leonardo de andrade Ídolo quebrado · 2018. 8. 8. · perdas e personagens que se misturam num...

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Leonardo de Andrade

Ídolo Quebrado

Copyright © by Leonardo de Andrade

É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem

prévia autorização do autor e/ou da Editora Fugitivo Literário.

Edição & Preparação Leonardo de Andrade

Revisão final Ketlen Aires

Capa Freepik (vetor livre modificado)

Ídolo Quebrado

ANDRADE, Leonardo de

2ª Edição Rio Grande do Sul

Abril de 2018

EDITORA FUGITIVO LITERÁRIO

Rua Marcos Costa 256 Fragata

Pelotas Rio Grande do Sul

96040-750

www.fugitivoliterario.com.br

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A Cidade dos Malditos

Este livro é parte de um ciclo de romances de um universo literário singular. Os romances que fazem parte deste ciclo irão, eventualmente, se cruzar, mas apresentam, em sua própria particularidade, histórias totalmente únicas, que podem ser lidas em qualquer ordem e sem a necessidade de conhecimento específico sobre nenhuma das histórias, permitindo que o leitor explore e divirta-se com as referências encontradas entre as pontes que as histórias criarão. Apesar de interligadas, essas histórias vivem sozinhas sob as luzes parcas e as ruas perdidas da Cidade dos Malditos.

Em memória de minha avó America. Gostaria que tu estivesses aqui

para ler esse livro.

Dedico, também, à minha mãe, minha maior apoiadora.

Todas as divindades residem dentro do peito humano.

- William Blake.

Nós dois lemos a Bíblia dia e noite.

Mas tu lês negro onde eu leio branco.

-

NOTA DO AUTOR

Caro leitor, talvez tu estejas doido para começar a ler esse livro de uma

vez, ou sejas daqueles que pulam essas introduções, prólogos e essa coisa toda, mas se está aqui, vou tomar somente uns minutinhos do seu tempo para contar que Ídolo Quebrado é, e provavelmente, sempre vai ser, um dos livros mais especiais que já escrevi, apesar dos tantos erros que eu, como seu criador, possa atribuir à história. Foi o terceiro livro que escrevi, e se ouso dizer, o primeiro de uma linha de histórias que se passa na mesma cidade amaldiçoada que leva para os recônditos mais secretos a tormenta de tantos personagens que vivem nesse lugar. A batizar, embora nunca tivesse tido a intenção de ligar essas histórias, por isso existem erros de cronologia neste livro e em Outra Era, meu romance anterior.

Poucos sabem, mas Ídolo Quebrado foi datilografado, em uma velha máquina de escrever, presente de um amigo de infância que consequentemente se tornou um dos meus melhores amigos. Comecei a escrita da história do Evan quando tinha 16 anos, e muitas coisas, desde então, aconteceram na minha vida. O oficio de

ser escritor é uma coisa singular, maravilhosamente difícil, e que não é feito para todos. São muitas histórias, muitos momentos, muitas perdas e personagens que se misturam num lindo embaralhar cheio de ânsia, em vidas que não são minhas. Eu tenho muito a agradecer por Ídolo Quebrado, principalmente por ter se tornado o livro que

formas o meu próprio jeito de escrever. Infelizmente, durante todos esses anos, apesar de ter

recebido uma boa edição, Ídolo ainda não estava totalmente como

que eu visitei pela última vez há quatro anos, quis recomeçar tudo de novo. A vontade de reescrever muitas coisas foi grande, e fazer tantas outras diferente, mais ainda, mas prometi deixar o livro intocado e honesto, mantendo toda a sua originalidade criada por um menino de 16 anos. Talvez seja o hábito, ou as novas técnicas que vamos aprendendo ao longo da caminhada, que nos fazem querer refazer coisas que já fizemos, mas, infelizmente, não podemos.

Existe muito do que eu fui neste livro, e muito do que eu pensava quando adolescente, e do que aspirava a ser, e se posso ser franco, é um livro extremamente pessoal, mas raro e que frequentemente me traz um sorriso quando leio algumas páginas novamente, mesmo que me desperte uma grande vontade de alterar uma coisa ou outra. Ou trezentas. Sendo assim, eu vos apresento o novo Ídolo Quebrado, somente com uma capa diferente, mas com o mesmo coração juvenil.

Boa leitura e um forte abraço!

Leonardo de Andrade Janeiro, 2018

Outono

I. Cidade das Trevas

O crepúsculo era forte no horizonte. Lembro-me de como estava entorpecido ao observar as curvas que aquele lençol de luzes fazia no céu acima de mim. Não tardou para que a noite viesse a cair, deixando-me sozinho no mundo. Os transeuntes, outrora ali, já iam embora para o conforto de seus lares, enquanto eu, aquele homem arruinado e esquecido, permanecia lá, observando o vazio da noite fria. Esperando outra chance para desperdiçar. Com este sentimento, levantei-me daquele banco de pedra em que estava sentado e comecei a andar pelas ruelas daquela imensa metrópole. Peguei a Rua Mesbant, atravessando os becos com cheiro pútrido de esgoto e sentindo a chuva fria congelar meu corpo. Meu bafo de uísque se esvaía com minha respiração naquele ar fétido. Eu avançava com passadas largas pelos buracos preenchidos pela água da chuva. Fiz esse trajeto até chegar a Rua 4, no final. Então, pude vislumbrar a fachada miserável de minha casa. A tinta descascada dava contraste às janelas de madeira em estilhaço. Coloquei a chave na porta e girei, abrindo-a e adentrando em um dos poucos cômodos que aquela casa possuía. Porém, ao menos eu tinha uma lareira para me aquecer. Juntei alguns tocos de lenha e acendi um modesto fogo. As chamas iluminaram um porta-retratos. Com profunda vergonha,

eu o abaixei. Andei até a mesinha no centro da sala e olhei as poucas páginas que eu tinha escrito de meu novo romance. O título em branco. Ri secamente, pegando o amontoado de folhas que havia ali.

- Outro fracasso... senti o desequilíbrio em minha voz. Eu estava bêbado. Sempre bêbado. - Estou ficando bom nisso. Joguei as folhas na lareira, sentando-me, depois, em uma

velha poltrona que ficava em frente à mesma. Retirei minha carteira de cigarros de dentro da jaqueta molhada e coloquei um em meus lábios, acendendo-o com um isqueiro. Traguei enquanto observava, com indiferença, as chamas consumirem aquele rascunho de um romance malfadado. Via a fumaça de meu cigarro subir alto, infestando o ar da casa com o típico cheiro de nicotina barata. Mas o que eu podia fazer senão comprar o cigarro mais barato do mercado? Eu mal conseguia contar as moedas que tinha no bolso. Em algum momento o cansaço conseguiu me derrotar, esvaindo todas as minhas forças. Por fim, adormeci naquela poltrona velha com o cigarro em meus lábios.

A luz do sol avançava fortemente pela janela da sala no outro dia, chegando até minhas retinas e despertando-me daquele sono mal dormido. Encontrei as cinzas do cigarro estiradas no carpete ao lado da poltrona e um furo no bolso frontal de minha jaqueta. Na lareira, o romance que eu mal começara a projetar havia queimado entre os restos de lenha. Eles já não mais existiam, mas eu ainda podia lembrar o meu fracasso constante. Levantei-me e andei até o banheiro. O espelho projetou a imagem de um esqueleto. As órbitas, profundas, e os olhos brancos e avermelhados faziam de mim uma criatura sinistra. A barba por fazer contribuía em todos os aspectos possíveis. Passei água em meu rosto e arrumei com as mãos aqueles cabelos lisos, oleosos e desgrenhados que eu tinha.

Ao sair de casa, franzi a testa e contraí os olhos com a claridade da luz. Como poderia aquela cidade dos demônios do dia

anterior ser essa que eu presenciava agora? O ônibus passou por mim, seguindo em sua rota costumeira depois de deixar o ponto, algumas quadras para trás. Enquanto isso, eu via os casais de mãos dadas na rua e até mesmo um homem passar por mim com um buquê de flores. Um sorriso estampava seu rosto. Pobre bastardo pensei com meus botões, enquanto acendia outro daqueles cigarros que fumara até dormir. Enquanto via todos passarem, acabei pensando se o pobre bastardo não seria eu. No caminho até uma padaria próxima, um pensamento fixou-se em minha mente. Era a visão de um homem no espelho de minha casa e eu tinha a impressão de já tê-lo visto muito antes. Meu pai. Aquilo me abateu, mas ao mesmo tempo colocou um sorriso em meu rosto.

Eu ficava cada dia mais parecido com ele. Finalmente cheguei ao estabelecimento. Situava-se a dois

quarteirões de onde eu vivia, na Rua 2 com a Mesbant. Ao chegar ao balcão, pedi um ou dois pães e mais uma carteira de cigarros porque a minha estava no fim. Eu nunca fui um viciado em nicotina, mas ela me servia quando eu estava desanimado, ou frustrado. Uma carteira de cigarros poderia durar boas semanas em meus bolsos. E foi desse modo que eu descobri ter apenas cinco dólares comigo. Suspirei, pegando o caminho de volta após pagar. Eu certamente precisava de um emprego. Escrever ainda não havia me recompensado. Eu nem sei se um dia iria. Enquanto pegava o caminho de volta, passei pela Avenida Bourbon e vi o quanto a construção do novo museu histórico havia evoluído. Dizia que grandes obras de arte estariam ali. Museu Histórico Nacional William Bourbon. Eu até escrevi um artigo para o NOW, jornal da cidade, pois era desses artigos que eu tirava meu pão e os cigarros baratos. O artigo não foi publicado em meu nome, permanecendo escrito por um desconhecido. Para eles, realmente, um diabo qualquer. Apesar de eu ter ficado com um pouco de raiva, precisava do dinheiro para viver e, de tempos em tempos, sempre que o bolso

ficava vazio, eu enviava um artigo ou outro para o jornal. Muitas pessoas liam, isso por si só já era gratificante o suficiente.

Ao chegar à minha casa devorei os pães que havia comprado. Puxei uma cadeira e sentei-me em frente à escrivaninha. Minha máquina de escrever permanecia apenas à espera de mais ideias fracassadas para serem impressas no papel. Coloquei uma folha na máquina e deixei meus pensamentos voarem, fluírem. O som das teclas batendo preenchia o ar enquanto eu desenvolvia um texto falando sobre as limitações do transporte. A classe social mais alta, os burgueses da Vila Sunshine, certamente concordariam com todas as minhas palavras sobre o transporte público não chegar onde ficavam situadas suas humildes mansões, mesmo que eles não precisassem desse transporte para chegar até lá. Aprendi com minhas falhas e fracassos que as pessoas não gostam de ler algo útil, mas algo que agrade. Com a fumaça do cigarro vagueando pela casa eu escrevi a última folha daquele artigo medíocre. Comecei imediatamente a trabalhar na correção. Enquanto lia as críticas sem fundamento que tinha escrito eu ria. Era totalmente patético, mas eu sabia que iriam adorar. Reescrevi, polindo o texto e retirando os erros que eu encontrava. Talvez as pessoas não gostem de minha literatura, mas eu sou bom em revisar coisas. Ao terminar, dobrei as folhas e as coloquei em um envelope de cartolina.

Saí imediatamente de casa e comecei a andar até a sede do NOW, a qual não era tão longe. Eu deveria pegar a Champierre e caminhar mais alguns quarteirões para baixo, passando pela Ellyson. Estava próximo do meio dia e eu sentia meu estômago reclamar, pedindo algum alimento substancial. Então me apressei. Ao chegar, informei que gostaria de vender um artigo. A atendente resolveu que não gostava da minha cara embora já me conhecesse e decidiu me dar um chá de cadeira. Eu vi os minutos passarem enquanto ela lia revistas de moda, folheando-as impacientemente. Finalmente, fui chamado pela secretária do redator-chefe. Segui por alguns

corredores e reconheci imediatamente a porta de carvalho de seu escritório. Anderson Vásquez. Ele era um ou dois anos mais novo que eu, sabia disso. Conseguiu o emprego por amizade com alguém, é claro. Estava usando um terno listrado, sapatos de bico italianos feitos de couro de cobra e um topete excepcionalmente ridículo. Entreguei meu artigo e ele o leu enquanto me dizia para sentar à sua frente. Riu algumas vezes, eu sabia que o faria, e depois veio o veredito.

- Gostei do tópico começou. É ruim não ter transporte onde se mora. Uma droga. Você mora para lá?

Claro que ele estava sendo sarcástico. Fiz que não. - Está bem escrito, como sempre seus artigos são, mas não

precisamos disso no momento. Venha aqui quando tiver algo... ele pensou antes de continuar. Melhor.

Sem nem me dispensar ou devolver o artigo, Vásquez fez sinal para que sua secretária me acompanhasse, baixou a cabeça e seguiu lendo uma revista estúpida de esportes. Eu voltei para casa totalmente derrotado.

A tarde estava apenas em seu começo, mas eu sabia que, para mim, ela estava apresentando mais um dia fracassado em minha vida medíocre. Não havia conseguido publicar o artigo e mal tinha em meu bolso o suficiente para comer. Entrei em minha casa e baixei a cabeça ao passar pelo retrato deitado no consolo da lareira. Que vergonha eu era. Vivia apenas de sonhos e esperanças. Todas fracassadas. Talvez o mundo não tenha reservado nada de bom para mim, ou o que as pessoas chamam de bom. Peguei o retrato em minhas mãos e contemplei a imagem de meu falecido pai. Seus cabelos loiros caíam em sua testa rosada. Um sorriso brilhante estampava seu rosto. Naquela foto ele estava em sua juventude, usando o uniforme do exército. Meu pai me olhava com os mesmos olhos verdes que um dia compartilhamos. Com a casa vazia, minha voz ecoou por ela.

- Me desculpe, pai... Então eu desatei a chorar. As lágrimas de um perdedor escorriam de meu rosto apenas

para envergonhar ainda mais a memória daquele que eu amava. Sentado na poltrona, chorando, eu permanecia com aquela foto em minhas mãos. Devolvi-a ao seu lugar de origem e passei as mãos no rosto, secando as lágrimas. Depois disso, saí de casa. Desci as ruas, entrando em becos sujos e malcheirosos. Passei por um homem que dormia no calçamento e, por um único minuto, agradeci aos santos por ainda não estar no lugar dele. Santos? pensei em seguida, rindo enquanto caminhava. Não existe ninguém e nunca existiu. Você sempre estará por sua conta neste mundo. Finalmente, eu havia chegado ao meu destino.

sétima. Eu empurrei a porta de madeira e entrei. Aproximei-me do balcão e sentei no banco de metal e pedi a porcaria mais barata que tivesse. Se eu iria torrar o único dinheiro, que fosse esquecendo meus problemas. O atendente me serviu um pequeno copo do que parecia ser cachaça pura. Tomei em apenas um gole, nem aí para o gosto que queimava minha garganta. Enquanto eu bebia mais, ao fundo do estabelecimento eu vi uma mulher. Seus lábios finos e seu rosto belo eram tudo o que eu via. Ela discutia com alguém e meu sangue fervia. Talvez por nada dar certo, eu pensei que fosse. Era hora de ser o salvador, eu pensei. Algo em meu dia tinha de dar certo, não é? Desci do banco, cambaleando, e fui até lá. Minha visão girava e eu não tinha noção do que fazia. Ao me aproximar, ela e o homem com quem discutia pararam e olharam para mim.

- Deixe-a em paz falei. Isso soa tão clichê. Acho que jamais conseguirei me lembrar das feições exatas

do homem e consigo lembrar um pouco do olhar desaprovador que ela me lançou. Contudo, lembro bem da dor que senti quando ele

socou minha cara. O soco pegou entre meus olhos, me fazendo sentir uma forte dor no nariz. Eu acabei me desequilibrando e caindo por cima de uma mesa, levando-a ao chão em estilhaços. Meu sangue contaminado com meu fracasso escorria pelo nariz.

- Sai fora, seu idiota falou meu agressor ao pegar a mulher pelo braço e leva-la para longe.

Eu nunca fui muito inteligente quanto a brigas, do tipo que vira as costas após ser humilhado e volta para casa como um cão sem dono com o rabo entre as pernas. Na escola, alguns diziam que eu gostava mesmo era de apanhar. Talvez fosse o sangue irlandês que ferve em minhas veias quando eu fico irritado. Minha mãe me batia algumas vezes, com força, isso eu me lembro. E tudo porque eu respondia muito para ela. Meu pai sempre interrompia. Ele nunca me bateu. E novamente, eu não fiquei quieto. Agarrei a primeira garrafa de cerveja que vi e lancei na cabeça de meu oponente. A garrafa quebrou-se em suas costas e a raiva estava em seu olhar quando ele virou para me encarar.

Olhando de perto, ele era grande. Devia ser um pouco mais alto e extremamente mais forte do que eu. Embora, não possuo total certeza. Lá estava ele, parado diante de mim. Dessa vez o soco veio no estômago, depois ele me segurou pela jaqueta e me arremessou para fora do bar. Fiquei estirado no beco, vendo o agressor se aproximar com a ira gravada em seu olhar maníaco. Ele começou a me chutar enquanto todos no bar assistiam o frenesi de raiva que o havia possuído. A mesma garota que tentei defender aproximou-se dele e com palavras que não pude escutar o levou embora. Eu fiquei lá, estirado na calçada pútrida do beco, olhando para o céu azul. Ao meu lado descobri o mesmo homem que antes dormia, quando cheguei ao bar. Ele desenrolou suas cobertas e me ofereceu uma garrafa de vodca pela metade.

- Beba disse. Você esquecerá tudo.

E bebi, afinal, nada melhor do que ganhar bebida de um completo estranho que mora na rua.

Sua generosidade com meus infortúnios me fez rever, por um momento, alguns de meus valores, ou pelo menos o álcool em meu sangue o fez. Permaneci algumas horas com aquele homem, até que o azul do céu se extinguisse por completo, sendo substituído por um lençol negro de estrelas. Minhas memórias daquele dia são fracas, mas algo naquele homem, que havia sido tão gentil comigo e eu nem perguntei seu nome, ficou gravado em mim. Seus cabelos negros, olhos castanhos e marcantes, seus lábios rosados e sua voz. Uma voz diferente, fria e metálica. Arrepiante, se pensar a respeito. Em seu tom de voz, parecia saber todos os segredos que este mundo dos mortais oculta com tanta destreza. Conversamos sobre a vida miserável que nos é proporcionada. No entanto, quando recordo das vagas lembranças daquele dia, percebo que apenas eu falei. Enquanto seguia meu caminho para casa, sendo observado pelo brilho das estrelas, olhei uma última vez para o beco apenas para descobrir algo: o homem não estava mais lá.

No dia seguinte, não me lembrava de como havia chegado a minha casa. Tudo o que eu tinha era uma dor de cabeça latejante e hematomas espalhados pelo corpo que iriam demorar a curar, além de um nariz cortado. Acordei estirado no carpete. Andei lentamente até o banheiro, ainda com os olhos semicerrados. Olhei para o meu rosto no espelho. Meus lábios rasgados da surra eram só parte da decoração da qual meu nariz torto fazia parte. Passei água em meus ferimentos, afinal, era o máximo que eu podia fazer. Voltei para a sala sem nenhum pensamento em minha mente. Havia mais um dia pela frente, mais um dia sem sentido. Eu estava quebrado, literalmente. O artigo do NOW havia sido recusado, o que diminuía ainda mais as chances de eu ter algum dinheiro para sobreviver nas próximas semanas. Minhas esperanças haviam ficado presas no fundo da garrafa de vodca me dada pelo estranho na noite anterior.

Não haveria resgate, não haveria futuro. Eu permaneci lá enquanto olhava para a lareira. Olhando para as cinzas, tão destroçadas quanto eu. Sem planos para o futuro, sem nada. Decidi tomar um ar e levantei-me da poltrona, seguindo em direção à saída. Ao abrir a porta, me deparei com um dia incandescente. Um dia incomum para o outono. O sol estava forte e banhava os pássaros constantemente empoleirados nas árvores. O céu promovia esperanças para uma vida nova e cheia de alegrias. Não para mim. Seja por sorte, ou puro destino algo que eu descarto totalmente -, resolvi abrir a caixa do correio naquela manhã. Lá estava um telegrama que me sustentaria por pelo menos mais algum tempo.

editora esta tarde. Forte abraço, Talvez aquele dia realmente fosse ser diferente dos outros

de minha vida. Talvez houvesse uma esperança perdida. Mas, talvez, apenas algo fosse dar certo. Com esse intuito, fechei a porta da casa e parti para o meu destino: a Editora Grant. Eu já havia publicado meu segundo romance fazia mais de um ano e ainda não havia visto grandes recompensas, exceto algumas vendas em livrarias e uma crítica sem sentido no jornal, mas ainda nutria algo. Foi isso que meu pai sempre me incentivou. Ele trabalhou duro a sua vida inteira. Minha infância foi difícil e ele falava que odiaria me ver do mesmo jeito que ele, tendo apenas o salário e sem saber se teria comida no dia seguinte. Acho que seguir meu sonho não me ajudou nesse sentido.

A editora ficava um pouco longe, mas não me importei de caminhar. O dia estava lindo, um dos melhores que eu havia presenciado naquele princípio de inverno que vinha para me corroer as entranhas. Desci a Ellyson, seguindo até a Harris e depois dobrando na Rice. Os edifícios daquela zona eram enormes. As

fachadas rústicas diferenciavam aquelas ruas inclusive a Groth de quaisquer outras. Vi-me cercado por uma multidão de estranhos. As pessoas caminhavam a passos rápidos, com destinos aleatórios. Passavam sempre focadas em seu próprio mundo. Exatamente como eu, ao avistar a editora. Entrei na portaria, passando por uma grande vitrine e sendo recebido por uma bela moça. Seus lábios rosados e olhos claros sorriam para mim por pura educação. Seus olhos estavam fixados em mim. Pigarreei pronto para falar o que queria, contudo, uma voz me interrompeu. Suspirei aliviado.

- Evan, que bom que veio tão rápido disse. Lá estava Anthony Grant, publicitário, editor e melhor

amigo de meu falecido pai. Ele sorriu, observando-me com aqueles olhos castanhos escondidos na cara bolachuda. Arrumou os botões de seu paletó que mal fechava em sua grande barriga redonda e então pôs as mãos em meus ombros, guiando-me para o seu escritório no andar superior após o primeiro lance de escada. O escritório de Anthony ficava em um dos vários corredores do segundo andar do edifício. Com uma mesinha bem no centro da saleta, alguns papéis em cima da escrivaninha e muitos livros nunca lidos. Era assim que Anthony passava os dias em sua editora. Ele convidou-me a sentar e eu aceitei.

Antes de sentar ele deu uma olhadela rápida pela janela da sala.

- Odeio alturas falou. Se não, eu poderia conseguir uma sala lá no topo. O homem foi feito em terra por Deus. Se ele quer assim, quem sou eu para dizer o contrário?

Sorri sem jeito, esperando que ele tocasse no assunto do porquê eu estar ali.

- Sr. Grant, você disse por telegrama que tinha alguma novidade sobre meu livro mais recente falei, olhando para aquele rosto cômico.

- Sim, Evan. Parece que um empresário que está abrindo uma rede de livrarias lá pela zona de Darby encomendou duzentos exemplares e pagou adiantado. Vou preparar um cheque com o valor de seus direitos, mas saiba que não é muito.

Tive um choque. Estava atônito. Duzentos exemplares haviam sido encomendados e pagos adiantados. Quando isso aconteceu? Por um instante, o mundo se desligou para mim. O que eu sentia era algo bom, como uma conquista. Para falar a verdade, nunca havia sentido algo semelhante.

Enquanto Anthony falava, sem parar, eu sorria para mim mesmo. Tomei o cheque em minhas mãos sem nem ao menos olhar o valor e deixei seu escritório, apertando sua mão e agradecendo por tudo. Passei voando pelo saguão, como uma águia que abate sua presa, e em seguida deixando o prédio. Lá fora, o mundo continuava a girar como um pião de madeira para os outros. Mas, para mim, ele ainda estava estagnado e havia dito bom trabalho. Finalmente, eu parei para olhar o cheque. Na verdade, não era ruim. Eu poderia viver o mês com tranquilidade se não resolvesse esbanjar. Meu pai. Ele era a primeira pessoa em quem eu pensava. Um triste sentimento quando lembrei que ele não estava lá para me dizer que aquele era o caminho certo. No caminho de volta para casa, eu apenas pensava nele.

Depois de todos os infortúnios em minha vida, incluindo sua morte, eu larguei de lado todas as crenças que um dia tive. Embora isso não devesse significar abandoná-lo. Mudei de rota, pegando a Rua Wilsom, ali perto. Depois de prédios imensos e uma multidão de pessoas, caminhar por lugar tão pacato parecia estranho. A rua era larga e possuía uma infinidade de casinhas coloridas e alegres. Ao chegar ao final, isso se tornava irônico quando um tom sinistro e sombrio tomava conta do lugar. Um imenso paredão e um portão negro deixavam entrevir os túmulos daqueles que um dia compartilharam este mundo com os vivos. O portão

estava aberto. Entrei com hesitação, andando com um sentimento de pesar no coração. Um sentimento que apenas os cemitérios nos despertam.

A visão de tantos túmulos me trouxe novamente aquele sentimento angustiante, um pesar doloroso que se recusava a deixar meu coração. Segui andando pelo gramado, um verde mais fraco do que qualquer outro lugar, indicando sempre que a morte morava ali. Sem nem ao menos pestanejar eu já havia decorado o caminho para o túmulo de meu pai. Seu funeral havia ficado gravado em minha memória para sempre. Apesar de ser um dia desolador para mim, o sol estava mais reluzente e brilhante do que jamais havia visto.

Enquanto as outras pessoas sorriam e cantavam, meu mundo se despedaçou em milhares de fragmentos que jamais iriam se recompor. Finalmente, depois de quase um ano sem visitar aquela peça de mármore que a pessoa a quem eu amava agora era, eu estava diante dele. Jonathan Doyle, amado pai. Uma lágrima correu pelo meu rosto quando me ajoelhei, ofuscando minha visão e fazendo-me olhar para o lençol azul acima de mim.

- Pai... balbuciei, desatando em lágrimas. Eu consegui. Finalmente consegui algo.

E assim, como se houvesse alguém ali, eu mostrei o cheque que havia ganhado. Eu esperava que ele simplesmente aparecesse sorrindo e me abraçasse. Ao invés disso, um zéfiro passou por mim enquanto eu me levantava, pronto para me despedir uma vez mais de meu pai. Novamente, eu entendia porque sempre demorava a voltar a visitá-lo. Eu desejava me agarrar àquela lápide com tanto ardor e apenas permanecer lá até que o tempo me consumisse e eu conhecesse a escuridão que ele agora conhecia, e por fim deixasse de viver.

Eu já estava pronto para ir embora e seguir meu caminho pelo verde amarelado que era o gramado do cemitério. Ao olhar para longe, vislumbrei alguém. Um homem. Gelei. Ele me observava.

Não posso descrever suas feições, pois mal conseguia discernir algo mais do que uma silhueta. Percebia que ele usava terno e gravata pretos com uma camisa perfeitamente branca. Um chapéu borsalino igualmente negro caía sobre sua testa. Seus olhos estavam cravados em mim, como os de uma víbora, isso eu sei. Por segundos, talvez milésimos, eu poderia jurar que ele esboçava um sorriso triunfal.

Quando eu pisquei, ele havia desaparecido. Um lapso nervoso de minha mente, talvez. Não havia

ninguém lá agora. Eu corri o mais rápido que pude, passando pelo portão de trevas do cemitério. Olhei ao redor e tudo o que podia ver eram pequenas casinhas coloridas e alinhadas, tanto próximas a mim como nos quarteirões seguintes. Minha visão girava ao redor procurando incessantemente aquele fantasma do portão, aquela criatura que muito provavelmente era fruto de minha imaginação fértil. Era tudo inútil. A única companhia que eu possuía naquela larga e vazia rua era o vento soprando e assoviando para mim. Eu começava a relutar de que havia tido uma alucinação.

Eu havia visto algo, tinha certeza. Segui andando pelo caminho que vim antes, olhando ao

redor com atenção, como se o perigo estivesse à espreita em cada dobrada sinuosa. Eu suava frio a cada passada rápida, e as pessoas começavam a surgir na próxima rua, de todos os lados. Uma multidão de vultos me atormentava e eu apenas desejava chegar em casa. Comecei a correr. Ofegava a cada pernada, mas não descansei até ver a porta de minha casa e entrar, fechando-a atrás de mim com força. O cheiro característico de bebida e cigarros chegou até mim. Caí sentado, e encostado na porta, ofegando e passando a mão nos cabelos molhados. Meu coração palpitava. Fechei os olhos por um instante, respirando fundo. Adormeci, caindo em um novo mundo de pesadelos.

Abri os olhos subitamente.

Eu procurava por algo, algo que jamais iria achar. Eu também jamais saberia dizer exatamente o que era. Eu estava suando e não sabia quanto tempo havia dormido de mau jeito encostado naquela porta. Só me lembrava do cemitério. Ri para mim mesmo. Agora, tudo estava claro que não passara de um sonho maluco. Comecei a rir desenfreadamente, como um lunático. Não conseguia acreditar que tudo havia se passado apenas em minha mente, apesar todas as sensações serem tão reais. De repente, algo chamou minha atenção. Era um sibilar suave e então o inconfundível barulho de gotículas batendo no vidro da janela. Levantei-me, caminhei lentamente até o banheiro. Despi-me e entrei no chuveiro, abrindo-o e deixando a água escorrer em meu corpo enquanto meus pensamentos vagueavam. Por quanto tempo dormi? Eu havia realmente vendido tantos livros ou isso também era parte do sonho maluco? Evan, você está ficando maluco.

Não, eu precisava saber. Saí do chuveiro e coloquei as primeiras roupas limpas que

encontrei. Corri para verificar meu casaco. Ao tocar no papel do cheque e puxá-lo do bolso cambaleei para trás. Era tudo real. O homem que me observava e desaparecia assim como a sombra quando é atingida pela luz. Eu já não sabia o que fazer. Deveria deixar tudo para lá? Foi o que fiz. Saí de casa, seguindo a passos largos pela rua enquanto a chuva fina molhava meu rosto. As ruas permaneciam quase vazias. Poucas pessoas passavam ao meu lado, apressadas, enquanto carregavam seus guarda-chuvas negros. Eu andava sem me importar com a chuva gelada. Depois de um longo caminho cruzando avenidas e ruelas silenciosas, cheguei a Rua dos Quatro Bancos, entrando naquele em que eu poderia descontar meu cheque.

Dias finais de outubro, chuva. Isso tudo resultou em pouca movimentação. Pude sair de lá com meu dinheiro em mãos. A chuva havia começado a cessar enquanto eu estava dentro do banco e eu

podia ver uma pontinha de sol no céu, que em breve iria começar a escurecer. Segui andando pela Rua Groth, imerso em meus pensamentos, sem olhar onde andava. Atravessei a Montenegro com a Sert, seguindo até o final da rua. Na Avenida Bourbon, a dois quarteirões de rua onde eu morava, eu passei em frente a uma

era um restaurante em horário de almoço. O cheiro forte de café chegou até mim, atraindo-me e me causando um forte desejo. Entrei, sendo visto pelas poucas pessoas dali assim que o sino em cima da porta tocou. A lanchonete era estreita e o balcão ficava logo à esquerda da porta. Mais atrás havia uma grande vidraça com uma xícara de café pintada e o nome logo abaixo. Havia uma mesa ali. Sentei-me e fiquei observando a rua até ser atendido. Uma garçonete veio até mim e pedi o café que ansiava junto com uma torrada.

Enquanto esperava, sendo atiçado pelo cheiro do café que nunca parava de ser feito, um homem sentou-se à minha frente na cadeira vaga. Olhei-o sem entender. Vestia-se com refinamento. Um terno preto com gravata impecavelmente lustrosa e um chapéu caindo em sua testa. O chapéu me chamou atenção. Por seu rosto, ele parecia ter um pouco mais de quarenta anos. Os lábios finos e vermelhos mostravam uma frieza e mais refinamento do que a roupa já destacava. Seus olhos negros passavam uma imensa história escondida e me causaram certo temor. Eu sabia já tê-los vistos, aqueles olhos, mas quanto mais eu esforçava-me mais sabia que nunca lembraria. Sua voz suave, um pouco calma e, com um timbre metálica, surgiu enquanto eu o observava.

- Gosto de seus artigos disse, de repente. - Me desculpe, por acaso eu o conheço de algum lugar?

resolvi perguntar com hesitação. - Não, Evan.

Olhei ao redor. Meus olhos procurando desesperadamente algo e o medo se aprofundando em minhas entranhas. Eu não o conhecia. Como ele poderia saber meu nome?

- Como sabe meu nome? fiz a pergunta óbvia. O estranho riu, com um tom zombeteiro em sua voz. Ele

passou a língua pelo lábio superior com rapidez. Pareceu-me ser uma mania.

- Todos sabem seu nome. Evan Doyle, o romancista. Eu ri, quase gargalhando. - Isso é algum tipo de brincadeira? O homem permaneceu olhando-me. Aqueles olhos negros

encaravam o fundo de minha alma. Eles me desconcertavam. Seu sorriso era ainda mais desconcertante quando ele o exibiu.

- Só queria lhe dizer que sou um fã de seu trabalho falou. - Afinal, quem é você? isso é tudo o que eu queria saber. O homem largou uma edição do jornal NOW em cima da

mesa. Ele apontou com seus dedos finos um artigo sobre o transporte público na cidade. Reconheci aquele artigo imediatamente. Os créditos do artigo estavam em nome de Anderson Vásquez. O nome ecoou em minha mente com um tilintar nervoso. Meus punhos fecharam bruscamente enquanto eu agarrei o jornal para ter certeza do que lia. Enquanto isso, como extrema calma, o estranho me observava. Meu rosto estava vermelho de raiva, e mais perguntas brotavam em minha mente.

Eu olhei para aquele homem diante de mim. - Como sabe que fui eu quem o escreveu? Lentamente, um sorriso formou-se em seu rosto. - Não deveria deixar as pessoas fazerem isso com você, Evan

respondeu. Ele levantou-se, retirando a carteira do paletó, e deixando

dinheiro equivalente ao meu pedido na lanchonete em cima da mesa. Piscou o olho e virou as costas, deixando aquele lugar. Eu

estava atônito, mas voltei a realidade quando corri até a saída. Ao chegar à rua, olhei em volta. Tudo o que eu via eram as pessoas caminhando normalmente, e os carros passando.

Aquele homem havia sumido. Evaporado como a água.

II. O Homem

O café já havia sido pago. Deixei aquele lugar com apenas um local em minha mente:

a sede do jornal NOW. Agora eu caminhava para lá com rapidez, ignorando carros que se atravessavam em minha frente, ignorando tudo o que havia. Eu apenas pensava no que aconteceria quando encontrasse Anderson Vásquez. No momento, seu sorriso me enojava, a lembrança de sua voz era mortal. Eu apenas desejava impetuosamente destruí-lo. Sentia meu sangue ferver, esquentar a cada nova passada que eu dava na rua estreita. O mundo havia desaparecido por completo para mim. Os prédios mostravam-se, escalando o ar para chegar até o céu, e então eu já os havia deixado para trás. Quase sufocado pelo calor que o sangue fervente me provocava, ofegante pelas incessantes pernadas nos quarteirões percorridos, eu vi o letreiro amarelo queimado surgir acima de mim. Meus olhos cerraram-se e eu passei a manga da jaqueta em meu rosto, limpando as gotas de suor. Entrei no prédio e escutei a secretaria me chamar enquanto eu sabia as escadas ainda com mais presa.

Subia e subia, sempre adiante, sem nem pensar no que iria falar nem mesmo no que iria fazer quando eu o visse. Eu apenas

sentia algo crescente dentro de mim. Algo que eu não conseguia controlar. Era uma fúria, um frenesi desenfreado.

Finalmente, lá estava. A porta de carvalho. Eu a abri com um empurrão e descobri Vásquez com sua

secretária pessoal. Ele permanecia atrás da mesa com os olhos fechados e gemendo como um gato selvagem enquanto o topo da cabeça dela subia e descia embaixo da mesa. Quando me viu seus olhos esbugalharam e a moça logo se afastou, correndo para fora do escritório. Vásquez se apressou em fechar a bragueta de sua calça. Ele levantou-se da cadeira ajeitando novamente seu topete ridículo com meticulosidade. Um sorriso brotou em sua face enquanto ele se aproximava de mim com qualquer desculpa esfarrapada.

- Sr. Doyle, o que faz... Não deixei que terminasse sua frase. No momento seguinte, ele cambaleava para trás,

segurando-se em sua mesa. Os lábios de um farsante com sangue escorrendo. Seu topete desarrumado novamente. Minha mão doía, mas eu queria quebrá-lo ao meio. Queria chutar sua cara patética e arrebentá-lo até pelo que não havia feito, mas algo em mim não deixou. Não era eu. Seus olhos me fitaram e aquele frenesi de antes diminuiu. Aquele passageiro sombrio que me possuiu embarcava novamente para os recônditos mais sombrios de minha alma. Eu baixei a cabeça e virei às costas, deixando o escritório com mais rapidez do que eu havia chegado até ali.

Meus pensamentos eram confusos e sem sentido. Eu queria matá-lo em um momento, matá-lo por ter me enganado de forma tão patética. Contudo, eu não consegui. Meu pai me odiaria por ter ao menos socado a cara de Vásquez. Minha boca estava seca, minha mão direita latejava e eu não conseguia raciocinar. Minhas mãos tremiam cada vez mais, e o ar gélido da cidade entrou em meus pulmões, fazendo com que eu respirasse novamente e voltasse ao mundo, recuperando meus sentidos uma vez entorpecidos pelo que

se podia chamar de ira. As pessoas envoltas em seus casacos negros, andando com pressa. Olhei para o céu, o tempo começava a se fechar. Naquele momento eu senti um vazio dentro de mim. Algo que precisava ser substituído. Eu já pensava claramente outra vez e não queria. Eu precisava desesperadamente beber.

Pensei no último bar que havia ido e como as coisas tinham se resolvido por lá. Talvez aquele local devesse ser riscado da lista. Que me importava? Existiam outros bares por aí. Resolvi seguir andando. Coloquei as mãos em meus bolsos na tentativa desesperada e frustrada de aliviar a dor que sentia em meu punho direito. Segui andando. Eu havia dado dois passos e escutei uma voz às minhas costas.

Eu jamais esqueceria aquela voz. Também não esqueceria o olhar que vinha acompanhado

dela. Era a voz do homem da cafeteria. Aplaudia lentamente e começava a falar algo.

- Bravo disse. Deveria fazer mais... Com um gesto suave, ele apontou para o jornal. Seus olhos

negros me fitavam, atravessando meu corpo e dilacerando-o. - Isso concluiu. Virei às costas e segui meu caminho. Ele não desistiria, eu

sabia, porque agora me acompanhava na mesma velocidade em que eu caminhava.

- Está me seguindo? perguntei. - Não sei. Estou? seus lábios se contorceram em um

sorriso estranho. Cínico, me parecia. Eu jamais saberia dizer. Um bom homem.

- Quem? Vásquez? eu segurava o riso. - Jonathan Doyle. Gelei. Eu estava parado na calçada, petrificado. Havia algo

que tomava conta de todo o meu corpo naquele momento. Medo puro. Ele espalhava-se por minhas veias, possuindo meu coração e

entranhando-se em minhas vísceras. Eu suava frio. As palavras me fugiram. Virei para aquela figura misteriosa que estava parado junto a mim.

- Você conheceu meu pai? Balbuciei. Aquele sorriso surgiu novamente, brotando de seus lábios

finos. - Eu não estava falando de seu pai, Evan. Estava falando de

você. - O que quer dizer? - Ele criou um bom homem. Gargalhei. - Quem é você? O que sabe sobre bondade? eu falava

rindo, gargalhando daquele homem com um terno caro e sapatos lustrosos.

Ele apenas me observava. Observava-me falar aquelas coisas inúteis.

- Você não me conhece comecei. Eu não sou bom. Eu não valho a perda de tempo de ninguém. Meu pai deveria ser grato por estar morto, assim não pôde ver o fracasso que criou.

Eu balançava a cabeça negativamente enquanto aquelas horrendas palavras sobre meu pai saíam de minha boca. Encostei-me à primeira parede que havia próxima de mim. O olhar do homem me alcançou. Estava diferente. Estava sereno como as nuvens no céu em um dia sem chuva, pacato e compreensível.

- Você diz, mas realmente não acredita nisso falou. Olhei para ele com arrogância. O que aquele homem

poderia saber? - Talvez você só precise de um pouco mais de fé em você

continuou. - Fé? gargalhei novamente, desviando do olhar

desconcertante que me fitava. Fé não vale de nada e nunca ajudará ninguém. Fé só serve para amenizar sua queda.

- E se eu fizer você pensar diferente? - Não vou pensar diferente. Apenas aceito as coisas do jeito

que são. - Talvez elas não sejam para ser. Deixei a parede que eu estava encostado e segui andando,

e rindo do que aquele homem falava. Era banal para mim. Eu também sabia que não me livraria tão fácil assim, porque lá estava ele novamente andando ao meu lado com a calma e a suavidade de um gato. Eu podia ver sua silhueta com o canto de meus olhos. Ele nunca estava totalmente sério. Havia sempre um sorriso de escárnio em seus lábios. Aquele sorriso começava a me repugnar. Resolvi voltar a combatê-lo, talvez em uma única chance de mandá-lo embora de uma vez por todas.

- Eu já lhe disse, não valho a perda de tempo de ninguém. Agora, por favor, me deixe em paz. Vá embora.

- O que você considera perda de tempo, é para mim algo mais do que fascinante.

- Existem milhares de infelizes por aí, vá ajudar um deles e deixe este aqui em paz.

Ele riu. Seu riso era seco e profundo, um pouco diferente de sua voz sempre meditada e quase metálica.

- Você não é um infeliz, apenas acha que é disse. - Que seja. Por que não vai direto ao ponto e me diz o que

quer de mim? Com um gesto calmo ele colocou a mão dentro de seu

paletó e pareceu procurar por algo. Retirou um cartão branco, qual me entregou. O branco era de um gelo claro e haviam números impressos em alto relevo. O cartão, assim como as roupas daquele homem, parecia mais refinado do que eu podia imaginar.

- O que devo fazer com isso? perguntei, com uma expressão de desentendimento.

- Venha jantar comigo amanhã às oito horas da noite. Em minha casa.

Fiquei em silêncio. Ele sabia que eu não aceitaria. - Muito bem, Evan. Como já deve ter visto, há um número

no cartão. Se resolver mudar de ideia, ligue e alguém irá buscá-lo. - Me buscar aonde? - Em sua casa, é claro. - Espere aí eu ficava cada vez mais intrigado, isso é certo.

Como sabe onde eu moro? Mas já era tarde. Não havia ninguém para me responder. Eu vi o homem

virar as costas e sumir da multidão de transeuntes que caminhavam na calçada. Fiquei lá, parado. Segurava o cartão entre meus dedos junto com uma variedade de perguntas sobre aquele homem. Perguntas que eu sabia que ele não se daria ao luxo de tentar respondê-las.

O final da tarde mostrava-se no horizonte aos poucos, com um crepúsculo mágico subindo em uma profusão de cores das mais variadas. Enquanto a noite não caía de uma vez por todas, o céu continuava claro. Aquela profusão de cores no céu era o equivalente de sentimentos em mim, todos agora rachados e postos em dúvidas por aquele homem singular com quem eu estivera há não muito tempo. Eu andava pela calçada sem rumo, a mente voando para outras partes do universo, as questões gritando dentro de mim, ansiando serem resolvidas. Jamais eram. E eu tinha convicção de que não seriam agora.

Naquele momento eu apenas desejava deixar tudo para trás e parar de pensar, mas eu não conseguia. As perguntas. As dúvidas levantadas. O sorriso de escárnio. Aquele sorriso. Tudo isso sempre voltava, voando para mim, como se eu sempre fosse em direção a um beco do qual não podia escapar. Até chegar a minha casa. O dia havia sido exaustivo. Eu sentei em minha poltrona enquanto olhava

pela janela da sala. Adormeci. O dia estava frio quando acordei, decidi colocar um pouco de lenha na lareira. Nessa iluminação, vi o cartão daquele homem cair do bolso de minha jaqueta. Relutei em pegá-lo, mas o fiz.

Talvez eu devesse visitá-lo. Ainda assim, eu estava vago sobre aquilo. Não conseguia

me decidir se era realmente a melhor das opções. Eu não estava totalmente certo se aquilo era o correto a fazer. Procurar aquela figura que estivera comigo tão poucas vezes e, mesmo assim, sua presença era um mistério inebriante. Impulsionava-me, de um modo que não conseguia explicar, a procurar por respostas. Impulsionava-me a procurar por ele. Aquele cartão brilhava com a luz que vinha pela janela, embriagando os números com seu brilho. Enquanto isso, eu andava de um lado para o outro em minha sala de estar, pensativo, tentando chegar a uma decisão razoável. As chamas crepitantes na lareira me impeliam a jogar o cartão no fogo e deixar tudo aquilo para trás. Eu deveria fazê-lo? Não. Havia algo mais forte que não me deixaria. Pura e simples curiosidade, um desejo ardente de saber mais.

Fiz minha decisão. Deixei minha casa com o cartão ainda em mãos. O vento

atacou meu rosto com selvageria, congelando-me o sangue enquanto eu caminhava apressado até a esquina de minha rua. As nuvens escondiam cada vez mais o sol de todos os seres. As folhas ao meu redor despencavam das árvores, sentindo uma morte lenta se aproximar com o inverno. Eu sentia o frio da manhã entranhar-se em meus ossos e cartilagens, pronto para corroer o que restava de mim. Alcancei o telefone público. Retirei do gancho e comecei a discar o número que havia no cartão. Algo em mim torcia para que aquele número não existisse ou não me atendesse, mas outra parte de mim deleitava-se com a possibilidade de respostas. Enquanto isso, a lógica em mim sabia que não haveria respostas, mas essa mesma

lógica precisava descobrir o que era tudo aquilo. Após minutos apenas com o barulho da chamada, pude ouvir uma voz do outro lado da linha. Eu não sabia a quem pertencia àquela voz masculina, mas tinha certeza de que não era dele. Não era daquele homem.

- Senhor Evan Doyle, eu presumo disse a voz misteriosa. - Sim, sou afirmei, esperando com ansiedade para

descobrir onde aquela conversa fiada levaria. - O patrão disse que ligaria em breve. Um carro estará à sua

espera no portão de sua casa hoje à noite no horário combinado. Tenha um bom dia.

