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1 1 MIRCEA BUESCU HISTÓRIA ECONÔMICA DO BRASIL LEITURA BÁSICA Antonio Paim (organizador) CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO DO PENSAMENTO BRASILEIRO (CDPB) 2011

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1

MIRCEA BUESCU

HISTÓRIA ECONÔMICA

DO BRASIL

LEITURA BÁSICA

Antonio Paim (organizador)

CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO DO

PENSAMENTO BRASILEIRO (CDPB)

2011

2

2

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO – Antônio Paim .......................................... 4

MATÉRIA INTRODUTÓRIA Prefácio – Américo Jacobina Lacombe ...................................... 13

Textos de Mircea Buescu

- Um programa de trabalho para a história

econômica do Brasil ............................................................... 20

- Esquema de história econômica do Brasil .............................. 30

OS TRÊS PRIMEIROS SÉCULOS - A economia açucareira em 1600 e seus

aspectos quantitativos ............................................................. 52

- Sobre o valor da exportação colonial ..................................... 61

SÉCULO XIX

Nota introdutória – Antônio Paim ............................................... 65

Textos de Mircea Buescu

8. DIVISOR DE ÁGUAS ...................................................... 69

8.1 Balanço do modelo colonialista mercantilista ................... 69

8.2 Chegada da Corte .............................................................. 74

8.3 Política econômica ............................................................ 75

8.4 Gargalo externo ................................................................. 87

8.5 Outras atividades econômicas.............................................91

8.6 Novos rumos ..................................................................... 93

9. O CICLO DO CAFÉ ......................................................... 96

9.1 Perspectiva em meados do século XIX ............................. 96

9.2 Condicionamentos externos .............................................. 98

9.3 Condicionamentos internos ..............................................101

9.4 Empresa e rentabilidade ...................................................113

9.5 Comércio exterior .............................................................118

9.6 Agricultura de subsistência ...............................................135

9.7 Início da indústria .............................................................139

9.8 Moeda e finanças ..............................................................145

3

3

9.9 Balanço do período ............................................................ 158

Revendo a política econômica do Império (1991) ....................... 165

Notas sobre a economia do Segundo Reinado ............................. 188

SÉCULO XX

Apresentação – Antônio Paim ..................................................... 203

TEXTOS DE MIRCEA BUESCU

- Brasil: problemas econômicos e experiência histórica

Cap. VIII – Processo da industrialização ............................... 205

Cap. IX – Papel do Governo .................................................. 222

- Lições da história .................................................................... 230

- A experiência deflacionária de Joaquim Murtinho ................. 247

- Arranco ou transição (1930/1960) .......................................... 289

- Acerca da teoria dos choques externos ................................... 312

- Os objetivos nacionais nos planos econômicos

(1964/1985) ............................................................................ 335

- Progresso e declínio do planejamento econômico

no Brasil ................................................................................. 359

- Os anos 80: a década perdida ................................................. 375

- Desenvolvimento econômico: condicionamentos .................. 396

CORRENTES DE IDÉIAS SOBRE A

ECONOMIA BRASILEIRA (1965-1990)

- Correntes de idéias sobre a economia brasileira

(1965/1990) ............................................................................. 416

- Capitais estrangeiros (um debate no Conselho Técnico)......... 438

- Notas históricas sobre imperialismo, dependência

e dominação ........................................................................... 454

- Inflação, mentalidades e estruturas..........................................474

- O fascínio do discurso marxista ............................................. 490

4

4

APRESENTAÇÃO

Antonio Paim

Nasceu em Bucareste, Romênia, a 14 de setembro

de 1914. Concluiu a Faculdade de Direito de Bucareste

e diplomou-se em estudos superiores da Faculdade de

Direito de Paris. Em sua pátria de origem, foi chefe de

serviço no Ministério do Comércio Exterior. Emigrou

para o Brasil em 1949, aos 35 anos de idade. Em 1954

obteve a nacionalidade brasileira.

Nos anos sessenta, economistas ligados a Roberto

Campos (1917/2001) criaram a Editora APEC – Analise

e Perspectiva Econômica que desenvolveu um grande

trabalho no sentido de recuperar a tradição liberal,

sucessivamente arquivada depois da Revolução de 30.

Além de haver completamente desaparecido de nosso

meio, o liberalismo econômico era criticado e

deturpado. A moda, que não desapareceu de todo, em

matéria de economia, era a vulgata marxista.

A APEC publicou diversos dos livros escritos por

Roberto Campos. Além disto, deu a conhecer a obra de

economistas liberais da época. Progressivamente, os

nomes de Adam Smith e seus seguidores deixaram de

ser satanizados, criando espaço próprio nos cursos de

economia. Sem embargo, remanescentes da vulgata

continuam a insistir nas superadas teses cepalianas, à

cata de culpados, no exterior, pelo atraso que ainda

registramos em parcelas do território e até conseguem

5

5

manter políticas obsoletas como uma reforma agrária

fora do tempo.

Ligando-se à APEC, depois de 1962, da qual seria

diretor, entre 1972 a 1979 e consultor a partir de 1980,

responde em grande medida pelo sucesso do empreen-

dimento, notadamente ao estimular – e contribuir deci-

sivamente – para a elaboração de análises da economia

brasileira, dignas do nome.

Tornou-se professor de história econômica na

PUC-RJ (1965 a 1986) e no Instituto Benett de Ensino.

Deu aulas de economia e história econômica no Instituto

Rio Branco, na Faculdade Santa Úrsula, na Fundação

Getúlio Vargas e ainda em outras instituições do Rio de

Janeiro e de outros estados.

Buescu exerceu ainda a função de assessor no

Gabinete do Ministro da Fazenda, de 1967 a 1986. Sócio

efetivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Publicou grande número de artigos e ensaios em

jornais (Jornal do Comércio; O Globo, Jornal do

Brasil) e revistas, entre outras a Revista do Instituto

Histórico e Geográfico Brasileiro, Carta Econômica da

APEC e Carta Mensal, órgão do Conselho Técnico da

Confederação Nacional do Comércio, de que era

membro.

O grande feito de Mircea Buescu reside na

notável contribuição que deu para estruturar o estudo do

nosso desenvolvimento econômico em bases estri -

tamente científicas, como se pode ver da Bibliografia

adiante.

6

6

Faleceu no Rio de Janeiro a 16 de maio de 2003,

aos 89 anos de idade.

O levantamento dos dados biográficos de Mircea

Buescu só foi possível graças à recuperação de uma

breve nota, de sua autoria, que havia sido encaminhada

ao Conselho Técnico da Confederação Nacional do

Comércio – a que pertencia – graças à diligência da

secretária Sandra Nascimento. Faltava, entretanto, a

data de falecimento, obtida graças à iniciativa de Arno

Wehling, presidente do Instituto Histórico e Geográfico

Brasileiro, e à presteza e solicitude da secretária

Tupiara Machareth.

Fica a lacuna relativa aos últimos anos de vida.

Segundo os registros constantes da Carta

Mensal, sua última conferência teve lugar em maio de

1995, isto é, ainda viveria oito anos, caracterizados pela

interrupção abrupta de sua brilhante produção

intelectual. Os quatro ensaios subseqüentes aparecidos

na revista (nos anos de 1996 e 1997, referidos adiante),

sem indicação de que teriam resultado de conferências,

devem ter sido encaminhados diretamente para

publicação, praxe admitida. No elogio dos sócios

falecidos, no caso a cargo de Vitorino Chermont de

Miranda, afirma-se: “presença assídua, nas sessões do

CEPHAS, enquanto a saúde lhe permitiu” (RIHGB, 184

(421): 280; out.-dez., 2003). É de presumir, portanto,

que a inatividade observada haja decorrido do estado de

saúde.

