Adolfo (Matadi Makola)Fotografia: Paulino Damião (Cinquenta)Arte e Paginação: Sandu Caleia, Jorge de Sousa, AlbertoBumba e Sócrates SimónsEdição online: Adão de Sousa

Colaboram neste número:

Angola: Agostinho Neto, André Lukamba, Armindo JaimeGomes, Francisco Keth, Lito Silva, Manuel Rui, MadalenaJúlio, Mário Araújo, Mário Pereira.

Portugal: Artur da Costa S. Silva

Normas editoriaisO jornal Cultura aceita para publicação artigos literário-científicose recensões bibliográficas. Os manuscritos apresentados devemser originais. Todos os autores que apresentarem os seus artigospara publicação ao jornal Cultura assumem o compromisso denão apresentar esses mesmos artigos a outros órgãos. Apósanálise do Conselho Editorial, as contribuições serão avaliadas e,em caso de não publicação, os pareceres serão comunicadosaos autores.

Os conteúdos publicados, bem como a referência a figuras ougráficos já publicados, são da exclusiva responsabilidade dosseus autores.

Os textos devem ser formatados em fonte Times New Roman,corpo 12, e margens não inferiores a 3 cm. Os quadros, gráficose figuras devem, ainda, ser enviados no formato em que foramelaborados e também num ficheiro separado.

SABIA A SOL A MARÉ DA MADRUGADA

SABIA A SAL DO SOL SEM DESPEDIDA

SABIA A MULHER POR MAIS AMADA

COM BOCA DE BEIJAR NUNCA SABIDA

SABIA AO BALOUÇAR DE UMA JANGADA

NUM RIO DE SABOR A DOR SOFRIDA

SEM CABO NEM ÂNCORA FERRADA

EM PRAIA COM A LUA ENTORPECIDA

AS CORES PINTANDO O CÉU NUMA QUEIMADA

CAPIM ARDENDO COMO FOGO EM FERIDA

NA TERRA UMA LÁGRIMA CALADA

A SORTE CADA VEZ MAIS ESQUECIDA

DE UMA MANHÃ QUE FOI TUDO E QUASE NADA

COM A ESPERANÇA NUM BECO SEM SAÍDA.manuel rui

16/12/2014

MANHÃ DE ONZE

DE NOVEMBRO

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ECO DE ANGOLA |5Cultura| 11 a 22 de Novembro de 2015

O fio condutor das energias da forçavital das elites sociopolíticas de Ango-la foi forjado pelo mercantilismo dosséc. XV/XIX, com a emersão da bur-guesia esclavagista africana. Em con-sequência do abolicionismo do séc.XIX, esta classe converteu-se na bur-guesia mercantil do sertão substituin-do o escravo traficado por mercadorde marfim, látex e cera. Para assegura-mento de mão-de-obra reduzindo asdespesas com honorários e a criaçãode áreas de influencia que, estrategi-camente os sertanejos e pombeiros detoda índole esposaram as filhas dosSobas, cruzando a burguesia mercan-til com a aristocracia endógena uteri-na. Com o declínio do mercado serta-nejo, o tipo de alianças entre a burgue-sia mercantil e a aristocracia ruralconverteu-se no pilar da burguesiaeclesiástica (SANTOS, 1969) com afundação de missões protestantes ru-rais circunfechadas nos princípios doDecreto 77/21, de 9 de Dezembro(HENDERSON, 1990) e do Acto Colo-nial, com destaque a Kibokolo para oscristãos baptistas, Késua aos metodis-tas, Dôndi entre os congregacionais(SANTOS, 1969).É com o Acto Colonial (1933/1974)que se estabeleceu a supremacia colo-nial sobre a população angolana (ALE-XANDRE, 2000), fase correspondente àconjuntura traduzida no desejo deromper com a orientação republicanareflectindo a perene apreensão face aoinício das manifestações (CASTRO,1996) nacionalistas dos angolanos(ROCHA, 2001), bastando recordar afundação da Organização Socialista deAngola (OSA) com berço ideológico en-tre estudantes reinóis do Liceu do Huam-bo (1937/1948) e a criação do Movi-

mento dos Novos Intelectuais de Angola(MNIA) por jovens assimilados do lito-ral. No início da década de 1950, foi cria-do o Clube dos Marítimos Africanos(CMA) e, em 1953, o Partido da LutaUnida dos Africanos de Angola (PLUA)tal como o movimento político da Uniãodas Populações do Norte de Angola (UP-NA) enquanto em 1955 criou-se o Parti-do Comunista de Angola (PCA) (cfr., op.cit.).Neste período Angola tornou-se es-paço fértil de manifestações sociopo-líticas tendo conhecido reacções anti-coloniais de toda ordem aparente-mente isoladas, com lideranças anóni-mas ou de chefaturas residuais tradi-cionais endógenas, incluindo grevesde trabalhadores brancos, particular-mente no litoral, onde o desenvolvi-mento das forças produtivas já eraperspectivado no âmbito colonial so-bretudo em Luanda, Lobito, Benguelae no planalto (ROCHA, 2001) forçandoo sistema a criar uma entidade policialde repreensão.Embora date de 1956 (ALEXANDRE,2000), foi em 1954 que se criou a dele-gação angolana da Polícia Internacio-nal e de Defesa do Estado (PIDE)/DGS –Direcção Geral de Segurança (1969),com a missão de reprimir a consciêncianacional. Nos seus actos respondendoà conjuntura, através de desterros,criação de povoações heterogéneas, nocaso do planalto influenciado pelaMIIA2 (1964/1974) e a Extensão Rural(1969/1974), promoção de fugas deangolanos de área sociocultural a ou-tra, esta polícia contrariou as medidasque entravavam o convívio inter-étni-co e que asseguravam a separação deafricanos por decretos.Os instrumentos aplicados na ges-

tão colonial desta época, serviram deinserção da burguesia rural no siste-ma pois, bisnetos dos pombeiros esertanejos; reinóis, mestiços, assimi-lados assim categorizados, eram fi-lhos de Sobas, Padres, Pastores e eliteseclesiásticas, beneficiários de bolsasde educação ocidental que, de voltacoadjuvaram os pais e irmãos uteri-nos, submetidos ao indigenato (CRUZ,2006), na luta contra o colonialismo(1945/1975). Assim, a década de1960 despertou a consciência africa-na (CASTRO, 1996) então humilhadaao longo de 478 anos (1960-1482)unindo fileiras em torno de movimen-tos políticos representativos; a UPA(1954) do berço dos baptistas de Ki-bokolo, o MPLA (1956) germinado en-tre renóis litorâneos e metodistas doKésua, a UNITA (1966) subsidiada pe-los congregacionais do Dôndi. Incapa-zes de se livrarem dos traumas do im-pacto do Decreto 77/21 e do Acto Co-lonial (1933), cujo défice da consciên-cia de unidade nacional, levou-os aoPacto de Alvor (1975), tentaram semêxitos formalizar o espírito de recon-ciliação (HEIMER, s/d). Induzida pelainterpretação da visão ocidental, aformalização da reconciliação naperspectiva Bantu em função da reali-dade angolana aqui descrita, torna-senula pois o substrato sociocultural daraiz ntu é, por sua própria natureza,reconciliável e solidário. A independência de Angola foi pro-clamada a 11 de Novembro de 1975no clima nacionalista, sem premissasde unidade (ROCHA, 2001); Portugaldeixava Angola como província ultra-marina gerida através do Acto Colo-nial (1933) instrumento auxiliado pe-lo Decreto 77/21. Vindos da resistên-

cia armada, sem terem conseguido ul-trapassar as diferenças (cfr., ROCHA,2001 & HEIMER, s/d), do impacto des-tes dois instrumentos, os angolanoscomprometiam-se herdar uma pro-víncia ultramarina de retalhos etno-nacionais com complexos sociocultu-rais formalmente fechados, mais oumenos, entre si. Não obstante às desa-venças (LARA, 1998, 2006 & 2008)devidas da interpretação do Pacto deAlvor (1975) pelos três movimentosrepresentativos, o ponto culminante,servindo de alarme das fissuras à na-cionalização da consciência angolana,como um todo diversificado, coube aum movimento aparentemente es-pontâneo dado por Fraccionismo, porter se articulado da dissidência doMPLA que, em 1977 tentou alterar oquadro político dos primeiros doisanos da independência.Face a imprevisibilidade do contex-to, na administração de um conjuntode realidades socio-políticas, etno-linguísticas, multicultural e multira-cial, o MPLA realizou o primeiro con-gresso (1977) servido de instrumentode transição de movimento de liberta-ção ao partido político, definindo a suaideologia com a aprovação do progra-ma e estatutos. No seu projecto de ine-pendência, estabeleceu as linhas-mestras do desenvolvimento econó-mico e social para os primeiros trêsanos de governação da República Po-pular de Angola (1977/1980). Desdeentão, tornaram-se mensuráveis asestratégias de (des)construção da«Nação Angola» capitalizando-se naseguinte palavra de ordem: «De Ca-binda ao Cunene, um só povo, uma sónação!». Como indicadores as referi-das estratégias medem-se: i) por intermédio de um programanacional de encaminhamentos deadolescentes e jovens de uma área so-ciocultural a outra, massificando-se aeducação formal em todos os níveis.Sem medir custos, incalculáveis con-tingentes de angolanos beneficiaram-se de bolsas dentro e fora do país;ii) a mesma estratégia serviu no re-crutamento de jovens abrangidos pe-lo serviço obrigatório das FAPLA. Atéentão fechado por áreas sociocultu-rais, a República Popular de Angola

TRAJECTÓRIA DA NAÇÃO ANGOLANACONTRIBUIÇÃO SINTÉTICA PARA O 40º ANIVERSÁRIO DA INDEPENDÊNCIA

IV – INÍCIO DA CONSTRUÇÃO DA NAÇÃO ANGOLANA

ARMINDO JAIME GOMES(ARJAGO)1

Ilustração de Ângelo de Carvalho

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abria-se rompendo as barreiras doimpacto dos Decretos 77/21, de 9 deDezembro de 1921 e do Acto Colonialde 1933 que levaram ao fracasso (TEI-XEIRA, 2010) do Pacto de Alvor(1975) e à chamativa tentativa frac-cionista no MPLA de 1977. Os angolanos das mais novas gera-ções viviam os primeiros anos da in-dependência nacional (1978/1980)conhecendo Angola à medida que iamse redescobrindo. Aos adultos (GO-MES, 2013), foi projectada a mega-campanha de alfabetização de que aRepública Popular de Angola mereceuum prémio da UNESCO (NGULA,2003). Embora se tenha aplicado ométodo da guerrilha, ao invés de frei-reano, foi um outro meio estratégicoque serviu para conscientização(FREIRE, 2001)) do cidadão de Angolaindependente.Entretanto, apesar de tudo que ca-racteriza a guerra civil (1975/2002),resultante da interpretação do Pactode Alvor (1975), foi ela a força motrizda construção da nação angolana. Deuma maneira ou de outra nós angola-nos fomos autores e actores: todos so-fremos atacando-nos, defendendo-nos, clamamos pela paz, solidarizando-nos, reconciliando-nos, reconhecendo-nos pela identidade, enfim, forjamo-nos na consciência de sermos os mes-mos no mesmo espaço, com o nossopróprio sangue tal como em fases depovoamento deste território que vin-dos das realidades não-Bantu e Bantu,cruzamo-nos ao reassentamento pré-colonial (séc. XV/XIX), triangulamo-nos com o colonialismo (XIX/XX) e oprocesso continuou sendo assumidodepois da celebração do Memorandode Entendimento do Lwena (2002). Hoje, 13 anos depois do Memoran-do ora referenciado, aos 40 anos daproclamação da independência nacio-nal, para uma realidade cuja popula-ção é maioritariamente jovem, a lin-guagem da antropologia colonial(PARREIRA, 1998) relativamente aospreconceitos de raça, etnia, credo, re-gião, absorveu-se do léxico nacional.Terminologias de complexos de supe-rioridade versus inferioridade tais co-mo matumbo, (in)civilizado, gentio,sanzaleiro, munano, patrício, kamun-dongo, mukakwiza, malanjino, bailun-do, cafuso, cabrito, ganguela, calcinha,mato, sanzala, musseque, quimbo, etc.,foram substituídos por identitários:do Huambo, de Cabinda, do Lwena, doUíge, da província, do município, etc.Se Angola é ou não uma nação, a res-posta está nos paradigmas precipita-dos no contexto social e cultural datrajectória histórica de Angola ao 40ºaniversário da sua independênciapois, não é menos verdade que asfronteiras, que nos foram separando,mediantes estereótipos e preconcei-tos, ergueram-se a partir do exterior.Os etnónimos que o povo angolano éalvo no caso de Bakhongo, Ambundu,Balunda, Cokwe, Ovimbundu, Van-gangela, Valwimbi, Ovambo (Ambô),Vahelelo, Vaxindonga, etc., são irrele-

vantes por tratarem-se de designa-ções resultantes de caracterização daslocalizações, ocupações, diferencia-das que serviram para identificar ooutro a partir do olhar externo, geral-mente ocidental.Síntese da trajectória cronológicaDizer que Angola é conhecida en-quanto país e os seus habitantes sãoidentificados como angolanos para-fraseando A. J. Gomes (2013:64), “há500 anos não é o mais correcto mas, asua evolução tem a ver com os proces-sos que contribuíram no projecto daconstrução” da angolanidade partin-do de uma perspectiva histórica denação com 533 anos (1482-2015).Percebe-se das descrições em páginasantecedentes que resultou de um con-junto de dinâmicas euro-africanas ca-racterizadas por contactos sistemáti-cos do mercado e trocas de valores ci-vilizacionais através da penetração,ocupação, colonização, descoloniza-ção, (re)unificação, segundo o autorem epigrafe (cfr., op. cit. p.64) mas, pa-radoxalmente, numa constante luta àsua própria custa.No total foram 93 anos (1575-1482) de aparentes contactos merca-dológicos e civilizacionais entre por-tugueses e bakhongo com perdas,adopções e ganhos recíprocos, da vio-lência à paz. Os 42 anos (1617-1575)seguintes o mercado foi suportadopor hostilidades declaradas entreportugueses e as autoridades do Ngo-la envolvendo os Helelo, particular-mente as comunidades vandombe(1617) que, por características da rea-lidade socio-económica que lhes erampeculiares, não resistiram à demandaocidental. E mais, a regra do jogo dita-da pelo mercado europeu que consis-tia no escravo traficado levou os im-plicados ao ambiente de violênciasconstantes durante 374 anos (1856-1482).Os portugueses precisaram, maisou menos, entre 304 anos (1879-1575) a 262 anos (1879-1617) de pe-netração litorânea para se considerarAngola estendida ao interior. Mas, fo-ram necessários 309 anos (1926-1617) para que a topografia formali-zasse o actual mapa de Angola com po-

vos dignos de se identificarem comoangolanos então colonizados da coroalusitana, ao que oficialmente chamou-se de província ultramarina de Ango-la. Neste trecho de tempo (1640-1600), o litoral até aqui sob auspíciosde Portugal (Luanda, Benguela e Na-mibe), ficou assenhoreado pelos Esta-dos Gerais, cujos holandeses deixa-ram disseminadas as suas marcas ci-vilizacionais em cerca de 40 anos.Perdido o Brasil em 1822, Portugaltornou sério o projecto de povoamen-to branco de Angola, sem grandes re-sultados, durante 120 anos (1974-1854) ao mesmo tempo que passou desimples penetração mercantil escla-vagista à luta pela ocupação colonial,cujas hostilidades que caracterizaramtais estratégias passaram a chamar-sede guerras de pacificação pelo que du-raram 42 anos (1926-1884).Vencidos os angolanos que ficaramdevido a hegemonia militar ocidental,traduzida em avanços tecnológicos, nocaso do uso da pólvora, foi implemen-tado um tipo de administração directaem regimento colonial durante 55 anos(1975-1920). Em 45 anos (1945-1900) deste regimento emergiram no-vas classes sociais características do ti-po do colonialismo; os reinóis e assimi-lados, frutos da educação formal oficia-lizada e serviram de trampolim à cons-cientização (cfr. FREIRE, 2001) nacio-nal até que do movimento intelectualnasceram associações político-nacio-nalistas anti-coloniais pela descoloni-zação de Angola que em 14 anos (1975-1961) hostilizaram, humilharam evenceram o colonialismo português. Ainda sim, não era desta vez que sepodia falar do projecto-nação angola-na, mas, a nova era da existência deAngola enquanto país com angolanosna razão de povos até que, em 1977, fi-cou implementado o projecto de na-ção que marcou os 40 (38!...) anos daindependência de Angola distribuídosentre 27 de guerra civil (2002-1975)dos quais dois (1975-1976), sem refe-rências de realce histórica e 13 anosde paz (2015-2002) militar, portanto,sem escaramuças.No geral, o período antes dos contac-tos entre as civilizações cristãs e os

bakhongo, embora quase desconheci-do, o desenvolvimento sócio-políticodescrito em narrativas europeias resu-me-o com indicadores de calmia, har-monia e paz. Período similar corres-ponde com os 64 anos (1920-1856) doapogeu do mercado sertanejo (Luan-da/Kasanji, Catumbela/Ekovongo),em que as fronteiras étnicas e rácicaseram insignificantes, mas é nos últimos13 anos (2015-2002) que o sentimentode pertença começa a ser uno; somosum país (consciência de território), umpovo (consciência de comunhão de tra-dições e cultura), uma nação (cons-ciência nacional), no total de 533 anos(2015-1482) de contactos com valoresexógenos, ao que agora (séc. XXI) cha-mam de globalização, muitos entre elesde pendor violento.CONCLUSÕESO presente texto faz-nos perceberque a trajectória histórica da(des)construção da nação angolana,face aos 40 anos da independência,circunda em torno de um conjunto dedinâmicas que classificam o espaçopor que ocorreram como mercado en-cruzilhando culturas pois, o poder po-lítico tradicional, mesmo antes da co-lonização efectiva, justificava-se apartir da linha uterina e as rupturasnos sistemas de parentesco multifun-cional fomentavam a emersão, a con-solidação e desagregação de estadosendógenos. Assim, torna-se com-preensível que entidades de uma rea-lidade sociocultural encontravamguarida noutras consolidando-se, for-mando novas ou fazendo desapareceras encontradas. Esta relação é implíci-ta ao espírito da pessoa humana da fa-la Bantu que a dada altura achou-se ví-tima da estratificação em resposta àsestratégias do mercado internacionalimposto pelo progresso ocidental.Eis os pilares da triangulação da na-cionalização da nação angolana ba-seados nos pressupostos acima enu-merados:O primeiro pilar consiste na emer-gência de instituições socio-políticasdos séc. XVII a XIX com desta às Im-bangala, Ovimbundu e Cokwe. O pro-cesso em si justifica a difusão proto-