E o barulho do telefone ficou mudo em seguida. Eu era realmente tão previsível daquele modo? Como

haveria de saber que era eu quem ligaria? Eu tinha de saber mais sobre aquilo, de alguma forma. Porém, ainda restava a tarde inteira de espera. E o que eu poderia fazer? Tinha algum dinheiro, estava desempregado e começava a odiar cada vez mais as ideias de romance que enchiam minha mente. Meu pai me influenciou a seguir carreira literária por causa dessas mesmas ideias que agora me atormentavam. Sempre gostei de ler, assim como ele, e sua influência em minha vida sempre foi forte. Eu o idolatrava. Em nossas conversas, eu lhe falava dessas ideias que apareciam em minha mente. Era mágico ter um dom assim e não poder fazer nada. Era o que ele falava. Então, um dia, ele me trouxe uma máquina de escrever. A mesma que ainda uso. Disse-me para seguir aquele caminho que eu queria, pois ele nunca conseguiu seguir o dele.

Mesmo sem poder esquecer aquelas ideias, eu estava me recusando a escrever. Era apenas para queimar outro rascunho no final de tudo. Assim saí de casa e fui perambular.

De volta para a praça, sempre ela. Eu a adorava em minha infância. Naqueles dias, ela era

repleta de animais silvestres enjaulados. Macacos, aves raras cujas cores perdiam-se entre si, fundindo-se e criando uma visão de

tonalidades entorpecentes. Agora, restavam poucos. O vandalismo se intensificava em uma geração imperdoável e até as pobres criaturas pereciam pelas mãos de jovens tolos. Comprei alguns pães antes de ir ver os cisnes que ainda viviam no lago da praça. Segui andando pelo calçamento de pedra, observando aquela torre que havia lá, se erguendo diante de mim, gigantesca e intocável. Uma torre construída há muitos anos e que vigiava toda a cidade, com propósitos hoje esquecidos. Passei por ela e dobrei a esquerda, atravessando em seguida uma ponte de pedra. Em um pequeno laguinho, onde a água esverdeada corria livre assim, como os cisnes languidos e despreocupados do mundo. Grasnaram entre si, como em uma competição, quando lhes lancei o primeiro pedacinho de pão. O mais forte, voluptuoso, com as penas brancas e límpidas, derrotou todos os outros e nadou diretamente para onde eu estava.

Eu permaneci apoiado no parapeito de segurança que havia no lago, retalhando o pão e jogando as migalhas na água. Os animais davam o bote, jogando-se uns nos outros para pegar a comida. Fiquei observando, absorto de tudo o que me rodeava. Esqueci-me de tudo o que eu era por alguns momentos. De todas as coisas que vivenciei. Mais adiante, uma mulher parou com sua filha para olhar os cisnes ainda atacando às poucas migalhas que restavam. Lembrei-me do garotinho loiro, o garotinho inocente que vinha com seu pai ao lago fazer a mesma coisa e as mesmas perguntas que a menina fazia.

Deixei aquele lugar. Trazia-me lembranças demais, memórias que eu não

precisava. Já tinha problemas suficientes para substituí-las. Também deixei a Praça Central, caminhando agora pelas ruas da cidade sem saber exatamente para onde ir. Entrei em um restaurante barato

vagar. Na rua, as pessoas pareciam tão felizes. Andavam apressadas, às vezes, conversavam com amigos. Sempre sorrindo. Nunca tive

amigos íntimos, talvez nem mesmo muitos amigos. Por alguma sina, talvez, sempre afastei as pessoas de mim. Fechava-me sem deixar que elas se aproximassem, e depois a vida acontecia. Cada um seguia seu caminho como deveria ser.

Exceto eu. Meu caminho era incerto, sem rumo definido. Jamais teve

um rumo. Os invernos chegavam, assim como o que eu iria presenciar agora, e tudo permanecia como sempre era. Eu voltava para a casa que meu pai me deixou, às vezes escrevia, às vezes não. Apenas seguia vivendo. Naquela tarde, eu seguia andando e vagando. Quase não me dei conta do horário. O sol permanecera escondido atrás das nuvens durante todo o dia, mas agora ia para o seu descanso e a lua começava a se mostrar. Quando dobrei a esquina da rua onde eu morava, avistei um carro negro em frente à minha casa, embaixo da árvore sem folhas que ali havia. A janela fumê, pouco aberta, e um homem de luvas encostado no capô. Aproximei-me do portão enferrujado de minha casa e pude ouvir a mesma voz do telefone às minhas costas. Era um homem calvo, esguio. Seu olhar profundo me fitava.

Na escuridão mal pude perceber que ele já era velho. - Senhor Evan Doyle, meu patrão o espera falou. Sua voz era mais rouca pessoalmente. - Ele veio? - Não. Espera-o em sua propriedade. O homem abrira a porta traseira do carro para mim. Na

escuridão da noite fria, eu nada podia ver lá dentro. Hesitante, fui em frente e entrei. A porta se fechou enquanto eu me ajeitava no banco de couro. Havia um vidro à minha frente, tão escuro quanto as janelas do carro. Ele me separava do motorista.

Eu nada podia ver quando o carro arrancou.

III. Morada dos Dragões

O carro seguia pelas ruas sinuosas e enegrecidas da noite. Entre mim e o motorista havia apenas aquela janela escura da qual eu era privado de ver o que quer que fosse, mas ao meu lado, eu podia ver as luzes dos postes passarem como relâmpagos enquanto o pé de chumbo me conduzia para um local totalmente desconhecido para mim. Ele ia cada vez mais rápido conforme a estrada parecia se tornar vazia. Logo, as luzes que eu antes via começaram a ser substituídas pelo cheiro de grama molhada e pelas árvores do outono com suas folhas mortas que caíam aos poucos, os galhos irregulares embrenhando-se uns nos outros. Eu mal podia ver esses galhos. A única iluminação eram as estrelas no céu, brilhando minusculamente acima de mim.

Recostei-me no banco de couro e, respirando longamente, senti uma náusea tomar conta de mim. O tradicional cheiro adocicado que emanava do carro e as curvas cada vez mais rápidas do motorista me deixavam enjoado. Abri mais a janela, deixando uma brisa gelada soprar em meu rosto, congelando meus músculos da face. Lentamente, eu vi o vidro que me separava de o motorista ser abaixado. Sua voz rouca ecoou pelo carro.

- Você é especial para o patrão falou.

- Ele tem um conceito estranho da palavra especial retruquei.

O motorista fitou-me pelo retrovisor com olhos zangados. Entendi imediatamente que ele esperava outra reação da minha parte que não escárnio.

- Por que diz isso? perguntei. - Ele o tolera. Curto e grosso. Então, o vidro voltava a se fechar, assim

como o velho motorista, que se focava na estrada sem dizer mais nenhuma palavra. Dei de ombros, recostando-me novamente no assento de couro negro até chegarmos. O local para onde fui levado era fora da cidade, ao sul, seguindo por uma estrada de barro. Ficava situado no Bosque Arriviera, totalmente deslocado da cidade. Não havia muitos registros de pessoas morando lá e os únicos tinham mansões em grandes terrenos e plantações.

Eu estava prestes a cochilar quando a porta do carro abriu e o motorista ficou parado, esperando a minha saída. Ele parecia uma grande estátua de mármore guardando um cofre, e junto com a escuridão tinha um ar grotesco, sórdido, algo terrível. Talvez fosse apenas minha imaginação. Os faróis do carro iluminavam um imenso portão, negro como a noite, e mais adiante, atrás daquele portão, uma mansão começava a se insinuar enquanto se fundia à escuridão. Apenas algumas poucas janelas deixavam ver sua luz acessa, indicando que existia alguém naquele lugar.

Desci do carro e o motorista fechou a porta. Os faróis se apagaram e eu não pude ver mais nada. Apenas ouvia minhas têmporas e o arrastar dos pés do homem. Ele abriu o portão, que rangeu com um som insuportavelmente estridente.

- Siga-me. Passei pelo portão. O motorista o fechou em seguida. Ele

tinha um andar tão incomum quanto todo seu jeito. Arrastava os sapatos até mesmo na areia que havia se tornado barro. Era quase

corcunda e sua aparência ainda mais vil de costas. Ele dava o contraste necessário para àquela mansão e aquele jardim da frente parecer algo tirado das histórias do Conde Drácula. Eu continuei seguindo o motorista pela grama embarrada enquanto avançávamos em direção a uma grande porta de marfim. Contornamos algo que parecia uma imensa fonte no meio do pátio, a qual eu não consegui ver totalmente devido às trevas que me envolviam.

Meu guia parou em baixo de um arco. Ele girou a maçaneta dourada e a porta se abriu em um

estalo diante de mim. Lá dentro a luz fraquejava suavemente, cintilante no cômodo que eu conseguia enxergar. Meu guia, o motorista, fez um gesto cortês para que eu entrasse. Passei pela porta e pisei em um carpete vermelho que havia na entrada da mansão. Meu guia fez outro aceno, pedindo que eu o seguisse. Andamos por um corredor estreito cheio de quadros pendurados na parede. A iluminação era fraca, mas eu podia distinguir nitidamente as figuras naqueles quadros. Eram dragões. Havia centenas deles, de várias cores e várias formas. Nas imagens eles se enroscavam uns nos outros. Em outras, protegiam seus ovos e seus ninhos. A visão era magnífica, porém, era por demasiado atormentadora. Em todos os momentos pareciam que os olhos me perseguiam. Os olhos coloridos, exatamente como eram os de gatos. Eu podia estar avançando no corredor, mas os sentia às minhas costas. Vislumbrei uma escadaria em espiral quando chegamos ao final do corredor, mas meu guia a ignorou e abriu outra porta. Uma porta mais simples, com entalhes dourados ondulados e irreconhecíveis à primeira vista, porém, ao prestar atenção, descobri o que eram.

Eram dragões outra vez. Aquele lugar começava a me dar uma sensação ruim, uma

angústia que eu não conseguia controlar. Assim como lá fora, eu apenas queria virar as costas e correr. Era tarde demais, porque agora estávamos em um salão de jantar. Uma mesa comprida de madeira

tomava o centro do cômodo. Havia dois pratos um em cada ponta da mesa e algumas velas. Nas paredes, a luz tênue das lamparinas bruxuleava, dançando vagamente pelo local, dando àquela sala o mesmo toque que toda a casa possuía. Trevas. Empregados vestidos de branco apareceram, servindo as duas taças que estavam ao lado dos pratos com uma garrafa de Château Lafite Rothschild. Eu nunca havia ouvido falar daquele vinho. Eu estava acostumado a beber vinhos baratos que causavam fortes dores de cabeça.

Foi então que ouvi passos na escada e vozes femininas. Pude ver pela fresta da porta atrás de mim duas mulheres loiras e um homem de costas. A porta se abriu e descobri que era ele. O homem. Novamente, vestido com seu terno impecável. Contudo, não se dirigiu a mim, mas sim ao meu guia naquele palácio medonho. Pude ouvir o que falou.

- Gilbert, por favor, acompanhe minhas queridas meninas até seus doces lares.

Sempre aquele sibilar suave que ele possuía ao dizer as palavras. Aquele homem era um pedaço de quebra-cabeça para aquela mansão. Ambos se encaixavam perfeitamente. O motorista, que descobri se chamar Gilbert, respondeu ao seu patrão com cordialidade e deixou o lugar. Somente depois o homem se dirigiu a mim. Seu olhar diretamente no meu.

- Fico grato que tenha aceitado meu convite para jantar, Evan. Profundamente.

Forcei um sorriso. Ele estendeu o braço indicando a cadeira em uma das pontas da mesa. Sentei-me. Tudo naquele local cheirava a dinheiro e poder. Diante de mim, a taça de vinho convidava-me a bebê-la, enquanto eu permanecia hesitante sobre isso. Queria me manter sóbrio naquela noite, estar consciente de tudo. Do outro lado da mesa, vi a cadeira ser arrastada com suavidade para trás e ele sentar-se em seguida. Aquele homem sempre parecia agir com leveza.

Ficamos em silêncio por alguns segundos. Ele permanecia de pernas cruzadas e seu olhar felino encrustado em mim.

- Então... quebrei o silêncio, desviando seu olhar. Nunca me disse o seu nome.

Ele sorriu brevemente. - Você pode me chamar de... houve uma pausa.

Morgan. Morgan. Agora aquela figura misteriosa e enigmática, de gestos

suaves e um olhar perturbador, possuía um nome tão intrigante quanto ele mesmo. E, novamente, entravamos em um total silêncio. Seus olhos cravejados em mim, perscrutando minha alma.

- Você está impaciente, cheio de perguntas. Entendo isso. Porém, tente se acalmar um pouco. Quem sabe deva beber um pouco de vinho. Prometo que não lhe fará mal.

Fui persuadido a tomar um gole daquele vinho. Seu sabor quase indescritível. Algo seco.

- Você ficou curioso, não? ele me fitava. Recostei-me na cadeira, encarando-o diretamente. Era

impossível. Suas feições, muito impassíveis, sem sentimento. Obriguei-me a desviar o olhar.

- Curioso sobre o quê? - As garotas. - Não respondi prontamente. Eu não devia ter ficado

olhando, sinto muito. Morgan riu. - Um homem possui desejos que devem ser supridos, você

bem sabe. E elas fizeram um trabalho extraordinário. Sou apenas mais um homem, não? ele permaneceu sorrindo.

Afirmei, acenando com a cabeça. Não sabia o que dizer. Ele continuou falando.

- Todos aqueles casos sem sentido e sem sentimento. Quanto tempo desde Clarice? perguntou, olhando-me.

Desde minha entrada naquela mansão até o presente momento, admito que não havia prestado muita atenção às palavras de Morgan. Minha ida até ali era uma mera extensão da curiosidade que ele exercia sobre mim. Uma fascinação medonha. Contudo, agora ele tinha minha total atenção. Como poderia ele saber aquele nome? A surpresa em mim era nítida e estava presa em minha expressão, entranhada.

Não foi necessário perguntar a ele sobre aquilo. - Moça adorável, Evan. Ela se comprometeria a você de

corpo e alma. Por que rejeitá-la? Ele ainda não havia tocado seu vinho, e eu fui obrigado a

virar toda a minha taça, sentindo aquele liquido seco descer em espiral pela minha garganta. Necessitava de álcool. Eu suava.

- Se sabe de Clarice comecei. Como não sabe dos motivos que nos separaram?

- Ah, mas eu sei respondeu. Apenas estou tentando confirmar. Os fatos são melhores quando eles vêm de sua fonte original.

Demorei em responder. Precisava pensar. Como ele poderia saber de tudo aquilo?

- Desculpe desconfiá-lo, Evan. Juro que jamais tive a mínima intenção. seu olhar parecia sincero, mas eu não podia ter certeza. Para confortá-lo, que tal jogarmos algo?

- O que está sugerindo? - Uma troca equivalente. E lá estava. Ele pegou a taça de cristal suavemente e com

uma lentidão frustrante. A bebida tocou seus lábios. Depois, ele balançou a taça e colocou-a de volta em seu lugar. Estava degustando. Quando voltou a falar, parecia preso em outro universo.

- Não gostei disse. Muito seco. Em um estalar de dedos aquela garrafa havia sido

substituída por uma de nome igualmente estranho. Chateau

O mesmo empregado que a trouxe abriu-a, serviu novas taças e levou as antigas. Esperei até que Morgan voltasse novamente para a realidade e prosseguisse com seu tópico anterior.

- Ah, claro. Como eu dizia antes, uma troca equivalente? permaneceu me fitando com um breve sorriso em seu rosto.

Peguei minha taça, tomando todo o vinho que havia nela de uma única vez. Com certeza melhor que o outro, mas igualmente ruim. O mesmo homem que trocara as garrafas me serviu uma nova taça.

- E como isto deve funcionar? sentia minhas mãos tremerem.

- Simples. Você me confirma algo que já sei e eu lhe respondo uma das muitas perguntas que o perturbam. Temos um acordo?

Pensei antes de responder. Por que não? Eu não tinha muitas escolhas.

- Parece que sim respondi. - Então começou Morgan. Por que rejeitou Clarice? - Conflito de interesses. Como sabia o nome de meu pai? Morgan pareceu ligeiramente perturbado. Uma expressão

ainda desconhecida para mim em seu rosto. Ele desconfiava de mim. Com razão, porque eu havia começado aquele jogo mentindo para ele.

- Evan Doyle, o romancista. Não foi difícil descobrir de que nome veio. Especialmente por seu pai ser irlandês. Por que mentiu para mim, Evan?

Era isso. Ele sabia que eu menti. Eu havia caído na rede dele e entrado em seu próprio jogo achando que poderia ganhar.

Mas como ele poderia saber? Eu precisava descobrir. Revidei à altura.

- Não menti, apenas não contei toda a verdade retruquei. Como pode saber todas essas coisas sobre mim?

Ele sorriu. Eu odiava cada vez mais aquele sorriso. - Sou um bom leitor, Evan Morgan bebeu um breve gole

de seu vinho. Pareceu apreciar mais esse. Afastou Clarice porque, na verdade, não queria que se apegasse a você, não é? Não queria que ela ficasse condenada ao que você chama de fracasso.

Eu estremeci. Morgan dizia ser um bom leitor, mas aqueles eram fatos

que não se pode simplesmente ler sobre alguém. Ele sabia de minha vida no passado. Sabia sobre Clarice. Como ele poderia saber tanto assim? Era algo inimaginável para mim. Ele não somente me lia como um livro aberto de páginas amarelas, ele expunha tudo aquilo que eu tinha até mesmo medo de pensar. Condenada ao que eu chamo de fracasso... isso era quase poético. Talvez fosse hilário para mim, porque em meu subconsciente, eu sabia que era a dura verdade que eu escondia por trás daquele relacionamento malfadado. Era um fato então? Eu a havia afastado para protegê-la? Protegê-la de... Mim? Nada mais importava agora. Ela já havia ido embora. Escorregado através de meus dedos, voado para longe como um pássaro que migra. O que me restava dela era a memória e a desgraça impregnada que a afastou com tanto êxito.

Nós ficamos em silêncio naquele momento. Passei os dedos pelas minhas têmporas, fechando os olhos calmamente. Eu havia me esquecido como era doloroso pensar naquela mulher que havia se dedicado a mim com tanta energia. Eu realmente a amava, mas só percebia isso agora. De que adiantaria perceber antes? Eu jamais poderia lhe dar a vida que merecia ter por direito: dinheiro, um bom lar. Todas essas coisas mundanas que as pessoas aspiram. Ela só teria sua beleza e um dia a perderia. Iria ficar casada com um

beberrão fracassado e isso já era demais até para eu aguentar. Aguentar a mim mesmo.

Durante aquele tempo em que eu estava absorto em pensamentos, só havia silêncio.

Eu precisava voltar para o jogo. Não perderia, não cairia de joelhos assim tão facilmente. Não me renderia para aquele espetáculo de lembranças assombrosas que Morgan me fazia reviver.

- Não achava que ela estava condenada a mim respondi. - Só não achava que poderia lhe dar tudo o que merecia,

não é? Forcei um sorriso. Ele sabia, sempre. - Minha vez. Quem é você, de verdade? eu tinha que

encará-lo, então perguntei. Morgan se recostou na cadeira, pegando a taça de vinho

delicadamente e bebericando com lentidão. - Achei que em breve essa questão me seria feita. Quem eu

sou, ou o quê, não importa aqui. Posso ser muitas coisas, Evan. Um amigo. Um estranho. Ou até mesmo alguém que muitos desejam não cruzar o caminho. Muitas coisas eu posso ser. Mas sabe o que realmente importa aqui?

Seus olhos se fixaram em mim, leram minha alma, me desconcertaram. Ele não piscou enquanto me observava e sua língua moveu-se lentamente, tocando o meio de seu lábio superior. Eu sabia o que ele iria dizer. Estava convicto. Assim, não respondi.

- Você falou, fitando-me com inquietante fixação. E quem você é?

Baixei meu olhar. Quem eu era, de verdade? Uma pergunta que ecoava em

minha mente. Nós questionamos sempre os outros. O mundo. Mas, e quem realmente somos? Eu não sabia a resposta e fui salvo por uma força maior, podendo me esquivar de responder. Um sino não tão distante tocou e uma porta se abriu atrás de Morgan com meia dúzia

de empregados vestindo branco e entrando no local. Eles traziam travessas recheadas de comida. Um porco inteiro com uma maçã na boca como jantares medievais foi posto sobre a mesa. No momento seguinte, o prato de Morgan era servido e em seguida o meu. Depois, Morgan despachou seus empregados. Esperei até que meu anfitrião começasse a comer para imitá-lo e ingerir minha refeição.

Peguei os talheres de prata e comecei a comer lentamente. Eu não sabia o que comia, com exceção do porco. Era um tipo diferente de arroz, algo que eu jamais provaria se não naquele lugar, onde tudo era belo e caro. Nós estávamos em silêncio, com apenas o ruído dos talheres em nossos pratos. Eu passei a observar o lugar enquanto mastigava, imaginando como Morgan havia conquistado tudo aquilo e esquecendo por um minuto a figura que se escondia por trás de um véu de perguntas sem respostas, becos sem saída, que ele era. Os mais diversos empregados vestidos de branco, vinhos que eu nunca havia ouvido falar, um motorista próprio. Quem era aquele homem? Morgan me perguntava quem eu era, mas quem era ele? Talvez eu nunca soubesse nenhuma das duas perguntas. Mesmo requisitando as respostas dele, eu sabia que ele jamais iria me responderia. Antes ele iria até o poço de minhas memórias e cavaria o suficiente até me destruir por completo.

Ele comia o jantar silenciosamente, sem levantar os olhos para nada. Às vezes, bebericava um pouco de vinho. Ficamos naquele silêncio durante algum tempo, então quando terminou o jantar, levantou os olhos vagarosamente. Fitou-me e cruzou as pernas novamente, como antes.

- Aceita um chá? perguntou enquanto passava um guardanapo branco em seus lábios.

Fiz que não. Sua expressão parecia de desanimo. - Não tomarei sozinho. Aceita sobremesa? perguntou. - Estou estufado, obrigado.

Seu maldito sorriso se desenhou em seu rosto. - Gostou do jantar, Evan? Apenas acenei positivamente. - Notei que ainda existem perguntas em sua mente. - Obviamente, já que você não diz o que quero saber

retruquei. - Talvez nunca esteja preparado para o que quer saber.

Contudo, vou saciar um pouco de sua curiosidade. Pude perceber seu olhar durante nosso jantar. Sou dono de uma fábrica de tecidos. Uma modesta companhia que rendeu uma modesta fortuna.

- Todos precisam de roupas, certo? Morgan acenou. - Comecei muito jovem a trabalhar - continuou fiz tudo

a partir de meu próprio esforço. Eu estava tão sozinho quanto você está agora. De repente, eu tive sucesso e aproveito o que eu tenho ao máximo. A vida pode ser curta.

- E qual é o nome da companhia? perguntei. Com a lentidão costumeira, Morgan colocou a mão dentro

de seu paletó e retirou do bolso interior mais um de seus cartões. Branco e brilhante com as letras em alto relevo como o outro. Contudo, era um pouco diferente do que eu possuía. Não havia números, apenas o nome Morgan em cima do nome de sua companhia. Li o nome em voz alta.

- Sagittarius, tecidos e companhia. Morgan assentiu. - Nunca ouvi falar eu disse. - Por acaso você é do ramo de tecidos e eu não sei?

retrucou Morgan. Ele riu secamente após o comentário enquanto eu

permanecia sério. O que poderia haver de engraçado sobre isso? Havíamos alcançado o silêncio mórbido que parecia querer se impregnar naquelas paredes com um desejo intenso. Não havia

nenhum ruído, nem vozes, nem mesmo o barulho de grilos. Era somente o silêncio em sua forma mais pura reinando entre nós. Junto, estavam os olhos de Morgan seguindo sem piedade cada movimento que eu fazia. Era como se ele estivesse sempre me analisando, tentando descobrir ainda mais. Tentando infiltrar-se em minha mente.

Devo admitir que funcionava. O enigma, tudo aquilo que ele representava, já estava

entranhado em mim. Estava no mais profundo de meus pensamentos. Pensamentos iguais a engrenagens, maquinando na busca por respostas. Ele era a mariposa e eu o fogo. Sabia que, mesmo voltando para minha vida comum, não o esqueceria. Tinha convicção de que ainda descobriria quem era ele.

Então o silêncio foi quebrado. Ouvi a primeira porta por onde entrei ser aberta e em seguida fechada. O arrastar de pés no carpete e a porta da sala de jantar foi aberta lentamente. Era o mesmo homem que havia me guiado para a mansão. Para aquele covil onde os dragões reinavam. Morgan permaneceu do mesmo modo como estava antes. Sentado, os olhos atentos a qualquer movimento e suas pernas cruzadas. Levantei-me, olhando para o motorista e depois para Morgan. Era minha chance de sair daquele lugar assombroso.

- Morgan, preciso ir. Devo ir para casa falei. Morgan assentiu. Ele levantou-se lentamente, andando até

mim com calma. - Ainda é cedo, Evan. Você poderia dormir aqui. Temos

muitos quartos sobrando. Se aquele lugar possuísse ao menos certa normalidade, a

ideia de não ter que percorrer uma estrada para voltar soaria tentadora. Mas, não. Eu não confiava o suficiente em Morgan e não suportaria a ideia de ter os dragões e seus olhares perseguindo-me, observando-me em suas trevas.

- Fica para a próxima menti. Morgan sorriu. - Irei cobrar ele disse. Eu sabia que sim. Confesso que, depois, desejei ter dito apenas não naquele

momento. Sabia que em uma próxima vez eu teria que dormir naquela mansão. Morgan não iria esquecer o que eu havia dito. Acho que ele nunca esquecia nada. Dirigiu-se a Gilbert, seu motorista particular.

- Gilbert... começou. - Sim, meu senhor? - Leve meu amigo Evan para casa em segurança. O motorista acenou com a cabeça, abrindo a porta da sala

de jantar e esperando por mim. Passei por ele, caminhando mais uma vez pelo corredor. O frio em minha espinha crescia gradativamente enquanto eu andava. Tentei seguir em direção ao grande portão de saída da mansão sem olhar, mas os dragões estavam sempre lá. Terríveis, ameaçadores, guardiões de segredos que somente a eles eram confiados. Atrás de mim, eu sabia que ainda havia um olhar ainda mais temível fitando-me.

Gilbert abriu a porta da mansão e eu passei, desejando correr em direção ao carro e fugir o mais rápido possível daquele lugar, mas não podia. Sabia que haveria uma cínica despedida de Morgan. Paramos no arco de entrada e aconteceu como previ. Ele aproximou-se de mim.

- Gostei de ter sua companhia esta noite, Evan e seu sorriso outra vez. Espero que possamos repetir.

Acenei, forçando eu um sorriso. Ele tocou meu ombro e se afastou, andando para o umbral da porta. Eu segui Gilbert pelo mesmo caminho de entrada, passando uma vez mais pelo portão negro e finalmente entrando no carro. Gilbert sentou no banco de motorista. Os faróis iluminaram a grande fonte que havia na entrada

da casa. A noite estava negra e eu não via nada. Via de relance as sombras de um vale conforme passávamos cada vez mais rápido pela estrada de barro. Encostei minha cabeça na janela e fechei os olhos.

Entrei em outro mundo.

IV. Dias Perdidos

A mansão dos dragões era agora apenas um lapso em minha memória.

Após o jantar com Morgan, adormeci no carro e fui levado para casa. Dormi como nunca antes. Parecia que minhas memórias e meu fracasso já não mais me atormentavam, mas isso não passava de uma cruel ilusão causada pelas aventuras fantasiosas que ocorriam em minha mente enquanto eu dormia. Viajava por mundos distantes e revisitava os lugares que me eram familiares. Não só os lugares, também as pessoas. Incrível esse poder dos sonhos. Eu via meu pai, jovem. Os cabelos loiros na altura dos ombros, a barba rala e seus brilhantes olhos azuis. Ele exatamente como eu hoje. Podia abraçá-lo uma vez mais, sentir seu perfume barato. Talvez eu desse até mesmo minha vida para um momento desses novamente em minha realidade.

Mais uma vez, ele foi arrancado de mim. Dessa vez não era a vida se materializando como faz

naqueles dotados de má sorte. Era apenas o sol na janela refletindo em meus olhos. O quarto simples, com apenas uma cômoda e um pequeno armário para guardar minhas roupas era agora o que eu via, era a realidade em que eu estava. Desejei com todas as minhas forças

voltar para aquele sonho. Mas isso era apenas o que ele era, um sonho. Um veneno que eu queria consumir. E foi desejando esse veneno que os dias começaram a passar.

O tempo livre era tortuoso e a máquina de escrever estava lá. Invocava-me a escrever algo. Eu adorava as palavras, de fato, mas sentia raiva pela vida a que me sentenciaram. Pensei muitas vezes em arrumar um verdadeiro emprego, mas a vontade de não o fazer e continuar tentando com meus livros era sempre mais forte. Que capacitações eu poderia ter? Não sabia fazer nada com exceção daquilo que sempre sonhei em ser: um escritor. Quase uma piada. Eu poderia limpar balcões de bares, aguentar os beberrões e falastrões o dia inteiro, mas não queria me submeter a isso. Não aguentaria.

Meu pai sempre me dizia para não desistir. E eu ainda não desisti. Não por completo.

Andei até a lareira, colocando os pequenos tocos de madeira e acendendo-a. O fogo iluminou e aqueceu o cômodo. O dia estava escuro e eu via o inverno cada vez mais próximo. O vento uivava lá fora atacando a todos que entrassem em seu caminho. O inverno não seria fácil, eu já podia sentir. Mas afinal, quando ele era? Fiquei parado diante da janela, observando as pessoas na rua. O fogo da lareira crepitava ao meu lado e aquecia aquele lugar, antes frio. Não havia claridade na rua, nada que me chamasse até lá, mas por algum impulso eu não podia ficar ali parado. Apanhei minha jaqueta e resolvi deixar a casa. Suspirei, assistindo minha respiração pairar no ar.

Na rua minhas mãos gelavam intensamente. Coloquei-as no bolso da jaqueta e passei pelo portão enferrujado, seguindo a rua e descendo a cidade. Segui pela rua cinco e desci a Avenida Bourbon. Mesmo com o vento gélido a cidade não parava. Os carros buzinavam com intensidade e as pessoas passavam por mim, atarefadas com pastas negras em suas mãos. Eu permanecia parado

pessoas sozinhas, pessoas acompanhadas. Todas com uma xícara fumegante em suas mãos.

Então eu me lembrei de Morgan. Duas semanas haviam se passado desde o jantar em sua mansão e eu não o vi novamente. Será que sumira, e finalmente atendido a meus pedidos? Ele não faria isso. Na verdade, eu estava me enganado. Sabia que ele não iria aparecer para mim. Ele esperava que eu fosse até ele e aquele era o lugar onde eu deveria achá-lo. Era o lugar em que havíamos nos encontrado. Hesitei por um instante e voltei a olhar a vidraça.

Talvez tudo fosse uma ilusão de minha mente. Com impulso, entrei. A pequena sineta da porta ecoou

pelo local delatando minha presença. Um homem de cabelos grisalhos, o dono do local, cumprimentou-me com um aceno. Retribuí, procurando uma mesa que estivesse vaga. Encontrei-a próxima da vidraça. De lá eu poderia observara a rua.

O mesmo homem que me cumprimentou veio me atender. - O senhor gostaria de algo? perguntou. - Um chocolate quente. O homem voltou minutos depois e deixou uma caneca de

chocolate com creme em cima da mesa. Fiquei apenas observando o creme derreter aos poucos. O barulho de uma cadeira sendo arrastada chamou minha atenção. Não precisei levantar a cabeça para saber quem era. A pessoa em minha companhia, sentada à minha frente, permaneceu quieta. Acho que estava outra vez com as pernas cruzadas. Ele tirou seu chapéu e o colocou em cima da mesa.

- Evan, não vai beber seu chocolate quente? Morgan perguntou.

Entre nós havia apenas as vozes das pessoas que ecoavam dentro da lanchonete e lá fora o barulho dos carros, perdendo-se. Eu estava em silêncio enquanto isso meu chocolate quente fumegava.

- Como você tem passado, Evan?

Morgan era sempre o mesmo, estava lá com um motivo exato, mas eu não era um bom leitor. Eu não conseguia deduzir ou adivinhar o que ele fazia ali.

- Estava melhor antes de você aparecer respondi com tom zombeteiro.

Ele riu brevemente. - Você teve um impulso que não conseguiu resistir e agora

zomba. Lembre-se que desta vez não era eu quem estava em seu encalço. Foi você que veio até mim disse.

- Eu não fui ao seu encalço. Estava com a boca seca e com frio. Queria beber algo.

Quando finalmente olhei os olhos negros que ostentavam o rosto magro de Morgan, aquele sorriso que eu tanto odiava brotou em sua face. Ele permaneceu de pernas cruzadas, olhando-me diretamente.

- Você sabia que eu entraria aqui comecei dizendo. Como poderia?

- Evan, já lhe disse. Eu sou um bom leitor. - Tudo bem, não me conte. O sorriso ainda estava lá. - Por que ainda hesita em confiar em mim? perguntou. - Quer mesmo saber? Você me causa arrepios e nunca me

diz nada além de charadas. Desta vez foi o seu olhar que pareceu imergir em algo.

Perdeu-se na rua. Com lentidão ele voltou a este mundo suspirando. - Meu objetivo não é lhe causar medo. Acredite quando o

digo que apenas desejo sua amizade. - Fácil dizer. Você sabe mais sobre mim do que eu mesmo. Eu podia ver que o assunto começava a aborrecê-lo

profundamente, pois seu sorriso cínico sumira dos lábios, e ele já não mais me olhava como de costume, dilacerando minha alma. Seu olhar tornou-se frio por um tempo. Eu era para ele como uma jarra

de cristal, transparente. Não havia segredos que ficassem escondidos. Acima de tudo, isso era o que me causava medo.

Os dedos de Morgan tocaram a mesa com calma, cada um relaxando lentamente após o outro. Então ele sorriu novamente. Eu estava confuso. O que poderia abalar aquele homem?

- Evan... Fiquei quieto. Morgan continuou. - Acho suas dúvidas muitíssimo razoáveis. Mas eu venho

querendo lhe falar algo durante todo esse tempo e para isso esperei que viesse até mim. O que acha de jantar amanhã, às oito?

- Na sua mansão? Estava esperançoso de que a resposta fosse negativa. Eu não

desejava nem mesmo por um minuto voltar para aquele lugar. Mais um jantar com Morgan analisando-me e expondo minhas terríveis falhas. Eu já tinha minha própria consciência para isso, e gostaria que fosse possível me livrar dela.

- Não, não em minha casa. No Klauji, Rua Grover. Imagino que não fique muito longe para você.

- Eu sei onde fica. - Vista-se como achar conveniente. - Por que escolheu um restaurante? perguntei. Morgan pareceu pensativo antes de responder. - Há uma pessoa que eu gostaria de lhe apresentar. Será

agradável, é uma promessa. Um medo tomou conta de mim novamente. Há alguém

que Morgan gostaria de me apresentar. Alguém de seu círculo de amizades? Alguém como ele? Outra pessoa como ele era tudo o que eu gostaria de evitar, mas eu não tinha muitas escolhas. Deveria aceitar o jantar, caso contrário, talvez o motorista silencioso de Morgan viesse em minha busca.

- Tudo bem, estarei lá respondi. Às oito? - Precisamente.

Eu sabia que Morgan jamais responderia, mas eu precisava perguntar. Necessitava.

- Essa pessoa que quer que eu conheça. É seu amigo? Morgan sorriu. - É alguém que conheci há alguns anos, em uma situação

desesperadora em sua vida. Pode-se dizer que nos tornamos amigos. Morgan tomou seu chapéu com seus longos e finos dedos,

colocando-o na cabeça em seguida. Levantou da cadeira e a pôs no lugar com demasiada calma. Ele depositou o dinheiro equivalente ao chocolate quente na mesa. Seus olhos fitaram-me com fixação.

Então ele sorriu e saiu pela porta da lanchonete. Fiquei um tempo observando Morgan andar, em meio à

multidão de pessoas, olhando através da vidraça. Em um momento, ele já havia desaparecido como sempre fazia. Fiquei sozinho novamente em meu próprio mundo de problemas. Permaneci observando agora a xícara de chocolate já fria enquanto pensava no jantar do dia seguinte.

Levei a bebida que tinha em mãos aos meus lábios e a bebi em nada para mim lá. Também não havia nada para mim do lado de fora. As árvores mortas estavam sempre lá enquanto eu andava, mais vivas em outras estações, e era um abrigo para mim em todos os momentos de desolação. Suspirei enquanto pensava que a vida se tornava complicada a cada novo dia que surgia no horizonte. A cada novo minuto que passava eu pensava no dia seguinte. O jantar que Morgan havia me convidado. Suas intenções e ainda quem estaria lá. Havia mais um dia inteiro pela frente, um dia inteiro sem respostas para minhas dúvidas e medos. Resolvi sentar em um banco na Avenida Bourbon e permaneci lá, apenas observando as pessoas passarem por mim.

Eu não aguentaria muito tempo ali.

O frio começava a me corroer quanto mais tempo eu gastava parado no banco da praça, então me levantei e mais uma vez segui meu caminho. Ia para casa, porque não tinha muitos lugares em que podia estar. Arrastei-me com passos lentos até dobrar a esquina de minha rua e reconhecer aquele local. Deixei o frio do lado de fora ao chegar à minha casa, agraciando quando o clima morno devido à lareira quase apagada me tocou no rosto. Sentei no carpete e estiquei as mãos em direção às cinzas, deixando o calor percorrer as extremidades de meus dedos quase congelados.

Deixei os pensamentos me dominarem uma vez mais naquele lugar quieto. O tempo, para mim, passava sempre com lentidão e quando pude ver a noite se apoderava do dia, e um cansaço tomava meu corpo. Comi o que havia em meus armários e fui diretamente para a cama, esperando que a manhã logo se mostrasse e então mais uma noite e assim pudesse acabar com aquela ansiedade que vinha me consumindo.

Infelizmente, a ansiedade sempre vencia. A noite foi cruel e horrenda. Minhas pálpebras pesavam e

eu desejava com ardor poder dormir tranquilamente, mas as perguntas nunca paravam. Poucos minutos eram aqueles em que eu podia mergulhar em meu veneno dos sonhos. Depois, eu via o sorriso de Morgan diante de meus olhos e as horas se passavam com a extrema lentidão que sempre me era reservada. Resolvi levantar quando a fraca luz do sol do outono bateu na janela e refletiu em meus olhos azuis.

Hoje seria o jantar no Klaus. O restaurante ficava dois quarteirões atrás de minha rua e

era um lugar cultural, diziam. Isso era papo furado. O local era tão excêntrico quanto o próprio Morgan, e também tinha pessoas como ele: engravatados, donos de companhias gigantescas. Eu não tinha muitas ideias do que vestir. Decidi deixar meu melhor jeans separado e outra jaqueta. A que eu sempre usava já estava gasta e

havia um rasgo na parte de dentro do zíper. Sem mencionar o furo do cigarro no bolso. Após deixar minhas mudas de roupas separadas, pensei no dia adiante de mim. Faltavam muitas horas até o jantar. O que eu faria nesse tempo? Então meus olhos percorreram o livreiro de meu pai. As lombadas brilhantes gritando meu nome uma vez mais. Era o que havia para o dia de hoje.

Aproximei-me e percorri aquelas lombadas com os dedos, puxando meu livro favorito e sentando na poltrona. Ao abrir, o cheiro das páginas chegou até mim com seu toque infinitamente mágico e eu sorri. O primeiro capítulo de Os Miseráveis eu já havia decorado há muito tempo. Aquelas letras e eu éramos velhos conhecidos. Quando comecei a leitura, as letras iam aparecendo diante de meus olhos e eles lentamente começaram a pesar e se fechar. Tudo escureceu para mim e o exemplar escorregou de meus dedos, indo parar no carpete. Quando acordei, estava imerso em trevas. A escuridão havia dominado meu lar e o livro dormia no chão, um lugar vergonhoso para ele. Senti ainda mais vergonha ao cair no sono lendo-o. Tomei o livro e o coloquei de volta em seu lugar. Eu não sabia que horas eram, mas após a terrível noite de insônia, imaginei que havia dormido demais e seria melhor me apressar.

Após um breve banho e vestir as roupas, saí. A rua estava fria e a escuridão era quase absoluta. Dobrei para a direita e segui pela Galloway, andando mais dois quarteirões e chegando aonde desejava. A grande fachada brilhante e vermelha do Klaus iluminava toda a sua entrada e lá de fora eu podia ouvir as vozes sussurrando dentro do estabelecimento. Permaneci lá fora imerso na noite escura.

Precisava pensar. Publicada em 3 de abril de 1862, a obra é um dos principais trabalhos do escritor francês Victor Hugo. Nota do autor.

Enquanto pensava se estava fazendo o correto, uma mulher estacionou em frente ao local com um jipe vermelho. A pintura era fosca e ele era um conversível com luzes em cima, além dos faróis. O jipe era simples, mas parecia ter uma espécie de elegância que só se explica ao vê-lo, e devo confessar que foi ele quem me chamou a atenção de início. Porém, quando sua dona saiu do carro, eu estava perdido. Ela andou em direção à porta do Klaus com o olhar desatento, seus cabelos escuros descendo em ondas pelo seu rosto anguloso e seus lábios carnudos e vermelhos. Sua face era inteiramente carregada por um ar sério e ao mesmo tempo divertido, como se a vida fosse uma grande brincadeira. Ela usava uma jaqueta vermelha e jeans preto, com botas sem salto. Não usava maquiagem alguma. Seu perfume me embriagou quando ela passou por mim voando e entrando no restaurante sem ao menos notar minha existência.

Por um momento eu fiquei decidido a encontrar Morgan, apenas para ver aquela mulher dentro do restaurante uma vez mais. Entrei sem hesitar e procurei aquele homem em meio a todos ali presentes. Encontrei seu chapéu em uma mesa. Ele havia levantado por um motivo desconhecido, porque ainda não me vira. Tornou-se claro quando vi quem estava à sua frente. Era ela. Seu sorriso era natural e ainda mais belo que ela, mas a fixação por sua beleza foi interrompida em minha mente pelas questões que começavam a aparecer. Agora Morgan exibia seu sorriso cínico e a cumprimentava como uma velha conhecida. Ele sentava-se novamente com ela à sua frente.

Era ela quem eu deveria conhecer? A mulher mais linda que eu já vi em minha vida e eu

deveria conhecê-la com a jaqueta menos esfarrapada que eu possuía. E na ótima presença de Morgan. Além de tudo, eu não deveria ser ninguém para ela. O que Morgan estava pensando? Sem delongas, Clarice e todo o fracasso de nosso relacionamento estava em meus

pensamentos. Não devo entrar na vida de ninguém. Não sou digno disso. Eu virei às costas e voltei pelo mesmo caminho de onde viera.

Encarei o frio mais uma vez, deixando-me levar embora. Embora para longe dali.

V. O Passado

Não pude dormir naquela noite fria que se sucedeu ao meu embaraço e fuga daquele restaurante. Cada vez que eu fechava os olhos, ela estava de volta em minha mente. Seu rosto perfeitamente esculpido pelos anjos. Seus lábios vermelhos do batom. Seu perfume voando e passando por mim com um doce chamar. Em todo momento ela estava em meus pensamentos mais profundos. Em minhas mais variadas e impossíveis imaginações e devaneios. Eu sempre a via.

Mais uma noite em claro, era aquela. Soterrado pela escuridão do quarto e por meus pensamentos. A noite era longa e eu já me rendia. Cada minuto em que meus olhos fechavam eu estava perto dela, mas a impaciência da noite mal dormida aparecia para me corroer. As horas passavam lentas. Somente muito mais tarde, eu vi o primeiro resquício de luz aparecer pela janela de meu quarto. Levantei com um salto. O dia batia à minha porta e eu sabia quem logo me procuraria.

Contudo, deveria eu ir até ele? Não. Eu estava saturado de tudo o que ele iria dizer. Seus gestos, seu modo estranho de agir. Mas, e a esperança de vê-la novamente? Também não. Eu não era digno de tal honra.

Deixei o quarto para tomar um breve café da manhã. Sentei-me na poltrona e fiquei olhando para a janela da sala. Lá fora, o vento uivava com força, condenando quem estivesse em seu caminho. E ali dentro havia algo me condenando também. Era o tempo, fluindo com lentidão e deixando-me ver as frestas de cada segundo. Os livros na estante, o fogo na lareira, a máquina de escrever esperando novas ideias inúteis.

Seu dono, na verdade, não passa de um miserável com ideias inúteis.

Envolto em pensamentos que vinham me atordoar, eu sempre parecia descansar quando a luz do sol batia em minha janela. Lembro-me disso. Meu corpo sempre relaxava quando estava sentado naquela poltrona. Acordei com uma batida forte, fazendo-me abrir os olhos. Outra batida. E outra. Alguém batia na porta. Suspirei, levantando da poltrona com lentidão e indo até a porta com raiva de ter sido interrompido em meu breve sono.

Ao abrir encontrei o rosto bolachudo de Anthony Grant. Ele esfregava as mãos vestidas em luvas de couro e soltava baforadas no ar. Ao me ver, soltou um grito de espanto.

- Evan, que bom que está em casa falou com falso interesse.

- Sr. Grant. É bom vê-lo. Como está? perguntei educadamente.

- Estou muito bem, Evan. Obrigado por perguntar. E como vai você?

- Passo bem, Sr. Grant. Malditas convenções sociais, pensei. Esforcei-me para

esboçar meu melhor sorriso. - Como vai Clarice? perguntei. - Vai bem respondeu secamente. Posso entrar? Está

cada vez mais frio aqui fora. Imagine o inverno!

Abri mais a porta, deixando Anthony passar por mim e entrar nos pequenos e vergonhosos cômodos que eu possuía. Ficamos em silêncio. Anthony olhava o lugar com certo pesar. Seus olhos percorriam a pequena poltrona, a lareira, até encontrarem a máquina de escrever e voltarem para mim.

- Este não lugar não mudou muito falou. Assenti com um gesto. - Enfim. Não vim aqui para falar sobre a casa de seu pai,

que Deus o abençoe. Receio que venho aqui a pedido de alguém. Só podia ser a pedido de uma única pessoa. Fiz um gesto

para que Anthony sentasse à mesa da cozinha. Ele o fez. Sentei à sua frente. Ele abriu seu casaco e retirou um comprido envelope amarelo com uma fita rosa prendendo-o para que não se abrisse. Eu não li de imediato os nomes que estavam na frente, estampados pelo selo. Apenas pude vislumbrar meu nome pendendo em um pequeno adesivo que havia na fita.

