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  • 7/27/2019 Letramento+KLEIMAN.unlocked

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    Angela B. Kleiman

    Preciso ensinar

    o letramento?No basta ensinar

    a ler e a escrever?

    Linguag

    emeletramento

    emfoco

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    Angela B. KleimanPh.D. em Lingstica pela Universidade de IllinoisProfessora Titular em Lingstica Aplicada no IEL/UNICAMP

    Preciso ensinar

    o letramento?No basta ensinar a ler

    e a escrever?

    Linguagem e letramento em foco

    Linguagem nas sries iniciais

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    MINISTRIO DA EDUCAO

    Presidente: LUIS INCIO LULA DA SILVA

    Ministro da Educao: TARSO GENRO

    Secretrio de Educao Bsica: FRANCISCO DAS CHAGAS FERNANDES

    Diretora do Departamento de Polticas da Educao

    Infantil e Ensino Fundamental: JEANETE BEAUCHAMP

    Coordenadora Geral de Poltica de Formao: LYDIA BECHARA

    Cefiel - Centro de Formao de Professores do Instituto de Estudos da Linguagem*

    Reitor da Unicamp: Prof. Dr. Jos Tadeu Jorge

    Coordenao do Cefiel: Angela B. Kleiman

    Coordenao da coleo: Angela B. Kleiman

    Coordenao editorial da coleo: REVER - Produo Editorial

    Projeto grfico, edio de arte e diagramao: A+ comunicao

    Reviso: REVER - Produo Editorial; Maria Odette Garcez

    Ilustraes: Fbio Sgroi

    Pesquisa iconogrfica: Vera Lucia da Silva Barrionuevo

    * O Cefiel integra a Rede Nacional de Centros de Formao Continuada

    do Ministrio da Educao.

    Impresso em setembro de 2005.

    FOTO: (pgina 21) Um erudito, de Rembrandt van Rijn, 1631. leo sobre tela, 105,5 X 92 cm.

    NOTA: Todos os esforos foram realizados para obter autorizao para reproduo da imagem da pgina 48.Caso o detentor dos direitos se sinta prejudicado, favor notificar formalmente a coordenao editorial.

    Cefiel/IEL/Unicamp, 2005-2010

    proibida a reproduo desta obra sem a prvia autorizao dos detentores dos direitos.

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    Sumrio

    Introduo/ 5

    O que no letramento/ 8

    Letramento no um mtodo / 8

    Letramento no alfabetizao / 11

    Letramento no habilidade / 16

    O que , ento, letramento?/ 19

    Como surgiu o conceito de letramento / 19

    Algumas comparaes / 22

    Prtica coletiva e colaborativa X prtica individual e competitiva / 22

    Prtica situada X abstrao / 25

    Mesmo texto, diferentes leitores e diferentes modos de ler / 27

    Mesmo sujeito, diferentes prticas / 29

    As prticas escolares/ 33

    Os aprendizes / 34

    As atividades escolares / 37

    Outras implicaes/ 41

    A relao letramentooralidade / 41 Uma relao de continuidade / 44

    Outras linguagens / 47

    Formando leitores / 51

    O trabalho do professor / 51 Os projetos de ensino / 54 O ensino da leitura / 56

    Bibliografia/ 58

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    Introduo

    Basta ensinar a ler e a escrever?

    Basta, sim!

    Quando se ensina uma criana, um jovem ou um adulto a ler e

    a escrever, esse aprendiz est conhecendo as prticas de letra-

    mento da sociedade; est em processo de letramento.Letramento um conceito criado para referir-se aos usos da

    lngua escrita no somente na escola, mas em todo lugar. Porque

    a escrita est por todos os lados, fazendo parte da paisagem co-

    tidiana:P no ponto de nibus, anunciando produtos, servios e campa-

    nhas;P no comrcio, anunciando ofertas para atrair clientes, tanto nas

    pequenas vendas, como nos grandes supermercados;

    Edua

    rdoSantaliestra

    Corte

    siadeCarolinaAssisDias

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    P no servio pblico, informando ou orientando a comunidade.

    E poderamos ir multiplicando os locais em que ela aparece: na

    igreja, no parquinho, no escritrio... Porque a escrita, de fato, faz

    parte de praticamente todas as situaes do cotidiano da maioria

    das pessoas. Isso o que acontece nas sociedades complexas,

    em que no possvel atingir objetivos ou realizar tarefas apenas

    falando. Imaginemos o trabalho que teriam os anunciantes se, pa-

    ra dar a conhecer seus produtos, tivessem de contar, pessoalmen-te, para cada um dos clientes potenciais, por que seu produto

    especial ou melhor que os demais!

    A complexidade da sociedade moderna exige conceitos tam-

    bm complexos para descrever e entender seus aspectos relevan-

    tes. E o conceito de letramento surge como uma forma de explicar

    o impacto da escrita em todas as esferas de atividades e no so-

    mente nas atividades escolares.

    EduardoSantaliestra

    EduardoSantaliestra

    A presena da escrita muda de lugar para lugar. Se voc mora numa grande cida-

    de, um trabalho que pode ser feito com seus alunos para dirigir os olhos e a ateno

    deles para as funes da escrita um passeio-leitura pelo bairro,anotando tudo o que

    estiver escrito: placas, folhetos,avisos, letreiros. Mas se voc mora em zona rural, tal-

    vez no haja muita presena da escrita ao redor, para ser anotada num passeio-leitu-ra. Nesse caso, o objetivo pode ser outro: descobrir lugares que se beneficiariam com

    placas e letreiros escritos, como: proibido jogar lixo!, Perigo! e outros.

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    O objetivo deste volume da coleo Linguagem e Letramen-

    to em Foco apontar facetas dos usos da escrita que so rele-

    vantes para o trabalho com leitura (e com produo de texto tam-

    bm, embora nosso foco seja, aqui, a leitura), mas que tm sidonegligenciadas na formao do professor. Introduziremos o con-

    ceito de letramento, que o pano de fundo das atividades pro-

    postas no curso Letramento nas Sries Iniciais no ambiente

    educativo TelEduc e no site interativo alfaletras, do CEFIEL

    Centro de Formao de Professores do Instituto de Estudos da

    Linguagem, da UNICAMP.

    O conceito de letramento j entrou no dis-curso escolar por exemplo, nos documentos

    que falam do currculo, como os Parmetros

    Curriculares Nacionais (PCNs) , porm foi en-

    trando por diversas portas, por ser um conceito

    usado por pesquisadores de diversas reas

    (educao, didtica, lingstica aplicada, hist-

    ria da leitura) ao falarem dos usos da escrita.

    Isso tem causado muita confuso. Por isso, an-

    tes de apresentar o que letramento, vamos

    discutir o que ele no .

    Essa discusso, que retoma trs elementos

    da concepo escolar, feita no para marcar

    uma ruptura com os saberes do professor mas

    para tom-los como ponto de partida da discus-

    so e, assim, complementar e transformar os

    conceitos que j lhes so familiares, na tentati-

    va de diminuir a distncia entre as duas pers-

    pectivas: a da universidade e a da escola.

    Em seguida, estudaremos o que letramento, os conceitos a

    ele relacionados e as implicaes do conceito para o trabalho es-colar com a linguagem.

    Discurso. Palavra de ml-tiplos significados. Aqui a

    usamos com trs: (a) para

    designar as produes es-

    pecficas de um grupo,

    nas locues discurso es-

    colarou discurso dos pro-

    fessores; (b) para designar

    o conjunto de textos quemanifestam um determi-

    nado posicionamento par-

    tilhado por um grupo soci-

    al, nas locues discurso

    jornalstico ou discurso ci-

    entfico; (c) em oposio

    lngua, para designar os

    usos efetivos (e os valo-

    res a associados) da ln-gua (o sistema que permi-

    te esses usos) em diferen-

    tes contextos, na locuo

    discurso letrado (diferente

    de lngua escrita).

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    O que no letramento

    Letramento no um mtodo

    Uma questo que tem atrapalha-

    do o ensino da lngua escrita a fal-

    sa crena de que o aspecto mais im-portante para a aprendizagem da

    escrita o mtodo utilizado. Com is-

    so, todo novo conceito passa a ser

    interpretado como uma novidade

    metodolgica. Basta lembrar o m-

    todo Emlia Ferreiro de alguns anos atrs. Emlia Ferreiro escreveu

    sobre as hipteses da criana em relao escri-

    ta, porque queria explicar, como pesquisadora da

    psicologia, o desenvolvimento da criana e, como

    professora, a melhor forma de ensinar a escrita.

    Mas os resultados de sua pesquisa foram trans-

    formados num mtodo de ensino.

    Coisa semelhante acontece hoje, quando se fa-

    la do mtodo de letramento. Os pesquisadores

    Como vai poder ler e escrever seainda no foi totalmente letrado!

    Emlia Ferreiro, pesqui-sadora nascida na Argenti-

    na e radicada no Mxico,

    conhecida por seus estu-

    dos sobre a construo da

    linguagem escrita na crian-

    a, exerceu importante in-

    fluncia no ensino da alfa-

    betizao no Brasil.

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    que comearam a estudar, em diversos pases, as funes e prti-

    cas da lngua escrita e seu impacto na vida social, eram cientistas

    sociais: socilogos, antroplogos e historiadores que no tinham na-

    da a dizer porque no era sua especialidade sobre os mto-dos de ensino da lngua escrita. Todavia, como esse assunto est

    relacionado a questes muito relevantes para a educao, ele che-

    ga escola e a reinterpretado em funo daquilo que relevante

    para o trabalho escolar, ou seja, o mtodo. E, nessa reinterpretao,

    acontecem associaes indevidas. Por exemplo, quando o conceito

    de letramento oposto ao de alfabetizao, ele entendido como

    equivalente aos mtodos globais; quando o termo letramento in-terpretado morfologicamente, ou seja, com base nos morfemas, ou

    formas mnimas significativas que formam a palavra (no caso, le-

    tra e mento), ele tem sido utilizado como equivalente a um mto-

    do baseado no ensino da letra primeiro (... e a slaba depois?!).

    No existe um mtodo de letramento. Nem um nem vrios.

    P O letramento envolve a imerso da criana, do jovem ou doadulto no mundo da escrita e, nesse sentido, para conseguir essa

    imerso o professor pode:

    a) adotar prticas dirias de leitura de livros, jornais e revis-

    tas em sala de aula;

    b) arranjar paredes, cho e moblia da sala de tal modo que

    textos, ilustraes, alfabeto, calendrios, livros, jornais e

    revistas penetrassem todos os sentidos do aluno-leitor emformao;

    c) fazer um passeio-leitura com os alunos pela escola ou

    pelo bairro.