7

7

BIBLIOGRAFIA

Livros

História do Desenvolvimento Econômico do Brasil (1967);

2ª edição, Rio de Janeiro: A Casa do Livro, 1969, 178 p. (em

colaboração com Vicente Tapajós)

Exercícios de História Econômica do Brasil (1968). Rio de

Janeiro: APEC Editora, 1969, 136 p.

História Econômica do Brasil. Pesquisas e análises. Rio de

Janeiro: APEC, 1970, 284 p.

O divisor de águas: 1808/1850 . Rio de Janeiro: APEC,

1972.

300 anos de inflação . Rio de Janeiro: APEC, 1973.

Evolução econômica do Brasil (1974). 4ª edição. Rio de

Janeiro: APEC, 1974, 230p.

10 anos de renovação econômica. Rio de Janeiro: APEC,

1974 (em colaboração com Victor Silva)

A moderna história econômica . Rio de Janeiro, 1976 (em

colaboração com Manuel Peláez).

Guerra e desenvolvimento . Rio de Janeiro: APEC, 1976.

Brasil. Disparidades de renda no passado . Rio de Janeiro:

APEC, 1979, 136p.

Métodos quantitativos em história . Rio de Janeiro: Livros

Técnicos e Científicos, 1983.

História Administrativa do Brasil . Organização e Admi-

nistração do Ministério da Fazenda no Império. Rio de

Janeiro: FUNCEP, 1984.

Brasil. Problemas econômicos e experiência histórica . Rio

de Janeiro: Forense Universitária, 1985.

8

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Artigos e Ensaios

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

Quantidade e qualidade em história econômica: o caso da

inflação brasileira no século XIX. v. 313, p. 21-45,

out./dez., 1976.

O café na história do Brasil. v. 321, p. 234-236,

out./dez., 1978.

Disparidades regionais, v. 318, p. 88-91, jan./mar., 1978.

Inegalités regionales au Brésil das la seconde moitié du

XIX siécle. v. 321, p. 222-232, out./dez., 1978.

Criação do Banco do Brasil, v. 322, p. 181-184,

jan./mar., 1979.

Miguel Calmon e a valorização do café. v. 327, p. 235 -

238, abr./jun., 1980.

No centenário da Lei Saraiva. v. 330, p. 179-186,

jan./mar., 1981.

Novas notas sobre a Lei Saraiva. v. 331, p. 209-211,

abr./jun., 1981.

O sistema eleitoral após a Lei Saraiva. v. 332, p. 225 -

227, jul./set., 1981.

Natalidade e mortalidade da população escrava. v. 334,

p. 163-165, jan./mar., 1982.

Uma interpretação marxista da escravidão no Brasil. v.

334, p. 183-190, jan./mar., 1982.

Exportação no Brasil colonial. v. 335, p. 129-132,

abr./jun., 1982.

9

9

Situação dos escravos no século XIX. v. 336, p. 145-147,

jul./set., 1982.

Política econômica do Segundo Reinado. v. 339, p. 7 -12,

abr./jun., 1983.

Centenário do Motim do Vintém. v. 339, p. 113-120,

abr./jun., 1983.

O alvará bicentenário de 1785. v. 350, p. 183-186,

jan./mar., 1986.

O reerguimento econômico: 1903-1913. v. 353, p. 1033-

1050, out./dez., 1986.

Um estadista controvertido: Joaquim Murtinho. v. 365, p.

529-572, out./dez., 1989.

A Primeira República e o sistema econômico inter -

nacional. v. 379, p. 350-363, abr./jun., 1993.

Carta Mensal

Desenvolvimento e lazer. v. 36, n. 423, p. 35-42, jun.

1990.

Inflação: mentalidades e estruturas. v. 36, n. 427, p . 7-

14, out. 1990.

Progresso e declínio do planejamento econômico no

Brasil. v. 36, n. 428, p. 53-61, nov. 1990.

Os objetivos nacionais nos planos econômicos (1964/

1985). v. 36, n. 430, p. 23-37, jan. 1991.

A experiência deflacionária de Joaquim Murtinho. v. 36,

n. 431, p. 37-56, fev. 1991.

Comentários à margem da perestoika. v. 36, n. 432, p.

41-49, mar. 1991.

10

10

A inflação como combate pela renda. v. 37, n. 436, p. 23-

32, jul. 1991.

Primórdios do protecionismo alfandegário no Brasil. v.

37, n. 437, p. 7-23, ago. 1991.

Revendo a política econômica do império, v. 37, n. 441,

p. 3-13, dez. 1991.

Correntes e idéias sobre a economia brasileira (1965-

1990). v. 37, n. 444, p. 49-58, mar. 1992.

Os anos 80: a década perdida. v. 38, n. 447, p. 53 -62,

jun. 1992.

Variações sobre um tema ecológico. v. 38, n. 452, p. 11-

19, nov. 1992.

Arranco ou transição. v. 38, n. 455, p. 21-30, fev. 1993.

Notas históricas sobre imperialismo, dependência e

dominação. v. 39, n. 460, p. 29-36, jul. 1993.

Acerca da teoria dos choques externos. v. 39, n. 466, p.

50-59, jan. 1994.

Lições da história. v. 40, n. 471, p. 41-48, jan. 1994.

Desigualdades regionais: primórdios. v. 40, n. 474, p. 54 -

63, set. 1994.

A investigação quantitativa do passado. v. 41, n. 484, p.

3-10, jul. 1995.

Desenvolvimento econômico. v. 41, n. 485, p. 33-43,

ago. 1995.

Drácula: história e fantasia. v. 41, n. 487, p. 56 -65, out.

1995.

Notas históricas acerca da dívida externa. v. 41, n. 492,

p. 75-83, mar. 1996.

O fascínio do discurso marxista. v. 42, n. 498, p. 77 -85,

set. 1996.

11

11

Notas sobre a economia do Segundo Reinado. v. 43, n.

502, p. 13-20, jan. 1997.

Capitais estrangeiros: um debate no Conselho Técnico. v.

43, n. 508, p. 17-26, jul. 1997.

12

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MATÉRIA INTRODUTÓRIA

13

13

PREFÁCIO

Américo Jacobina Lacombe

Por estranho que pareça, num tempo em que

tanto se fala em economia, nossa bibliografia de

história econômica é escassíssima. O mais recente e

completo de nossos estudos de metodologia histórica e

historiografia, a Teoria da História do Brasil, do prof.

José Honório Rodrigues, 3ª ed. (São Paulo, 1969), mal

conclui uma página com a relação das obras principais

nesse setor, e assim mesmo incluindo as de pura

documentação, as biografias, as histórias das finanças e

as monografias sobre produtos especiais ou aspectos

parciais. Os trabalhos de conjunto sobre a história da

economia brasileira contam-se pelos dedos.

Em primeiro lugar, os Pontos de Partida para a

História Econômica do Brasil, de Lemos Brito, que são

de 1923, e representam um esforço de organização dos

dados constantes da historiografia corrente, sem muita

preocupação técnica.

De 1929 é a obra de Lúcio de Azevedo, Épocas de

Portugal Econômico. Ainda que não vise ao Brasil

especialmente, a maneira pela qual encarou a economia

colonial e o método que empregou no estudo dos ciclos

econômicos (termo que daí por diante vai ser sempre

empregado) transformaram este livro num modelo de

cujo plano e terminologia dificilmente escapam os

continuadores.

De 1935 é o livro de J. F. Normano: Brazil – A

study of Economic Types, inteligente exposição que não

14

14

tomou conhecimento do historiador português, mas

contribuiu, por sua vez, com algumas idéias que se

incorporam aos relatos subseqüentes.