- Ela achou que você não gostaria de vê-la aqui começou Anthony outra vez com um tom seco em sua voz. Não fico feliz em lhe entregar isso, devido às circunstâncias em que tudo se resolveu com minha filha, mas não podia negar seu pedido.

Ele me odiava por Clarice, eu tinha certeza disso. Depois de me entregar o envelope, ele levantou da cadeira

e saiu pela porta, seguindo seu caminho através do portão. Entrou em seu carro, e eu o vi partir antes de fechar a porta da casa. Caí na poltrona. O envelope estava em minhas mãos. Eu já tinha certa ideia sobre o que aquilo se tratava. Eu o abri, e li.

Os noivos convidam você para o casamento na Igreja

Heisten às oito horas da noite do dia 20 de abril de 2002

De dentro do envelope escorregou uma carta com um perfume já velho conhecido meu. Era o perfume de Clarice Grant. Um aroma adocicado que eu amei por muitos anos e, apesar de me enganar como fazia naquele momento, eu ainda amava. Comecei então a leitura da breve carta. A caligrafia de Clarice deu-me conhecimento que a carta era dela e também me lembrou de outros tempos. Tempos lindos e diferentes dos que eu vivenciava agora.

Ainda sinto muito que nós não tenhamos conseguido aquilo que desejávamos tanto. Vou me casar na mesma igreja que seu pai ia e que tanto visitamos. Lembra disso? Sei que lembra, porque eu também. Sei que não deveria tê-lo pressionado sobre casar, especialmente após uma época tão difícil. Meu pai iria lhe conseguir o melhor dos empregos na editora, nós teríamos nossa casa com um gnomo de jardim e cheia de pequenos animais de enfeite. Lembra de nossas conversas durante a noite sobre isso? Conversávamos enquanto você me beijava com tanto carinho. Nunca entenderei completamente o que fez você mudar de ideia, mas saiba que sempre estará em meu coração. Drew... Ele é um ótimo homem, mas não é você. Desejo que você esteja naquela igreja quando eu casar. Quero vê-lo mais uma vez, quero ser sua amiga como um dia fomos. Esteja lá, por favor.

Suspirei ao término da leitura. Levantei-me da poltrona com lágrimas nos olhos e andei

pela sala, esperando aparecer, de repente, em outro universo. Com impulso, soquei o vidro da janela. Minha pele foi rasgada bruscamente enquanto os estilhaços caiam e meu sangue escarlate escorria pelo braço.

- Droga!

Eu permanecia segurando a carta, agora amassada e sem sua cor branca. Ela era apenas vermelha e nada mais. Com irritação, peguei alguns gravetos e joguei na lareira fazendo o fogo crescer. Precisava do fogo. Joguei a carta e o convite nas chamas. Segundos depois eles já eram cinzas negras perdendo-se no nada. Fiquei parado olhando o fogo consumir aqueles papeis até seus últimos resquícios.

Caí de joelhos no carpete e desatei a chorar como uma criança.

Minhas lágrimas escorriam sem freio enquanto eu lembrava as palavras de Clarice naquela carta. Toda a vida que eu podia ter tido. Mas eu não podia tê-la. Minhas lágrimas continuaram caindo, fundindo-se ao sangue morno que escorria de minha mão.

VI. Esquecimentos do Licor O vento uivava com força enquanto entrava pela janela

quebrada da sala e minha mão latejava com os cortes recentes causados pelos cacos de vidros que se esparramavam abaixo da janela. O sangue já havia se entranhado no carpete. Eu permanecia encostado na parede, observando meus desgostos passarem em frente aos meus olhos como um filme massacrante passa a seus espectadores, ansiosos para desligarem aquelas imagens que os atormentam. Eu não podia desligá-las. Era minha vida. Minha maldição.

Nas chamas ardentes, a carta de Clarice há muito já havia virado puras cinzas, assim como seu convite para uma cerimônia a qual eu não desejava nem por um minuto fazer parte. Cada letra, cada palavra em sua carta estava gravada em mim e parecia uma faca sendo atravessada em meu coração. Essa faca estava estilhaçada lá dentro e eu não poderia remover os pedaços tão cedo.

O sangue que escorria em minha mão comprovava isso. Fui até o banheiro. Meu reflexo no espelho me irritava.

Meus cabelos estavam cumpridos, caindo atrás das orelhas, emaranhando-se em certos pontos como um redemoinho. As lágrimas escorreram para minha barba. Abri o armário e retirei esparadrapos, enrolando-os em minha mão ensanguentada. Depois disso eu saí de casa.

Não precisei andar muito para chegar onde queria. Segui andando a rua, sempre com o vento batendo em meu rosto. Meus olhos tentando manterem-se abertos, mas falhando terrivelmente. A cada rajada de vento minha mão latejava e eu implorava para finalmente chegar ao meu destino e deixar tudo lá. Dobrei na

ui a rua, entrando em um beco malcheiroso. O letreiro de um bar piscava sem muita força enquanto dois motoqueiros fumavam um cigarro do lado de fora, embaixo da

cobertura do bar. Seus olhares estavam distantes e nem notaram minha presença quando passei pela porta. Mais um bêbado tentando esquecer sua vida medíocre, eles devem ter pensado.

Sentei no balcão e comprei uma garrafa da vodca mais forte. A cada novo momento eu bebia um pouco. A bebida passava pela minha garganta como ácido, apagando os meus pensamentos com uma nuvem negra de fumaça. A garrafa não chegara à metade e minha visão já estava aturdida, meus olhos embaraçados. Mas eu continuei bebendo cada vez mais. Bebi até encontrar o demônio que se escondia após todo aquele liquido. Eu deixei o bar, cambaleando e segui andando pelo beco até alcançar o final da rua. Vomitei na calçada e depois segui andando, como se estivesse sem destino. Segui pela rua, escorando-me nas paredes apenas para tomar impulso e seguir andando. Sempre seguir andando. Seguir andando.

Segui andando até cair no início da Rua 4. Eu podia ver minha casa de lá.

Havia um carro preto estacionado há poucos metros, na calçada. Um homem que eu conhecia abriu a porta e saiu. Vi ele se aproximando e me segurando pelos braços, levantando-me. Lembro-me de algo que ele disse sobre o patrão querer falar comigo. Depois disso, senti o carro em movimento enquanto eu estava no banco de trás, estirado.

Eu desmaiei enquanto Gilbert dirigia em silêncio.

VII. O Jardineiro e as Maçãs

Uma dor latejante cravou-se em meu crânio quando abri os olhos de repente. Eu estava deitado em uma cama larga, entre lençóis de seda. O teto em abóbada era de um salmão fraco e o quarto possuía algumas janelas. A luz entrava fracamente, com os raios do sol aproximando-se de soslaio. Minha cabeça doía fortemente e minhas memórias nada mais eram do que simples fragmentos perdidos. Eu não conseguia saber onde estava e não conseguia lembrar. E então veio um desespero se apossando de mim. Levantei-me o mais rápido que pude, junto com uma ânsia de vomito que começou a subir em mim, travando-me. Pude me controlar a tempo. Eu precisava saber onde estava, era mais importante. Andei cambaleando até uma porta de carvalho e toquei na maçaneta dourada e fria. Ao abrir a porta, uma lufada de vento me atingiu e eu me deparei com um corredor estreito. Ao olhar para a esquerda, via o corrimão de uma escada. À direita, apenas o desconhecido. A curiosidade, sentimento impetuoso que aflora nos momentos de menor necessidade, levou-me a este desconhecido que parecia tão fascinante.

Quanto mais eu seguia pelo corredor, vendo as portas iguais a do quarto onde eu estava, mais um som começava a se

distinguir. Era o clássico soar de um piano. Leve e sombrio, parando e voltando. Tocando com rapidez até o término de uma melodia. Quando terminava, recomeçava novamente. O som era mais alto a cada novo passo que eu avançava no carpete vermelho que cobria o assoalho de madeira. Por fim, deparei-me com o que parecia ser uma infinita galeria. Havia estantes e nelas pude ver as lombadas de couro dos mais diversos livros que poderiam existir. Naquele lugar, o piano era mais forte e ecoava com mais clareza.

Segui até o meio daquele lugar também uma biblioteca e o encontrei tocando. Sentado em uma bancada de madeira, seus

dedos corriam de tecla em tecla até fazer aquele som magnifico que eu vinha escutando desde antes. O chapéu preto permanecia deitado em seu colo e ele parecia não ter notado minha presença. Na parede, além do piano, havia um quadro que tornou a embrulhar meu estomago e fazer de Morgan o homem que ele realmente era. Nem a mágica música vinda das teclas poderia modificá-lo.

A melodia cessou. Com lentidão, Morgan tomou o chapéu e o colocou em

seus cabelos, virou-se para mim e fitou o fundo de minha alma como sempre fazia. Aquele sorriso de escárnio surgiu em seus lábios. O quadro permanecia lá, lembrando-me quem ele era.

- Bom dia, Evan. Sente-se melhor? levantou-se da bancada andando em minha direção.

- Não mais respondi com um sorriso forçado. Ele não disse nada. Meu olhar estava fixo no quadro e

Morgan o acompanhou, virando-se e apontando. - Você gosta? perguntou. A maioria das pessoas não

gosta. Acham ofensivos aos olhos, mas é uma obra magnifica. Morgan começou a andar em direção ao quadro e eu o

acompanhei. A figura de um homem agora era mais clara para mim. Estava nu, de costas, em cima de uma mulher grávida banhada em uma luz resplandecente. O homem era uma criatura mista com

dragões. Sua calda descia até o chão e seus chifres lhe conferiam toda a aparência grotesca que deveria possuir.

- Achei que você fosse do tipo que teria um Raphael falei em minha ignorância artística.

Pude ver a expressão de desgosto no rosto de Morgan. - De modo algum desprezo as obras de Raffaello Sanzio,

mas suponho que se refere a São Jorge e o Dragão. Estou correto? Fiz que sim. - Terrível. Nos mostra toda a ignorância dos homens em

alguém que é considerado santo. Dragões são criaturas maravilhosas, assim como as que realmente existem. E os homens as matam do mesmo modo como São Jorge parte para decepar a cabeça do dragão. É banal, uma ofensa aos seres que não são como nós. Quer dizer que devemos aniquilar tudo aquilo que é diferente? Não, Evan, eu jamais abrigaria tal coisa em meu lar. Seria demasiado perturbador.

- Por que tem essa? Talvez a mesma interpretação pudesse se ter dela.

Morgan aproximou-se mais da pintura enquanto mantinha as mãos nas costas.

- O Grande Dragão Vermelho e a Mulher Vestida de Sol retrata outra coisa. William Blake pintou para reproduzir um Grande mestre da pintura e arquitetura de Florença durante o Renascimento Italiano. É

considerado um dos grandes mestres do Alto Renascimento ao lado de Leonardo Da Vinci

e Michelangelo. Seu nome é comumente referido como Rafael, porém, devido à excentricidade Morgan pronunciou o nome completou. Nota do autor. Na verdade, São Jorge parte para afundar a lança no peito do dragão, caído. Nota do autor. 2ª Edição. Poeta, tipógrafo e também pintor inglês, William Blake viveu em Londres durante uma

época marcada pelo Iluminismo e a Revolução Industrial. Ilustrou obras como a Divina Comédia e seus trabalhos mais famosos são as pinturas que retratam o livro do Apocalipse.

A obra apresentada por Morgan já foi adaptada em outras mídias, principalmente no livro

Dragão Vermelho, de Thomas Harris. Nota do autor.

acontecimento no livro do Apocalipse. Ela passa outro sentido. Todos podemos ser monstros algumas vezes, Evan. Uma besta não é tão diferente de nós. Ela sempre terá seus momentos de escuridão...

Bruscamente ele se virou e passou andando por mim. Fiquei parado, observando o grande Dragão Vermelho e então me virei. Morgan estava parado na soleira da entrada da galeria à minha espera. Apressei meu passo e me juntei a ele. Antes de seguirmos pelo corredor, ele sussurrou algo para mim:

-...Mas são os momentos de luz que importam terminando a frase antes deixada no ar, sumindo em seguida pelas escadas em forma de espiral.

Morgan era uma chave que jamais abriria nenhum cofre. Era um quebra-cabeça impossível de montar. A cada nova conversa, novas peças sempre apareciam e eu jamais sabia o que ele era de verdade. Um filósofo, um homem isolado, a criatura do quadro de William Blake escondendo-se entre os humanos? Jamais poderei dizer certamente o que ele era além de um completo mistério.

Ao atingirmos o andar de baixo, eu segui pelos cômodos que eu já havia conhecido antes. Andamos até a sala de jantar, onde Gilbert e uma das cozinheiras esperavam pelo patrão. Havia frutas das mais diversas em cima da mesa e um café da manhã completo. Morgan acenou para que eu sentasse. O fiz. Precisava me sentar, pois minha cabeça girava e a dor em minhas têmporas não me abandonava.

- Gostaria de um café? perguntou. Fiz que não. - Seria bom comer algo depois de ontem disse Morgan. - Não, estou bem. Morgan degustava o que parecia ser um pudim com frutas

cristalizadas. Enquanto isso havia um assunto que eu necessitava mencionar. Martelava minha mente com a mesma força da dor que eu sentia. Abri os lábios em diversos momentos de prontidão para

falar, mas as palavras sempre me escapavam como o ar quando falta aos pulmões. Morgan, como sempre, sabia. Após terminar sua refeição ele olhou em meus olhos outra vez.

- O que vem lhe pesando a consciência, Evan? perguntou-me sem desviar seu olhar de mim.

Suspirei hesitante. - O jantar. Eu não apareci. Você entende. - Sinceramente, não o compreendo. - Pensei que você era um bom leitor. Ele sorriu. Seus lábios moveram-se suavemente, então

pararam. Morgan observava uma das fruas em cima da mesa com profunda atenção. Era uma maçã. Seu vermelho gritante brilhava com os pequenos fragmentos de sol que entravam pela janela da cozinha. Com seus dedos longos, ele a alcançou e perdeu-se nela. Ficou em silêncio pelos minutos que se seguiram, apenas observando a forma arredondada que a fruta possuía. Parecia haver um universo inteiro naquela pequena bola vermelha.

- Evan, sua frustração o tornou despreparado naquela noite começou Morgan, quebrando o silêncio que antes havia. Talvez

você ainda não esteja pronto para aquilo, ainda não. Sei também que sente medo, mas acredite quando eu lhe digo que não haveria um julgamento.

Até aquele momento sua frase soou como todas as habituais coisas que Morgan sempre dizia. Fiquei quieto observando-o largar a fruta em seu lugar e depois levantar-se com rapidez. Ele andou até a janela com lentidão, como sempre fazia. Cruzou os braços atrás das costas enquanto um lençol de luzes cobria seu rosto, iluminando-o em momentos e depois deixando as sombras voltarem para sua morada.

- Temos um lugar para ir Morgan falou sem olhar para mim. Há alguém que você deve conhecer.

Novamente alguém para conhecer. Seria ela? A mulher que ficou em meus pensamentos? É um sentimento estonteante e ao mesmo tempo vago pensar em alguém que não se sabe nada. A cada minuto, ela estava em minha mente. Seus lábios, sua silhueta, seu rosto. Tudo perfeitamente gravado em minha memória, que escondia uma raiva por não ter falado com ela. A raiva de não poder.

Eu nunca seria nada além de alguém que ela não notou, parado do lado de fora de um restaurante.

Porém, agora eu não teria escolha. Não poderia fugir. Morgan me levaria até lá. Eu iria diretamente ao poço da vergonha. Com esse pensamento em mente, levantei da cadeira. A dor de cabeça me lembrou imediatamente de toda a estupidez que eu tinha em meu corpo. Com um gesto passei a mão em minhas têmporas na esperança inútil de que isso me curaria.

- Não há ninguém para eu conhecer falei. Eu tenho que ir embora.

- Você pensa errado a respeito dela antes mesmo de conhecê-la. Você a julga, como pensa que ela fará com você ao vê-lo. É certo?

Olhei para o chão por um breve momento. - Então é ela? perguntei temeroso pela resposta. Morgan demorou a responder. Lentamente, ele se virou

para mim. Fitou-me como sempre costumava fazer. Seus olhos lendo os sentimentos mais profundos que jaziam lá, enterrados em minha alma por mim mesmo.

- Não, Evan disse com calma. Quem? Quem mais Morgan poderia conhecer? A

curiosidade em mim era sempre um sentimento incessante e atormentador. Morgan passou por mim acenando para que eu o seguisse. Andávamos pelo corredor onde as figuras de dragões deleitavam-se com a solidão que podiam esbanjar. Sempre atentos estavam seus olhos, seguindo-me com exatidão precisa.

Em breve estávamos fora da mansão. O sol bateu forte em meus olhos, que comprimi no mesmo

momento. O clima havia se transformado rapidamente, como sempre fazia, como uma lagarta fugindo assustada de sua crisálida, pronta para conhecer a imensidão do mundo em que vive. Uma imensidão que jamais imaginou existir. Além do portão negro e da imensa fonte de um dragão cinzento com a água representando o fogo sendo cuspido de sua boca cheia de dentes afiados, havia o Mercedes que me transportara na última noite para a mansão de Morgan. O condutor do veículo não se via.

Segui andando pela estrada de tijolos, passando pelo grande dragão, seguindo Morgan. Ele andava à minha frente com calma. Cruzamos o portão e o cheiro de grama molhada veio voando do imenso bosque que cercava a morada de Morgan. Meu anfitrião sentou no banco de trás do carro e eu o imitei, sentando ao seu lado. Gilbert já esperava por nossa chegada. Ele ligou o motor e depois o carro começou a se mover, deixando para trás uma vez mais aquela mansão negra e sombria. A morada dos dragões. Pelo retrovisor pude ver a mansão diminuir cada vez mais enquanto avançávamos pela estrada de terra. Ela diminuía, tornando-se apenas um pequeno ponto no planeta até eu finalmente perdê-la de vista.

Agora só havia as árvores uma vez verdes. Eu via apenas seus galhos quebradiços, entortando-se em caminhos que apenas ela conhecia. O caminho era longo, sempre longo, mesmo para a velocidade que nos movíamos. Uma velocidade que parecia extremamente rápida, mas na verdade não era. Éramos apenas mais um ponto no universo, assim como a mansão de Morgan se tornou em minha vista. Em breve chegamos a cidade, mas Gilbert alterou o curso. Pelos curtos momentos que estive perto de minha casa eu pude ver as pessoas caminhando na rua e aproveitando mais um dos poucos dias de sol do outono. Saíamos da cidade.

Seguíamos para Darby.

Era o que chamavam de balneário. Ao seu fim, havia uma pequena cidade e a praia, sempre lotada de pessoas. Mas até chegar lá, havia a costa do oceano, colinas e verde. Os imensos prédios começavam a sumir e o campo vinha substituí-los com maestria. Campos límpidos no verão. Não precisamos percorrer muito para a água já ser avistada, tocando a borda da areia e das pedras como um beijo roubado. Havíamos seguido um caminho até então desconhecido para mim. Eu podia ver uma grande casa perto dos rochedos no alto da colina onde um pequeno rastro de fumaça deixava a chaminé. A vista parecia perfeita daquele sobrado que vivia no isolamento que apenas os campos podiam fornecer, vendo toda a extensão do mar. O carro se aproximava cada vez mais do local.

Aproximou-se até finalmente parar. Gilbert permaneceu em seu assento. Morgan abriu a porta

e desceu, acenando para que eu o seguisse. Estávamos diante de uma casa de dois andares. Eu fiquei imediatamente estarrecido com sua beleza simples. Uma grande vidraça servia como porta de entrada e deixava todo o primeiro andar a ser visto por fora. As janelas eram pequenas e discretas e ficavam em ambos os lados da casa, permitindo que, de uma sacada que ali havia, se tivesse uma vista perfeita para a imensa rede azul interligada que se tornava o mar e o céu. O sobrado era pintado de salmão.

Graças ao mar, eu começava a sentir frio, mesmo com o sol que aquele dia dispunha. Lá dentro não parecia viver ninguém, mas as imensas árvores floridas e bem cuidadas do lado de fora diziam o contrário. Como elas poderiam estar floridas no outono? Das mais diversas cores, elas bruxuleavam diante de meus olhos em uma multidão de tonalidades de vermelho púrpura até um fraco rosa salmão. Elas estavam vivas e com frutos em pleno outono, esbanjando uma jovialidade que nem eu mesmo tinha. Estavam em quase todo lugar naquele terreno de alguém desconhecido. Estavam

próximas ao sobrado, espalhadas pela colina e juntas da plantação que havia mais além.

As macieiras eram a vida daquela montanha. Eu estava em transe com a própria natureza. Eu, um

homem acostumado com a fumaça poluída que os arranha céus produziam cada vez mais. Acostumado com a ira generalizada da humanidade e o barulho dos meios de transporte mais modernos que existiam. Agora eu estava em meio ao simples, em meio ao que já estava aqui quando nascemos. E havia o barulho surdo do oceano, fazendo uma viagem infinita para a praia e recomeçando tudo novamente, voltando outra vez à sua morada.

De repente algo estava despertando em mim diante daquela visão de esplendor. Uma sensação que eu não sentia há algum tempo. Uma ansiedade crescente e uma energia revigorante que se espalhava por minha alma sem pedir licença. Já a conhecia desde minha juventude, mas não podia abrir a porta para ela outra vez. Não havia me trazido nada de bom além de sentimentos venenosos.

E então fui despertado de meu encantamento. Morgan exibiu seu sorriso e deu um passo adiante em

direção à vidraça. Ela abriu-se lentamente, como se a pessoa por trás dela já não tivesse mais força e qualquer movimento se tornava um feito inaudito. Apenas mais um objetivo a ser alcançado nesta vida cheia deles. Eu finalmente pude ver o homem a quem pertencia aquele lugar que eu começava a invejar em meu íntimo. Era um homem diminuto, com as costas curvadas e as mais diversas rugas abrindo as portas da idade. Suas mãos tremiam levemente, e ele sorria para Morgan com entusiasmo. Usava um blusão de lã com uma camisa azul por baixo, calças pretas e pantufas peludas em seus pés. Já não tinha mais cabelo e usava um quepe para disfarçar.

Ambos os homens à minha frente se cumprimentaram com um aperto de mão afetuoso. Morgan dirigiu-se a mim em seguida.

Dei um passo à frente. Com seu modo pacifico de ser, Morgan me apresentou.

- Sr. Nortier, este é Evan Doyle disse. Evan, este é um grande amigo meu, Nortier Jackson.

O homem idoso que me olhava com um sorriso estendeu a mão e eu a apertei com amabilidade.

- É um prazer conhecê-lo, rapaz. Qualquer amigo do Sr. Morgan é meu amigo também falou com uma voz rouca.

Eu poderia ter dito o mesmo, exceto que não considero Morgan meu amigo. Ficamos alguns segundos em silêncio. Silêncio que foi quebrado por Nortier.

- Ora essa, é uma estupidez ficar aqui parado. Vamos entrando.

E assim o fizemos. O local era tão acolhedor quanto parecia. Na pequena

saleta, uma mesa redonda com um cesto cheio de pequenas frutas. Algumas verdes e outras de um vermelho vívido. Eram todas maçãs. Ao entrar, e após a vidraça ser fechada novamente com esforço por Nortier, eu senti a temperatura de meu corpo mudar imediatamente para um calor agradável e suave. Eram as chamas que crepitavam silenciosamente na lareira em frente a duas poltronas reclináveis beges. Uma cor que me lembrou de imediato as areias da praia lá fora. Nortier acenou em seguida, para que nos sentássemos à mesa redonda. O fiz, após Morgan, que ao mesmo tempo retirava seu chapéu.

- O tempo está uma maravilha, não é Sr. Morgan? falou Nortier com um tom de voz tão afável quanto seu sorriso era acolhedor.

- De fato, meu amigo. - Vocês gostariam de ficar para o almoço? Estou

preparando um pouco de salpicão com maçãs fresquinhas.

- Sinto muito, mas uma inconveniência no trabalho requer minha presença em breve e Gilbert me espera no carro, contudo, o bom Evan poderá lhe fazer a companhia que deseja Morgan olhou-me de esguelha.

Eu poderia jurar que ele mentia com descaro. Nortier me fitou com seus olhos castanhos desbotados. - Me acompanhará, garoto? perguntou. Como eu poderia negar? O som das ondas lá fora. A lareira

e um lar aconchegante gritavam por mim. Se eu virasse as costas para tudo não encontraria nada à minha espera quando voltasse para os escombros que tinha a audácia de chamar de casa.

- Claro que sim respondi na tentativa de achar o tom mais educado que podia.

Após a minha resposta, Morgan levantou-se. Ele já pegava seu chapéu. Ao se retirar da mesa tocou meu ombro. Fiz um gesto brusco para livrar-me de seu toque. Um gesto inútil. Tudo o que Morgan era e fazia ficava gravado em mim como se fossem cicatrizes de labaredas flamejantes que um dia tocaram minha pele. Ele despediu-se de Nortier com um aceno de cabeça e abriu a vidraça sem dificuldade, descendo pela colina até onde Gilbert o esperava.

Depois disso Nortier colocou pratos de porcelana na mesa e me deixou só por alguns minutos.

Eu observava a humilde morada daquele gentil senhor. Apesar de todo o conforto que parecia ter, era simples. Algumas pinturas enfeitavam as paredes, todas as pinturas de um único artista cuja assinatura eu tentava inutilmente decifrar. No consolo da lareira, retratos de uma vida antiga presa nas memórias daquele homem solitário que vivia distante de tudo. Todos os retratos de eras perdidas, tempos já distantes de todos nós. Todos de uma única memória que um homem solitário se sente bem ao recordar.

Todos de uma única mulher.

Ela era linda. Apesar de todas as fotos que exibiam sua jovialidade serem em preto e branco, eu podia ver que ela era loira. Em sua maioria, seus cabelos caiam em sua fronte com graça, e seu sorriso parecia o brilho mais distante das estrelas. Possuía uma pinta em cima dos lábios. A voz do senhor às minhas costas me despertou e acabei percebendo que eu segurava um dos retratos enquanto estava de pé em frente à lareira.

- O que define um bom homem? perguntou à meia voz com um tom muito calmo.

Com um pulo saí de meu transe e coloquei o retrato no lugar.

- Desculpe, eu não queria mexer em nada... comecei a falar imediatamente com um suspiro.

Um riso suave escapou dele. - Não se preocupe. Agora, sabe responder minha pergunta? - Sinceramente não falei, ao pensar no que ele havia me

perguntado. O que define um bom homem? - Fazer boas coisas? Nortier servia um pouco de salpicão em ambos os pratos

que estavam na mesa. Enquanto o fazia, nós ficamos em silêncio. Tinha para mim que ele havia esquecido completamente o assunto do qual estávamos falando. Depois ele sentou-se à mesa. Fiz o mesmo.

- Uma boa mulher disse, fitando-me. - Uma boa mulher? perguntei sem entender. - É um pensamento simples começou ele. Um bom

homem, um verdadeiro homem, ele se devota a sua companheira que ama. Se ela é realmente aquela que mereceu seus votos e juramentos e que deve passar a eternidade ao seu lado, eles tornam-se apenas um. Não apenas em mente, mas em sentimentos. E se ela o escolheu, deve ser porque é um bom homem.

- Eu devo ser um crápula. Ele riu. - Você ainda tem muitos anos à sua frente. Suponho que

essa mulher especial ainda não apareceu, do contrário não estaria sentado aqui perdendo seu tempo com um velho como eu disse ele enquanto comia seu salpicão.

Eu sorri. Com uma pequena garfada levei a comida aos meus lábios. O sabor da maçã invadiu meu paladar e a comida era algo divino para o meu estômago, vazio desde a véspera. Nós seguimos comendo em silêncio, mas não por muito tempo.

- Você cozinha muito bem, Nortier falei tentando manter a boca fechada. Eu estava com fome.

Ele agradeceu com um gesto. - Cortesia dos ensinamentos da melhor apontou com o

garfo o retrato daquela mulher misteriosa para mim. - Quem é ela? perguntei com atrevimento. Desculpe.

Se me permite a pergunta, é claro. - Não se preocupe, garoto. Gosto da sua curiosidade. Ela

era minha esposa. - Era? talvez eu estivesse indo longe demais. - Faleceu há quase dez anos. O silêncio novamente, mas ele não estava sozinho dessa

vez. Veio acompanhado do sofrimento. Eles andam sempre juntos, de uma forma ou de outra. Uma dor como um punhal envenenado. Eu a conheço. Todos nós a conhecemos em certos momentos de nossa vida. Ela sempre anda de mãos dadas com o silêncio. Eu a via em mim sempre que juntava, como se fosse vidros estilhaçados, as memórias de meu pai. E agora eu podia ver no rosto daquele senhor enquanto contemplava o retrato da esposa. Agora eu podia entender melhor suas palavras sobre uma mulher única. Aquela era a mulher única dele. A que o definiu com um bom homem.

Falei a única coisa que podia ser dita.

- Sinto muito. E me senti mal. Sempre odiei ouvir como as pessoas sentiam muito.

Palavras que não expressam nada mais que uma conduta social, palavras que carregam consigo um sentimento, muitas vezes, falso. Palavras ditas, muitas vezes, por indiferentes. Às vezes aquele silêncio dolorido pode se mostrar mais verdadeiro. Contudo, eu realmente sentia muito, ao dizer aquilo. Seguimos almoçando em silêncio. Talvez fosse o melhor a fazer. Minhas perguntas causariam mais dano do que eu realmente pretendia. Porém, aparentemente, Nortier não conseguia. Ele já havia vivido no silêncio por tempo demais. Eu podia ver em seus olhos que minha presença parecia uma dádiva para ele. Alguém com quem ele realmente podia conversar, e não de uma forma sinistra como Morgan. Apesar de tudo eu não sabia nada da relação deles.

- O Sr. Morgan me disse que você é um jovem escritor. É verdade? perguntou Nortier com entusiasmo.

Dei de ombros. - Não mais tão jovem. E eu tento ser, mas simplesmente

parece que as coisas não acontecem. - Paciência. Você ainda é novo. - Eu sei, mas quem sabe não deva acontecer. - Mas não é o que você deseja? indagou-me ele. Pensei por alguns segundos antes de responder. A resposta

estava lá, no fundo de minha alma. Não era o que eu desejava ser. É o que eu sou.

- Acho que é a única coisa que eu realmente quero. Nortier sorriu. Ele já havia terminado seu salpicão. - É um prazer conhecer um escritor. Tenho uma grande

biblioteca lá em cima. Minha esposa adorava literatura. Bem, ela adorava qualquer forma de arte. Seu estúdio é como uma galeria em volta de livros Nortier recolhia os pratos.

Depois disso, ele deixou o local e se perdeu por um dos outros cômodos da casa. Não demorou a voltar. Andava cabisbaixo, como se estivesse desanimado. Trazia sobremesa servida em outros pratos.

- Torta de maçã falou. - Deveria ter perguntado se gostava antes de trazer.

- Não é um problema respondi. Meu pai me ensinou a gostar de tudo um pouco.

- Deve ser um bom homem. Assenti, sem responder. A torta de maçã estava tão deliciosa

quanto o almoço preparado por aquele cozinheiro veterano. - Como eu dizia continuou ele. Minha esposa era

grande fã de Jane Austen. É provável que tenha uma coleção completa lá. Bem, você deve estar ficando cansado de mim, garoto. Um velho como eu tomando todo o seu tempo.

- É um prazer estar aqui. Eu não faço nada de útil com meu tempo, acredite.

Enquanto eu comia, pensava em algo. Havia uma pergunta a ser feita, como sempre. Ela começava a exigir uma resposta em minha mente. Estava na ponta de minha língua, pronta para ser feita. De repente, alguém bateu na vidraça que servia de entrada para o sobrado.

Virei-me para olhar. Era Morgan. Sempre com sua calma ele olhava as águas. Nortier

levantou-se e abriu a vidraça, deixando Morgan entrar. - Sr. Morgan disse Nortier com animação. Voltou para

nos presentear com o prazer de sua companhia. Morgan retirava o chapéu com seus dedos languidos

enquanto colocava o pé para dentro da simples moradia de Nortier. Proeminente escritora Inglesa nascia no século XVIII, autora de livros como Orgulho e

Preconceito, Razão e Sensibilidade, Persuasão e outras. Nota do autor.

Seus olhos perderam-se no fogo da lareira por um breve momento e então retornaram ao universo, mirando o rosto envelhecido de nosso anfitrião.

- É uma pena, Sr. Nortier. Outra vez haverá de me desculpar.

Nortier comprimiu os lábios. - Diz que não poderá nos acompanhar na torta? Para meu alivio Morgan balançou negativamente a cabeça.

Mas o que ele fazia ali? - Desta vez vim buscar Evan. Receio que o tempo fechará

em breve. Nortier acenou positivamente. - É claro eu podia sentir um leve tom de angustia na voz

de Nortier, um tom que implorava por uma única companhia. Eu estava justo dizendo ao garoto como deveria ser chato fazer companhia a um velho como eu.

Morgan olhou diretamente em meus olhos. Por segundos, sustentei com firmeza seu olhar, mas tornou-se impossível. Seus sentimentos, sua mente, suas aflições, estava tudo bloqueado. Eu sentia como se um punho de ferro estivesse com minha alma em sua mão e lentamente, por pura maldade, me esmagasse pouco a pouco. Deste modo me obriguei a encarar os retratos da amada esposa de Nortier.

- Esperarei você no carro, Evan disse Morgan enquanto pronunciava meu nome com firmeza.

Não respondi enquanto me levantava. - Ele deveria tentar sorrir de verdade uma vez ou outra

falei enquanto olhava Nortier. Nortier fitou-me forçando um sorriso. Percebi

imediatamente o respeito que ele sentia por Morgan. Um respeito que apenas eu parecia desafiar.

- Talvez, garoto. Talvez respondeu.

Nortier sabia muito mais sobre Morgan do que eu. Estava certo disso.

- Não devemos exigir muito do bom homem. Ele piscou para mim, estendendo a mão em seguida.

Apertei-a. - Garoto, foi um prazer conhecê-lo. - Digo o mesmo. Depois de soltar a mão de meu anfitrião, segui diretamente

para a saída da casa, passando pela vidraça aberta. Pude ouvir Nortier suspirar lentamente atrás de mim. Ele procurava palavras para me dizer algo, sabia disso. Parecia não conseguir encontrá-las.

- Garoto... Parei do lado de fora da casa sentindo o vento em meus

cabelos enquanto olhava aquele senhor diminuto. - Não tenho intenções de devolver aquela torta eu disse

com zombaria. Ele riu. Uma leve tosse o atacou, mas pareceu se recuperar

rapidamente. - Não, não... fez uma pausa. Você... Acha que poderia

vir aqui amanhã? Eu gostaria de uma ajuda com algumas coisas. - Se eu poderia vir? Nortier fez um gesto com a mão para que eu esquecesse.

Estava prestes a fechar a vidraça com o olhar pregado no chão. - Deixe para lá. Só vou tomar mais do seu tempo. - Nortier? Ele olhou novamente para mim. - Estarei aqui pela manhã Falei. Pude ver que ele evitava um sorriso. Segui em direção do carro, onde Morgan já me esperava.

Minutos depois estávamos partindo novamente.

VIII. As Luzes de Natal

A viagem de volta para a cidade foi mais curta do que a ida da mansão de Morgan até o sobrado de Nortier nas colinas de Darby, contudo, havia sido igualmente monótona. Muito em breve já atravessávamos a Bourbon. A avenida estava cheia de pessoas, como sempre desde que eu me lembro durante toda a minha vida. Pessoas vagando, pessoas dormindo embaixo de lojas, pessoas entrando na estação de metrô. E havia aqueles que diferente de mim iam com um destino certo. Lembro-me de uma cena em que três jovens andavam com gorros vermelhos e guitarras em suas costas. Eu os vi passar enquanto o carro avançava cada vez mais. Mal percebi a data em que estávamos.

No dia seguinte a neve começara a cair outra vez. Estávamos na primeira semana de dezembro, e eu podia

ver os funcionários de lojas na rua se esforçando para colocarem os enfeites natalinos nas vidraças. Seguindo pela Bourbon dobramos na Variant e eu pude vislumbrar a Praça Central. A árvore branca superava as verdadeiras árvores em matéria de altura e brilhava com incandescência fictícia, que apenas as luzes de mentira podem proporcionar. Ela fundia suas cores e a cada novo segundo proporcionava novos brilhos e tonalidades. Cores embriagantes que

fazem seus sentidos perderem-se no que todos chamam de espírito natalino.

Meu espirito natalino morrera há anos. O último natal que presenciei esse espirito foi o último

natal que viveu meu pai. Mas não o vi viver porque eu desejava, e sim porque ele desejava. Adorava o natal mais do que qualquer festividade, mais do que o próprio aniversário. Foram momentos demasiadamente doloridos. Minha esperança parecia ser igual à da chama quando uma vela é colocada ao vento. Meu pai emagrecia a cada novo dia, e no final desse dia, seu coração fraquejava cada vez mais.

Perdido em meus pensamentos, em meu passado fúnebre, não percebi quando o carro parou. A fachada de tinta descascada de minha casa e o vidro quebrado esperava por mim. Abri a porta do carro e senti o ar gelado tomar conta de meus pulmões enquanto eu seguia andando até o portão de madeira. Atrás de mim, o vidro do carro descia. Olhei para trás uma última vez antes de entrar em casa.

- Nos veremos em breve, Evan falou Morgan enquanto fitava-me com a firmeza típica dele.

Balancei a cabeça. Queria deixar tudo para trás. Busquei as chaves no bolso da jaqueta. Com dificuldade, consegui abrir a porta. Eu deveria consertá-la, porque ainda ficaria preso do lado de fora uma hora dessas. Mas não hoje. Hoje ainda não havia nada a fazer. Eu estava apenas cansado após aquele dia. Andei como um moribundo até o quarto e caí em meus lençóis velhos, retirando os sapatos e fechando os olhos. Deixando outro mundo dominar minha mente. Pareceu, para mim, que eu dormia havia séculos quando a fraca claridade do inverno bateu em meus olhos. Pensei que já deveria ter uma cortina em meu quarto, mas assim como todo o resto, eu continuava adiando. Levantei-me em um salto, disposto a encarar o dia que haveria pela frente. Saí de casa. Lá fora havia o frio, sempre a me atacar.

Subi a rua, pegando a sétima com a nove. Era o ponto de ônibus mais próximo de minha casa. Algumas pessoas já esperavam ali, sentadas em um banco. Deveria ser cedo. Elas aparentavam estar indo para o trabalho. O silêncio sempre acompanha esses lugares, mas decidi quebrá-lo. Um homem parado ao meu lado estava com um relógio prateado nitidamente visível. Usava um terno antigo e carregava uma maleta.

- Poderia me informar as horas? perguntei com a voz da manhã rouca e os dentes rangendo de frio.

Os olhos do homem levantaram-se do chão. Jamais entenderei a familiaridade que vi naqueles olhos escuros, mas interpretei como a familiaridade que às vezes vemos em pessoas estranhas. Algo além da compreensão. Ele olhou diretamente para mim e depois para o seu relógio.

- Oito e meia Respondeu com indiferença. Nortier iria me matar. Quem bate na casa de alguém tão

cedo? O ônibus estacionou para que todos entrassem. Era este que eu pegaria. Com destino a Darby e muitas outras paradas. Subi e paguei ao motorista minha passagem. Sentei ao lado de uma mulher ruiva que aparentava estar grávida, embora tivesse minhas dúvidas. O ônibus começou a se movimentar, balançando, como sempre costumava fazer, seguindo pela ladeira até dobrar na próxima rua. O silêncio fez meus olhos começarem a pesar, até que cedi ao desejo e cai em um breve sono. Acordei de sobressalto, olhado pela janela com esperança de não ter perdido meu destino. Eu estava próximo, descobri.

Finalmente, alguns minutos depois, eu estava lá. Desci do ônibus quando ele parou. Somente eu havia

descido. O vento soprou forte em meu rosto, trazendo diretamente para mim o aroma do mar. O senti penetrar com gentileza em meus pulmões como se eu tragasse um cigarro. À minha frente havia uma subida íngreme. Segui andando por ela em direção ao pequeno

sobrado de Nortier nas colinas. Meus joelhos curvaram-se a cada nova passada, como se possuíssem sua própria alma pronta para desistir. Segui subindo até chegar. A fumaça escapava pela chaminé com lentidão, demonstrando que não havia pressa nessa vida. Ela se fundia ao ar, viajando e sumindo, dando lugar uma nova camada sua conforme o tempo avançava.

Parecia um bom sinal. Talvez ele já estivesse acordado. Aproximei-me da porta de vidraça. Eu não via ninguém,

apenas o brilho das chamas na lareira que me fazia refletir na vidraça. Eu estava descabelado. Parecia um maluco que havia dormido na rua. Fechei a mão e com nós nos dedos, bati. Pude ouvir o som ecoar lá dentro. Ninguém apareceu. Bati outra vez. Depois eu ouvi um suave arrastar de pés, movendo-se com lentidão. Nortier vestia suas pantufas peludas e vinha até a vidraça com aparente calma. Cerrou os olhos para ver quem estava do lado de fora. Com seu suéter vermelho e calça cinza de pano, sorriu ao me reconhecer. Novamente vi seu esforço espartano para abrir a entrada transparente da casa e me deixar entrar. Um bafo morno tocou meu rosto com delicadeza e graça. O doce calor produzido pela lareira chegando até mim. Nortier ainda sorria com entusiasmo.

- Bom dia falou. Não somente seu sorriso era o mais entusiasta como

também era possível sentir uma alegria contagiante em sua voz. - Entre, está frio aqui fora. Entrei e, novamente Nortier fez esforço, dessa vez para

fechar a morada. Por algum motivo ele não conseguia mais. Aquele pequeno homem tentava medir esforços com algo muito maior que ele. Apurei em ajuda-lo e então trancamos o vento do lado de fora.

- Obrigado, garoto. Como pode ver os bons dias já se foram... Falou, forçando um riso.

Embaraço era nítido em seu rosto. - Desculpe vir tão cedo. Acordei você?

Nortier riu novamente, dessa vez para valer. - São nove da manhã. Um rato velho como eu já está

acordado há três horas. Eu imaginei que você não aparecia tão cedo, já que os jovens gostam de dormir infinitamente.

Dei de ombros. - Vizinhos barulhentos menti. Então, no que posso ser

útil? Nortier assentiu. - Quão bom você é com trabalho braçal? - Não saberia dizer. - Já começou a se arrepender de ter vindo, não é? Sorri sem dizer nada. - Certo falou Nortier enquanto ria. Venha comigo,

garoto. Encaramos a rua. Começava a nevar. O branco

aglomerara-se nas lindas macieiras que Nortier cultivava. Nortier andava lentamente com as costas curvadas e os olhos cerrados pelo vento do norte, que sempre trazia consigo um grito de lamúria infernal. Seguimos reto pelo caminho em frente à sua casa, um caminho plano e bem diferente do resto da colina.

Chegamos ao que parecia um pequeno galpão feito de madeira. O local aparentava ter sido construído há muito tempo. A madeira, envelhecida, havia sofrido pelas ações do tempo e estava úmida e descascando aos poucos, rendendo-se aos anos. Não havia janelas, apenas um grosseiro cadeado velho prendendo as correntes no portão quebradiço de madeira. Nortier pegou um molho de chaves de dentro do bolso de seu suéter. Chaves prateadas, douradas, enferrujadas de todos os formatos. Enquanto ele escolhia a certa, eu começava a congelar, parado diante daquele galpão tristonho. Não Quando somos jovens, a pressa é bem inimiga da perfeição. Hoje, percebo que Nortier

caminhou na neve de pantufas. Deve ter sido molhado. Nota do autor. 2ª Edição.

tardou até que ele abrisse o cadeado e as correntes caíssem no chão, escorregadias com a chuva e fazendo um barulho oco ao atravessarem o amontoado de neve, perdendo-se no branco límpido.

Nortier empurrou o portão do local com esforço, tendo que arrastar a neve acumulada. Um barulho irritante de fechaduras antigas chegou até os meus ouvidos. Assim como a escuridão chegou até meus olhos. Nortier entrou de modo automático, achou uma caixa de fósforos e acendeu um lampião que permanecia postado junto à porta, guardando a entrada das trevas. Entrei no local que se iluminava fracamente. Pude vislumbrar a silhueta de um carro entre a penumbra e algo que o cobria. Havia também muitas ferramentas lá dentro: serras, martelos. Nortier apontou para que eu pegasse um machado na parede.

- Pegue o machado e venha comigo disse. Fiz o que me foi dito. - O que exatamente eu devo fazer com um machado?

perguntei, enquanto olhava o gume afiado da ferramenta e descia a colina seguindo os passos de Nortier marcados na neve.

- Uma árvore de natal respondeu. Uma árvore de natal? Que diabos o machado teria de ver

com isso? Esses foram os pensamentos primários que me ocorreram, pelo ao menos até eu ver a mata de pinheiros que havia descendo o desfiladeiro. Dos mais variados tamanhos possíveis. Muitos deixavam a terra e subiam pelo ar para contemplar a imensidão do céu, arriscando-se nas alturas. Outros, eram naturalmente pequenos e contentavam-se onde estavam. Pareciam não desejar nada mais que a terra. Em outros meses eu veria aquele lugar totalmente verde, sem conseguir perceber a distinção entre a floresta de árvores avulsas e os pinheiros.

- Precisamos de um pequeno. Um que possamos carregar disse Nortier com os olhos percorrendo os troncos finos de

algumas das árvores, tocando-as com a ponta do dos dedos.

- Só escolher. Eu estava me sentindo como um lenhador de desenhos

animados. Nortier continuava olhando absorto o tronco dos pinheiros, tocando-os com cautela e então passando para outro. Medindo com eficiência imaginária e movendo os lábios em números que apenas ele via. Até passar para outro pinheiro. Ele parou. Estava diante de um que parecia mediano. Era um pouco menor do que eu, ficando centímetros abaixo de meus ombros. Nortier apontou para aquele. Tínhamos um vencedor.

- Sabe como fazer, garoto? perguntou-me. - Só bater, certo? - Pois vá em frente. E foi o que fiz. Tomei espaço e levei a lâmina do machado em direção ao

pinheiro com rapidez e força bruta. Primeiro houve um baque surdo. Depois o barulho transformou-se em um tremor que começou na lâmina e percorreu com a rapidez de um trovão o cabo que estremecia. O trovão me alcançou. Chegou a minhas mãos. Senti em meus dedos uma dor intensa, latejante, que eu nunca havia sentido em minha vida. Uma dor que se tornava ainda mais intensa com o frio. Vi minha respiração subir ao ar após largar o machado e minha visão girar. Encolhi o corpo, recolhendo minhas mãos imediatamente para a escuridão confortante de meus bolsos.