    Para reflexo

    Voc consegue pensar em outras atividades e situaes que dem a seus

    alunos oportunidade de imerso no mundo da escrita?

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    P Como o letramento envolve participar das prticas sociais em

    que se usa a escrita, na escola ele pode envolver as atividades de

    receber e enviar cartas, copiar informaes pertinentes para uma

    tarefa, comentar notcias, recomendar e criticar livros.

    P O letramento tambm significa compreender o sentido, numa

    determinada situao, de um texto ou qualquer outro produto cul-

    tural escrito; por isso, uma prtica de letramento escolar poderiaimplicar um conjunto de atividades visando ao desenvolvimento de

    estratgias ativas de compreenso da escrita, ampliao do vo-

    cabulrio e das informaes para aumentar o conhecimento do

    aluno e fluncia na sua leitura. (Estudaremos essas estratgias

    no curso Letramento nas Sries Iniciais e nos exerccios dosite

    interativo alfaletras.)

    P Como o letramento envolve ainda saber usar o cdigo da es-

    crita, quaisquer dos enfoques e recursos utilizados para ensinar a

    decodificar, analisar e reconhecer a palavra (que corresponderiam

    aos mtodos tradicionais de alfabetizao) tambm podem ser

    considerados prticas de letramento escolar.

    Mas o letramento no nada disso, ou melhor, tudo isso, e

    muito mais.

    importante lembrar que, qualquer que seja o mtodo de ensi-

    no da lngua escrita, ele eficiente na medida em que se constitui

    na ferramenta adequada que permite ao aprendiz adquirir o conhe-

    cimento necessrio para agir em uma situao especfica. Por exem-

    plo, uma criana que j usa a Internet para enviar e-mails no vai se

    beneficiar muito com atividades em que o professor ou um colegadite coisas para ela escrever, pois j est acostumada a escrever o

    Para reflexo

    Quais atividades o seu grupo j faz?

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    que pensa e deseja. Para esse aluno seriam mais interessantes as

    atividades em que ele prprio tivesse que criar seu texto.

    Considerando essa necessidade de flexibilidade em relao ao

    mtodo de ensino da escrita, tanto da leitura como da produotextual, a Associao Internacional de Leitura, em 1999, fez a se-

    guinte declarao de princpios, publicada num documento sobre

    o mtodo para se ensinar a leitura:

    No existe um mtodo nico, ou combinao nica de mtodos, que

    possa ensinar a ler a todas as crianas com sucesso. Por isso, os pro-

    fessores devem desenvolver um profundo conhecimento de mltiplos

    mtodos para ensinar a ler e um profundo conhecimento das crianas

    sob seu cuidado, para que possam criar o equilbrio apropriado dos

    mtodos requeridos pelas crianas a quem ensinam .

    Fonte: www.reading.com

    A questo do mtodo no da conta do especialista, nem do

    governo, segundo o mesmo documento. do profissional que me-

    lhor conhece o aluno: o professor. Da a importncia de abandonar

    a procura constante do mtodo perfeito e a incessante transforma-

    o de toda novidade cientfica em mtodo.

    O letramento no um mtodo, como acabamos de mostrar, e

    se o fosse, isso tambm no seria to relevante para o bom ensi-

    no, como o professor parece acreditar.

    Letramento no alfabetizao

    O letramento no alfabetizao, mas a inclui! Em outras pala-vras, letramento e alfabetizao esto associados. A existncia e

    A Associao Internacional de Leitura, com membros em 99 pases, tem por obje-

    tivo "promover altos nveis de letramento para todos" atravs das seguintes aes:P melhoria do ensino de leitura;

    P divulgao de pesquisas e informaes sobre a leitura;P promoo do hbito da leitura ao longo da vida.

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    manuteno dos dois conceitos, quando antes

    um era suficiente, importante, como veremos.

    Se consideramos que as instituies sociais

    usam a lngua escrita de forma diferente, emprticas diferentes, diremos que a alfabetizao

    uma das prticas de letramento que faz parte

    do conjunto de prticas sociais de uso da escri-

    ta da instituio escolar.

    Alguns pesquisadores se opem ao uso do ter-

    mo letramento, dizendo que os conceitos por ele

    designados estariam implcitos no termo alfabeti-zao. Isso uma simplificao. Como mostraremos posteriormen-

    te, o termo letramentoj entrou em uso carregado de novas associa-

    es e significados, como, por exemplo, uma nova relao com a ora-

    lidade e com linguagens no-verbais, no includos nem previstos no

    termo alfabetizao. interessante notar que pesquisadores de fala

    inglesa dentro da tradio freiriana, como o sociolingista David Bar-

    ton ou o antroplogo Brian V. Street, tambm sentiram falta de um

    termo para designar um novo conceito: nos seus trabalhos, eles

    usam hoje literacies (letramentos), no plural, para o que antes o

    singular literacy (letramento/alfa-

    betizao) era suficiente.

    H vrias maneiras de ver e en-

    tender a relao entre letramento e

    alfabetizao, em parte porque o

    conceito de alfabetizao comple-

    xo e tem muitos significados.

    A alfabetizao uma prtica.

    E, assim como toda prtica que

    especfica a uma instituio, envol-

    ve diversos saberes (por exemplo,quem ensina conhece o sistema al-

    Prtica (de letramen-to). Conjunto de ativida-des envolvendo a lngua

    escrita para alcanar umdeterminado objetivo numa

    determinada situao, as-

    sociadas aos saberes, s

    tecnologias e s compe-

    tncias necessrias para a

    sua realizao. Exemplos

    de prticas de letramento:

    assistir a aulas, enviar car-

    tas, escrever dirios.

    Ento, agora no mais paraalfabetizar, para "ensinar"

    o letramento!

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    O conceito de alfabetizao tambm denota um conjunto de

    saberes sobre o cdigo escrito da sua lngua, que mobilizado

    pelo indivduo para participar das prticas letradas em outras es-

    feras de atividade, no necessariamente escolares. Da se dizer

    que um indivduo analfabeto, semi-analfabeto, semi-alfabe-

    tizado para referir-se aos modos, graus ou nveis desses sabe-

    res que ele apresenta.

    O conceito de alfabetizao refere-se tambm ao processo de

    aquisio das primeiras letras e, como tal, envolve seqnciasde operaes cognitivas, estratgias, modos de fazer. Quando di-

    fabtico e suas regras de uso), diversos tipos de participantes

    (alunos e professor) e, tambm, os elementos materiais que per-

    mitem concretizar essa prtica em situaes de aula, como qua-

    dro-de-giz, ilustraes, livros didticos e quaisquer outros recursospedaggicos.

    A prtica de alfabetizao se concretiza em eventos que se si-

    tuam dentro de uma sala de aula, liderados por um especialista (o

    professor) que se encarrega de ensinar sistematicamente as re-

    gras de funcionamento e uso do cdigo alfabtico aos iniciantes

    no assunto (os alunos). Ambos professor e alunos tm rela-

    es sociais predeterminadas: um anima, organiza, avalia; os ou-tros respondem, realizam as atividades propostas.

    Para reflexo

    Uma prtica consiste em atividades com um objetivo em determinada situa-

    o. Como a realizao da atividade pode precisar de tecnologias (lpis e papel,

    as diferentes mdias), habilidades especiais e saberes, estes tambm fazem par-

    te da prtica. Algumas atividades (e os saberes que as sustentam) que tradicio-

    nalmente fazem parte da prtica de alfabetizao das crianas na escola so:leitura em voz alta (que envolve a capacidade de decodificao); ditado (que en-

    volve conhecimento ortogrfico); rimar palavras (que envolve a conscincia fono-

    lgica); rodinha de leitura (que envolve a capacidade de organizao textual). Vo-

    c poderia mencionar outras prticas de leitura escolar?

    . 13 .

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    zemos que uma criana est sendo al-

    fabetizada, estamos nos referindo

    ao processo que envolve o engaja-

    mento fsico-motor, mental e emocionalda criana num conjunto de atividades de to-

    do tipo, que tm por objetivo a aprendizagem

    do sistema da lngua escrita.

    A alfabetizao (em qualquer de seus sen-

    tidos) inseparvel do letramento. Ela neces-

    sria para que algum seja considerado plena-

    mente letrado, mas no o suficiente.A prtica de alfabetizao, que tem por objeti-

    vo o domnio do sistema alfabtico e ortogrfico,

    precisa do ensino sistemtico, o que a torna di-

    ferente de outras prticas de letramento, nas

    quais possvel aprender apenas olhando os de-

    mais fazerem. Um adulto que no sabe ler ou es-

    crever no ser considerado alfabetizado se apenas ficar acompa-

    nhando o trabalho de alfabetizao do filho, pela janela da sala de

    aula, mesmo que saiba qual a funo das letras.

    Em outras prticas, porm, o conhecimento da funo do ob-

    jeto cultural envolvido pode ser suficiente para o indivduo ser

    considerado letrado. Em outras palavras, uma pessoa no-alfabe-

    tizada que conhece a funo do bilhete, da carta, das etiquetas e

    dos rtulos de produtos participa, mesmo que de forma marginal,

    nas prticas letradas de sua comunidade e, por isso, conside-

    rada letrada. At o sculo passado, porm, havia grupos que no

    conheciam essas funes, que no sabiam que a escrita serve,

    entre outras coisas, para a comunicao a distncia, para regis-

    trar fatos, para tornar permanente um momento efmero, e assim

    sucessivamente.O conto A carta e o ndio, de Francisco Viana, que resumimos

    Por isso que o assunto tocomplicado: PRTICA, SABERES,

    PROCESSO. Trs em um!

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    a seguir, interessante para ilustrar estas conside-

    raes. O ndio que leva a mensagem, como vere-

    mos, no conhece a funo da escrita, e a sua

    condio de membro de um povo grafo no oseu analfabetismo que lhe causa problemas. A

    histria conta que um fazendeiro pediu a um ndio

    que levasse uma cesta com dez frutas a um amigo, morador de uma

    fazenda vizinha, junto com uma carta em que falava a respeito desse

    presente. No caminho, o ndio ficou com sede e com fome e decidiu

    comer uma das frutas. Ao receber o presente, o amigo do fazendeiro

    acusou o ndio de ter comido uma parte de seu presente. O ndio, en-to, perguntou como ele sabia que faltava uma fruta, se no havia

    ningum por perto quando ele a comera. O fazendeiro respondeu:

    Ora! Pela carta. Tempos depois, o fazendeiro novamente pediu ao

    ndio para levar frutas ao amigo e mandou uma cartinha acompa-

    nhando a cesta. De novo, sem nada para beber ou comer no cami-

    nho, e j com sede e fome, o ndio pegou a carta, sentou-se sobre

    ela e comeu duas das frutas, convencido de que a carta, dessa

    vez, no iria contar nada. Mas, claro, apenas chegou casa do

    fazendeiro, foi acusado de ter comido duas de suas frutas...