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Bantu do foco do Shabá ao territórioque corresponde com a República deAngola pois a realidade geográficadestes séculos caracteriza os estadosLunda, Luba, Kuba. Os Imbangala,Ovimbundu e Cokwe, particularmen-te, sintetizaram os valores endógenosdo processo de reassentamento dascivilizações fluviais do médio e altoKwanza assim como das nascentes doKeve e Kunene.O segundo pilar está relacionado como esforço desencadeado pela Coroa por-tuguesa na tentativa de legitimar a suahegemonia política em África, com baseem projectos de aparentemente fracas-sados de povoamento. Para tal, foramenvolvidas famílias ocidentais e africa-nas. Do séc. XVII ao XX, vieram degreda-dos, comercializaram-se escravos, mo-bilizaram-se famílias livres, desterra-dos africanos, contratados.O terceiro pilar consiste na imple-mentação de estratégias do I Congres-so do MPLA de 1977, através de enca-minhamentos de alunos, adolescentese jovens mas, também as forças arma-das distribuídas em função de áreassocioculturais. A dispersão de refugia-dos de guerras, sobretudo, de 1975 a2002, impulsionou sobremaneira aconsolidação este pilar.As desavenças socio-políticas re-sultantes das dinâmicas do mercadointernacional de que nós angolanosfomos alvos em 520 anos (2002-1482), obedeceram às visões dísparese estratégicas da antropologia cultu-ral ocidental que via nos africanos, nocaso de Angola, distintas realidadesignorando, em seu próprio benefício,que eram de uma única entidade, ntu. Independentemente da projecçãomercantil com mais de 500 anos, en-volvendo inúmeras realidades socio-culturais, etno-linguísticas e raciaisdas mais distintas origens, a nação an-golana emerge de um processo longode (des)construção de entidades so-cio-políticas de um tronco comumcom base no mercado inserido numaencruzilhada de valores. É claro, que omérito da independência nacionalque, para se tornar realidade, nos em-batemos, razão porque a nação ango-lana resulta de sangue jorrado em 427

anos (2002-1575, reside no início daconstrução da nação, de que todos nossentimos parte, impondo perante omundo a nossa dignidade pois a re-conciliação é em si o nosso ser, ntu.________________________________BIBLIOGRAFIA REFERENCIADA

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1. Docente da Academia Militar do Exérci-to de Angola, Lobito

2. Missão de Inquéritos Agrícolas de An-gola

FRANCISCO P. KETH|Os feitos Pedro Alfredo Ra-malhoso, dos últimos seteanos, remetem-nos à me-mória da cinematografia nacionalquer do período áureo do CinemaAngolano, ou seja, dos primórdiosforjados por profissionais da pri-meira geração, quer do actual mo-mento levado a cabo pela nova ge-ração que sempre encontrou am-paro da sua parte, encorajando-ose aceitando os diversos desafiosapresentados pelos jovens.Independentemente da sua con-dição de Director-geral do Institu-to Angolano de Cinema, Audiovi-sual e Multimédia (IACAM), PedroA. Ramalhoso esteve sempre na li-nha da frente quando se tratassede “acção” para avançar com o ci-nema. A título de exemplo, foi a suaprontidão e apoio, quando em2014 um grupo de profissionais eamantes de cinema e audiovisualdecidiu sentar para criar a Associa-ção Angolana dos Profissionais deCinema e Audiovisual (APROCI-MA). A presença nos encontros e oincentivo de Pedro Ramalhosotambém serviu de impulso para acriação da associação.Desde então, nunca, em nenhummomento recusou dar quaisquerapoios: financeiro, moral e mate-

rial. A nossa recente participaçãona 9ª Edição da Feira Internacionaldo Livro e do Disco, organizada pe-la Arte Viva; e a nossa primeira ac-ção de Formação (Cursos Intensi-vos de Cinema), só foram possíveisgraças ao apoio incondicional eimediato de Pedro A. Ramalhoso,não só actuando como Director-ge-ral, tão pouco pela amizade, masera real a sua intenção e desejo dever crescer o cinema angolano,também com a nova geração.Vários projectos idealizámosjuntos e, ficaremos com a incum-bência de os concretizar para hon-rar o seu nome e desenvolver a sé-tima arte nacional. Adjectivos ja-mais irão substituir o “Bom” e a“Alegria” que nos proporcionouenquanto Jornalista, Homem do ci-nema e Amigo.À família enlutada, aos Ministé-rios da Comunicação Social e daCultura, assim como ao colectivode trabalhadores do IACAM, aAPROCIMA endereça sentimentosde pesar, extensivo ainda a todaMalta do Cinema Angolano.Secretário-geral da Associa-

ção Angolana dos Profissionaisde Cinema e Audiovisual, emLuanda, aos 4 de Novembro de2015.

O jornalista Pedro Ramalhoso fa-leceu dia 3 de Novembro, por doen-ça, no hospital de Oncologia, emLuanda. Foi quadro sénior da Tele-visão Pública de Angola (TPA) eum dos seus fundadores, donde deuinício a actividade jornalística em1975.Integrou a primeira equipa de jor-nalistas que se deslocou ao SaraOcidental, numa acção de solida-riedade e para retratar a luta dopovo saraoui contra a ocupação,que resultou o filme "Sara, a cora-gem vem do vento".Na TPA desempenhou a função deDirector de Comunicação e Marke-ting, depois de ter passado pelasDirecções de Informação e de Pro-gramas.Téu, como era chamado pelos maispróximos aceitou assumir a direc-ção do IACAM, vindo a ingressarnos seus quadros em 2009, com ze-lo, inteligência e aplicação.Nas funções de Director do IACAM,Pedro Ramalho, foi um dos impul-sionadores do Festival Internacio-nal de Cinema de Luanda (FIC) emuito contribuiu para a revitaliza-ção da produção cinematográfica.Participou activamente no proces-so da co-produção do filme "Deu-ses D'água" e em vários documen-tários nacionais.

PEDRO RAMALHOSOJornalista, Homem do cinema e Amigo

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ANTÓNIO QUINO

Rui Mingas é um daqueles ho-mens difíceis de caracterizar nu-ma linha recta, de tão diversifica-da que são as suas áreas de inter-venção: política, desporto, cultura,academia, compositor, interprete,filantropo, etc. É daquelas figurasque transpiram um incompreensí-vel simbolismo que dificulta a vidade qualquer entrevistador. Semdarmos por isso, colocamo-lo numpedestal. De seu nome completoRui Alberto Vieira Dias RodriguesMingas, nasceu em 1939 e perten-ce a uma família de influentes mú-sicos angolanos, como o seu tio Li-ceu Vieira Dias, o irmão André Min-gas, o primo Carlitos Vieira Dias.Não há, em Angola, um outro autorque tenha musicado e interpreta-do tantos poemas de diversos au-tores. É este homem que me permi-tiu realizar um velho sonho: entre-vistá-lo. Confesso que no centro daentrevista esteve sempre Agosti-nho Neto, devido a um velho pro-jecto de investigação que carregoe, para isso, intermediou o contac-to a sua irmã Amélia Mingas, mi-nha orientadora na licenciatura. Ea conversa aconteceu mesmo noSeu gabinete, na Universidade Lu-síada de Angola, no longínquo dia07 de Novembro de 2013.

Como e quando foi o primeirocontacto com Agostinho Neto?RUI Mingas: Conheci AgostinhoNeto, primeiro, de estórias. Pelo meupai. Não o Agostinho Neto poeta, mascomo parte de um grupo de jovensestudantes que foi a Portugal que,para a geração dos nossos pais, re-presentavam a grande esperançadas famílias africanas por uma lutade valorização dos funcionários queeram secundarizados pela estratifi-cação do regime colonial português.Para os meus pais, e outros pais,sempre que alguém partisse de An-gola para ir fazer a continuação dosestudos em Portugal, era uma espe-rança; era uma felicidade. Os paiseram capazes de fazer um almoço dedespedida para desejar boa sorteaos seus irmãos que iriam estudarem Portugal.

Pelos vistos, Agostinho Neto ti-nha destaque já na época…RUI MINGAS: Agostinho Neto era,para mim, uma referência histórica,pois ouvia o pai e os amigos a fala-rem dele com respeito e admiração.E a medida que fui ganhando cons-ciência das coisas, fui tendo contactocom as histórias de Agostinho Netopreso. Ora, quando eu vou para Por-tugal, Agostinho Neto ainda estavapor lá. Tive a oportunidade de co-nhecer Agostinho Neto na Casa dosEstudantes do Império, que era oponto de encontro de todos nós parainteragirmos com os representantesvindos de outras ex-colónias portu-guesas. Aí estavam Agostinho Neto,Amílcar Cabral, Paulo Jorge, Iko Car-reira, Gentil Viana, etc. Toda essagente se encontrava na CEI. E quan-do eu chego, Agostinho Neto era jáuma referência política e tido pornós como o líder dos angolanos. Nãoobstante que, naquela altura, não se

diferenciava muito, porque todas asfiguras de destaque político na CEIeram nossos chefes. Mas com Agosti-nho Neto havia uma maior proximi-dade pelo facto de termos vindo du-ma região comum. Portanto, foi as-sim que conheci Agostinho Neto.E quando acontece o primeiro

encontro com Agostinho Neto?Foi na CEI?Rui Mingas: Não foi na CEI. Encon-trei-me muitas vezes com AgostinhoNeto em casa de um marítimo, o ve-lho Tati, que morava na Praça da Fi-gueira, em Lisboa. E era na casa dovelho Tati que Agostinho Neto faziaas reuniões com muitos marítimos.Foi lá onde o encontrei pela primeiravez.Quem eram os marítimos?Rui Mingas: Os marítimos eram osagentes portadores das grandesmensagens. A autoridade política

portuguesa dificilmente se preocu-pava com os marítimos. Eles diziam:“Marítimos são trabalhadores de ba-se, não são intelectuais”. Então, eleseram uma grande força. E AgostinhoNeto conseguiu criar um grande am-biente de mobilização junto dessesmarítimos. Eu recordo-me que erana cozinha da casa do velho Tati on-de eu conversava às vezes com Agos-tinho Neto, enquanto na sala decor-riam sessões de música na presençade marítimos que viajavam para aAmérica Latina e traziam merengue,salsa e tal. Agostinho Neto vinha dar-me uma série de conselhos na cozi-nha. Foi uma ligação curta, porquedepois ele veio pra Angola de ondefoi desterrado depois para Cabo Ver-de.Essa ligação curta com Agosti-

nho Neto terá deixado marcas noseu sentido artístico e revolucio-nário?

RUI MINGAS“Quando leio uma poesia bonita…

… procuro completá-la com uma melodia”

Rui Mingas

LETRAS| 9Cultura | 11 a 22 de Novembro de 2015

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Rui Mingas: Esse curto tempo comAgostinho Neto foi muito tocante pe-la sua personalidade e pela naturezada sua mensagem poética. AgostinhoNeto era um poeta universalista, du-ma dimensão poética muito grande.E essa mensagem poética chega-

va a população iletrada?Rui Mingas: Pelo texto escrito, apopulação analfabeta não tinha aces-so. Mas essa mensagem poética,acompanhada pela melodia, era játangível a toda gente.E nessa altura Rui Mingas já gos-

tava de poesia?Rui Mingas: Eu, quando miúdo, ti-nha o hábito de ler muita poesia. E is-so é que faz com que naquele perío-do, antes da independência, tenhamusicado parte considerável da poe-sia de intervenção política escrita naaltura, e até alguma poesia simbólicacomo “Morro da Maianga”, de MárioAntónio de Oliveira. Ora, isso faz comque eu, ao ler Agostinho Neto, encon-tre nas publicações da CEI a poesiade Solano Trindade. Repare que euna altura tinha o meu pai preso, tinhao meu tio Liceu preso, o meu tio Pe-dro Benge, o primo Beto Van-Dúnem,todos presos em Cabo Verde. Imagi-ne para mim, com o cuidado e sensi-bilidade de ler muita poesia, muitojovem ainda e com tantos familiarespresos, o que significava ler aquelapoesia interventiva de Agostinho Ne-to.Falou de solano Trindade…Rui Mingas: Sim, falei dele. Eu en-contro o “Quem tá gemendo” de Sola-no Trindade nessa altura de grande

sensibilidade. Não li, nem publicáva-mos muita poesia brasileira, mas oSolano Trindade, pela natureza dasua poesia, me contagiou e me fez co-locar a melodia ali onde a mensagempoética só era tangível ao intelectual.Acabo depois por conhecer a famíliade Solano Trindade muito mais tar-de. Fui ao Brasil e estive com a filhade Solano Trindade. Estive lá comela, cantei um bocado com ela. Ela fi-cou até muito surpreendida, e per-guntou: “O sr. é Rui Mingas? Aqueleque musicou papai? Eu pensava quefosse velhinho como ele!” (risos)Compreendia-se a inquietação de-la porque a música tem tantos anos,que ela pensava que tinha sido feitapor um contemporâneo do pai dela.Onde leu os poemas de solano

Trindade?Rui Mingas: Numa publicação daCEI, penso [Caderno Poesia Negra deExpressão Portuguesa (1953), orga-nizado por Francisco José Tenreiro eMário Pinto de Andrade]. Já não lem-bro a designação, mas a CEI tinhauma publicação de poesia de váriosautores das ex-colónias: de Angola,São Tomé, Moçambique, Guiné e aítambém apareceu o Solano Trindadeenquanto poeta negro. Tínhamosuma secção literária que tinha oNdunduma (Costa Andrade) entre osseus mentores. E havia publicaçõessobre literatura africana, com CarlosErvedosa, Noémia do Espírito Santo.Posso estar a cometer alguma impre-cisão com datas e nomes. Aliás, issofoi há mais de 50 anos e estou a recor-rer ao registo da minha memória!Que imagem conserva dessas

duas figuras, nomeadamenteAgostinho Neto e solano Trinda-de?

Rui Mingas: Essas duas figuras,evidentemente não pondo de parteAntónio Jacinto, Mário Pinto de An-drade ou ainda Viriato da Cruz, masesses dois eram de facto uma grandereferência para mim, pois tocarammuito a minha sensibilidade. Não ti-ve a felicidade de conhecer em vidaSolano Trindade, mas creio que aju-dei a imortalizar um dos seus temasmais conhecidos.Quando é que realmente teve

contacto com esse poema de sola-no Trindade? Nos anos 60?Rui Mingas: Não, antes. Outrascomposições minhas surgiram nessaépoca de 60 e 61. O que acontece éque musiquei muita coisa, mas pelanatureza interventiva desses temas,engavetava tudo. Eu cantava só emlocais privados com outros camara-das de Angola, da Guiné, de Moçam-bique. Eu cantava e mandava algu-mas versões ao meu irmão Saidy, queestava em Estocolmo pelo MPLA que,por sua vez, mandava para os cama-radas que estavam na guerrilha. Mastudo muito escondido. Eu só vim agravar depois de 25 de Abril de 1974.

Já falou da sensibilidade e da re-lação entre o conteúdo dos poe-mas e a liberdade. Haverá outrarazão para musicar os poemas co-mo o fez?Rui Mingas: A forma que eu encon-trei para redistribuir as mensagenspoéticas e fazê-la chegar ao povo foimusicar. A melodia é uma coisa mui-to tocante. Quando nos prendemos amelodia, recebemos a mensagem.

Isso foi previamente concerta-do com alguém? O musicar essespoemas foi sob alguma orientaçãopolítica?Rui Mingas: Não. Por acaso, o pri-meiro poema que musiquei foi“Muimbu Ua Sabalu”, de Mário Pintode Andrade. Eu tinha 18 anos quandomusiquei este poema e interpreteinum convívio na CEI. Na altura haviasessões culturais, jograis, leitura depoemas, declamações. E eu, discreta-mente, num canto, musiquei e muitotimidamente fui lá e disse que tinhamusicado um poema. Não me esque-ço porque estavam os mais velhos,Agostinho Neto e Amílcar Cabral,sentados. Estavam mesmo à frente.Então cantei e os dois levantaram-see vieram abraçar-me e aquilo ficoucomo que um hino: a Ana Wilson can-tava em grandes convívios, inclusivena Rússia. A partir daí comecei a lermais a poesia. Mas tudo por iniciativaminha. E fui musicando os textos deMário Pinto de Andrade, Mário Antó-nio de Oliveira, Viriato da Cruz, Agos-tinho Neto, António Jacinto. Mas era,acima de tudo, um momento em quecada um de nós, sofredores das então

colónias, consciente ou inconscien-temente, dava a sua contribuição na-quela luta comum. Entretanto, quan-do me apercebi que poderia musicar,fui seleccionando os textos mais in-terventivos. Tudo musicado por ini-ciativa minha.Particularizou o poema Morro

da Maianga e falou dele como sen-do mais simbólico. Porquê?Rui Mingas: Porque me recordavaa minha infância, a minha juventudeem Luanda, a Maianga de miúdas en-graçadas e giras, ali onde hoje é oPrenda, é o Morro da Maianga de Má-rio António.

E outras, como Monangambé?Rui Mingas: Monangambé musi-quei na Guiné Bissau. Estava em ser-viço militar. Fui lá destacado sob pri-são. Passei por Cabo Verde e o meupai estava preso no Tarrafal.No disco Temas Angolanos, de

1974, o Makesu aparece comopoema de Mário António. Mas é deViriato da Cruz…Rui Mingas: Isso deve ser erro deedição. Mas nunca tinha reparadonisso. Estás a pôr aqui uma questão… (Risos)

Parece-me que tem uma apa-rente facilidade em musicar poe-mas. serão os poemas a facilitar otrabalho do compositor ou o con-texto e a inspiração a facilitar estacriação de melodia aparentemen-te pré-destinada para cada um dospoemas?Rui Mingas: É difícil dizer se sim ouse não. Provavelmente, o contextopolítico da época poderia estimular.Há um músico alemão já falecido quedizia que uma das coisas que ele ad-mirava em mim era o facto de eu mu-sicar poemas. A poesia já elaborada,meter melodia é a coisa mais difícilque há. Talvez eu tenha nascido comeste dom. Mas porque boa parte dastemáticas dos poemas musicados to-cam a minha sensibilidade, ganhouma inspiração. Quando leio umapoesia bonita, procuro completá-la, a

Imagem de capa de uma obra discográfica de Rui Mingas

10 | LETRAs 11 a 22 de Novembro de 2015 | Cultura

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meu modo, com uma melodia. Porexemplo, “Meninos do Huambo”, “Mi-nha terra, nossa terra”, são poemasbonitos. Não basta que sejam poemasde intervenção no plano político-so-cial. Por exemplo, o poema “Meuamor”: meu amor, teus lábios um sa-bor, teu olhar sem lamento”, do meuúltimo disco, musiquei porque acheiuma poesia tão bonita. E o curioso,sabe, quando entreguei o disco aoManuel Rui, ele ouviu atentamente amúsica e no final disse: “Ó chará, essamúsica é muito bonita. De quem é opoema?” e, na ocasião, a sorrir, eudisse: “Mas esse poema é teu!”. E ele,admirado, perguntou: “Minha poe-sia? Epá, fui eu quem fez isto? Não melembrava dela!” (Risos).No momento da luta, prendia-memais a mensagem político-social. Ho-je, continuo a ser tocado pela sensibi-lidade e a olhar mais para o simbolis-mo; as letras mais simbólicas.sinto às vezes que parece magi-

camente fácil a forma como musi-ca os poemas. Me parece que quan-do o poeta estava a escrever, RuiMingas estava a seu lado a compor,acertando a métrica, o ritmo pró-prio …RUI Mingas: Não sei se é mesmoassim; se há algo mágico pelo meio.Não diria que seja fácil, mas quandome toca, a mim sai a melodia. Masolha que muitos não conseguem mu-sicar um único poema. Isso deve que-rer dizer algo.

Tanto Agostinho Neto quantosolano Trindade, cujos poemasRui Mingas musicou, penso que le-vam à poesia alguma mensagemcombativa. Parece haver algumacomunhão entre os dois. Concordacomigo?

Rui Mingas: Absolutamente. EmSolano Trindade, lá longe no Brasil, eem Agostinho Neto, em Angola ouPortugal, há uma coincidência incrí-vel nas mensagens poéticas. Ambosfaziam da poesia um instrumento deluta na valorização do negro. A essên-cia era a mesma: mensageiros dumarealidade sofrida de um povo comobjectivos comuns. A liberdade.O contacto que manteve com a

família de solano Trindade noBrasil foi combinada ou uma meracasualidade?Rui Mingas: Aconteceu quando fuiao Brasil visitar o meu irmão André,que estava hospitalizado. Depois en-tendi ir a procura da família de Sola-no Trindade. Comecei pelo cine tea-tro Solano Trindade, em São Paulo, ede lá para a família não foi difícil.