Nortier gargalhava alto. - Não se preocupe dizia entre espasmos de risos. A

primeira vez é sempre assim. Você acostuma. É tudo questão de segurar o machado direito.

Ele ria, e ria cada vez mais. Minhas mãos continuavam doendo.

- Não seria um pouco mais prático arrumar uma árvore falsa? sugeri.

- Claro que seria. É o que as pessoas da cidade fazem disse, com um largo sorriso no rosto. Mas se nos rendermos à praticidade moderna, o que será de nós?

Nortier tentou segurar o machado pela ponta do cabo, quase o deixando escorregar e cair outra vez na neve. Pude perceber que já não lhe restavam forças suficientes. Ele jamais conseguiria cortar aquela árvore. Retirei minhas mãos de meus bolsos e senti a dor outra vez. Com força de vontade, tomei o machado de suas mãos.

- Me deixa tentar outra vez falei. E lá estava eu novamente. O machado em mãos, sentindo

meu pulso explodir a cada nova investida contra o pinheiro. Eu continuei atacando, sempre mirando a lâmina em um sulco que começava a se formar cada vez que ela tocava no tronco. Então, após todo aquele esforço, a árvore tombou para o lado com um barulho surdo, escavando sozinha um imenso buraco na neve.

- Madeira eu disse de modo automático e com um sorriso no rosto.

Passei a manga da jaqueta em minha testa, limpando o suor de minhas têmporas. Madeira, um grande clichê. Quem nunca quis dizer isso após derrubar uma árvore?

Olhei para Nortier. - Consegue carregá-la para casa? perguntou. Tenho que

fechar a garagem. - Está brincando? Depois de derrubá-la levar vai ser fácil. Entreguei o machado a ele, que o levou com esforço.

Enquanto Nortier subia novamente a colina em direção à garagem comecei a circular o pinheiro em busca da melhor posição para carregá-lo. Nessas coisas aprendemos que não há melhor posição e que eu estava terrivelmente errado. Eu subia a colina dessa vez, não com dor das mãos que latejavam, mas com a dor de meus ombros que abrigavam o peso da árvore. Sentia o suor escorrendo pelo meu

rosto e encharcando minha roupa. Alcancei a casa e suspirei, deixando a árvore cair no chão com todo seu peso e abrindo outro buraco na neve. Abri a vidraça para entrar e respirei fundo. Com força hercúlea que jamais soube de onde consegui, eu peguei a árvore nos ombros e entrei cambaleando.

Nortier estava logo atrás de mim. Havia um grande vaso de cerâmica pronto para colocar a árvore. O vaso havia sido feito e pintado totalmente à mão, abrigando um efeito natalino em todo seu esplendor, com sua borda dourada e flocos de neve prateados e brilhantes como as estrelas caindo. A mesma assinatura misteriosa de todos os quadros estava gravada nele. Acomodei a árvore, que Nortier fez de algum modo parar em pé, depois retirei meu casaco e deixei meu corpo cair ao lado do pinheiro abatido.

O calor da lareira chegou até mim. - A quem pertence essa assinatura? perguntei com

curiosidade insaciável. Nortier sorriu. - Annabelle respondeu enquanto seu olhar acompanhava

os retratos enfileirados no consolo de sua lareira. Ela era pura artista.

Ele tinha razão. Os traços eram pintados com tremenda sutileza, parte de

uma incrível dança destinada a se formarem sozinhos. E não era apenas naquele vaso, que se tornava simples perto de todas as pinturas que existiam na casa. Parecia, levemente, que toda a beleza contida no rosto angelical de Annabelle havia sido transferida para suas telas.

- Você tem razão concordei, fitando as telas. - Sim... ele perdeu-se. E você, garoto. Está escrevendo

algo? Fiz que não. Lembrei imediatamente do dia em que

queimei meu último romance, meses atrás.

- Eu estava. Mas simplesmente... Não parecia certo. - Annabelle tinha muito disso. Às vezes ela passava semanas

inteiras trabalhando em uma única pintura. Muitas vezes, ela amava, dizia que era sua melhor obra até então. Mas na maioria dos casos aquelas telas iam de encontro à lareira. Que poderia eu fazer? Apenas olhar as chamas consumirem a arte. Se o artista não gosta, o que um reles espectador fará? Suponho que você fez exatamente o mesmo, não é?

Olhei para as chamas de soslaio, acenando com a cabeça levemente inclinada para frente.

- Bom, seus quadros não queimavam. Eu o olhei sem entender. - Houve aqueles que eu não consegui salvar. Servia uísque em dois copos, entregando-me um. - Mas muitos eu consegui resgatar das chamas antes que

queimassem. Os que consegui estão na galeria lá em cima. Eram magníficos, aqueles, não mereciam tal fim.

- O que sua esposa dizia quando descobria? Perguntei, balançando o copo à minha frente.

A bebida escura, pronta para ser ingerida. Devolvi o copo para meu anfitrião. Era hora de parar de beber. Nortier assumiu que eu não gostasse e me serviu chá de maçã.

- Ela nunca descobria disse com um sorriso maroto em seu rosto.

Nortier bebeu sua dose de uísque e largou o copo na mesa. Uma já chegava para ele. Puxou depois uma grande caixa de papelão que havia embaixo da mesa. Ao abrir vi o brilho amarelo de uma grande estrela e o reluzente escarlate de todas as bolas de natal que seriam penduradas nos galhos verdes vivos.

- Dizem que essa é a parte mais divertida segurava as luzes que piscariam pela noite infinda enquanto sua mão tinha um leve

tremor. Normalmente quem fazia isso era minha esposa. Gostaria de me ajudar?

Fiz que sim. Seria divertido. Começamos, então, a tarefa de enfeitar a árvore. Fazer aquilo me lembrou de tempos que eu já considerava apagados de minha mente. Voltava à minha infância. Ao cheiro da caixa em que vinha a árvore. O cheiro peculiar dos papéis de presente. Os braços fortes de meu pai erguendo-me acima de sua cabeça para que eu desse o toque final: colocasse nossa estrela dourada. E foi o que fiz outra vez, mas ninguém me ergueu. Eu estava de pé, olhando uma robusta árvore de natal vermelha que agora substituía o pinheiro verde e cru da floresta. Com calma, coloquei a estrela e me afastei. Havia ficado algo pelo menos digno e talvez fosse pelo espirito natalino que Nortier carregava em seu coração.

Um espirito que começava a me contagiar. - O que pretende fazer no natal, garoto? perguntou-me

com um sorriso no rosto. - Fumar meu último cigarro. Ele riu. - Irá fazer companhia ao seu pai, imagino. - Meu pai... Ele faleceu há algum tempo. - É uma pena disse. Realmente uma pena como as

pessoas se vão conforme os anos passam. E sua mãe? - Não tenho mãe na verdade eu tinha. Fui criado por

um pai solteiro. - Deve ter sido um bom homem respondeu Nortier com

um tom nítido de respeito. Nortier já havia se referido ao meu pai como um bom

homem no dia anterior e agora o fazia novamente. Ele também havia dito que sentia muito. Aquele senhor com quem eu conversava me surpreendia cada vez mais, de um jeito que jamais teria imaginado vindo de alguém apresentado por Morgan.

Acho que eu finalmente havia ganhado um amigo. - Então, garoto... sempre parecia perder a coragem para

dizer algo que ele achava que o envergonharia. - Claro respondi imediatamente, fitando-o com calma. Mal percebi que um sorriso estava em meus lábios. Eu já

sabia qual seria sua pergunta. - Prefere que eu esteja aqui na véspera ou na manhã? - Por que não fica? - Ficar? - Sim. Tem algo para fazer? Não consegui pensar em nada. Eu não tinha. Nunca teria. - Tenho um quarto de hóspedes lá em cima, e, se não se

importar, minhas roupas de alguns anos atrás certamente ficarão boas em você.

Nortier sentou-se em sua poltrona. Ele não aguentava ficar em pé por muito tempo.

Faltavam três semanas para o natal. Eu voltaria para minha casa. Sem lenha, sozinho, sem meu pai. Apenas a solidão. Nem mesmo o barulho da civilização que nunca parava. Seria uma espera infinita para mais uma noite comum no ano, em que eu fecharia os olhos e iria adormecer em minha poltrona velha com algum livro já lido e relido enquanto todos festejavam abrindo espumantes e vendo a neve branca cair entre as estrelas cintilantes.

Eu estaria sozinho outra vez. Decidi que não. Era diferente agora, eu poderia estar com Nortier. Um

homem que parecia tão solitário quanto eu. Uma boa companhia. Um amigo.

- Seria ótimo ficar por aqui falei, com aquele sorriso de criança que ainda estava em meu rosto.

Ele bateu em meu ombro e sorriu também. A noite havia caído rápido e apenas o crescente calor da

lareira iluminava o cômodo. Decidimos acender as luzes da árvore.

Elas piscaram forte, combinando cores diferentes, criando novas tonalidades para nossos olhos. Brilhando e deixando que víssemos um mundo de alegrias atrás do reflexo dos enfeites que balançavam. Brilhavam e brilhavam.

Brilhavam as luzes de natal.

Inverno

| 101

I. Dias que Passam

Tão simples a vida começava a me parecer. Em minha primeira noite na casa de Nortier, levei algum

tempo para conciliar o sono no quarto de hóspedes, desconhecido para minha mente. O local não tinha muito a oferecer. Uma cama de ferro pouco usada ela não emitia nenhum rangido irritante -, um criado mudo com um abajur simples e um exemplar de Orgulho e Preconceito. Havia uma dedicatória para Annabelle na primeira página. O que dizia eu não me atrevi a ler, apesar de minha curiosidade desejar com forças extremas. Apenas reli mais uma vez o livro, mergulhando nos pensamentos de Elizabeth novamente, como já havia feito há tanto tempo em minha adolescência.

Naquela noite em particular, levantei com inquietude. Havia passado pouco mais das duas horas da madrugada. Nortier fez um caldo de cordeiro com maçãs. Andei pelos estreitos corredores do sobrado, indo parar em uma janela ao lado de uma porta fechada. Aquela porta permanecia sempre trancada em seus segredos. Era o único lugar da casa que não havia me sido apresentado por meu anfitrião. Olhei pela janela e encarei a escuridão desolada de uma noite fria. A vista daquele local desembocava diretamente para o

calmo lençol de águas do oceano que se encontrava descendo a colina. Dali, eu podia conquistar toda a imensidão da praia com o olhar.

Ao ficar parado ali, senti minha memória vaguear como num dejà vú. Percebi que já vira aquela vista daquele exato ponto, mas não conseguia lembrar quando. Virei-me e, com passos leves no assoalho de madeira, desci as escadas até a saleta da casa. Na lareira as chamas queimavam, tornando cinzas novos pedaços de lenha. Uma sombra subia na parede em uma escalada de fuga. Segui os passos da sombra e descobri Nortier com as costas curvadas sob a mesa. Ele folhava algo com calma. Era um álbum de fotos com diversos rostos diferentes, homens de ternos e uma noiva. Eram todas fotos de seu casamento. Com um olhar cabisbaixo, viu minha aproximação sutil.

- Problema para dormir? perguntou, quase retoricamente.

Balancei a cabeça negativamente. Porém, era verdade. - Acho que deve ser só uma insônia passageira. Puxei uma cadeira e sentei ao seu lado na mesa. E, à nossa

frente, estava aquela memória que eu tinha. Havia escapado de meus pensamentos e se materializado magicamente em uma tela. Era um dos quadros de Annabelle com a mesma vista da janela ao lado da porta dos segredos. Parecia uma força sobrenatural, algo que simplesmente se incorporou à tela. Era sublime, perfeito.

- Ela era mesmo magnifica... as palavras jorraram de minha boca sem controle.

Eu estava extasiado com a mágica de suas pinturas. Nortier levantou a cabeça, olhando-me com compreensão.

- Aquela porta ao lado da janela. Era seu estúdio, não é? Ele fez que sim. - Gostaria de chocolate quente, garoto?

Assenti. Uma caneca fumegante com creme foi colocada em minha frente após alguns minutos. Provei. Era creme de maçã. Após aquela bebida quente em uma noite fria, retornei aos meus aposentos e deitei a cabeça no travesseiro. Meus olhos se fecharam com rapidez, caindo como uma cortina que despenca após ser solta. Não havia controle. Não vi a manhã se aproximar, como estava acostumado. Agora eu estava imerso na escuridão, longe da dura realidade que eu sempre encarava.

E, então, as próximas horas, os próximos dias. Todas elas passavam deliberadamente, sem qualquer permissão. Eu passei a ajudar Nortier em muitas tarefas domésticas, quais ele parecia sofrer para terminar. Apenas ajudava, ele não gostava de muitas interferências. Ele nunca pedia minha ajuda ou dizia que eu deveria fazer algo. Não. Eu apenas estava sempre lá porque parecia o mínimo que eu deveria fazer. E assim, minha primeira semana começava a se completar naquela mágica casa, cuja energia de um homem tão bom gritava tão forte quanto a voz da natureza lá fora.

Foi em um sábado que ainda posso recordar. Já era inverno. A neve estava enfraquecida e a temperatura não parecia tão mortal. Perdido na escuridão de meu quarto, acordei. Escutei passos na neve lá fora, embaixo de minha janela. Vesti as roupas mais quentes, luvas de lã e um gorro. Depois desci as escadas correndo. Nortier estava do lado de fora do sobrado. Ele cambaleava segurando uma alta escada de madeira. Seus dedos escorregavam dos degraus e a escada perdia a posição, caindo na neve. Com esforço ele a levantou, outra vez, e voltou a tentar escalar sua montanha particular. Corri para ajudá-lo quando ele quase caiu junto com a escada, que escorregou dos galhos de uma das macieiras floridas.

- Não, garoto disse se equilibrando a tempo suficiente. Se for fazer tudo por mim é melhor que eu durma e nunca mais acorde. Ainda consigo fazer essa droga!

Seu tom de voz estava ríspido. Ele nitidamente ficou irritado por não conseguir fazer aquela droga. Afastei-me sorrindo. Era uma cena cômica.

- Tudo bem retruquei. Vou assistir ao espetáculo. Pude perceber que ele ria. Ao tentar pegar a escada, que

havia caído outra vez, ele a colocou no lugar e ela escorregou novamente. Um vento forte assolou nossos corpos e Nortier entrou em um frenesi de tosse. Aquilo era preocupante.

- Não é melhor desistir? perguntei enquanto cerrava os olhos com a ventania surreal.

Ele negou, aumentando a voz para que eu escutasse. - O rádio diz que vem aí uma nevasca e eu quero essas

drogas de maçãs! Olhei para a árvore. Maçãs, vermelhas e perfeitas como

devem ser. Elas pareciam invulneráveis com exceção das que se renderam e apodreciam no chão ao vento e a neve.

- Como é possível? perguntei. Eu havia tocado em um ponto que Nortier poderia falar

durante mil anos. Um sorriso maroto encheu seu rosto. Eu já conhecia aquele sorriso. Era fruto da superioridade que ele tinha no tópico mencionado. O exibia para mim o tempo inteiro.

- Algumas maçãs florescem no outono, garoto disse. Acho que elas gostam do clima frio. Essas aqui vão ser as últimas até o início da próxima primavera.

- E as outras macieiras? - Viraram refeição piscou o olho com o sorriso no rosto.

Não vou conseguir, garoto. Virei a merda de um velho inútil. A essa frase, o seu rosto fechou-se completamente. Ele

havia percebido a idade chegando. Parecia ter se tornado deprimido, percebido que o homem que era antigamente havia chegado ao seu declínio. Não era verdade. Eu estava ali para ajudá-lo.

- O que tenho que fazer? perguntei enquanto erguia a escada uma vez mais.

O processo era simples: colher as maçãs, colocá-las no cesto. Com um vento que se tornava cada vez importuno, gelando meu rosto, a tarefa parecia ser árdua e demorada. Seu fim estava em uma trilha longe de mim. Em poucos minutos, que pareceram tão longos que eu não poderia contar, a cesta dada por Nortier - feita artesanalmente de vime - estava quase transbordando. Com calma, comecei a descer a escada até chegar ao chão e enterrar meus pés com tudo na neve.

- E a plantação? perguntei, apontando com os olhos. Nortier pegou o cesto de minhas mãos e seguiu andando

para dentro da casa. - Não tem nada lá nessa época. Somente no verão. A garagem do outro lado da casa permanecia aberta, então

imaginei que a escada pertencia àquele local. Levei-a até lá e a deixei encostada à parede. Antes de sair e fechar o local com todos aqueles cadeados, parecendo que um tesouro era guardado ali dentro, eu vislumbrei, por um segundo, o motivo de toda aquela precaução. Eu estava curioso para saber que carro se escondia embaixo de uma lona preta empoeirada. Por sua forma, era algo clássico. E antigo.

Voltei para casa o mais rápido possível. Assim como o apresentador Fausto McMurphy da rádio

Cidade Praiana havia dito, a nevasca realmente chegou. Forte como fazia todas as vezes que atacava. Mais forte ainda naquela localidade onde havia o oceano, que parecia incentivar o vento a desmantelar tudo o que o homem construía. Dentro de casa, aquecidos pelo calor agradável da lareira nunca apagada, nada Originalmente, na primeira edição, o apresentador da rádio Cidade Praiana se chamava Kerry Owens. Adaptei para Fausto McMurphy como um presente para quem ler os outros

livros da Cidade dos Malditos. Nota do autor. 2ª Edição.

podíamos ver da rua. A luz em muitos momentos oscilava com força e até faltava. Ficávamos à deriva na escuridão intensa. Nortier acendia algumas poucas velas para ajudar na iluminação fraca da lareira.

Sentado, com as chamas refletindo em minha pele oleosa, eu me perdia em pensamentos. Assim como Nortier fazia todas as noites quando abria seu álbum de fotos e ficava olhando para o passado que se fora. Ele podia pressentir que sua vida se extinguia lentamente como o fogo quando falta ar. Todos nós podemos pressentir quando a hora se aproxima. Muitas vezes, eu pensava em quão deprimidos e sombrios podemos nos tornar com esse pensamento percorrendo a alma. Pensava em como eu ficaria quando o momento estivesse batendo à minha porta com suprema autoridade.

Eu não queria pensar, não gostava. Mesmo que achasse que estaria pronto. Eu estaria, com certeza. Somente quando deixasse meu legado neste mundo.

A nevasca durou o resto daquela semana. Minha segunda semana na casa de Nortier. Em certos momentos do dia, ele sentava ao meu lado enquanto eu olhava com desinteresse para as chamas. Então ele me contava todo o tipo de coisas. Apesar de tudo o que falava, ele gostava mesmo era de falar sobre maçãs.

- É interessante que um fruto que participou de todas as mitologias possíveis esteja tão presente em nossa vida hoje, não é? falava com gigante entusiasmo. Eu escutava com atenção verdadeira. Ora, sabe o que diz o ditado.

- Só conheço os ditados idiotas eu respondia. - Esse é verdadeiro. O médico se manterá longe com uma

maçã por dia, é o que diz. Mas apenas as vermelhas finalizou com cara de aborrecido.

Nortier comia, mas não gostava de maçãs verdes.

Durante o dia, parecia esquecer-se do que eu tinha mais vontade de perguntar. Sua vida no passado. Annabelle. E, acima de todas as perguntas que alimentavam minha curiosidade, Morgan. Que tipo de relação eles tinham? Como haviam se conhecido? E por que Morgan queria que eu o conhecesse? Apesar de eu sentir que a resposta para essa última pergunta viria de mim. Naquele, que parecia ser um dos últimos dias da nevasca, minha insônia atacou novamente durante a noite. Estava frio no quarto. Tomei o livro de cabeceira e levantei-me. Pretendia ler no andar de baixo sentindo o calor agradável das cinzas da lareira. Quando cheguei à sala, descobri que ela ainda estava em chamas. Nortier estaria acordado? E estava. Recurvado sobre a mesa, como naquela noite distante. Porém, parecia diferente. Seus ombros dançavam na sombra da parede.

Ele chorava. Aproximei-me com lentidão e larguei o livro ao seu lado,

sentando-me junto dele. Ele me olhou com vergonha e apressou-se em secar suas lágrimas. O álbum de fotos estava aberto.

- Desculpe, garoto... começou dizendo, com nítido embaraço. Você não deveria ver um velho desse modo.

Dei de ombros na busca pelas palavras certas. Elas estavam lá, e como sempre, não eram minhas.

- Um homem não deve ter medo de chorar quando há motivo respondi, lembrando-me de anos atrás, quando meu pai me disse isso.

- Você é o jovem mais sábio que tive o prazer de conhecer em todos esses anos.

Sorri, ficando em silêncio. O mérito daquela frase não era meu.

- Eu apenas sei como as coisas são, Nortier falei após alguns minutos. A vida nunca parece ajudar. Ela só... Não sei.

- Você está errado aí, garoto. Ela vai ajudá-lo, com o tempo. O que é necessário apenas é a trilha certa.

A trilha certa. Eu pensaria sobre isso muitos anos depois enquanto via o pôr do sol em meu rosto.

Nortier segurou o álbum de fotos com ambas as mãos. Ele sorriu com pesar que eu jamais imaginaria ver antes. Era um pesar alegre.

- A minha vida apenas passou. E eu nem consigo lembrar-me de tudo o que já fiz. Lembro mais do que gostaria de ter feito suspirou. Não deixe isso lhe acontecer ou vai acabar como eu, um velho que chora na frente dos outros, e que lamenta não ser jovem o suficiente para colher algumas maçãs.

- Algum arrependimento? Nortier olhou em meus olhos e pensou. Eu podia ver sua

luta interna contra tudo o que fizera e que deixara de fazer. Era uma batalha árdua que o tempo não o deixaria vencer. Seu olhar voltou ao álbum de fotos, com derrota.

- Certamente respondeu à minha pergunta. Os olhos absortos no feitiço do tempo. - Muitos, para ser honesto. Mas tem que algo que não me

arrependo. Não mesmo... - Annabelle? perguntei. Claro que sim. Ele confirmou o que eu já sabia. Ficamos em silêncio

novamente enquanto ele folhava o álbum, passando cada foto como se fosse uma doce lembrança que ele podia reviver com uma olhadela. Uma lembrança guardada no cofre de sua mente, cuja combinação ele parecia perder. Isso não o deteria. Ele poderia voltar àqueles momentos a hora que quisesse.

E voltaria. Já estava voltando.

II. Nortier

Passo aqui, com as palavras de Nortier, tudo o que ele me disse naquela madrugada fria de inverno.

Garoto, o tempo sempre volta em nossa busca. Ele nunca

desiste. Está sempre lá, bem atrás de você. À sua espera no próximo aniversário. Claro que, muitas vezes, ele pode ser o melhor amigo que podemos ter, mas quando tudo começa a ser perdido... Ele se torna o seu carrasco. E não está nem aí.

Eu conheci Annabelle quando ainda tinha 17 anos. Veja bem, já se foram 63 anos. Ah, o tempo...

As coisas eram muito diferentes naquele tempo, você bem deve saber. Nossa diversão era por aí, bebendo e dançando. Mesmo com toda a destruição que começava a nos assolar. Mesmo que a Primeira Guerra estivesse apagada, uma nova ameaça começava a surgir e crescia rápido. Os antigos jovens tornavam-se homens, fardados, com um fuzil em suas mãos. O caos estava em todo lugar. Em cada um desses jovens que conseguia voltar para casa, para a família que deixara.

Continuando, nós dançávamos e cantávamos quando tínhamos alegria. O cinema entrava em seu auge. Hollywood

começava a se tornar cada vez maior. E eu ainda consigo me lembrar daquela tarde de sol. 18 de agosto de 1939. Foi a primeira vez que eu a vi. Por Deus, jamais haveria mulher tão maravilhosa em lugar nenhum neste mundo. Agradeço por aquele dia. Eu jamais pretendera sair de casa naquela noite, mas tive certo desentendimento com meus pais, coisa de jovem. Decidi encontrar meu amigo Barry em um bar local perto da Bourbon. Aquela Avenida ainda continua igual é o que dizem. Intacta e sem alteração. Imagino que este bar, nos dias de hoje, tenha outro dono.

Barry disse que levaria sua garota. Com muito contragosto, eu tive de concordar. Ninguém gosta de sair com um amigo e ficar observando ele de conversa fiada e tendo um broto, não é? Mas seu par não foi sozinho. Mary. Acho que era esse seu nome. Minha memória já não é mais o que uma vez foi. Ela levou uma amiga para me apresentar, já que uma reputação de solteirão eterno me cercava. Eu sempre preferi buscar a certa. Entende o que eu digo?

E ela era a certa. Ela entrou naquele bar com um sorriso radiante e muito

batom nos lábios já naturalmente vermelhos. Seus cachos loiros caiam em seus ombros e usava o vestido rodado mais lindo que já vi. Naquela hora eu soube que estava perdido. Ela, por outro lado, não estava nem aí. Percebi isso assim que sentamos juntos e tivemos nossa primeira conversa. Annabelle me odiou com todas as fibras que uma mulher pode odiar um homem. A começar por ela estar naquele bar porque a amiga a obrigou a ir. Quem deveria perder tempo jogando conversa fora quando se podia realmente fazer algo útil? Mas eu estava convencido a fazê-la gostar de mim. Eu tentava todo tipo de conversa, os assuntos mais variados. Ela me cortava nas Em 1939, a Avenida Bourbon ainda não tinha esse nome, porque o personagem William Bourbon nasceria somente mais tarde, e seria prefeito, também, mais tarde. Leia Verde

Escuro. Nota do autor. 2ª Edição.

primeiras palavras. Então deixei os dias passarem. Fiquei o mais amigo possível de Mary e descobri tudo sobre Annabelle. Todos os momentos de seu dia. O que ela não gostava e o que gostava. O nome do seu primeiro namorado, embora, devo dizer que este descobri sem querer. Mesmo assim eu não a conhecia de verdade e ela já havia se tornado minha vida durante aquele mês inteiro. Mal eu sabia que ela se tornaria minha vida até o fim, até aquele singular momento em que escolhesse me deixar para ir junto do Senhor. É uma pena, mas quando a hora chega, é a ele que escolhem. Infelizmente é assim que a vida é...

Eu descobri onde ela estudava. Annabelle cursava Belas Artes na Universidade Municipal Hawkner Bourbon. Naquela época, o falecimento de nosso prefeito Bourbon era muito recente. Nomearam muitas coisas em seu nome. Inclusive a Avenida, antes chamada de Avenida das Palhetas. Acho que ainda nomeiam...

Bem, eu a esperava todos os dias na saída das aulas. Ficava parado e encostado em uma árvore, sentindo a paixão me devorar junto com a ansiedade de vê-la. Toda vez que eu permanecia esperando-a, as horas não passavam. E, de repente, ela surgia radiante, com seu vestido e os lábios rosados. Sempre carregando um amontoado de cadernos rabiscados embaixo dos braços. Ela revirava seus lindos olhos claros toda vez que me via e seguia andando reto, sem nem me dirigir a palavra. Como eu disse, ela me odiava. Eu não sabia exatamente o motivo desse ódio. Eu corri até ela e a agarrei pelo braço. Nossos olhos se encontraram em uma fração de segundos e ficamos em silêncio embaixo de imensas folhas de uma enorme árvore. Eu voltaria lá muitos anos depois, mas nunca seria a mesma coisa sem aqueles olhos me estudando, tão destemidos e com um futuro tão brilhante. Eu tinha que perguntar o óbvio a ela, e o fiz. Não é o mesmo Bourbon que se tornaria personagem chave para a Cidade dos Malditos.

Ver Verde Escuro. Nota do autor. 2ª Edição.

- Por favor, Annabelle. Odeie-me, mas diga: por quê! - Você é um patético sem rumo igual aquele tal Barry. E...

ela suspirou. Eu não o odeio. Quero odiá-lo, mas não consigo. Sinto que é diferente dos outros que me cortejam. Por favor, não volte a me procurar, Sr. Jackson.

E foi assim que Annabelle arrancou meu coração e o transformou em nada mais do que migalhas. Fiquei desolado. A rejeição de alguém que se gosta é um sentimento marcante quando somos jovens. Talvez a aceitação das coisas seja uma dádiva que ganhamos com o tempo. Acredito que jamais ficaria tão aborrecido se fosse rejeitado aos meus 30 e poucos anos. Nunca saberei. Aos meus 30 anos eu tinha ela.

Como você deve imaginar, eu não desisti. Claro que não. Eu estava derrotado, amargurado, destruído e dizia que não tinha motivos para viver. Via tudo em preto e branco. Todas essas coisas tão tolas e ao mesmo tempo tão adoráveis no amor rejeitado. Mas, apesar de tudo isso, o sentimento estava mais acesso do que nunca. Cada vez que eu fechava os olhos era Annabelle que eu via. Era seu perfume que eu sentia. Era o toque de sua pele suave que eu imaginava. Então, na semana seguinte, eu estava lá outra vez. Escondido atrás das árvores com uma caixa de chocolate em formato de coração. Mal eu sabia... Quando vi Annabelle cruzar o campus, corri até ela com um sorriso idiota no rosto.

- Eu lhe trouxe isto falei, com absoluta vergonha e coragem.

Ela tomou a caixa em seus dedos finos e me devolveu logo depois.

- Desculpe Sr. Jackson. Sou alérgica a chocolate. Claro que é, eu pensei imediatamente. Como poderia não

ser? Algo tinha de dar errado. E ela seguiu seu rumo sem olhar para trás. Eu precisava descobrir do que aquela mulher gostava. Arte, muito provavelmente. Fiquei sabendo através de Mary... Espere um

minuto... Acho que seu nome era Ruth, isso! Ruth. Enfim, fiquei sabendo por Ruth que a situação financeira de Annabelle não era tão boa quanto seus vestidos rodados diziam. Seus pais eram imigrantes franceses que vieram para o país pouco antes da Primeira Guerra. Seu pai, Wallace, um dos melhores homens que já conheci, lutava para pagar as despesas da casa. Annabelle era universitária com uma bolsa que conseguira graças aos seus esforços.

Com muita pesquisa, eu peguei todo o dinheiro que possuía dinheiro que havia ganhado de mesada e pequenos trabalhos que arranjava por aí e comprei um jogo completo de pintura. Com todo tipo de tintas a óleo, telas e pincéis estranhos.

vendedor disse. Custou uma fortuna, todo o meu dinheiro! Mas valeu a pena porque eu estava decidido a fazê-la mudar de opinião sobre mim. Como eu adivinharia que ela já pensava bem de mim? Na semana seguinte eu estava lá novamente. O presente embrulhado embaixo do braço apenas esperando que a aula terminasse. E terminou. Annabelle andava pelo campus com pressa quando a interceptei ao passar por mim, surpreendendo-a com o sorriso mais estúpido de um rapaz com o coração em frangalhos.

- Mais chocolate? ela perguntou com desdém pegando o presente.

Eu neguei. Não cometeria o mesmo erro de novo. Com a rapidez da ansiedade ela desembrulhou. Não

conseguiu fechar sua pequena boca ao ver todos aqueles itens profissionais aos quais tinha acesso apenas na universidade. Ficou em silêncio, fitando-os por tanto tempo que eu achei que nunca mais falaria uma palavra. Sua boca se abriu e um fiapo de voz saiu. De um jeito ou de outro, ela queria me ver sofrer.

- Eu não pinto falou. - Mas um dia vai, não é? perguntei com esperança. Realmente tinha custado uma pequena fortuna.

- Não posso aceitar. É demais ela dizia. Eu dei de ombros. E, de repente, ela saiu correndo dali. E saiu correndo com o presente em mãos, seguindo o

caminho que fazia todos os dias para sua casa. E eu continuei a ir ao campus todos os dias, esperando-a sair da aula. Havia dias em que ela não aparecia. Dedicada como era e que nunca faltava, imaginei que teria seguido outro caminho. Dias depois disso ela veio até mim. Resolvera aceitar meu convite para sair. Eu soube, anos depois, que havia sido porque Ruth a convencera. Um plano de mulher para que eu me convencesse de como Annabelle era antiquada e desistisse dela sem um segundo encontro.

Ela realmente não sabia nada sobre mim. Levei-a ao cinema naquela noite. Achei que seria o melhor

programa para ela. Depois, fomos tomar sorvete. No início eu achei que Annabelle jamais diria algo. Estava fechada em um silêncio mórbido. Após o filme - assistimos O Mágico de Oz- Annabelle estava maravilhada com as cores. Nunca tinha visto nada igual. E nem eu, admito. Foi naquela noite que eu a conheci de verdade. Ela sentia uma paixão pelo cinema. Anos depois, seus olhos brilhariam como naquela noite ao ver o filme Psicose, que me gelou os nervos. Annabelle nunca largou essa paixão e eu a alimentei. Nos últimos dez anos de nossas vidas, o que mais fizemos foi ver filmes. Ela adorava... O primeiro filme da adaptação do livro de L. Frank Baum foi dirigido por Victor Fleming e estrelado por Judy Garland como Dorothy. Ficou reconhecido por ter sido um dos

primeiros filmes a usar a técnica Technicolor, embora não tenha sido o primeiro. Nota do

autor. Clássico dirigido pelo mestre do suspense Alfred Hitchcock. O filme foi reconhecido pelo

final dramático e a habilidade do diretor de cortar cenas com maestria e sem a tecnologia

dos atuais. O filme foi produzido inteiramente por ele. Nota do autor.

Recapitulando, Annabelle resolveu soltar a língua. Adorara o filme que vimos. E depois falou por incontáveis minutos sobre nomes e diretores que eu nem sequer conhecia, e eu apenas concordava como o tolo que era. Depois falou de Greta Garbo, Marlene Dietrich e outros nomes que não consigo recordar. Greta Garbo eu sabia quem era. Todos os homens sabiam. Falou também de tudo o que começava a aprender na universidade e, novamente, eu apenas concordava. Eu estava feliz de estar com ela naquela noite, muito feliz.

O tempo se esvaía e a noite terminava. Naquela época, as moças deveriam estar em casa o mais cedo possível, ou você levava um tiro de espingarda do pai. E foi o que eu fiz. Não eram nove horas quando a larguei na porta de sua casa. E foi a primeira vez que ela sorriu para mim. Soube naquele instante que havia conseguido o que queria. Algo dentro de mim entrou em erupção, um impulso que tomou meu corpo. Eu a beijei. Nossos lábios se tocaram e tudo girou em minha volta. Ela não me afastou como pensei que faria, apenas retribuiu ao beijo. Quando nossos lábios se separaram, eu abaixei o rosto com vergonha e virei às costas, seguindo pela rua.

- Sr. Jackson Annabelle e eu tínhamos apenas dois anos de diferença.

Ela era mais velha. Mesmo assim ela me chamava pelo último nome.

- Sim? perguntei com esperanças. Meu coração batia acelerado. - Me encontrará amanhã? No mesmo horário em frente à

universidade? Nome artístico de Greta Lovisa Gustafson, atriz sueca eleita a quinta maior lenda da

sétima arte pelo Instituto Americano de Cinema. Nota do autor. Nome artístico de Marie Magdalene Dietrich von Losch, atriz estrela de filmes como A

Volta ao Mundo em 80 Dias e Aconteceu em Monte Carlos. Nota do autor.

Fiz que sim e ela entrou em sua simples casa. Enquanto isso, eu voava para o meu lar. Era como se não pudesse sentir meus pés tocarem o chão. Eu sentia uma felicidade que jamais sentiria muitos anos depois. E a ansiedade crescente dentro do peito querendo que as horas passassem para vê-la novamente no próximo dia. Não dormi naquela noite. Meus olhos caíram quando a manhã chegou. Para meus amigos, eu havia evaporado. Eles diziam que eu perdia tempo com uma puritana que usava saias até o calcanhar. Eu não estava nem aí. Era ela, e apenas ela, a quem eu queria. No horário combinado, eu a esperava atrás da mesma árvore e ela me encontrava todos os dias dali em diante. Conversávamos uma hora por dia e eu me sentia cada vez mais encantado. Era a melhor hora de meu dia. E não fazíamos nada mais do que conversar. Não nos beijamos novamente e eu não tentei ultrapassar limites. Convenci-me de que chegaria o momento certo e ela decidiria.

Como sempre, o tempo passa. Evan, aquele tempo que passou foi definitivamente o

melhor tempo de minha vida e eu jamais o trocaria por nada. Tudo o que senti foi... Verdadeiro, de uma forma magnífica demais. Tudo tão real. Você ainda é jovem, mas provavelmente sabe que o que é tão real é mera ilusão. E ilusões não duram, assim como aquele tempo não durou para mim e passou depressa.

Aquele verão estava cada vez mais lindo para mim. Annabelle contava-me tudo sobre ela. Sua infância, o tempo que morou em uma casinha aqui mesmo em Darby, mais para o centro do balneário. Ela ia para a praia e ficava observando o mar, pensando em escapar. Ir para longe. Ver um mundo diferente. Uma jovem sonhadora ela era, todos nós éramos. Depois, ela se mudou para a cidade, e foi quando eu a conheci. Annabelle era a mais velha dos cinco filhos e suas responsabilidades nunca pareciam ter fim, então tudo o que ela podia fazer era sonhar o mais alto possível sem medo de cair. Dois irmãos de Annabelle trabalhavam e ainda havia mais as

duas meninas jovens, que ela tomava conta enquanto todos estavam fora. Isso lhe tomava todo o tempo que tinha. Isso tornava nossos únicos momentos juntos ainda mais especiais.

Como eu disse, o tempo passa. Eu não vi o verão chegar ao seu final. Os colegas de

Annabelle, todos grandes artistas sonhadores, resolveram fazer uma pequena festa na praia para encerrar a temporada. Eu conheci a todos, mas não simpatizei com eles. Do mesmo modo que não simpatizaram comigo. A maioria fumava, bebia e usava paz como filosofia de vida. Faziam passeatas contra a guerra e toda aquela baboseira de querer mudar o mundo. Descobriram do pior modo que o mundo é muito grande para ser mudado. Mais tarde eu descobriria que apenas você pode mudar e transformar-se. Pode se adaptar ao sistema ou fugir dele. São as únicas opções que temos.

Entre todos esses sonhadores iludidos, havia um homem. Geralmente o que dava voz aos pensamentos e o líder das passeatas. Lembro que ele tinha cabelos longos escuros, pintava todo tipo de coisa e usava sandálias artesanais. Nunca esqueci seu nome, Darius. Ele adorava Annabelle, é claro. Eu podia ver o brilho no seu olhar toda a vez que ele a via. Ele não gostou nada de mim, mas novamente não me importei. Não à princípio. Aquela noite na praia apenas se tornou mágica devido ao seu encerramento. Eu havia sido excluído do grupo de sonhadores. Diziam que eu era do tipo que construía o sistema. Estavam errados. Eu fui o tipo que era manipulado pela droga do sistema.

Bem, continuando... No fim da noite, quando o sol subiu e todos saíram

cambaleando de tão bêbados e com os olhos vermelhos, eu e Annabelle andamos por essas mesmas areias que você pode ver pela janela. Apesar de não ser exatamente aqui, e sim uns quilômetros adiante. Ela segurou minhas mãos e nos beijamos uma segunda vez. Confiou-me palavras que eu nunca esquecerei e que não posso lhe

contar. Eu havia conseguido fazê-la finalmente se apaixonar por mim e estava mais feliz do que nunca.

Essa felicidade durou boas semanas após aquela noite. Eu conheci sua família conforme os dias passaram. Fiquei

mais amigo de seu pai, Wallace, do que era de meu próprio. Como eu lhe falei antes, Wallace foi um dos melhores homens que já conheci e o invejo por não ter sido talvez metade do que ele foi. O melhor pai que já vi, apesar da própria desgraça em que vivia. Ele não tinha uma casa própria. Não tinha dinheiro. Suas roupas eram usadas, os alimentos eram plantados no jardim e, às vezes, trocados por aí, e mesmo assim ele conseguia ser tão feliz. E ele dava aos seus filhos o melhor ensinamento que podia.

Dava-lhes um amor incondicional. As coisas não eram diferentes com a mãe de Annabelle, mas

fiquei muito mais próximo de Wallace. Próximo ao ponto de ele ficar ao meu lado quando as coisas se tornaram complicadas em meu relacionamento com Annabelle. Embora, no final, tudo sempre se acertava. Foi um tempo difícil aquele em que recebi a carta do governo. Nós tínhamos completado um ano juntos e nos amávamos demais. Eu estava com meus dezoito anos. Wallace queria um casamento para sua filha mais velha e me apoiava completamente. Especialmente depois que consegui um emprego em uma fruteira. Eu tinha facilidade em fazer boas amizades e não foi diferente com o dono, Sr. Talbot. Ele mesmo plantava e cultivava tudo o que vendia. Ensinou-me tudo o que eu sei sobre maçãs e muitos outros frutos da terra. Ele nunca teve família com e exceção de um primo distante que falecera de cólera e anos depois viria a deixar seu estabelecimento para o primeiro funcionário que empregou. Eu. Ele era um homem muito solitário.

Como eu dizia antes, a carta. Eu sabia do que ela se tratava. Tinha um selo do governo

no lacre. Consegui escondê-la durante uma semana, sem ninguém

mais saber. Eu não a abri. Uma tarde, logo após o trabalho eu cheguei em casa, e Annabelle estava em meu quarto. Ela havia achado a carta e chorava com o papel amassado em suas mãos. Eu havia sido convocado para lutar na Segunda Guerra Mundial, Evan. Matar alguns nazistas, como meus amigos diziam. Eu não queria matar nazistas. Era uma guerra terrível que devastava nossa alma e toda a pátria com a força de um furacão. Barry havia sido convocado e eu ficara sabendo por Ruth que ele havia sido dado como perdido, assim como muitos outros jovens rapazes por aí.

E Annabelle não esquecia isso. O fato de que Barry jamais poderia voltar. E se acontecesse isso comigo? Ela estava em prantos. Proibiu-me terminantemente de ir. Mas que escolha eu tinha? Não poderia fugir, seria crime. Conversamos durante a noite inteira. Ela dizia que iria pegar suas economias e nós poderíamos ir para outro país não envolvido na guerra e viver no campo. Fugir. Eles não poderiam me tirar dela. Não havia meios de escapar. Eu iria para a guerra de um jeito ou de outro. Então lhe fiz a proposta que deveria ser feita.

- Vamos nos casar? perguntei na escuridão do quarto enquanto secava suas lágrimas e jogava a carta em um canto qualquer.

Ela olhou-me nos olhos e disse o que eu não esperava. Não, ela não iria casar comigo. Não iria tornar-se uma viúva. Tenho que admitir que fiquei profundamente magoado com aquilo. Durante aquela semana eu tentei convencê-la do contrário, com a ajuda de Wallace. Ela deveria se casar comigo antes que eu fosse enviado na primeira missão, uma ordem do pai. Contudo, ela não mudou de ideia. E nenhum de nós queria obrigá-la de verdade. Com isso, meu tempo se esgotava. Eu estava profundamente magoado, carregava apenas uma foto dela e de minha família quando ia para a estação de trem em destino a cidade que deveria me apresentar. Não me

despedi de ninguém, estava certo de que morreria lá. Annabelle me alcançou antes que eu pudesse embarcar.

Seus braços rodearam meu pescoço e ela me beijou. - Não vou me casar com você ela falou com seu olhar no

meu. Eu quero, mas não posso. Volte para mim e serei sua esposa. Eu prometo.

Annabelle era uma mulher extremamente complicada. Essas foram suas exatas palavras. Ela havia prometido. Eu deveria voltar porque ela me esperaria. Eu a deixei, com meu coração, quando o trem começou a andar. Desertar passou pela minha mente muitas vezes naquela noite. Mas não o fiz. Eu fui para a guerra. Mesmo com sua promessa eu sabia que não estaria lá para impedir Darius de oferecer seu maldito ombro amigo, mas tinha de confiar nela. Era tudo o que me restava.

Confiar nela foi o que me manteve vivo. A guerra foi algo terrível. Eu vi coisas que me atormentam

demasiadamente nos quatro anos que se seguiram. Vi coisas que nenhuma pessoa jamais deveria presenciar. Tive que fazer escolhas que eu não gostaria de repensar. Fiz amigos lá, era difícil não fazer. Nós estávamos todos no mesmo maldito barco. Muitos desses amigos deixaram mais do que eu para trás. Deixaram suas esposas grávidas, seus bebês recém-nascidos, seus filhos que talvez se criassem sem um pai. E vi muitos desses amigos que deixaram tudo isso para trás se renderem e rezarem para que Deus os protegessem. A eles e suas famílias. Rezavam, enquanto morriam diante de meus olhos, sem que eu nada pudesse fazer. Eu poderia ter me entregue também, muitas vezes. Mas eu tinha uma promessa a cobrar. A promessa de que Annabelle se casaria comigo se eu voltasse, era imensamente poderosa e mais forte do que a vontade de me entregar.

E foi a promessa que me manteve vivo durante aqueles longos quatro anos. Era o que me fazia viver no horror.

Estávamos sempre em lugares diferentes, aprendendo sobre a nova localização. Ficávamos em tendas e às vezes em trincheiras junto com os ratos que corriam na terra suja. Às vezes, nada acontecia. Não foi o caso daquele dia fatídico.

Eu estava em meu posto eu já me tornara Coronel junto com um bom amigo, alguém que nunca mais vi. O estranho é que por mais esforço que eu faça, seu nome foge de minha mente, desaparece como se eu não o tivesse conhecido.

Ele me falava de como havia prometido para sua filha de cinco anos que voltaria para casa. Ela deve estar na escola agora, dizia ele. Carregava fotos dela consigo e falava do jeito mais orgulhoso possível para um pai. Eu tinha pena, porque conforme os dias se iam, eu perdia cada vez mais o otimismo. Comecei a achar que o destino era fatal, que a guerra seria eterna, e que nós todos morreríamos. O poderoso Deus havia nos castigado. Mas, na verdade, acho que ele ouviu meus lamentos e veio até mim para dizer que eu estava errado.

Estávamos no posto, como sempre. Então uma granada passou voando por nossas cabeças. É o fim, eu pensei. Minha vida passou por meus olhos como um relâmpago. Em uma fração de segundos, eu decidi agir e corri para a granada. Peguei e a joguei para longe. Se deveríamos cair que fosse lutando. O tempo foi curto demais mesmo assim e ela explodiu. Fomos atirados para longe. As queimaduras em meu corpo foram severas e ainda tenho muitas cicatrizes daquele dia. Depois da explosão, os inimigos atacaram no meio da selva. Os tiros ecoavam em todo o terreno com um baque surdo. Nossos inimigos se aproximando e nossos aliados apenas tentando afastá-los.