    Ao contrrio do que nos conta a histria, um analfabeto na so-

    ciedade letrada conhece muito bem a funo

    desse objeto cultural que a carta. O filme Cen-

    tral do Brasilnos mostra uma prtica letrada que

    s existe porque h, no mundo de hoje, pessoas

    que no so alfabetizadas, mas sabem que a es-

    crita permite a comunicao a distncia e que-

    rem participar dessa prtica, apesar de no co-

    nhecerem o cdigo que lhes permitiria ser independentes e auto-

    suficientes para se expressarem por meio da lngua escrita.

    A prtica retratada no filme consistia na elaborao coletiva decartas realizada por um escriba (Dora, a personagem central) e

    grafo. Termo usado parase referir a uma cultura ou

    uma lngua que no tem

    um sistema de lngua escri-ta para seus registros.

    Central do Brasil(1998),

    filme dirigido por Walter Sal-

    les, com Fernanda Monte-negro,Marlia Pra, Vinicius

    de Oliveira, Matheus Nat-

    chergaele, ganhou 55 pr-

    mios internacionais.

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    seus clientes. Segundo Judith Kalman, pesquisadora mexicana

    que trabalha com a educao de jovens e adultos (EJA), em seu

    pas existe um sistema semelhante: no centro da Cidade do Mxi-

    co, diversos escribas oferecem servios ainda mais diversificados de cartas de amor at a elaborao de ofcios, atas e deveres

    escolares (relatado em sua obra Escribir en la plaza, Mxico: Fon-

    do de Cultura Econmica, 2003).

    A alfabetizao, portanto, tem caractersticas especficas, diferen-

    tes das do letramento, mas parte integrante dele. Como prtica es-

    colar, ela essencial: todos crianas, jovens ou adultos preci-

    sam ser alfabetizados para poder participar, de forma autnoma, dasmuitas prticas de letramento de diferentes instituies.

    Letramento no habilidade

    O letramento no uma ha-

    bilidade, embora envolva um

    conjunto de habilidades (roti-

    nas de como fazer) e de com-

    petncias (capacidades concre-

    tas para fazer algo). Por isso,

    ensinar o letramento uma

    expresso no mnimo estranha,

    pois implica uma ao que nin-gum, nem mesmo um espe-

    cialista, poderia fazer.

    Ora, se pensarmos em tudo que est envolvido numa situao

    em que se utiliza a lngua escrita, em um evento de letramento co-

    mo a leitura cotidiana de jornal, por exemplo, veremos que as ca-

    pacidades envolvidas vo muito alm daquilo que, de fato, pode

    ser ensinado na escola. Vejamos.Se o jornal chega casa da leitora, ela provavelmente assi-

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    . 17 .

    nante, o que implica ter feito pre-

    viamente um contrato comercial

    com o departamento de assinatu-

    ras do jornal, optando por pag-lonum banco ou por meio de um car-

    to de crdito. Desde o momento

    em que a leitora decide fazer uma

    assinatura at o momento em que

    abre a porta de sua casa para pe-

    gar o jornal, ela utilizou seus sabe-

    res sobre relacionamentos comerciais, bancrios, jurdicos etc.O leitor de um jornal comea a utilizar seus conhecimentos so-

    bre a escrita, juntamente com seus conhecimentos sobre a im-

    prensa, quando olha a primeira pgina do jornal procura de itens

    que lhe interessem.

    Esse tipo de leitor sabe que est lendo manchetes e que o tex-

    to prximo s manchetes traz as chamadas das notcias, das infor-

    maes mais importantes. Sabe tambm que as fotos e suas legen-

    das complementam as informaes verbais dessas manchetes e

    chamadas. Sabe, ainda, que uma notcia importante do dia anterior

    provavelmente foi retomada nessa edio, seja como notcia com

    mais detalhes e informaes, seja ainda como notcia ou como um

    fato em outros gneros isto , se foi notcia e/ou charge ontem,

    hoje poder ser assunto de editorial, de reportagem ou de crnica.

    Quanto aos saberes sobre a lngua escrita desse leitor assi-

    nante de jornal, tambm provvel que suas capacidades de lei-

    tura sejam avanadas. Entre as capacidades relacionadas com a

    leitura para extrao da informao, ele provavelmente teria a ha-

    bilidade de fazer uma leitura rpida, mobilizando estratgias de lei-

    tura global eficientes para radiografar ou escanear o texto,

    com reconhecimento instantneo de muitas palavras e possuiriatambm um amplo vocabulrio no-especializado.

    EduardoSantaliestra

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    . 18 .

    Lembremos que tudo isso faz parte da prtica letrada de ler jor-

    nal.

    Resumindo: o letramento complexo, envolvendo muito mais

    do que uma habilidade (ou conjunto de habilidades) ou uma com-

    petncia do sujeito que l. Envolve mltiplas capacidades e conhe-

    cimentos para mobilizar essas capacidades, muitos dos quais no

    tm necessariamente relao com a leitura.Na escola, possvel:

    P ensinar as habilidades e competncias necessrias para par-

    ticipar de eventos de letramento relevantes para a insero

    e participao social;

    P ensinar como se age nos eventos de instituies cujas prti-

    cas de letramento vale a pena conhecer;P criar e recriar situaes que permitam aos alunos participar

    efetivamente de prticas letradas.

    Pode-se at chamar tudo isso de ensino do letramento, des-

    de que se concorde, antes, que tudo o que foi aqui mencionado

    e muito mais parte integrante desse ensino.

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    . 19 .

    O que , ento, letramento?

    Aps tantos no

    voc deve estar

    se fazendo esta per-

    gunta: O que , ento, letramento?.J comentamos que o letramento est relacio-

    nado com os usos da escrita em sociedade e com

    o impacto da lngua escrita na vida moderna. Para

    complementar essa definio sucinta e, assim, ir

    enriquecendo o conceito , discutiremos vrios aspectos do letra-

    mento, desde o surgimento do conceito at suas contribuies para

    o ensino da lngua escrita, em geral, e da leitura, em particular.Comearemos por uma breve histria do termo.

    Como surgiu o conceito de letramento

    Paulo Freire utilizou o termo alfabetizao com um sentido prxi-

    mo ao que hoje tem o termo letramento, para designar uma prtica

    sociocultural de uso da lngua escrita que vai se transformando ao

    J vimos o que no .Agora est na hora de

    saber o que .

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    . 20 .

    longo do tempo, segundo as pocas e as pessoas

    que a usam e que pode vir a ser libertadora, em-

    bora, poca, fosse mecanicista. A escrita pas-

    sou do domnio de uns poucos para um saber uni-versal, considerado direito de todos e com isso

    a relao das pessoas com a lngua escrita mudou radicalmente.

    Assim como os usos da lngua escrita foram mudando na fam-

    lia, no trabalho, nas relaes comerciais, na cincia, ao longo dahistria, tambm mudou, na escola, a concepo do que seria ser

    alfabetizado e do que necessrio saber para poder usar a escri-

    ta ao longo da vida.

    A tecnologia que d suporte aos usos da ln-

    gua escrita tem mudado enormemente, e essa

    mudana tambm se faz sentir na escola: onde

    antes se esperava que a criana usasse lpis epapel para escrever de forma legvel, hoje se es-

    EduardoSantaliestra

    CynthiaBrito/Olha

    rImagem

    EduardoSantaliestra

    EduardoSantalies

    tra

    Sobre este assunto

    veja, nesta coleo,

    o volume Letramento e

    tecnologia, de Denise B.

    Braga e Ivan L. M. Ricarte.

    Paulo Freire (1921-1997),brasileiro por muitos anos

    exilado no exterior, consi-

    derado o maior pensadorem Educao do sculo XX.

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    . 21 .

    pera que ela escreva coisas com sentido no caderno e no compu-

    tador, e tambm que use a Internet. H cem anos, para ser alfabe-

    tizado era suficiente ter domnio do cdigo alfabtico, mas hoje se

    espera que, alm de dominar esse cdigo, o aluno consiga se co-municar, por meio da escrita, numa variada gama de situaes.

    O letramento abrange o processo de desenvolvimento e o uso

    dos sistemas da escrita nas sociedades, ou seja, o desenvolvi-

    mento histrico da escrita refletindo outras mudanas sociais e

    tecnolgicas, como a alfabetizao universal, a democratizao do

    ensino, o acesso a fontes aparentemente ilimitadas de papel, o

    surgimento da Internet.

    Na metade da dcada de 1980, no Brasil, vrios pesquisa-

    dores que trabalhavam com as prticas de uso da lngua escri-

    ta em diversas esferas de atividade sentiram falta de um con-

    ceito que se referisse a esses aspectos scio-histricos dos

    usos da escrita, sem as conotaes sobre ensino e escola as-sociadas palavra alfabetizao.

    Emergiu, ento, na literatura especializada, o termo letramen-

    to, para se referir a um conjunto de prticas de uso da escrita que

    vinham modificando profundamente a sociedade, mais amplo do

    que as prticas escolares de uso da escrita, incluindo-as, porm.

    importante salientar que, ao se fazer cincia crucial nos referir-

    mos aos conceitos cientficos inequivocamente. O novo assuntoou objeto de pesquisa as prticas sociais de uso da escrita

    St.Petersburg,

    Hermitage

    FernandoFavoretto

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    . 22 .

    (o letramento) refletia as transformaes nas prticas letradas

    tanto dentro como fora da escola, lembrando que a esto inclu-

    das as tecnologias da escrita.

    Algumas comparaes

    A criao de um conceito novo diferente do de alfabetizao

    para falar de prticas de uso da escrita implica a existncia de

    diferenas entre as prticas referidas por um e pelo outro. Veja-

    mos, a seguir, as diferenas mais relevantes entre as prticas le-

    tradas dentro e fora da escola.

    Prtica coletiva e colaborativa Xprtica individual e competitiva

    As prticas de letramento fora da escola so essencialmen-te colaborativas, em contraste com o carter individual do pro-

    cesso de aquisio da lngua escrita em ambiente escolar, pr-

    prio da alfabetizao.

    As ocasies em que a fala se organiza ao redor de textos escri-

    tos e livros, envolvendo a compreenso dos textos, so eventos de

    letramento. Nos eventos de letramento da maioria das instituies,

    as pessoas participam coletivamente, interagindo, enquanto noseventos escolares mais tradicionais o que ainda importa a partici-

    FernandoFavore

    tto

    FernandoFavore

    tto

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    . 23 .

    pao individual do aluno. Isso, afortunadamente para o aluno, est

    mudando. Quanto mais a escola se aproxima das prticas sociais em

    outras instituies, mais o aluno poder trazer conhecimentos rele-

    vantes das prticas que j conhece, e mais fceis sero as adequa-es, adaptaes e transferncias que ele vir a fazer para outras si-

    tuaes da vida real.