Em, 1937 surge a obra clássica de Roberto Si-

monsen. Criando em 1933 a Escola Livre de Sociologia

e Política de São Paulo, viu-se o homem de empresa,

doublé de intelectual, com a responsabilidade im-

prevista de ministrar pessoalmente o curso de história

econômica. Daí resultou a História Econômica do

Brasil, cujas edições se sucedem ininterruptamente. Sem

ser um historiador por formação, mas homem de boa

cultura geral e econômica, Simonsen empregou sua

notável inteligência e sua invejável capacidade de

organização na feitura de uma obra magistral.

Submeteu-a ao crivo de eruditos do nível de Rodolfo

Garcia, Afonso d”E. Taunay e Eugênio de Castro. Daí

resultou um livro básico, lúcido e metódico, em que se

vão abeberar os seguidores inevitavelmente.

De 1938 é a maravilha de exposição representada

pelas aulas ministradas em Montevidéu pelo professor

Afonso Arinos de Melo Franco e editadas pelo Minis-

tério da Educação: Síntese da História Econômica do

Brasil, várias vezes reproduzidas. Tudo o que apareceu

precedentemente foi esquematizado de maneira tal que

os compêndios não fazem, pela maior parte, daí por

diante, senão seguir a esteira do conferencista.

Com Caio Prado Junior, na História Econômica

do Brasil em 1945, escrita para um público estrangeiro

(encomenda que foi do Fundo de Cultura Econômica do

México) temos uma visão diferente do problema. O

15

15

autor lamenta justamente ser escassa a produção

brasileira em matéria de literatura econômica que

examina e seleciona. Mas proclama a dificuldade de

elaborar cientificamente o assunto segundo suas

concepções dialéticas, já que é uma “ilusão ingênua

esta idéia muito corrente de uma possível e suposta

imparcialidade filosófica que não existe e não pode

existir”. Verdade esta que já fôra proclamada por

Aristóteles: a de que para deixar de filosofar, ainda é

preciso filosofar.

Completamente outro é o ponto de vista de Celso

Furtado na sua Formação Econômica do Brasil, de

1959. O problema historiográfico não o preocupou.

“Omite-se quase totalmente a bibliografia histórica

brasileira”, previne ele na Introdução, “pois escapa ao

campo específico do presente estudo, que é sim-

plesmente a análise dos processos econômicos e não a

reconstituição dos eventos históricos que estão por trás

desses processos”. E realmente toda a massa de

informações necessária ao raciocínio é colhida nos

trabalhos antecessores.

A intervenção do prof. Mircea Buescu no campo

de nossos estudos de história econômica, com os

Exercícios de História Econômica do Brasil, e com a

História do Desenvolvimento Econômico do Brasil (em

colaboração com o prof. Vicente Tapajós), traz-nos uma

contribuição importantíssima.

Espírito formado no trato contínuo dos

problemas econômicos, formado por uma profunda

preocupação pelo material historiográfico empregado

16

16

na elaboração dos estudos, o professor Buescu

empreendeu uma exaustiva revisão nos dados

elementares nas fontes primárias de nossa evolução. Na

falta de estatísticas e relatórios oficiais, em vista da

política de sigilo característica dos governos da era

moderna, nossas fontes vêm sendo os cronistas e os

missionários coloniais. Não se pensara, porém, até

agora em submeter os dados multifários extraídos

desses trabalhos, nem sempre com a exatidão ne-

cessária aos raciocínios históricos e econômicos, a uma

costratação rigorosa. Sobre eles se apoiaram os

historiadores até aqui. Mas o professor Buescu

demonstra que muita coisa precisa ser posta em dúvida

e repensada. Pelo menos não é lícito chegar a certas

conclusões sem averiguar certos pontos assaz

duvidosos.

Urge um trabalho preparatório de apuradas

pesquisas para obter uma série de dados quantitativos

essenciais ao reestudo de vários capítulos que

enganosamente julgávamos documentados. Como se

verá das páginas que se seguem, o Autor fez sérias

tentativas neste sentido, no curso que ministra na

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Os

resultados não corresponderam totalmente aos esforços

empregados mas, de qualquer modo, demonstraram a

possibilidade de se chegar a conclusões muito

importantes.

A solução que ocorre ao professor Buescu é a de

um Instituto especializado em História Econômica do

Brasil, capaz de centralizar as tentativas nesse sentido.

17

17

Óbvia a conclusão. Mas, por outro lado, parece-me que

mais rapidamente se poderia organizar tal instituto à

sombra de instituições já existentes, interessadas nas

pesquisas histórico-econômicas. E são muitas as que

estão sentindo a necessidade de dar uma base sólida e

documentada a um setor perigosamente exposto aos

ventos das paixões.

Como companheiro de trabalhos e de lutas no

campo universitário – e só a esse título estou ocupando

estas páginas – não me resta senão desejar

ardentemente que o apelo do Autor encontre eco no

meio dos esclarecidos. Não faltam, mercê de Deus,

jovens dispostos e livres para pesquisas trabalhosas,

mas empolgantes. Dêem-nos ambiente e meio e nós, os

professores, auxiliares e estudantes, os transfor-

maremos em elementos para uma sólida construção

científica futura.

É o que já antevejo com otimismo e confiança.

Que as palavras deste mestre frutifiquem.

(Transcrito de História Econômica do Brasil.

Pesquisas e análises, de Mircea Buescu – Rio de

Janeiro, APEC, 1970, págs. 13-16)

Nota do editor

Américo Jacobina Lacombe (1909/1974) concluiu o curso de

direito aos 22 anos, em 1931. Ainda nos anos trinta, teve atuação

destacada no Centro Dom Vital – que exerceu grande influência

nos círculos católicos durante largo período – e foi secretário do

18

18

Conselho Nacional de Educação. Integrou o grupo que lançou as

bases da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, onde,

a partir de 1941 passou a lecionar História do Brasil. Graças a

essa condição, viria a produzir extensa bibliografia dedicada ao

tema, o que o tornaria renomado historiador e o levaria ao

exercício da Presidência do Instituto Histórico Brasileiro. Seria

também diretor da casa de Rui Barbosa e responsável pelo

ordenamento de sua obra para edição. Pertenceu à Academia

Brasileira de Letras.

19

19

TEXTOS DE MIRCEA BUESCU

20

20

UM PROGRAMA DE TRABALHO

PARA A HISTÓRIA ECONÔMICA DO BRASIL

O desvio do estudo da História Econômica do

Brasil do caminho que normalmente devia seguir – isto

é, pesquisa exaustiva dos dados informativos (em

grande parte quantitativos); depois, síntese coerente

destes dados; e finalmente outra síntese integrando a

realidade econômica no conjunto da realidade cultural –

esse desvio, queimando as etapas e passando

diretamente para o terceiro estágio do caminho normal,

foi, sem dúvida, em grande parte, obra das escolas

materialistas, estruturalistas e outras semelhantes que

enfatizaram demasiadamente o aspecto social e

institucional – os problemas das classes sociais, dos

sistemas, das estruturas, dos regimes, das instituições

políticas, etc. É de estranhar que doutrinas que

sublinharam até além dos limites lógicos a importância

do fator econômico na evolução da Humanidade,

contribuíram para a marginalização do estudo

especificamente econômico na História.

Um caso típico é o estudo da evolução econômica

do Brasil no período moderno até a Segunda Guerra

Mundial. No prefácio do seu excelente livro

recentemente publicado no Brasil (1), Frédéric Mauro

escrevia: “Após essa fase colonial de nossas pesquisas

históricas, sentimo-nos atraídos eventualmente pelos

séculos XIX e XX, cuja economia os historiadores

21

21

brasileiros negligenciaram em extremo”. Entretanto,

procure-se nos livros “clássicos” da história econômica

do Brasil, e encontrar-se-á um número imenso de

páginas dedicadas àquele período. Só uma perquirição

mais atenta descobrirá o sentido, perfeitamente justo,

das palavras de Mauro: é que, apesar da extensão dos

comentários (todos, de acordo com uma certa filosofia

política e social), a base informativa, o documento, a

estatística não existem – o que torna extremamente

precário o respectivo comentário.