Eu via o sangue jorrar à minha volta, escapando dos corpos de meus amigos. E meu companheiro ele era um Coronel também, isso eu recordo caído no chão. A explosão não o ferira como a mim, mas uma bala acertou suas costas e ele sangrava. Iria morrer

em minutos se eu não fizesse nada. Já segurava uma fotografia de sua filha e chorava como nunca vi ninguém chorar. Deus me deu mais forças naquele momento do que tive quando afastei aquela granada e salvei a vida de muitos. Eu corri até meu amigo e o coloquei nos ombros. Senti uma ardência na perna e depois o sangue morno escorrer. Uma bala atingiu um nervo no meu joelho. Contudo, não parei. Corri para longe, pouco me importando com tudo. As bombas explodiam com ferocidade à nossa volta, me deixando surdo e embaraçando minha vista.

Eu apenas corria, ignorando a dor na perna. Eu tinha que correr, era o único meio de escapar. Corri de

volta para um de nossos postos que ficava longe do confronto que acontecia. Outro de nossos companheiros veio ao nosso socorro. Quando eles carregaram o corpo quase morto de meu amigo, eu finalmente me rendi. Meus olhos embaçaram e eu caí. Apaguei. Mais tarde, ninguém soube me dizer exatamente quanto tempo eu fiquei inconsciente. Passaram-se mais de duas semanas. Eu via as enfermeiras à minha volta cuidando dos feridos que gritavam. Via meus comandantes à minha frente. Não consigo recordar todas as suas palavras porque eu estava fraco demais. Eles disseram algo sobre salvar a pátria e a vida de muitos homens valiosos. Eu lembro-me bem da parte que disseram que eu voltaria para casa.

Eu retornaria para Annabelle. Veja bem, garoto. Quando retornei era quase 1945, o ano

em que a guerra terminou. Eu voltei como Coronel Nortier Jackson, com uma Medalha de Honra do Exército Americano, uma Estrela de Prata e duas Condecorações Púrpuras. Fiquei quatro anos naquele buraco infernal no qual a maioria se sentia honrado de participar. Eu não me sentia honrado, aquilo tirou tudo o que era importante para mim. Eu apenas queria ter a oportunidade de voltar para ela. Nós nos comunicávamos por carta, é claro, mas nunca era a mesma coisa. Suas cartas chegavam muito tempo depois de

escritas. Imagino que era o mesmo com as minhas. Ela já poderia ter me trocado por outro. Ela falava pouco de sua vida quando escrevia. Falava muito sobre sentir saudades. Em uma dessas cartas, ela me disse que Wallace havia falecido de tuberculose. Aquela noticia me abateu profundamente. Não tanto quanto eu imaginei porque eu tinha muitos outros problemas pendentes para lidar quando li a notícia.

Após tanto tempo perdido dentro daquele hospital, eu finalmente voltaria para casa. Voltaria para ela. Minha cabeça estava cheia de ideias que hoje me envergonho apenas por ter cogitado. Eu já imaginava que ela havia tido um filho, dois ou até três com o maldito Darius. Haveria largado a faculdade para fumar nas ruas e fazer passeatas contra a guerra. No trem de volta para casa, eu tinha uma nova carta para ler. Não era dela, e sim de meu amigo. Ele dizia que havia voltado para sua menina e que era grato por eu ter salvado sua vida. Nunca me esqueceria, ele disse. Eu havia salvado a vida de um bom homem, era demais até para mim.

Foi então que desci na antiga estação, qual hoje se tornou pavilhão histórico da feira municipal. Não imaginava encontrar Annabelle me esperando, já que minha mente estava cheia de besteiras. É claro que ela me esperava. Diferente. Nós dois havíamos mudado muito com o passar daqueles quatro anos. Seu rosto havia perdido um pouco do formato que eu lembrava. Agora ela sabia como usar maquiagem. Eu não via mais a face de uma menina, com ideias de um futuro brilhante. Via um rosto maduro, um rosto de mulher. Ainda assim, meigo como eu lembrava de ter amado. Nossos olhares se cruzaram e ela correu para mim. Foi o abraço mais forte que demos em nossa vida inteira. Depois dali, nunca mais iriamos nos separar, era uma promessa.

Annabelle havia se graduado com louvores e passava os finais de semana vendendo seus quadros em uma associação chamada Artesões e Artistas de Darby, que ela havia fundado junto

com alguns de seus colegas mais centrados. Fiquei aliviado por não ser Darius e nenhum dos outros idiotas malucos. Annabelle e a associação juntavam cada vez mais e mais artistas de todos os tipos. Pintores, desenhistas. Em poucos meses tinham uma sede no centro do balneário para vender o que podiam. Às vezes, eu passava as tardes dos finais de semana com ela, às vezes não. Eu ficava feliz por ela sempre que encerrava o dia depois de ter vendido alguns quadros. E depois voltávamos para casa.

Um mês depois de minha volta, eu cobrei sua promessa. Ela deveria se casar comigo. E ela cumpriu. Foi uma cerimônia linda, um pouco simples, mas linda. A situação financeira estava difícil por causa do pós-guerra. Mesmo ficando no passado, eu não conseguia esquecer aqueles dias. O Sr. Talbot me aceitou de volta na fruteira, mas o que ele podia pagar às vezes era insuficiente. Contudo, foi suficiente para Annabelle. Com o falecimento de Wallace, um de seus irmãos entrou na igreja com ela e a entregou para mim no altar. Casamos na igreja de St. Marks, aqui mesmo no balneário de Darby.

Evan, aquele dia foi o mais feliz de minha vida. Você mesmo pode testemunhar nessas fotos. Eu transbordava. E os quase 50 anos que passei ao lado daquela mulher foram os melhores anos que tive e sei que não são todos que estão destinados a ter. Annabelle não era apenas minha esposa. Ela era o meu ombro nos momentos de assombração. Era o meu amor. O único e verdadeiro. Se me arrependo de muitas coisas que fiz? É claro, mas não dela. Jamais dela. E nem da vida que levei ao seu lado.

Ela era tudo o que eu tinha. Eu daria tudo para tê-la outra vez e fazer as coisas exatamente iguais apenas para reviver tudo de novo.

III. Noite Iluminada

E, assim, ficamos em silêncio. Eu estava de cabeça baixa, apenas escutando-o. Quando ele

parou, levantei meus olhos para fitar seu rosto calmo e enrugado de todo o tempo que acabara de me descrever. Jamais eu veria alguém amar outra pessoa com tanta paixão. Aquele era um caso raro. E agora tudo o que Nortier havia me dito dias atrás voltava à minha memória. Tornava-se verdade, eu percebia. Annabelle o tornou um homem ainda melhor do que ele já parecia ser. E este homem estava diante de mim, lembrando-se da única mulher que já amou.

Eu queria, mas talvez nunca fosse como ele. Depois de toda a sua história, eu senti que o conhecia

totalmente. Eu poderia dizer que era um grande amigo. E, durante todo aquele tempo sentado à mesa, a noite findou. A luz do sol apareceu pela vidraça na entrada da casa, inundando o local com sua claridade, aos poucos. Na claridade, e ao meu lado, Nortier continuava sentado enquanto folhava o álbum de fotos. Ele parecia não querer voltar para a realidade. Eu também não desejava voltar, muitas vezes. Toquei seu ombro com calma. Apesar de tudo, eu tinha perguntas que desejava fazer. Não sabia se ele me responderia.

- Nortier foi a única coisa que eu disse.

Ele levantou os olhos com serenidade. - Vocês não tiveram nenhum filho? perguntei com a voz

trêmula. Talvez devesse começar por aí. - Nós tentamos, garoto. Tentamos. Com o avanço da

medicina, nós fizemos alguns exames, mas parece que um de nós não podia ter filhos. Pensamos em outras possibilidades, mas assim que vimos os anos passarem... suspirou. Pareceu não mais importar. É o que as pessoas fazem, entende? Elas continuam vivendo.

- E como vieram morar aqui neste lugar? Ele não respondeu de imediato. Seus olhos me

encontraram e eu ouvi seu suspiro rouco outra vez. Ele me avaliava. Deu de ombros, por fim.

- Annabelle, ela faleceu de câncer. Nortier tocou as têmporas com a ponta dos dedos. - Câncer de pulmão. É incrível, porque ela nunca fumou.

Os médicos disseram que o processo de recuperação era árduo. Não tínhamos muita tecnologia na época. Ela seria submetida a vários testes. Seria muito tempo em hospitais. Por isso, Annabelle recusou qualquer tratamento. Eu não entendi, à princípio. Ela não iria lutar pela vida assim como eu lutei para voltar da guerra? Falou que queria partir com o coração em paz, olhando para o mar e pintando. Annabelle, como você pode saber, não fazia sentido em muitas coisas. Para realizar os desejos dela, eu precisava de uma casa na praia.

- Mas não estamos exatamente na praia... Ele sorriu de canto e pacificamente. - Eu não escolhi essa casa nas colinas, Evan seus olhos

cintilaram. Um brilho diferente. Algo vivo, e temeroso. Ela foi um presente de um amigo. Um amigo... Em comum.

Um amigo em comum. Meu cabelo eriçou-se por um momento. Ele se referia a Morgan? Esse foi o modo como se conheceram. Morgan. Sempre Morgan. Eu não desejava perturbar as memórias de meu amigo, mas eu sentia cada vez mais que precisava. Era o único jeito de saber quem era aquele homem assombrando meus sonhos durante as noites. Quem era o homem que conseguia ler meus pensamentos e sentimentos? Que sabia de meus mais profundos segredos?

- Nortier comecei novamente, como se estivesse entrando em um campo minado. Nosso amigo em comum... É Morgan, não é?

Ele fez que sim. - Garoto, eu já vivi 83 anos para saber das coisas e percebê-

las. Você se sente ameaçado por ele, de alguma forma. Você o teme? Engoli em seco. Era tão óbvio? - Sim, eu o temo. E você também deveria. Não consigo

entendê-lo, e acho que sempre tememos aquilo que não compreendemos.

Eu jamais conseguia achar as exatas palavras que a presença de Morgan me provocava. Era único. Diferente. Terrível.

- Não vou mentir para você, garoto. Quando eu o conheci, senti o mesmo que você. Acabei descobrindo que ele é um bom homem, eu lhe garanto.

- E como vocês se conheceram? - Como eu dizia... Nortier começou a falar novamente. Dessa vez ele estava de pé e preparava dois chás de maçã.

Já era manhã e ele não ficaria sem seu chá. - Eu queria cumprir os últimos desejos de minha esposa,

mas eu não tinha dinheiro suficiente. Morgan ficou sabendo do caso de Annabelle no hospital e veio até mim. Ofereceu-me o lugar após algumas conversas. Quando perguntei pelo preço Nortier serviu-me a xícara fumegante enquanto eu o observava e escutava com

atenção disse que me daria. Simples assim. Fiquei totalmente confuso. Ninguém aparece e lhe dá as coisas. Perguntei-lhe por que faria aquilo. Você conhece Morgan. Ele sabia tudo sobre minha vida de algum modo, mas não me disse o que eu queria saber. Apenas me deixou as chaves. O que me disse foi que eu poderia ficar com a casa com uma condição: eu deveria fazer florescer todas as árvores recentemente plantadas na propriedade. Aceitei, é claro. Quem não aceitaria? Depois disso, vi Morgan uma vez mais, quando ele veio ver se eu cumpria o trato. Então dez anos se passaram até que eu o visse novamente, há alguns meses atrás. Quando ele me falou de você.

- O que ele falou? beberiquei o chá. Não estava com sono. - Disse que você era um jovem escritor muito talentoso e

um bom rapaz. Apenas isso? Eu esperava que ele falasse de toda a minha

vida para Nortier, mas na verdade não. Morgan era discreto. Apesar de tudo o que escutei sobre ele, nada parecia claro. Quem era o sujeito que faria todas essas coisas? Sinto que ainda irei descobrir quem ele é. Com o tempo. Senti a mão de Nortier pousar em meu ombro, e em seguida o barulho da xícara na mesa.

- Vou descansar, garoto falou com calma. As pálpebras pesadas. Até mais tarde.

E retirou-se da sala. Ouvi seus passos lentos e leves enquanto subia para o quarto. Depois, me levantei e andei até as cinzas descansando na lareira. Bocejei. Meus olhos começavam a pesar agora que estava sozinho e em silêncio. Sentei-me na poltrona que havia atrás de mim e permaneci fitando todos os retratos de Annabelle que dormiam no consolo da lareira. Nortier jamais mentira sobre a beleza dela. E suas obras ainda mais. Enquanto olhava, pensava e sentia meus olhos se fecharem após a bebida quente. A luz fraca do sol tocou meu rosto com seus curtos dedos de

claridade da manhã, atravessando a neve branca que continuava a cair. Percebi que faltavam apenas quatro dias para o Natal. Meus olhos imediatamente percorreram a sala em direção à árvore enfeitada.

Depois senti os braços de Morfeu me rodearem e os sonhos aparecerem em minha mente.

Vivi novamente as memórias de meu amigo. As boas e as terríveis. Revisitei todas as ruas da cidade que já conheço desde tempos em que eu não existia. Vi os atos terríveis da guerra descrita por Nortier. O sonho causava uma turbulência em meu sono, cansava-me. Era como se meu corpo se chocasse com algo em uma velocidade infinita. Cada vez mais forte era a dor em meu cérebro, fazendo-me duvidar de toda época que eu via diante de mim. E então uma batida fraca. Ela aumentava. Ficou alta de repente, quando descobri que eu estava acordado.

Cerrei meus olhos e olhei ao redor. Por um instante, duvidei do que eu via até lembrar-me onde estava. A penumbra era forte e meu cansaço de um sono mal dormido mais ainda. E algo ainda ecoava como uma batida. Já era tarde, eu havia dormido o dia inteiro. Olhei ao redor e imediatamente descobri a fonte daquela batida fraca e irritante. Morgan batia no vidro. Estava com seu terno e gravata, como sempre. Quando percebeu que eu o notara, retirou o chapéu. Suspirei. Sono ruim, sonho ruim, dor de cabeça e Morgan. Apenas uma espingarda carregada apontando para o seu rosto consegue melhorar as coisas. Caminhei com lentidão até a vidraça e a abri. Morgan entrou com seus olhos grudados nos meus. Acendi a luz da sala.

- Não se incomode começou ele com a voz fraca. Sou adaptável à escuridão.

Todos os vampiros sugadores de alma são, eu pensei de imediato. Não pude evitar um sorriso.

- Então tentei olhar diretamente em seus olhos. Falhei, mas continuei o que dizia. O que o traz aqui?

- Sem eufemismo entre nós, Evan. - O que você quer? perguntei, rispidamente. Morgan abriu seu paletó com um sorriso desbotado nos

lábios. Ele retirou duas pequenas caixas do bolso interior e colocou-as com calma em cima da mesa. Ambas as caixinhas eram vermelhas com laços decorativos de seda e de um azul brilhoso. Uma das caixas parecia ligeiramente maior.

- Vim desejar um feliz Natal para você, Evan. E para nosso amigo.

Fui desarmado por Morgan. Um feliz Natal? Que diabo aquilo significava? Com Morgan nunca era tão simples.

- A maior é sua, Evan. - Estou lisonjeado. - Claro que sim falou brevemente, ainda com seu sorriso

de escárnio no rosto Vou pedir-lhe um favor, contudo. Gostaria que esperasse até o dia de Natal para abrir.

- Por quê? - Perderia a graça da coisa, não acha? Balancei a cabeça positivamente. Até Morgan tinha o

espirito natalino. Eu deveria guardar minha curiosidade até o dia de natal.

- Fico muito feliz em ver que você e o Sr. Nortier se tornaram amigos passou por mim com calma em direção à rua. Ele é um bom homem. Até mais, Evan.

E saiu. Permaneci parado olhando-o subir no carro. Sem respirar,

sem me mover. Quando ele foi embora, deixei meu corpo cair novamente na poltrona de Nortier. Suspirei com os olhos fixos naquela caixa. O que haveria dentro dela? Eu queria descobrir, mas tinha medo. Parecia uma criança tola. Embora, em meu âmago, eu

soubesse que era verdade. Morgan saberia se eu a abrisse. Ou seria besteira? Não. Ele sempre sabia.

Com um pulo, andei até as caixas. Minhas mãos tremiam e eu estava impaciente. Por um segundo meus dedos tocaram a fita azul da caixa maior a minha e eu estava prestes a puxá-la. Pensamentos percorreram minha mente e resolvi deixar ambos os presentes embaixo da árvore. Um lugar que eu as esqueceria com facilidade. Ótimo. Tirei aquilo da cabeça e subi as escadas para o quarto, onde deixei meu corpo cair na cama. Voltei ao sono, mas dessa vez em um lugar tranquilo. Talvez aquela turbulência fosse um presságio para a presença de Morgan.

E depois daquela noite, as manhãs passavam enquanto eu estava com Nortier.

Às vezes, o dia se tornava pacato enquanto eu ficava na janela ao lado do estúdio de Annabelle, outras vezes eu ajudava Nortier em algumas tarefas da casa. E então chegou a véspera de Natal. Querendo admitir ou não, eu estava ansioso. Este seria o primeiro ano em muito tempo que eu não estaria totalmente sozinho e imaginava o mesmo para Nortier. Havia ainda os presentes de Morgan. Eu queria descobrir o que havia dentro daquelas caixas, mesmo que talvez Nortier não me mostrasse o que ele ganhou. E faltavam apenas algumas horas, então tratei de preencher o tempo. Durante o dia, ajudei meu amigo no que podia na cozinha. Mesmo não sendo nem perto o cozinheiro que ele era, eu ainda podia descascar batatas. Uma tarefa simples. Quando terminamos, percebi que havia comida de sobra. Havia tortas, doces de maçãs, assados e mais. Era uma ceia completa.

- Acha pouco, garoto? perguntou com um tom de voz desconfiado.

Ele realmente achava, eu via em sua expressão. - Pouco? Retruquei, soltando um riso. Nortier assentiu. Era sério.

- Acho que será suficiente falei, enquanto escondia o sorriso deixado pela minha gargalhada.

E as horas passaram. Nortier não possuía televisão, então não podíamos ver qualquer programa natalino que estivesse sendo exibido. Não me importei. Apenas conversamos naquela noite, em geral eu ouvi Nortier falar. E escutamos o rádio. Não é difícil adivinhar sobre o que ele falava.

- O termo mais conhecido, maçã sempre o entusiasmo em sua voz e o brilho nos olhos. Originou-se do termo mala matiana, do latim. Significa maçã do Mácio.

Eu sorria enquanto o ouvia falar. Parecia que, para aquele homem uma coisa tão simples quanto maçãs se tornava algo extraordinário, e por algum motivo eu ficava feliz. Ver a glória nas pequenas coisas e saber desfrutá-las. Era uma habilidade que eu gostaria de ter, e talvez no futuro eu pudesse ter pequenos vislumbres. Era uma habilidade excepcional. Talvez não fosse apenas porque ele gostava, mas sim porque era o que lhe restava de um antigo mundo. Um mundo que tira tudo de bom que há nas pessoas e jamais devolve. Percebo que antes de tê-lo conhecido eu talvez jamais pensasse algo assim. Talvez pensamentos tão bons nunca viessem a cruzar minha mente.

Foi então que Nortier parou de falar e olhou para o relógio com o mesmo brilho infantil nos olhos. Já havia passado da meia-noite. Ele puxou a cadeira, levantou-se e andou com calma até a árvore. Retirou um pacote embrulhado e me entregou.

- Feliz Natal, garoto. Recebi o presente com surpresa. Era verdade. Eu não havia

comprado nada. - Feliz Natal, Nortier. Sinto muito não ter nada para você...

eu estava corado. Ele sorriu. - Não se preocupe falou.

Apontou o dedo para o presente em seguida, fazendo sinal para que eu abrisse.

- O Sr. Morgan disse que você não escrevia nada há algum tempo, por isso pensei que talvez fosse gostar.

Desfiz o embrulho com rapidez e com minha ansiedade crescente. Era um embrulho tosco de formato quadrado e uma fita colorida em cima. Eu não tinha ideias do que poderia ser. Era um livro em capa dura feita de couro. Na capa, em letras douradas, havia

na caixa onde o livro estivera há pouco. Folhei-o. Não havia nada, apenas páginas em branco. Segurei a caneta com dedos trêmulos. Eu poderia jurar que meus olhos brilhavam como os de uma criança quando ganhava um presente de Natal. A caneta possuía as mesmas letras impressas em sua lateral.

O presente me desarmou por completo. Não conseguia dizer nada. Talvez porque não houvesse o

que dizer ou porque Nortier tinha feito para mim algo que ninguém fizera em um longo tempo. Ele apenas lembrara. Olhei para seu rosto, marcado pelo tempo, pensando exatamente em que dizer. Eu não precisava dizer nada, ele já sabia.

- O meu presente é tê-lo aqui comigo esta noite, garoto falou ele, com um riso, enquanto pegava uma garrafa de champanhe da mesa e a abria com dificuldade.

Ele serviu metade de duas taças e brindamos em silêncio. Tomei apenas um pequeno gole e então pousei a taça na mesa, recordando algo de súbito. As caixas de Morgan.

- Morgan veio aqui há poucos dias. Deixou um presente para você e um para mim.

Andei até a árvore com pressa a procurei na escuridão embaixo dos galhos as pequenas caixas que só agora eu percebia terem letras brilhantes em suas laterais. N e E. Peguei-as.

Entreguei a respectiva caixa de Nortier para ele. A ansiedade percorria meu corpo e meus dedos trêmulos puxaram o laço da minha, revelando um brilho no interior misterioso. Havia um embrulho negro de veludo e por cima do embrulho um cartão branco, de textura exatamente igual aos cartões de Morgan. Peguei-o com calma e o virei, esperando encontrar algo escrito. E estava, mas não impresso. Estava escrito com uma grafia quase desenhada. Imaginei que fosse de Morgan.

Não corra, dizia, apenas. Não corra? Fiquei me perguntando. Em seguida

desembrulhei o veludo com pressa para revelar um relógio de prata. A hora precisava ser atualizada. Os ponteiros permaneciam trancados às oito e meia da manhã. O relógio prateado era simples, sem muitos detalhes, mas claro que apenas de vista já se via que era caro demais para alguém como eu. Permaneci pensando nas palavras escritas no cartão e nos ponteiros trancados. Soava-me familiar, mas eu jamais associaria nenhum fator tão comum quanto um relógio prateado. Apenas anos mais tarde essa dúvida voltaria à minha cabeça. Deixei meus pensamentos irem embora e me aproximei de Nortier. Ele também ganhara um cartão exatamente igual e continuava segurando-o com o rosto abismado. Os óculos de leitura pendiam na ponta de seu nariz bicudo.

- O que diz? perguntei, tentando olhar por cima de seu ombro.

Ele me entregou o cartão com desdém. Floresça Então, ele retirou o mesmo veludo que cobria seu presente.

Não era nenhum objeto como um relógio. Era algo realmente estranho, enigmático para mim. Por algum motivo pareceu fazer sentido para ele. Era uma folha. Tinha as bordas de um amarelo fosco que eu nunca vi e parecia mudar de cor a cada nova rajada de luz, mas era apenas uma ilusão de ótica. Transmutava-se

serenamente de vermelho rosado para salmão até chegar a um total amarelo esverdeado.

- Uma folha? meu tom de voz saiu absolutamente incrédulo.

Achei que deveria pensar melhor antes de falar. - Sim, Evan Nortier havia dito meu nome. Algo estava

seriamente errado. Mas não é uma folha comum... - O que é, então? - Venha comigo. Eu fui. Deixamos a saleta e subimos a escada até o segundo andar.

Dobrei o corredor enquanto seguia Nortier e fomos até a janela que dava para o mar. Estava fechada. Imaginei como seria a brisa que entraria por ali no verão. Na porta ao lado, Nortier retirou uma chave do bolso e a abriu. Um cheiro diferente chegou até mim. Parecia o cheiro adocicado que todo livro tem a primeira vez que é aberto. E também se misturava ao cheiro de tinta.

Era o estúdio de arte. As paredes eram pintadas com uma técnica que deixava a

tinta parecer escorrida, vinda dos céus. Era lindo. Uma parede de cada cor. No centro, uma grande mesa com todos os equipamentos para a produção dos vasos de cerâmica, e à esquerda, uma grande vidraça agora fechada que levava a uma sacada com uma vista esplêndida para o oceano. Imaginei a tela erguida ali fora, com a jovem Annabelle dos retratos movendo o pincel com suavidade e formando uma vista dentro de outro mundo. Lá dentro, havia tudo que um dia fora dela. As telas, seus equipamentos. Também todos os quadros que Nortier salvara do fogo e nunca pendurou. Estavam praticamente intactos. Quadros não tão belos quanto os que eram vistos nas paredes da casa, mas lindos de uma forma diferente. Eram majestosos, suaves e amadores. Supus que seriam os primeiros dela. Nortier olhou ao redor e andou até os quadros que estavam

encostados na parede, alinhados em fileira, e procurou por algo. De repente retirou um da fileira e o colocou sobre a mesa.

Eu reconheci imediatamente a colina. Estava diferente, parecia mais viva do que no frio do inverno. Eu via a plantação de Nortier em abundância. As macieiras continuavam lá, totalmente floridas. Porém, havia algo realmente diferente. Uma grande árvore. Tronco grosso e galhos firmes. Eu nunca a havia visto antes em minha vida. Tinha frutos que pareciam maçãs, mas não eram. As folhas me eram familiares e todas de diferentes cores, como se estivessem sob uma diferente perspectiva de luz. Foi então que eu reconheci a folha de Nortier. Ele olhou-me com seriedade.

- O que o Sr. Morgan lhe deu de presente? - Um relógio estendi o pulso e mostrei o objeto que eu já

vinha usando. - E a mensagem? - Não corra. Não sei o que quis dizer. - Saberá, com o tempo. E Nortier tinha razão. Muitos anos ainda passariam para que eu entendesse o

significado de tudo aquilo. - Nortier. O que sua folha e esse quadro têm a ver? O que

Morgan queria dizer? - O Sr. Morgan é um homem muito enigmático. Não

consigo entender como ele arranjou aquela folha. Os olhos de Nortier voaram pela sala e me fitaram com

rapidez, até pousarem novamente sobre o quadro. - Há muitos anos um homem me ensinou uma técnica

especial de jardinagem. Nortier começou a narração como sempre fazia, com

perfeição. Parecendo lembrar cada detalhe especial. - É pouco conhecida e geralmente malsucedida. Misturar

sementes de frutas para criar novas. Esse homem costumava fazer

muito isso, mas ele criava coisas horríveis. Com gostos terríveis. Um dia, eu resolvi tentar. Eu misturei as sementes de maçãs com sementes de outras frutas, as quais jamais eu consegui lembrar. Esse foi o fator chave para que eu não tentasse novamente. Eu fiquei abismado quando deu certo e vi uma árvore que nunca tinha visto em minha vida crescer, de repente, no gramado.

Tornou-se pensativo. Eu apenas escutava as ondas do mar e minhas têmporas.

- Era um fruto totalmente diferente. Imune às estações. Crescia na época que lhe provinha. E era totalmente delicioso. Exatamente igual ela pintou. Annabelle adorava as tortas feitas dele. Eu poderia ter ganhado dinheiro vendendo algo tão bom que somente eu possuía, mas ela disse que não. Estávamos sendo abençoados com algo que era apenas nosso. Batizei a árvore de Belle. A árvore durou muitos anos, mas do mesmo jeito que florescia quando queria, um dia ela se rendeu quando quis e morreu.

Nortier virou as costas e deixou o estúdio de arte. Aquela folha havia mexido com suas memórias e com seus nervos. Eu permaneci sozinho dentro daquele lugar, a sós com todas as memórias e pensamentos de Annabelle, alguém que o tempo me proibiu de conhecer. Uma sensação diferente me invadiu. Uma sensação de imaginação que todos nós sentimos em algum momento da vida. Imaginar como seria alguém que já partiu. Imaginar diferentes ações dessa pessoa que sua mente parece tão próxima, mas tão longe.

Pura fantasia. Olhei por breves momentos a rua lá fora. A neve já havia

recuado aos poucos. Imaginei outra vez como a vista do verão seria dali. Pura inspiração. A água tocaria as areias com suavidade e as gaivotas sobrevoariam o oceano, exatamente como uma das pinturas que eu havia visto na fileira de quadro. Era este o lugar onde aquela mulher tinha todas suas ideias. Por um segundo imaginei como seria

ter as minhas ideias aqui. Escrever na beirada da sacada com o vento agraciando meus cabelos. Durante aquele momento de imaginação, me perdi como não fazia em muito tempo. Perdi-me em um mundo que eu estava criando em minha mente, um mundo que eu controlava. Cheio de palavras flutuando e se alinhando. Então a voz de Nortier no andar de baixo ergueu-me de volta para a terra das realidades. Mas a sensação de letras não havia evaporado, estava lá guardada. Como uma ansiedade crescente dentro de meu peito. Gritando em meu coração. Balancei a cabeça e deixei o estúdio enquanto fechava a porta atrás de mim e seguia pelo corredor. Desci a escadaria com rapidez, e um sorriso no rosto. Nortier havia servido um pouco mais da ceia de Natal e entregava-me minha taça de champanhe. Ele levantou a sua para mais um brinde.

- Garoto, vamos esquecer tudo isso disse, com um suspiro. Precisamos seguir a vida. Sem correr.

- Sem correr concordei, mesmo não sabendo o que isso significava.

IV. De Volta ao Lar

Mais uma vez, eu e Nortier passamos a madrugada em claro. Ele falava com o entusiasmo de sempre e eu ouvia sua sabedoria com alegria. Falou, com pesar, dos últimos dias de sua esposa. Especialmente do último natal. O câncer a consumiu em poucos meses, mas por sua vontade de ter apenas ficado apreciando a vista do oceano e não ter passado por dolorosos processos de tratamento, Nortier me contou que ela estava sorrindo quando fechou os olhos. Disse que o veria novamente, um dia. Devo admitir que foi difícil me segurar para não acabar em lágrimas. Tudo sempre voltava novamente para mim. As semelhanças eram muitas. A religião até o fim, a vontade de viver e aproveitar os últimos dias. Meu pai. Falei isso à Nortier, e nos tornamos ainda mais tristes e compreendidos um com o outro. Compreendidos com a enorme dor que carregávamos. E, então, a noite passou e outro dia chegou.

O tempo parece fluir com mais rapidez quando estamos felizes. Muitas vezes, cheguei a pensar como os ponteiros do relógio são maléficos. Eles querem ver você queimar. Tudo passa mais depressa na felicidade, para que então você retorne à tristeza. A verdade é que o tempo não tem nenhuma culpa, ele passará de

qualquer modo. Talvez o melhor modo seja aproveitá-lo enquanto se pode.

Era dia 26 de dezembro. Havia apenas a neve nas ruas, mas ela não caía. Fiquei parado diante da vidraça da entrada, observando o caminho da estrada. Nortier estava parado ao meu lado.

- Tenho que ir embora sussurrei. - Certo, garoto. Olhei para ele e sorri. Sua mão pousou em meu ombro. - Sabe dirigir? me perguntou. - Você tem uma bicicleta sobrando? brinquei. Um riso agudo saiu de sua garganta. - Vamos, vou levá-lo para casa. E deixamos o sobrado nas colinas para ir até a velha

garagem em busca do carro. O portão de madeira foi aberto e o cheiro velho voou forte. Pela primeira vez, eu vi o carro que havia lá, quando Nortier tirou o pano que o cobria. Eu nunca fui um grande conhecedor de veículos, mas eu tinha certeza de que aquele era um Corvette 1971 por causa do modo em que o capô descia, deslizando, e apenas por haver dois lugares. Era negro e parecia nem existir dentro da garagem. Nortier ligou o motor e um ronco estridente ecoou, junto com o cheiro de escapamento. Após Nortier sair daquele local, fechei a garagem e me apurei e entrar no banco do carona, sentindo o couro original do banco. Nortier me contou que todo o carro era original e ele parecia se orgulhar tanto dele como se orgulhava de suas macieiras.

Seguimos a mesma estrada que Gilbert e todos seguiam para sair de Darby e ir para a cidade. A viagem foi lenta e silenciosa, com breves palavras. Eu estava triste por voltar para casa e Nortier Devido a uma grande variedade de modelos de Corvette, foi importante especificar o ano do carro de Nortier. Especialmente pela nostalgia contagiante da personagem. Nota do

autor.

por voltar a sua solidão. Eu sentia que ele precisava de alguém. As poucas palavras dele foram sobre não dirigir havia anos e nem sabia se poderia mais e também por não se lembrar da cidade tanto quanto gostaria. Eu tive de guiá-lo para que minha casa fosse achada. Ele estacionou em frente à casa mais feia da rua. Era a minha.

- Obrigado por tudo, Nortier. comecei dizendo. Estendi minha mão em sinal de agradecimento. Ele sorriu

e me puxou, abraçando-me por alguns segundos. - Apareça quando quiser, garoto. Será bem-vindo. Abri a porta do carro e saí, respirando em meus pulmões o

ar poluído da cidade. Eu segurava o livro sem letras em uma das mãos e a caneta dentro de meu casaco. Segui andando pelo caminho de tijolos quebrados que eu tanto conhecia. Escutei o carro às minhas costas partir. Não olhei para trás enquanto abria a porta da casa e escutava o ranger da fechadura. Um cheiro úmido de poeira me atacou com força. Olhei para a sala enquanto permanecia parado na soleira da porta, agora fechada. Tudo exatamente como eu havia deixado. Larguei o livro no consolo da lareira e sentei-me na poltrona velha enquanto olhava para o teto. Já era tarde e eu estava ficando com fome. Não havia nada em minha casa. Resolvi encarar a rua outra vez. Eu começava a sentir que tudo ia começar novamente. Vagar pelas ruas, andar por aí sem nenhum destino. Era isso que havia para mim. A rua estava completamente deserta. Talvez as pessoas ainda não tivessem voltado a trabalhar ou a sair tão em seguida da data natalina, eu não sei. Apenas sei que havia muita neve nas ruas. E frio. A tempestade havia sido forte na cidade.

Segui andando, por puro instinto. Desci a minha rua vazia, muitas vezes afundando meus sapatos velhos na neve branca. Seguia as ruas, sempre reto. Minha cabeça baixa, um andar automático. Eu

que estranhamente estava aberto e cheio de pessoas e fui diretamente para meu lugar costumeiro, pedindo um lanche e um

chocolate quente. Enquanto isso, um homem arrastava uma cadeira à minha frente em minha mesa. Ele sempre pedia coisas, mas não da lanchonete.

- Estava perguntando quando nos veríamos novamente ele falou.

Sua voz sempre um timbre estranhamente metálico e rouco.

- O que os presentes significam? perguntei, sem olhar para ele.

Eu olhava pela vidraça enquanto ouvia as vozes das pessoas. Olhava a vastidão do céu azul tornando-se negro.

- Perderia a graça se eu lhe contasse. - Que seja retruquei. - É adorável quando você trata coisas que lhe importam

como se não tivessem absolutamente nenhum significado para você. Finalmente olhei nos olhos de Morgan, mesmo que por

alguns poucos segundos. - Por quê? perguntei. Ele saberia do que eu estava falando. A garçonete

aproximou-se, pondo meu pedido na mesa. - Muitas pessoas fazem essa pergunta, Evan. Mesmo sem

saber o que perguntam. Por que o quê, Evan? - Você sabe. Morgan exibiu seu sorriso cínico. - Creio que chegou a hora. - Hora? Do que você está falando agora? mordisquei

minha torrada enquanto o nó em meu cérebro se desfazia. Eu odiava quando Morgan trocava de assunto. - Você me prometeu um jantar, lembra-se? Não poderá

fugir dessa vez. Eu sabia que isso voltaria para me assombrar. Continuei

comendo minha torrada como se não o escutasse. Contudo, mesmo

sem fitá-lo diretamente, eu podia sentir seu olhar cravado em mim e pressenti que não escaparia. Não dessa vez.

- Por que quer tanto me obrigar a jantar com você e sei lá mais quem? perguntei com indignação.

Na verdade, eu sabia exatamente com quem. A mulher. Cada vez que eu pensava nela sentia meu corpo tremer. Ela esteve em meus sonhos mais vezes do que posso contar, mas eu sabia que seria totalmente diferente quando eu realmente a encontrasse. Que eu seria humilhado. Afinal, quem era eu além de um sonhador de jaqueta rasgada? Mas então, lembrei-me de Nortier. Quem era ele além de um trabalhador de floricultura perto de uma estudiosa? E, mesmo assim, eles haviam funcionado. Acho que nunca se pode dizer nunca. A época era outra, totalmente diferente. Ou seria isso apenas uma defesa de minha mente?

- De modo algum eu o obrigo, Evan falou Morgan calmamente enquanto punha seus dedos na mesa. Vejo que você trava uma batalha dentro de si. Devo lembrá-lo da última vez que estava relutante em conhecer alguém que eu queria lhe apresentar?

Não disse nada. Ele estava absolutamente certo. Pelo canto dos olhos eu o vi se levantar e deixar dinheiro em cima da mesa. Se Morgan podia me incomodar tanto, era melhor que pagasse minha conta.

- Acho que realmente não preciso lembrá-lo de sua nova amizade, não é? ele encerrou tudo o que tinha para dizer e deixou

Tornei-me pensativo outra vez enquanto terminava meu

lanche e bebia o chocolate que descia quente pela minha garganta. Eu deveria dar razão a Morgan? É verdade que relutei em conhecer Nortier. Eu relutaria em conhecer qualquer pessoa que Morgan quisesse me apresentar. Gilbert era tão estranho quanto ele. Mas, ao pensar, vejo o que resultou. Nortier é agora o mais próximo que posso chamar de um amigo. Eu imaginava que já não pudesse

alcançar Morgan, mas, mesmo assim, terminei o mais rápido possível meu lanche e levantei com um pulo da cadeira, correndo ao encontro da rua. Somente as luzes piscando, enfraquecidas e prontas para renderem-se, deixando todos à mercê da escuridão. Havia alguns carros espalhados pela rua, estacionados, bem afastados uns dos outros. Mas eu não o via. Não até parar bem à minha frente. O vidro traseiro desceu e os olhos de Morgan encontraram os meus.

- Amanhã, às 8 da noite. Gilbert estará à sua espera em frente de sua casa.

Balancei a cabeça positivamente sem dizer nada. O carro partiu e eu engoli em seco. O que eu havia feito? Um medo tomava conta de mim. O que seria agora? Talvez eu não tivesse tomado a decisão certa, mas foi a decisão que fiz. Era tarde.

Só restava esperar.

Os faróis do carro negro iluminavam a rua durante a noite. Olhei brevemente pela janela quebrada e suspirei. Era hora.

Passei mais uma vez a mão pelos meus cabelos molhados, pelo queixo lugar onde há poucos minutos havia uma floresta e depois abotoei meu velho paletó preto. Percebi uma mancha cinzenta na camisa branca enquanto estava em frente ao espelho, mas dei de ombros. Era o melhor que podia fazer. Deixei a casa com passos rápidos e segui a estrada de tijolos após fechar a porta. No carro, descobri que estava apenas o silencioso motorista. Morgan já estava no restaurante. Gilbert fez um balão na rua após eu entrar, e seguiu pelo caminho oposto de onde viera. Passamos pela movimentada Bourbon e seguimos pela Variant até a Falmor. Definitivamente não seria o mesmo restaurante da última vez. A Rua Falmor, em frente à praça, só exibia estabelecimentos de puro luxo com uma freguesia de executivos tão estranhos quanto Morgan, embora ele ganhasse de todos. Por um momento, me arrependi de não ter aparecido no primeiro jantar.

Gilbert começava a estacionar. Estávamos parados atrás de um jipe vermelho. Aquele jipe. Era a segunda vez que eu o via. Eu estava certo, era mesmo ela. A mulher. Desci do carro com o coração

disparado, indo cada vez mais rápido. Um medo crescente em meu estômago. Eu apenas desejava fugir enquanto minhas veias palpitavam. O restaurante chamava-a porta que eu passasse. O coração estava ainda mais acelerado quando entrei e vi todos aqueles homens de terno e mulheres de vestido longo. Fugir, era o meu pensamento. Tarde demais. Morgan caminhava lentamente em minha direção.

- Evan falou. Forcei um sorriso. - Que bom que veio. Eu o acompanhei automaticamente. Minhas mãos

tremiam e eu sentia como se mil olhares estivessem cravados em mim. Alguns realmente estavam. Chegamos à mesa no fundo do local e, então, sem nenhuma compreensão, eu estava calmo, de repente. Foi a primeira vez que pude realmente olhar nos olhos castanhos dela. Parecia que meu mundo havia estagnado quando nossos olhos se encontraram. Ela usava um vestido curto e uma jaqueta de couro por cima que tinha, no mínimo, dois anos, julgando como o tecido estava quebradiço. Estava sem maquiagem, apenas um excesso de batom vermelho. Seus cabelos negros e ondulados caíam em seu rosto. Ela era simplesmente linda. Enquanto nos fitávamos, ela sorriu. Uma vez Edgar Allan Poe disse que a janela da alma são os olhos. Eu discordo. É o sorriso. Podemos ler tudo através dele. Discórdia. Amor. Inveja. Ele é tudo. E, no sorriso dela, eu li conforto. Ela havia achado conforto em mim. Já estava de pé e com o braço esticado.

Apertei suavemente sua delicada mão pequena. - É um prazer finalmente conhece-lo, Sr. Doyle disse sua

voz doce e com forte sotaque inglês. Autor, poeta, editor e crítico literário americano conhecido por seus contos policiais que

envolviam muito mistério e elementos macabros. Nota do autor.

Eu me perdia cada vez mais naquela mulher. - Cristine Scott. Estávamos todos sentados novamente. - Sr. Doyle era o meu pai. Eu sou apenas Evan falei com

calma e um sorriso abobalhado em meu rosto. Eu não sentia pressão ao falar com ela. O nervosismo

sumira. Eu me sentia... livre. - Evan Doyle disse ela, pronunciando todo meu nome

com uma forte pontada no último. Era o sotaque. O romancista. Tem razão, Sr. Morgan. É forte.

Morgan exibiu seu sorriso de sempre. - Evan começou Morgan, levando seu olhar até mim.

Cristine olhou para ela brevemente é uma antiga amiga e eu gostaria que fizesse companhia a ela no jantar.

Cristine olhou Morgan sem entender. Imediatamente, soube o que ele fazia. Fez a mesma coisa quando me apresentou Nortier. Gilbert estava parado na porta do restaurante, esperando-o com seu chapéu em mãos.

- Alguns assuntos urgentes chamam minha atenção se levantava com pressa. O jantar já foi pago na recepção.

E, então, foi embora, seguido por Gilbert, que lhe entregara seu chapéu. Vi o carro partir através do vidro da porta.

Os minutos começaram a correr no relógio e o silêncio a pousar sobre a mesa. Eu começava a sentir o suor escorrendo por minhas têmporas. Aquele maldito lugar tirava todo o conforto que eu podia sentir. E a razão principal de eu estar aqui havia ido embora. Morgan. Por que ele fazia essas coisas? Ele também havia me deixado a sós com Nortier com a desculpa de sair a negócios. À minha frente, Cristine brincava com sua taça, em total silêncio. O rosto caindo pelas mãos encostadas no queixo fino. Eu precisava de uma saída.

- Você quer ir embora? as palavras saíram com rapidez.

Corei imediatamente. Ela olhou em meus olhos e sorriu como se não acreditasse no que eu dizia.

- Deus! Ótimo que perguntou! Deixamos a mesa e saímos daquele restaurante, rápidos

como o vento. A porta abriu-se para nós e eu senti a neve cair em meus cabelos e meu rosto recentemente barbeado. Estava frio. Vi minha baforada no ar. Estávamos quase em janeiro. Em algum momento, a neve pararia. Cristine retirou do bolso da jaqueta um gorro e colocou-o na cabeça, deixando apenas uma mecha negra de cabelo escorrendo por sua face branca e lívida. Os lábios ainda mais vermelhos. Seus olhos castanhos me fitaram com esperança. Eu deveria saber o que fazer.

- Quer dar uma volta? apontei para a praça. Meus olhos comprimidos e o ar se esvaindo de meus

pulmões no frio. - Pela praça? Assenti. Ela riu. Imaginei que talvez não fosse bom sinal. - O que você tem em mente para mim nessa escuridão?

Quer se aquecer? ela ainda ria. Eu estava totalmente vermelho e sem graça. Acho que ela

notou. - Desculpe. Foi apenas uma piada, Sr. Doyle. Esbocei um sorriso. - Sr. Doyle era o meu pai. Já andávamos pela calçada da praça. Era impossível andar

por onde, antes havia grama, agora tinha apenas neve branca. Penetrávamos cada vez mais o lúgubre lugar, vazio e em uma penumbra. Algumas luzes fracas iluminavam nossos rostos e nossos pés. Eu não precisava daquelas luzes. Andaria naquele lugar de olhos fechados. Passamos pelo lago congelado.

- Suspirei.

- Ele faleceu há alguns anos. - É uma droga. Eu já estava preparado para um simples sinto muito, mas

não. Com ela seria diferente. Ela disse apenas a realidade. É uma droga. Sorri verdadeiramente em muito tempo.

- Você me parece uma criatura diferente, Evan Doyle. - Por quê? Ela andava de costas à minha frente, analisando-me com

seus olhos sedutores. Era desconcertantemente bom. - Quem deixa um restaurante daqueles para andar em uma

praça assombrada? sua sobrancelha levantou lentamente. - Você deixou. Ela sorriu. Eu havia ganhado em seu próprio jogo. - Eu não me sentia bem lá retruquei. - Ah, eu entendo ela disse, revirando os olhos. Já me

acostumei. - Costuma ir a muitos lugares desse tipo? - Eu costumava, Evan... Costumava mesmo. Cristine aproximou-se novamente de mim e segurou

minhas mãos. Ela continuava sorrindo. Seguimos andando pela praça, olhando um para o outro ocasionalmente, sem nenhum rumo. Nenhum lugar para ir. Ela olhava em meus olhos e eu tentava retribuir seu olhar. Sorriamos um para o outro. Às vezes, era como se não precisássemos dizer nada. Chegamos ao limite da praça e achamos uma barraquinha de cachorro-quente. Comemos sentados em um banco, e olhando as estrelas. Depois nos olhamos novamente. Não precisávamos falar, mas ainda havia tanto para dizer.

- Uma das comidas mais caras da cidade por um cachorro-quente ela disse. Maravilhoso.

Ela falava sério. Parecia adorar aquilo. Eu não disse nada. Na verdade, não sabia o que dizer. Não sabia como impressioná-la.

Descobri que não era necessário com Cristine. Das mulheres com que eu estive, essa era a primeira vez que não sentia essa necessidade.