    Um evento de letramento inclui atividades que

    tm as caractersticas de outras atividades da vi-

    da social: envolve mais de um participante e os

    envolvidos tm diferentes saberes, que so mobi-

    lizados na medida adequada, no momento neces-srio, em prol de interesses, intenes e objetivos

    individuais e de metas comuns. Da ser um evento

    essencialmente colaborativo.

    Numa atividade (de ir e vir) de um grupo tentan-

    do chegar a um endereo desconhecido qualquer,

    o participante que sabe dirigir conduz o carro, um

    outro pode ir consultando um mapa e um terceiro pode ajudar lendo

    as placas das ruas at todos eles chegarem ao destino.

    FernandoFavoretto

    Evento de letramento.Ocasio em que a fala se

    organiza ao redor de textos

    escritos e livros, envolven-

    do a sua compreenso. Se-gue as regras de usos da

    escrita da instituio em

    que acontece. Est relacio-

    nado ao conceito de evento

    de fala, que governado

    por regras e obedece s

    restries impostas pela

    instituio.

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    . 24 .

    Mesmo que apenas um dos trs saiba dirigir, eles podero che-

    gar ao destino desejado, com base em aes realizadas segundo as

    habilidades e competncias de cada um.

    O mesmo acontece com a escrita, quando usada fora da esco-la. Por exemplo, numa situao em que uma mulher que sabe ler

    pede uma receita a outra que no sabe, a primeira, que quer

    aprender a receita, escreve o que a segunda lhe dita, usando a es-

    trutura tradicional das receitas escritas: primeiro, a lista de ingre-

    dientes e depois o modo de fazer sempre voltando atrs para

    ver se no esqueceram alguma coisa ou para responder s pergun-

    tas daquela que anota.Citando outro exemplo: num encontro entre um recepcionista e

    um paciente, seja diretamente no consultrio mdico ou ao telefo-

    ne, em que preciso que o paciente diga seu nome para o recep-

    cionista anot-lo na agenda do mdico, o primeiro soletra, quando

    o nome pouco comum ou de origem estrangeira, ou considerado

    difcil de escrever, e o recepcionista escreve as letras medida

    que so ditas.

    J a prtica tradicional de uso da escrita dentro da escola en-

    volve a demonstrao da capacidade individual de realizar todos

    os aspectos da tarefa, sejam eles soletrar, ler um manual de infor-

    maes ou escrever o ditado. Mas, como dizamos anteriormente,

    as prticas de letramento de outras instituies

    j esto influenciando a prtica escolar. Mesmo

    que a escola esteja interessada basicamente na

    competncia individual do aluno, ela no precisa

    estar organizada competitivamente, com cada cri-

    ana tendo de mostrar que pode fazer a ativida-

    de sozinha, sem a ajuda do outro.

    O PROFA Programa de Formao de

    Professores Alfabetizadores utiliza o trabalhoem duplas para o ensino da produo textual: o

    PROFA. Programa de For-

    mao de ProfessoresAlfabetizadores, oferecido

    em vrias Secretarias de

    Ensino. Curso de forma-

    o continuada que enfati-

    za saberes didticos so-

    bre alfabetizao por meio

    da ampliao dos conheci-

    mentos do professor e da

    reflexo sobre a prticaprofissional.

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    . 25 .

    aprendiz que sabe mais sobre como escrever

    as palavras segundo as regras grafofonmicas

    da lngua age como escriba; ao mesmo tempo,

    os dois vo organizando um texto sobre um as-sunto que ambos conhecem, em geral uma re-

    produo de um conto de fadas j lido, ilustra-

    do, comentado e por que no? com tre-

    chos at memorizados (considerado o princpio

    de que o contexto facilita a memorizao da for-

    ma de escrever a palavra).

    Na leitura, a prtica colaborativa quando o professor se en-carrega de fazer perguntas que orientaro o leitor iniciante, ou

    quando o professor l uma histria para todos. Nesses casos,

    aquele que j letrado (e necessariamente conhece o cdigo)

    ajuda aqueles que no conhecem ainda nem o cdigo nem a fun-

    o das ilustraes no livro, mas que tm familiaridade com a

    prtica de contar histrias e cooperam escutando em silncio.

    Prtica situada Xabstrao

    Uma caracterstica das prticas de letramen-

    to fora da escola que elas variam segundo a si-

    tuao em que se realizam as atividades de uso

    da lngua escrita. H uma tendncia humana pa-

    ra contextualizar a ao, e as atividades em que

    se usa a escrita no fogem dessa tendncia. Por

    isso, dizemos que as prticas de letramento soprticas situadas, o que significa que os objeti-

    Para reflexo

    Voc poderia listar outras prticas colaborativas usadas por voc ou por seus co-

    legas na sua escola?

    Grafofonmico. Refere-se relao entre os

    grafemas (unidades do

    alfabeto, como letras, til,sinais de pontuao) e os

    sons da lngua (fonemas

    ou sons significativos),

    que os caracteres do alfa-

    beto representam.

    Prtica situada. Refere-seao entrosamento ou so-

    breposio parcial existente

    entre a prtica social e a si-

    tuao; podemos atribuir

    isso a uma capacidade bsi-

    ca do ser humano de con-

    textualizar os saberes e aexperincia.

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    . 26 .

    vos, os modos de realizar as atividades, os recursos mobilizados

    pelos participantes, os materiais utilizados, sero diferentes se-

    gundo as caractersticas da situao (por exemplo, uma missa,

    uma festa), da atividade desenvolvida (ler o missal, mandar umconvite), da instituio (religiosa, familiar). Vejamos um exemplo

    envolvendo duas situaes de festa e as diferentes atividades

    para um mesmo tipo de evento de letramento: fazer os convites.

    devido a esse carter situado das prticas de letramentoque os usos da lngua escrita fora da sala de aula so extrema-

    mente heterogneos, variando segundo os participantes (por

    exemplo, enviar convites e cartes atividade geralmente feita

    pela mulher da famlia), a relao entre eles, seus objetivos e in-

    tenes, a instituio em que interagem e com as quais intera-

    gem tudo isso determinando a mobilizao de diferentes re-

    cursos e saberes sobre a escrita, como mostram os exemplos

    Instituio: famlia

    Situao: festa de aniversriode 7 anos do filho

    Atividades: enviar convites preparar cardpio

    Evento de letramento

    Participantes: me e filhos Material: convites, envelopes, caneta,

    agenda de endereos Aes: escolher, comprar e preencher

    convites, entregar convites professorado filho, consultar agenda, telefonaraos amigos etc.

    Instituio: famlia/igreja

    Situao: festa de aniversrio

    ou missa de bodas de prata

    Atividades: enviar convites preparar cardpio

    Evento de letramento Participantes: me e filho(s),

    a mulher do casal que comemora

    as bodas Material: cartes de convite, envelopes,

    caneta, selos, agenda de endereos Aes: encomendar os convites

    (decidir sobre o texto), consultaragenda, escrever nos envelopes etc.

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    . 27 .

    anteriores, em relao a dois tipos de comemoraes de even-

    tos familiares.

    Por sua vez, as prticas escolares que utilizam gneros que se

    originaram em instituies de prestgio na sociedade, como a lite-rria e a cientfica, so desvinculadas da situao de origem, ou

    seja, caracterstica da prtica escolar ser indiferente situao.

    O que se diz, em tom de brincadeira, a esse respeito, que mui-

    to provvel que s 16 horas de uma tera-feira do ms de abril,

    uma criana no semi-rido nordestino e uma outra numa favela da

    cidade do Rio de Janeiro estejam, ambas, copiando a palavra ga-

    to do quadro-de-giz na sala de aula de 1 srie de uma escola daregio onde moram. Sem vnculo com a realidade social fora da es-

    cola, ou seja, abstradas da situao, as prticas so as mesmas.

    Pouca diferena faz, nessa perspectiva, se o aluno est estu-

    dando hoje uma poca de tecnologias avanadas como o com-

    putador ou se est estudando pelo mtodo escolstico, desen-

    volvido originalmente na Idade Mdia, pouco depois de a impren-

    sa ter sido inventada. Quando, na sala de aula, deparamos com

    a prtica de leitura para encontrar uma mensagem edificante

    (qualquer que seja o texto), estamos na presena de uma prtica

    na tradio escolstica, que se perpetua h sculos, apesar das

    mudanas histricas.

    Mesmo texto, diferentes leitores e diferentes modos de ler

    Para entender melhor o fenmeno da prtica situada, imagine-

    Para reflexo

    Descreva as caractersticas de um evento de letramento comum na sua co-

    munidade. Agora imagine as diferenas entre esse evento na sua localidade e

    numa outra totalmente diferente da sua (numa comunidade indgena, num gru-

    po de jovens agentes comunitrios na periferia paulistana, num grupo de mes

    no semi-rido etc.).

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    . 28 .

    mos uma situao em que um mesmo texto lido de diferentes

    formas, segundo aspectos da situao: os participantes, seus ob-

    jetivos, seus modos de ler. O evento imaginado a leitura do jor-

    nal dirio por um casal formado por uma dentista e um professorde lngua portuguesa.

    A mulher provavelmente olhar rapidamente a primeira pgi-

    na e escolher o que ler em funo do seu interesse pela not-

    cia em si. J o professor de lngua, que pertence a um grupo pro-

    fissional cujo trabalho no se encerra quando a aula acaba e

    que, por isso, est constantemente procura de material didti-

    co, provavelmente ler tambm em funo do interesse do temapara seus alunos.

    Os modos de ler, em conseqncia disso, sero tambm dife-

    rentes. Quando se l com o objetivo didtico de selecionar tex-

    tos e quando se l com a finalidade nica de ficar informado, ain-

    da que para poder participar da grande fofoca

    global que o jornal oferece ao leitor, escolhem-

    se textos diferentes e utilizam-se diferentes es-

    tratgias de leitura.

    Disso podemos tirar uma concluso impor-

    tante para o ensino: quando mudam os objetivos,

    mudam tambm as estratgias de leitura.

    Para reflexoVoc acredita que haveria diferena nas estratgias de leitura de uma histria

    qualquer, se seus alunos tivessem alguns objetivos de leitura como os listados a

    seguir?

    Procurar as palavras que comeam com ch.Descobrir por que o garoto protagonista da histria ficou brincando na chuva.Se voc respondeusim, quais seriam essas diferenas? Se voc respondeu no,

    justifique sua resposta.

    Estratgias de leitura.