Ninguém pode minimizar a importância dos

sistemas, das instituições, das classes, das forças

políticas e sociais em jogo, e assim por diante.

Entretanto, uma avaliação objetiva destes fatores, em

termos econômicos, só pode ser feita depois da análise

do processe econômico e dos seus efeitos. Para fixar-se

bem essa posição, talvez seja conveniente, mais uma

vez, indicar os caminhos a seguir – mesmo se, às vezes,

esta tarefa pareça repisar o terreno do óbvio.

* * *

O que é a História Econômica? É o estudo dos

fatos econômicos sob perspectiva temporânea – isto é, o

estudo do modo como os homens resolveram o seu

problema de bem-estar material, produzindo mais para

poderem consumir mais. Do ponto de vista teleológico

interessa o consumo, do ponto de vista genético, a

produção: dada a escassez da natureza, inclusive no que

22

22

tange à capacidade do homem, é a produção que

constitui o aspecto dramático do problema econômico.

De forma simplificada, a História Econômica deve

pesquisar e explicar como o homem organizou a pro-

dução e, em face dessa organização, quais os resultados

alcançados em termos de consumo (implicando,

também, num problema de distribuição da renda). A

história dos fatos econômicos é a descrição cronológica

e a análise dos esforços humanos criadores de valores

econômicos, a luta pela redução dos custos e aumento

das satisfações obtidas. Evidentemente, nisso intervém

uma série de elementos institucionais e estruturais –

porém, num primeiro estágio da análise não é permitido

preterir o fato simples, mas fundamental, de como e

quanto se produziu – uma avaliação dos fatores de

produção aproveitados e dos produtos realizados.

Essa análise será obrigatoriamente quantitativa.

Isto não quer dizer que os fatores qualitativos

devam ser desprezados. O desenvolvimento econômico é

função do homem, envolvendo, portanto, todo o

comportamento da comunidade humana no respectivo

momento histórico. A necessidade de quantificar a

História Econômica para efeito de melhor apreciar os

fatos econômicos – único meio objetivo e comparar

custos e benefícios sociais – não implica em desprezar

ou minimizar os fatores qualitativos.(2)

As etapas inevitáveis para a construção de uma

História Econômica do Brasil – como de outras

comunidades – seriam, portanto: 1º) a análise dos fatos

econômicos – produtos, fatores de produção, custos,

23

23

preços, rendas, etc. – quase totalmente quantitativa (3);

2º) síntese dos fatos econômicos – aspectos

macroeconômicos, estruturas, instituições, etc.; 3º)

síntese final, englobando todos os fatos culturais em

cada momento histórico para determinar-se sua

interdependência (4). Obviamente, pelas necessidades

de exposição, as três etapas poderiam ser atacadas em

conjunto, porém nunca com a preterição das etapas

iniciais.

* * *

Um programa de trabalho para a História

Econômica do Brasil, deveria seguir as mesmas etapas,

sob pena de chegar a conclusões inadequadas ou

incoerentes.

Esta formulação programática não implica na

negação do que foi feito até agora no campo das

pesquisas e da elaboração de sínteses quantitativas.

Quanto às primeiras, não podem ser citados aqui todos

os trabalhos realizados – apesar de, em muitos casos, a

pesquisa puramente histórica ter tido prioridade em

detrimento da pesquisa da história econômica (5). O que

falta, no que foi feito, é uma “consolidação” dos

elementos objetivos, atualmente espalhados em várias

publicações, para que se proceda a seu confronto

verificando-lhes a coerência. E seriam necessárias

muitas novas pesquisas referentes a todas as épocas – e,

sobretudo, a épocas mais recentes.

24

24

Como dizia Mauro, o século XIX foi pouco

estudado – apesar de muito “interpretado” e comentado

(o período a partir da Segunda Guerra Mundial, foi

analisado com maior objetividade pelos economistas

brasileiros). Fala-se, por exemplo da economia

brasileira do século XIX sem se ter, até agora, um

estudo da inflação naquela época, a não ser o trabalho

pioneiro, e valioso sob muitos aspectos, de Oliver

Ónody (6). Entretanto, a quantificação da inflação é,

como não podia deixar de ser, bastante precária, e

exigiria novas pesquisas para sua confirmação ou

retificação. Os dados encontram-se esparsos em jornais,

revistas, livros, documentos oficiais e privados,

testamentos, inventários, registros, e só pela sua coleta e

ulterior confronto poderia construir-se uma escala, algo

mais completo, dos preços no século XIX. O trabalho

não será fácil, porque se trata justamente de uma

quantidade enorme de dados informativos espalhados

em todo o Brasil e numa imensa variedade de fontes.

Tentei fazer, por exemplo, um levantamento dos

preços em períodos decenais entre 1835 e 1875, através

dos anúncios classificados do “Jornal do Commercio”,

mas os resultados foram inexpressivos: poucas mer-

cadorias são comparáveis, não se podendo chegar a um

resultado ponderado (7). Por exemplo, entre aquelas

duas datas, o preço do açúcar mascavo subiu 79,4%, o

do açúcar refinado 56,8% e o do arroz 52,9%. Os

resultados parecem coerentes. Entretanto, durante o

mesmo período o preço da carne seca elevava-se de

224.2%. As variações a prazo mais curto são ainda mais

25

25

traiçoeiras: entre 1835 e 1845 o açúcar mascavo sobe de

5,3%, o refinado de 21,2%, a carne seca de 63,2%, o

milho de 75,5%, enquanto o preço do arroz acusa queda

de 3,6%. (Foram comparados preços médios, elimi-

nando-se aqueles que destoavam, por razões desco-

nhecidas, do conjunto). Trabalho evidentemente pre-

cário e insuficiente, que talvez possa ser valorizado pela

comparação com outras informações similares. O levan-

tamento completo fica para ser feito, com paciência e

espírito crítico. Como na maioria das vezes, a infor-

mação sobre o preço da mercadoria dá poucas indi-

cações quanto à qualidade. Só juntando um grande nú-

mero de informações será possível eliminar as eventuais

distorções. E entre um número reduzido de fontes a

comparação é irrealizável, como, por exemplo, entre as

informações fornecidas por Leithold e Rango em

1819(8) e as de Davatz uns quarenta anos mais tarde (9).

Entretanto, este é o único caminho. Sem esta

construção, embora muitas vezes precária, as discussões

em torno dos temas da História Econômica do Brasil

continuarão dominadas pelas interpretações doutri-

nárias, na falta de uma base objetiva de interpretação.

Um exemplo típico é a construção, aparentemente

coerente, da teoria da “exportação das crises pelos

países industrializados para o Brasil” e da “transferência

do ônus da crise pelos exportadores de café para a massa

dos consumidores brasileiros”. Não é desprovida de

base verídica essa dupla teoria, porém a sua

apresentação de forma radical e excessiva, não parece

justificar-se pelos dados estatísticos disponíveis(10).

26

26

Inúmeros exemplos poderiam ser dados que

justificassem a obra de pesquisa e reconsideração da

História Econômica do Brasil. Esta afirmação não

implica em negar o que até agora foi feito(11). Mas,

mesmo para o que tem sido feito, seria indispensável

aquele trabalho de “consolidação”, a fim de medir a

coerência dos vários resultados (12).

* * *

Seria preciso organizar pesquisas sistemáticas

(obra de um eventual Instituto de História Econômica do

Brasil, desejo meu talvez bastante utópico), sobre os

aspectos micro e macroeconômicos da economia

brasileira no período entre o Descobrimento e fim da

Segunda Guerra Mundial (período que, por analogia

com a terminologia clássica na História, constituiria, em

muitos pontos, a fase “pré-literária” da História

Econômica do Brasil, época em que não houve

levantamentos estatísticos sistematizados, a não ser em

alguns poucos setores).

