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LEITURA E PRODUÇÃO DE TEXTO PARA CRIANÇAS E ADO- LESCENTES: RELATO DE EXPERIÊNCIA NO ÂMBITO DE UM PRO- JETO SOCIAL DE EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA LEMOS, Gleice Amélia Gomes – UCB [email protected] Eixo Temático: Didática: Teorias, Metodologias e Práticas Agência Financiadora: não contou com financiamento Resumo Este trabalho tem como objetivo principal compartilhar as experiências vivenciadas nas ativi- dades de leitura e produção de texto em um projeto social filantrópico de uma universidade confessional – Universidade Católica de Brasília (UCB) que atende crianças de 6 a 14 anos que vivem em situação de risco e vulnerabilidade social decorrente de privação ou fragiliza- ção de vínculos afetivos, bem como a seus familiares, residentes nas regiões administrativas do Distrito Federal. Entendendo que essas crianças e adolescentes possuem diferentes condi- ções de vida e de escolarização e estão em fase da vida em que as mudanças corporais afetam o comportamento no ambiente familiar, escolar e que, dessa forma, os conteúdos e como estes são ministrados são determinantes para que essas crianças/adolescentes se beneficiem e per- maneçam no projeto. Para tanto, os profissionais que atuam no projeto, desenvolvem durante os 3 anos em que o projeto existe, abordagens de temas de forma que todos os atendidos se apropriem da proposta, sem exclusão. Através do recurso de imagens que são entendidas co- mo texto e vice-e-versa, a aproximação, a confiança e apropriação dos conhecimentos propos- tos estão sendo bem sucedidos. Apoiando-se, também, em uma bibliografia que defende a apropriação do uso da língua como forma de se significar como sujeito que tem história, per- tence a uma sociedade que tem cultura, que a equipe se organiza, planeja e executa as ativida- des do projeto, em particular nas aulas de leitura e produção de texto, as quais serão relatadas neste texto, procurando ter o cuidado de entender as particularidades, explorá-las, transformá- las e perceber esses efeitos de transformação através da produção textual. Palavras-chave: Produção de Texto. Projeto Social. Leitura. Interpretação. Introdução Este texto tem como objetivo relatar como foi realizada a proposta de leitura e produ- ção de texto em um projeto social filantrópico – Projeto Ciranda – da Universidade Católica de Brasília (UCB) nesses três anos de existência do projeto. Com o propósito de compartilhar uma experiência que foge ao tradicional no ensino de língua portuguesa em escolas regulares. Por ser um projeto social, este tem particularidades que são determinantes para a escolha de

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LEITURA E PRODUÇÃO DE TEXTO PARA CRIANÇAS E ADO-

LESCENTES: RELATO DE EXPERIÊNCIA NO ÂMBITO DE UM PR O-

JETO SOCIAL DE EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA

LEMOS, Gleice Amélia Gomes – UCB

[email protected]

Eixo Temático: Didática: Teorias, Metodologias e Práticas Agência Financiadora: não contou com financiamento

Resumo Este trabalho tem como objetivo principal compartilhar as experiências vivenciadas nas ativi-dades de leitura e produção de texto em um projeto social filantrópico de uma universidade confessional – Universidade Católica de Brasília (UCB) que atende crianças de 6 a 14 anos que vivem em situação de risco e vulnerabilidade social decorrente de privação ou fragiliza-ção de vínculos afetivos, bem como a seus familiares, residentes nas regiões administrativas do Distrito Federal. Entendendo que essas crianças e adolescentes possuem diferentes condi-ções de vida e de escolarização e estão em fase da vida em que as mudanças corporais afetam o comportamento no ambiente familiar, escolar e que, dessa forma, os conteúdos e como estes são ministrados são determinantes para que essas crianças/adolescentes se beneficiem e per-maneçam no projeto. Para tanto, os profissionais que atuam no projeto, desenvolvem durante os 3 anos em que o projeto existe, abordagens de temas de forma que todos os atendidos se apropriem da proposta, sem exclusão. Através do recurso de imagens que são entendidas co-mo texto e vice-e-versa, a aproximação, a confiança e apropriação dos conhecimentos propos-tos estão sendo bem sucedidos. Apoiando-se, também, em uma bibliografia que defende a apropriação do uso da língua como forma de se significar como sujeito que tem história, per-tence a uma sociedade que tem cultura, que a equipe se organiza, planeja e executa as ativida-des do projeto, em particular nas aulas de leitura e produção de texto, as quais serão relatadas neste texto, procurando ter o cuidado de entender as particularidades, explorá-las, transformá-las e perceber esses efeitos de transformação através da produção textual. Palavras-chave: Produção de Texto. Projeto Social. Leitura. Interpretação.