    Conjunto de procedimen-tos de ordem cognitiva, is-

    to , que envolvem a per-

    cepo, a ateno, a me-

    mria, o raciocnio, para

    alcanar algum objetivo de

    leitura.

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    . 29 .

    Mesmo sujeito, diferentes prticas

    Assim como um mesmo texto pode ser lido de modos diferentes

    segundo os elementos da situao que contextualizam a leitura, um

    mesmo leitor mobiliza diferentes estratgias, saberes e recursos de

    leitura (e de produo textual) segundo as caractersticas da prtica

    situada. Imaginemos o dia de um mdico, em diversas atividades, e

    as diferentes formas em que ele utiliza a lngua escrita.

    No seu consultrio, durante uma consulta, o mdico l a ficha do

    paciente e registra nela os sintomas que lhe so relatados, com o ob-

    jetivo de fazer um diagnstico e elaborar proposta(s) de tratamento.O mdico transcreve, das respostas do paciente, o que lhe interessa,

    l o que j consta da ficha e utiliza essa leitura para formular pergun-

    tas; faz anotaes do que ele prescreve e dos exames que solicita.

    Se o caso no for muito comum, poder consultar alguns textos da

    rea mdica, para checar seus conhecimentos ou para adquirir co-

    nhecimentos novos e, em qualquer dos casos ler esses textos fa-

    zendo anotaes ou destacando os trechos mais importantes.Se logo depois, em vez de uma entrevista que pertence esfe-

    ra das atividades mdicas, ele fosse fazer uma entrevista na esfe-

    ra das atividades de relaes de trabalho para contratar um re-

    cepcionista para o seu consultrio, por exemplo ele poderia

    consultar os currculos dos candidatos para selecion-los e para

    formular perguntas com o objetivo de conhecer melhor o aspiran-

    te ao emprego. Depois, durante a entrevista, tomaria nota das res-postas que lhe parecessem mais pertinentes.

    Se, no final do dia, esse mdico assistisse a uma conferncia, to-

    maria nota das informaes que mais lhe interessaram talvez as

    referncias ali mencionadas para se atualizar. Se pudesse fazer

    uma pergunta ao palestrante, o faria de acordo com as exigncias

    das prticas ligadas ao estudo e universidade, e a pergunta seria

    sobre o assunto da palestra, determinado pelo palestrante.

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    . 30 .

    Os textos produzidos pelo mdico desse nosso exemplo, os di-

    versos modos de ler (a ficha do paciente, o currculo dos candida-

    tos, as citaes apresentadas na conferncia) e os diferentes mo-

    dos de fazer perguntas, variam em funo das situaes especfi-cas, que ocorrem segundo os parmetros de trs esferas de ativi-

    dades diferentes (a mdica, a trabalhista, a acadmica), em tem-

    pos e espaos concretos.

    Outro exemplo claro dessa relao entre a escrita e a situao

    o dos sindicalistas que redigem cartas de reivindicao em no-

    me do grupo de trabalhadores que representam, mas precisam,

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    . 31 .

    para isso, de secretrias (como escribas), porque no so alfabe-

    tizados. No exemplo da pgina ao lado, reproduzimos uma carta

    tal como foi ditada por um lder sindical analfabeto sua secret-

    ria alfabetizada, que teve o trabalho de transcrever o texto extre-mamente coerente e especializado que o lder lhe falou.

    As caractersticas do gnero, a estrutura complexa da carta e

    o vocabulrio especializado no constituem problema de produo

    escrita para esse lder, mas o alfabeto certamente sim. Um outro

    exemplo, do mesmo tipo, o caso dos poetas de cordel, que so

    capazes de produzir literatura criativa e original, mas no tm a

    mesma competncia para escrever uma carta pessoal que fuja dochavo e do lugar-comum. Ou seja, quando muda a situao, mu-

    dam tambm as nossas capacidades de ao.

    INSETOS

    O que sei ... O que quero saber

    Transmitem doenas.

    Podem voar.

    Tm seis patas.

    Para reflexo

    Algumas atividades muito comuns na escola e que em geral ocorrem de manei-

    ra descontextualizada, isto , no variam segundo o grupo ou a situao, so a c-

    pia, exerccios de completar frases, exerccios para buscar e sublinhar palavras comdgrafos, por exemplo, ditados, e atividades de perguntas e respostas. Pense em

    cada uma delas e imagine como elas podem vir a ser contextualizadas.

    Vejamos um exemplo de um ditado diferente: se o assunto for insetos,

    por exemplo, os alunos dizem professora o que sabem sobre o assunto e

    ela ou um aluno voluntrio vai anotando no quadro-de-giz. O objetivo desse di-

    tado dos alunos e da anotao da professora est ligado a uma situao: ter

    no quadro um texto comum, visvel a todos, que sirva de base para uma dis-

    cusso posterior da turma.

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    . 32 .

    Essa concluso sobre nossas capacidades de ao, que mu-

    dam de acordo com a situao, tem uma conseqncia importan-

    te na reflexo sobre o trabalho escolar. Se tudo o que o aluno cos-

    tuma escrever o gnero redao escolar se choveu, redaoA chuva; se poca de volta s aulas, redao Minhas frias;

    se segunda-feira, redao Meu fim de semana , como pode-

    mos esperar que ele seja capaz de redigir uma carta a uma edito-

    ra solicitando ajuda (como catlogos, informaes, livros) para or-

    ganizar uma feira de livros na escola?

    Resumindo, podemos dizer que, em funo da tendncia con-

    textualizao das atividades, estratgias, saberes, segundo a situ-ao especfica, num tempo e espao concretos, os modos de ler

    e de escrever variam segundo diferentes instituies. Isso signifi-

    ca que, mesmo dominando a escrita, podemos deparar com situa-

    es em que somos incapazes de produzir um texto. Alto seria o

    risco que correria, hoje em dia, uma pessoa letrada mas sem co-

    nhecimentos jurdicos ou imobilirios especializados, se vendesse

    um imvel e registrasse o evento por meio de um contrato de com-

    pra e venda a longo prazo que ela mesma tivesse redigido...

    Por tudo isso, as prticas de uso da escrita so consideradas

    prticas situadas.

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    As prticas escolares

    As prticas de letramento fora da escola tm objetivos sociais

    relevantes para os participantes da situao. As prticas de letra-

    mento escolares visam ao desenvolvimento de habilidades e com-

    petncias no aluno e isso pode, ou no, ser relevante para o estu-

    dante. Essa diferena afeta a relao com a lngua escrita e umadas razes pelas quais a lngua escrita uma das barreiras mais

    difceis de serem transpostas por pessoas que vm de comu-

    nidades em que a escrita pouco ou nada usada.

    As prticas escolares presumem a existncia de um sujeitoindependentemente do tempo e do espao sempre o mesmo,

    FernandoFavoretto

    JoseLuisPelaez/Corbis-Stock

    Photos

    . 33 .

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    seja ele o primeiro indivduo a aprender a ler e a escrever na sua

    famlia e no seu bairro, ou o filho de uma famlia de escritores e

    intelectuais com educao superior, ou ainda uma criana nascida

    em uma comunidade indgena que foi grafa at recentemente.Entretanto, isso muda quando o trabalho didtico organizado

    levando em conta os textos que circulam entre os diversos grupos

    sociais, no dia-a-dia. Conseqentemente, diferenas e caracters-

    ticas da situao comeam a penetrar nas aulas, visando ao

    ensino da escrita, como deve ser feito.

    Os aprendizes

    Entre as questes relativas contextualizao que merecem

    ser levadas em conta nos programas e currculos para o ensino

    da escrita, podemos citar, em primeiro lugar, a necessidade de

    adequao dos mtodos s caractersticas da situao, incluindo

    a as caractersticas do aprendiz participante da situao. Mesmo

    quando se trata da alfabetizao, da qual todos precisam paraser letrados, os mtodos para alcanar esse objetivo devem vari-

    ar segundo o aprendiz. J dissemos que o mtodo uma estrat-

    gia relacionada ao aluno, no apenas ao conjunto de saberes

    envolvidos.

    Crianas que crescem em metrpoles, rodeadas de cartazes,

    outdoors publicitrios, nibus com todo tipo de anncios e

    letreiros, placas e avisos por todos os lados, j conhecem no

    com seu valor fontico, mas como se fossem ideogramas

    muitas letras e palavras que aparecem nesses

    textos: mesmo antes de decodificar j lem o

    M de MacDonalds ou o nome em letra cursiva

    da Coca-Cola. Isso, porm, no acontece em

    comunidades rurais afastadas dos grandes centros, em que aleitura que a criana faz a dos sinais da paisagem natural.

    . 34 .

    Ideograma. Smbolo que

    representa um objeto ou

    uma idia.

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    . 35 .

    Alm disso, se uma criana participa de eventos de letramen-

    to no lar por exemplo, escuta as histrias que um irmo mais

    velho, pai ou av l para diverti-la e distra-la , essa criana j

    associa o livro ao lazer, quilo que lhe prazeroso eaconchegante. Mas isso no universal. As lem-

    branas dos jovens e adultos que fracassam na

    escola esto cheias de momentos de dor e

    desconforto relacionados aos seus primeiros

    contatos com a escrita.

    Crianas que tiveram uma relao afetiva e prazerosa com o

    livro de histrias na creche, no lar, na escolinha poderoachar um sentido para qualquer atividade de decodificao (at

    mesmo entediantes exerccios de cpia do quadro-de-giz), porque

    j conhecem mltiplas funes da palavra escrita e esto procu-

    ra da chave que lhes permitir entrar no mundo da escrita por si

    mesmas, sem a ajuda do adulto.

    O que dizer, porm, de outras crianas, que no conhecem

    essas funes? Ser que elas conseguiro enxergar esse alvo, se

    o que sabem sobre a escrita o que a escola est lhes ensinan-

    do, to distante das funes comunicativas e expressivas dos

    atos de ler e escrever? Nesse caso, a tarefa parece to rdua

    como a de tentar aprender uma lngua estrangeira repetindo, horasa fio, os sons dessa lngua, sem nunca, porm, us-la para falar

    FernandoFavoretto

    FernandoFavoretto

    A esse respeito, veja

    Ensino e a formao

    do professor, de Angela B.

    Kleiman e Ins Signorini,

    obra citada na Bibliografia.

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    . 36 .

    com algum, escutar uma piada, contar um caso. Quantos de ns

    perseveraramos e teramos sucesso com um mtodo desse tipo?

    Mesmo que a criana j valorize a escrita, a contextualizao

    do novo conhecimento os sistemas alfabtico e ortogrfico dalngua torna a aprendizagem muito mais fcil. Uma palavra

    torna-se vvida, real, concreta durante a leitura. Imaginemos que

    uma criana (ou outro leitor iniciante) est lendo um conto que

    comea com:

    Era uma vez uma viva muito pobre que morava com sua filha numa

    choupana coberta de sap...