- O Sr. Morgan falou um pouco sobre o que você escreve. - Eu não escrevo muita coisa. - Ele discorda. Parece gostar muito de você. - E você? Ela desviou o olhar até o céu escuro e brilhante. Suspirou

e fitou-me novamente. - Se eu gosto de você? Acho que eu ainda não... - Não cortei-a imediatamente sem querer. Minha curiosidade sobre Morgan era sempre mais forte do

que tudo. - O que você acha de Morgan? - Ah, bem... Ele é tranquilo. É excêntrico, mas todos nós

somos Cristine segurou minha mão. Está escrevendo algo? - Não mais... Ela esperava que eu continuasse. - Estava, mas não mais. Encontrou as chamas Sorri sem

graça. - Síndrome do artista. Vocês são egoístas. Nunca consegui

entender. Quando eu era pequena, minha irmã mais nova costumava desenhar. Ela deixava os desenhos em um porta-retratos ao lado de nossas camas. Eram desenhos perfeitos. Toda semana, um desenho novo, porque os velhos ela queimava. Vocês deveriam mesmo pensar um pouco nos outros, quem sabe alguém goste do que vocês fazem.

Estávamos sentados lado a lado. Olhando fixamente um para o outro. Eu podia beijá-la ali, mas não o fiz. Eu apenas a olhei e gravei seu rosto em minha mente, sua personalidade, seu perfume adocicado. O quão diferente era aquela mulher. Nossas mãos estavam juntas e assim ficaram.

- Você acredita em destino? ela me perguntou, de repente.

- Não respondi com certa aspereza. - E no que você acredita, Evan Doyle? No que eu acredito? Eu não saberia dizer a ela. Seria muito

complicado dizer que eu perdi todas as convicções quando o tempo passou. Perdi a fé.

- Eu... não consegui terminar o que ia dizer. Apenas desviei o olhar.

- Eu acho que entendo você... O momento em que não sabemos no que devemos acreditar. E nós apenas seguimos vivendo... Mas, em algum momento, você achará sua crença, acredite. Ao seu modo.

Seus dedos finos e quentes tocaram meu rosto gelado, acariciando-me com suavidade.

- Mas foi destino, estou certa. Eu sabia do que ela falava. De nós. Aquilo me alegrou. - Eu não posso acreditar nisso. - E por que não? - Porque... suspirei. A ideia de que algo me controla, e

que não importando o que eu faça, sempre chegarei a um destino certo, não me conforma. E se eu quiser que as coisas aconteçam diferentes?

Ela ficou em silencio. As pessoas que tem suas crenças nunca tem nada para rebater quando a verdade bate à sua porta. Elas apenas ficam quietas. Jamais me orgulhei de dizer palavras tão duras. Cristine franziu os lábios e depois sorriu novamente. Seus lábios carnudos e rosados de batom. Ela tinha um sorriso perfeito.

- Mas nós nos encontramos disse. Você evitou no início, eu sei. O Sr. Morgan me disse... Mas fico feliz que nos encontramos, enfim. Diga-me que não foi destino, me prove o contrário.

- Eu não posso fazer você desacreditar algo que é tão importante para você, assim como você não pode me impor uma crença que não me pertence.

- Está bem. Ela continuava a sorrir. Olhou em outra direção e

levantou-se do banco onde permanecíamos sentados. Por um minuto achei que eu tinha estragado tudo.

- Me acompanha? perguntou. Eu não precisava responder. Ela já sabia que eu a

acompanharia até onde quisesse. Cristine segurou minha mão enquanto seguíamos pelo mesmo caminho por onde viemos. Os galhos balançando com o vento à nossa volta e tudo naquela praça parecia cada vez mais mágico para mim. Eu não sei que efeito era aquele, se era algo que Cristine causava em mim. Apenas sei que havia anos que eu não o sentia com tanta força.

- Eu adoro esse lugar ela disse, olhando em volta. Não vinha aqui desde minha infância.

- Por muito tempo, foi meu segundo lar respondi, observando-a.

Havia realmente muitas memórias naqueles bosques. - Meu pai costumava me trazer aqui quando eu era

pequeno. Depois que ele faleceu, eu simplesmente vinha aqui... - Automaticamente ela completou. - Automaticamente confirmei. Seguimos andando por mais minutos do que pude contar.

estava estacionado na entrada do restaurante. Cristine aproximou-se do veículo, abrindo a porta.

- Quer uma carona para casa? Por mais que eu desejasse com todas as minhas fibras passar

ainda mais tempo com ela, eu não podia aceitar. Pensei em meu

portão destruído, a entrada de tijolos quebrada e minha casa velha. E se ela quisesse entrar? Eu vivia em um lugar arruinado. Não podia.

- Consigo ir a pé respondi com um leve dar de ombros e um sorriso pacato.

- Certeza? Fiz que sim. - Muito bem ela aproximou-se de mim e segurou minha

mão uma vez mais. Amanhã, no mesmo banco que sentamos hoje à noite. Esteja lá.

- Mesmo horário? eu estava totalmente confuso. - Eu não sei respondeu. Esteja lá a hora que quiser. Se

for para nos encontrarmos, nos encontraremos. Eu hesitei, mas precisava perguntar. - E se não for? temia pela resposta. - Se não for... Cristine beijou meu rosto e depois entrou

no jipe, fechando a porta e ligando o motor. As luzes espalharam-se em um feixe claro pelo asfalto. Acho que isso é um adeus, Evan Doyle.

Destino. Era isso que Cristine queria provar para mim. Ela queria

me mostrar que de algum modo, o universo nos queria unidos, queria que ficássemos juntos. Mas eu tinha uma sensação ruim. O universo nunca era bom comigo. Ele gostava de me ver sofrer, destruir tudo o que era importante para mim. De alguma maneira, Cristine havia se tornado importante em tão pouco tempo. Assim como Nortier agora era importante em poucas semanas.

Medo. Era tudo o que eu sentia enquanto estava parado na

calçada, assistindo aquele jipe vermelho ir embora, com suas luzes tornando-se apenas borrões claros em uma escuridão inerte. Medo após sentir algo tão bom quanto o que tivemos há poucos minutos.

o adeus. E, naquele momento, isso era a única coisa que eu tinha. Esperança. Após tanto tempo sem ela, parecia um sentimento desconcertante. Com essa pequena esperança agarrada a mim, eu virei às costas e segui andando pela calçada, enfrentando o vento e a neve.

Sozinho novamente.

VI. Destino...?

Sempre que vemos um novo ano à nossa frente, sentimos uma estranha prosperidade. Como se tudo fosse ser melhor. Assim como espírito de natal, fazia um longo tempo que eu não sentia essa prosperidade. Até aquele dia, ao menos. Uma manhã inquietante para mim. Eu passei as primeiras horas de meu dia com a mente cheia de pensamentos e os pés andando de um lado para o outro em minha pequena sala. Estava ficando maluco. Com um impulso, decidi pegar minha jaqueta, abrir a porta e enfrentar a rua. Decidi descer as ruas em direção à praça. Cristine parecia realmente acreditar no que ela chamava de destino.

Eu não. Eu estava começando a perceber que nós fazemos a nossa

sorte. Olhei em meu relógio e descobri que passavam do meio-dia. Eu estava decidido a ficar a tarde inteira naquele banco de pedra. Ela poderia achar que era trapaça, se realmente aparecesse lá, mas eu não ligava. Apenas desejava vê-la uma vez mais sem que ela me dissesse adeus. Segui pelas velhas ruas conhecidas, atravessando toda a imensidão da praça tendo como objetivo aquele único banco, que havia se tornado tão importante para mim. Mais que tudo.

Eu andava com as mãos nos bolsos, encolhido pelo frio que o inverno arrastava. Sentia meus pulmões doerem. Foi assim que eu a vi, quando levantei os olhos. Seus cabelos negros caíam pelas suas costas, com algumas mechas prendendo-se no moletom amarelo que usava. Estava com sua touca e o pensamento distante, em direção à rua. Olhava à sua volta ocasionalmente. Talvez me procurasse com ansiedade. Comecei a andar lentamente e sentei ao seu lado. Nossos olhos se cruzaram e um sorriso estampou nossos rostos.

- Eu sabia que nos encontraríamos outra vez, Evan Doyle falou enquanto seu sorriso mais branco do que a neve a deixava

mais linda. - Como poderia ter tanta certa? - Eu não sei... deu de ombros enquanto falava com seu

maravilhoso sotaque. Acho que do mesmo modo que você desejava vir até aqui. Ou quem sabe eu esteja certa sobre tudo e você concorde comigo.

- Sobre... - Destino ela completou. Não pude evitar um riso. Ela me acompanhou enquanto

segurava meu braço. - Você acha tudo isso uma besteira, não é? - De modo nenhum respondi. Eu tive muitas experiências em discutir sobre crenças com

outras pessoas. Foram todas experiências falhas. Sempre terminadas em olhares zangados ou pessoas se afastando. Eu não pretendia isso com ela, então evitei discutir. Eu só queria estar com ela, nada mais importava.

- Venha comigo ela segurava minha mão e me guiava. Estava de luvas de lã. Aqui fora está muito frio.

Guiou-me até o jipe vermelho e entrou. Sentei no banco do carona. O motor ligou em um ronco e começamos a circular pela cidade. Não falávamos nada, mas de algum modo isso não era

constrangedor. Não precisávamos falar. Nossos olhares se cruzavam e parecia que nos conhecíamos eternamente. Conseguíamos ler a alma um do outro, entendendo seus pesares mesmo sem saber como era. Embora eu tivesse certeza de que um dia saberíamos. Cristine sempre foi magnifica para mim, porque naquele momento eu ainda não sabia, mas já começava a amá-la mais do que amei qualquer pessoa. E eu não a deixaria escapar.

Seguimos pela central até a Krow e depois até a Galaham. Aquela zona tinha muitos edifícios residenciais de baixo custo, o que acabou aumentando consideravelmente a população da cidade, em vista que muitas pessoas se mudaram para lá porque era relativamente barato em uma cidade cheia de companhias empresariais. A construção de todos aqueles prédios residenciais foi há pouco mais de dez anos. Hoje em dia, os prédios não estão mais como costumavam ser e as imobiliárias não ligam para seus inquilinos. Lembro-me de quando escrevi um artigo para o NOW sobre isso. Surpreendi-me quando Cristine entrou no estacionamento de um dos condomínios. Residencial Bard W. na Rua 4, que terminava na Bard e ficava entre e Graham.

Eu a segui pelos lances de escada do prédio. Ela morava no quarto e último andar. Seguimos por um corredor estreito e sem iluminação após dobrar à esquerda depois de subir o último lance de escada. Passamos por mais três portas e chegamos ao final do corredor. Apartamento D4. Com rapidez e um pouco de força ela conseguiu que a velha porta abrisse e rangesse como os portões do inferno ecoando naquele cubículo para onde viemos. Entramos e eu fechei o portão do inferno atrás de mim. O local era simplório. Uma escuridão como a do corredor reinava até que Cristine puxasse uma corda ao lado de uma lâmpada pendurada no meio da sala. Eu não via aquele tipo de interruptor desde minha infância. Embaixo da lâmpada, havia a pequena mesa de vidro guardada pelo sofá marrom atrás dela. Algumas revistas atiradas e um vaso de flores roxas no

canto da sala era a sua decoração. E também o braço do sofá totalmente destruído por algo que não era deste mundo, não posso esquecer isso.

Olhando aquele local, descobri que talvez eu não fosse o único passando por algo ruim. Talvez estivéssemos no mesmo barco.

Cristine abriu uma porta que havia próxima ao sofá e, de repente, algo vindo de outra porta do inferno saiu de lá. Empurrou-a. Ela sorriu como criança e pareceu estar falando com alguém. Eu descobri a criatura no momento seguinte, correndo em minha direção, o pelo lustroso balançando como se estivesse voando ao vento. Era um cachorro que podia ser facilmente confundido com um urso. Ele conseguia atingir um metro e oitenta quando de pé, praticamente minha altura. E ficava facilmente em minha cintura ao andar normalmente. Eu não tinha ideia de que animal poderia ser aquele e a palavra cachorro não estava em meus pensamentos.

- Você tem um urso em casa?! exclamei ao ver o animal escalando meu corpo com o rabo balançando ferozmente.

Cristine riu e fez sinal para que eu sentasse. - Quer beber algo? Fiz que sim e recebi um copo de água. Bebi poucos goles e

deixei na mesa de vidro, sentando-me do lado onde o sofá estava destruído. Eu entendia agora. Cristine sentou ao meu lado, com a cabeça do cão deitada entre suas pernas finas.

- Ele não é um urso ela passava as mãos delicadas na pelagem do animal. Mas não o confunda com um husk siberiano.

Ele realmente era parecido com um. Suas orelhas pontudas se esticavam quando ele fitava nossos olhos, parecendo compreender nossos sentimentos e frustrações. Seus olhos ganhavam muitas vezes outras tonalidades quando a luz batia diretamente neles, exibindo diferentes tons daqueles azuis. Tons que eu nunca presenciara antes, assim como eu nunca presenciara aquele animal.

- Qual é o nome dele? perguntei como um bobo enquanto passava a mão na cabeça do cão.

Ele olhava-me com dúvidas, querendo saber se eu era realmente de confiança, enquanto sua língua se esticava de dentro da boca para fora, deixando suas enormes presas à mostra.

- Flush a dona me respondeu. Olhei-a sem entender. Ela percebeu. Provavelmente viu

muitos daqueles olhares inquisidores querendo saber mais sobre a história por trás do nome.

- Como no pôquer Cristine explicou. - Por quê? - É realmente uma longa história, Evan falou enquanto

sorria. - Eu tenho tempo. - Você é realmente persistente, Evan Doyle - um olhar de

esguelha acompanhado do sorriso me atingiu enquanto ela acariciava Flush. Foi quando eu estive no Alasca...

- Você esteve no Alasca? Ela fez que sim e continuou. - Eu estava em um bar jogando pôquer com uns caras, e

eles eram realmente competitivos, sabe? Ela sorria enquanto me contava aquela história. Eu podia

ver o brilho nos olhos dela quando relembrava esse tipo de coisa, como se fosse realmente uma parte muito boa de sua vida. Eu não sabia, mas sentia que ainda saberia o motivo daquele brilho.

- Na nossa mesa tinha um treinador de huskies, um cara chamado David. Eu e ele éramos os últimos jogadores. Tínhamos ganhado de todos e decidimos que seria tudo ou nada na próxima jogada. Ele quis apostar todas as fichas que tinha, quase 5 mil. Eu tinha pouco menos da metade, então decidi colocar meu jipe no jogo. David era um cara muito honrado. Ele sabia que o jipe era

tudo o que eu tinha e não achou justo, porque cobria o valor dele e ia além. Foi aí que ele decidiu apostar um malamute-do-Alasca.

- O que é isso? Ela lançou um olhar para o cachorro. - Eles são parentes dos huskies e puxam trenós assim como

eles, mas graças a sua força e tamanho, apenas trenós de cargas. David tinha uma malamute fêmea que teve quatro filhotes. Ele poderia vendê-los por um ótimo preço, mas apostou um deles. Acabou que David tinha uma quadra e eu um flush.

- Flush repeti. O cão olhou-me com atenção e depois pareceu sorrir com

a língua para fora. Olhei para Cristine. -E sua história nem era tão longa. Ela riu. - Eu tenho outras histórias... por um momento seu olhar

se perdeu na sala até pousar em mim novamente. Garanto que elas são mais longas.

- Eu realmente gostaria de ouvi-las algum dia desses. - Assim como eu gostaria de saber quem você realmente é

por trás dessa fachada calma e seus olhos verdes, Evan Doyle. Mesmo depois de muito tempo, eu nunca consegui

entender, de um modo completo, o que eu havia lhe dito por impulso e como isso desencadeou uma relação bem maior entre nós. Talvez fosse isso e ou quem sabe outra coisa. Mas eu acho que foram aquelas exatas palavras. Outras vezes, quando pensei sobre, acho que me pareceu certo para ela. Ou para mim.

Eu baixei o olhar naquele momento e aquelas palavras saíram de minha boca sem que eu hesitasse. Saíram de um Sequência de cartas de naipes iguais com números aleatórios. Pode ser chamada de Flush ou Cor. Nota do autor.

verdadeiro eu, alguém que eu começava a descobrir apenas ao lado dela.

- Talvez eu ainda tenha que descobrir para lhe contar. E depois restou apenas silêncio, em sua forma mais pura. Eu podia ouvir minhas têmporas se acelerando

rapidamente. Fechei fortemente os olhos e balancei a cabeça, estando prestes e me levantar para ir embora. Por um momento me arrependi do que disse. Auto piedade. Não pareceu certo. Eu me descobri em um daqueles momentos onde mil outras coisas cruzam sua mente em uma velocidade incrível e você se espanta por não saber que podia pensar tão rápido e se lastima por não ter pensado em outra coisa.

Eu me lastimei. Foi então que senti a pele suave de Cristine em meu rosto

quando pousou sua mão sem luvas em minha bochecha. Nossos olhos se encontraram, fixando-se um no outro e lendo tudo. Estávamos conectados. Impetuosamente ela beijou meus lábios e me abraçou. Segurei seu frágil rosto com minhas mãos e depois acariciei seus cabelos lisos enquanto a beijava. Eu podia sentir uma paixão criando-se dentro de mim, assim como eu podia sentir o mesmo em seu beijo doce. Minhas mãos desceram por seus ombros e eu levantei seu corpo, segurando-a em meus braços fortes enquanto a carregava do sofá e retribuía seu beijo de paixão.

Fomos de encontro à parede, derrubando o que pareceu ser um quadro que se estilhaçou no chão. Nossos lábios tocando-se, nossas almas se transformando em apenas uma. Eu tateava por um lugar que não conhecia até passar pela porta aberta por Cristine. Era um quarto. As mãos de Cristine corriam cegamente por meu corpo removendo minhas roupas e eu a deitava na cama espaçosa que havia. A luz era fraca e tudo o que eu podia fazer era sentir que ela estava ali. Na verdade, era apenas o que eu queria enquanto beijava com ardor seu pescoço e sentia sua respiração subir e ofegar em meu

ouvido. Retirei sua roupa com suavidade enquanto voltávamos a nos beijar longamente. Eu sentia seu corpo quente contra o meu. Tocava sua pele nua com meus dedos, percorrendo o que antes era desconhecido. Sentindo seus seios redondos e seu corpo que eu passava a desejar. Eu podia senti-la fazer o mesmo. Suas unhas arranhando minhas costas. Suas mãos percorrendo meu tórax e minhas cicatrizes de infância.

Até sermos apenas um. Senti outra vez a respiração de Cristine em meu pescoço.

Ela arfava. Segurava-se em mim. Tudo isso pareceu para mim um doce sonho horas depois

quando acordei com Cristine adormecida em meus braços e um cobertor quente cobrindo nossos corpos. Havia ainda um peso enorme prendendo minhas pernas dormentes. Descobri Flush dormindo na beirada da cama. Sorri na escuridão. Nada poderia tornar aquele dia mais perfeito do que já estava. Debrucei-me sobre o corpo de Cristine, podendo enxergar seu rosto com um feixe de claridade vindo da sala. Ela dormia com serenidade e uma mecha de seu cabelo escuro caía em seus lábios. Eu não sabia que horas eram e estava escuro demais para ver meu relógio. Eu apenas sabia, tinha certeza, de querer estar ali. Queria estar com ela, mais do que tudo em minha vida.

Reposicionei seu cabelo para trás de sua orelha. Beijei-lhe suavemente os lábios e a abracei. Fechei meus olhos e deixei o tempo correr pela primeira vez sem me importar com o que seria de mim no futuro.

VII. Um novo dia

Abri meus olhos em meio à penumbra. É uma sensação estranha de adaptação ao descobrir que

não estamos em nossa casa quando acordamos. Virei-me de lado sentindo as cobertas roçarem meu corpo e descobri que Cristine não estava mais ali. Levei um susto ao encontrar no lugar dela uma cabeça enorme com uma língua vermelha para fora da boca. Flush babava com a cabeça no travesseiro. Atrás dele, em uma cadeira estofada de vermelho não vista por mim na noite anterior, estava minha roupa dobrada. Em cima da roupa um papel. Estiquei o braço para alcançar o papel e descobrir que era um bilhete. E também levar um beijo molhado do cão.

noite. Tive que ir trabalhar. Precisamos conversar.

A caligrafia de Cristine era perfeita, com todas as letras

devidamente feitas com cuidado. Porém, tudo o que eu pude pensar após ler o bilhete era a última parte. Precisamos conversar. Isso nunca era bom. Além de ser estranho. Havíamos estado juntos

durante um tempo tão agradável. Por que ela iria querer conversar? Eu sabia que também passaria o dia tentando adivinhar seu último nome. Não podia ficar pensando nessas coisas agora, precisava falar com alguém. Alguém que eu tinha certeza que sempre saberia o que dizer.

Levantei-me com rapidez e me vesti. Em seguida deixei a cama devidamente arrumada como estava no dia anterior. Conforme as instruções do bilhete, deixei uma imensa tigela cheia de comida para cães e saí pela porta enquanto o gigantesco cachorro atacava o pote com ferocidade mortal. Desci as escadas e encontrei o árido vento da cidade. Eu sempre a conheci muito bem. Todas aquelas ruas em que passei horas bebendo com colegas do colegial, depois em minhas andanças solitárias quando perdi o rumo após a morte de meu pai. A cidade sempre parecia vazia e ao mesmo tempo consoladora. Ela parecia ser o abrigo que eu não tinha. Qualquer lugar estava bom para um homem sem objetivo. Mas hoje a neve parecia cair diferente. Ela parecia dizer que não havia lugar para mim aqui fora e que eu devia seguir andando. Seria ruim se eu não fizesse. Senti em minhas veias que algo havia mudado enquanto eu olhava para o céu azul da manhã. Tudo me parecia mais...

Feliz. Eu sorri e segui andando pela rua até poder dobrar na Vert

e encontrar o primeiro ponto de ônibus que havia ali. Olhei meu relógio enquanto sentia o vento frio bater em meu rosto e atacar as pessoas desprevenidas. Descobri naquela manhã que havia um longo tempo que eu não dormia tanto. Eram dez da manhã. Eu não sentia o cansaço de uma noite em claro. Embarquei no ônibus quando ele parou e dormi mais um pouco, com a cabeça encostada na janela até acordar e descer no ponto que queria, em frente à colina íngreme e próxima de uma praia vazia. A fumaça saía com leves baforadas da chaminé. Subi para chegar até a vidraça e bater com os nós dos dedos. Meu amigo lia um livro em sua poltrona, diante da lareira.

Os óculos caindo de seu rosto, formado por um semblante sempre calmo. Descobri que, na verdade, ele não lia. Havia pegado no sono. Fechei minha mão outra vez, e novamente bati na vidraça.

Com um pulo Nortier estava desperto. Ele olhava para os lados com confusão. Bati novamente. Seus olhos perdidos me encontraram e ele esboçou um sorriso enquanto levantava-se. Fez sinal para que eu entrasse. Abri a vidraça e em seguida eu estava na pequena saleta, sentindo o calor suave da lareira imediatamente chegar até mim, esquentando meu corpo. Nortier veio ao meu encontro, esticando sua mão e depois me abraçando com alegria.

- Achei que nunca mais o veria, garoto. - Desculpa, estive um pouco ocupado nos últimos dias. - Escrevendo? perguntou. Neguei, puxando uma cadeira e sentando. Nortier serviu

suco de maçã e alguns pães frescos com manteiga. Aquele era meu café da manhã e devorei ainda mais rápido do que Flush com sua tigela de comida. Nortier sentou à minha frente, pronto para escutar o que eu tivesse a dizer. Seus olhos fixos em mim, não contendo a ansiedade.

- Eu conheci alguém falei com a boca cheia. Nortier abriu um imenso sorriso. - Sempre soube que acharia alguém, garoto. Todos nós

achamos respondeu, ainda sorrindo. Conte mais, por favor. - Não tenho muita certeza de nada, Nortier... - Vejo que está confuso. - Você se sentiu confuso com Annabelle? - Não. Era natural. Quando eu estava com ela, me sentia

livre. Sente-se livre? eu sabia que a resposta para aquela pergunta definiria tudo.

Pensei por um momento. A resposta estava lá, mas eu tinha medo de dizê-la.

- Sim parecia que um enorme peso saía de minhas costas.

- Então essa confusão não vem de você. - Não retirei o bilhete de dentro do casaco e mostrei a

ele, explicando que estivemos juntos na noite anterior. - Talvez começou Nortier, enquanto comia um pedaço

de pão. Não seja o que pensa. Talvez ela apenas queira saber como será a relação de vocês daqui em diante, compreende?

Assenti. Talvez tudo não fosse tão complicado como eu fazia ser.

- Apenas esteja lá como ela pediu e veja o que acontece. Não faça tempestade em copo de água sorriu. Agora, já tem planos para o ano novo?

- Não respondi de imediato. Virei aqui, é claro. O tempo começou a passar após meu almoço com Nortier.

A tarde chegava cada vez mais rápido enquanto eu o ouvia falar sobre o que sempre falava: seu passado e suas plantas. Ele falava com tanta emoção e sua solidão ia embora. Eu podia sentir que ele ficava realmente feliz quando eu estava lá. Mas então chegava o momento que eu tinha de partir. Com outro rápido abraço, eu me despedi de meu amigo e desci a colina, sentindo em minha pele o frio se apossar de meu corpo após uma tarde em frente à lareira. Eu não sabia se chegaria a tempo no apartamento de Cristine.

Não consegui. Anoitecia rápido e o caminho de volta para a cidade era demorado. Ao sentir o cheiro dos carros novamente, caminhei pelas ruelas após descer na praça. Esperavam-me mais de cinco quarteirões quando minhas pernas relutavam a andar, quase congeladas. A Rua 4 não possuía nenhuma luz. Tive de andar por instinto até passar pela porta do Residencial Bard e subir novamente os lances de escada ainda na negritude da escuridão. Já passavam das oito. E finalmente eu estava em frente ao D4 batendo na porta com a esperança de ser atendido.

A espera parecia interminável enquanto eu estava parado no corredor com ambas as mãos na cintura e minha sombra sendo

refletida pela luz fraca e cintilante atrás de mim. Pude ouvir uma goteira durante esse tempo e passos dentro do apartamento. Era o barulho pesado das patas de Flush movendo-se no assoalho de madeira. E então a porta se abriu, fazendo uma luz forte brilhar em meu rosto. Não era Cristine que estava diante de mim e sim um homem pouco mais alto do que eu. Podia sentir de longe o cheiro do creme de barbear e um perfume vindo de seu colarinho. Usava um terno preto e sem gravata na camisa esporte azul. Sorriu para mim cinicamente e seguiu, descendo as escadas com rapidez. Escorada na porta estava Cristine. O rosto totalmente fechado. Sua sobrancelha direita subia sensivelmente e ela mordia o canto direito dos lábios quando estava zangada.

Ficava ainda mais linda. A porta permaneceu aberta quando ela virou as costas.

Entrei no apartamento e fechei-a atrás de mim. Eu estava inquieto. Ficamos em silêncio por alguns segundos. Uma única pergunta ficava martelando minha cabeça naquele momento. Quem era aquele sujeito? Ele vestia um terno que parecia ainda mais caro que os de Morgan e era exatamente o tipo de pessoa que olha atravessado para aqueles com menos do que ele. O que ele fazia ali no apartamento de Cristine? Eu não queria perguntar, mas não consegui controlar minha expressão e ela pode me ler como a um livro aberto.

- Meu passado afirmou, enquanto sua face se suavizava e ela aproximava-se de mim.

Estávamos tensos. Ela estava cada vez mais perto para me cumprimentar e eu

não sabia o que deveria fazer. Beijá-la? Ela estava bem à minha frente. Cristine acabou me dando um aperto de mão e um beijo no rosto. Riu sem graça logo depois enquanto se sentava no sofá. Sentei ao seu lado enquanto sentia minha garganta secar.

- O seu passado se veste bem brinquei.

Na verdade, eu não tinha outra coisa para dizer sem ser essa estupidez. Ela olhou para o chão.

- Evan. Sinto muito se ontem à noite eu lhe dei a impressão errada.

- Era por isso que você queria que eu viesse hoje? - Sim. Eu não costumo fazer nada daquilo sem pensar. Foi

impulso. Eu... pareceu sem saber o que dizer. Apenas senti algo. Diga-me que você também sentiu, por favor.

Segurei ambas as mãos de Cristine enquanto fitava seus olhos negros. Eu havia realmente sentido algo, mas agora eu sentia um medo por dizer. O que aconteceria? Eu deveria ser sincero? O tempo havia passado e eu não disse nada.

- Eu não quero me machucar, não outra vez. Se você acha que não pode cumprir isso, é melhor pararmos aqui. É só o que eu lhe peço.

- Nunca falei sem hesitar. Ela sorriu. Na verdade, eu não sabia. Foi um ato egoísta e mesquinho

para escapar da solidão que tanto me abalava. Eu havia mentido. Em todos os relacionamentos que tive, eu sempre as machucava. Até mesmo os pequenos casos de saída de bar. E me machucava no processo. Eu duvidava que as coisas fossem ser muito diferentes com Cristine. De todos os defeitos que eu tenho, sempre odiei essa dúvida que cresce em meu peito. Dúvida sobre o que estou fazendo. Se for o certo ou se devo desistir. Essa coisa nunca me deixou progredir em nada e meu pai sempre dizia que um dia ela se apagaria. Mas eu precisava deixar que ela se apagasse.

E, naquele instante, eu a sentia surgir mais uma vez e tinha certeza de que acabaria magoando aquela mulher.

Eu precisava tentar, uma vez mais. Se não desse certo, quem sabe eu estivesse destinado, como dizia Cristine, a viver uma vida solitária e me afundar no demônio na garrafa. Eu precisava

tentar como Nortier tentou e agora eu sei que se não o tivesse conhecido, talvez nem tentasse.

Cristine suspirou como se estivesse aliviada e sorriu para mim. Pousei minha mão em seu rosto.

- O que você é, Evan Doyle? ela olhava em meus olhos com um sorriso.

- Apenas alguém mais. - Não. Você não é apenas alguém. E foi isso. Tudo o que bastou para que nos beijássemos com a mesma

paixão do dia anterior. As mãos de Cristine percorreram meu torso enquanto ela mordiscava meus lábios, removendo minha jaqueta. Ela estava em cima de mim e retirávamos nossas roupas com ferocidade. Isso resultou estarmos no quarto quase duas horas depois, embaixo do mesmo cobertor florido da noite anterior, e dessa vez com um pequeno abajur brilhando que havia na cômoda ao lado da cama. Cristine abraçada a mim, com a cabeça deitada em meu peito. O cão estava na cama novamente, deitado na beirada como sempre fazia. Eu o olhava com admiração.

- Você nunca teve o impulso de montar nele e sair por aí? ela gargalhou do que eu disse e as orelhas de Flush ficaram em pé

de repente. - Quantos anos você tem? ria abraçada a mim. Todas

as crianças da minha família que o conhecem fazem a mesma pergunta.

- Acho que não sou tão velho assim respondi, enquanto acariciava seus cabelos ondulados.

Eu ouvi e senti Cristine suspirar enquanto ficávamos quietos novamente, com o calor de nossos corpos se entrelaçando.

- Você tem planos para o ano novo, Evan? - Eu tenho que ir ver um amigo, mas apenas isso. Está

planejando algo?

- Minha família vai fazer uma grande festa, mas eu... Eu não quero ir.

- Deveria ficar com a sua família. Eles é que importam. - Não importam. São todos mesquinhos com o mundo aos

seus pés senti um tom asqueroso em sua voz. Eu achava aquilo estranho, confesso. Pela situação atual de

Cristine, eu deduzia que ela não tinha muita coisa. E parecia verdade. Mas por que falaria de sua família assim?

- Não importa, Scotty. Eu passei a chamá-la de Scotty à partir daquele dia e ainda

não entendo como comecei, apenas sei que foi por causa de seu nome do meio. Apenas pareceu interessante. Elegante.

- Eu daria tudo para estar apenas mais um dia com meu pai. Tudo o que eu tenho...

- Scotty? perguntou sorrindo. Me arrependi de ter dito. Eu gostei.

Ela beijou meus lábios em seguida. - Pode falar mais de seu pai? Parece uma parte importante

de você. Hesitei por um minuto. Eu não gostava de falar dele,

naquela época, porque simplesmente me matava. Mas aquela mulher mudou tudo. Quando eu comecei a falar, pareceu natural. Pareceu que a ferida havia se fechado, mas o passado ainda estava lá. Eu apenas não podia deixá-lo ir embora, mas ele não mais me magoaria.

- Ele se chamava Jonathan - suspirei. Tudo sobre o meu pai se tornou tão claro enquanto eu

falava. Apenas senti uma saudade distante, como se ele tivesse ido embora e nada mais. Então contei-lhe que ele me criou praticamente sozinho. Minha mãe foi embora quando eu tinha 6 anos. Ele teve que arranjar dois empregos para poder nos sustentar. Havia dias que eu não o via. Estava dormindo quando ele saía e dormindo quando

ele chegava. Ele deixava uma torrada pronta e minha mochila para ir à escola, que ficava há alguns quarteirões de casa, na Avenida Bourbon. Eu podia nunca ir, ele não estaria em casa para controlar isso mesmo. Se eu faltasse por mera preguiça ele não ficava bravo. Mas ele tinha esse jeito de ficar triste e fazer você se sentir triste que me desolava. Então, eu ia, porque eu odiava vê-lo daquele jeito. Quando eu aguentava ficar acordado esperando ele chegar, sempre me ajudava com o dever de casa. Nos outros dias, ele apenas terminava o que eu tinha começado. Nós sempre podíamos nos ver nos finais de semana.

Eu acordava eufórico quando sabia que finalmente era sábado, porque eu sabia que ele estaria lá, dormindo em sua cama quando eu levantasse. Depois ele fazia café e nós íamos para a praça. Meu pai não tinha dinheiro para me comprar coisas caras ou me levar a lugares legais como os pais de meus colegas na escola faziam, mas ele sempre me levava para a praça. Comprava um punhado de pães e nós ficávamos à beirada do lago alimentando os patos. Meu pai também não era um homem culto, ele teve que ir trabalhar muito cedo para ajudar seus pais, mas ele me contava sempre tudo o que sabia. Especialmente sobre as pessoas. Ele as lia com facilidade, as entendia. E ele era alguém a quem todos adoravam. De algum modo, ele sempre conseguia ver o melhor nos outros. Eu gostaria de lembrar muitas coisas mais, como o bar de sábado à noite. Meu pai, ele tinha o sonho de ter sido um cantor de estilo country. Ele adorava ouvir Johnny Cash todo domingo pela manhã. Colocava The Ring of Fire para tocar logo depois que começava a preparar o almoço e então escutávamos todo o disco juntos. Ele me contava tudo o que sabia sobre Johnny e June. Era impressionante, porque ele realmente sabia de muitas coisas.

- Ele tocava? perguntou Cristine, trazendo-me de volta dos tempos que eu achava que nem lembrava mais.

Seus olhos cravados em mim enquanto ela me abraçava ao som do aquecedor.

- Sim. Ele tocava todo sábado à noite. Nem sempre eu o via tocar, porque geralmente estava cansado e ele me deixava em casa dormindo, mas quando eu via, era magnífico. Ele tocava em um barzinho chamado Raylan Clube, porque o nome do dono era Raylan. Eu acho. Acho que hoje não existe mais.

Contei-lhe que meu pai tinha um violão bem antigo, dado por meu avô quando meu pai fez seus 18 anos. Eu não conheci meu avô, mas pelo que sei, ele era um grande homem. Com esse violão ele ia para o bar e se apresentava sem nenhuma vergonha. Cantava Oh, Pretty Woman, Always on My Mind, que eram as preferidas do público. Para finalizar era Hurt ou You Are My Sunshine. Lembro-me de a plateia vibrar sempre. Eu não sabia o que queria dizer na época, mas todos falavam que ele tocava com pura maestria. Ele era pago pelo bar, claro. Nunca era muito, mas, às vezes, o que ele ganhava com gorjetas dentro da capa do violão era demais. Foi com esse dinheiro que meu pai chegou em casa com uma máquina de escrever embrulhada para mim. Eu não tinha muitos amigos na infância, então os encontrava nos livros e esbanjava de criatividade. Foi assim com o primeiro livro e o segundo. Os dois publicados por Anthony Grant, um grande amigo de meu pai que ainda tem uma editora.

- A Editora Grant? ela perguntou-me. Fiz que sim. Seu pai deve ter ficado orgulhoso.

- Ele costumava dizer que os sonhos são o combustível de todos os homens. Aquele que desistia de seus sonhos estava morto, Canção do artista Roy Orbison. Ganhou um filme famoso nos anos 90 de mesmo nome.

Certamente você conhece. Nota do autor. Você conhece Elvis. Nota do autor.

só ainda não sabia. Eu entendia o que ele queria dizer. Eu via em seus olhos toda vez que ele pegava aquele violão.

- Posso perguntar algo? - Pode perguntar o que quiser respondi, roubando-lhe

rapidamente um beijo. Ela sorriu ligeiramente, mas pude ver uma seriedade em

seus olhos. Ela queria saber sobre o final, e senti que ela sabia como era.

- Como foram os últimos dias...? Suspirei. - Não precisa me contar, Evan. Desculpe, foi errado

perguntar seus olhos se desviaram. - Foram difíceis, Scotty. Meu pai perdeu parte da memória

quando ficou mais velho. Eu tinha uns dezenove anos. Fiquei em silêncio. Só naquele momento eu percebi que

meu pai já havia morrido faziam longos 6 anos. Pesar era tudo o que eu sentia enquanto falava.

- Ele ainda era novo. Tinha apenas 42 anos. Muitos dias, havia coisas que ele não se lembrava. E quando acabou tendo que ser hospitalizado, ele voltava a me contar coisas sobre Johnny Cash, como se estivéssemos novamente na cozinha de casa. Uma semana antes de morrer ele pediu para chamar Tess. Queria falar com ela, discutir a relação.

- Tess? - Minha mãe minha voz saiu áspera. Ela nunca foi

embora da cidade. Casou-se com um magnata chamado William Yuri. Dono da Construtora Yuri e Associados. Teve dois filhos com ele. Eu sempre soube onde encontrá-la, apenas nunca desejei. Ela morreu para mim quando nos deixou porque nos achava miseráveis demais. Virou uma dessas mulheres que andam com motorista e tem medo das pessoas a tocarem, como se transmitissem doenças ou algo

assim. Pensou que eu ia roubá-la quando a abordei na rua, mas me reconheceu. Claro que reconheceu.

- E o que ela fez? - Pediu que nos encontrássemos em particular outro dia.

- Foi por isso que não se sentia bem lá quando nos

conhecemos? - Sim falei. Eu odeio aquele lugar. Naquele dia eu

contei para ela a situação. Meu pai queria vê-la antes do fim. Ela relutou, mas concordou. Quando se viram ele achava que ainda fossem casados. Conversaram por um tempo. Nunca soube sobre o que eles falaram. Depois ela foi embora e eu nunca mais a vi. Nunca a procurei, assim como ela nunca me procurou.

Silêncio por alguns segundos. Eu jamais pensava em minha mãe e, agora, enquanto falava dela, percebia quanto rancor eu guardava. Não sei o que faria se a encontrasse na rua por acaso. Acho que fingiria que não a vi. Meu olhar estava distante, minha mente estava distante. Cristine sabia disso. Ela pousou suas mãos em meu rosto e beijou meus lábios.

- Eu tenho aprendido que o passado é uma coisa importante de nós, Evan - disse com calma, olhando em meus olhos. - Apesar de tudo o que me contou agora, eu adoro o seu passado. Ele fez a pessoa que está comigo agora.

Sorri, beijando-a imediatamente. Eu nunca havia ouvido tal coisa. E me surpreendeu. Assim como aquela mulher me surpreendia cada vez mais. Eu fiz um breve jantar aquela noite e a servi enquanto ela assistia a um programa na pequena televisão sobre a cômoda em frente à cama. Flush estava sempre lá, seja deitado aos nossos pés ou no chão. Quando a noite findou adormecemos abraçados.

Apesar de tudo o que eu disse, Cristine não foi visitar sua família quando o ano terminou. Eu não a pressionei, não queria

aborrecê-la. Naquele último dia do ano, eu fiz minha barba, mas não cortei o cabelo. Cristine pareceu triste. Disse que gostava de minha barba em sua pele quando nos beijávamos. Eu odiava. Visitei Nortier e comi uma esplêndida sopa e purê de maçã em sua casa. Ele perguntou-me sobre minha misteriosa mulher e falei que em breve eu a levaria para conhecê-lo. Voltei para o apartamento e fiquei com Cristine a noite inteira. Nos beijamos quando 2002 chegou. Depois que fomos para a cama, o inesperado aconteceu.

- Acho que estou me apaixonando por você, Evan Doyle ela disse.

Eu não sabia o que dizer, apenas sabia que as coisas nunca terminavam bem para quem se apaixonasse por mim. Eu conseguia, de algum modo, destruir tudo. Eu já havia lhe prometido algo que talvez não pudesse cumprir, por isso resolvi não dizer nada e apenas abraçá-la.

Já era um novo ano com novas coisas acontecendo, tanto para mim como para Cristine. As semanas estavam passando e eu havia me mudado para o seu apartamento quase permanentemente. Não queríamos nos separar. Nós relutávamos cada vez que ela ia trabalhar como garçonete em um restaurante na Wilson. Apenas como emprego temporário, mas eu não sabia se ela estava buscando algo melhor. Decidimos, juntos, que eu também precisava trabalhar. Não hesitei perante a ideia. Eu estava praticamente vivendo com ela, precisava ajudá-la de alguma forma. Já era a segunda semana de janeiro. Todo o comércio havia voltado a funcionar após a pausa de início de ano. Era difícil procurar algo porque nada parecia me agradar. Era tudo muito mundano. Cristine disse que teria algo perfeito para mim. Ela trouxe um terno de seu pai, para o que descobri ser uma entrevista de emprego, e coube perfeitamente.

- Ele não sentirá falta? perguntei, enquanto olhava meu reflexo no espelho de paletó e colarinho aberto.

Era algo informal, eu tinha certeza.

- Ele tem centenas. Quanto mais eu a conhecia, começava a ter uma ideia

elaborada sobre sua família, mas ainda não sabia seu último nome. Sabia que seu pai tinha dinheiro. O terno não era comum. Parecia extremamente caro e ela dizia que ele tinha centenas.

- Eu não posso aceitar falei, enquanto ela ajeitava o colarinho de minha camisa.

Na verdade, eu havia gostado. - É adorável como acha que eu estou lhe dando alguma

escolha, Evan Doyle disse, enquanto sorria e beijava o canto de meus lábios.

Eu adorava quando ouvia sua pronuncia de meu nome completo com o sotaque inglês. Eu estava impecável. Meus cabelos, antes longos, agora cortados e apenas caindo por cima da testa. Nada de barba. Estávamos de jipe atravessando a cidade em um profundo mistério. Até chegar a um novo jornal que havia aberto na Rua Variant. Eu ouvi falar sobre ele. Entramos no prédio e na portaria um homem veio em nossa direção. Era um pouco baixo, mas estava em forma. O cabelo cumprido amarrado e um blusão de lã com um paletó preto por cima. Aproximou-se de Cristine e a cumprimentou com um sorriso. Eles já se conheciam.

- Então, este é o cara? ele olhava para mim. - Sim ela respondeu. Evan Doyle, Don Fitzburgh. Don estendeu-me a mão e eu a apertei. No momento

seguinte estávamos andando pelos corredores da redação. - Evan, o que você vai fazer aqui é basicamente revisar o

que os outros escrevem. Em consideração a Cristine, e por tudo o que ela me falou, e me mostrou do que você escreve, que é incrível por sinal, não vou exigir um teste no momento a voz de Don era grave e rouca, ele falava rápido ao mesmo tempo em que dava passadas largas pelos escritórios minúsculos que todos ali

compartilhavam. Você pode começar na próxima segunda. Tudo certo?

Assenti, apertando novamente a mão de Don. Aparentemente, eu tinha um emprego. A segunda-feira estava perto, e na verdade eu não, sabia muito sobre o que iria fazer, mas iria descobrir. Do jeito difícil.

- Você gostou de Don? ela me perguntou quando já estávamos de volta ao apartamento.

Eu colocava uma roupa mais confortável. - Claro. Na verdade, Don parecia tão apressado que eu não quis

tirar conclusões. - Mas você poderia ter me dito exatamente o que iríamos

fazer lá. Eu teria me preparado melhor. - Desculpe, mas achei que se soubesse talvez recusasse. Ela estava certa. Aproximei-me dela, beijando-lhe

rapidamente a testa. - Olhe pelo lado positivo, agora é o homem da casa um

grande sorriso brilhante apareceu em seus lábios. Aquela segunda-feira foi rápida para mim, mais rápida do

que eu imaginava. Foi numa manhã diferente, e fria. Eu levantei junto com Cristine. Tomamos banho juntos e depois um breve café. Apesar de eu dizer que era desnecessário Cristine levou-me até o jornal de carro, como um garoto no primeiro dia de escola. O

-se. Ao menos eu sabia o tamanho do ego de meu novo chefe. Ao entrar, no prédio encontrei Don debruçado no balcão de entrada, conversando com a secretária. Agora eu também sabia que ele era cara-de-pau. Ele veio em minha direção com um sorriso no rosto.

- Grande Evan falou, com entusiasmo. Venha comigo. Vou lhe mostrar a trincheira.

A trincheira. Don sempre teve expressões engraçadas. Subimos alguns lances de escada. O elevador do prédio de três andares estava sendo consertado. Don me contou que o prédio está caindo aos pedaços e ele conseguiu comprá-lo por um preço muito baixo. Não era o que ele sonhava, mas nem sempre é possível realizar os sonhos. A redação era formada por pequenos cubículos quadrados com uma mesinha atrás de cada um e uma parede de gesso dividindo-os. Apenas a sala dele era separada, ficando ao fundo do local. Ela não tinha porta, e havia um buraco na parede feito por uma ratazana. No lugar da porta, Don colocou uma cortina bege que ainda era possível ver tudo do lado de fora. Ele dizia que seria o suficiente, por enquanto. O último andar era onde o jornal deveria ser impresso. Enquanto ele me mostrava o local, resolvi perguntar sobre Cristine.

- Como se conheceram? foi a minha pergunta óbvia enquanto olhava meus colegas recém-chegados.

- Tempos da escola me respondeu. Eu costumava sair com a irmã dela. Sabe, Kate?

Fiz que não. Don ficou desconfortável. Até mesmo embaraçado, eu diria.