Introdução

Este texto tem como objetivo relatar como foi realizada a proposta de leitura e produ-

ção de texto em um projeto social filantrópico – Projeto Ciranda – da Universidade Católica

de Brasília (UCB) nesses três anos de existência do projeto. Com o propósito de compartilhar

uma experiência que foge ao tradicional no ensino de língua portuguesa em escolas regulares.

Por ser um projeto social, este tem particularidades que são determinantes para a escolha de

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conteúdos e como ministrá-los. Pelo fato de entender que as crianças e adolescente vivem em

diferentes condições de vida e que, muitas vezes, essas condições sabotam o desenvolvimento

cognitivo, e, principalmente, interferem no como se significarem como sujeitos, que a equipe

do Projeto propôs abordagens didáticas com maior cuidado e com a esperança de alcançar a

todos.

O relato do trabalho em produção de textos é interessante para se refletir sobre as con-

dições de produção em que cada sujeito se apropria de conhecimentos, entendendo então que

a apropriação dos conhecimentos propostos não se dará da mesma forma. Ou melhor, uma

criança que vive em situação de violência se apropriará de conhecimentos que envolvem o

tema de forma diferente da que nunca teve contato com violência. Quando se trabalha temas

como este com crianças e adolescentes que convivem com essa realidade, logo os efeitos são

outros. Porque a experiência, muitas vezes dificulta o como entender, argumentar, discutir e

até mesmo, apresentar soluções. O que é invocado é a revolta, as lágrimas, a violência.

Ter o cuidado em explorar através da produção de texto, utilizando recursos como a

imagem, pode-se alcançar bons resultados, isso depende do professor conhecer, saber como

abordar, para interferir e modificar.

O Projeto Ciranda

O Projeto Ciranda da Universidade Católica de Brasília – UCB é um projeto filantró-

pico que oferece proteção social básica e serviços de convivência educacional e cultural para

crianças e adolescentes de 6 a 14 anos que vivem em situações de vulnerabilidade decorrente

de pobreza, privação ou fragilização de vínculos afetivos, bem como a seus familiares, resi-

dentes nas regiões administrativas próximas ao Campus I da Universidade Católica de Brasí-

lia – UCB, por meio de atividades de acompanhamento pedagógico e psicossocial, inclusão

digital, iniciação musical, psicomotricidade, acompanhamento nutricional e educação em saú-

de.

As crianças e adolescentes atendidas são geralmente, crianças de classe baixa, de mães

solteiras; ou que vivem em abrigos; orfanatos; assentamentos; até nas ruas; outras portadoras

de HIV, além de casos particulares de deficiências mentais.

O Projeto foi fundado em dezembro de 2008. Em 2009 atendeu cerca de mil crianças,

nos anos de 2010 e 2011 estão sendo atendidas 600, em cada ano. As turmas funcionam no

campus da própria Universidade. Os atendimentos são em turnos contrários aos da escola

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regular, uma vez que é necessário como pré-requisito estar matriculado em escola pública. As

crianças vão a Universidade dois dias na semana, e fazem duas modalidades por encontro

(acompanhamento pedagógico, psicomotricidade, inclusão digital e iniciação musical), pas-

sando por todas durante a semana.