Quer dizer-nos quem o contac-tou para musicar a letra do Hinodo nosso país, o Angola avante, emvésperas da proclamação da inde-pendência nacional?Rui Mingas: Fui apanhado de sur-presa quando voltei pra Angola, cer-ca de duas semanas antes da procla-mação da independência. Portanto,estava em casa na véspera da nossaindependência e penso que havia al-gum problema em relação ao hino,pois não existia nenhuma propostaapresentada ou aprovada. Eu estavacom o meu irmão Saidy e chegou umenviado do então ministro da Comu-nicação, que era o Manuel Rui Mon-teiro. Ele chega e diz: “o senhor mi-nistro indica o camarada Rui Mingaspara ir até a casa dele”. A casa ficavaaqui no Sanemento [cidade Alta]. Fuie quando lá cheguei o Manuel Rui dis-se-me: “Epá, tenho aqui uma propos-ta do Bureau Político do MPLA para

eu e tu fazermos o Hino Nacional”.Como se sentiu diante de tama-

nha honra?Rui Mingas: Claro que era umaproposta que me orgulhava muito,mas também fiquei preocupado pelograu de responsabilidade em fazer oHino de um País.E a seguir, como foi que as coisas

aconteceram?Rui Mingas: Estávamos em casa doManuel Rui Monteiro e numa salacontígua estava o Onambwe, o Ndun-duma e o meu irmão [Saidy Mingas];penso que o Onambwe liderando ogrupo, eles a fazerem a bandeira. OOnambwe tinha uma habilidade tre-menda para o desenho. Nos temposde estudante, desenhava maravilho-samente.Portanto, na sala onde me encon-trava já lá estavam outras pessoasque eles tinham chamado para pres-tar algum apoio. Um deles é o CarlitosVieira Dias. O outro é o Carlos Lamar-tine. O Carlitos [Vieira Dias] estava lápara tocar viola. O Lamartine é quemdepois levou a cassete áudio com anossa gravação. O Manuel Rui Mon-teiro escrevia o trecho, e eu metia amúsica. Quando completamos aqui-

lo, fizemos um coro. O Manuel RuiMonteiro cantou, eu cantei, o Carlitoscantou e o Lamartine também can-tou. Depois de tudo, o Lamartine saiucom a cassete já por volta da meianoite. Lembro-me que fizemos quase24 horas a compor o Hino. Então, eucom a minha viola…! Lamento não tero hábito de fazer cópias, porque nãoretivemos uma única cópia da casse-te áudio que continha a primeira ver-são do Hino Nacional. Perdeu-se porcompleto aquele documento históri-co. E como se sente hoje, sempre

que ouve o hino nacional: comopai, enquanto co-autor, ou como fi-lho, na qualidade de angolano?Rui Mingas: Sentimento duplo.Sentimento duplo. Sou filho daqueleHino e sou co-autor daquele Hino! Eue o Manuel Rui. Pais e filhos ao mes-mo tempo.

Creio que o Angola avante é umdos melhores que existe, ou não?Rui Mingas: (Risos) Como filho,também creio que sim. Se nos orgu-lha, não há como não acreditar que éum dos melhores!

Manuel Rui

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O Fórum sobre Identidade Nacio-nal, realizado no Huambo, aos 23de Outubro de 2003, fez a propósitodos nomes a seguinte conclusão-re-comendação: “seja constituído umGrupo Técnico de Trabalho forma-do por especialistas angolanos, re-presentantes de várias comunida-des sócio-culturais, que se debru-cem sobre o estudo das formas deatribuição de nomes nessas mes-mas comunidades, para que cadaindivíduo veja no nome atribuídoum factor ou aspecto da própriaidentidade. O resultado do estudolevar-se-ia à Assembleia Nacionalpara aprovação como lei. Traze-mos o estudo sobre alguns dos no-mes das crianças que frequentam oCentro Educativo “A Semente do Fu-turo”. Achamos que é uma granderiqueza e sobretudo mostra que, nacultura Umbundu de Angola, a le-gislação sobre os nomes e apelidospodia ser diferente por causa do seusignificado cultural e simbólico.A metodologia usada no trabalhoé a seguinte: depois do nome, vem,entre chavetas, o provérbio em quese enquadra a explicação, e no fim arespectiva lição moral. Para algunsnomes vem apenas a explicação.

EYALA [eyala lyambata tchalwa]– A lixeira ‘recolhe’ e suporta tudo.HENDA [enda lakulu okakuka, en-da l’omãla okateñgela] - O segredoestá em que o mais velho conhece oque mete medo – tchikola – e “não to-ca”. Quem tem medo obedece e nãopratica o mal!KALEI – É o nome dado ao respon-sável das chaves na casa real.

KALUNDUNGU [vokulula kwo-londungu hamo vokupepa kwatcho.Vilula, polê p’otchimanda vipwapo] –A pessoa não pode ser 100% boa pa-ra todos. É boa para uns; para outrospassa por mau. E assim vai cons-truindo a sua família. – “K’umbotok’undjali” – Nalguns males da família,fazer ouvidos de mercador. Os bons eos maus todos são teus familiares.KAMWENHO [ndilya k’omwenhokandanda kumwe; kupañgela wavi-sya] – Coma parte da tua riqueza eguarde outra, porque não se sabe odia de amanhã.KAPIÑGALA – É o herdeiro de tu-do o que é dos mais velhos, desde ofeitiço até aos bens. Tal como o so-brinho, filho da irmã, é herdeiro detudo o que é do tio, assim o filho.KASSINDA – É o nome dado àque-le ou àquela que vem depois dos gé-meos ou gémeas.KATCHISAPA [kakuli lu katyapu-lamo upindi] – É um ramo ao longodo caminho que batendo a todos po-de ser sinal de união. Ele pode identi-ficar todos e cada um. Fulano? – pas-sou; e fulano? – Também passou! Co-nhece a todos.KATITO [Katito oko kove. Tchine-ne tchamãle. Okwandimba kenha(=nãlanãlako), ukwambambi kaku-soywilako] – Fique sempre feliz como que tens, antes que te chamem deinvejoso.KATULO [lyanga otulo, hokalyan-ge ovisokasoka] – Durma antes epense depois, porque, de contrário, osono não vem.KAVINIAMA [ovilongwa havyan-geko kavinyama] – Não me acusemdo que não fiz. Se estás sem culpa,tranquiliza-te; esteja seguro.

KAYENGENGA [kayengenga wa-lunga okukupuka] – Aquele que sen-te preguiça de fazer alguma coisa éporque está quase para deixar. Sê fle-xível, porque o rijo acaba por partir.LIKILIKI [likiliki wandele la põlo]– Tudo passa depressa, acalma-te;quando mais agitação à volta de al-guma coisa, menos duração tem talcoisa! – É o mesmo sentido de: “yisi-ka enene, yalaka okutwika”.LUKAMBA [lukamba l’ohele kak-wete] – Não teme nada, pode ir pro-curar esposa mesmo fora da sua fa-mília. São coisas que na tradição afri-cana não se fazem! Mas ele é o solda-do do rei que procura e conserva osanseios do chefe quer em tempo deguaerra quer em tempo de paz e nãose importa em que condições forem.MOMA [apa walila omoma hapo-ko yukumomela] – O mal não vem to-do no mesmo dia. O mal que fazemoshoje terá “recompensa” no futuro!NDANDULA [kwenda ombelaowiñgi uvandjako; kwenda ondam-bi, umosi lika ovandjako. Ndandula-ko] – Para onde foi a chuva todosolham. Onde foi uma pessoa, só o seuente querido é que acompanha; paraonde foi a senhora (a bela) só o mari-do acompanha.NDEMBELE [ndembele kandjilak’otchindele, ondjomba yiwak’owiñgi] – Tudo é melhor em con-junto; nunca faças nada sòzinho.NDINGAWA [kasolawa, omo ndauyeveyo kavulala kikolo] – Aqueleque faz bem aos outros, quando lheacontece também alguma coisa to-dos se admiram [todos se riem dele].– “Uyeveyo” é peça de sopro do fogopara moldar o ferro. Porém, estásempre amarrado: apesar do bemque faz, permanece amarrado.NDJAMBA [yakutulika, eteke yu-

kutulula, k’ilu kwalinga otchipãla] –Quando se tem alguém num lugar dechefia, está-se seguro, mas tudo podeacabar de repente! – “Nda okasi pawapavi pakupayola. Nda otyañgelandjamba, malanga upitakapo oka-lumbange] – Se és chefe, respeita ossubordinados; nunca se sabe quandotudo pode mudar. Quando se é jovem,é preciso respeitar os mais velhos; éque o velho já foi jovem, mas tu aindaestás para ser velho. A ironia da histó-ria poderá um dia castigar-te!NDJOLELA [kateke weya, uyolelawanda]. A visita fique o mais brevepossível, porque de contrário jáaborrece, desagrada.NGEVE [ngeve yusi katala] –Quando o hipopótamo passa o diaestendido na praia, está para mor-rer! A pessoa que está para morrer,despede-se através de muitos sinais.NHIMAWA [onhima yiwa kaimoliomõla] – Quem quer não tem! Quemtem esbanja! Quem pode não faz; opobre é que tem mais filhos.SAFEKA - É nativo: nunca mudou.SANDULA – Esbanjador. – “Pesse-la” – [wapessela kanola – wanhelisakasandiliya] – Quem perdeu nãoprocura: se te morreu o pai ou a mãe,o irmão ou o filho, onde irás procurá-lo? Não tem substituição!SIMBU (=TCHOKOSIMBU) [tcho-simbu, okwiya tchalinga tchokaliye]– Se alguém te deve, não te zanguescom ele; quando vier pagar, ficará tu-do novo. – “Kanhangulu waloyela ku-mosi la kanhongo”– Dois aconteci-mentos juntos: um bom e outro mau!SIMWILA [hokandjupe tchange,ñgasi (ale) likalyange] – Uma viúvaque cuida dos filhos sòzinha, não lhepeças mais emprestado (sobretudosem lhe pagar).SUKWAPANGA (=SUKWAKWET-

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NOMES EM UMBUNDUDAS CRIANÇAS DO CENTRO EDUCATIVO “A SEMENTE DO FUTURO”ANDRÉ LUKAMBA(EM COLABORAÇÃO COM O MAIS VELHO MOISÉS MUNDA)

Crianças

Mapa da etnia Umbuundu

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LETRAS| 13Cultura | 11 a 22 de Novembro de 2015CHE) [Sukwakwetche, imbandì vili-pende okusakula] – Se Deus não te“chamou”, vivo ou morto, fica. Tudo ésegundo a Sua vontade. – “Tchaku-panga, tchukupa v’evanda” – No meiode tanta gente morre apenas um!TCHAKUSOLA [tchakusola kwa-ma k’omunga] – Mesmo conhecido, épreciso ser convidado! [Se é verdadeque sou o dono (da festa) porquê nãosou notificado?]TCHAMB’OUSA [ame tchamb’ou-sa: otchivimbi tchitalamela mwele;tchalela tchitalamela enhanga] –Quando alguém morre, esperam-seos parentes para o enterro, mesmoque estejam longe!TCHAMILE [uti wamile hawo lo-kuloluka; epata lyalwile halyo loku-kunduka] – A árvore de fruta secacom o tempo; eram muitos irmãos,agora ficou apenas um.THIKOLA [tchikola hokatchikwa-te] – Uma coisa admirável não devestocar, faz mal. Uma acção má e peri-gosa nunca se deve repetir.TCHIKOMO [tchatchotcho tchiko-kusumba] – Diz-se do que mete medo!

TCHILOMBO [p’otchilombotch’olongende, kayolokele osalapo] –“P’otchilombo” é o lugar de hospeda-gem. O sentido do provérbio: em tu-do é preciso dinamismo. É preciso ac-tualizar-se sempre. Siga o que os ou-tros fazem em conjunto desde queseja para o bem.TCHINGWETA [yanda kayiyelulak’ekondjo; yatehã olwi yasiñga ovava]– Pessoa gorda simboliza o bem-estar!TCHINOFILA [umba te watchilya]– A causa pela qual se morre tem deser do nosso inteiro conhecimentoe/ou pleno consentimento.TCHINONHALE [tchinonhale kat-chukutundi; tchinosole katchukuso-le] – Muitas vezes acontece que se es-pera ou se deseja o mal ou a morte dealguém por ser mau e nada lhe acon-tece; pelo contrário, a quem estima-mos é que em tão pouco tempo algode pior lhe pode acontecer!TCHIPUMA [tchipuma etemotchiyunda, tchipopya omanu tchikeya]– O que se capina com a enxada torna acrescer; o que as pessoas dizem há-deacontecer! É preciso tomá-lo a sério!

TCHISINGI [tchisingi kakulihileomõla wombwale; omõla wa soma,osuke ale owasi, vosi valipunduka-mo] – O tronco (no caminho) não co-nhece pessoa boa e delicada; não co-nhece o filho do rei, rico ou pobre; to-dos tropeçam nele.TCHITENDE [tchitende opangaetchi tchivi ndañgo watanga omo wa-topa. Walunguka kapangi etchi tchi-vi] – Uma pessoa parva – minus ha-bens – faz coisas descabidas, mesmoque tenha estudado; a pessoa dotadanão faz coisas sem sentido.TCHITULA – É alguém que nasceunuma aldeia nova.TCHITUMBA [tchukwihã so lanhoho, wamale kakutchihã, hati ok-wete ale] – É delicato ter barrigagrande; quem não sabe pensa que jácomeu. – “V’omela nda mwasahulu-ka, lyola; mahako ñgo, walaka oku-visya”! - Se tens apetite, come. Quan-do te obrigam a comer, então estásquase a morrer… Trata-se de umapessoa doente!TCHIVINDA [okutela utale l’uteke,volundila utale] – Ao guarda se res-

ponsabiliza tudo o que falta. Tu queandas de noite podes ser responsabili-zado de tudo o que acontece no oculto.TCHIYO [nda wamõla kahañgu,katchiyo hokawinesi; kahañgu ndakepo, katchiyo kove iya okupopela –nda okwela ukayi, hokaling’hetindakwela ukayi wotchili; ovindjavyahe handi kuvi] – Mais vale ser fielao que já nos pertence, porque da no-vidade nos poderemos arrependertarde demais.TCHUKULYA [yakulila kayukupo-pela tchiñgii] – Antes de ires ao julga-mento, dê primeiro uma dádiva – paga!Assim, por o juíz estar comprometidocontigo, não te condenará em tribunal.VIHEMBA - É um nome dado aquem durante a gravidez e o partoprovocou muitos problemas de saú-de; foram precisos muitos medica-mentos para a mãe ou mesmo o pai.VISSOKA [ovissoka-soka vyovuti-ma] – O coração pensa em tudo e àsvezes sem razão!(http://huambodigital.com/nomes-em-umbundu/)

Mu kamakwinyi kawana ka mivu ya ufolo - no quadragésimo aniversário da independência Tutalela kudima anga tumona ubika dikanga - olhamos o passado e vemos a escravidão ao longeSekwandala dingi kuvutuka kwenyoko anga - sem querermos lá novamente voltar eKala kilwanji kyala ni mbande twende ku polo - como um lutador capaz, sigamos em frenteNda tukudise ilunji yetu yoso exi yatolo - para que façamos crescer a nossa escassa consciênciaMu kilunga kya ukudilu wa Ngola yetu ilunga - rumo ao desenvolvimento da n Angola q entendeKuma twana twe twoso akayese okalunga - que todos os seus filhos afugentemos infortúnio Mukulanda uzediwilu hanji mu mikolo - para alcançar a felicidade ainda acorrentada Mu kizuwa kyafu malamba Ni jingololo - no dia em que a desgraça e os lamentos morreramTwana twa Ngola adibongola mu makanga - os filhos de Angola uniram-se nos camposTunde mu itumba yetu ndu mwene mwazanga - a partir das florestas até à ilha Mukulondekesa kuma Nzambi Watuzolo - para fazer ver que o Senhor nos amaMukizuwa kwila masoxi mazulu jimbolo - no dia em que as lágrimas molharam o pão Jimbolo ja kudisa twana twexi kikwanga - pães de alimentar crianças q disseram ser kikwangaYene okizuwa kya ufolo yakexi kudisanga - foi o dia da liberdade que se encontravaKyokute kwala jinguma jetu jixi ki twamizolo - amarrada pelos nossos inimigos que disseram: não gostamos de vocês Mu ikoka yoso itwande ki nguma watuzolo - nas veredas em que caminhamos n foi o inimigo que nos amou. Mu jipambu ja ufolo twasange kalunga - nas encruzilhadas da liberdade encontramos a morteKatulembwesa kubwima, kulaya, kusunga - q nos impediu respirar, viver, puchar Kamwenyu kwala kwendela jinga ku polo - um pouco de vida para seguir sempre em frente

KAMAKWINYI KAWANA A MIVU YA UFOLOQUADRAGÉSIMO ANO DA INDEPENDÊNCIA

MÁRIO PEREIRA

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14 | ARTES 11a 22 de Novembro de 2015 | Cultura

SANTOCASA música fez aquilo que as armas não podiam fazer

MATADI MAKOLA

O Bairro IndígenaAo rebuscar as suas memórias, viu-se no Bairro Indígena e lhe assaltarammemórias de nomes importantes quefizeram parte na vizinhança deste pe-daço inesquecível de terra do actualNelito Soares, onde os nacionalistas emúsicos engajados circulavam comcerto à vontade e ali maquinavam tác-ticas de luta contra a opressão colo-nial. Um dos pontos que rebusca é a Ca-deia Hospital São Paulo, que desta nosdiz: “ Era uma das cadeias que o colonotinha como uma das mais repressivasdeste país. É lá onde eram levados vá-rios nacionalistas. Muitos saíram daídeportados para outros países e ou-tros acabaram por morrer aí mesmo.Era na calada da noite que os carrascosmais atacavam os nossos pais e ir-mãos, e nós, ainda miúdos, ouvíamostudo isso. Era também por aquele ca-minho onde nós passávamos, aos sá-bados ou domingos, para irmos ao ci-nema São Domingo e à missa e tínha-mos um contacto com os presos, quemuitos das fazes chamavam por nósaos gritos e choros”, recorda. Esse cenário despertou em Santo-cas e miúdos do seu tempo uma cons-ciência mais efectiva. À mistura comas brincadeiras de criança, viviam odia-a-dia com todas essas situações,com a administração do Poeira e a PI-DE no encalço dos nacionalistas esempre prontos a ouvirem notícias deprisão ou de morte de um mais velhoirmão ou pais. Contudo, este bairro era já bastanteangolano: “Qualquer um dos naciona-listas que conseguisse fugir adentro dobairro, os sipaios encontravam muitasdificuldades em segui-lo porque nãopodiam entrar naquele bairro”.Nasceu neste bairro e são situaçõesque viam todos os dias. Nos dias de la-zer, recorda a lendária cacimba, ondedificilmente acabava a água, esempre que chovesse os meni-nos não resistiam e viam co-mo certa a possibilidade deirem dar uns mergulhos,apesar de ter as suas len-das, que era uma zona detratamento e que ti-nham lá sereias, e as se-nhoras iam lá tratar oskitutes, e cruzavam

o bairro até chegar à Macambira, agrande fábrica com tudo e todos da in-dústria têxtil, que ficava a passos dasua antiga escola, e recorda que eles,os meninos negros, às vezes, com al-guma inocência à mistura, iam invadira creche dos meninos brancos à horado almoço, que ficavam em bairroschiques como a Vila-Alice, ali vizinha. Matriz Foi essa realidade a matriz funda-mental, toda essa necessidade de li-berdade ajudou a despertar nele acanção política. Quando toma conhe-cimentos das transformações em Por-tugal, com o 25 de Abril, isso deu-lhemais ousadia para exteriorizar a opi-nião angolana sobre o aparelho colo-nial português. Contudo, a sua veia ar-tística, aponta, já remonta desde osseus 6 anos, partindo ainda dos tem-pos das turmas. A sua avó era dona deum canto elogioso, e ele era um dosnetos que estava sempre atrás da avó.Foi ouvindo muito as suas experiên-cias. Os seus tios e a sua mãe (emboranão estivesse ligada a grupos) foramdando a experiência necessária e ohábito do canto. Marca como iní-cio o Centro Recreativo Bota-fogo, que tinha outrasorientações escondidaspara além da simplesintenção cultural, poiscriava condições paratransmitir aos váriosnacionalistas a for-ma como eram ex-plorados e cons-ciencializa-lospara a luta.Mas depois oaparelhocolonial

Santocas, António Sebastião Vicente, uma das vozes que vergou o seu canto penetrante ao serviço da canção política e que conseguiu fazer dela umaarma que o tornou famoso no seio de soldados, políticos e cidadãos atentos no desabrochar da independência, é de opinião que houve uma clara in-fluência do legado dos nossos antepassados, e fala exactamente da nossa franja real, com casos grandíloquos como de Njinga Mbande, Mandume e ou-tros que a defesa da pátria exigiu maiores sacrifícios na luta contra a ocupação do país e deturpação da nossa cultura. “Precisamos fazer imaginaçõespossíveis e pontos de reflexão para tentar entender o sofrimento dos nossos antepassados escravos para construírem, por exemplo, a Fortaleza deSão Miguel. Nós somos apenas a continuidade de uma luta. A juventude deveria saber reviver o passado para encontrar o seu grau cultural”, pontifica.