Este programa de pesquisas deveria conter, entre

outras (a enumeração não é exaustiva):

– evolução da população – não apenas para

permitir o calculo da renda per capita, mas também,

através do perfil dos grupos raciais (brancos, pretos,

índios) e sociais (rurais e urbanos, livres e escravos),

para ajudar no cálculo das rendas, uma vez que a

27

27

estimativa direta do produto real poderia ser mais difícil

(13).

- avaliação da produção; muito difícil no que

tange aos produtos de consumo interno, seria mais fácil

para os produtos de exportação, mas, mesmo para estes,

uma reavaliação será necessária, e a base será en-

contrada na estatística do movimento marítimo (14);

– levantamento da evolução dos preços locais;

– levantamento da evolução dos preços de ex-

portação;

– estatísticas sobre os salários e outros ren-

dimentos;

– volume das importações dos escravos e de seus

preços(15);

– quantificação do fiscalismo colonial e do ônus

resultante da intermediação comercial e financeira da

Metrópole – aspecto extremamente importante para

determinar-se a parte de renda efetivamente aproveitada

pela Colônia;

– despesa pública (para a época colonial) a fim de

saber-se a parte da renda que, captada pela Metrópole,

voltava para a Colônia;

– volume monetário; para a época independente:

emissões de papel-moeda e volume de meios de

pagamento;

– investimentos estrangeiros e seus lucros.(15 bis)

Evidentemente, uma primeira operação consistiria

no levantamento do que foi feito até agora – e há muitas

pesquisas extremamente valiosas; em segundo lugar, o

28

28

material existente deveria passar pelo crivo crítico para

avaliar-lhe a coerência; novas pesquisas deveriam ser

prosseguidas paralelamente, e à medida que chegassem

os resultados, os dados anteriores seriam novamente

submetidos à análise crítica. Por fim, haveria a

construção de conjuntos macroeconômicos, objetivos e

coerentes, que dariam a imagem global da evolução

econômica. Tentativas desse tipo já foram feitas, tais

como as construções de Roberto Simonsen no que tange

à evolução das exportações, de Maurício Goulart sobre a

importação de escravos, de Celso Furtado concernente à

evolução da renda em algumas épocas e regiões.

Tentei levar adiante essas construções referentes

ao fim do século XVI para melhor caracterizar, em

termos quantitativos, a evolução da economia nacional.

Utilizei (16), para calcular a evolução da renda, as

estimativas da exportação colonial construídas por

Simonsen, e os dados disponíveis para o período

independente, estabelecendo, depois, uma escala de

proporções entre o valor da exportação e o da Renda

Interna. Tive a satisfação de encontrar um método

análogo, embora apresentado sob forma de um modelo

matemático mais sofisticado (porém admitindo

basicamente uma relação entre as flutuações da

exportação e da Renda Interna), num notável trabalho

feito por Teodoro Oniga (17).

A diferença fundamental entre os dois métodos é

que adotei uma relação variável entre a renda gerada

pelas exportações e a renda global, enquanto Oniga

admite que entre 1830 e 1960 o crescimento da renda

29

29

num período decenal corresponde constantemente a 40%

do valor total das exportações no respectivo decênio.

A aplicação de uma relação constante

exportação/renda parece uma inadvertência no cálculo

final, pois o próprio Oniga, com seu penetrante poder de

análise, fala em que a dependência renda/exportação se

é válida “num intervalo em que as exportações

representam uma fração relativamente pequena e

decrescente (entre 19% e 7.5% - entre 1947 e 1960), ela

tem maiores chances ainda de exprimir uma realidade

econômica no passado, quando as exportações

contribuem com uma fração muito mais importante no

total da produção” (nosso grifo).(18) Devo lembrar que

eu tinha aplicado, entre 1600 e 1950, uma escala de

relação exportação/renda partindo de 80% e chegando a

10%. Os resultados globais da evolução da renda são os

seguintes:

£ 1000 US$ milhões

1800 8.750 72,6

1850 22.080 183,3

1900 132.933 1.103,3

1950 1.387.070 11.512,7

Estes dados diferem bastante dos apresentados em

livro anterior (19) por duas razões: a) adotou-se para

1850 a relação E/RI de 35% (em vez de 40%) e para

1900 de 25% (em vez de 30%); b) a fim de evitar as

distorções resultantes das flutuações da exportação, a

base do cálculo não foi o valor da exportação dos anos

30

30

1850 e 1900, e sim a média do valor da faixa de 10 anos

em torno das respectivas datas.

Os estudos contidos no presente livro representam

tentativas de completar e reajustar os trabalhos

realizados por outros, a fim de se chegar, com o tempo,

a uma História Econômica do Brasil quantificada,

objetiva e coerente, constituindo uma experiência

aproveitável para a compreensão dos árduos problemas

do desenvolvimento econômico.

ESQUEMA DA HISTÓRIA ECONÔMICA

DO BRASIL

1. Ciclos e subciclos:

- Formação econômica determinada pelo binômio mer can-

tilismo/colonialismo: organização da Colônia de modo a

garantir a balança comercial favorável da Metrópole

(através da produção de metais preciosos ou de produtos

conjunturais de exportação).(20) Concentração dos fatores

de produção no produto conjuntural (tendência para a

monocultura); instrumentos institucionais favorecendo o

produto conjuntural.

- Ciclos:

períodos em que a exportação é concentrada num certo

produto conjuntural.

- Efeitos:

- o produto conjuntural liderando a exportação;(21)

- a exportação (com a intermediação inevitável da

Metrópole) constituindo a principal fonte criadora da renda

31

31

colonial, o produto conjuntural (cíclico) desempenha papel

decisivo na criação da renda;

- atração dos fatores da produção:

- expansão territorial;

- expansão demográfica;

- entrada de capitais; alta rentabilidade (reinves --

timento);

- reflexo sobre outras atividades econômicas (fluxos de

renda);

- estratificação social correspondendo às necessidades

do produto cíclico;

- criação de instituições políticas e sociais adequadas.

- Ciclos:

períodos em que o centro dinâmico da economia é cons -

tituído por um certo produto conjuntural de exportação.

- Subciclos:

períodos em que produtos secundários sustentaram a

balança comercial, sem o dinamismo de um verdadeiro

ciclo; ligação com o consumi interno.(22)

Cronologia dos ciclos:

1503- 1550: ciclo do pau-brasil (23)

1550-1650: ciclo do açúcar (24)

1560 até o fim do período colonial: subciclo do gado

1642 até o fim do período colonial: subciclo do fumo (25)

1694-1760: ciclo da mineração (diamantes: a partir de 1729)

1780-1790: subciclo do algodão

1790-1810: ressurgimento do ciclo do açúcar

1825-1930: ciclo do café

2. Do Descobrimento até meados do século XVI

2.1 Quadro histórico

1492 – Bula Inter Caetera do papa Alexandre VI

1994 – Tratado de Tordesilhas

1500 – Pedro Álvares Cabral no Porto Seguro

1501-1503 – Expedições de reconhecimento

32

32

1504 – Incursões francesas no Brasil

1506 – Novos progromos contra os judeus nos países

ibéricos

1516-1519 e 1526-1528 – Expedições de Cristóvão Jacques

1519-1521 – Conquista do México por Cortês

1524-1532 – Conquista do Peru por Pizarro

1530-1532 – Expedição de Martim Afonso de Souza

1532 – Fundação de São Vicente

1534 – Criação das primeiras Capitanias Hereditárias

Constituição da Companhia de Jesus

1545 – Descobrimento das minas de prata de Potosi (Peru)

1548 – Regimento de Tomé de Souza

1549 – Constituição do Governo Geral do Brasil

Fundação da cidade de Salvador

Chegada dos padres jesuítas (Manuel da

Nóbrega)

2.2 Ciclo do pau-brasil

Condicionamentos externos – aumento das rendas e do

consumo na Europa Ocidental; demanda de tecidos;

expansão do artesanato; demanda de corantes (preços

altos, suportando o alto custo do transporte transoceâ -

nico); rentabilidade (custo local: 1.000 réis por quintal;

venda para o consumidor: 4.000 réis).