As atividades de acompanhamento pedagógico, parte que nos interessa nesse relato,

são realizadas de forma transdisciplinar e lúdica, buscando sempre a formação dessas crian-

ças/adolescentes de maneira integral, na intenção de despertar cidadãos críticos e transforma-

dores da realidade. Na proposta de leitura e produção texto, além de dos objetivos de domínio

da norma culta da língua e suas funcionalidades, a disciplina é ponto de partida para aproxi-

mação e conhecer as crianças/adolescentes, entender suas particularidades, dificuldades e au-

xiliá-lo no que for possível no ambiente educacional.

Produção de Texto no Projeto Ciranda

A produção de texto como conhecemos é um conteúdo fundamental na formação de

sujeitos pensantes. Para se formar bons redatores de textos é necessário formar bons leitores.

Porque quando se fala em produção textual subtende-se que o bom escritor é o bom leitor,

pois a escrita e a leitura se completam. Assim afirma Conceição (2005) em seu texto intitula-

do “A eficácia da Leitura, Percepção e da Intertextualidade na produção textual”, quando diz

que a escrita é inseparável da leitura, pois a produção pressupõe a recepção e compreensão e

análise da produção.

Quando pensamos em leitura não estacionamos apenas no simples ato de observar o

texto como um produto acabado, pois ler é mais do que decodificar palavras. Ler é entender,

compreender, questionar, criticar, além da conexão com outras ideias para produção de senti-

do, ou seja, ler é a interação da leitura de mundo com a leitura da palavra. A experiência de

mundo é que faz a ponte entre o leitor e o mundo dos escritos e o faz significar-se como sujei-

to de sua própria leitura (FREIRE, 2006). É importante salientar que o leitor, a partir dessa

interação, deixa de ser influenciado para encontrar a própria significação.

Outro aspecto importante são as condições de produção do texto, o contexto histórico

em que é produzido e mais importante, as ideologias de quem o produz e quem o lê. Fazem

parte das condições de produção do discurso os interlocutores, a situação imediata (aqui-

agora), o contexto histórico e social do sujeito. Ou melhor, que as condições de produção “é o

contexto imediato. E se as consideramos em sentido amplo, as condições de produção inclu-

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em o contexto sócio-histórica, ideológico.”(ORLANDI, 1999, p.30) Além das condições de

produção a memória discursiva também faz parte da produção do discurso, no nosso caso do

texto. A memória refere-se a aquilo que é falado antes, em outro lugar independentemente.

Ou melhor, “é o que chamamos memória discursiva: o saber discursivo que torna possível

todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, ou o já-dito que está na base do dizí-

vel, sustentando cada tomada da palavra” (ORLANDI, 1999, p.31).

Quando pensamos na memória discursiva na produção de texto, em especial com as

crianças/adolescentes do Projeto Ciranda, nós pensamos nas atividades já com a ideia do pré-

construído por eles daquele tema. Para se trabalhar a produção de texto, primeiramente, deve-

se fazer uma pesquisa de campo do público que será o alvo do trabalho. Pois não se pode tra-

balhar da mesma forma que se trabalha com aqueles que não vivem em situação de risco

constante, até porque cada um tem suas próprias história e experiência de mundo. Dessa for-

ma é necessário historicizar o sujeito.

Através dessa perspectiva, o trabalho de leitura e produção de texto é realizado com

cuidado principalmente em abordagens de temas que podem despertar até a fúria dessas crian-

ças e adolescentes, mas que não pode deixar de ser discutido e interagido, uma vez que a pro-

posta do Projeto é a inclusão social e a formação cidadã.