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ARTES | 15Cultura | 11 a 22 de Novembro de 2015

BELMIRO CARLOSTivemos um papel importante na consciencialização da tropaMATADI MAKOLAO músico Belmiro Carlos Nito´, Se-cretário Geral da União dos Artistas eCompositores –UNAC, que tambémparticipou como integrante do Kis-sanguela, coincidentemente comun-ga com Santocas na influência dos an-tepassados, nos diz: “Não era apenascoragem. Gosto muito de falar emcontexto. Nos eramos a sequência deuma gesta de pessoas revolucioná-rias, que mantiveram a luta contínuacontra o colono e que auguravam aindependência nacional. Era apenasa independência, sem outras inten-ções. Fomos aos Maquis mas não para

sermos generais. Continuamos a nos-sa vida. O Kissanguela participouneste processo todo sem salário e ti-vemos a honra e o prazer de sermos oagrupamento presidencial de Agosti-nho Neto. Era militância. Era precisodefender o país. Eram outros tempos.Outro contexto”. Acentua que a sua geração tinha umapego muito profundo ao sentido pá-trio, mas que já não se nota na presen-te, que tem demostrado uma corrosãomuito grande dos valores, porque amaior parte dos jovens tanto lhes fazser português ou angolano.

De tudo que foi feito em prol da pá-tria, Belmiro Carlos não avalia: “Eunão tinha bem noção, enquanto mem-bro do Kissanguela, dos efeitos que amúsica fazia em frente de combate. Ti-vemos um papel importante na cons-ciencialização da tropa, no despertarda sociedade para a necessidade dapreservação da unidade nacional ecombate ao tribalismo, mobilizaçãopara a produção e necessidade da dis-ciplina. O efeito tremendo. Já houvevezes que o noticiário abria com umapeça sobre o grupo, passada com umamúsica ao fundo”.

foi se apercebendo das coisas e procu-rou dar um fim. Mas foi crescendo atéque apareceu o Maxinde e depois apa-rece nos Cotonocas e no programaChá das Seis.Hoje, dando importância da músicapara a consolidação da independência,embora com as suas dificuldades, dácomo certo que foi a arte que mais pe-netrou e a que mais motivou e mobili-zou o pessoal para luta que vinha sendomantida: “Antes do Ngola Ritmo, omais notório, deve haver outros que ahistória um dia fará a justiça de traze-los à tona. Mas a música, importa sa-lientar, teve um papel muito importan-te. E, mesmo a partir do Angola Comba-tente, nós podiamos ouvir várias can-ções também interpretadas por figurasdistintas da luta de libertação”.Voltando ao Bairro Indígena, recor-da um episódio passado em sua casa, jáquando mais crescido: “Numa alturaem que estava a jantar, dou conta dovulto de alguém lá fora e vou a correr aabrir a porta e encontro um dos meusamigos de infância a tentar enfiar de-baixo da porta um panfleto. Mesmo en-tre nós jovens a clandestinidade já erauma questão que se levantava e nãopodíamos dar informações. A nossamutamba era mesmo defronte a Ave-nida Brasil, mas não sabíamos ao deta-lhe o que um ou outro fazia, como for-ma de prevenir que caso fosse pego pe-la PIDE jamais saberia identificar osoutros, a não ser que de tanta torturadissesse algo só por dizer. E estávamosorganizados por grupos, e as mutam-bas serviam para fazer o diagnósticodo dia-a-dia”. Todo este cenário foi de facto a molaimpulsionadora para o amadurecer damente política, independentementeda contribuição de alguns familiares.

Enveredar para a canção política nãofoi uma questão só do momento masde estar documentado com um histo-rial do que se passava a largo anos.Santocas nos diz: “A música fezaquilo que as armas não podiam fazer.A música é que arrastou muita gente amanusear todo este instrumental quefoi determinante para a derrocada do co-lonialismo e consequente independên-cia de Angola. Não se pode negar o papelpreponderante que a música teve nesteprocesso de libertação. É tanto assim quequando se começou a cantar música decariz político, todo mundo queria saberquem era o Santocas, tanto brancos co-

mo negros. Ainda encontro-me com mui-ta gente que está nas FAPLA e que confes-sam que foram para guerra devido aosefeitos causados pelas canções, e mesmoem frente de combate ouviam registoscomo Massacres de Kifangondo´ e He-róis Serão Vingados´, ou Valódia´”. Quarenta anos depois, hoje não con-segue fazer uma avaliação de tudo aqui-lo que fez, enquanto músico, para o bemcomum do seu país. Mas sabe que é devalor inequívoco e que também temuma pedra sua na grande parede daconstrução da história moderna de An-gola: “Quando, entre amigos, passáva-mos o Bairro Indígena e olhávamos para

a cidade onde vínhamos, o nosso pensa-mento era sempre no amanhã: seria-mos diferentes e poderíamos viver den-tro de um país onde poderíamos dizerque fizemos uma luta e viver um poucodela. Porque quando nos compromete-mos não houve nenhum compromissoda minha parte, houve apenas vontade,entrega e princípio revolucionário quenos norteava para a luta”, recorda hojeSantocas, que quando se deu o grito deindependência estava sediado numa ca-sa na Vila Alice, rua da Liberdade, sob di-recção do camarada Pacavira, coadjuva-do pela camarada Zé Gama, irmã do can-tor Mário Gama.

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MENA ABRANTESO teatro que 75 gerou

MATADI MAKOLA |O debate periódico “Há Teatro noCamões”, realizado nos dias 27 e 28 domês passado, no Instituto Portuguêsde Luanda – Camões, se esforçou portecer considerações das fases do tea-tro, trazendo a claro alguns momen-tos que antecederam a independên-cia, com Mena Abrantes, Orlando Do-mingos e Adelino Caracol à mesa. Foi Mena quem se dedicou a descre-ver o que de teatro havia. Conta quechegou a Angola em Novembro de 74,depois de 12 anos ausente. Nessa altu-ra, recorda, o país vivia um período deforte tensão política, com a luta de in-dependência no seu auge, o que torna-va praticamente impossível continuara sua actividade teatral desenvolvidajá em Portugal e Alemanha, deixandoa intenção de somente dedicar-se aoteatro ultrapassada pelos factos, se-guindo assim a carreira de jornalista.Sobre o teatro, foi nos primeiros tem-pos de 75 que se associou a um direc-tor, que segundo nos diz “não era pro-fissional, mas que era muito dedica-do”, que vinha do teatro experimentaldo Porto e que tinha já nos dois anosanteriores desenvolvido espectáculoscom alunos na Lunda, onde ele estava

destacado profissionalmente. Chama-va-se César Teixeira e chegou a falecerna Austrália. Ele e Mena tentaram jun-to de algumas assistentes sociais or-ganizar pequenos projectos teatraisque não deram em nada. Depois dissojá aponta a data de Março de 75, alturaem que a situação militar na urbeluandense começa a se agravar comconflitos militares dentro da cidadeprovocados por militares zairensesque “nem sequer sabiam falar portu-guês e causaram distúrbios dentro dacidade, de tal modo que começaram aqueimar casas”, pormenoriza Mena.Nessa altura, continua, os estudantesestavam em greve e a população co-meçou a refugiar-se dentro das esco-las, aí no Largo das Escolas, motivan-do a formação de grupos de trabalhode apoio para a alimentação e forma-ção política. Mena e César reuniramum grupo de jovens para durante ànoite tentar animar as pessoas que es-tavam concentradas nas escolas, aomesmo tempo que procuravam tam-bém dar uma mínima formação políti-ca, pelo menos abordar problemas po-líticos daquele momento. A partir deMarço de 75 fizeram uma série de ac-ções teatrais propagandistas, que nãoconsidera propriamente teatro, mini-

mamente elaborado e improvisadocom textos curtos. Durante alguns me-ses mantiveram esta actividade nas es-colas. Foi a primeira experiência de tea-tro que viveu com os estudantes que es-tiveram em greve, que destes o únicosobrevivente foi o consagrado actor Or-lando Sérgio, que na época tinha poucomais de 14 anos. Depois começaram amontar um espectáculo sobre a históriade Angola, que nunca chegou a ser apre-sentado. Foi destas dezenas de estu-dantes que nove sobrevivem e dão cor-po ao grupo Tchigangi, que foi o primei-ro grupo de teatro a apresentar umaobra depois da independência, levadaem cena na Liga Nacional Africana a 28de Novembro de 1975, intitulada “O Po-der Popular”, dirigida por César Teixei-ra. Essa fase foi a que Mena viveu. Quan-do começou a se informar sobre o quetinha acontecido antes, veio a saber quenos anos 50 tinha já havido uma primei-ra experiência com um grupo chamadoGexto- Grupo Experimental de Teatro,dirigido por Domingos Van-Dúnem.Era um grupo inspirado num grupobrasileiro que se denominava TeatroExperimental do Negro, criado por Ab-dias do Nacimento, com o intuito de co-meçar a incluir actores negros no teatrobrasileiro. Não sabe de que modo a ex-

periência se repercutiu em Angola. Masesse grupo acabou em poucos anos. Mena avança que depois houve ou-tras experiências, sobretudo na LigaAfricana e noutras associações de ca-rácter interventivo e entretenimentoonde os nacionalistas, através da acti-vidade cultural e artística, iam afir-mando as suas produções ainda notempo colonial, como são os casos doBota Fogo e Ngongo e nas áreas liber-tadas do Leste Angola, onde a partirdo início dos anos 70 começa a se de-senvolver actividade teatral iniciadapor professores que aí lecionavam,que ficou conhecido como teatro pio-neiro na guerrilha´. Explica que osprofessores davam às crianças ummote para elas desenvolverem e de-pois improvisam algo e as própriascrianças andavam de aldeia em aldeiaa apresentarem aos mais velhos ecrianças o significado da luta de liber-tação e os problemas que existiam, ex-pressos através destes grupos infan-tis, sendo essas as experiências ante-riores, em que se regista a participa-ção dos angolanos. Antes, pontua, fa-ziam peças, mas improvisadas, nãopublicando os textos, que destes setem referência de um auto de natal,ainda na década 50.

O dramaturgo Mena Abrantes dirige a companhia de teatro Elinga e tem trabalhos publicados sobre o teatro angolano

16 | ARTES 11a 22 de Novembro de 2015 | Cultura

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ARTES | 17Cultura | 11 a 22 de Novembro de 2015

A NACIONALIZAÇÃO CULTURAL DO HOSPITAL MILITARJOSÉ LUÍS MENDNÇA

“As pinturas nos painéis do muro do Hospital Militar surgiram em 1976. O mentor foi o então Secretário de Estado da Cultura, António Jacinto”, ex-plica Rui Garção, um dos principais orientadores do grupo de pioneiros, na sua maioria órfãos de guerra, que tiraram dos pincéis e latas de tinta oscontornos da história de Angola e da luta de libertação perenizada naquela instituição do Ministério da Defesa. “Foi perto da comemoração do primei-ro aniversário da independência e foi feito em três semanas. Trabalhámos dia e noite com holofotes a projectar luz nas paredes. Foi uma acção rápida”,acrescenta Rui Garção. Esta acção rápida constituiria uma nacionalização cultural do hospital.

“Os pioneiros, na sua maioria ór-fãos de guerra, estavam paralelamen-te a ser enquadrados numa oficina deArtes, chamada O Barracão, tambémpor iniciativa do Secretário de Estadoda Cultura. Enquadrámos os miúdosnas actividades artísticas de tecela-gem, pintura, cerâmica e arte de cine-ma”, confirma Rui Garção: “estou-mea lembrar da fundadora do Barracão, afalecida Teresa gama, uma pessoa en-tusiasta, que levou avante esse projec-to. Passado pouco tempo entrou a Ce-cília Amaral Martins e essa actividadede pintura mural esteve ligada à épocaem que vivíamos, à Revolução, à ne-cessidade não só de decorar parquese paredes urbanas, como também de

transmitir mensagens políticas.” Foiuma época efervescente que levou RuiGarção a ilustrar os textos da primeiragrande antologia Literatura Africanade Expressão Portuguesa para o ensi-no secundário.“Colaborei também na introduçãodos outdoors que a publicidade utili-za, naquela época com mensagens po-líticas, que reproduziam imagens deMarx, Lénine, Agostinho Neto, FidelCastro, eu era um jovem de 18 anos ecolaborei com uma equipa de mestrescubanos de serigrafia e desenhámosesses primeiros outdoors que prolife-raram ali no largo 1º de Maio e nou-tros largos da capital”, recorda Gar-ção. O d

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18 | ARTES 11a 22 de Novembro de 2015 | Cultura

Buli-Buli, Ananias Malaquias e Anto�no Neto

MIÚDOS DAQUELE TEMPOSobre o projecto do Hospital Mili-tar, “os miúdos daquele tempo aindaestão vivos”, diz o nosso interlocutor.Estivemos à fala com Ananias Mala-quias, 53 anos, que era um piô do Mar-çal, mobilizado em Malanje, em 1976 edesmobilizado em 1987, por deficiên-cia física, após um ataque sofrido emMaria Teresa, a uma coluna que trans-portava instruendos para Luanda.Ananias recorda-se muito bem dasprofessoras Teresa Gama e Cilita. Hámuito que deixou a arte de pintar. Ho-je é motorista. “Em 1976, o MPLA nosrecolheu para nos meter no lar 1º deDezembro, no Alvalade”, conta Ana-nias, englobando nesse nós todos ospioneiros quer marchavam conjunta-mente com as FAPLA. Através de Cecília Martins, conse-guimos desencantar, para além do jácitado Ananaias Malaquias, outro so-

nhador da era da independência, desua graça António Sebastião Neto, ho-je com 55 anos. Quando entrei para asFAPLA, em 4 de Dezembro de 1974,usávamos armas de pau e borracha.Era o camarada Dino Matross que noscontrolava”, diz Neto.Outro ex-pioneiro que entrevistá-mos, defronte ao Hospital Militar, foiJosé Francisco Soares (Buli-Buli), que“tinha muito cabelo e era um poucocheio”, explica Ananias. Buli-Buli, quehoje não é lá tão “cheio” como naqueletempo da Revolução, nasceu no Bié epassou uma ano pela Polícia Militar,na logística, quando chegou a Luandacom uma coluna militar em 1976. “Foiuma ordem do Presidente AgostinhoNeto, para todos os pioneiros que es-tavam nos quartéis irem estudar nolar 1º de Dezembro e depois no Barra-cão aprender artes”, relembra Buli-Buli.

Quando entrei paraas FAPLA, em 4 de De-zembro de 1974, usá-vamos armas de paue borracha. Era o ca-marada Dino Ma-tross que nos contro-lava”

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ARTES| 19Cultura | 11 a 22 de Novembro de 2015ELIAS DYÁ KIMUEZO

“Foram momentos de bonita coragem”MATADI MAKOLA |

Meses antes do convicto grito deindependência, nesse ano de 75,que agora faz 40 anos, uma mãe grá-vida de sete meses passava de ca-deia em cadeia à procura do maridoque certas bocas davam como mor-to. É um dos episódios marcantes dahistória deste vulto da música po-pular cujo trajecto sólido acaboupor lhe valer o estatuto de Rei daMúsica Angolana. Esta mãe era Do-na Susana Cadete, a esposa e com-panheira de luta do singular EliasDyá Kimuezo, que traduzido para oportuguês seria Elias das barbas. Efoi devido às barbas que este enga-no se estava a tornar sério. É quechegou a aparecer um morto barbu-do numa das praias num períodoem que Elias era um dos músicos namira da PIDE. Todos queriam saberonde estava e o que é que aconte-ceu. Depois diziam que apareceu naBaía. Era andar e andar muito. E osque estavam do outro lado, emBrazzaville, também queriam infor-mações. Dona Suzana marcava en-contros sempre defronte ao Améri-co Boa Vida, e lá estava sempre elaem pé e só sabia que vinha alguém,um nacionalista, decerto, trazendonovas do marido que na altura esta-va na cadeia de São Nicolau. Elias estava na sua casa, no Ran-

gel, no dia 11 de Novembro quandose tinha dado o grito da indepen-dência e a festa se estendeu por to-das as ruelas e até por aquelas ruasde bairros elegantes onde até umpouco antes os angolanos passa-vam por lá menosprezados. Nãosaiu de casa porque ainda sofriados medos e horrores passados emSão Nicolau. O mal passado aí aindaera muito fresco. Ficou a ouvir e aassistir em casa, inquieto com tudoque lhe passava na cabeça naquelemomento, mas com o saboroso sen-timento de dever cumprido, da ter-ra estar novamente nas mãos dosseus legítimos donos e a desenharem sonhos o novo país.