    Seria bastante vlido o professor levar essa criana (ou essa pes-

    soa que est aprendendo a ler) a imaginar todos os detalhes que fal-

    tam nessa cena e que so justamente o que dar vida s letras:

    P Uma viva... alta e magra... de olhos escuros e cabelos pre-

    tos, com alguns fios brancos...

    P Como ela se veste?

    P E a filha, quantos anos ter?

    P Ser que a filha parecida com a me? (No? Ento, ela

    baixinha e gordinha, loira, e tem olhos castanhos?)

    P Elas se do bem? Conversam muito?

    P Sobre o que, geralmente, conversam?

    P Como ser a choupana em que vivem? Quantos cmodoster?

    P E outros detalhes, medida que vai se desenvolvendo a

    histria.

    A ilustrao, na literatura infantil, pode desempenhar essa

    funo ao complementar, enfatizar ou gerar expectativas sobre o

    texto. No entanto, importante que isso passe a fazer parte dasestratgias de leitura da criana.

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    . 37 .

    Se, dando asas imaginao, a criana contextualiza a

    histria do livro, no haver limites para o que ela ser capaz de

    fazer quando os saberes a serem adquiridos forem contextualiza-

    dos em atividades relevantes de estudo e de lazer.

    As atividades escolares

    A escrita adquirida no contexto escolar enfatiza a realizao de

    atividades analticas em relao linguagem. Alis, quando a cri-

    ana comea o processo de alfabetizao, comea a atividade

    analtica. Para aprender a ler e a escrever o aprendiz deve no

    apenas analisar a fala em palavras, mas as palavras em slabas

    e, eventualmente, as slabas em fonemas (os sons significativos

    da lngua). Por exemplo, quando faz brincadeiras de encontrar

    rimas, a criana est analisando a palavra em sons.

    Essa atividade analtica no traz grande dificuldade a uma cri-

    ana que j conhece as funes de muitos textos que circulam nasociedade (como as do livro de histrias, do jornal, do bilhete, da

    receita mdica) e que j brincou de ser leitora e escritora, fazen-

    do de conta ela e o adulto que interpreta seus balbucios imi-

    tando a leitura e seus rabiscos, suas garatujas que est lendo

    e escrevendo. No entanto, essa ser uma atividade extremamente

    penosa e sem sentido para a criana que no conhece essas

    funes, que no experimentou ler nem escrever na brincadeira. o que acontece quando os textos no circulam no cotidiano

    domstico da criana, ou quando sua famlia no usa a escrita

    porque no sabe ler e escrever ou sabe, mas o faz com pouca

    freqncia ou com grande dificuldade ou, ainda, em situaes e

    com funes que a escola desconhece e no legitima.

    O fato de a escola separar as prticas letradas de suas insti-

    tuies de origem literria, cientfica, jornalstica e dar um

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    tratamento descontextualizado, uniforme, a todos os textos, inde-

    pendentemente de onde se originaram, no significa que as prti-

    cas na escola no sejam situadas. Elas so situadas na escola, a

    mais importante agncia de letramento da sociedade, quefavorece as prticas de anlise de elementos como slabas,

    palavras, frases... e at textos.

    O insucesso generalizado no ensino da escrita a grupos que

    no provm de famlias letradas parece estar claramente dizen-

    do que est na hora de substituir ou complementar os fazeres

    analticos com a participao nas prticas sociais de outras

    instituies. Para dar um exemplo, em vez de ensinar/aprender

    que uma receita de salada de frutas tem trs partes nome,

    ingredientes e modo de fazer , ser mais eficaz fazer a sala-

    da de frutas e, depois, rememorando o que foi feito, organizar

    saberes e atividades numa receita, de forma escrita, para lem-

    brar dela no futuro e para poder comunic-la aos ausentes.

    Uma forma de fazer isso reproduzir as caractersticas da prti-ca na situao original no espao da sala de aula: por exemplo, se

    a notcia de jornal lida e comentada no cotidiano familiar, no h

    por que no a ler e comentar na aula. Se o relato do que nos acon-

    teceu no dia faz parte das nossas prticas cotidianas no lar, no h

    por que no encorajar esse relato no momento da rodinha em sala

    de aula, a fim de transformar os acontecimentos dos relatos em

    objeto de prticas letradas, quando possvel ou pertinente.

    . 38 .

    A escola uma instituio de peso, por isso tem o poder de legitimar algu-

    mas prticas em detrimento de outras. Numa turma de adolescentes, garotos e

    garotas costumam enviar bilhetinhos pessoais uns aos outros. Quando se per-

    gunta a uma jovem, que acaba de enviar um bilhete amiga, se ela costuma es-

    crever, ela diz que no, porque escrever esse tipo de bilhete no algo realiza-do com o professor, mas escondido dele. No corresponde quilo que a escola

    chama de escrever.

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    . 39 .

    Imaginemos uma atividade em que os alunos compartilham

    com os colegas as rotinas e peripcias do dia, e na qual um aluno

    relata o seguinte:

    Acordei s 7; levantei e fui tomar o caf. Cheguei no ponto adiantado,

    mas o nibus chegou 20 minutos atrasado e to lotado que no dava

    pra entrar...

    H nesse relato um episdio que poderia originar uma prtica

    de letramento relacionada defesa dos direitos do cidado e do

    consumidor junto a instituies como a Prefeitura e as empresas

    de nibus: escrever uma carta formal de reclamao, ou fazer um

    abaixo-assinado com os usurios da linha de nibus.

    As atividades necessrias para escrever uma carta reivindi-

    catria ou fazer um abaixo-assinado pertencem esfera das

    atividades polticas e/ou comerciais, relacionadas defesa do

    consumidor. E ainda esto situadas na escola. Diferentemente

    das atividades analticas em que se escreve e se l para aprender

    a escrever e a ler, o foco na atividade em questo est na prtica

    letrada, em vez de estar no gnero ou texto a ser produzido. Esse

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    foco libera essa atividade da camisa-de-fora que a atividade

    analtica escolar e, ao mesmo tempo, a mantm firmemente anco-

    rada no mbito das atividades que visam ao ensino e apren-

    dizagem da escrita, respectivamente objetos e objetivos escolarespor excelncia.

    Quando o foco est na prtica de letramento, corre-se menos

    risco de engajar o aluno em atividades de faz-de-conta. Se

    comearmos pelo objetivo de ensinar o aluno a escrever abaixo-

    assinados muito mais provvel resultar um texto que ningum,

    fora da turma que o escreveu, ler.

    . 40 .

    Para reflexo

    Existe alguma atividade que seus alunos realizam em sala de aula que no en-

    fatize a anlise?

    Vamos pensar como algumas atividades necessrias para aprender a ler e a es-

    crever podem ser alteradas para mudar essa nfase?

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    . 41 .

    Outras implicaes

    Uma nova forma de conceber o papel e o impacto da lngua

    escrita na sociedade necessariamente traz transformaes na

    concepo da lngua falada. Conseqentemente, novas relaes e

    novos espaos so definidos para esses sistemas inter-relaciona-dos de comunicao. O mesmo acontece relativamente a outras

    linguagens no-verbais e as inter-relaes que se estabelecem no

    texto escrito.

    A relao letramentooralidade

    Quando, em exemplo anterior, descrevemos a entrevista do

    paciente no consultrio mdico, chamamos essa seqncia de

    aes de evento de letramento. Mas a entrevista exemplificada

    no envolvia apenas leitura e anotaes; ela consistia tambm de

    perguntas e respostas faladas, na interao face a face. Alm

    dos textos que formavam a histria do mdico e do paciente, e

    dos textos que eram lidos e produzidos na situao, a fala tam-bm era crucial.

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    . 42 .

    Essa relao corriqueira numa sociedade tecnolgica moder-

    na: escrita e fala se complementam, so coadjuvantes na com-

    plexa encenao de eventos nas instituies.

    Tradicionalmente, a (lngua) escrita se ope fala (lngua falada); trata-se de dois sistemas

    semiticos ou sistemas de signos que utilizam

    canais (auditivo e visual) e modalidades de

    comunicao distintos para significar: alm

    das linguagens verbais, um usa o corpo, o

    olhar, o espao imediato, os silncios, a ento-

    nao; o outro utiliza o suporte fsico, tipos etamanhos de letras, imagens, pontuao etc.

    J o termo letramento tem como contraparte a oralidade e ambos

    letramento e oralidade referem-se aos usos da linguagem, aodiscurso e, para alguns autores, aos modos de organizar a realidade.

    Sistema semitico. Sis-

    tema de signos para a pro-

    duo social de significa-

    dos. A lngua o sistema

    semitico paradigmtico,

    mas os lingistas no se

    consideram semioticistas.

    Os sistemas semiticos

    mais estudados so os

    das linguagens verbais da

    propaganda, da TV ou do

    cinema.

    FernandoFavoretto

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    . 43 .

    As prticas sociais de linguagem

    so hbridas em relao s modali-

    dades de lngua utilizadas, mas elas

    pertencem a um tipo de discurso ououtro. Por exemplo, as atividades

    desenvolvidas na cincia ou na

    imprensa so basicamente letradas,

    enquanto o dilogo ntimo entre dois

    namorados pertence s prticas da

    oralidade, mesmo que s vezes seja

    transposto para um bilhete ou outrotipo de texto escrito.

    Vale salientar, porm, que o dis-

    curso jornalstico (assim como o dis-

    curso cientfico) envolve no s os

    textos escritos que aparecem no jor-

    nal, mas tambm a discusso oral, que se faz na redao, das

    matrias que sero notcia no jornal do dia seguinte, as considera-

    es e correes que o editor faz, tanto por

    escrito como oralmente, sobre o texto que o

    reprter apresentou etc. Em outras palavras,

    um discurso letrado, com prticas que envolvem

    tanto a lngua falada como a lngua escrita.

    Uma questo tambm importante que, em

    sociedades modernas como a nossa, quase no

    existe mais oralidade pura. H uns poucos

    casos de complementaridade entre as duas

    lngua falada e lngua escrita , ou seja, h situ-

    aes que privilegiam a lngua escrita, como a

    celebrao de contratos imobilirios, licitaes,

    emprstimos bancrios, a elaborao de proje-tos para conseguir verbas federais, assim como

    Complementaridade. Na

    lingstica, dois itens esto

    em relao complementar

    quando esto em oposio

    dentro de um sistema ou

    quando se complementam

    mutuamente porque ocor-rem em ambientes distin-

    tos, complementares. No

    sistema de comunicao

    verbal, isso significa que se

    a lngua falada e a lngua

    escrita esto em relao

    complementar apenas uma

    delas possvel na situ-

    ao. Esse o caso maisraro hoje.