Para auxiliar nesse trabalho e produzir reflexões, buscaram-se algumas concepções

sobre o conteúdo – leitura e produção de texto. A concepção de leitura, numa perspectiva inte-

racionista, possui três focos: o foco no autor, no texto e na interação autor-texto-leitor. O foco

no autor a leitura é direcionada apenas à interpretação dada pelo o autor, não cabendo ao leitor

colocar outra ideia sobre a já pronta. Já no caso do foco no texto a leitura funciona apenas

como decodificação do código, ou melhor, “o texto é visto como simples produto da codifica-

ção de um emissor a ser decodificado pelo leitor/ouvinte, bastando a este, para tanto, o conhe-

cimento do código utilizado”. (KOCH e ELIAS, 2008, p.10)

Já o foco na interação autor-texto-leitor, os leitores são vistos como sujeitos ativos na

leitura e construção de sentido, pois o leitor dialoga com o texto, colocando suas experiências

e os seus conhecimentos para construção do sentido. Nessa perspectiva o foco no autor-texto-

leitor fundamenta-se “em uma concepção sociocognitivo-intereacional de língua que privile-

gia os sujeitos e seus conhecimentos em processo de interação” (KOCH e ELIAS, 2008, p.

12).

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Foi na concepção interacionista que começou o trabalho de leitura e produção textual

com as crianças e adolescentes do Projeto Ciranda. Partindo da ideia de que ao interpretar um

texto e para poder se produzir um texto, o indivíduo interage através do seu conhecimento de

mundo, suas experiências, além da contribuição do próprio texto para que construa os senti-

dos e a partir daí produza novos textos críticos que os auxilie no seu desenvolvimento intelec-

tual. Além dessas interações, existem ainda as condições de produção que são determinantes

de como o texto e a produção do texto terá efeitos no como se significar como pertencente a

uma cultura - constituição de sujeito.

O trabalho feito nas atividades de acompanhamento pedagógico na parte de leitura e

produção textual foi escolhido nesse relato, pelo fato de ter uma heterogeneidade nas caracte-

rísticas socioculturais das crianças/adolescentes, pois cada criança e adolescente tem uma

experiência de vida diferente da outra. Partindo dessa perspectiva de que se lida com crian-

ças/adolescentes que moram em invasão, pedem no sinal, ou que é portador de uma doença

grave, que possui uma deficiência física ou mental, que vive em orfanato, que vive na rua, que

tem família, mas sofre com ela, ou que apenas necessita de carinho, enfim, crianças com dife-

rentes histórias e imaginários que necessitam de atendimentos diferenciados e, dessa forma,

sendo necessário criar atividades levando todas essas particularidades não só como ponto de

partida para alcançar esse público, mas sempre em constante diálogo.

Outra particularidade que é enfrentada no projeto é o nível de conhecimento de cada

atendido, porque independente da idade, alguns ainda não foram alfabetizados, enquanto que

outros estão em nível bem avançado para a idade. Como as turmas são divididas por idades,

na mesma sala pode ter crianças/adolescentes alfabetizadas e crianças/adolescentes que não

conhecem nenhuma letra. Para se trabalhar leitura, interpretação e produção de texto foi usado

com frequência o recurso das imagens, que nos auxiliou para conduzir o nosso trabalho.

Metodologia das aulas de leitura e produção de texto

Nas primeiras aulas, trabalhamos as normas de conduta do projeto, normas estas que

foram sugeridas pelos próprios alunos. Passamos slides com cenas de situações que eles julga-

ram ser ruins para eles ou boas. Nas imagens apareciam pessoas brigando de diferentes for-

mas, outras se xingando, pessoas abraçadas, outras sorrindo, outras chorando, ou realizando

alguma ação a serem julgadas positivas ou negativas, várias imagens que traziam a ideia do

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que trazia satisfação ou sofrimento. Fotos de situações cotidianas também foram utilizadas e

bem discutidas.

A cada imagem que foi projetada, depois de discussões do que representava, aparecia

uma frase do que se referia a cena. E a partir das imagens, as crianças/adolescentes foram

numerando o que “Vale a pena” e o que “Não vale a pena” no Projeto Ciranda. Trabalhar as

normas do projeto dessa forma foi interessante, pois as crianças foram colocando suas experi-

ências à medida que iam vendo as cenas e a partir desse diálogo e troca de experiências elas

chegaram à conclusão de que para que o ambiente do Proejto fosse agradável a todos, era ne-

cessário não apenas obedecer a regras, mas entender que quando criamos acordos todos saem

ganhando. E foi confeccionado um acordo em que as cláusulas escolhidas foram por eles sele-

cionadas.