Este relato é-nos contado pelo pró-prio músico Elias, em entrevista aoCULTURA, solicitada à propósito parasaudar estes quarenta anos de vida daNação. Guiou-nos pelas memóriasmarcantes que tem guardadas no seucoração operante, cujas palavras-cha-ve são fotografias, sons, choros, cheiroa mar, sangue, Luanda, pátria e sorri-sos construídos com laivos de uma es-perança sagrada, antes da eclosão daindependência, na sua gestação dolo-

rosa e sangrenta para por fim a um re-gime esclavagista que se arrastou pormais de três séculos. Embora não rei-vindicada deste ponto de vista, Eliasenfatiza que esta, as independências,também foi uma das grandes contri-buições dos africanos na elaboraçãodo novo mundo e seus conceitos, queno caso de Angola teve a conquistaderradeira a 11 de Novembro de

1975, à custa de um sem número depessoas dispostas a dar a vida, como éo caso do nosso entrevistado, que sou-be misturar o artista e o cidadão emprol da luta pela independência. São NicolauÀ época morava na Floresta, no an-tigo Picapau, nos arredores onde hojeestá o Centro Cultural Kilamba. Em 75,

quando a população se rebelou e inva-diu algumas cadeias onde tinham osseus familiares presos pelo regime es-clavagista português, partindo lojas esaqueando as coisas, Elias, numa con-versa mantida na rua com alguns jo-vens, a fim de convence-los a não par-tirem as coisas que posteriormente vi-riam a precisar, foi marcado pela PI-DE. Os tugas viram-no a orientar os jo-

Elias Dyá Kimuezo e Suzana Cadete nos dias actuais

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vens em como proceder com a mani-festação e julgaram que o músico fos-se o líder político que tinha engendra-do a rebelião. Como morava próximodo local em que abordou os miúdos,não demorou muito e a tropa tuga es-tava logo em sua casa para busca-lo.Ficaram aí no espaço do Hospital Pri-são São Paulo e mais tarde foram reco-lhidos para sétima, depois para Mari-nha, rumo a São Nicolau. Ficou lá cercade seis meses. Lá ocorreram muitascoisas que lhe marcarão por toda a vi-da, como a fama que veio a rolar deque o Rei da Música Angolana tinhaaparecido morto numa das praias, ar-rastado pela correnteza do mar. Foiassim, um tanto a tentar quebrar esteequívoco, dado que Elias continuavavivo e preso, que os tugas se viram ob-rigados a lhe darem soltara aos fins-de-semana. Saia de São Nicolau e ia atéao Namibe. Regressava às segundas-feiras. Os tugas agiram um pouco sobpressão da grande acutilância que oprograma radiofónico Angola Comba-tente tinha dado ao caso. Lembra osnomes de angolanos que o estende-ram a mão e que fazem parte destaodisseia, como Batalha, do Giro-Giro,que trabalhava no Caminho-de-ferro,um senhor identificado apenas comoTio da Riquita, outro era o Rui Boleto,o mais velho Loto e outros que o cui-dadoso exercício da memória não ilu-minou oportunamente mas nem porisso menos herói, como fez questão defrisar, ao voltar a construir as memó-rias deste período. E continua o tecerdesta epopeia dizendo-nos em acrés-cimo que não tinham água doce e queos alimentos eram cozidos com águasalgada, naquela cadeia a beira-maronde o vento causava muito frio masmesmo assim a malvadez dos tugasera tanta que obrigavam os presos atirarem a manta, tanto que estes, osangolanos presos, apelidaram o lugarde “tira a manta”. Desta memória lhesão claros os nomes Carlitos, que eracobrador de autocarro, e Duque, ir-mão do Ambrósio de Lemos.

SambilaFoi no Sambizanga onde travouamizade com José Eduardo dos Santos,Mário Santiago, Zarga, mais velho Kitoe outros, no final da década de 50. Eliasjá era músico de estima e estas figurasmarcantes da história política angola-na viram no músico uma mais-valiapara o grupo que existia, o Ginásio, on-de José Eduardo dos Santos era o viola-solo, e contava com nomes como Pe-dro de Castro Van-Dúnem “Loy”, Faís-ca, Brito Sozinho, 59, Rufino, do Cami-nho-de-Ferro, e Mário Santiago.Ginásio era o ponto de encontro dosconhecedores da política e que tinhama sagrada missão de despertar os de-mais. Lembra os nomes dos mais ve-lhos Tchivenga, Franco, Rita Pitra. E aindependência era estrategicamentechamada de camisa. Quando se davaencontro com pessoas que traziam asnonas de Brazzaville e outros pontosonde a intervenção da política angola-na se fazia sentir, era imperioso per-guntar: “Como é, a camisa já coseram?”. Diógenes Boavida, Beto Van-Dú-nem, Rui de Carvalho, Zé Maria, doNgola Ritmo, Mário Clington são algunsnomes que o conduziram para uma ac-ção mais nacionalista e fizeram desper-tar no músico o ideário pátrio. É assimque ganha um certo desapego às músi-cas em português, fruto dos conselhosque estes dirigiam ao músico. Assim okimbundu fica a língua de eleição parao seu canto. Beto Van-Dúnem e mais al-guns nacionalistas já vinham de umdesterro e já tinham os olhos bem aber-tos e coragem amadurecida para a lutaclandestina pela independência. Foineste sambila onde muitos encontrosterminavam em reuniões e troca deideias sobre a luta nacional, muitas ve-zes feitas em casa do pai de Mário San-tiago, lá no lado de trás, onde havia umacasinha de chapa e tudo ficava desper-cebido. Estava tudo camuflado, nummisto de jovens do desporto e da músi-ca. Lembra ainda os nomes de JustinoFernandes e Ambrósio de Lemos: “Amalta do Ginásio era mais de coberturae mensagem do acto político”, relem-

bra Elias. “Mamã Kudilé N'go”, volta aocanto, com a sua a voz tocante, que eraveículo de uma preparação psicológicapara as mães que a qualquer altura po-diam (e viam) os seus filhos partirempara a luta. Detalha que Maria MamboCafé chegou também a fazer parte doconjunto, um pouco para entender ocasamento entre a luta e a música. Masnão foi só de histórias felizes: “Uns che-garam e outros ficaram pelo caminho”,recorda, já com semblante de tristezaimpresso no rosto. E salteia para o ago-ra: “O país já tem uma vida e é precisoencorajar as pessoas que estão na con-dução do país e pedir para que as pes-soas que deram a vida por esta terranão sejam esquecidas”, aconselha. KissanguelaAntes passa pelos Ilundu, lá para osidos anos 60, onde trava amizade coma distinta dançarina Olga Baltazar, de-pois funda um conjunto de operáriosda Textang que tinham a sede no Bra-guês, no sambizanga, depois chega oKissanguela, “Sociedade dos filhos deAngola”, que ajudou a fundar e sugeriuo nome e que fez da música um dosgrandes trunfos da política de mobili-zação para a luta. “São amizades que ficaram. Forammomentos de bonita coragem. Já mora-va no Marçal e era um bairro recheadode artistas: Fontinhas, Malé Malamba,Kim Jorge… Kilamba, Maxinde, Ginásio,Sunguila, Don Kixote foram casas quedevem ficar sempre na nossa memória.Os grandes dias no Marítimo da Ilha eDona Xica. Nos sábados estávamos to-dos virados para a Ilha, Braguês, Ma-xinde. Só havia duas grandes bailari-nas: Olga Baltazar e Alba Clington”, re-faz, em síntese, a fotografia de um pe-ríodo que antecedeu à independência.Minha Mãe não chore…Deste período, o registo Mua lungalhe marca pela forma como a compõe.Foi composta em alto mar quando iapara Lisboa, em 1969. Fala da trajec-tória dos 12 dias passados em altomar. Ficou desesperado por estar tan-

to tempo sem ver as árvores, terra ecapim que estava habituado a ver. Foipela primeira vez que viajara ao exte-rior. Ia numa caravana para fazer-sepresente num festival em Santarém(Portugal), cumprindo um conviteformulado pelo SITA para representara Província de Angola. Integravamtambém a Rebita do Velho Geraldo, OsHomens do Hungo da Muxima, osChinguvo do Moxico e a Marimba deMalange. Muitas músicas lhe deixa-ram no encalço da PIDE, era difícil en-tender, mas aquela que dizia “minhamãe não chore, que eu vou ao Maquismas vou voltar, mesmo que voltar ce-go, só de tocar teus seios hei-de reco-nhecer que és a minha mãe”, é esta cu-ja ternura e intenção da mensagem fezquestão de repassar durante a entre-vista, nos dizendo que a música fez opapel de mobilizar, acautelar, encora-jar e dizer verdades de episódios tris-tes que os angolanos estavam sujeitosa viver, mas também confortar àsmães que perderam os seus filhos a lu-tar pela terra e liberdade. Às vezes quem lhe acompanhavaera o seu amigo “Próprio Nini”, de seunome Alves Neto. Muitos contraféseram deixados no bar Flor da Brigada.Aí também neste bar teve bons mo-mentos de conversa e música com Do-minguinhos, do Dimba Dya Ngola, cujopai era enfermeiro aí no Hospital Ca-deia São Paulo e frequentava aquelaárea. Era vizinho aí próximo, num tem-po em que recorda o semba ter sido oritmo da mensagem, mas dividia espa-ço com a música brasileira, com Rober-to Carlos, e congolesa, com Francó. “Minha mãe não chore, que eu

vou ao Maquis mas vou voltar, mes-mo que voltar cego, só de tocar teusseios hei-de reconhecer que és a mi-nha mãe”, trecho de uma das músi-cas de Elias Dyá Kimuezo, que o pró-prio fez questão de destacar duran-te a entrevista concedida ao CULTU-RA, que aconteceu em sua casa, noBairro Nova Vida, em Luanda

Elias é saudado pelo Presidente da República no dia da abertura da Embaixada de Angola na Namíbia No dia em que Fernando da Piedade Dias dos Santos entregou a a carteira profissional de músico a Elias

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ARTES| 21Cultura | 11 a 22 de Novembro de 2015CALABETO

O semba foi o estilo musical da mensagem

MATADI MAKOLA |Calabeto é uma das vozes sonantesda história do cancioneiro angolano,conhecido pela sua enérgica posturadançante em palco, indumentária, epor possuir uma das vozes do melhortimbre da sua geração. Tem nos seupercurso passagens por vários gru-pos, mas procuramo-lo para ouvirdeste Kota Bué palavras que preen-chessem estas páginas com algumasmemórias atreladas no dia da procla-mação da independência. Disse-nosde imediato que viveu este períodocom grande intensidade, na medidaem que ainda era jovem. Mas naquelaaltura já era uma pessoa ligada às ar-tes, na especialidade de música. Foiassim que integrou a JMPLA, onde secriou uma secção de música e daliajuda a fundar o agrupamento musi-cal Kissanguela. Foi com este agrupa-mento com o qual trabalhou intensa-mente para ajudar o MPLA a vencertodos os obstáculos, por formas a queno dia 11 de Novembro de 1975 oPresidente Agostinho Neto procla-masse ao país e ao mundo a indepen-dência de Angola.De nome completo António MiguelFrancisco Calabeto´, natural de Luan-da, com os seus já cotados 70 anos deidade, ele e os camaradas Carlos La-

martine e Filipe Mukenga, enfatiza onosso interlocutor, não passaram des-percebidos naquele que foi o primeirodia em que o país impôs ao mundo asua soberania enquanto Nação: “Fo-mos das primeiras pessoas a aprendero Hino Nacional. Porque nós, na quali-dade de músicos, e já consagrados, fo-mos escolhidos para aprendermos oHino da República e posteriormenteensinarmos a um grande grupo de ca-maradas com os quais estivemos nodia 11 de Novembro no Largo 1º deMaio (hoje Praça da Independência),para entoarmos o hino enquanto oPresidente proclamava ao mundo aindependência de Angola”, lembra pa-ra o presente e para a posterioridade asua acção neste magno dia.Entretanto, não só aprenderam o hi-no de Angola como também algunscânticos revolucionários de algunspaíses africanos. Lembra que entre osconvidados esteve também o malogra-do Samora Machel, na qualidade dePresidente de Moçambique, que cor-dialmente retribuia o gesto de Agosti-nho Neto que também se fez presentena altura da proclamação deste povoirmão. Calabeto reporta que no acto foitambém entoado um cântico de mo-çambique que dizia que aquele paísera de Rovuma ao Maputo, tal como sefazia referência no caso da homóloga

Angola que era de Cabinda ao Cunene.E Calabeto recorda: “Estando tambémna independência moçambicana em1975, porque o agrupamento musicalKissanguela integrava privilegiada-mente a delegação presidencial sem-pre que o presidente Neto se deslocavapara fora do país, no Largo 1º de Maio,em 75, na hora em que o Presidenteproclamava a independência, estáva-mos nós no largo a entoarmos o hinoda República e alguns cânticos”.Camarada IngoO facto de na altura ser ainda jovemnão foi empecilho. Estava conscienteda luta e da missão a cumprir, e, lúcidodestas responsabilidades, se entregade forma total à causa da independên-cia, ciente de que o grande objectivoera interpretar com veemência as can-ções com conteúdo revolucionário, acanção politica que ajudava o MPLA.Sabia que era uma questão de saberequacionar, porque naquela altura elee muitos outros camaradas eram fun-cionários do Estado, sendo assim re-quisitados para o trabalho político.Mas como músicos ficaram entendi-dos na política não é muito difícil deadivinhar, afinal era um período emque todas as individualidades esta-vam engajadas e mobilizadas para aluta. Assim, não tiveram problemas

em cumprir este desígnio, tambémporque tinham passado por uma pe-quena formação política básica admi-nistrada pelo camarada Ingo (BenignoVieira Lopes) e que lhes serviu degrande suporte: “Estávamos equipa-dos. Não tivemos nenhuma dificulda-de para sensibilizarmos os homens aintegrarem no seio do MPLA e partir-mos para uma revolução”, analisaquarenta anos depois das tensões vi-vadas que geraram o 11 de Novembro. O Semba sabe melhor

cantado em kimbundu“Sempre com o semba”, nos diz. Eafirma estar no género não só comomúsico, mas por uma ligação maisprofunda, dado que é oriundo de paiskimbundu, da região de Luanda. Reco-nhece o português ser a língua que nosliga, mas era maioritariamente emkimbundu que as contribuições musi-cais faziam filtrar com mais êxito amensagem: “Mas, sem desprimor paraas outras classificações, devo mesmoconfessar que o semba sabe melhorcantado em kimbundu”, defende. O semba foi o estilo musical da men-sagem. Mas com esta afirmação nãonos quer com isto dizer que o semba éque padroniza a música angolana:“Não é verdade. Porque nós temos 18províncias e cada região tem a suaparte rítmica, temos kilapanga, sekes-sa, semba e outros. O ponto a realçarincide no facto de que o semba foi oque mais se destacou no meio de todasestas bases rítmicas. Por exemplo,quando íamos ao estrangeiro e inter-pretássemos algum ritmo que não fos-se o semba, eles poderiam não conotaro género a Angola, mas era o contrárioquando se tratava de semba”.Última mensagemPedimo-lo que tirasse do seu cora-ção uma mensagem de luta e encoraja-mento para todos aqueles com quempassou as intempéries sociais que de-sembocaram na revolução que origi-nou a independência, e disse: “Vai nosentido de dizer a todo povo angolano,e em particular aos camaradas que nodia 11 de Novembro de 1975 traba-lharam no Largo da Independência,que é bem verdade que hoje são 40anos de independência. Valeu a penatrabalhar, muito embora nós não te-nhamos ainda o sucesso individualque merecíamos. Mas não vamos de-sanimar e cruzar os braços. São fases.Vamos continuar e acreditar que nospróximos anos tudo estará melhor eque receberemos alguns prémios eque haja saúde para todos”.

Calabeto exibindo o seu melhor na ginga, indumentária e canto angolanos em palco

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CANDONGUEIROSQuem se faz transportar de táxi co-lectivo, habitualmente, depressa sefamiliariza com o cenário seguinte: - Em qualquer local da avenida, ocobrador, com a porta da carroçariaaberta (corrida), empoleira-se nessesítio e, com uma das mãos agarradaao tejadilho da viatura e a outra segu-rando as notas, dobradas ao compri-do, entre os dedos, grita aos tran-seuntes, meneando a cabeça comopássaro engaiolado: «Sã Pálu! Sã Páluna gilera!»; «Multiprefil no ar condi-cionado!»; «Eroportu! Eroportu!...»;«Ilha! Ilha!...» ou «Congolensi decem!», enfim, papagueia o destino darespectiva viagem.- As paragens, onde os táxis de-vem tomar ou largar os passageiros,estão regulamentadas. Por exem-plo, no troço entre o Mercado dosCongolenses e a Mutamba, estãoprevistas paragens em frente à lojade electrodomésticos, a seguir aoEstádio da Cidadela e antes do edifí-

cio do MINARS; no cruzamento doZé Pirão, no Cine Luanda e na termi-nal, Mutamba. No entanto, as mes-mas não estão sinalizadas como asdos autocarros da TCUL que exibemuma sinalética afixada ao longo dopercurso. Este facto, aliado à pressados transeuntes em apanhar o “car-ro de praça” e à gula da dupla moto-rista/cobrador pelo lucro rápido,torna anárquico o sistema de toma-da e largada de passageiros. Por es-se motivo, é comum assistir-se aepisódios como os seguintes: «Mo-ço, saio na loja do disco jóquei» ou«No Comilão, fico» ou «Cobrador,saio na Clínica de Santa Marta», ochamador brada, então, ao motoris-ta: «Tira fora» e este encosta à ber-ma; polícias de trânsito a multar ostaxistas por estes tomarem ou lar-garem clientes fora das paragensregulamentares, por vezes, com aviatura ainda em movimento; con-duzirem sem cumprimento do limi-te de velocidade citadino; por se

entreterem com mbaias, ou por des-respeitarem a lotação de passagei-ros permitida por lei.24Jan15Apanhámos o candongueiro emfrente ao posto de combustível So-nangalp, da Av. HojiYaHenda, comohabitualmente.Na descida da Av. de Portugal paraa Mutamba, o trânsito está parado notúnel em frente ao antigo Cine Luan-da. Para contornar este costumeirocontratempo, o motorista altera a ro-ta, virando na Rua Frederico Wel-witsch, em direcção ao Kinaxixe. Já no início da Rua da Missão, ocondutor – reparando que o trânsitose encontra igualmente duro – simu-la a presença de uma operação stopem frente à sede da TAAG.- Descem, a polícia está lá frente!- E a gente tem que descé porquê?– questionam os passageiros, emuníssono.

- Vocês não estão a perceber? Ocondutor não tem carta ou os docu-mentos da viatura! – adianta um ra-pazote, com os auriculares pendura-dos nas orelhas.- Descem! Vão andando que a gen-te vos apanha lá frente! – sugere omotorista, incomodado.- Eu desço, mas quero o meu dinhei-ro de volta! – responde, com veemên-cia, um senhor de cabelo grisalho.- Também eu! – aquiesce outro. - Também nós! – corroboram osrestantes. Em conluio com o condutor, o cha-mador devolve notas de 100 kwan-zas a cada um dos clientes que apa-nhara o táxi a partir da ex-avenida doBrasil e de 200 akz aos que o fizeramna paragem de origem, o Mercadodos Congolenses. Livres dos passageiros, o motoris-ta abandona a congestionada Rua daMissão, vira para a rua ReverendoAgostinho Pedro Neto, faz a inversãoda marcha na Rua de Portugal, encur-tando, propositadamente, o percursode regresso aos Congolenses que, emcircunstâncias normais, teria iníciona Mutamba. Com esta artimanha, condutor e co-brador evitaram perder dinheiro, oque aconteceria se tivessem permane-cido encurralados no troço até ao HotelEPIC SANA. Certamente não contaramcom a reacção reivindicadora dos pas-sageiros, mas terão preferido pôr emprática o ditado velho e certeiro: “Bar-co parado não arrenda frete!”22Fev15Ao chegar à paragem, para apa-nhar o candongueiro para a Mutam-ba, deparámo-nos com dois cobrado-res a disputarem o enorme saco decarvão de uma cliente. Apercebemo-nos que a zungueirahavia feito o sinal de paragem ao pri-meiro táxi que aparecera, mas, comoeste tardava em retomar a marcha, acliente trocou-o pelo que viera ime-diatamente a seguir. Todavia, o cha-mador do primeiro táxi, que fora“mandado parar”, achou-se no direi-to de reclamar a passageira para si. Permanecem, durante breves

Casos da nossa vida socialIII. Sagacidade Juvenil

MÁRIO ARAÚJO

O povo angolano conquistou a independência há 40 anos, após o conflito armado de libertação nacional, que principiaraem 4 de Fevereiro de 1961.De 1992 a 2012, foi molestada por uma guerra civil que lhe infligiu incomensurável sofrimento. Após o restabelecimento da paz, a população convive com os resquícios desse passado sangrento, mas mostra-se bata-lhadora, alegre, caminhando para o desenvolvimento, com coragem e dedicação. Hoje, vive-se a fase de reconstrução e de investimento nacionais, sobretudo no capital humano. Ora, tendo o Recenseamento Geral da População e da Habitação, efectuado em 2014, revelado que a população angola-na é maioritariamente jovem, a aposta na sua formação deve perdurar, cativando para os cursos de formação profissio-nal os jovens que se revelarem com perfil para essa certificação. Essa necessidade de dotar a camada juvenil de formação qualificada assume-se evidente, quando esbarramos em jo-vens como os que, a seguir, se descrevem.