Condicionamentos internos – fatores de produção:

- recursos naturais: planta nativa, sem exigir cuidados

especiais;

- mão-de-obra; índios (livres ou escravos), para derru-

barem as árvores e transportarem-nas até o local de

embarque;

- tecnologia: rudimentar (corte de árvores), conhecida

pelos índios;

- capital: reduzida exigência no local (pagamento dos

índios in natura ou sua utilização como escravos; cons-

tituição de feitorias temporárias para o embarque do pau-

33

33

brasil); necessidade de volumosos capitais para transporte

e comercialização (apelo para os cristãos novos).

Funcionamento:

- monopólio da Coroa;

- arrendamento (1º) grupo de cristãos-novos liderados por

Fernão de Noronha – 1503);

- limitação da renda pela demanda (± 20.000 quintais por

ano = ± £ 80.000); (26)

- dificuldades criadas pelos ataques dos índios e pelas

incursões dos corsários, piratas, comércio entrelopo;

- substituição por um produto mais rendoso (açúcar); (27)

- persistência da exportação de pau-brasil durante o

período colonial;

- liquidação do produto pela invenção dos corantes

artificiais (índigo artificial).

Efeitos:

- prioridade na pauta de exportação (até 1540-1550,

provavelmente, 90-95% do valor anual da exportação);

- criação de renda (fora da Colonia);

- valor da exportação de pau-brasil no período colonial: £

15.000.000 (2,8% da exportação total, 1,7% da Renda

Interna colonial);

- poucos reflexos no conjunto econômico-social: sem

penetração territorial, sem crescimento demográfico (a não

ser, ambas muito superficiais); sem criação de classes

sociais, e outras atividades reflexas (quase sem caráter de

verdadeiro ciclo); entretanto, justificando a necessidade da

criação de um sistema político-militar da defesa:

capitanias hereditárias. (28)

3. De meados do século XVI a meados do século XVII

3.1 Quadro histórico

1551 – Criação do bispado da Bahia

1554 – Fundação do Colégio Jesuíta de São Vicente

34

34

1555-1565 – Franceses no Rio de Janeiro (Villegaignon)

1565 – Fundação da cidade do Rio de Janeiro

1571 – Batalha de Lepanto

1573-16578 – Instituição de dois governos

1578 – Batalha do Alcácer-Québir

1580-1640 – Portugal unido à Espanha

1583-1591 – Ataques ingleses ao Brasil

1584 – Conquista da Paraíba

1588 – Desastre da Invencível Armada

1589 – Conquista de Sergipe

1591-1595 – Primeira visitação do Santo Ofício

1594-1597 – Ataques franceses

1599-1604 – Ataques holandeses

1599 – Conquista do Rio Grande

1600 – Constituição da Companhia Inglesa das Índias

Orientais

1602 – Constituição da Companhia Holandesa das Índias

Orientais

1608-1612 – Instituição de dois governos

1609 – Trégua Espanha-Holanda

1612-1615 – Franceses no Maranhão

1618-1648 – Guerra de Trinta Anos

1621 – Fundação do Estado do Maranhão e Grão-Pará

Constituição da Companhia Holandesa das Índias

Ocidentais

1624-1625 – Holandeses na Bahia

1630-1654 – Holandeses em Pernambuco, Itamaracá, Rio

Grande, Paraíba, Sergipe e Maranhão

1637 – Expedição de Pedro Teixeira na Amazônia

1637-1644 – Governo de Nassau

1642 – Tratado Portugal-Inglaterra

1645 – Insurreição pernambucana

1648 – Reconquista da Angola pelos portugueses

1651 – Ato de Navegação de Cromwell

1652-1653 – Guerra Inglaterra-Holanda

35

35

3.2 Ciclo do açúcar – 1550-1650

Condicionamentos externos:

- elevação das rendas na Europa Ocidental;

- aumento do consumo de açúcar;

- dificuldades do abastecimento do Oriente Próximo e

Extremo Oriente;

- elevação geral dos preços em decorrência do afluxo de

metais preciosos do Novo Mundo (arroba de açúcar em

1500: 400 réis; em 1650: 1.800 réis).

Condicionamentos internos – fatores de produção :

- recursos naturais: terra disponível de qualidade

relativamente boa (massapé), clima, florestas próximas

(lenha para fornalhas), rios (força motriz e transporte); em

toda a extensão da costa, mas sobretudo de Sergipe a Rio

Grande do Norte; necessidade de animais de carga (v.

subciclo do gato);

- mão-de-obra: índios (livres ou escravos) inadaptados;

reduzida mão-de-obra branca; importação maciça de

escravos africanos (29)

- tecnologia: experiência anterior dos portugueses

(Madeira);

- capital: necessidade de capitais volumosos (um engenho:

£ 10-15.000); dificuldades financeiras dos donatários (30);

papel dos cristãos-novos e dos intermediários comerciais e

financeiros; capitalização na própria economia açucareira,

porém com dificuldades de capital de giro (31);

Funcionamento:

- unidade de produção: engenho de açúcar (economia

autárquica); formação: donos de engenho, trabalhadores

livres, escravos, cultivadores livres (arrendatários

fornecedores de cana); agregados, forros, artesãos, etc.;

- favores oferecidos aos donos de engenho pela Me-

trópole(4);

36

36

- fiscalismo: dízimo do açúcar (1/10 da quantidade

produzida); intermediação obrigatória da Metrópole na

exportação (papel dos grandes centros europeus de

comercialização: Antuérpia);

- insegurança: ataques dos índios, corsários, piratas e

comércio entrelopo; ocupação holandesa(33);

- expansão durante a conjuntura ascendente (1550-1650):

aumento das quantidades produzidas e exportadas (1600?

1.200.000 arrobas; 1650: 2.000.000 arrobas), ao mesmo

tempo que os preços se elevavam;

- alta rentabilidade;

- mudança da conjuntura após 1650: concorrência

antilhesa, queda dos preços (fim da inflação européia);

- ressurgimento por causa da revolução nas Antilhas

(1789);

- Bloqueio Continental (1806): açúcar de beterraba.

Efeitos:

- prioridade na pauta de exportação: 1600 - £ 2.100.000

(90% do total); 1650 - £ 3.800.000 (95% do total); no

período colonial: £ 300 milhões – 56% da exportação total

(34);

- importante receita para a Coroa (e para os intermediários

comerciais e financeiros);

- criação de renda (talvez 2/3 fora da Colônia); do total da

renda colonial, 33% gerados pelo açúcar;

- fixação dos colonos; ocupação territorial (embora apenas

litorânea);

- expansão demográfica: atração dos colonos, integração

de índios, importação maciça de escravos africanos;

- estruturação social (criação de latifúndios, situação

subserviente dos demais cultivadores); isolamento dos

engenhos; hábitos de consumo mais elevados nos

engenhos (em grande parte, com produtos importados);

reduzida urbanização (35);

37

37

- criação de atividades conexas: presa de escravos (índios:

bandeirantes; pretos: mercadores); atividades adjuntas no

engenho; criação de gado.