As imagens foram utilizadas nessas aulas como um texto. Por ter alunos que liam e

que não liam nas turmas, as imagens ocuparam o lugar de um texto que descrevia o que pre-

tendíamos com aquele trabalho. As crianças/adolescentes leram as imagens, discutiram, cria-

ram “normas” que julgaram justas a partir do que entendiam como “valer a pena” e não “valer

a pena” e com o que leram nas imagens.

A partir dessa experiência podemos pensar no que diz Walty, Fonseca e Cury (2006,

p.90) quando afirmam que:

Imagens, sons, gestos, cores, expressões corporais tornam-se signos abertos à deco-dificação. Nesse sentido, reitere-se, a recepção desses bens simbólicos pode ser vista como leitura, na medida em que todo recorte na rede de significações é considerado um texto.

Quando as crianças/adolescentes se depararam com as imagens, essas trouxeram suas

experiências, juntou com as expectativas, leram e interpretaram as imagens. Como a proposta

inicial era de que as próprias crianças sugerissem as normas, foi a partir dessa leitura que elas

produziram o material proposto, ou seja, produziram o texto a partir da leitura e interpretação

das imagens apresentadas a elas.

Outro tema trabalhado com as crianças foi a “VIOLÊNCIA”. Foi desenvolvido um

trabalho sobre violência com as crianças na aula de produção de texto e em outras atividades

do Projeto, como nas aulas de inclusão digital, nas de psicomotricidade, enfim o tema foi

abordado em diversas perspectivas. A proposta da aula de leitura e produção de texto foi apre-

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sentar através de imagens vários tipos de violência e abrir um debate para comentar as ima-

gens e as frases abaixo delas. E, também, para que as crianças não se restringissem a apenas

violência física. Usamos imagens que mostravam cenas de alguns tipos de violência, e logo

após o comentário da imagem tinha uma frase abaixo. O tema de violência foi escolhido, pois

muitas das crianças que são atendidas no projeto convivem com vários tipos de violência e

muitas delas nem se quer tem noção de que são vítimas destas.

O tema foi explorado de três maneiras: primeiro jogamos as imagens e apresentamos

as ideias; depois as crianças/adolescentes acrescentavam com exemplos e depoimentos de

suas experiências; e por fim, juntou-se o que as crianças/adolescentes tinham de conhecimen-

to com as informações e exemplos do tema. Para que a partir daí fosse possível produzir um

texto.

Ao trabalhar dessa forma pudemos constatar, mais uma vez, o que Walty, Fonseca e

Cury (2006) defendem, quando dizem que a imagem é texto e que um texto também é ima-

gem. Pois quando observamos uma foto, pintura ou desenho, deixamos o nosso imaginário, as

nossas ideologias agirem e lemos aquela imagem, a interpretamos e a entendemos, mas o nos-

so entendimento irá depender do nosso conhecimento de mundo, das nossas experiências de

vida, dessa forma, a interpretação se dará de diferentes formas e isso significa que não existe

uma única interpretação das coisas, mas várias.

Como já foi mencionado anteriormente, as crianças e adolescentes do projeto vivem

em situação de risco e com uma realidade social muito difícil e para trabalhar com elas temos

que ter muito cuidado, pois muitos têm experiências com violências traumáticas. Pelo fato de

ter que lidar com adolescentes que vivem em situação de risco e, além disso, ainda estão em

uma fase da vida em que as transformações do corpo e o despertar para a vida adulta estão em

acontecimento, logo estes adolescentes têm mais dificuldades em se identificar com as pro-

postas do Projeto. Os caminhos mais comuns nesses casos é a sublimação das mudanças atra-

vés da violência, drogas, entre outros.