Crianças do Futungo

22 | GRAFITOS NA ALMA 11 a 22 de Novembro de 2015 | Cultura

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minutos, aos puxões, até que o pri-meiro motorista grita pelo seu cobra-dor, este larga o saco, entra para oveículo, e o condutor recupera a mar-cha celeremente. 18Mar15Enquanto cumprimos a rotina ma-tinal de esperar pelo candongueirono passeio contrário ao do ColégioALPEGA, ouvimos uma voz infantil,tímida, vinda do nosso lado direito.Espreitámos e descobrimos, junto anós, uma menina com a mochila àscostas: - Tio, me ajuda só atravessá a rua!Enternecidos pelo inusitado pedi-do, agachámo-nos e encarámos a ga-rota trançada, de olhar meigo e alvo,como a sua branca bata maternal-mente engomada. - O que dizes?- Tio, me ajuda…O adulto segura na mão esquerdada criança, no momento em que estajá a estendia ao encontro da sua. En-tão, ziguezagueando por entre ochorrilho de carros, fizemos a traves-sia em segurança. - Fizeste bem em pedir-me ajuda.Nunca atravesses esta avenida sozi-nha!- Tá bem, tio. – responde, agradeci-da, a encantadora criança, ajeitando apequena garrafa de água na mochila. 17Abr15Regressando das aulas nocturnas,avistámos um táxi. As pessoas, à es-pera na paragem da UNAC, agitam-

se; outras vão aparecendo, a correr.Contagiado pelo frenesim da entradados noctívagos passageiros para aviatura, e pelo apelo estridente dochamador «Congolensi! Congolensi!Congolensi…», decidimos entrar. Emmá hora o fizemos, como, a seguir, sededuzirá!Enquanto esperávamos pela nossavez de entrar, escutávamos a ordemperemptória do cobrador aos clien-tes que se vão sentando: «magrece…magrece!» Como fomos o último a en-trar, coube-nos a pontinha do primei-ro banco, junto à porta, originaria-mente do chamador, mas que ele ce-de para facturar mais um lugar. Ficá-mos com a nádega esquerda assentena borda do desgastado estofo, e a di-reita por cima do ferro lateral, so-bressaído da base do estofo, pelo fac-to de este ter sido empurrado umpouco para o seu lado esquerdo. Mal o táxi enceta a marcha, senti-mos o ferro a espetar-se-nos no…ânus! Soltámos um “ai!” tímido, so-mente ouvido por nós! Resistimos àdor para prosseguir viagem, mas alonjura do destino levou-nos a fincara ponta dos pés no chão de chapa pa-ra afastar as nádegas do malévolo es-tofo, perfazendo o restante percursode cócoras!Chegados à casa, perguntámos, es-petando o mataku:- Mana, as minhas calças estão ras-gadas aí em baixo?18Mai15Assim que o táxi arranca do semá-foro, localizado na Av. HojiYaHenda,

em frente à Lavandaria Sessenta, umpassageiro exclama: «Este sinal en-carnado demora pouco. Não é cumosdo Kilamba! Aqueles? Num vale a pe-na! Demora uma hora pravir o ver-de!» - apercebendo-se da atenção dosdemais passageiros, prossegue a nar-rativa – «Puseram lá o sistema chi-nês. Quando tá encarnado pròs car-ros, toda população passa! Os taxis-tas ficam bem nervoso! Se você tásatrasado pròsalo, obriga violá o si-nal!».25Mai15Ao chegar ao Zé Pirão, o condutordo táxi em que vamos encosta-se, emdemasia, a um carro aí estacionado.Que trabalheira para o motorista de-senvencilhar-se da situação e reto-mar a marcha! Pela dificuldade damanobra e os malabarismos efectua-dos com o manípulo das mudanças,dámo-nos conta de que estas têm di-ficuldade em entrar na caixa de velo-cidades, que chia como dobradiçaferrugenta!No viaduto, a seguir ao Cine Luan-da, verifica-se o habitual engarrafa-mento subterrâneo. Dois motoquei-ros, um de cada lado, vão ultrapas-sando, a zunir e à tangente, os carrosimobilizados. A viatura onde nos encontramos –com apenas dois dos três habituais ecompridos bancos – revela dificulda-des em transpor a parte íngreme davia, à saída do viaduto. Efectivamen-te, em determinada altura dos suces-sivos “pára/arranca”, a 1ª mudançarecusa-se a entrar. Por isso, o táxi foi

deslizando para trás. Quanto mais ocondutor se esforça por encaixar amudança, mais o carro retrocede,provocando a rápida e assustadareacção dos automobilistas trasei-ros, que se apressam a buzinar furio-samente! Os passageiros presenciamo caricato episódio, uns boquiaber-tos, outros empertigados, e os res-tantes… indiferentes! Finalmente, ocarro caminha para frente graças aoengenho do condutor que, depois de“meter” a primeira, sustém o maní-pulo, com os dedos sobrantes do vo-lante, para que a mudança não salteda caixa de velocidades!A emoção de se fazer transportarneste tipo de táxi é semelhante à quese experiencia nas viagens em carri-nhos de choque, das feiras populares;a diferença é que os táxis reais nãochocam tantas vezes!A ideia generalizada que se tem dadupla motorista / cobrador não lhesé abonatória, devido a uma série defactores, nomeadamente a sua pres-sa constante, a baixa escolaridade, apouca formação cívica e o atavio rela-xado, a combinar com o aspecto des-cuidado de grande parte dessas via-turas. Contudo, alguns há – muitopoucos – que, pontualmente, têm ati-tudes de honestidade, sensatez esimpatia, como ilustram os três epi-sódios seguintes:Como preferimos, viajávamosnum dos dois bancos ao lado do con-dutor. Ultrapassada a EmbaixadaPortuguesa, o cobrador brada a cos-tumeira solicitação: «Aí à frente, tou-cobrá!» Distraidamente, erguemos obraço esquerdo, estendendo-lhe uma

Mural popular

GRAFITOS NA ALMA|23Cultura | 11 a 22 de Novembro de 2015

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24 | GRAFITOS NA ALMA 11 a 22 de Novembro de 2015 | Culturanota. - Pai grande, isso é muito dinhei-ro!- adverte o chamador, ignorando anota exibida. - Se é muito dinheiro, então podesficar com o troco! – respondemos,convencidos de estar a entregar umanota de 100 kwanzas. - Não, kota; não dá praficácum tan-to kumbu de gorjeta!Perante a reiterada renitência docobrador em recolher o dinheiro,olhámos para a nota e, incrédulos,apercebemo-nos do logro: tínhamosna mão uma nota de 1000 kwanzas!Alguns dias depois, entrámos paraum táxi e, como saíamos na últimaparagem, acomodámo-nos num doslugares de trás. O chamador apressa-se a atirar-nos um pano de flanela:- Toma, meu kota, pra limpares opó do banco.No dia seguinte, vínhamos senta-dos ao lado do condutor, quando, emfrente à padaria da Av. de Portugal,entra, para junto de nós, um homemcom uma lata de cerveja na mão, de-nunciando embriaguez. - Dikota, não se pode bebé bebidasalcoólica no táxi. – adverte, lá de trás,o cobrador. O recém-entrado, com o falar ar-rastado, balbucia monossílabos im-perceptíveis, ignora a admoestaçãodo chamador e faz menção de elevara lata alcoólica à boca. - Mais-velho, num vale a pena sóinsisti! Tás dá mau exemplo pràscriança que estão aqui atrás! As palavras assertivas do cobra-dor tiveram o condão de despoletar,no embriagado, uma chispa de luci-dez. Então, este prende a lata no inte-rior das coxas, donde jamais a retira.

02Jun15Na paragem da Mulembeira, frenteà Angoship, uma senhora apanha umtáxi, com destino ao Miramar. Ao desfazer a rotunda, o apressadomotorista curva repentina e abrupta-mente para a esquerda, iniciando asubida do eixo viário. - Ai o meu coração! Moço, andamais devagá!- Mamãe, quem sofre de coraçãonum anda neste carro! – Justifica-seprontamente o candongueiro, en-quanto alteia o volume do velho rá-dio, para ouvir melhor a Kizomba quecorre na pen drive. 10Jun15Na zona do Cine Luanda, onde, ge-ralmente, o chamador dá início à co-brança, e os passageiros vão esticandoas notas na sua direcção, os que via-jam sentados no banco do meio ser-vem de intermediários, recebendo odinheiro dos que estão no último ban-co e fazendo-o chegar ao cobrador. Todavia, há um cliente, de face be-xigosa e nariz pontiagudo, que se re-vela renitente em efectuar já o paga-

mento:- Eu só pago na Mutamba!- Se todo mundo pagou, o mais-ve-lho engravatado – olhando para nós –já pagou, pra quê você táscomplicá? –desabafa o cobrador, atónito com aatitude extemporânea do resolutopassageiro. - Num sou obrigado a pagá antes!O motorista, de chinelos havaia-nas, acode o colega de profissão:- Se até memo no autocarro daTCUL você pagas na entrada, prá quêtásarmá confusão?Mas o jovem cliente levou a teimo-sia avante e só pagou, mesmo, na pa-ragem terminal, Mutamba!Apesar do aspecto descuidado e dacondução insegura, os candogueirosdesempenham um papel vital no dia-a-dia das populações, além de se reve-larem genuínos confessionários dospopulares! Por estas razões, dever-se-ia investir na sua formação cívica etécnica, seleccionar e integrar os maiscompetentes nas empresas públicas eprivadas de transporte colectivo depassageiros, como a TCUL e a MACONTransportes, promovendo, desta for-ma, a sua ascensão social. Rebites, 04ul15, deslocámo-nos ao postode combustível da Sonangol, junto aoLargo 1º de Maio, para abastecer aviatura de gasolina.Enquanto esperávamos, na fila, pe-la nossa vez, uma chusma de rapazes,surgindo repentinamente, como quedo nada, interpelam-nos à janela, im-pingindo-nos os mais diversificadosprodutos. Vamos dizendo “não, obri-gado” a uns e a outros, mas acabámospor comprar um ambientador e umacapa para o volante do veículo. Surge um outro vendedor que nosexibe uma espécie de aro metálico,de cor preta, aponta para o retrovi-sor e diz:- Kota, teu carro é novo, os gatunovão-te roubá os espelho!- Como é que é? – perguntámos,atónitos.- É como tou-tafalá, pai grande.Eles vão meté uma chave aqui e vãolevá os dois espelho! – nem quería-mos acreditar no alerta! – Num tás avé cus pelhos só tão preso por umamola? – explica o expedito rapaz, co-locando o dedo indicador na fendaentre o espelho e a sua protecção. - E é essa coisa ferrugenta que tuqueres aplicar no meu carro? – apontá-mos, com o olhar, para a peça exibida.- Não, esta é só amostra! O paigrande encosta só ali o ruca que euvou chamá o meu avilopra vi montá!- Eh pá, mas com isso o retrovisorvai ficar feio! – exclamámos, avan-çando um pouco mais na fila.- Não, kota! O protectó num vai-sevê! O meu kamba vai parafusá dentroda protecção do espelho!- Ai é? E por quanto é que fica o ser-viço?

- 15000 kwanzas.- Nem pensar! – chegando a viaturapara a frente.- Mas ó dikota, já viu o quê andácumreceio de lhiroubá os espelho? Assim,tu pões os protectó e andas cum teurucacum mais alegria!- Mas 15000 está muito caro. Se qui-seres, dou-te 10000. – ripostámos, aoentregar a chave do carro ao abastece-dor. A seguir à bomba, o vendedor daprotecção aguarda-nos, acompanha-do do rapaz que vendera o ambienta-dor. Fazem sinal e o companheiro diz:- Pai grande, pensa só: quanto é quevais pagá se comprá uns espelho no-vo?Alarmados, começámos a ceder.- Inda por cima tua machine é nova.Os caveras procuram bué esses espe-lho!- Está bem, mas eu já disse que sódou 10000!- Depois vais ficácum remorso! –acode o primeiro.- Paciência! – fizemos menção deretomar a marcha. - Tá bom, intão. Fica o preço cu paifalou. Encosta só ali que eu vou ligápròmeu brader.Aquiescemos, estacionando a via-tura no sítio indicado, saindo da mes-ma.O posto de combustível vai regis-tando o seu movimento normal, comviaturas a chegar, abastecer e partir.Os frenéticos vendedores vão “ata-cando” cada um dos novos clientes,

impondo os seus artigos, papaguean-do a qualidade e o bom preço dos mes-mos. Como a espera já se estava a tornarmorosa, questionámos a dupla devendedores:- Então, ainda falta muito? Estão àminha espera para o almoço!- Kota, a pessoa que vinha fazé oserviço, a mota dele avariou! – escla-rece o que, primeiramente, propôs atarefa.- Então, vou-me embora! – cami-nhando para o Renault Duster. - Não, pai grande, nós vamo lá! – di-zem, simultaneamente, os proponen-tes, acompanhados, agora, de um ter-ceiro. – O pai távé onde fica o Veneza? Com a porta do carro aberta, res-pondemos afirmativamente, mas re-velando, já, alguma saturação.Os três jovens agarram nas imbam-bas e entram para o carro, com a ligei-reza de quem o faz amiúde. Chegados à Rua Comandante Kwe-nha, dois dos rapazes foram chamar o“artífice.” Entretanto, o que havia ven-dido o ambientador, volta a solicitar-nos:- O pai pramanté esse tablié assimbonito cumotá, tem de passá estespray! – pulverizando um pouco, semesperar a nossa resposta!- E isso resulta? – indagámos, des-confiados. - Sim, kota. Num deixa o tabliéficábranco! Depois, é só passá aquelasfralda branca que se vende memo aína rua!

Pintura de Paulo Kussy

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GRAFITOS NA ALMA| 25Cultura | 11 a 22 de Novembro de 2015 - E por quanto é que vendes isso?- Touvendé 4000, mas cumo pai jáme comprou o ambientador, possodeixá por 3000.- Não, nas lojas compro por 2000!- Dá lá 2500!Acabámos por adquirir o spray por2000!Entretanto, chegam os outros ra-pazes e o “técnico”, trazendo os doisprotectores, um berbequim e umapequena bolsa contendo rebites. Rápida e ligeiramente, o “mes-tre” dá início à colocação dos pro-tectores, coadjuvado por um dosangariadores. - Os gatunos num sacam só os retro-visó. Tamém arrancam os faróis! – ad-verte o mais expedito dos negociantes. - Não me digas! – respondemos, es-tupefactos com o alarme. - Sim! E costumam levátamém es-ses ferro do tijadilho! – acrescenta ovendedor que, até então, se mantive-ra em silêncio, apontando para os su-portes que prendem a carga. - Vocês querem é ficar com todo omeu dinheiro!- Mais-velho, memo que depoisvais comprá esses ferro, já num vaisencontrá originais cumo esse aí! – ob-serva o vendedor do ambientador edo spray, encostado a uma árvore.- É melhó o paizinho aproveitá quetamos aqui, prarebitá já tudo: os fa-róis e esses ferro!Vamo-nos sentindo como se, de re-pente, tivéssemos sido colocados no

meio de um filme de terror! Ame-drontados, perguntámos pelo preçodo serviço completo.- 15000? Vocês pensam que eu es-tou a nadar em dinheiro ou quê?- Cumo pai já nos trouxe memo atéaqui, fica intão já por 12500. - senten-cia o vendedor que, no posto de com-bustível, mostrara os protectores doretrovisor.- Se a minha mulher me vê chegar acasa sem dinheiro, zanga-se! – desa-bafámos, resignados. – Está bem. Fa-çam lá o serviço completo!Entusiasticamente, os rapazes pe-dem-nos para abrir o capô e a portado porta-bagagem, e, de seguida, ex-plicam a pertinência da empreitada,apontando para os faróis da frente:- O pai távé esta porca que tápren-dé o farol? Os gatuno desapertam elacuma chave! Escutámos, embasbacados!- Os rebites, vamolhisparafusáaqui, por cima destas pega. Memoque eles abrem o capô, prasacá o fa-rol, vão rebentá a pega e assim numvão consegui vendé porque já numvai dá praprendé o farol noutro ruca! - Memo tamém ninguém ia aceitá-comprá os faróis porque vão vé que éroubado! – acrescenta o mais franzi-no do grupo. Achando plausível a explanação,vamos pensando na pertinência determos sido abordados pelos jovens! Nisto, aproxima-se outro moço:- Pai grande, tenho aqui cola de fer-

ro pra antena do rádio. Enquanto observávamos o jeitodesengonçado do recém-chegado,este empoleira-se no veículo, desen-rosca a antena, aplica-lhe a cola, edesce, dizendo:- Mi dá só 500 kwanzas!- Mas esse não é o preço da bisnaga?- Nada, mais velho. Esta cola é es-pecial!Desarmados, estendemos-lhe a nota!- Meu kota, as tuas jantes inda tãonovas mas vão infurrujá! - interpelao jovem menos interventivo do gru-po, abrindo a velha e suja mochila.Virámo-nos para ele, já agachado,a polvilhar o spray numa das rodastraseiras, acabando por concluir queo acinzentado do gás até nem ficaramal no rodado. - E quanto é que me vais cobrar pe-lo spray nas quatro rodas? - Costumo pedi 4000 kwanzas, pai.- Nem pensar! Mas vocês estãocombinados ou quê? Por esse preço,compro a lata e eu próprio aplico!- Tá bem, mais-velho, dá intão só3000. – Condescende o “pintor”, en-quanto se aproxima doutra jante pa-ra pintá-la, sem esperar autorização.O docente deixa-o aspergir o spraynas quatro jantes e diz-lhe:- Toma lá 2000 e não se fala maisnisso.O borrifador recolhe a nota verde,com ar resignado.No fim do serviço, um dos rapazesexclama:

- Kota, o selo do ruca? - apontandopara o vidro dianteiro. - Não estou a conseguir comprarpara colá-lo! – justificámo-nos. - Na bomba onde o mais-velho me-teu gasolina, vendem!- Então vamos até lá, que eu vosdou boleia. Durante o trajecto, um dos vendedo-res entrega um pedaço amarrotado depapel com o seu contacto telefónico:- Pai grande, nós fazemos tudonos carro. Se precisá de novo, é sóda um conection.No regresso a casa, demos connos-co a fazer contas ao dinheiro desem-bolsado e, assustadoramente, con-cluímos que tínhamos parado noposto para gastar 2000 kwanzas emcombustível, mas acabáramos pordespender 20000, mesmo regatean-do os valores inicialmente pedidospelos jovens! Num semáforo, olhámos para oslados e constatámos que, afinal, ou-tros automóveis tinham os retroviso-res e os faróis presos com rebites,perguntando-nos como é que não ha-víamos reparado nisso antes! Mais àfrente, observámos uma placa rudi-mentar pregada numa árvore com aseguinte inscrição: «COLOCAÇÃO DEPROTECCÃO DE RETROVISORES»,seguido de um número de telefone.Esta dupla e oportuna visão fez-nos sentir um pouco mais aliviadospelo inesperado investimento: «Secalhar, os rapazes até têm razão…»

Vista da Cidade de Luanda

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26 | HISTÓRIA 11 a 22 de Novembro de 2015 | CulturaAssociação Tchiweka de Documentação lançaFILME SOBRE A LUTA DE LIBERTAÇÃO

Angola segue, independente, há40 anos e esse facto torna urgente anecessidade de preservar os teste-munhos dos que contribuíram paraa luta pela independência.