3.3 Subciclo do gado

Condicionamentos:

- ligação indireta com o setor exportador: fornecimento de

força motriz, meio de transporte, alimentação e matéria -

prima artesanal para os engenhos de açúcar (mais tarde,

sustentação no ciclo da mineração, inclusive para gado

cavalar e muar);

- ligação direta: exportação de couro (também como

envólucro para fumo);

- para consumo interno: alimentação e artesanato (aspecto

anticíclico) (36);

- facilidade para fatores de produção: extensão territorial;

mão-de-obra índia adequada; pouca necessidade de capital

(capitalização natural no próprio setor).

Funcionamento:

- pontos de expansão: Bahia, Pernambuco, São Vicente;

- expansão ao longo dos rios (São Francisco); limitações

legais para não prejudicar a cultura da cana;

- grandes currais (em torno dos engenhos) e pequenos

currais;

- rentabilidade modesta.

Efeitos:

- sustentação da balança comercial (sobretudo nas épocas

de crise do açúcar); total da exportação no período

colonial: £ 15.000.000 (2,8% do total);

- receita para a Metrópole;

- fortalecimento do setor autônomo (composição do setor:

agricultura de subsistência – mandioca, algodão, etc. –

pesca de baleia, criação de gado, colheita tropical,

pequenas ocupações agropecuárias e hortigranjeiras;

38

38

reduzido artesanato; inexistência de um grande mercado:

níveis baixos de renda, falta de ligações entre os núcleos,

pouco interesse dos investidores, economia não -

monetária);

- criação de uma classe média rural (maior mobilidade

social);

- grande expansão territorial (37).

4. A Segunda Metade do Século XVII

4.1 Quadro histórico

1632 – Criação do Conselho Ultramarino

1649 – Constituição da Companhia Geral do Comércio do

Brasil

1654 – Expulsão dos holandeses

Tratado Portugal-Inglaterra

1657 – Instituição do Governo de Pernambuco

Lutas na fronteira Sul

1661 – Tratado Portugal-Inglaterra

Tratado de paz da Haia

1665 – Franceses em São Domingos

1669 – Dissolução da Companhia Holandesa das Índias

Ocidentais

1680 – Fundação da Colônia do Sacramento

1681 – Tratado de Lisboa

Perda das Índias Portuguesas

1682 – Constituição da Companhia do Comércio do

Maranhão

1633-1713 – Guerra dos Bárbaros (Confederação dos Cariris)

1684 – Revolta de Beckman

1695 – Destruição do quilombo de Palmares

1703 – Tratado de Methuen

4.2 Hiato econômico – Subciclo do fumo

- queda do ciclo do açúcar: baixa das cotações (aumento

da oferta em decorrência da criação dos centros produtores

nas Antilhas; queda geral dos preços); o açúcar mantém-

39

39

se, entretanto, como principal produto de exportação do

Brasil; queda da rentabilidade - descapitalização do setor

(38);

- medidas de defesa da receita colonial:

- criação do Conselho Ultramarino;

- constituição de organizações monopolistas para comer-

cializar os produtos da Colônia: Companhia Geral do

Comércio do Brasil (1649-1663) e Companhia do

Comércio do Maranhão (1632-1685); sucesso relativo da

primeira, apenas;

- monopólio do fumo (1642);

- monopólio do sal (1658);

- liberação do comércio em navios estrangeiros (1671);

- navegação obrigatória em frotas (1688);

- importância relativamente maior dos produtos sub -

cíclicos na exportação e na geração da renda: couro,

algodão (Maranhão), fumo.

Subciclo do fumo (a partir da segunda metade do século XVII)

- conjuntura: aumento do consumo na Europa Ocidental;

produto importante para o escambo dos escravos africanos; em

pequena proporção, para o consumo interno (39);

- condicionamentos: planta indígena; tecnologia tradicio nal;

mão-de-obra local ou escrava; necessidade reduzida de capital;

- funcionamento:

- rentabilidade relativamente reduzida;

- monopólio da Coroa – importante receita pública;

- participação da economia colonial: exportação total £

12.000.000 (2,2% do valor da exportação colonial, 1,3% da

Renda Interna do período colonial).

Resultados do período

- queda da exportação, apesar das medidas de defesa e da

participação dos subciclos;

- queda da Renda Interna, sendo dependente da exportação;

40

40

- crescimento relativo do setor autônomo da economia (não

dependente da exportação): mandioca, milho, plantas

alimentícias, frutas, trigo, etc. (fumo, algodão, pecuária – na

medida em que não se exportavam); artesanato (muito

reduzido);

- em termos per capita a exportação caiu, entre 1650 e 1700,

de 23.10.0 para £ 6.14.0, a Renda Interna, de £ 29.8.0 para £

11.8.0.

4.3 Panorama do século XVII

- Evolução da exportação (aspecto cíclico) – reflexo sobre

a geração de renda (boa parte da Renda Interna – talvez

2/3 – ficava fora da Colônia) – crescimento relativo do

setor autônomo (40).

Exportação (E) Renda Interna (RI)

Setor autônomo

(RI-E)

£ 1000 variação

%

£ 1000 variação

%

£ 1000 variação

%

1600

1650

1700

2.400

4.000

2.400

. . .

+ 67%

– 40%

3.000

5.000

4.000

. . .

+ 67%

– 20%

600

1.000

1.000

. . .

+ 67%

+ 60%

- Composição da exportação:

1600 1650 1700

£ 1000

% do

total £ 1000

% do

total £ 1000

% do

total

açúcar

pau-brasil

fumo

couro

mineração

2.160

100

15

. . .

90%

4%

0

. . .

3.800

75

. . .

. . .

95%

2%

. . .

. . .

1.800

45

. . .

100

310

75%

2%

. . .

4%

13%

41

41

- Expansão territorial e demográfica:

Área ocupada

(km2)

População

(hab)

Densidade

(hab / km2)

1600

1650

1700

25.800

. . .

110.700

100.000

170.000

350.000

3,9

. . .

3,2 (41)

5. A primeira metade do século XVIII

5.1 Quadro histórico

1693 – Ouro em Taubaté

1694 – Fundação da Casa da Moeda (Bahia; no Rio de

Janeiro em 1702)

1700 – Tratado de Lisboa

1704-1705 – Ataques espanhóis a Sacramento

1708 – Guerra dos Emboabas

1709 – Criação da Capitania de São Paulo e Minas Gerais

1710 – Guerra dos Mascates

Corsários franceses na Costa do Rio de Janeiro

1715 – Tratado de Utrecht

1720 – Criação da Capitania de Minas Gerais

Brasil Vice-Reinado

1725 – Criação de Casas de Fundição

1729 – Diamantes em Serro Frio

1735-1737 – Ataques espanhóis a Sacramento

1744 – Criação da Capitania de Goiás

1747 – Primeira tipografia no Rio de Janeiro

1749 – Capitania de Mato Grosso

1750 – Tratado de Madrid

1763 – Mudança da capital para o Rio de Janeiro

5.2 Ciclo da mineração (1693-1760)

Condicionamentos externos:

- importância do ouro como moeda internacional;

42

42

- mercantilismo – crisofilia (procura constante desde o

Descobrimento: entradas, bandeiras).

Condicionamentos internos:

- condições naturais: ouro e diamantes a flor da terra em

grandes quantidades;

- mão-de-obra: novos colonos ou atraídos de outras zonas;

importação de escravos;

- tecnologia: bastante simples, conhecida na Metrópole e

até pelos negros;

- capitais: necessidade de pouco capital (escravos,

equipamento); transferido de outras zonas, trazido pelos

novos colonos ou criado pela própria mineração.