Para se trabalhar com adolescente é imprescindível entender suas particularidades,

porque se não houver conhecimentos sobre essa fase tão confusa não se consegue auxiliar

esses jovens a superar a adolescência sem consequências para a vida adulta. Porque uma das

consequências do desamparo aos adolescentes e jovens em geral é a violência. Dessa forma,

se cria uma percepção de que o adolescente violento deve ser contido, reprimido e, até segre-

gado da sociedade, dessa forma, omitindo características que é própria do jove: de confusão,

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de se sentir injustiçado, de rebeldia. Características estas que, para Vianna (1997, p.13), no

livro Galeras Cariocas: territórios de conflitos e encontros culturais são definidas como:

um estado de rebeldia, revolta, transitoriedade, turbulência, agitação tensão, mal-estar, possibilidade de ruptura, crise psicológica, conflito (em outros textos encon-tramos as palavras instabilidade, ambiguidade, liminariedade, flexibilidade, inquie-tude). Tudo isso pode ser resumido em um único conceito: mudança.

Dessa forma, os monitores do projeto também tem esse cuidado para com esses ado-

lescentes que, mais que outros, estão em sofrimento, desamparados e necessitam de adultos

que os façam entender que a “fase da adolescência” vai passar. E utilizar de temas que desper-

tam os sentimentos mesmo que sejam negativos são interessantes para aprender a controlá-los

e sublimá-los para outros caminhos, como, por exemplo, expor a raiva, o ódio, o sentimento

de injustiça através de uma música, uma peça de teatro, um simples texto. Mas a intenção é

que esses jovens entendam que a violência não é o único meio de dar conta desses sofrimen-

tos.

Voltando ao relato do trabalho com leitura e produção de textos, o procedimento da

aula de tema gerador VIOLÊNCIA, foi de os alunos observarem as imagens, descrever o que

viam e dizer que tipo de violência eles entendiam. Muitos se surpreenderam por ter algumas

imagens que até então não achavam que era considerada como violência, conforme ilustramos

neste documento (figura 1):

Figura 1 – Imagem utilizada em aula sobre violência (violência verbal)

Fonte: http://26domelhor.blogspot.com/2010_03_01_archive.html

A charge ilustrada (figura1) foi uma das apresentadas e que surtiram efeito, pelo fato

de as crianças/adolescentes até então não considerarem gritos e berros como um tipo de vio-

lência. Algumas crianças são vítimas de tal violência com tanta frequência que nem considera

a violência verbal como um tipo de violência. Esse trabalho foi interessante, pelo fato de

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mesmo com o conhecimento que as crianças/adolescentes já tinham de violência, à medida

que foram apresentadas as imagens, elas foram percebendo que esse termo – violência – é

bem mais abrangente do que imaginavam ser. E utilizar aspectos que são considerados nor-

mais para estas crianças/adolescentes foram transformadas em indignação, revolta e reflexão

sobre suas experiências de vida. Entendemos que a indignação foi um sentimento natural,

predominantemente nos adolescentes.

Quando foi trabalhado esse tema abriu-se discussão para cada uma das imagens de ti-

pos de violência (violência doméstica, verbal, na escola, no esporte, no trânsito, contra a cri-

ança, violência através de guerra, etc.), e as crianças puderam expor sobre suas experiências

com as violências apresentadas. Muitas até se emocionaram ao falar dessas experiências. A

mais frequente relatada foi a violência doméstica. Muitas crianças descreveram e falaram a

respeito dessa violência no local onde viviam.

Após debates, discussões e depoimentos sobre as violências apresentadas, foi solicita-

do que escrevessem um texto sobre duas ou mais dessas violências – a que eles sentissem que

teriam mais facilidade em escrever. Falassem sobre a violência e o que elas achavam que seria

necessário para que não ocorressem mais essas violências. Muitas escreveram sua própria

experiência de vida nos textos. Outras relataram alguns tipos de violência que nem foi abor-

dado na aula como, por exemplo, a violência sexual. E os menos habilitados na escrita fize-

ram desenhos que relatavam experiências de violência, ou escreveram palavras significativas

sobre o tema.