    Mas esses lingistasso mesmo complicados!Imagine ter de distinguir

    lngua falada elngua escrita, oralidade

    e letramento !

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    . 44 .

    h ocasies em que a lngua escrita no funciona, e preciso usar

    a fala, como, por exemplo, quando se chama o filho que est brin-

    cando na rua para entrar em casa.

    muito mais comum, entretanto, a existncia de uma gradaode formalidade/informalidade que tambm contribui para determi-

    nar a modalidade de lngua a ser utilizada: assim, podemos

    agradecer um presente, aceitar um convite, oferecer os psames,

    falando ou escrevendo, e isso depende, basicamente, do nvel de

    formalidade da situao, que pode ir desde o mais frio e formal at

    o casual e o ntimo. As situaes, em geral, so hbridas, como

    vimos no exemplo do dia de um mdico. As situaes escolaresno so uma exceo: h explicaes, perguntas e respostas

    orais, assim como h exerccios, questionrios e provas escritos,

    e leituras e comentrios orais sobre textos lidos.

    Uma relao de continuidade

    A relao entre oralidade e letramento no de oposio ouum ou o outro , como os exemplos de prticas sociais anterior-

    mente mencionados mostram.

    Nas prticas letradas da sala de aula, as relaes de comple-

    mentao e sobreposio parcial entre fala e escrita so muito evi-

    dentes. Na aula de leitura, por exemplo, o professor faz perguntas

    antes, durante e depois da leitura, com a finalidade de ajudar a

    construir um sentido ou de introduzir um novo gnero. Em outraspalavras, ele fala e, ao fazer isso, mobiliza seus conhecimentos,

    experincias e recursos da oralidade (como fazer perguntas ade-

    quadas ao pblico, ao assunto, aos objetivos da atividade) e do

    letramento (como ler um conto). importante lembrar que ele faz

    isso com a finalidade de ensinar os diversos elementos de um

    novo sistema de signos e de significados em construo pelos

    alunos: a lngua escrita. A aquisio e o domnio dessa modali-

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    dade de se comunicar que permitiro que os alunos participem,

    cada vez com mais capacidades de ao, das prticas de letra-

    mento da sua famlia (e da sua comunidade), como ler a Bblia,

    consultar o dicionrio, copiar uma receita num caderno especialpara receitas, ler o jornal, conversar, na hora da refeio ou de

    lazer, sobre livros e outros assuntos lidos.

    Nas atividades fora da escola, a mobilizao dos dois sistemas

    semiticos o da lngua escrita e o da lngua falada tambm

    comum. Vejamos alguns exemplos:

    P a ata de uma reunio o registro escrito de uma interao

    oral envolvendo um grupo de participantes ratificados ou reco-

    nhecidos como co-participantes da situao (quem est escutan-

    do do lado de fora da sala de reunio no um participante, no

    consta da lista dos presentes reunio); ela prpria de institui-

    es que precisam construir uma memria de suas atividades,

    como associaes de condomnio, assemblias de sindicato, con-

    selhos universitrios;P o boletim de ocorrncia produzido pelo policial de planto

    com base no relato oral dos participantes da ocorrncia;

    P os textos televisivos jornalsticos nascem de uma discusso

    de pauta, so em seguida escritos e posteriormente falados.

    O conceito de letramento abre espao para uma nova forma de

    conceber a relao entre o escrito e o oral. Foi postulada uma

    relao de continuidade no de oposio entre o oral e o

    escrito, perante as evidentes relaes que existiam entre os usos

    da lngua falada e da lngua escrita.

    . 45 .

    Para reflexo

    Como esses, podemos pensar em vrios outros exemplos, de outras instituies.

    Voc pode mencionar alguns?

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    Imaginemos uma linha com dois extremos (um contnuo):

    ORAL ESCRITO

    Num extremo do contnuo, encontraramos os gneros orais

    da intimidade, como a conversa, o bate-papo, a fofoca e, no outro

    extremo, os gneros escritos das instituies mais estruturadas e

    articuladas, mais complexos, como o artigo cientfico, o romance

    literrio... Mas, entre eles, haveria uma verdadeira constelao

    de outros gneros da intimidade, porm escritos, como o dirio

    pessoal e a carta, ou de discursos institucionais formais, pormorais, como a palestra e o debate.

    ORAL ESCRITO

    Uma outra forma de conceber as relaes entre os diversos

    gneros, segundo a sua proximidade com as formas orais ou

    escritas, a de famlias de textos. Essas relaes de famlia se

    baseiam em semelhanas na funo e na forma ou estrutura dos

    gneros, que nascem em uma instituio, mas so adaptados e

    reinventados por outras. Um exemplo dessa famlia dado pelos

    gneros missivistas: o recado e o bilhete no lar, o memorandona firma, o anncio ao microfone no salo de reunies, o aviso na

    . 46 .

    INFORMAL

    FORMAL

    Bate-papo, fofocaCaso, conversa fiada

    Entrevista mdicaRelato de vivnciasReclamao

    DebatePalestraConferncia

    Bilhete, carta pessoal

    Dirio

    Carta do leitor

    Biografia

    Entrevista jornalstica

    Notcia

    Carta de reivindicao

    Editorial, ensaio

    Relatrio cientfico,artigo cientfico, tese

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    . 47 .

    porta da repartio pblica, o Messenger (MSN) na Internet,

    entre outros.

    Outras linguagens

    Uma importante contribuio dos estudos do letramento para

    a reflexo sobre o ensino da lngua escrita na escola a ampli-

    ao do universo textual, que significa, concretamente, a incluso

    de novos gneros, de novas prticas sociais de instituies (pu-

    blicitrias, comerciais, polticas) que, at pouco tempo, no tinham

    chegado aos bancos escolares.

    Quando se amplia a concepo da escrita, antes reservada

    para os textos extraordinrios aqueles que so por poucos pro-

    duzidos possvel entender melhor o impacto social da escrita:as mudanas e transformaes decorrentes das novas tecnolo-

    gias, os usos da escrita e seus reflexos no homem comum.

    Da a importncia de se incluir tambm os textos comuns,

    sobre assuntos corriqueiros, de circulao cotidiana na famlia

    ou no ambiente de trabalho, que qualquer escolarizado bem-

    sucedido compe quase sem pensar. Eis a tambm no uma

    novidade, mas uma nova forma de conceber o trabalho escolare suas relaes com a vida social.

    O trecho da pgina anterior apresenta metforas que se referem s relaesentre textos orais e escritos e os gneros a que pertencem: contnuo, conste-

    lao. Isso comum quando os conceitos so muito complexos. As metforas con-

    ceituais nos ajudam a entender conceitos abstratos e at a organizar a realidade

    que nos rodeia. So um bom recurso pedaggico. As metforas aqui usadas so

    mistas e se devem a diferentes pesquisadores: contnuo foi introduzido por Chafe,

    lingista americano, e constelao por Bronckart, um pesquisador suo. No

    Brasil, tais metforas tm sido divulgadas e estudadas por autores como Luiz A.

    Marcuschi, Anna Rachel Machado e Roxane Rojo, entre outros. Essa literatura,

    porm, vasta demais para ser citada aqui. (Veja Bibliografia, no final do livro).

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    . 48 .

    Incluem-se nas novas categorias de textos escolares listas, bi-

    lhetes e receitas,que so escritos e copiados sem aparelhagem espe-

    cial, s vezes em pedacinhos de papel que atestam que a ocasio

    informal, usual, trivial at. Incluem-se tambm os textos da escritaambiental, do mundo fsico ao redor, como pichaes, avisos,

    letreiros, outdoors, placas de rua,crachs, camisetas e buttons, expos-

    tos para serem lidos num bater de olhos. So tambm includos,

    nesse conjunto de novidades, os textos de mdias at h pouco

    desconhecidas, ou textos que resultam dos novos modos de cons-

    truo textual, como o do exemplo em que a paisagem o ponto de

    nibus faz parte, por assim dizer, do outdoora ser interpretado:

    Nos materiais didticos, mesmo quando a inovao se limita

    incluso dos textos jornalsticos um sistema miditico que no

    de origem recente a diferena entre o mate-

    rial atual e materiais semelhantes de antiga-

    mente marcante. Isso porque o texto escrito

    mudou substancialmente. O texto comum na

    mdia hoje um texto multissemitico ou multi-

    modal: so usadas linguagens verbais, imagens,

    fotos e recursos grficos em geral. Portanto, no apenas a linguagem verbal a que contribui para

    Textos multissemiti-

    cos ou multimodais.

    Textos que combinam dife-

    rentes modos de represen-

    tao (imagens, msica,

    cores, lngua escrita, lngua

    falada), que devem ser leva-

    dos em conta na sua inter-

    pretao.

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    . 49 .

    o sentido; a imagem se tornou uma forma de expresso e de

    comunicao muito poderosa.

    Em resumo, a relao entre o material verbal e as imagens nostextos mudou dramaticamente nos ltimos 30 anos, em livros,

    revistas e jornais. Percebemos isso claramente

    ao comparar, por exemplo, uma abertura de

    unidade de um livro didtico da dcada de 1970,

    em que a linguagem reinava nica, com outra

    (sobre o mesmo tema) de um livro didtico pu-

    blicado mais recentemente.

    Na TV e na Internet, a multimodalidade ainda mais marcada, pois o textotelevisivo ou o hipertexto, na Internet, utilizam tambm a linguagem musical,

    alm da linguagem verbal e grfica, para fazer sentido. Essa tendncia encontra-

    se tambm na mdia impressa e no livro didtico da se dizer que na ps-mo-

    dernidade os textos no so mais essencialmente escritos, so multissemiti-

    cos. Este volume da coleo Linguagem e Letramento em Foco exemplo

    disso: utiliza ilustraes, fotos, tabelas, caixas de texto, cores, letras de dife-

    rentes formas e tamanhos e outros recursos grficos.

    A respeito de textos

    na Internet, veja o

    volume Letramento e tec-

    nologia, de Denise B. Bra-

    ga e Ivan L. M. Ricarte,

    nesta coleo.

    MISSA DO GALO

    Machado de Assis

    Nunca pude entender a conversao que tive com uma

    senhora, h muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era

    noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho irmos missa

    do galo, preferi no dormir; combinei que iria acord-lo meia-

    noite.