- Ela ainda não apresentou Kate, não é? Fiz que não novamente. Ele bateu em meu ombro como se

estivesse me consolando. - Sem grilo falou. Kate também tinha essas paranoias

sobre a família. Levou dois anos para conhecer os coroas. - Acho que demorarei mais tempo... - Não está perdendo nada. Deixamos a conversa de lado quando chegamos ao que

seria meu escritório. Havia um computador branco de tela quadrada. Também, algum espaço para quaisquer enfeites que eu quisesse colocar. Uma cadeira rotativa estava em frente à mesa.

- Os textos serão passados a você pelo Alexandre e depois você passa para mim, mas apenas agora nessa primeira semana. Quero ver como se sai. Depois você passa direto para o Ivo, o cara da impressão e apontou para o gorducho pegando café na máquina.

Tudo era passado por uma espécie de disquete. Don deixou-me sozinho. Eu demorei a poder trabalhar bem no computador, mas acabou sendo tão fácil quanto decorar o nome de meus novos colegas. Era de certa forma um trabalho automático. Eu lia várias notícias por dia e repassava quando elas estavam prontas. Mas eu estava verdadeiramente feliz. E Nortier ficou feliz por mim quando lhe contei, e falei também de minhas frustrações sobre o passado de Cristine. Apesar das restrições dela, ele me disse para dar tempo ao tempo. Novamente, aceitei seu conselho. Ao final de cada expediente no Fitzburgh, eu só queria voltar para o apartamento e beijá-la. Estar ao lado dela e daquele cachorro que ficava maior.

E cada dia que passava era novo para mim.

Primavera

I. O Casamento

Três meses se passaram desde aquela segunda-feira, agora tão distante em que comecei a trabalhar no Fitzburgh, que vinha se tornando cada vez mais popular na cidade, conseguindo ultrapassar as vendas do temível NOW. Don dizia que não era por uma questão de preço porque ambos os jornais custavam o mesmo -, mas sim uma questão de interação social. De liberdade de expressão. Ele estava certo. As pessoas gostavam disso. Don tinha dinheiro, todos na redação sabiam disso, mas ele tinha ido às ruas e lutado por muitos direitos de cidadania nos anos 90. Ajudava organizações carentes ao redor do mundo. Ele gostava de ser do povo. E as pessoas pareciam apreciar isso. Contudo, Don não gostava de políticos.

Quando eu penso, lembro-me da época em que meu pai faleceu. Os dias pareciam infinitos, incontáveis. As horas no relógio não passavam nunca e as lágrimas em meu rosto não deixavam de escorrer. Era uma época em que eu não fazia ideia do que iria fazer. Como iria viver. Como poderia sobreviver sem ele. Diferente de agora. Eu chegava ao apartamento todos os dias, a maioria das vezes Cristine já estava me esperando, eu a beijava, conversávamos, víamos televisão. Era tudo tão descomplicado. Eu sabia exatamente o que

fazer. Ainda havia Nortier, que eu visitava frequentemente. Eu ainda não havia levado Cristine lá. Planejava levá-la primeiro à minha casa, que eu começara a consertar graças ao meu novo salário.

Tudo isso impulsionou outra fase da minha vida. Eu havia levado minha máquina de escrever para o apartamento. Ela ficava em uma escrivaninha nova que eu e Cristine compramos juntos para a sala. Largávamos nossas chaves ali, perto de um vaso das mesmas flores que eu havia visto na primeira vez que estive naquele lugar. Descobri, através de Nortier, que a flor roxa se chamava escabiase. E, enquanto eu olhava aquelas flores, sentia uma sensação familiar em mim, cada vez com mais força. Era um domingo de abril. Cristine via um programa de culinária no quarto. Chovia. Eu decidi pegar uma folha e colocar na máquina. Meus dedos percorreram lentamente as teclas e, de repente, as emoções que eu sentia começaram a passar para o papel antes em branco. As teclas batiam com ferocidade conforme as palavras começavam a se formar e as personagens ganhavam vida diante de mim. Eu havia estado com aquela imagem deles e do enredo em minha mente por tantos meses que sentia um alivio enorme quando eles realmente começaram a viver. Eu não só me sentia bem, como aquilo parecia o certo. E era bom.

Eu passei toda a tarde escrevendo. À noite, depois que Cristine adormeceu em meus braços,

eu me lembrei de algo que tirou meu sono. Não poderia falar com ela sobre aquilo. Seria estranho, porque Cristine não sabia nada sobre essa parte do meu passado. Eu precisava do conselho de outra pessoa. Minha noite havia sido um fracasso, então, quando a manhã se aproximou eu saí mais cedo naquela segunda-feira. O dia em meu escritório se tornava ainda mais tortuoso conforme eu pensava naquele problema insolúvel. O fim do expediente era tudo o que eu precisava para pegar o ônibus até Darby, enfrentar uma longa

estrada e estar sentado diante da mesa de Nortier, com ele olhando-me com curiosidade.

A curiosidade em seus olhos era para o homem irreconhecível, que usava gel no cabelo e vestia um paletó com gravata. Ele também havia mudado, apesar de eu vê-lo com frequência. Havia emagrecido.

- Uma mulher pode fazer mudanças riu. Falando nisso, eu vou conhecê-la antes de morrer, não vou?

- Em breve respondi, enquanto ria. Eu prometo. Eu devorava os pães frescos com manteiga que havia e

bebericava o chá quente de maçã. Sempre que eu visitava Nortier, sentia-me na casa de minha avó, na infância. Meu pai me levou lá poucas vezes, porque ela não viveu muito após meu nascimento. Por alguma razão, os pães frescos e os biscoitos de milho estão guardados em minha mente.

- Eu nunca lhe falei de Clarice comecei. Já terminava o chá. Ele não disse nada. - Ela foi uma parte importante de mim. Talvez a primeira

mulher que eu realmente amei. Há alguns meses, eu recebi um convite de seu casamento. É no domingo. Quando lembrei... Eu não sei se devo estar lá.

- Você ainda sente algo por ela? Eu não precisava pensar para responder. - Sentia. Não mais. - Então vá meu amigo sorria. Parecia achar graça em algo. - Talvez não seja a ideia de ir ao casamento que o

incomoda, mas sim que ela vai casar. - Por que isso me incomodaria? eu servia mais chá em

minha xícara, mexendo depois duas colheres de açúcar.

- Porque você precisa de um encerramento da parte dela. Precisa ver que ela não está mais ao seu alcance. Precisa ver que as pessoas seguem com suas vidas e que ela seguirá a dela.

A bebida quente tocou meus lábios enquanto eu engolia um novo pedaço de pão. Talvez ele estivesse certo.

- Devo contar para Cristine? - Talvez. Isso cabe muito à sua honestidade, garoto. Eu

contava tudo para minha esposa, éramos francos um com o outro ficou mudo até alguns segundos depois. Para uma esposa existem coisas que você conta e coisas que se omite.

Sorri. - Homero? - Sim, Homero Nortier sorriu brevemente. O que estou

tentando dizer é que faça o melhor julgamento. Se acha que pode contar, o faça. Quem sabe até leve-a com você. Desse modo você também poderá dar encerramento para essa outra menina, Clara.

- Clarice corrigi. - Clarice ele bateu nas têmporas com o punho. Dará a

ela o encerramento que sei que ela também precisa. Eu tinha a resposta que esperava. Permaneci mais um pouco com Nortier enquanto ele me

contava sobre os roedores da primavera que estavam aparecendo e destruindo sua plantação de cenouras. Era muito trabalho para apenas um homem como ele. Alguém que se tornava mais fraco quando a luz da manhã se aproximava. Apesar de ele relutar para admitir isso. Prometi que viria ajudá-lo assim que o casamento passasse.

Não havia mais sol no horizonte quando deixei a casa nas colinas. Uma multidão de estrelas tomava o céu cada vez mais. Depois de conseguir pegar o ônibus e voltar para a cidade, o céu Poeta épico da Grécia antigo, autor de Ilíada e Odisseia. Nota do autor. 2ª Edição.

estava enegrecido e eu sentia em minha pele a suave brisa da primavera enquanto caminhava com a gravata frouxa e o paletó sendo carregado. Doce como sempre ela era. Caminhei alguns quarteirões com lentidão até chegar ao apartamento para receber uma recepção calorosa de Flush e descobrir Cristine guardando minhas escritas de volta na pasta dentro da gaveta. Ela estava curiosa. Esperei para ver se diria algo enquanto retirava a gravata e sentava no sofá.

- Onde estava? foi apenas o que disse, vindo até mim e sentando em meu colo, passando o braço por trás de meu pescoço.

- Desculpe, perdi o horário. Não era inteiramente verdade, mas seria o suficiente. Olhei

em seus olhos. - Scotty a conversa poderia ser difícil. Eu tenho um

casamento para ir no domingo. Quer me acompanhar? - É claro que sim. De alguém do seu trabalho? - Não suspirei. É de uma antiga amiga. Clarice. Cristine desceu de meu colo e sentou-se ao meu lado,

olhando-me com seriedade. As mulheres parecem sentir esse tipo de coisa.

- Ela foi mais do que uma amiga, não foi? Fiz que sim. Talvez tenha sido o modo como falei o nome

de Clarice. - Quer me contar? - Você quer ouvir? perguntei com a voz fraca. Cristine fez que sim. - É um passado longo, eu e ela. Anthony Grant e meu pai

eram melhores amigos há longos anos. Mesmo depois que Anthony prosperou muito com sua editora, eles nunca deixaram de ser amigos. Isso nunca mudou. Anthony teve sua filha um ou dois anos depois que eu nasci.

Contei-lhe sobre Clarice. Pela proximidade de nossos pais, nós crescemos juntos. Éramos os melhores amigos na infância. Eu ficava alguns dias em sua casa e vice-versa. Eu nunca imaginei Clarice mais do que uma irmã de criação. As coisas, é claro, começaram a mudar quando chegamos aos 14, 15 anos. Ela passou a ser mais bonita do que era e ainda éramos próximos. Nós confidenciávamos segredos um ao outro que jamais contaríamos a ninguém. Estávamos sempre juntos, e isso jamais preocupou Anthony, porque ele pensava que eu a via apenas como uma irmã. E era verdade. Até vê-la beijando um rapaz em uma festa de fim de ano na nossa escola. No momento, eu não conseguia entender porque aquilo me deixou tão chateado. E, na verdade, criou uma imensidão bem maior de sentimentos. Eu me afastei dela, porque queria que esses sentimentos fossem embora. Fossem para longe. Eu não conseguia pensar que ela poderia ser algo mais do que uma amiga.

Acabou sendo que era um sentimento forte demais para mim. Clarice não sabia por que eu a afastava e estava ficando cada vez mais magoada. Então, um dia, ela decidiu me confrontar. Eu lhe contei tudo o que sentia. E ela me contou que sentia o mesmo há muito tempo e que vinha esperando que eu lhe dissesse aquelas palavras e que finalmente pudéssemos ficar juntos. Anthony, ele não gostou nada. Tolerava porque percebeu que era o que sua filha também queria. Clarice e eu fazíamos planos para o futuro. Visitávamos a igreja que ela agora se casará e imaginávamos uma casa na Avenida Broau com anões de jardim. Por quase dez anos desejamos tudo isso.

Então meu pai começou a adoecer e depois faleceu. Eu me perdi totalmente naquele ano. Afastava-a cada vez

mais novamente, até que eu a perdi. Menti para ela. Disse que não significava nada para mim. Isso a destruiu. Eu não a vi mais, mas fiquei sabendo que tinha viajado para a Itália e conhecido alguém.

Depois, ficamos em silêncio, eu e Cristine, por um longo tempo ouvindo o som de nossa respiração e olhando para o chão. Eu achei que me sentiria desconfortável revendo todas essas memórias, mas eu não sentia nada. Percebi ali, após todas aquelas palavras, que Clarice era uma parte de meu passado que eu não poderia destruir. Mas o que Nortier havia dito era pura verdade. Eu precisava encerrar aquele passado para viver o futuro, ou seria assombrado.

Cristine fez uma pergunta totalmente inesperada para mim. Seus lábios tremiam quando perguntou e ela estava séria.

- Você não a ama mais, ama? Ou é por isso que parece hesitar em ir a essa droga de casamento?

Eu estava incrédulo. Lembrei-me da frase de Homero. - Eu continuei a amá-la por muito tempo após a morte de

meu pai. Mas não mais. - Tem certeza? Cristine estava de pé agora, parada ao lado da única janela

do apartamento. Eu sentia que ela estava me odiando naquele momento. Levantei-me, abracei-a e senti seu corpo como um cubo de gelo.

- Que tipo de pergunta é essa? Ela virou-se para mim. Seus lábios ainda tremiam. Uma

característica que descobri, anos depois, ser o seu estado nervoso. - É a pergunta que eu preciso fazer, Evan... estava de

braços cruzados fitando-me como o frio da noite. Lembra-se quando eu disse que não poderia me magoar novamente? Apenas diga-me a verdade, Evan. Encerraremos tudo isso e você poderá sair por aquela porta para correr direto para ela.

Suspirei. Homero em minha mente outra vez. - Eu não a amo respondi com toda a sinceridade que

pude encontrar em minha alma. - E a mim?

Hesitei. Eu havia fugido daquela pergunta por quase quatro meses.

Relutava. Dizer que a amava seria entregar-me totalmente. E seu a machucasse como havia prometido não fazer? Em meu coração, eu sabia a resposta. Dizê-la era totalmente diferente. Mas eu precisava. E por que não dizer? Eu havia mudado, sentia isso. Não iria desapontá-la e nem me perder como aconteceu com Clarice. O olhar de Cristine era impassível.

- Eu nunca achei que poderia amar alguém como amo você. Você é tudo que eu tenho, Cristine Scott...

Ela não conseguiu evitar um sorriso. Sabia que era isso que queria ouvir. E eu estava feliz por finalmente dizer.

- Madison sua voz saiu baixa e rouca enquanto seus braços rodeavam meu pescoço.

M de Madison. - Diga outra vez, Evan Doyle. Eu preciso ouvir. - Eu amo você, Scotty. E ela me beijou com paixão, como nunca antes. Seus

braços rodeando meu corpo enquanto eu a carregava para a cama. Eu sentia suas mãos desabotoarem minha camisa. Estávamos outra vez juntos, unidos.

Eu descobria que a amava cada vez mais. E não sentia medo.

Mais tarde, quando a noite caiu e estávamos na cama, havia algo que eu precisava desesperadamente perguntar a Cristine. Afinal, era o dia da sinceridade.

- Scotty... Ela estava com o rosto deitado em meu braço direito. Seus

olhos me fitaram. - Quando você disse Madison, não estava falando de

Richard Madison, estava?

Seu olhar desviou e ela sentou-se na cama. Lá íamos nós, Homero outra vez.

Richard Madison. Ele era conhecido por todos, inclusive eu lia muito sobre ele, todos os dias no Fitzburgh. Ele era, com certeza, o maior e melhor advogado da cidade. Nunca houve caso que ele defendesse que pudesse ser perdido. O que mais o deixava famoso eram as notórias pessoas a quem ele defendia. Geralmente, criminosos de alto escalão ou que tinham os holofotes da mídia em seus rostos. E ele era milionário, definitivamente.

- Sim, Evan ela respondeu. Sua voz estava áspera. - Desculpe desapontá-lo, mas sou filha de Richard

Madison. Aposto que não sou mais tudo o que você espera de mim, não é?

Ela estava começando a se zangar novamente. - Por quê? - Porque eu tenho que ser a filha perfeita, sempre a filha

perfeita. - Eu não ligo para isso. Só não consigo entender porque

você vive nesse apartamento. Poderia estar em uma mansão agora. - Poderia seu olhar voou para o teto. Mas dinheiro não

é tudo para mim e espero que não seja para você. Tudo o que aquele homem possui vem acompanhado de sangue em suas mãos. Minha consciência está limpa e posso dormir à noite. Nunca machuquei ninguém e jamais precisei dele para nada.

Foram aquelas as últimas palavras que Cristine disse para mim naquele dia. Eu começava a aprender muitas coisas sobre ela. Inclusive, não mencionar seu pai e nem casos antigos. Nós dormimos de costas um para o outro, mas senti seu braço me rodear durante a noite. Ela tinha medo de ficar sozinha.

A semana passou e, quando percebi, o domingo estava lá. O casamento seria à noite e depois de minhas últimas conversas com

Cristine, eu não sabia se iríamos. Estava confuso. Até ela me perguntar em qual vestido ficaria melhor. Descobri que já estava se arrumando havia quase 2 horas para o casamento. Arrumei-me rápido, deixando a gravata torta. Cristine vestiu um vestido azul até os joelhos e estava com os cabelos presos em cima da cabeça. Era a primeira vez que eu a via usar maquiagem.

E estava linda. Fomos em seu jipe. O casamento seria na Igreja Heisten,

situada na Francisco. A igreja era bem na esquina da Praça Central. Quando chegamos, tivemos que estacionar um pouco longe pela falta de lugar. Os convidados entravam com calma pelo grande portão principal e sentavam-se nos bancos de madeira enfileirados. Drew, o noivo, esperava no altar, em frente ao padre, com ansiedade. Eu o havia visto apenas uma vez. Era um pouco baixo e usava o cabelo bem curto, parecia um militar. Anos mais tarde, eu descobriria que realmente era. Ele ficava mexendo com os botões de seus punhos. Estava suando e nervoso.

Eu e Cristine sentamos no lugar que nos era reservado, indicado pelo assistente de Anthony. Olhei ao redor, para o teto em abóbada da igreja. As estátuas de Cristo e Maria, as janelas em vitral. Havia anos que eu não entrava em uma igreja. Eu não tinha nenhuma fé ou religião desde que deixei de acreditar em Papai Noel. Deus, para mim, era apenas uma mera extensão do velhinho vestido de vermelho. Você se comporta e ganha um presente de natal no final do ano. Você se comporta durante a vida e vai para a droga de paraíso. E, quando meu pai morreu, todos os rastros que eu poderia ter dentro de mim, sumiram. Essa era a primeira vez que eu entrava, como dizem, na morada de Deus em seis anos.

A música típica de casamento tocada na graça de um violino me despertou.

Todos estavam de pés. Os olhares brilhantes percorrendo o noivo e depois indo em direção ao portão. Trezentos olhos

cravados em Clarice e na figura de barriga redonda que segurava seu braço e a levava para Drew no altar. Ela não estava usando véu e seu vestido era simples, sem nenhum bordado brilhante com a exceção de uma flor que subia de seus pés até o busto. Os cabelos estavam soltos nas costas e um pingente de borboleta os segurava ao lado da orelha. Todos estavam boquiabertos. Desviei o olhar por um minuto ao lembrar-me de algo.

Eu já havia visto aquele vestido antes. Clarice costumava observá-lo por horas em uma loja de

casamentos na Rua Groth. Eu dizia que quando casássemos, ela poderia usá-lo. E realmente usou, mas não para mim. Fiquei ainda mais aturdido quando seu olhar pousou no meu. Nesse momento, ela o desviou para o chão até ter coragem de fitar Drew com um sorriso. Ela estava sendo entregue a ele e o padre começava sua missa duradoura até casá-los.

Senti Cristine me cutucar com o cotovelo e eu abri os olhos. Havia cochilado enquanto o homem falava. Eu não conseguia suportar tudo aquilo. Todo o tema de Deus era demais para mim, mas ela sorria. Achava lindo. Eu apenas queria ir embora. Depois, vi o padre dar a permissão para os noivos se beijarem, e eu sorri quando o fizeram. Porque Nortier estava certo. Eu via minha melhor amiga de infância realizar seu sonho.

Eu estava tendo meu encerramento. Cristine queria ficar para a festa no salão atrás da igreja.

Disse que os canapés pareciam deliciosos. Quando estávamos indo para o salão junto com a multidão, Clarice vinha em nossa direção. Estava parada à minha frente. Nos abraçamos brevemente.

- Parabéns falei. Não havia nada mais a ser dito. Você conseguiu.

Ela sorria radiante. - Consegui seu olhar viajava de meu rosto para Cristine.

Eu as apresentei e elas se abraçaram tão brevemente quanto o fizemos. Ela ainda estava nervosa.

- Obrigada por vir, Evan. Foi ótimo vê-lo aqui. - Eu não perderia menti. Cristine comeu os doces e salgados que queria. Ficamos

por mais duas horas, dançamos e eu tentei não beber. Finalmente, a convenci de partir. Não conseguiria ficar mais naquele cenário religioso. Era demais para mim. Eu também não queria ir para casa. Precisava ir a outro lugar mais importante.

- Vá para casa eu disse a Cristine enquanto fechava a porta do jipe após ela entrar. Beijei-a rapidamente no rosto. Já era noite.

- E você? Seu olhar era confuso. - Preciso pensar. Respirar acrescentei. - Sobre ela? - Quer mesmo falar sobre isso? - Não. E o carro arrancou. Não era sobre Clarice que eu precisava pensar. Segui andando pela praça enquanto atravessava os

canteiros e sentia o vento suave em mim. As folhas balançavam e minha cabeça girava com a palavra religião e todo o cenário em que eu estivera até o momento. Por que me afetava tanto? Outra vez, em minha vida, eu andava perdido. Andei perdido enquanto não achava aquele costumeiro local. O cheiro de café estava no ar quando atravessei a porta. Andei automaticamente até a mesa no fundo do

pedir balas ao pai no balcão. Ela queria mesmo as balas. Percebi ali que talvez gostasse de ser pai. Talvez estivesse preparado.

Morgan puxou a cadeira e bloqueou minha visão com seu sorriso cínico.

II. O Garoto

Morgan virou para trás com uma olhadela enquanto a menina ia embora com o seu pai.

- Fico feliz que me procurou, Evan ele começou enquanto pousava o chapéu sob a mesa.

- Não o procurei. Seu olhar de esguelha me atingiu. - Está bem admiti. Você sumiu durante três meses. Eu

preciso de respostas. - Quer saber por que sumi? - Podemos começar por aí... suspirei. Mas seria

mentira. - Você evoluiu, Evan. É um grande passo. Alguns meses

atrás, você tentaria me manipular. Agora está sendo honesto. - Sem mais jogos meus olhos estavam fixos nos de

Morgan. Pela primeira vez. Morgan sorriu com ironia. - Eu sumi houve uma pausa. Porque não precisava de

mim com tanta urgência. - Eu nunca precisei. Mas agora eu quero respostas. E você

sabe mais de mim do que eu mesmo.

Morgan refletiu com calma enquanto cruzava as pernas. - Por que eu não consigo aguentar toda essa coisa de

religião? eu bebia um copo de água. Parece que existe um tornado dentro de mim.

Ele ainda sorria. - Não sei nada sobre isso, Evan. É algo para você descobrir. - Eu deveria saber que você seria um beco sem saída. - Tudo ao seu tempo outra pausa. Evan, eu gostaria

que você conhecesse alguém novamente. Uma última vez. O que ele queria dizer com uma última vez? Dessa vez eu

sabia que não deveria rejeitar. - Está bem. Quando? - Nenhuma recusa. Nenhuma argumentação seu sorriso

havia mudado. Parecia realizado. Tinha um brilho em seu olhar. - Amanhã, assim que puder deixar o jornal. Encontre-me

na praça. Morgan levantou-se com o chapéu em mãos. Fiquei parado

estava surpreso por ele saber que eu agora trabalhava em um jornal, Morgan sempre sabia de tudo.

Minutos depois, era eu quem deixava aquele lugar. Um turbilhão de perguntas em minha mente. Eu havia ficado durante três meses sem notícias de Morgan, assim como não o havia visto após longas semanas depois de conhecer Nortier. E eu ainda não conseguia decifrar esse código. O que ele sempre queria dizer? Por que me apresentava essas pessoas? Não conseguia entender, mas ao mesmo tempo, estava grato. Nunca teria feito uma nova amizade e nem mesmo me apaixonado uma vez mais. Eu estaria ainda perdido no demônio da garrafa e na nicotina barata. Percebi então, enquanto caminhava pela rua lúgubre e penumbrosa, que eu não fumava havia um longo tempo e nem sentia falta. Talvez isso fosse bom. Pensei

nisso durante meu trajeto até o apartamento enquanto esqueci os questionamentos que Morgan sempre me fazia ter. Ao subir os lances de escadas e lembrar Morgan, uma ideia me ocorreu. Eu trabalhava em um jornal. Poderia descobrir coisas sobre Morgan.

Flush veio correndo para mim quando abri a porta e quase me levou ao chão. As luzes do apartamento estavam todas apagadas e a janela fechada. Andei suavemente até o quarto para descobrir Cristine dormindo. Retirei minhas roupas e caí ao lado dela, me juntando aos seus sonhos.

No dia seguinte aquela ideia ainda estava em minha mente. Fixa.

As ideias geralmente são assim. Causam alvoroço até serem executadas. Eu fiquei boa parte da manhã pensando em qual de meus colegas seria mais ideal para pedir o favor. Don passou por mim na velocidade da luz em direção ao seu escritório. Era ele. Minutos depois, corri até lá e bati com os nós dos dedos na porta de madeira que havia sido colocada no lugar da cortina. Ouvi a voz rouca de Don me mandando entrar.

- Evan, Evan olhava para mim com um sorriso enquanto se reclinava na cadeira. Como vai indo aquele artigo sobre o roubo da galeria municipal? É preciso muita cara-de-pau para roubar em plena luz do dia.

- Quase terminado eu agora escrevia alguns artigos. - Então, o que posso fazer por você? Hesitei. Deveria? - Preciso de um favor falei, enquanto fechava a porta. Ele percebeu a seriedade em minha voz. - Qualquer coisa. - Preciso descobrir umas coisas sobre alguém.

Ver Verde Escuro. Nota do autor. 2º Edição.

- Tem certeza? Descobrir coisas sobre os outros geralmente levanta poeira. Não vai querer a poeira nos seus olhos.

- Absoluta certeza me aproximei da mesa cheia de papéis amontoados. Você tem contatos de vários departamentos, por isso vim lhe pedir.

- Quem é o canalha? - Morgan. - Morgan tem um último nome? Don puxou um bloco

de anotações da gaveta e rabiscava ele com letras garranchadas. - Esse é o problema. Eu não sei muito sobre ele. Procure

uma companhia de tecidos chamada Sagittarius, é um começo. Ele tem um motorista particular chamado Gilbert que dirige sempre uma Mercedes preta.

Don anotava todas as informações meticulosamente enquanto as repetia.

- Algo mais? - Ele mora em Arriviera lembrei. - O cara tem grana. Isso já reduz nosso alcance. Existe algo

que eu precise saber? Por exemplo, por que estou fazendo isso? Eu já estava de saída do escritório de Don quando voltei e

parei na soleira da porta. Eu o observei com atenção. Deveria ser honesto.

- Não posso lhe contar mais do que isso, Don. Sinto muito. Posso, contudo, dizer por que está fazendo.

- Por quê? havia surpresa em seu olhar. - Porque agora estou te devendo um favor e deixei a sala. As pessoas sempre tendem a fazer as coisas quando você

passa a dever a elas um enorme favor como esses. Eu sabia que, quando o favor viesse, poderia ser muito bem algo que eu não gostaria. A verdade é que Don estava fazendo algo perigoso por mim. Eu não conhecia Morgan totalmente. Quem poderia saber o que ele iria fazer para se proteger? Era totalmente imprevisível.

Trabalhei aquela tarde com menos pensamentos em mente agora que sabia que poderia descobrir algo sobre Morgan. Quando meu expediente finalmente terminou ao final do dia, peguei minha pasta e deixei o prédio. Comi um cachorro-quente no caminho da praça. Ainda tinha que encontrar Morgan. Ele me esperava com sabe-se lá quem dessa vez. Senti a brisa fresca nas árvores chegar em mim assim que coloquei o pé na praça e avistei Morgan sentado em um banco com alguém. Aproximei-me. Estava intrigado por sua companhia, porque era um simples garoto.

Não tinha mais do que dez anos, eu tinha certeza. Usava um moletom sem cor e jeans surrados. Seus pés

balançavam, suspensos do banco, enquanto ele olhava as folhas caírem, com curiosidade. Jogava migalhas de pães para as pombas quando elas se amontoavam à sua volta. Morgan caminhou em minha direção. Chamou a atenção do garoto por um nome que não pude ouvir.

- Evan, este é Nathan falou Morgan com um doce tom de voz quando estávamos próximos. Não parecia ele mesmo. Nathan, este é o Sr. Evan.

O garoto apenas levantou os olhos para mim. Continuou entretido com as pombas.

- Bom que conseguiu vir, Evan. Eu preciso ir. - Claro que precisa retruquei. Um olhar medonho pousou em mim. Morgan seguiu andando. Indo embora da praça.

Aproximei-me do garoto, sentando ao seu lado. Eu sabia que nós ficaríamos muito tempo em silêncio. Eu vi algo naquele garoto, em seu olhar vago. Um mundo de sonhos que ele mesmo não parecia acreditar. Ele coçou seus cabelos lisos por um instante e olhou para mim. Depois se virou e voltou a olhar o acúmulo de pombas ali.

Silêncio. Como eu poderia falar com ele?

- Garoto... me senti como Nortier enquanto falava comigo. Como diabos você conhece Morgan? Por acaso frequentam a mesma sociedade secreta?

Ele arregalou os olhos e suspirou. Riu em seguida. - Você também o acha estranho? me perguntou. Ele tinha um jeito diferente de falar para uma criança de

dez anos. Um jeito formal. Conhecia palavras demais. - Não... ri sozinho. Ele é só a pessoa mais estranha que

já conheci em minha vida. - Minha mãe diz que não posso chamar o Sr. Morgan de

estranho porque eu sou estranho seus olhos miraram o chão. - Você não me parece estranho. - Todos dizem o contrário. - Todos são uns idiotas. Os olhos arregalados me olharam novamente, depois

acompanhados de um sorriso. Ele deu de ombros. Era uma filosofia forte demais para alguém novo como ele.

Levantou-se do banco e terminou com as migalhas de pães que tinha. Começou a andar. Eu o segui. Andávamos pelos caminhos de tijolos que a praça tinha Nathan desviava das linhas e as luzes começaram a se acender conforme a escuridão avançou

e as pessoas se juntavam para ver os andarilhos tocarem violão e fazer malabarismo por algumas moedas. Comprei um sorvete de chocolate para Nathan quando seus olhos verdes permaneceram fixados no carrinho. Ele hesitou em pegar. Parecia constrangido.

- É bom? me perguntou. Não era zombaria. Havia sinceridade em sua voz. - Como assim? Nunca tomou sorvete? Fez que não. - Vá em frente e descubra. Nathan fez uma careta estranha quando sua língua tocou o

cremoso gelado do sorvete, e depois sorriu com os dentes sujos.

Olhou para mim, esperando uma espécie de permissão. Eu disse vá em frente silenciosamente e ele atacou o sorvete. Olhei para o céu. As estrelas estavam brilhantes.

- Acho melhor eu ir para casa falou, enquanto limpava o rosto com o moletom após comer toda a casquinha. Minha mãe não gosta que eu esteja na rua à noite.

- Está bem concordei. Ele me fitava com fixação. O que foi?

- Precisa me levar. Nathan morava na Vert, bem no final da rua. Não me

incomodei, porque na verdade era meu caminho. Fizemos o trajeto em silêncio, cruzando ruas como a Groth e depois seguindo pela Central. A casa dele realmente ficava no final da rua, passando o cemitério Krow. Aquele lugar era terrível para se andar à noite. Não havia grande iluminação e nenhuma alma viva na rua, contudo, alguns talvez diriam que podiam sentir a presença dos mortos na Rua Krow. Eu sentia o cheiro de vodca e urina. A fachada da casa estava praticamente destruída. Havia grades na porta e na janela. Nathan passou pelo cercado marrom e atravessou a grama crescida até os degraus antes da porta. Abriu a grade e a porta, sumindo para dentro da casa. Antes que eu me virasse, o ouvi assoviar pela janela e balançar a mão e um sorriso.

Eu sorri em retribuição e segui andando pela noite.

III. Oceano

As semanas que se seguiram estavam sendo cansativas, para mim e para Cristine.

Nós precisávamos de um momento em que não pudéssemos ouvir o som dos carros ou pensar no dia seguinte. Eu sabia o lugar perfeito. Deixei que os dias passassem sem lhe falar nada. Eu estava ansioso para estar lá, então naturalmente as horas foram lentas. No sábado pela manhã fizemos uma mala pequena, pegamos o jipe e fomos. Eu dirigi. Havia aprendido a dirigir no curso daqueles últimos meses por insistência de Cristine. Eu raramente o fazia porque o jipe era dela e eu não me importava em caminhar. Já havia caminhado demais. Cristine também não saberia o caminho para onde íamos. Por um minuto, achou que estávamos indo para a praia. Nós seguíamos pela estrada de Darby até dobrar e pegar o caminho de terra para a colina.

E, lá estava, como sempre. A fumaça saindo pela chaminé do chalé e as macieiras

causando uma linda visão com o sol amarelado atrás delas. Todas ainda floridas, preparando-se para o verão. Lembrei-me de quanto Nortier me falou sobre maçãs e acho que eu nunca esquecerei. Ele estava próximo das árvores enquanto cuidava de sua plantação de

cenouras, batatas e abóboras. Virou-se e comprimiu os olhos para ver quem vinha. Estacionei e desci. Um sorriso apareceu em seu rosto e ele começou a andar em nossa direção.

- Os vivos sempre aparecem a alegria estava em cada timbre de sua voz.

Cristine estava parada ao meu lado. Ele a analisou como fez comigo na primeira vez em que nos vimos.

- Você deve ser... Ele havia esquecido. Esforçava-se para lembrar, mas o

momento já havia se ido. Eu apenas torcia para que ele não dissesse outro nome.

- Cristine ela completou enquanto apertava a mão dele. E o senhor é Nortier.

- Precisamente. - Evan fala muito do senhor e dessa colina. - Não mais do que de você. Os dois riram, olhando para mim. - Vocês terão muito para conversar os interrompi. - Com essas suas visitas mais rápidas que minhas consultas

ao médico eu realmente duvido Nortier sorria, fazendo sinal para que entrássemos.

- Nortier, eu pensei se poderíamos ficar aqui até a segunda-feira. Precisamos fugir da cidade.

Cristine olhou-me com um sorriso escondido. Ela sabia que eu a havia lido com precisão assustadora.

- Você não precisa pedir, garoto. Nortier arrumou para nós o mesmo quarto que eu havia

dormido a primeira vez que estive lá, no natal. Nós deixamos nossas malas lá e o jipe ao lado da velha garagem. Depois, ele preparou uma refeição como eu nunca havia tido antes. E tratou de conquistar Cristine durante o almoço. Perguntar sobre os quadros foi tudo o que precisou para que meu amigo soltasse a língua. Contudo, ele

não confidenciou a ela sua história, como fez para mim. Contou sobre Annabelle, com perfeita memória.

Contou apenas a parte feliz de seu casamento. Cristine ria em muitos momentos. E eu estava feliz, porque

aqueles dois eram tudo o que eu tinha agora. Durante a tarde, fiz todo o serviço de plantação que havia prometido a Nortier. Ele me dava instruções enquanto Cristine me assistia suar, com divertimento. Ela estava sentada em uma cadeira de praia em frente à casa. Eu nunca vou esquecer aquela visão. Um chapéu grande de sombra com flores caía em seus olhos. Seus cabelos negros amarrados, e um vestido estampado com pequenas flores rosadas. Estava simples e tudo o que eu queria fazer era eternizar a sua imagem sombreada pelas macieiras em minha mente.

Eu não sabia o quanto iria durar. Enquanto eu a olhava, com um sorriso, segurava uma

enxada e suava em bicas, revirando a terra de momentos em momentos. Com muito esforço nós conseguimos espantar os coelhos que se materializavam do nada, como Nortier ficava repetindo. Eles estavam roubando as cenouras e destruindo alguns pés de alfaces. Construímos um grande cercado branco que os iria impedir de passar por um tempo.

A tarde veio rápida depois, mas o tempo continuou fresco e agradável. Nortier disse que precisava descansar um pouco e foi ler em sua poltrona. Cinco minutos depois, seus olhos estavam fechados e os óculos caídos em cima do livro. Ele dormia.

- E você, Evan Doyle. Precisa descansar? Cristine sorria e mordiscava seu lábio inferior, fitando-me com um olhar feroz.

Ela passava as mãos em meu tórax suado. - Preciso de água falei, enquanto olhava a praia lá

embaixo. Havia muito tempo eu queria andar naquelas areias. Quer dar uma volta?

- Claro, mas nem pense em me molhar.

Pisquei para ela. Descemos a colina em direção à praia, de pés descalços,

andando depois pela areia fina que era tocada constantemente pelas ondas do oceano, vinda para se quebrar apenas para se reconstituir novamente e voltar. Seguimos andando, sempre reto, de mãos dadas, distanciando-nos cada vez mais da casa.

- Como sabia que eu precisava fugir? Cristine fitou-me enquanto o chapéu balançava com o vento.

- Estava em seu olhar dei de ombros. - Eu simplesmente senti que você precisava se afastar de tudo. Acho que você é assim. Precisa se afastar das coisas por algum tempo.

Ela mirou o chão. - Eu gostaria de tê-lo conhecido há anos, Evan. Como eu

gostaria... Molhávamos nossos pés na beira da água. - Por quê? - Porque tudo seria mais simples ela fitou-me novamente. - Mas tudo está simples. Nossas mãos estavam juntas enquanto andávamos

sentindo a água morna e salgada do oceano bater em nossos calcanhares com lentidão. As ondas iam e vinham quase parando. Cristine suspirou.

- Elas sempre complicam. Eu não sabia o que isso queria dizer, mas tinha certeza que

ela também não me diria. Cristine tinha um grande problema de confiança. Levou meses até que eu soubesse todo o seu sobrenome. Ela simplesmente não me dizia as coisas. Lamentei por isso muitas vezes, e naquele momento, eu a soltei. Ficamos em silêncio enquanto ela se afastava para sentar-se na areia alguns metros adiante de mim. Aproveitei para mergulhar na água como queria.

E o fiz.

A água inundou meu corpo. Sentia sua temperatura morna em meus braços e minhas pernas. As ondas me levando de volta para a beirada da praia por um breve minuto. Fechei meus olhos enquanto trancava minha respiração e senti o coração do oceano palpitar junto ao meu. Esqueci-me de todos os problemas antigos e dos que vinham se criando. Enquanto voltava para a superfície e respirava, somente para mergulhar e nadar outra vez, eu me lembrei de meu pai. Foi ele quem me ensinou a nadar. Seu rosto estava perfeito em minha mente. Eu lembrava de cada traço seu. Abri meus olhos e vi o sol através da água límpida.

Voltei e encontrei Cristine sorrindo para mim. Andei arrastando-me devido à força da água de volta para

a praia, indo de encontro a ela. Aproximei-me e beijei seus lábios doces sentindo-a retribuir meu beijo com carinho. Sorrimos. Tudo o que eu queria era ficar ali para sempre e não ter que olhar para o futuro. Era tão incerto e eu sabia como poderia ser injusto. Eu sabia que, com a chance certa, iria destruir tudo o que eu prezava. Não dissemos nada. Não precisávamos. Nós conseguíamos entender um ao outro todos os sentimentos que tínhamos.

Ficamos parados e sentados na areia enquanto observávamos o pôr do sol. Ocasionalmente, eu olhava para as pernas de Cristine, saindo de seu vestido e terminando em tanta perfeição em seus pés. Somente naquele dia, percebi algo em seu calcanhar direito. Era a cola de um gato cinzento se enroscando em seu próprio corpo. As orelhas pontudas. Grandes olhos azuis.

- Desde quando você tem essa tatuagem? perguntei com curiosidade curvando-me para observar com mais atenção.

Ele fazia a volta em todo o calcanhar. Eu nunca havia reparado. Cristine olhou-me com estranheza.

- Há muitos anos, Evan. - Eu nunca havia percebido.

- Talvez estivesse ocupado com outras partes de meu corpo ela sorriu e me beijou outra vez.

- É uma boa teoria concordei. Eu ainda olhava a tatuagem. Queria saber mais. - Um erro de sua juventude? Ela olhou para o horizonte e suspirou. Seus olhos

perderam-se na infinidade. - Não, Evan. Nossa juventude nunca é um erro. As pessoas

dizem que ser jovem é fazer coisas estúpidas. Meu pai costumava dizer isso, que ser jovem é um grande sinônimo de estupidez. Estão todos errados.

Ela continuava perdida no mar. As pernas estendidas na areia, a cabeça inclinada para frente e os braços suportando seu corpo.

- Ser jovem é ver o enigma em tudo e se jogar de cabeça, sem medo de se ferir. Fazer isso é fugir do padrão da sociedade, que tenta por todos os meios contornar o enigma. Quando envelhecemos nós ganhamos o medo de errar...

Inclinei-me em direção ao rosto de Cristine e toquei-a com a ponta dos dedos, fitando-a. Um sorriso brilhante me cumprimentou. Aquela mulher era sempre excepcional.

- Acho que você está certa Beijei-a rapidamente. - Como sempre. - Eu sei Ainda exibia seu melhor sorriso com os lábios

vermelhos. - Como foi a sua juventude? me atrevi a perguntar. Ela suspirou outra vez. Eu sabia que ela tinha medo de se

abrir comigo, mas era hora. E, novamente, ela me surpreendeu. Olhou em meus olhos.

- Terrível. Era tudo tão terrível. Mas acho que você é finalmente o homem certo para escutar.

IV. Cristine

Passo aqui, com as palavras de Cristine, tudo o que ela me disse naquela tarde de primavera.

Eu deveria ter sido uma criança feliz. A felicidade somente veio para mim quando eu fiquei

verdadeiramente livre. Havia tudo para mim antes, Evan. Uma mansão, dinheiro. Tudo menos liberdade. Eu sou a filha mais velha de Richard Madison e de sua imensa reputação que não perdoa ninguém. Ela o caça e o faz pagar por todos os pecados de meu pai. É claro que ele queria um homem como primeiro filho. Muitos momentos eu desejei que um homem tivesse nascido, e não eu. Que eu não estivesse ali, sofrendo com suas palavras que me magoariam para sempre. Muitas vezes em pensei em uma solução mais fácil para a vida. Uma saída. Não havia nenhuma.

O sotaque que eu carrego e percebo seu olhar brilhar quando digo seu nome, porque provavelmente o lembra de seu pai irlandês, vem de um internato para meninas em Belfast. Meu pai me enviou para lá quando eu tinha apenas seis anos de idade. Ele dizia que eu era uma menina mimada que precisava ganhar modos com mulheres de verdade. Ele nunca considerou minha mãe uma mulher

de verdade. Ela era apenas seu objeto na sociedade. Meu pai... Tudo o que eu desejava era que ele viesse ao meu quarto olhar minhas bonecas e dizer como eu era organizada. Ou que ele viesse à noite, e lesse um de meus livros infantis para que eu dormisse. Que ele orasse comigo e beijasse minha testa. Era tudo o que eu queria dele e mais nada.

Minha mãe parecia ainda mais infeliz do que aquela casa inteira, mas ela perdia-se sozinha em sua infelicidade. Não deixava que ninguém entrasse em seus pensamentos ou seu coração. O casamento de meus pais foi arranjado por meus avôs, já que meu avô materno tinha mais cinco filhas e precisava se livrar de uma. Minha mãe entrou no mundo do poder e da lei quando ainda tinha dezessete anos e meu pai cursava a faculdade. Os primeiros anos de casamento são os melhores, mas só então ela viu com quem realmente havia casado. Um homem sombrio e frio que pisaria os outros até conseguir o que queria. Não foi problema algum para ela. Ela teria riqueza. E, com isso, esqueceu toda a infelicidade nos sapatos caros e nos diamantes. Eu era apenas a bonequinha que fazia a família aparentar felicidade.

Lembro-me dos amigos de família dizendo que queriam ser como nós. Que lá eram todos felizes. Mal eles sabiam que, quando as portas da mansão Madison se fechavam, meus pais se trancavam no quarto e discutiam. Eu ficava sozinha no jardim chorando até adormecer e ser levada pela Madame Mourrier, uma querida empregada que tínhamos. No internato, as coisas não mudaram muito, exceto que lá eu fiz algumas amigas de pais também ricos que sofriam com problemas similares. A diferença no futuro foi que elas resolveram aceitar quem eram e acabaram indo morar em mansões com maridos ainda mais ricos. Para mim, o internato foi tudo o que precisava para que eu nunca mais quisesse viver na mansão Madison. Eu voltava sempre nas férias e encontrava a felicidade na Madame Mourrier, uma pessoa alegre que eu sempre tratei bem, até seus

últimos dias, e em minha avó. A única pessoa que me entendia de verdade e em quem eu confiava.

Minha avó materna Dana Scott. Ninguém gostava dela. Ela era um espírito livre que se

divorciou do marido aos 65 anos e voltou a estudar. Odiava o casamento. Dizia que era uma instituição forçada pelos homens para controlar as mulheres. Ela costumava dizer que, quando há realmente amor, os amados não precisam casar. Podem, se quiserem, mas seu laço é tão forte que vai além do papel e da permissão de Deus. Acredite ou não, vovó Dana encontrou seu verdadeiro amor em um homem de setenta anos que vendia peixe em um mercado de Florença. Conheceu-o em uma de suas viagens à Itália. Vovó Dana não se casou outra vez, mas ela teve alguém para segurar sua mão quando partiu para o conforto do Senhor. Vovó Dana era tudo para mim.

Eu realmente pensava que as coisas poderiam mudar um dia, especialmente quando fiz oito anos e começaram as férias de verão outra vez. Saber que iria ver a vovó Dana era um alivio imenso. Infelizmente ela não estava na mansão quando voltei, porque tudo estava um caos. Mas ela havia deixado uma carta dizendo que me veria na Inglaterra quando eu retornasse. Fiquei feliz, e mais feliz ainda quando soube a origem do caos: eu teria uma irmã. Quando somos crianças, nós não entendemos porque os adultos ficam irritados. Principalmente com um bebê a caminho. O fato era que o bebê seria outra mulher e isso irritou meu pai a ponto de ele falar mal de Deus e todos os santos.

A criança nasceu e eu só a conheci quando ela já tinha dois anos, no dia em que deixei o internato, aos dez anos. Outras férias de verão. Sabia que voltaria, ou assim pensava. Nunca vi as freiras do internato outra vez. Eu criei minha irmã, já que esse era o motivo de minha permanência na casa. Alguém da família precisava cuidar da nova criança. Havia os empregados, mas a maioria se demitia

rápido, com as grosserias de meu pai. Apenas Madame Mourrier aguentava, e eu sabia que era por minha causa. E agora por causa de minha irmã. Ela nunca pôde ter filhos.