Quando foram analisados os textos e vimos que apareceram certos tipos de violência

que não foram abordados nas aulas, pudemos perceber que, através do texto escrito nós pode-

ríamos nos aproximar mais das crianças, conhecê-las melhor e até, mesmo descobrir o que se

passa na vida e na cabeça delas, além de tentar ajudá-las através de outros serviços oferecidos

pelo projeto a darem conta daquilo que os incomodavam. Este tema abordado foi muito rico,

pois começamos a conhecer as crianças as quais estávamos lidando e aprendemos a como

abordá-las melhor para que conseguissem tirar algo de importante para suas vidas e se signifi-

carem na sociedade. Entender como esses temas significam para eles e para que oferecêsse-

mos o que eles não conheciam sobre aquilo. E dessa forma, proporcionar uma transformação

daquela realidade.

É importante ressaltar que cada criança recebeu e abordou o tema em seus textos de

diferentes maneiras. Alguns simplesmente falaram esporadicamente sobre o tipo de violência

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escolhido. Outras narraram brigas, ou algum episódio para falar de tal violência, outros narra-

ram em detalhes a violência que sofreu. Outros escreveram poemas e, até letra de música para

explicar o tipo de violência. Enfim, cada um usou sua experiência de mundo, suas histórias,

seus conhecimentos prévios e os acrescentados nas aulas para criarem um texto que sinteti-

zasse o que eles interpretaram de tudo aquilo que vivenciaram na aula e foi através de pala-

vras que descreveram quem eles eram.

Pôde-se perceber, neste trabalho que, as imagens trouxeram o imaginário, as experiên-

cias dessas crianças/adolescentes e eles coloram isso no papel – a imagem virou texto - a ima-

gem tornou-se a história delas. Conclui-se então que trabalhar imagens na produção de texto é

uma estratégia muito rica e que pode atingir todos envolvidos, pois cada um irá enxergar a

imagem de acordo com sua experiência de vida.

Podemos concluir também que para a construção de sentido, é necessário o ato de ler

não apenas o texto escrito, mas a leitura de mundo, pois “a leitura permite ao leitor abrir jane-

las e mais janelas no texto, promovendo um encadeamento com outros textos e contextos, sem

seguir necessariamente as trilhas já traçadas.” (WALTY, FONSECA E CURY, 2006, p.117)

Considerações Finais

Como o objetivo deste trabalho foi compartilhar as experiências de leitura e produção

de textos em um projeto social. Podemos concluir que as estratégias utilizadas no projeto

trouxeram bons resultados, como conhecer melhor os alunos, discutir, analisar e produzir di-

ferentes textos a partir de temas pertinentes à realidade social e histórica dos alunos até por-

que, estes têm suas particularidades e necessitam de maior cuidado ao abordar temas que os

afetam ao ponto de até abandonarem o Projeto. A proposta de qualquer que seja projeto social

é, primeiramente o de não exclusão, o acolhimento é fundamental e as crianças e adolescen-

tes, em particular, que estão no processo de constituição de sujeito são os que mais necessitam

de auxilio para se tornarem cidadãos dignos conhecedores de seus direitos e deveres e, acima

de tudo, que saibam que sabem que têm direitos e deveres.

REFERÊNCIAS

CONCEIÇÃO, Márcia Regina Teixeira da. A eficácia da Leitura e da percepção da Intertex-tualidade na produção de textos. Revista Eletrônica de Divulgação Científica em Língua

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Portuguesa, Linguística e Literatura. Ano 2, n.03, 2005. Disponível em: < http://www.letramagna.com/marciaregina.pdf> FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 47. ed. São Paulo, SP: Cortez, 2006.

ORLANDI, Eni. P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 1999, p. 30-31 KOCH, Ingedore Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e Compreender os sentidos do Texto. São Paulo, SP: Contexto, 2008. VIANNA, Hermano (Org.) Galeras cariocas: territórios de conflitos e encontros culturais. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997. WALTY, Lara Camargos; FONSECA, Maria Nazareth Soares; CURY, Maria Zilda Ferreira. Palavra e Imagem: Leituras Cruzadas. Belo Horizonte, MG: Autêntica, 2006.