A ATD (Associação Tchiweka deDocumentação) produziu e apre-sentou em Luanda o filme Indepen-dência, com duas horas de rodagem,realizado por Mário Bastos e produ-zido por Paulo Lara e Jorge Cohen. Alonga metragem “nasceu da neces-sidade de preservar a memória (e ashistórias) dos que participaram naluta de libertação de Angola. O filmeresultou do projecto ANGOLA – NOSTRILHOS DA INDEPENDÊNCIA, pro-jecto que arrancou em 2010 e pro-duziu mais de 1.000 horas de entre-vistas a cerca de 600 participantesda luta pela independência e perso-nalidades, nacionais e estrangeiras,com ela relacionadas. Quando setrata de documentar ou inventariara História de Angola mais recente,corre-se sempre o risco de ser acu-sado de parcialidade. Não é este ocaso. Independência, que tem comopúblico alvo as gerações nascidasdepois de 1975, pauta-se por umabem doseada equidade no trata-

mento dos factos desencadeados pe-los movimentos de libertação.

“HISTÓRIA E MEMÓRIAA 11 de Novembro de 1975, Angola

proclamou a independência. 14 anosdepois do início da luta armada contrao domínio colonial português, o regi-me de Salazar recusava qualquer ne-gociação com os independentistas, aosquais restava a clandestinidade, a pri-são ou o exílio. Quando quase toda aÁfrica celebrava o fim dos impérios co-loniais, Angola e as outras colóniasportuguesas seguiam um destino bemdiferente. Só após o golpe militar de 25de Abril de 1974 ter derrubado o regi-me, Portugal reconheceu o direito dospovos das colónias à autodetermina-ção”, lemos no kit de imprensa distri-buído pela ATD.

“Independência parte de memóriasda situação colonial, revela os passosiniciais da luta e percorre alguns dosseus principais cenários. De 1961 a1974, a guerra em Angola alastrou dasmatas do Norte e de Cabinda para aschanas do Leste, envolvendo inúmeraspessoas, combatentes ou apoiantes daguerrilha. Entretanto, prisões e cam-pos prisionais enchiam-se de presos

JOSÉ LUÍS MENDONÇA

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HISTóRIA| 27Cultura | 28 de Setembro a 11 de Outubro de 2015

A MAIS ANTIGA ESCULTURA EM MADEIRA DA ÁFRICA BANTU ENCONTRADA EM ANGOLA

Artur da Costa S. Silva*Foi Marie-Louise Bastin, pesquisa-dora especializada em arte tradicionalangolana, de quem fui aluno na Uni-versité Libre de Bruxelles (ULB), queme mostrou aquela que, até agora, éconhecida como a mais antiga escultu-ra em madeira da África banta. Expos-ta no Musée Royal de l’Afrique Centra-le (MRAC), em Tervuren, onde tive aoportunidade dever várias vezes essaobraextraordinária,de que pouca gen-te conhece a origem eque pertence àcolecção da Secção de Pré-História ede Arquelogia do citado Museu.Em 1972, F. Van Noten, investiga-dor do Musée Royal de l’Afrique Cen-trale, publicou um artigo, na revistaAfrica-Tervuren, no qual analiza pelaprimeira vez a escultura em questão,que M.C. Turlot encontrou em Angolae levou para a Bélgica, doando-a aoMuseu em 1929.Baseando-me no ci-tado artigo, passo a indicar, em resu-mo, o que F. Van Noten e outros inves-tigadores descobriram sobre essape-ça, a sua descrição e as conclusões aque chegaram. Quando a escultura foi encontrada,o engenheirobelga M. C. Turlot traba-lhava na companhia Diamang. Duran-te as suas prospecções no Centro deAngola, na região do rioLiavela,afluente da margem direita doAlto Kwanza, viu-se diante de umfragmento em madeira trabalhadopor mão humana, que tinha sido apa-nhadoem cima de cascalho, sob umacamada de terra de cerca de 3,5 me-tros de espessura. O poço da sonda-gem de prospecçao mineira,muitoprofundo,de onde a peça foi retirada,distava alguns metros do Liavelae eraevidente que o cascalho sobre o qualela repousava fazia parte doantigo lei-to do rio. O leito dos rios muda muitasvezes de sentido perto da nascente. Segundo a datação obtida porM.W.G. Mook, pelo método do radio-carbono,no laboratório de Física deGroningen, a peça deve ter sido es-

culpida entre os anos 750 e 850, ouseja entre os séculos VIII eIX da nossaera. Foitalhada num só bloco de ma-deira, que tinha sido retirado dotronco de uma árvore. Pesa 910 gra-mas, tem um comprimentomáximo-de 50,5 centímetros e 17,4 centíme-tros de altura na parte mais alta. O ti-po de madeira utilizada, indica que setrata do Pterocarpus angolensis DC.,árvore que, no Oeste do continenteafricano, só se encontra em Angola,nas províncias do Kuanza Norte e doMoxico, entre outras. A escultura representa um animal,do qual se destingue a cabeça, o cor-po, e, de forma esquematizada,asquatro patas e a cauda. Há quem pen-se que se trata duma zebra ou de umoutro equídeo, mas também poderáser, por exemplo,um jacaré ou um hi-popótamo. Na cabeça e no dorso doanimal há estrias, bastante apagadas,que convergem para uma linha me-diana, talvez a coluna vertebral, quefazem pensar nas riscas da pele daszebras. A cabeça é muitoalongada. Onariz e a boca, bemdesenhados, sãoas partes mais evidentes e melhor es-culpidas. Os pequenos olhos são es-boçados perto da implantação daorelhas. A abertura dos ouvidos pa-rece ter sido feita com um ferro embrasa. As orelhas são espessas e cur-tas, mas talvez tenham sido maiscompridas na origem. No dorso, per-to da cabeça e na base da caudavêem-se dois buracos profundos,também perfurados com um ferroem brasa,que teriam provavelmenteservido para fixar plumas ou outrosornamentos. Aliás, o objecto é cônca-vo e pode ter sido feito para encimaruma máscara,assentando sobre a ca-beça, de modo a evidenciar-se por ci-ma da testa do mascarado. Existiam máscaras do mesmo gé-néro na região. Segundo F. Van No-ten, no livro “Lunda” (Berlim, 1935)do antropólogo alemão H. Bau-mann,vê-se uma prancha com umamáscara semelhante, de origem

Tchokwe, representando uma cabe-ça de porco. No catálogo da Exposição Escultu-ra Angolana, Memorial de Culturas(Lisboa, 1994), onde a peça foi expos-ta, Marie-Louise Bastin afirma que “afeitura e ornamentação deste objectozoomorfo, cuidadosamente executa-das, é já um presságio da qualidadedas obras descobertas em AngolaCentral depois daquela época longín-qua.” E, a mesma autora, interroga-se: “E qual a sua função ? Que povo te-rá sido o seu autor ? Actualmente,perto das nascentes do Kwanza, vi-vem os Ovimbundo, Lwimbi, Ngange-la, Tchokwe.Mas há mil anos?”O Musée Royale de l’Afrique Cen-trale está actualmente encerrado pa-ra importantesobras de renovação emodernização que se vão prolongaraté 2017. Este Museu possui um acer-vo de milhares de objectos, escultu-ras e obras-primas oriundas do conti-nente africano, das quais só uma par-te era exposta em várias salas, antesdo seu encerramento em 2013. NoMuseu encontram-se também biblio-tecas, vastos arquivos e diversos la-

boratórios de investigação científicanas áreas da Biologia, da Botânica,daAntropologia, etc.Quando for rea-berto, é de esperar que atão antigapeça aqui apresentada, seja expostaem evidência, junto de outras belasobras provenientes de Angola, de es-cultores Tchokwe e Ovimbundu, queo Museu possui nas suas reservas.*Professor jubilado de História daArte, Academia das Belas-Artes daCidade de Tournai (Bélgica)_______________Bibliografia: -F. VAN NOTEN, « La plus anciennesculpture sur bois de l’Afrique Cen-trale ? », in « Africa-Tervuren », XVII –1972 – ¾-MARIE-LOUISE BASTIN, autorado Catálogo da Exposição « EsculturaAngolana, Memorial de Culturas »,Lisboa, 1994. Copyriht da fotografia da escultu-ra:“PO.00.14796, collection MRACTervuren; photo H. Schneebeli,MRAC Tervuren (C)”

políticos. Mas, através do esforço mili-tar e de reformas económicas e jurídi-cas, Portugal pôde prolongar umaguerra que não poderia vencer.

Os anos de luta evocados em Inde-pendência determinaram o rumo deAngola após 1975. Opções políticas,conflitos internos, alianças internacio-nais começaram a desenhar-se durantea luta anti-colonial. As principais orga-nizações (FNLA e MPLA e, mais tarde, aUNITA) nunca fizerem um afrente co-mum e as suas contradições eram am-pliadas pelo contexto da Guerra Fria.

Nenhuma história é “toda a Histó-ria”. Independência conta a luta apartir de dentro, dando voz a prota-gonistas angolanos de diferentes ori-gens sociais, regionais e políticas, cu-jos testemunhos são menos conheci-dos. Essa opção explica a ausência deoutras vozes e a escolha dos entrevis-tados(as), cada um representando, dealguma forma, um grupo maior, tra-zendo a sua vivência para uma narra-tiva colectiva.

A memoria de uma Nação faz-se demuitas memórias, que é urgente re-

colher, usando a linguagem do cine-ma para articular memórias pes-soais e arquivos.

Independência coloca-se na linhada frente contra o esquecimento daHistória”, conclui o press release.

HISTORIAL DA ATDA ATD, cuja sigla incorpora o no-me de guerra de Lúcio Lara (Tchiwe-ka), Nacionalista angolano da pri-meira linha e Veterano do MPLA, éuma associação sem fins lucrativosque tem como principal objectivo a

promoção e divulgação de activida-des que contribuam para preservara memória e aprofundar o conheci-mento sobre a luta de libertação dospovos africanos, centrando os seusesforços em Angola.A ATD é, portanto, uma Associaçãoprincipalmente vocacionada para aclassificação, organização e divulga-ção de arquivos da luta anticolonialtendo já editado três livros, obras do-cumentais, cujo conteúdo é compostopor cartas, fotografias e outros docu-mentos inéditos.

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28 | DIÁLOGO INTERCULTURAL 11a 22 de Novembro de 2015 | Cultura

JOSÉ LUÍS MENDONÇA“Para entender a CPLP e a coopera-ção cultural com Angola, é precisolembrar que o Brasil e Angola têmuma história comum: o mesmo colo-nizador e o facto de que milhões deafricanos, dos quais muitos angola-nos, foram levados para o Brasil du-rante séculos, e apesar e terem sidolevados de maneira forçada, contri-buíram enormemente para a culturabrasileira e para o DNA brasileiro, aculinária, a língua, palavras comobanguela, quitanda, cambada, são to-das palavras daqui”, afirmou o embai-xador Norton de Andrade Melo Ra-pesta em entrevista ao jornal Cultura. Na verdade, a relação Angola-Bra-sil possui duas dimensões: uma, in-ternacional, que tem e ver com a lín-gua portuguesa, a CPLP e outra, maisdual, que tem a ver com o patrimóniobantu levado para o Brasil com as po-

pulações que viviam no territórioque hoje integra o mapa de Angola. Daí que o embaixador brasileiro ve-ja o intercâmbio cultural entre Angolae o Brasil como “um reflexo, um resul-tado natural dessa história comum”. Ofacto de o Brasil ter sido o primeiropaís a reconhecer a independência deAngola é o resultado de “uma obriga-ção”, disse Norton Rapesta. “Brasilei-ros foram também mandados para cá,também foram forçados: os Inconfi-dentes (da Inconfidência Mineira de1792), condenados ao degredo emAngola e que foram morar em Ben-guela. E já havia comércio de produ-tos. Nada mais natural do que a inicia-tiva do Brasil de propor a criação daCPLP, não só por causa de Angola, masporque, assim como a Inglaterra tem aCommonwealth, com as ex-colónias, aCPLP foi uma organização não coman-dada pela ex-metrópole, mas uma coi-sa horizontal, onde todos os paísestêm o mesmo peso... e onde se insiste

na intenção de aproximar, de conhe-cer mais as nossas culturas”.INTERCÃMBIO HUMANOVerifica-se, por via desse entrosa-mento histórico secular, um inter-câmbio real, promovido por institui-ções privadas e por cidadãos. Os an-golanos consomem muita músicabrasileira, o samba, por exemplo. E asnovelas brasileiras, que até induzemos angolanos a falar à moda do Rio deJaneiro ou de São Paulo. Um inter-câmbio vivo e não oficial, que ganhouraízes de irmandade.“Ainda bem”, considerou o embai-xador brasileiro. “Eu acho que a coo-peração, o intercâmbio deve ser entrepovos, não entre governos somente.Os governos criam as facilidades,criam muitas vezes as condições, mascabe aos povos que têm interesses, seaproximarem. Temos música brasi-leira aqui e também temos música an-golana no Brasil. Temos até influênciada música angolana na música brasi-leira. Lembramos o Kalunga, quandoChico Buarque, há 35 anos, compôsuma música aqui, Morena de Angola.”Sobre o Kalunga III, quisemos saberdo embaixador se iria demorar comoo interregno que se verificou entre oprimeiro e o segundo, ao que NortonRapesta sorriu de caxexe: “A ideia éjustamente que não esperemos mais35 anos para ter o Kalunga III. Tudo le-va a crer que será já no ano que vem,porque os artistas que vieram agorapela primeira vez a Angola queremvoltar em breve e é uma forma de pas-sar o bastão para as novas geraçõesque querem desenvolver reciproca-mente a música dos dois países.COOPERAÇÃO CULTURALNo domínio da cooperação técnica,Angola e o Brasil firmaram dois pro-jectos: um dirigido ao fortalecimento

da Gestão do Património Cultural deAngola e outro, que visa o fortaleci-mento da Preservação da Memória eda Produção de Audiovisuais de Ango-la. Será que a crise global está a impe-dir a concretização plena dos acordos?O embaixador disse que “há váriosprojectos em falta e que ainda não de-colaram. Por vezes, é a burocraciados dois lados, surgem outras priori-dades, mas eu acho que esses são doisprojectos muito importantes. Não éapenas uma questão de crise. Sei quejá temos contribuído para o projectoligado à museologia. Do audiovisualainda não vi nada nos cinco mesesque estou aqui.40 ANOS DE INDEPENDÊNCIAO Embaixador Norton de AndradeMelo Rapesta não partiu sem deixaruma mensagem, em nome do povobrasileiro, ao povo angolano. Umamensagem de agradecimento, por-que, disse, muito do que o Brasil é ho-je é devido à contribuição de Angola,do povo angolano durante séculos.“Como disse antes, a cultura brasilei-ra é muito influenciada, o brasileiroaqui se sente em casa. Luanda podiaser uma cidade localizada entre o Riode Janeiro e Salvador. A minha men-sagem é de confiança, de esperança.Angola vai conseguir continuar aconstruir este belo país que já o é pornatureza e de Natureza, com uma so-ciedade melhor, uma sociedade demaior inclusão social, com mais de-senvolvimento, é um trabalho árduo,com muito esforço, muitos sacrifíciose muitos bons resultados. A nossa pa-lavra é de esperança e de agradeci-mento por tudo o que nos trouxe, asempresas brasileiras estão aqui hátrinta anos, contribuindo, trabalhan-do, formando mão-de-obra, forman-do angolanos, para que cada vez maisAngola ande pelos seus próprios pés.”

EMBAIXADOR NORTON RAPESTA

“ANGOLANOS CONTRIBUÍRAM ENORMEMENTE PARA O DNA BRASILEIRO”

Forte Velho de Zanzibar Mapa da rota dos escravos

Norton Rapesta

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O ABCESSOLembro-me que, a uma certa hora, escutávamos o programa “Angola Comba-tente” na rádio. O meu marido era professor e tinha muitos colegas, mas era ape-nas com o Sr. Domingos de Freitas (enfermeiro), que escutava o programa. Nós,mulheres, nem sempre participávamos, pois advertiam-nos do perigo que cor-ríamos. Um dia, o meu marido fica muito doente com um abcesso entre o pescoço e aorelha. Tinha tanta febre e tivemos de levá-lo ao hospital. A família ficou preo-cupada. A minha tia Luísa tomou conhecimento da situação e veio visitar-nos deMalange. Nós vivíamos em Cacuso, 75 km antes de Malange. Já estávamos háuns dias no hospital quando o médico, Dr. David Resende, chega e dá alta ao meumarido dizendo rispidamente: “Podes ir-te embora para casa!”. E o meu maridorespondeu, estupefacto: “Doutor, então disse-me que iria lancetar-me o abces-so... Agora vou para casa, como, se ainda não estou melhor? O doutor prometeu-me...”. O médico interrompeu o meu marido, não o deixando concluir a frase, etornou a gritar-lhe: “Vai embora!”. Ficámos chocados com a sua reacção. Euqueria reclamar e ele voltou a interromper-me: “Calada! Vão-se embora!”. O Sr.Freitas não estava presente na enfermaria na altura, foi avisado, e veio ao nossoencontro. Chegou e disse: “Ó David Júlio, o que é que aconteceu? Porque é queele te está a correr?”. O meu marido respondeu aborrecido: “Tu é que deveriassaber. Tu é que trabalhas com ele. Quando eu dei entrada no hospital, ele rece-beu-me bem, e agora que nos expulsa nem parece o mesmo médico.” O meu ma-rido não sabia o que se estava a passar. O Sr. Freitas concorda que, de facto, o

meu marido tinha razão e que ele próprio estava a achar o médico muito estra-nho. O meu marido vestiu-se, arrumámos as nossas coisas e saiu assim mesmodo hospital, com dores e a bochecha tão inflamada que brilhava. Mais tarde, o Sr.Freitas levou-nos uns comprimidos para as dores e mais pomada.A FUGANo dia seguinte, ficámos a saber a razão do comportamento do médico. A ci-dade toda estava cercada de tropas, chamados de Magalas, de farda verde es-cura e preta. Os mujimbos espalhados pelos colonos portugueses eram de queos pretos eram terroristas e que queriam matar os brancos. Alguns familiaresque vieram visitar o doente, avisaram-nos do que estava a acontecer. No en-tanto, já sabíamos. Tínhamos acompanhado tudo pelo programa “Angola Com-batente”. A minha tia Luísa disse assustada: “Vocês não podem mais ficar aqui!E depois, assim, com este tumor? Vamos imediatamente para Malanje!”. O meumarido, relutante, respondeu: “Ó tia, também não exagera. Vamos esperarmais uns dias até que esta agitação passe.” E ela retorquiu contrariada: “Nãovai passar, vai piorar! Tu estás aqui dentro doente, não estás a ver o que é queestá a se passar. Pergunta à tua mulher!” Eu respondi: “É verdade o que a tia es-tá a dizer.” Fui apoiada pelo Sr. Freitas e os restantes membros da família pre-sentes, entre eles os meus pais. “A roupa que saiu do hospital está na água. Te-mos de lavá-la primeiro, para levarmos roupa limpa. Vamos ficar mais um diaaté a roupa secar.” Contudo, a minha tia ordenou-me que tirasse a roupa daágua, espremesse e a colocasse em sacos de plástico para partirmos imediata-mente. Ela própria ajudou-me a espremer a roupa dizendo para a minha mãe:“Nós vamos sair daqui hoje! Tu ficas com a tua neta. Vai a Madalena, o doente eo Quim.” O meu filho Quim tinha meses na altura.Eu pergunto: “Mas como vamos passar com esta tropa toda?” A minha tia res-pondeu: “O teu marido, vamos vesti-lo de mulher. Eles não fazem mal às mulhe-res, só aos homens.” Pusémos as roupas molhadas em sacos plásticos amarra-dos, de seguida abrimos uma mala forrada com sacos e uma toalha para enxugara humidade, onde colocámos os sacos com a roupa molhada. E fizemos outra ma-la com roupa limpa. Levámos o doente de bicicleta. Comprámos os bilhetes à ho-ra em que o comboio estava a chegar. Um miúdo levou de volta a bicicleta. Os tropas invadiram o comboio e viram três mulheres e uma criança na nos-sa carruagem. Não fizeram caso e avançaram para a carruagem seguinte. Antesque o comboio pudesse partir, apareceu o Sr. Freitas para despedir-se do ami-go. Viu-nos da janela, sentados. Assim que se aproxima da janela, um jipe mili-tar com Magalas estaciona na estação, próximo do comboio e os militaresavançaram em nossa direcção. Imediatamente o alertamos, pois se encontravade costas voltadas para os tropas: “Olha vêm aí uns militares.” O Sr. Freitas dis-se-nos logo: “Ó David, eu já estou...”. Neste preciso momento, o comboio apita earranca. Ainda vimos o Sr. Freitas ser escoltado para o jipe com um militar decada lado e, no jipe, seguiu acompanhado de mais cinco ou seis militares. Do ji-pe, o Sr. Freitas acenou-nos um último adeus. Nós ficámos trémulos e cheios demedo e toda viagem com o coração apertado, muito tristes, inquietos com a in-certeza que agora pairava sobre o destino deste nosso querido amigo. Passá-mos por Matete, Zanga, Cacolo, Lombe e, finalmente, Malange. Quando chegá-mos ao destino, encontrámos a tropa, mas não nos fizeram mal pois mais umavez éramos todas mulheres e apenas prendiam quando os alvos fossem denun-ciados. O Sr. Freitas e o meu marido ambos estavam na lista. Porém, o meu ma-rido não foi reconhecido. Nesta mesma noite foram à nossa casa em Cacuso,onde partiram tudo, rasgaram inclusive colchões. Foram à casa do meu pai e àscasas dos meus irmãos, de onde foram todos levados. Foram também presosoutros colegas do meu marido. Se nós tivéssemos passado a noite em Cacuso, omeu marido também teria sido preso. Todos foram mortos. O meu pai foi pos-teriormente solto e a sua vida poupada, apenas por ser velho. A experiênciacausou-lhe um forte trauma psicológico e esgotamento emocional. A minhamãe contou-nos que ele, após a soltura, depois de ter testemunhado a mortedos filhos, apenas pedia para ser morto também.Em Malange tínhamos os nossos taxistas de confiança, dois senhores mesti-ços: o Sr. Cândido e o Sr. Lima. Eram boa gente. Pedimos ao Sr. Cândido que noslevasse a Maxinde que era um bairro próximo da cidade. Durou apenas uma