Minha irmã, Kate, foi uma criança adorável. Ela não sofreu pelos mesmos problemas que eu sofri. Não

sentia falta de nossos pais porque mal os conhecia, e não precisava deles. Ela tinha a mim. E me amava. Nós fomos muito próximas durante muitos e muitos anos. Quando vovó Dana não estava, Kate era a pessoa para quem eu confidenciava todos os meus temores. Foi a quem confidenciei meu primeiro amor, minha primeira ilusão. E aconteceu o mesmo com ela. Éramos tudo uma para a outra. Mas, mesmo com ela, cada novo dia naquele lugar plantava desesperança em meu coração.

Resolvi me refugiar com vovó Dana, que estava na cidade. Eu queria ir embora, falei para ela. Queria conhecer os

lugares que via na televisão. Ela não poderia me levar porque não era minha tutora legal. Ela passou então a me enviar postais de todos os lugares que ia e me prometeu que, quando eu atingisse a maioridade, me levaria embora com ela. Para longe de toda essa gente, ela dizia. Eu esperava com ansiedade. Mesmo sabendo que teria de deixar Kate aos dez anos de idade sozinha com todos aqueles a quem eu odiava. Eu começava a repensar. Talvez não pudesse fazer isso.

Mas uma notícia veio para me abalar assim que completei meus dezoito anos. Vovó Dana havia falecido. Todos contam que ela dançava salsa e segurava uma garrafa de vinho quando simplesmente caiu no chão, sorrindo. O último nome que disse foi o meu. Pelo menos foi o que me contou o seu amor de Florença quando veio para me entregar o último postal. Madri. A escuridão chegou até mim, e nem mesmo Kate, que também amava a vovó Dana, conseguiu me livrar de todos aqueles pensamentos que eu tinha. Eu não poderia ir embora. Não tinha nenhum dinheiro meu. E meu pai me deserdaria no momento em que eu saísse pela porta.

Não que eu me importasse com seu dinheiro criminoso, mas e a Kate? Decidi aceitar o futuro que eu tinha. Entrei para a faculdade de direito. Meu pai ficou extremamente feliz e, de repente, nos tornamos os melhores amigos. Dizia que eu teria meu lugar de direito em sua firma. Eu apenas concordava. Na faculdade, encontrei uma saída para meus problemas.

Lembra-se do homem em meu apartamento? Aquele que eu disse ser meu passado? Seu nome é Dylan McCarthy.

Eu me apaixonei perdidamente por ele. Namoramos durante um longo tempo. Chegamos a ficar noivos. Algo em meu coração pulsava, e dizia ser errado. Vovó Dana em minhas lembranças dizia que eu estava indo pelo pior caminho. Eu a escutava dizer que estava me conformando. Eu estava com 22 anos e a ponto de me graduar. Meu pai estava feliz com seu futuro genro, que sonhava com isso. Dylan também cursava direito. Genro de Richard Madison, um sonho de qualquer um que fosse virar um homem da lei. Isso iria lhe conferir os melhores clientes quando também fosse trabalhar para meu pai. E estava indo tudo de cabeça para baixo. Era uma tarde ensolarada quando peguei os postais de minha avó do fundo de meu baú.

Decidi largar tudo. Larguei a faculdade e não contei para ninguém, passando

também a evitar Dylan. Ele diria que seria loucura e iria me persuadir a voltar atrás. Comecei a cursar turismo. Eu queria realmente conhecer aqueles lugares em que vovó Dana esteve. As cidades da América. Eu queria ir até o Canadá. Eu queria conhecer os treinadores de huskies. Comecei a trabalhar em uma cafeteria para juntar meu próprio dinheiro, sem que meu pai soubesse. Não adiantava. O salário era pouco e eu nunca conseguiria fugir e viajar com aquilo. Eu precisava de mais e não queria pegar o dinheiro de meu pai. Eu recusava isso.

Aquela foi uma tarde sombria, eu me lembro, quando conheci nosso amigo em comum.

Eu estava sentada no campus da universidade relendo os postais e sorrindo para mim mesma. Apenas sonhando. E ele sentou ao meu lado. Vestido como sempre e com seus gestos usuais, me provocou medo no início. Pousou seu chapéu no colo e se apresentou. Sr. Morgan. De algum modo, Sr. Morgan me ajudou a superar todos os medos que eu tinha de meu pai, e encará-lo. Ele parecia saber mais sobre mim do que eu mesma. Resolvi jogar limpo com Dylan, dizer que não ia mais as aulas porque havia encerrado meu curso e lhe devolvi a aliança. Não queria mais casar. Contei a meu pai que eu havia deixado a faculdade e cancelado tudo com meu ex-noivo. De melhor amiga, eu me tornei rapidamente a ovelha negra da família. E diziam que era tudo culpa da maluca da Dana, que plantou besteiras demais em minha mente na infância. Meu pai apenas não me expulsou de casa porque Kate me defendeu e disse que iria junto comigo se ele me mandasse embora. Ela se sacrificou por mim.

Sempre se lamuriava de não ter grandes sonhos e se conformaria com o que a vida lhe desse. Ela realmente não era uma criança sonhadora. O Sr. Morgan me deu de presente o jipe, e disse que eu tinha que ver a vida diferente. Esse era o preço por aquele carro. Eu não o usaria por mais dois anos, que foi quando terminei a faculdade de turismo. Meu pai não falava mais comigo. Aos 26 anos, abracei minha irmã e deixei a mansão sem dizer adeus para ninguém mais. Madame Mourrier já havia partido e vovó Dana não estava mais ali para sorrir para mim. Vi o Sr. Morgan uma última vez antes de ir. Ele me falou que eu teria que honrar aquele jipe e o único meio de fazer isso era mudar quem eu era em meu âmago. Ver a vida de outra forma. Ver a vida além das barras daquela prisão. Aceitei o desafio e fui embora.

Comprei um grande mapa e passei a marcar todos os lugares que fui. Os mesmos lugares que minha avó esteve. Passei a usar o nome de Cristine Scott para honrá-la. Conheci Nova Iorque, Kansas, Memphis, Baltimore, Vegas, Phoenix, São Diego, El Paso. Fui ao México conhecer Puebla, Juarez, Oregon, Guadalupe. Aprendi com uma moça chamada Raja a falar espanhol. Voltei para a América e depois fui ao Canadá e conheci Vancouver, Toronto, Simpson, Churchill, Edmonton, Ottawa. Dormi nas beiras de estrada aonde minha avó dormiu. Compartilhei os mesmos quartos de hotéis que ela. Depois, morei no Alasca, assim como ela, na cidade de Sinaru. Conheci muitas pessoas, muitas mesmo. Pessoas boas com quem a vida vale a pena ser compartilhada. Conheci também o mal. Vi a execução desse mal em lugares sem lei onde os bons têm que atuar por conta própria.

Conheci o sofrimento de outros. A dor. A angústia. E, acima de tudo, a vontade de escapar de algo pior do que eu desejava fugir. Eu andava com um jipe cheio de gasolina para rodar, mas vestia trapos velhos. Dividia o pão com pessoas tão pobres que eu não imaginava, entre as paredes de minha mansão, existirem. Roubei alimento para não sentir a dor da fome. E o jipe estava sempre lá, porque eu tinha que honrá-lo, assim como tinha que honrar minha avó. Aí chegou a hora de voltar. Reencontrei o Sr. Morgan.

E depois eu conheci você...

V. O Garoto Parte II

As estrelas haviam substituído as lindas nuvens brancas que antes davam destaque ao céu azulado com tonalidades laranja. As águas continuavam calmas, distantes de nós. Ficamos sentados lado a lado na areia apenas observando as ondas daquele oceano ir e vir. Era a primeira vez que Cristine se abria completamente comigo. E eu estava feliz. Escutá-la falar do que a havia motivado era ótimo. Eu podia sentir em sua voz que ainda havia coisas que ela teria para falar, mas talvez com o tempo.

- Perdoe-me, Evan começou Cristine após um tempo em silêncio.

Ela chorava. Passei a mão em seu rosto, secando suas lágrimas.

- Pelo quê? Cristine ficou em silêncio novamente. Ela não conseguia dizer. Levantou-se de onde estava e

seguiu andando sozinha em direção à casa da colina, sempre subindo. Eu via seus ombros sacudindo pelas emoções. Ela ainda chorava. Não me diria o que eu deveria perdoar, não tão cedo. Fiquei mais um tempo até levantar-me, também, molhando os pés uma vez mais na água agora fria antes de voltar a subir a colina.

Entrávamos no chalé quando Nortier sorriu ao nos ver, mas seu sorriso desapareceu repentinamente ao ver os olhos de Cristine. Com todo o seu tempo de vida, eu sabia o que Nortier havia visto. Ele fitou-me com seus olhos clamando por respostas. Apenas dei de ombros.

- Querem chá? ofereceu em uma tentativa de amenizar o clima.

Cristine fez que sim. Nortier estava prestes a servir a xícara quando sua mão soltou a chaleira. O metal bateu no chão e a água escorreu. Seu corpo perdeu o equilíbrio. Suas mãos tatearam inutilmente em algo de apoio e ele começava a despencar. Corri e segurei-o com rapidez. Seus olhos buscavam algo reconhecível, como se sua memória se apagasse de um segundo para o outro. Com toda a força que pude reunir, levantei meu amigo e o levei para o seu quarto, sua cama. Cristine veio atrás de mim. Por um momento tudo passou entre nós e a preocupação tornou-se mais forte.

Nortier começava a ter um acesso de tosse fortíssimo e depois voltou a recobrar os sentidos.

- Você se sente melhor? aproximei-me dele, olhando-o com preocupação.

- Não foi nada tentou levantar-se, mas recuou quando sentiu algo. Só um mal-estar.

- Talvez você deva permanecer deitado disse Cristine. Vou preparar uma sopa.

E ela deixou o quarto. Nortier olhou brevemente outra vez, mas não disse nada. Apenas fechou os olhos e caiu no sono. Acordou para tomar a sopa e dormir novamente.

A preocupação estava estampada no rosto de Cristine, mas novamente, ela se recusou a dizer algo. Parecia me afastar propositalmente. Talvez o passado nunca fosse bom para ser comentado. Dormimos de costas um para o outro e levantamos no domingo sem trocar uma palavra. Eu esperava que ela dissesse algo.

Não disse. Nortier havia passado o dia em sua cama. Começava a suar frio e eu estava preocupado.

Recusou-se a ir a um médico. Fomos embora apenas na segunda-feira pela manhã, por

ordem de Nortier. Disse que não deveríamos perder tempo com ele. Eu prometi que voltaria após o trabalho, para ver como estava. O caminho de volta foi tomado pelo silêncio de Cristine, com exceção de poucas palavras sobre sua irmã.

- Evan sua voz tremeu enquanto ela dirigia de volta para casa. Amanhã à noite será o jantar de noivado de Kate. Ela irá se casar em breve. Quero que você venha comigo e a conheça. É muito importante para mim.

- Está bem respondi, apenas. O caminho foi monótono e eu estava sentindo falta de falar

com Cristine. De beijá-la. De uma hora para a outra ela estava fria. Cristine me deixou na porta do jornal. Quando tentei beijá-la, ela virou o rosto.

Havia algo acontecendo. Baixei a cabeça e deixei o carro. Novamente, outro dia

começava. O prédio como sempre. As pessoas caminhando, subindo as escadas. Em meu escritório, eu sabia que o dia não seria produtivo. Havia muitos problemas em minha mente. Nortier. Cristine. O que estava acontecendo? Vi Don andando em minha direção. Ele parou na divisória de meu escritório, e seu olhar dizia tudo o que havia de errado com o mundo. Uma pasta cheia de papéis estava em suas mãos.

- Preparado para algumas notícias desagradáveis? sua voz estava calma como sempre.

Dei de ombros. - Parece que é o especial do dia, não é? zombei. - Algo o perturba, amigo? - Não é nada.

- Cristine disse Don em tom confidente. Balancei a cabeça rapidamente. - Bem, essas são as irmãs Scott. Sempre perturbam nossas

mentes. - Sabe de quem elas são filhas... - Sei, mas nunca se deve mencionar esse nome. Elas ficam

zangadas. Acho que Scott tem a ver com uma avó, sei lá. Enfim, quer as notícias ou mando queimar?

- O que você tem? endireitei o corpo, afrouxando a gravata que me estrangulava.

Era agora. - É sobre seu camarada Morgan. Don abria a pasta e olhava os papéis. Escutei as folhas com

ansiedade. - O cara é um fantasma. - Essa seria uma definição gentil. - Não existe nenhuma companhia chamada Sagittarius em

nenhum lugar do mundo. Pensei que você poderia ter confundido o nome, mas também não há registros de nenhum Morgan morando em Arriviera. Puxei a ficha de pessoas que moram lá. Uma população de 30 magnatas não é tão difícil assim de descobrir.

O que Don falava? Aquilo não fazia o menor sentido. Como Morgan não moraria em Arriviera? Eu estive lá, jantei com ele. Estive na mansão dos dragões mais de uma vez. Eu estava perplexo. Não conseguia ficar sentado. Andava de um lado para o outro no escritório. Don via a frustração em meus olhos, eu sabia que via.

- Acho que você errou em algo, Don peguei a pasta de papéis que ele me entregava. Eu o fitei com desespero. Eu estive em sua mansão.

- Desculpe, Evan não havia realmente nada que ele pudesse fazer. Esses meus contatos são profissionais, eles não dormem em serviço.

- Não, há algo errado. - Não estou duvidando falou. Agora, sobre Gilbert. Seu

nome é Gilbert De Santa. Cumpriu pena duas vezes por roubo. Completou um total de quinze anos em penitenciárias de crimes do colarinho branco. Você andou mexendo com uns peixes grandes.

- Em que ano? - Está tudo aí. Parece que em 1998 foi liberado da prisão

por bom comportamento e informações confidenciais, das quais eu não consegui descobrir. Provavelmente delatou alguém. Depois disso ele sumiu do radar. Usava sempre uma Mercedes preta como veículo de fuga. Ninguém nunca mais ouviu falar dele. Foi presumido morto.

Com hesitação, eu abri a pasta. O arquivo de Gilbert estava correto e havia uma foto. Era ele. O homem com o arrastar de pés. Estava jovem e usava um bigode, mas era ele. Seria questão apenas de tirar o bigode e deixar seus cabelos brancos. Terminou sua pena em 98 com 50 anos de idade. Aquele era o motorista silencioso. Gilbert. O que Morgan tinha a ver com ele? Dizia que Gilbert havia roubado uma galeria de arte e sido pego em flagrante. No tribunal, foi alegado cleptomania, mas o juiz o culpou de todos os crimes. Na prisão clamava que haviam armado para ele e iria se vingar. Nunca mais foi visto. O que ele era de Morgan? Um cúmplice? Eu precisava descobrir. Se Morgan não existia nos arquivos, eu sabia como encontrá-lo.

Meus nervos se agitavam freneticamente quando peguei o paletó da cadeira.

- Sinto muito, Don. Tenho que ir. Pode colocar alguém para me substituir?

- Claro, Evan. Aonde você vai?

- Acabar com a origem de meus problemas falei, enquanto batia no ombro de Don e deixava o escritório, para deixar o prédio em seguida.

Minhas veias palpitavam. Minhas mãos suavam. Eu segurava a pasta de arquivos embaixo do braço e tinha certeza que as jogaria na cara de Morgan. Era hora de ele finalmente me dizer o que eu queria saber.

Finalmente, era hora de respostas. Andei com pressa em meio à multidão. Meus passos

seguindo cada vez mais rápidos pela calçada enquanto minha gravata voava para fora do paletó aberto. Eu desviava de todos e seguia sempre em direção a um único lugar. A lanchonete se tornou visível para mim. Estava quase vazia. Abri a porta e entrei, cumprimentando o dono com um aceno. Sentei em meu lugar de sempre e esperei. Meus nervos gritavam enquanto eu esperava. Pela primeira vez pensei que Morgan não fosse aparecer, mas então eu o vi. Ele se aproximou da mesa.

Não sozinho. Nathan, o garoto, estava com ele. Morgan sabia que eu não

teria coragem de falar algo para ele quando estivesse com o garoto. E ele com certeza sabia de tudo que eu tinha descoberto. Eles sentaram-se à mesa e o menino olhou brevemente para mim. Aquele garoto também temia Morgan.

- Olá, Evan o tom cínico de Morgan chegando aos meus ouvidos.

Eu realmente não tinha coragem. Talvez aquele não fosse o momento para enfrentá-lo. Como de costume, não demorou a que Morgan fosse embora e me deixasse a sós com o garoto, com quem passei junto durante toda aquela tarde. Apesar de seu silêncio, muitas vezes ele tinha uma profundidade que eu nunca presenciara em alguém mais velho. A mãe de Nathan trabalhava durante todo o dia e ele ficava sozinho após a escola, lembrando-me de minha

própria infância. Nós começamos a ficar cada vez mais próximos. Nathan relutava em ir para as aulas porque apanhava de todos que não gostassem dele. Prometi, naquela tarde, que passaria e levá-lo e buscá-lo. Começamos uma amizade que se estenderia por muito mais tempo e somente então entendi o propósito de eu conhecê-lo.

Ele não deveria me salvar de mim mesmo, como fizera Cristine e Nortier. Eu estava lá para salvá-lo de uma vida que ele se arrependeria.

À noite, após largar Nathan em casa, fiz como prometi. Fui ver Nortier. Ele ainda estava na cama, mas havia feito uma sopa com legumes e frutas. Parecia estar se recuperando. Contudo, estava devastado. Sofria com uma depressão que eu nunca vi em seu olhar. Fiquei durante duas horas e escutei sobre os últimos dias de Annabelle. Depois, tive que partir para um lar onde o gelo reinava. Um lar onde Cristine não iria falar comigo.

E eu não entendia nada. Não entendia porque minha vida começava a desmoronar outra vez.

VI. A Morte Não Aguarda

Naquela noite de terça-feira, eu vi Cristine usar maquiagem outra vez enquanto a ajudava a fechar seu vestido longo vermelho.

- Você está linda. Fui ignorado. Eu estava ficando cheio disso e sentia que

iria explodir. Eu iria confrontá-la em algum momento. Mas não seria agora.

Deixamos o apartamento e Cristine dirigiu. Eu não fazia ideia de onde seria o jantar. Nós saímos da cidade e seguimos por uma estrada que eu não estava muito familiarizado, mas após uma grande placa e uma plantação de lírios, descobri que aquela era a Vila Sunshine. Cristine seguiu mais alguns metros e dobrou à direita, seguindo novamente por uma longa estrada que não era asfaltada. Passamos por grandes árvores imersas em escuridão até chegarmos naquela mansão. Um grande portão negro se abriu imediatamente assim que o homem por trás dos controles viu o jipe de Cristine.

O jardim também tinha lírios e rosas. Uma fragrância suave chegava até mim, e por um momento me senti bem com aquele local. Apenas por um momento. Todas as luzes da mansão

estavam acessas e eu podia ver inúmeras silhuetas em uma sacada. O som suave do violino vinha de lá com firmeza conforme atravessávamos a porta de entrada da mansão. Um grande salão, com quadros e múltiplas escadarias, viviam ali. As flores do jardim lá de fora também marcavam sua presença naquele local. Eu segui Cristine através de uma das escadarias e quando percebi estávamos na mesma sacada que vi antes.

Homens de gravatas e cabelos engomados. Mulheres de vestidos longos. Todos bebericando champanhe em taças de cristal e sendo cordialmente recebidos por uma moça elegante de cabelos claros. Claros quase loiros. Eu não precisava conhecê-la para reconhecê-la. Seu sorriso era exatamente igual ao da irmã mais velha. Ao ver Cristine, aquela moça sorridente correu ao nosso encontro. Fitava-me com ansiedade incontida.

- Você deve ser o famoso Evan disse uma voz familiar. Por um momento me parecia ouvir Cristine. Suas vozes

seriam confundidas ao telefone. Ela segurava minhas mãos e sorria reluzente.

- Eu ouvi tanto sobre você. - Digo o mesmo menti. E, depois fui deixado, sozinho. As irmãs e melhores amigas tinham tudo para conversar.

Comi alguns camarões e fingi beber champanhe enquanto, na verdade, o jogava da sacada, em cima das flores brancas. Permaneci olhando em volta, sentindo a brisa leve, e o cheiro suave. Vi o antigo noivo de Cristine passar por mim ao lado do rapaz que era o noivo de Kate. E depois senti uma presença ao meu lado. Ameaçadora, realmente. Reconheci aquele rosto assim que meus olhos o encontraram. Eu via sua imagem nos jornais, e ele era temido por todos os advogados de defesa do país.

- Evan, se estou correto falou, com seu olhar firme preso em mim.

Sua voz era grave e ele era mais baixo do que aparentava na televisão. Seu bigode era mais engraçado também.

- Esse seria eu. Não entendo como temia Morgan, mas jamais temi aquele

homem. Ele era simplesmente patético. - Consigo perceber pessoas como você de longe. Pessoas como eu? Que diabos ele queria dizer com isso? - Pessoas que não se adaptam com... olhou ao redor com

o peito estufado. Outras classes. Eu odiava sua arrogância. - Aproveite o champanhe falou antes de me deixar

sozinho. Seu olhar mirou Cristine por um instante, e ele deixou o

local. Ela correu atrás dele. Os vi se perderem entre as escadarias labirínticas.

- Aproveite o champanhe... ri sozinho enquanto jogava o resto da bebida fora e deixava a taça em cima da sacada.

Fiquei por um momento vendo o liquido espumante no jardim cruzar o ar e ser deixado cair pela gravidade. Eu queria ir embora daquele lugar, mas Cristine esqueceu de mim completamente. Minha mente estava em outro mundo. Estava com Nortier. Eu não o havia visto o dia inteiro. Eu precisava saber como ele estava. Deixei a sacada e parti em busca de Cristine para avisá-la de que iria embora daquele lugar. Segui por um tapete vermelho, tentando achar seu rastro, por onde havia seguido com seu pai. Caminhei por um corredor perdido dentro daquela imensa mansão até achar uma porta aberta e uma voz familiar lá de dentro. Eu poderia confundir-me com Kate, mas não. Aquela era a voz de Cristine. E estava tensa. Quebradiça. Como se chorasse. Depois, ouvi a voz grave de Richard Madison.

- Você acha que aquele Evan é bom o suficiente? ele gritava. Ele escreve livros estúpidos que ninguém compra. Deveria

se envergonhar e seguir sua irmã. Case-se com Dylan, ele é um bom rapaz. Venha trabalhar para mim. Ainda não é tarde, Cris. Não desperdice sua vida com alguém patético.

- Você não pode mais controlar quem eu sou, pai. A voz dela tremia e muitas vezes eu não entendia o que

dizia. Ela soluçava. Eu tinha vontade de entrar e abraçá-la. - Eu o amo e não me importo com sua opinião. - Eu deveria ter tentado impedi-la de partir e arruinar sua

vida há muitos anos, Cristine. E me arrependo amargamente. Mas, pense, agora podemos consertar tudo. Esse Evan, ele não vai esperar por você.

Esperar por ela? Do que ele estava falando? Por algum motivo, eu não conseguia me mexer. Estava congelado ali, do lado de fora da porta. Eu precisava ouvir o final daquela conversa. Ela me envolvia. Andei, lentamente, em cima do tapete, aproximando-me de onde as vozes vinham. Permaneci escorado na parede.

- O que vai acontecer quando você partir outra vez amanhã?! gritava Richard Madison.

Eu não conseguia acreditar. Estava atônito. Partir? - Você já contou a ele? Porque ele vai arranjar uma

vagabunda qualquer. Agora você tem a chance de fazer diferente. De casar-se com um homem que a quer e vir trabalhar para mim, onde é seu lugar de direito. Ter uma vida decente. Não viver como um andarilho sujo. Olhe para você, minha querida. Dirige um carro velho e veste roupas rasgadas. Nunca foi isso que eu quis.

- Eu já tomei minha decisão respondeu Cristine. Ela parecia mais calma. - E sei qual será a dele. Adeus, pai. Eu não consegui me mover quando a porta abriu e vi

Cristine diante de mim. Eu não conseguia dizer nada, mas entendia agora seu frio comigo. Tudo começava a fazer sentido. Entendia

porque ela havia me pedido perdão na praia. Entendia porque me afastava.

Ela não tinha coragem. Iria embora, assim como fez outra vez. Iria me deixar.

Todos pareciam estar me deixando. Ela ainda tinha destinos a cumprir. Seu maldito destino.

- Evan... eu a ouvi balbuciar enquanto virava as costas. Eu estava com raiva. Não queria vê-la. Eu sentia que iria

desabar ali mesmo. Sentia que iria me ajoelhar diante dela e implorar que ficasse comigo. Que não fosse. Não o fiz, não fiz o que deveria. Segui andando enquanto as lágrimas escorriam de meu rosto. Desci as escadarias enquanto Cristine corria atrás de mim, falando meu nome. Eu estava surdo. Kate a segurou para que não me seguisse. Ela sabia que seria melhor.

Deixei a mansão, sem rumo, seguindo a pé pelo mesmo caminho que percorremos antes. Não sei quanto tempo se passou. Eu estava perturbado. Chamei um táxi quando o vi passar por mim. O vi parar e entrei no banco traseiro. Parti para onde precisava ir. Durante aquele trajeto, fiquei com a cabeça encostada no vidro, pensando em tudo que havia acontecido em tão pouco período de tempo. Uma reviravolta inesperada para mim. Vi pequenas gotículas de uma chuva fina começar a cair. Elas se intensificaram cada vez mais. O caminho desde a Vila Sunshine até o outro lado da cidade, em Darby, demorou um longo tempo. Eu quase não o vi passar, mas sabia que o tempo estava lá. Desci no lugar que queria e deixei o motorista ficar com o troco. Subi a colina correndo enquanto meu terno encharcava e a água escorria pelos meus cabelos agora molhados. Eu comecei a sentir o frio da alma agora em meus ossos.

Abri a vidraça com a chave extra de Nortier e corri em direção às escadas em meio à penumbra. Nortier ainda estava na cama. Tinha uma vela acessa ao seu lado. Aproximei-me dele. Seus olhos se abriram com lentidão e ele tentou sorrir.

- Garoto sua voz saiu cortada pelo cansaço. Ele tentou se levantar. Faltaram as forças. - Como vai? - Molhado. Como se sente hoje? - Leve como uma pena. - Vou preparar uma sopa para você, amigo. Eu estava prestes a deixar o quarto quando sua mão

segurou meu pulso. Olhei-o sem entender a princípio, mas depois vi tudo. Eu conhecia aquele olhar. Hesitei em crer que o via novamente. Não podia ser o olhar do fim.

- Fique comigo ele disse, com esforço. - Está bem. - Garoto, pode me alcançar algo? apontou em direção a

um armário do outro lado do quarto. Para a segunda gaveta. Andei até lá com rapidez, escutando o barulho de meus

sapatos molhados no assoalho. Ao abrir a gaveta, encontrei uma caixa de madeira feita para guardar joias, e levei até Nortier. Ele segurou a caixa em mãos e percorreu as extremidades com os dedos. Colocou-a ao lado do corpo, ignorando-a totalmente.

- Como vai Cristine? Eu sabia que Nortier se preocuparia comigo se eu lhe

contasse a verdade e sua doença iria se agravar. Ele recusou chamar um médico nos dias anteriores. Argumentava que era apenas uma pequena tosse acompanhada de uma gripe qualquer. Em breve, ele já estaria cuidando de suas macieiras outra vez.

- Ela... demorei a responder. Não mentiria para ele, mas fiz. Jamais. Ela está bem.

- Não veio, não é? - Tinha um compromisso. - Parece que todos têm um hoje sorriu.

E eu sorri, desviando o olhar. Nortier conseguia tirar o melhor do pior. Entendi do que ele falava quando o fitei novamente. Seus olhos estavam fixos no teto e uma lágrima escorregadia começava a secar. Sua mão não mais segurava a minha e agora pendia inerte para fora da cama. Eu o toquei lentamente, chamando seu nome, como uma criança. Não adiantou de nada.

Nortier sorriu uma última vez aquela noite, antes de ir embora. Antes de falecer ao meu lado.

VII. Sob a Macieira

As luzes na escuridão, vermelhas e azuis, piscando sem parar. O carro negro aproximando-se na noite, quase invisível. As condolências das pessoas vestidas de branco que passavam por mim, entrando na casa para buscar o que restava de Nortier na terra. E, quando tudo estava terminado, era madrugada. Eu estava só naquela sala que um dia abrigou um bom homem que dormia em frente à lareira e sonhava com o passado. Subi as escadas com hesitação. Encontrei seu quarto agora vazio e a caixa de madeira na cama do mesmo modo que ele a segurou antes de morrer. Aproximei-me e peguei-a em minhas mãos, abrindo para descobrir um envelope. O envelope deveria ser entregue a um advogado. Era o testamento de meu amigo. Junto estava a folha dada por Morgan no natal. Guardei os itens comigo para que não tivesse de voltar aquele lugar tão em breve.

Eu precisava ir embora. Peguei as chaves de Nortier e atravessei a chuva fria,

molhando meus cabelos outra vez. Demorei a abrir e depois fechar todos os cadeados da antiga garagem de Nortier. Na rua, senti o volante do velho Corvette enquanto a água caía no capô. Dei a partida e vi as luzes se acenderem enquanto eu descia a colina. Já

estava na estrada outra vez, vendo a chuva ser varrida pelo para-brisa. Os faróis iluminavam um caminho que eu já sabia traçar. E, nessa iluminação, eu ainda estava preso nas trevas. Não havia mais Cristine. Não havia mais Nortier. Estava tudo perdido.

Lágrimas escorreram de meus olhos enquanto eu dirigia e socava o volante com força na esperança de refazer tudo o que havia acontecido. Eu só queria estar de volta ao lar, mas eu dirigia sem destino quando cheguei à cidade. Dirigia por ruas escuras enquanto aquela chuva lúgubre criava poças de sua água atormentadora. Dirigi automaticamente até um local de faixada rústica, com teto em abóbada e uma torre negra. O sino estava perdido na noite, escondendo-se de mim. As portas de madeira estavam abertas para trás, deixando um pequeno fogo das velas serem vistos lá de fora. Desci do carro e andei.

Entrei naquela igreja com fúria. Eu não sabia como estava ali, eu apenas estava. Estava

passando pelos bancos alinhados e caminhando em direção à luz que brilhava como um vagalume. Via o fogo chamuscar com o vento quando me aproximei. Ajoelhei-me diante da figura de Cristo tentando buscar respostas naquele lugar inútil. Por quê? Era isso que eu perguntava. Esperava que houvesse uma resposta para mim. Algo para iluminar o que começava a se criar dentro de mim outra vez. Nunca viria, eu sempre estive muito certo disso. Nunca viria porque jamais existiu algo. Eu levantei com raiva em meu sangue. Era tudo patético. Virei às costas para a imagem de um Jesus perfeito e encontrei uma silhueta sentada na primeira fileira, de pernas cruzadas, como sempre. O chapéu em seu colo, com o veludo da lapela sendo acariciada pelos longos dedos. Ele me olhava com serenidade.

- Você! gritei com ferocidade enquanto me aproximava de punhos fechados. Ele não tinha medo, eu sabia. Veio aqui para me arruinar ainda mais?

- Jamais, Evan pronunciou meu nome com calma. - Vá embora, eu não preciso de você. Meu dedo estava apontado para o rosto de Morgan

enquanto ele permanecia impassível. Eu estava transbordando de ódio e fúria. Talvez aquela fosse a hora das respostas que eu queria.

- Quem é você? falei à meia voz. O fogo pareceu tremeluzir. - Eu já lhe disse uma vez, Evan. Sou um amigo, talvez um

estranho... - Chega de jogos! Meu grito ecoou pelas paredes de tijolos. Eu perdia o

controle. Não sabia do que seria capaz. - Eu quero a verdade! Quem é você?! - As pessoas nunca estão preparadas para a verdade. Você

está? - Você não existe, Morgan. Eu pesquisei. - E mesmo assim você pode me ver, não é? Morgan estava de pé agora, colocava o chapéu em seus

cabelos grisalhos. Era a primeira vez que eu reparava em seus fios brancos e nas rugas de seu rosto quase perfeito. Ele estava a centímetros de mim.

- E Gilbert, quem é ele? Ele suspirou. Senti seu hálito quente em meu rosto. - Alguém, que como você, precisava de ajuda. Alguém que

havia perdido o caminho da vida. Eu decidi mantê-lo perto de mim. - Você acha que ajuda as pessoas, mas só interfere em suas

vidas. - Muitos podem discordar disso, Evan. - Então é isso que você é? - Um estranho que ajuda as

pessoas?

Me afastei dele. Não conseguiria me manter parado. Meus passos e meu riso nervoso ecoavam pela catedral vazia. Morgan sorriu na penumbra.

- E por que não? - Porque não faz sentido! Pude vê-lo dar de ombros. - Cristine, Nortier. Todos eles tinham um propósito após

conhecer você. Por que eu não tenho? eu o fitava novamente. Minha voz suplicava por respostas que ele não daria. - Você está pecando em ver as coisas, Evan. Você já atingiu

seu propósito. - Eu não o vejo. Qual era?! - Fé. E tudo se silenciou. Eu estava silenciado. Ouvia apenas a

chuva. Brandi em gargalhadas que ecoariam pela eternidade. - Você falhou então falei com estupidez sem conter

minhas palavras. Eu continuo não acreditando nessa baboseira toda criada para iludir as pessoas.

- Pode parecer isso para você, mas é bem mais forte para os outros. É um mecanismo de sobrevivência. As pessoas precisam de algo para crer. Sonhos para buscar. E você apenas acha que não tem fé. Saiba, Evan, que a fé não precisa ser em uma divindade. Pode ser em algo ou alguma coisa. A fé pode vir de muitos meios e mudar toda a sua vida, deixá-la de cabeça para baixo.

- E no que eu tenho fé...? Minha voz saiu rouca enquanto eu olhava para o piso de

ladrilhos abaixo de mim. Meu interior sentia que essa era uma pergunta para mim mesmo.

- Você progrediu muito em poucos meses. De um homem que perdeu suas esperanças em tudo para um homem que conseguiu novamente achar a paixão de uma mulher e o amor de uma amizade.

E então questiona sua própria fé. Ainda não conseguiu perceber onde a descobriu?

Balancei a cabeça negativamente. - Mas agora eles se foram. - Nortier apenas se foi fisicamente, mas ele ainda vive. - Cristine irá embora amanhã. - Amores podem ser passageiros se você deixar que

escapem. Morgan andava em direção à porta dupla da catedral com

calma. Antes de encontrar a noite, ele virou-se. Seus olhos me fitaram como nunca antes. Com cumplicidade.

- Tenho um último favor a lhe pedir, Evan. Eu o olhei. E esperei. - Cuide de Nathan, ele é um bom garoto. Seu pé direito tocou a calçada e eu o vi sumir na escuridão.

A porta se fechou quando ele a largou. - Aonde você vai? perguntei para o nada. Não houve respostas. Olhei para o teto em abóbada, vendo as pinturas estranhas

que ali havia. Minha mente vagueou por segundos que pareceram eternos. Olhei outra vez para a porta e corri até lá. Ainda existiam coisas que eu precisava saber. Descobri, assim que o ar frio e a chuva me tocaram, que eu teria que as descobrir sozinhas.

Não havia ninguém lá. A água escorreu por minha camisa e eu percebi que não

tinha outra escolha. Tinha que ir para casa. Voltei para o carro e dirigi, cruzando ruas que muito andei. Estacionei em frente à casa de meu pai. Com meu trabalho, eu havia consertado tudo o que antes estava quebrado. A estrada de tijolos não estava mais em ruínas. A porta, agora se abria com normalidade. E eu estava lá dentro outra vez, olhando para as chamas. Fui ao meu antigo quarto trocar de roupas para voltar até a sala e cair na poltrona, vendo um

antigo hábito se repetir. Observei o fogo ardente. Eu não conseguia compreender nada do que tinha acontecido. Um barulho repetido chamou minha atenção do outro lado da porta. Não era o barulho da chuva. Era uma batida. Andei até lá de pés descalços e puxei a maçaneta.

Encontrei Cristine. Seus cabelos estavam molhados e os pingos de água

escorriam em seu rosto junto com as lágrimas. O vestido longo estava grudado em seu corpo. Ela tinha os pés descalços como eu, seus sapatos em uma das mãos. Na outra, havia um envelope erguido em minha direção. Para Evan, eu li. Tomei o envelope e ela virou as costas para mim, seguindo a estrada de tijolos outra vez. Ela iria embora. Eu precisava saber por que estava ali. Segurei seu braço e a puxei para dentro. Cristine soluçava. Ela sempre o fazia quando chorava.

- Perdoe-me, Evan era difícil compreender suas palavras. Perdoe-me por não ter tido a coragem de contar.

Eu não sabia o que fazer. Então ouvi novamente as palavras de Morgan sobre amor passageiro em minha mente. Era hora de fazer diferente, mudar as coisas. Eu não sabia se poderia impedi-la de ir embora, mas eu precisava tentar. Estávamos próximos um do outro. Eu sentia sua respiração. Decidi beijá-la com paixão. Seu corpo gelado colou ao meu. Minhas mãos a percorreram enquanto ela retribuía meu beijo e tirava minhas roupas em frente à lareira.

Passamos uma noite a mais. O tempo da madrugada passou enquanto ficamos juntos,

enrolados em um cobertor e deitados no carpete. Sorrimos um para o outro. Eu precisava sorrir.

- Como descobriu meu endereço? - Clarice respondeu-me Cristine com a cabeça deitada

em meu braço. Nortier está bem?

Desviei o olhar. Ela descobriu naquele exato instante. Leu em minha dor.

- O funeral será pela manhã falei. Cristine me abraçou. - Você ainda tem que ir embora? aquela era a pergunta

que eu mais temia. - Perdoe-me outra vez, Evan ela estava prestes a chorar

novamente. Mas é o destino que tenho que cumprir. É uma promessa que fiz há muito tempo. Meu avião irá decolar ao meio dia. Estou indo embora.

- Eu entendo. Na verdade, não entendia. Adormecemos juntos até que a manhã chegasse. Vesti-me

rápido enquanto Cristine dormia. Ela acordou com o cabelo emaranhado e os olhos inchados e borrados da maquiagem, de lágrimas, mas linda. Colocou seu vestido longo que secara durante a noite. Deixamos a casa em silêncio e fomos até o cemitério Krow no mesmo silêncio. O dia estava claro e o único rastro existente da chuva era a água nas calçadas.

Não ousávamos olhar um para o outro. Sabíamos que seria doloroso demais.

Havia poucas pessoas no cemitério. Poucos amigos da igreja e antigos amigos ainda vivos de Annabelle. Todos formavam um círculo em volta do caixão. Ficamos embaixo de uma grande sombra que se estendia graças à uma macieira. Uma macieira que Nortier plantou quando sua esposa faleceu. O padre rezou a missa. Eu permaneci com o olhar fixo no chão, imerso em pensamentos. A morte outra vez. Senti Cristine segurar minha mão. Antes do caixão ser enterrado ao lado do de Annabelle, eu depositei aquela folha dada por Morgan no natal. Para mim, não era nada mais do que simbólico, o que importava era que eu sabia que meu amigo teria ficado feliz.

Nortier foi enterrado no dia 28 de abril de 2002, embaixo de uma de suas muitas macieiras, e ao lado da eterna esposa, quem ele acreditou que veria novamente.

Antes de deixar aquele cemitério que me trazia tantas lembranças amargas da vida, eu vi um vulto negro no portão. Era apenas uma silhueta distante com um grande casaco negro cobrindo seu corpo e um chapéu. Eu sorri. No fundo eu sabia quem era. Eu e Cristine voltamos ao seu apartamento para que ela trocasse de roupa e pegasse suas últimas malas, inclusive levasse Flush até o aeroporto para uma despedida. Eu não sabia o destino do cão, mas não perguntei. Talvez o levasse com ela. O jipe ficaria com Kate até algum dia. Dirigimos no Corvette de Nortier e cruzamos a cidade. Eu ouvi o barulho dos aviões passando por cima de minha cabeça quando estacionei. Os vi decolarem diante de meus olhos. Quando criança, eu ficaria feliz e entusiasmado de vê-los no ar, tão distantes. Agora eu estava triste porque eles levariam Cristine embora. Nós descemos do carro com hesitação e Cristine fitou-me. Nossos olhos se encontraram. Ela largou as malas no chão e correu ao meu encontro. Nos beijamos longamente enquanto a dor palpitava em nossos corações. Suas mãos estavam em meu rosto quando nos separamos.

- Eu o amo, Evan Doyle ela beijava meus lábios novamente. Tenho que lhe pedir algo.

- Qualquer coisa falei a verdade. Segurei suas mãos, beijando-as. - Cuide dele para mim. Ela olhou para Flush. Ele estava ao nosso lado. - Até eu voltar. Estava tudo escrito na carta, mas acho que

agora não precisamos mais. - Acho que não.

Um riso nervoso escapou de minha garganta. Eu sentia um nó se formar. Estava prestes a desabar. Kate esperava do outro lado da rua com lágrimas nos olhos.

Algo mais? - Sim, tem... O olhar dela desviou. Uma lágrima escorreu em sua face. - Me espere. Não consegui entender. Eu a olhava. - Eu voltarei, Evan. Em exatos três anos, eu estarei parada

aqui, nesse mesmo horário. Apenas me espere. - Scotty... balbuciei. - Tudo bem, eu entenderei se não estiver aqui. Entenderei

se achar alguém que mereça você mais do que eu mereci. Mas eu peço mais uma chance de dar certo, e para valer. Se estiver aqui, eu saberei que...

- Foi destino completei. Ela sorriu abobalhada. - Sim. E nunca mais deixarei você. Nunca mais sairei do

seu lado. - Eu estarei aqui. Eu prometo. Lentamente, Cristine se afastou de mim. Ela carregava suas

malas e nossos corações quebrados. Olhou-me uma última vez antes de seguir junto com Kate pelo portão principal.

- Até logo, Evan Doyle pude ouvi-la dizer antes de sumir em meio às pessoas.

Eu entrei no Corvette e Flush pulou no banco do carona quando o chamei. Passei a mão por sua cabeça peluda. Liguei o carro e parti pela estrada com uma única coisa em mente: ela havia dito até logo.

Epilogo

12 anos depois

Todas as memórias passam agora diante de meus olhos enquanto caminho na beira da praia, sentindo a água salgada tocar meus calcanhares.

À minha frente, Cristine anda também descalça, sem me olhar. Os pensamentos perdidos no oceano e no velho Flush ao seu lado. Um casal de crianças corre ao nosso lado. O menino, Jonathan, de seis anos. Dana, de quatro anos. Meus filhos. Tento passar para eles tudo o que aprendi durante esses anos. Tudo o que meu amigo Nortier me ensinou. Tudo o que o avô deles me ensinou. Lá, na casa da colina, Nathan escreve. Ele se tornou um grande amigo conforme os anos se esvaíram e agora tenta seguir meus passos. Ele é melhor do que eu.

Depois daquele dia em que Cristine deixou a mim e Flush

no aeroporto, eu não sabia o que seria de mim. As coisas começaram a se acertar com normalidade. Levei o testamento de Nortier para um advogado. Sem nenhum herdeiro e por sua vontade, Nortier deixou para mim seu carro e a casa na colina. Descobri que ele tinha acumulado dinheiro em uma conta bancária durante seus anos de solidão. Todo o dinheiro, conforme seu pedido, foi doado para a igreja. As obras de arte de Annabelle deveriam ser entregues para a

sede dos Artesões, fundada por ela há anos. O dinheiro dos quadros vendidos deveria ser entregue a instituições de caridade. A casa na colina seria minha com a condição de que as macieiras continuassem a ser devidamente cuidadas.

Sem dúvida, eu o fiz. Eu passei a morar naquele sobrado ao lado de Flush, que

esbanjava felicidade com um lugar aberto. Peguei todas as coisas mais importantes de minha antiga casa os livros, retratos, itens mais pessoais e deixei aquele lugar. Na casa da colina, eu terminei o livro que escrevia e comecei a procurar por uma boa editora. O livro foi publicado por uma editora chamada Sagittarius e virou um best-seller, tornando-me reconhecido em pouco tempo.

Eu continuei no jornal, mas apenas como colunista. Disse a Don que eu queria continuar escrevendo porque gostava. Ele aceitou.

Nathan e eu continuamos amigos. Ele precisava de mim. Eu o apresentei aos seus livros favoritos e ele começou a escrever poesias. O tempo se foi e continuamos próximos.

Recebi muitos postais e cartas de Cristine nos anos que se sucederam, através de Kate. Continuamos em contato depois que ela me convidou para seu casamento. Cristine dizia, em suas cartas, que todos conheciam meu livro e havia adorado a ideia de um jornalista seduzido por uma assassina. Eu estava ficando famoso e ela desacreditada quando dizia que conhecia Evan Doyle. O livro foi traduzido em mais de 20 idiomas.

Aqueles três anos se recusaram a passar, mas felizmente, o fizeram. E, quando passaram, eu estava lá, onde prometi. Meu coração palpitou ao vê-la outra vez. Ela estava diferente, assim como está diferente agora que me lembro disso. Neste exato momento, eu a vejo andando na praia, os cabelos curtos na altura do ombro. Algumas rugas aparecendo em sua pele. Eu também acho rugas na

minha. Não me importo com nada disso. O que importa é que continuo a amá-la.

Nós casamos no final de 2005, assim que ela voltou. Foi na beira da praia, próximo da colina. A festa foi na volta de uma fogueira e com a luz da lua. Todos adoraram. Eu vi Morgan parado na colina, sempre com seu terno e chapéu. Tocou brevemente na lapela e depois foi embora. Foi a última vez em minha vida que eu o vi.

Cristine deu à luz a um menino poucos meses depois. Quando nos casamos, ela estava grávida. Dois anos seguintes e ela engravidou outra vez, de nossa menina. A felicidade estava em minha vida novamente. Não privei Cristine de suas viagens, afinal, isso era tudo para ela. É o ar que sempre respirou. Mas não mais a deixei ir sozinha. Largamos tudo ao menos uma vez por ano e viajamos por uma semana, em nossas férias. Todos juntos. Porque somos uma família.

Eu escrevi mais três romances em todos esses anos e todos publicados pela mesma editora e fizeram tanto sucesso quanto os outros. Minha vida completou-se. E apenas então eu entendi o que Morgan queria me dizer anos atrás, naquela noite chuvosa.

Eu não precisei idealizar seres para ter fé. Eu a achei nas pequenas coisas que me agarrei. Achei nas pessoas que conheci. Achei nas memórias de meu pai. Aprendi muitas coisas com todas essas pessoas. Aprendi a lidar com a morte de um jeito diferente. Aprendi que ninguém jamais será igual. Aprendi que alguns são sofridos. Aprendi que alguns são aventureiros, que uns são misteriosos e que outros criam universos. Aprendi que alguns são jardineiros.

E aprendi a crer em mim mesmo.

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