    A casa em que eu estava hospedado era a do escrivo

    Meneses, que fora casado, em primeiras npcias, com uma deminhas primas. A segunda mulher, Conceio, e a me desta

    acolheram-me bem, quando vim de Mangaratiba para o Rio de

    Janeiro, meses antes, a estudar preparatrios. Vivia tranqilo,

    naquela casa assobradada da Rua do Senado, com meus livros,

    poucas relaes, alguns passeios. A famlia era pequena, o

    escrivo, a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos.

    s dez horas da noite toda a gente estava nos quartos; s dez e

    meia a casa dormia. Nunca tinha ido ao teatro, e mais de uma

    vez, ouvindo dizer ao Menezes que ia ao teatro, pedi-lhe que me

    levasse consigo

    MISSA DO GALO

    Machado de Assis

    Nunca pude entender a conversao que ti-

    ve com uma senhora, h muitos anos, con-

    tava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal.

    Havendo ajustado com um vizinho irmos missa do galo, preferi no

    dormir; combinei que iria acord-lo meia-noite.

    A casa em que eu estava hospedado era a do escrivo Meneses, que fora

    casado, em primeiras npcias, com uma de minhas primas. A segundamulher, Conceio, e a me desta acolheram-me bem, quando vim de

    Mangaratiba para o Rio de Janeiro, meses antes, a estudar preparatrios.

    Vivia tranqilo, naquela casa assobradada da Rua do Senado, com meus

    livros, poucas relaes, alguns passeios. A famlia era pequena, o escrivo,

    a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos. s dez horas da noite

    toda a gente estava nos quartos; s dez e meia a casa dormia. Nunca tinha

    ido ao teatro, e mais de uma vez, ouvindo dizer ao Menezes que ia ao

    teatro, pedi-lhe que me levasse consigo

    TEXTO 5 Unidade 5

    RESPONDA

    1. Onononononono nononono nononononon nononon nonononnononon nonono nonononon nonono

    2. Ononononono nononono nonono nonononon nono nonon

    3. Ononono nononono nonon nonon nonono nononon no4. Onononono nononono nonono nonononononono nononon

    1. Onononononono nononono

    nononononon nononon

    nononon nononon nonono

    nonononon nonono

    2.Ononononono nononono

    nonono nonononon nono

    3.Ononono nononono nonon

    ononon onon nonononon

    nonono nononon no

    4.Onononono nononnon ono

    ononono nonon nonono

    nono nonono non

    Responda

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    . 50 .

    A imagem faz parte do conjunto de recursos necessrios para

    ensinar a ler: ela pode desempenhar o papel de coadjuvante, co-

    partcipe na interpretao do texto verbal, ajudando a construir os

    primeiros sentidos, que depois sero tornados mais precisos pelaleitura. Ou, como veremos nos exerccios que acompanham o

    curso Letramento nas Sries Iniciais, no ambiente TelEduc, ela

    pode contar uma histria totalmente diferente daquela que o texto

    escrito conta. Embora a escola privilegie o letramento com foco na

    linguagem verbal, no faz sentido relegar a um segundo plano os

    conhecimentos sobre textos multimodais, que a maioria dos

    alunos j tem, assim como faz todo sentido ensinar o aluno a inter-pretar a linguagem imagtica, para ler tambm nas entrelinhas de

    algumas imagens que s tentam vender, manipular, banalizar e

    reproduzir o pior que a sociedade tem a oferecer.

    E

    duardoSantaliestra

  • 7/27/2019 Letramento+KLEIMAN.unlocked

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    . 51 .

    Formando leitores

    Tendo como pano de fundo as exigncias de saberes cada vez

    mais complexos e diversificados sobre o funcionamento da lnguaoral e escrita, das linguagens verbal e no-verbal, dos textos mul-

    timodais de gneros cada vez mais numerosos e complexos na

    prtica social ps-moderna que se perfila o trabalho do profes-

    sor para ajudar seus alunos a construir histrias de leitura signi-

    ficativas e valiosas.

    O trabalho do professor

    O professor que acha que, no seu

    curso de formao, aprender tudo o

    que um dia poder precisar para

    inserir seus alunos nas prticas

    letradas da sociedade um professor

    fadado ao desapontamento.O letramento nos permite aprender

    a continuar aprendendo: se sabemos

    ler um mapa, poderemos achar nosso

    caminho por estradas de cidades

    desconhecidas nunca antes visitadas;

    porm, se tivermos decorado os

    nomes das ruas de uma cidade, quan-do precisarmos usar esse conheci-

    mento, ele poder estar obsoleto.

    Assim com qualquer saber. Precisamos das ferramentas para

    continuar aprendendo, e a leitura a ferramenta por excelncia

    para isso.

    Para formar leitores, o professor, alm de ser plenamente letra-

    do, claro, precisa ter os conhecimentos necessrios para agir

    Xi... Tudo issomais as histrias

    de leitura, a psicologiada aprendizagem,

    teorias de leitura...Precisamos de umsuperprofessor!

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    . 52 .

    como um verdadeiro agente social. Ele tem de ser um gestor de

    recursos e de saberes tanto dos dele (que talvez at nem saiba

    que possui porque deles nunca precisou) como dos de seus alunos.

    O agente social, antes de ensinar um novo modo de se rela-cionar com a tecnologia (uma nova tcnica para plantar batatas,

    uma nova forma de cuidar do umbigo de um recm-nascido ou de

    registrar a histria de uma famlia etc.), descobre, em primeiro

    lugar, se a atividade tem alguma funo na vida do outro. Assim

    como no adianta ensinar a amamentar um beb mulher que no

    tem um recm-nascido em casa, no adianta ensinar a arquivar do-

    cumentos a quem nunca tirou sequer a certido de nascimento. Oprimeiro passo descobrir quais so as funes da lngua escrita

    no grupo e criar novas e relevantes funes para a insero plena

    dos alunos e seu grupo social no mundo da escrita. O trabalho

    essencialmente poltico, mas no deixa por isso de ser didtico-

    pedaggico. Tal como Paulo Freire dizia, a natureza da prtica

    educativa no permite que ela seja neutra, mas sempre poltica.

    Como todo agente social, o agente de letra-

    mento desenvolve aes fundamentadas no co-

    nhecimento, na descoberta de que saberes, tc-

    nicas, estratgias, tradies e representaes

    sobre a escrita o outro (o aluno e sua famlia)

    mobiliza no dia-a dia para realizar a atividade.

    Uma estratgia imprescindvel conhecer bem

    os recursos do grupo, ou seja, conhecer o que o

    grupo capaz de fazer. Novamente, focalizar o

    que o grupo sabe em vez daquilo que no sabe

    uma tarefa de ordem poltica.

    O agente de letramento consegue, por meio de sua liderana,

    articular novas aes, mobilizando o aluno para fazer aquilo que

    no imediatamente aplicvel ou funcional, mas que social-mente relevante, aquilo que vale a pena ser aprendido para que o

    Agente (de letramento).

    Uma representao do pro-

    fessor que concebe o letra-

    mento como um mobiliza-

    dor dos sistemas de conhe-

    cimento, recursos e capaci-

    dades dos seus alunos,

    pais dos alunos e mem-

    bros da comunidade com a

    finalidade de que partici-

    pem de prticas de uso da

    escrita.

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    . 53 .

    aluno seja plenamente inserido na sociedade letrada. Outra

    estratgia importante ampliar os horizontes de ao do grupo.

    Ao contrrio do superprofessor, esse agente no precisa saber

    tudo sobre a lngua escrita, sobre as linguagens no-verbais, sobreas novas prticas sociais emergentes, porque, ao se engajar em

    prticas de letramento, estar engajado numa atividade colabora-

    tiva em que todos tm algo com que contribuir e todos tm algo a

    aprender.

    A pesquisa do professor tem como objetivo, muitas vezes, co-

    nhecer os alunos e, portanto, equivale ao de descoberta dos

    agentes comunitrios, como, por exemplo, a ao de um agenteagrcola, ou de sade, que organiza o grupo para definir um plano

    de ao coletiva. O professor, enquanto agente de letramento,

    um promotor das capacidades e recursos de seus alunos e de

    suas redes comunicativas para que participem das prticas de uso

    da escrita situadas nas diversas instituies.

    A pesquisa do professor (e de outros agentes da escola) pode-

    ria perfeitamente envolver as atividades necessrias para conhe-

    cer as diferentes experincias dos alunos com a escrita, a fim de

    lev-las em conta no planejamento do trabalho escolar. Por exem-

    plo: uma ficha do letramento do aluno, criada por dirigentes de

    escola, coordenadores pedaggicos ou professores, poderia ser

    preenchida a partir da observao em sala de aula e da conversa

    com o aluno, com seus pais e com outros professores que co-

    nheam esse aluno. Isso seria um primeiro e necessrio passo

    para concretizar o velho axioma que diz que o ensino deve partir

    daquilo que o aluno sabe.

    Para reflexo

    Em sua comunidade, o que constituiria uma boa eficiente, econmica, vi-

    vel ficha de letramento? Pense nas categorias necessrias para elaborar uma

    ficha com seu professor-tutor ou com seus colegas e parceiros na escola.

  • 7/27/2019 Letramento+KLEIMAN.unlocked

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    . 54 .

    Toda vez que um professor decide arriscar e tentar algo novo

    o que pode exigir at uma improvisao ele se declara sur-

    preso pelo fato de os alunos terem conseguido fazer aquilo que

    ele planejou. Essa surpresa diz muito sobre as baixas expectati-vas do professor. Em geral, quando dada ao aluno a oportu-

    nidade de mobilizar seus saberes e de ser ouvido, ele sempre

    acaba se lembrando de pessoas, fatos e coisas relevantes (um

    almanaque esquecido numa gaveta, as palavras do av, as ast-

    cias, saberes ou relacionamentos de um amigo que poder ajud-

    lo a ter acesso ao que precisa numa determinada instituio).

    Os projetos de ensino

    Temos usado a palavra letrado para descrever um sujeito que

    participa das prticas sociais de uso da linguagem escrita de sua

    comunidade, mesmo que ainda no tenha domnio individual da

    escrita, como seria o caso extremo da criana ainda no alfabeti-

    zada ou do adulto analfabeto que mora numa metrpole.Essa concepo de sujeito letrado traz uma implicao para a

    dinmica de organizao do trabalho escolar: ele deve ser realiza-

    do por meio da imitao da dinmica das prticas sociais de ou-

    tras instituies. Isso pressupe o trabalho em pequenos grupos,

    com alunos heterogneos em relao ao domnio da escrita, com

    trajetrias de leitura (e de produo textual) diferentes e com

    experincias em outras instituies (como a famlia, a igreja, aassociao do bairro), realizando atividades planejadas para per-

    mitir a participao diferenciada no trabalho coletivo.

    O mtodo de trabalho que incorpora essas caractersticas e

    essa dinmica o projeto. Os documentos curriculares oficiais,

    como os Parmetros Curriculares Nacionais