BARARA DO KWANZA| 29Cultura | 11 a 22 de Novembro de 2015

O professor David Júlio por altura dos acontecimentos

COMO DAVID JÚLIO LUDIBRIOU A PIDE EM 1961(Testemunho vivo da retaliação colonial ao início da luta armada de libertação)

MADALENA JÚLIO

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corrida. Pelo caminho, o taxista manteve-se calado e ninguém fez um únicocomentário. Não nos perguntou o que vínhamos fazer como era de costume. Enós não dissemos nada, cheios de medo. Ficámos na casa da tia do meu mari-do onde dormimos todos. No dia seguinte, a minha tia Luísa, voltou para a ca-sa dela e disse-nos que iria arranjar-nos um enfermeiro ou alguém que pu-desse lancetar o abcesso, já que os médicos eram, na maioria, brancos. As coi-sas começaram a piorar. A tia Luísa foi à casa da filha, Maria da ConceiçãoBaptista, mais conhecida por Maria Kamunguemba, que era enfermeira-par-teira. Explicou-lhe a situação e esta prontificou-se a tratar do doente. Fomoslevados imediatamente de volta à sua casa e lá ficámos hospedados, sendoque era de conhecimento público que Mariazinha estava sozinha com os trêsfilhos e o marido ausente. Lancetaram o abcesso do meu marido, aliviando-odas dores. Entretanto, a guerra rebentou.A PRISÃO DE MOISÉS KAMABAIAUns dias depois, de madrugada, apercebemo-nos de um carro a parar emfrente à nossa porta. A luz forte dos faróis iluminou todo o interior da casa.Era um jipe militar dos Magalas com presos amarrados que gritavam de dorao serem brutalmente espancados por militares. Um destes presos era Moi-sés Kamabaia. Apercebemo-nos disso porque ele gritava com todas as suasforças pedindo socorro, identificando-se e pedindo para que os familiaresfossem avisados da sua captura, prevendo morrer. O meu tio Alfredo Piedadee o meu marido conheciam-no. O meu marido tremia de medo e, desespera-do, quis instintivamente abrir a porta para se entregar. Seguiu-se uma brevebriga entre o mesmo, eu, o meu tio Alfredo e a Maria, impedindo-o de sair. Àstantas, o meu tio quis acender um cigarro para o meu marido, a fim de acalmá-lo. Maria recebe o cigarro ao pai, gesticulando para não o fazer. Depois dosmilitares terem amarrado devidamente os presos, o jipe manobrou e partiu. A DENÚNCIANo dia seguinte, o meu marido e o meu tio Alfredo, não quiseram dormirem casa de Mariazinha. Passaram a noite, vestidos de panos, perto do rio Ma-lange, cercados de pântanos e mosquitos. Impossibilitados de conseguiradormecer nestas condições, permaneceram junto ao rio, porém, apanharamum resfriado. Em casa também não conseguimos dormir, preocupadas. Demanhã, os dois regressaram doentes e já não voltaram para lá. O meu tio dis-se: “Já não volto a ir dormir lá no rio. Vou ficar aqui em casa. Se me prenderem,pronto! Deus é que sabe. Já estou velho para estar a dormir em pântanos, àbeira do rio.” A minha prima diz-lhe então: “Pai, tu já estás velho, a ti não tevão prender. Tu estás a ir porque estás a acompanhar o David. É o medo quetu tens. Que possam lhe fazer mal. Tu ficas aqui e o mano David e a Madalenavão para a casa da Ana.” Ana era irmã de Maria. A casa estava do outro lado daestrada, a uns 50 ou 100 metros, da nossa. A casa estava alugada, tinha doisquartos e sala, dos quais um deles estava vago. O outro quarto e sala estavaalugado a um casal recém-casado sem filhos. O marido era motorista da Dra.Hortência, madrinha de casamento de Maria. Deste modo, o casal era de con-fiança e a sua casa estava fora do alcance dos Magalas. Como as rusgas eramfeitas apenas de noite, a partir das onze ou onze e meia, meia-noite, até àsquatro da manhã, e de dia estava tudo calmo, levámos o colchão e as mantasdiscretamente acompanhados pela mana Maria que explicou ao casal que omeu marido esteve hospitalizado em Malange, omitindo a fuga de Cacuso. Omeu filho Quim ficou com a minha prima Maria e com a minha mãe que entre-tanto tinha chegado de Cacuso com a minha outra filha, Mena. Passámos duasnoites na casa de Ana e de dia íamos para a casa da mana Maria. Nestas duasnoites, o marido chegava sempre depois de nós estarmos dentro de casa. Naterceira noite, quando chegámos para dormir, como era habitual, já encon-trámos o marido em casa. Chamava-se Sr. Sibinda. Ao entrarmos no nosso

quarto, o Sr. Sibinda convida-nos a sentar. Diz-nos prontamente: “Ouvi umaconversa lá no meu serviço. De um terrorista que fugiu de Cacuso. Eh, ele é pe-rigoso! Queriam matar os brancos. Eram dois, ele e mais um tal Domingos deFreitas. Huh! Mas foram descobertos! Eles tinham até armas! Meu Deus! Ago-ra estão à caça deles. Armas para matar os brancos! Já viram?! Pensam que, sóporque estudaram, já querem ser brancos, querem matar os brancos?! Arma-dos em calcinhas. Meteram-se com estes movimentos e agora estão perdidos!Estão perdidos!!! O outro então já foi morto! Já lhe bondaram. Bem feitos!Eles estavam mbora bem. Os brancos lhes tratavam bem!” Apanhados de sur-presa, nada dissemos. Pedimos licença ao casal e, calmamente, nos dirigimospara o quarto e fechámos a porta. Eles continuaram a falar baixinho na sala.Eu e o meu marido estávamos a tremer, mudos. Só depois é que o meu maridodisse: “Lena, ele sabe que sou eu o fugitivo. Ele estava a falar para mim.” Sus-pirou e disse: “Não adianta mais fugir. Já chegou a minha vez.” Logo que eleme disse isso, ordeno-lhe baixinho: “Ficas aqui! Eu volto já.” Ele perguntou-me: “Aonde é que vais?” Eu respondi: “Vou à mana.” Ele perguntou-me, preo-cupado: “Mas vais fazer o quê?” Eu respondi: “Vou lhe dizer o que ouvimos.” Omeu marido advertiu-me: “Está a escurecer. Não vale a pena. Amanhã vocêconta.” Eu teimei: “Você não diz mais nada. Eu volto já!” Abri a janela do quar-to devagarinho e pulei, pois a casa era térrea e a distância não era elevada. Pe-di ao meu marido que não fechasse a janela, que deixasse uma frincha. Comoera perto, fui a correr e entrei em casa da mana Maria. Logo que ela me viu,pensou o pior: “O que é que foi, Madalena?! Aconteceu alguma coisa?” Eu con-tei-lhe o que ouvimos do Sr. Sibinda e comecei a chorar. Ela ordenou-me logo:“Vai buscar o teu marido e não deixem nada lá! Vestígios nenhuns! Tirem tu-do! Ainda bem que é só o colchão e as mantas.” Eram dezoito e trinta. A manaMaria chamou a miúda que tinha em casa, muito prestável, fazia tudo, tinhapor volta de catorze anos e chamava-se Conceição. Nós tratávamo-la por São.Acompanhada da São, voltei para o nosso quarto trepando pela janela com aajuda da mesma. Instruída pela mana, silenciosamente eu sinalizei ao meumarido para arrumarmos as coisas. Dobrar o colchão e as mantas. Passámosas coisas para a São que estava do lado de fora e justo quando me preparavapara sair de novo pela janela, o meu marido travou-me. Disse-me: “Não va-mos sair pela janela. Vamos sair pela porta porque eles já foram dormir.” Omeu marido fechou a janela com o trinco. Devagar, abrimos a porta do quartoe, pé ante pé, dirigimo-nos para a sala onde não estava ninguém. Eu estava empulgas, cheia de medo. Saímos sem atrair suspeitas. Demos a volta à casa paraencontrar a São mas ela já tinha levado as coisas. Fomos depressa para a casada mana Maria. Assim que chegámos, a mana disse: “Olha, se apareceremaqui os Magalas vamos dizer que já lhe levaram.” Não foi necessário, porqueapareceu o tio José Soares que pertencia à Milícia. Não sei se foi a minha pri-ma ou a minha mãe que mandou avisar este tio. Como nós, as mulheres, tínhamos livre circulação, o meu tio dizia às pes-soas que em nossa casa só havia mulheres. Quase não dormíamos e, nestamesma noite, aconteceu algo terrível. Eram duas horas da manhã, quando ou-vimos carros a chegarem. Seguiram-se gritos, muitos gritos, e depois umamulher atrás dos carros a gritar pelo marido: “Ai, meu marido! Deixem o meumarido!” Mas ninguém podia sair. De manhãzinha, eram já cinco e meia damanhã, fomos com outras vizinhas saber quem havia sido levado. O Sr. Sibin-da tinha sido preso! Eram cerca de seis horas da manhã quando alguém apa-nhou a mão do Sr. Sibinda, reconhecendo-a, pois era um homem de grandeporte e na mão, cortada no pulso, permanecia a sua aliança. A mulher, quandoviu a mão do marido com a aliança, desmaiou. Ficámos a saber que o levaramporque foi ele que nos tinha denunciado. Os Magalas chegados ao quarto on-de supostamente estaríamos a dormir não encontraram nada nem ninguém,o quarto estava completamente vazio. O Sr. Sibinda tentou explicar-se mas,revoltados, os Magalas levaram-no com eles. Foi morto na mesma madruga-da, daí a mão caída na estrada, não muito longe das nossas casas. DOM MANUEL NUNES GABRIELO bispo de Malange, na altura, era Sua Eminência Dom Manuel Nunes Ga-briel. Este soube do acontecido pelo Sr. Sibinda, aquando da denúncia feitacontra o meu marido, e mandou-nos chamar por intermédio de um catequis-ta que nos foi buscar para ir ter com ele. Assim, o meu marido ficou finalmen-te em segurança. Eu voltei para casa da mana Maria onde estávamos hospe-dados. Ela tinha “visitas”. Qual não foi o meu espanto, encontro a minha irmãespiritual Lucinda (afilhada da minha mãe) com o seu amante, um senhorbranco. A minha mãe sinalizava para não falar absolutamente nada. Às tan-tas, esta pergunta: “Aonde é que está o espiritual David?” Apercebemo-nosque ela veio trazer o branco “colono”, incumbido de espiar-nos. Não era usualos brancos irem às aldeias, muito menos no clima de instabilidade que se ins-talara com as confusões e tensões raciais em ebulição. Vinha mostrar a estesenhor aonde o meu marido estava escondido. A minha prima, mana Maria,responde em tom desafiador: “Se vieram à procura do David, podem vistoriara casa toda! Não tenho nada para esconder!” Estávamos todos no quintal dacasa e ela convida os “visitantes” a entrar, dizendo: “Entrem, entrem! Estejam

David Júlio, quinto a contar da direita, com colegas de profissão em Cacuso.

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à vontade.” O casal permaneceu de pé. A minha mãe adianta-se dizendo, numtom de falsa lamentação: “A ele, já o levaram. Não sabemos se já foi morto ou senão”, conclui com uma clara mentira. E Lucinda diz: “Não, já nos vamos embora,já vamos sair.” A minha mãe instrui-me a acompanhar o casal até a porta. Aindaincrédula, a minha irmã espiritual perguntou-me: “Mas o espiritual David foimesmo morto?! Quando é que foi morto?” Eu respondi aparentando estar ex-tremamente triste: “Não sei quando é que o mataram... foi a semana passadaque o levaram... um senhor, o senhor Sibinda foi-nos queixar... e vieram buscar omeu marido...”. Basicamente, invertemos os factos com base na captura e mortedo Sr. Sibinda. As perguntas pouco depois cessaram e o casal foi-se embora.O meu marido estava seguro. Dom Manuel Nunes Gabriel era um senhorbranco, arcebispo de Malange. Um homem muito bom, humano e sincero. Eraprotector dos oprimidos e justo. Por consequência dos seus actos de humanida-de, tornou-se inimigo da PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado). Diri-gia-se frequentemente às instituições da PIDE, pedindo clemência para as pes-soas que estava a proteger em local clandestino. Certa vez, foi descalço até à PI-DE onde, ameaçado pela polícia, foi alcunhado de ser “pai dos terroristas”. As-sim, foi para Luanda para uma audiência com a entidade máxima da PIDE. Foirecebido e entregou a este um relatório sobre o que sucedera em Malange. Estepor certo já sabia destes acontecimentos. A influência e poder da Igreja Católicatorna-se aqui evidente, fazendo com que o pedido do bispo fosse atendido. Foimandado exonerar o representante máximo da PIDE em Malange. Dizia o povopor meio de boatos que circulavam na altura que este sujeito fora metido numbarco de volta a Portugal, morrendo no caminho, atirado ao mar e devorado pe-los peixes.Durante o período em que o meu marido esteve escondido eu recebia o salá-rio mensal a que tinha direito, embora não estivesse a trabalhar. Todos os me-ses, sem falha, até que acabou a guerra. No final da guerra, o bispo pediu-lhe quevoltasse para o trabalho. O meu marido teve medo. Mas o bispo insistiu, dizen-do: “Vai sem medo! Ninguém vai te tocar. Todos já sabem que estás vivo, o admi-nistrador [de Cacuso] e o seu séquito [referindo-se à PIDE e todos os outros co-laboradores]. Vai e leva a tua família e ficas por enquanto na Missão [Católica].Depois vais para a tua casa, perto dos teus sogros.” O bispo tinha razão. O próprio administrador veio dar as boas vindas ao meumarido aquando do seu regresso à vida social em Cacuso. Não encontrou ne-nhum dos seus amigos, nem colegas de antes. Estava rodeado de pessoas estra-nhas: professores novos vindos de outras partes e outras pessoas novas. Sen-tindo-se inseguro, com um pé atrás, o meu marido pede transferência, argu-mentando que queria prosseguir os estudos em Luanda, que a mulher estavadoente e ele próprio não se encontrava bem de saúde, preferindo uma mudan-ça. A transferência foi aceite e viemos para Luanda.Em 1964/65 já em Luanda, decidimos homenagear o bispo, que na alturatambém já se encontrava em Luanda. Convidámos Sua Eminência Dom ManuelNunes Gabriel e mais alguns colegas ex-seminaristas. Na homenagem escrita, omeu marido agradeceu tudo o que Sua Eminência tinha feito por nós e por to-dos os outros que ele ajudou. Todos os presentes enalteceram o gesto e o bispoficou muito emocionado, agradecendo também. Este relato escrito deve estarno Paço em Luanda e em Portugal, pois assim nos foi prometido pelo bispo, porser um documento histórico. O bispo foi um Pai, um amigo, um conselheiro. Nóstemos imenso apreço por ele, gostávamos muito dele. Em Luanda, estiveramsempre juntos. Agora que estão lá os dois, que Deus os tenha à direita do Pai emSua glória. Que as suas almas descansem em paz.

________________OBS.: Moisés Kamabaia referido neste relato como um dos presos captu-

rados na madrugada amarrado a um dos jipes dos Magalas, sobreviveu.Anos mais tarde, o meu marido (ainda em vida, já enfermo da doença que oviria a levar) e o mesmo, tendo vindo visitá-lo com mais um ex-seminarista,recordaram estes acontecimentos. O meu marido relatou a sua experiênciae o Moisés o tivera, na altura, aconselhado a escrever a sua história. Quis odestino que tal não viesse a materializar-se. Portanto, onde quer que se en-contre o senhor Moisés, quero desde já agradecer-lhe e dedicar-lhe tambémeste singelo relato.

UM AMANHÃ MELHORInfelizmente este não foi o único episódio trágico e sangrento na históriado nosso país. Em 1974, após o 25 de Abril em Portugal, conhecido como aRevolução dos Cravos, nós, angolanos, satisfeitos com a queda do governofascista de Salazar vimos mais palpável o sonho da nossa dipanda. Então,começaram os acontecimentos por consequência da “abertura” e “livre ex-pressão” que então passamos a ter. Houve a expulsão dos colonos pelos na-cionalistas angolanos. Os movimentos pró-independência que se encontra-vam nas matas começaram a regressar ao país. Aí começou a guerra dosmovimentos. Nesta guerra, o meu irmão, do MPLA, morreu envenenado naLunda. Com as minhas mãos cozi à máquina bandeiras do MPLA e de Mo-çambique para serem distribuídas. Foi um pedido do meu primo como ir-mão, que vivia comigo, José Paulo Nicolau, que pertencia à JMPLA. Por ve-zes cozia toda a noite sem descanso, o mesmo fazendo-me companhia. Paranosso espanto, em menos de dois anos após a independência, em Maio de1977, veio o malogrado 27 de Maio. Trouxe a dor e o luto para minha famíliamais uma vez e para milhares de outras famílias angolanas. Foi uma dor tãogrande e indescritível. Isto para dizer que estes 40 anos de independênciadevem servir para um momento de reflexão profunda por parte desta gera-ção que passou e que muito deu para este grande país. Os episódios acimadescritos embora tristes e carregados de mágoa não devem ser esquecidos.É importante dialogarmos abertamente sobre o passado e retratá-lo de for-ma precisa e fiel para que os erros não se repitam. É nosso dever como pais,educadores, professores e dirigentes deixarmos a promessa de um amanhãmelhor para a geração vindoura.

David Júlio com a esposa, mais recentemente.

Tropa colonial em patrulha.

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