Funcionamento:

- descoberta de ouro em Taubaté (1693); extensão para

Mato Grosso e Goiás; diamantes em Serro Frio (1729);

- fiscalismo: quinto do ouro (1735-1750: capitação);

derrama; monopólio dos diamantes (1731);

- obrigação da cunhagem (Casas de Fundição);

- medidas de defesa em relação ao contrabando

(organização administrativa na região da mineração);

importância do contrabando (20% de produção);

- entrada maciça de novos colonos na região da mineração

(guerra dos Emboabas);

- queda da produção na segunda metade do século XVIII;

excesso do fiscalismo (Inconfidência Mineira -Tiradentes –

1789). (42)

Efeitos:

- exportação: no período colonial, £ 170 milhões (31,7%

da exportação total);

- importante fonte da receita para a Coroa;

- criação de renda (no período colonial, 19,0% da Renda

Interna total);

- reflexos sobre outras atividades (comércio, artesanato);

43

43

- elevação (passageira, dos níveis de consumo; urbaniza-

ção (comércio, artesanato, administração);

- novas classes (parcialmente desaparecidas após a queda

do ciclo – proletariado rural e urbano);

- monetização da economia;

- elevação dos preços (inflação) na região mineira. (43)

6. De meados do século XVIII até a Mudança da Corte

6.1 Quadro histórico

1750-1777 – O marquês de Pombal, secretário de Estado

1751 – Criação do Estado do Grão-Pará e Maranhão

1759 – Expulsão dos jesuítas

1762 – Capitulação de Sacramento

1763 – Mudança da capital para o Rio de Janeiro

1772 – Criação do Estado do Maranhão e Piauí

1774 – Escolas Régias no Rio de Janeiro e

São João del Rei

1778 – Guerra da Independência dos Estados Unidos

1789 – Revolução Francesa – Revolta no Haiti

Inconfidência Mineira

1798 – Conjuração Baiana

1802 – Revolta em São Domingos

1807 – Bloqueio Continental

Criação da Capitania do Rio Grande do Sul

1808 – Mudança da Corte para o Rio de Janeiro

6.2 Hiato econômico – Subciclo do algodão

- queda do ciclo da mineração (esgotamento das r eservas

facilmente alcançáveis);

- contínua decadência do açúcar (entretanto, pequeno res -

surgimento após a revolta nas Antilhas, destruindo ins -

talações e eliminando temporariamente um concorrente);

golpe definitivo com o aparecimento do açúcar de

beterraba;

- fraqueza da economia de subsistência;

- medidas de defesa:

44

44

- constituição da Companhia Geral do Comércio do

Grão-Pará e Maranhão (1755-1777) e da Companhia

Geral do Comércio de Pernambuco e Paraíba (1759-

1780);

- políticas de Pombal: criação da Mesa de Inspeção

(1759), maior liberdade de navegação (1765), redução

dos fretes marítimos (1766);

- proibição das indústrias (1785).

Subciclo do algodão

Condicionamentos:

externos: revolução Industrial na Inglaterra: demanda

maior de algodão; guerra da Independência

norte-americana: falta de matéria-prima norte-

americana.

internos: condições ecológicas (planta indígena); mão -

de-obra escrava (índia); pouca necessidade de

capital;

- Sustentação da balança comercial: exportação £

12.000.000 durante o período colonial (2,2% da expor-

tação total);

- Ligação com o setor autônomo (consumo local);

- Criação de renda (importância regional: Norte).

Resultados do período

- queda da exportação;

- queda da Renda Interna;

- crescimento relativo (embora em condições precárias) do

setor autônomo da economia;

- queda da exportação per capita (£ 2 9/10 em 1750, £ 1

1/10 em 1800) e da renda per capita (£ 4 8/10 em 1750, £

2 2/3 em 1800).

45

45

6.3 Panorama do século XVIII

- Nova variação cíclica graças à mineração; depois, queda

da exportação (porém menor, graças à intervenção de

outros produtos); contudo, ligeiro crescimento da renda

(graças ao desenvolvimento relativo ao setor autônomo)

(44).

Exportação (E) Renda Interna (RI)

Setor autônomo

(RI-E)

£ 1000 variação

%

£ 1000 variação

%

£ 1000 variação

%

1700

1750

1800

2.400

4.300

3.500

– 40%

+ 79%

– 19%

4.000

7.200

8.800

– 20%

+ 80%

+ 22%

1.600

2.900

5.300

+ 60%

+ 81%

+ 83%

- Composição da exportação:

1700 1750 1800

£ 1000

% do

total £ 1000

% do

total £ 1000

% do

total

açúcar

pau-brasil

fumo

couro

mineração

algodão

1.800

45

. . .

100

310

. . .

75%

2%

. . .

4%

13%

. . .

2.000

30

100

110

2.035

. . .

47%

0

2%

2%

47%

. . .

1.100

60

225

200

855

200

31%

0

6%

6%

24%

6%

- Expansão territorial e demográfica:

Área ocupada

(km2)

População

(hab)

Densidade

(hab / km2)

1700

1750

1800

110.700

. . .

324.000

350.000

1.500.000

3.300.000

3,2

. . .

10,2 (45)

46

46

NOTAS (1) Frédéric Mauro, LXXIX, pág. 10. (2) Apesar da insistência quanto à necessidade de quantificar a História Econômica do Brasil, como metodologia analítica, enfatizei sempre a importância primordial do conjunto dos fatores culturais em que se processa o desenvolvimento econômico (v. Mircea Buescu-Vicente Tapajós – XXI). (3) Não se pode negar a precariedade dos estudos quantitativos referentes a épocas remotas em que as informações estatísticas são muito escassas, principalmente por causa do desinteresse dos cronistas pela quantificação do fenômeno social até, pelo menos, o século XVI (v. John V. Nef – LXXXVI bis). Caso típico é a crítica feita a Earl J. Hamilton pela precariedade dos cálculos sobre a evolução dos preços nos séculos XVI e XVIII. Evidentemente, os cálculos devem ser aceitos com cautela, mas de qualquer forma a tentativa de quantificação represen tou um progresso com vistas a uma interpretação mais objetiva do fenômeno. Como diz Frédéric Mauro, “o que fez é melhor que nada” (op. cit., pág. 18). Os estudos publicados no presente volume são tentativas no mesmo sentido – e sou o primeiro a compreender as limitações de tais “exercícios” de quantificação. Insisti em quão audaciosa é a tentativa de calcular a renda inte rna do Brasil em 1600 (v. infra, págs. 81-90: “BRASIL 1600”), mas achei que este é o caminho para um estudo mais objetivo do passado brasileiro. Tive a satisfação de encontrar um apoio, embora não referente ao meu estudo, em Frédéric Mauro (op. cit., pág. 28): “Mas, será objetado, para que serve estudar a renda nacional do século XVII, quando, naquela época, ninguém pensava nisso? Duas razões para fazê-lo nos parecem essenciais. De uma parte, é este o único meio de compreender a organização de conjunto da economia nesta época e de opô-la à organização das economias seguintes. De outra parte, é este o único meio de compreender as flutuações a longo prazo desta economia, de discernir as variáveis mais interessantes para estudar, de precisar seu valor e sua significação”. (Para a perspectiva da evolução da renda no Brasil, v. infra, o gráfico da pág. 224). (4) O livro citado de Frédéric Mauro, depois de adotar, teori-camente, as mesmas posições quanto à metodologia da História Econômica, contém vários estudos enquadrando-se nas duas

47

47

etapas mencionadas. De um lado, pesquisas quantitativas micro e macroeconômicas contribuindo para o conhecimento do compor-tamento da economia em várias épocas: atividades do mercador Fernão Martins na primeira metade do século XVII, contabilidade do Engenho Sergipe do Conde na mesma época, análise do livro -razão de Antônio Coelho Guerreiro no fim do século XVII e o início do século XVIII. De outro lado , sínteses como o “Império Português e o Comércio Franco-Português nos meados do século XVIII”, ou, sobretudo, o brilhante estudo “Acerca de um modelo intercontinental: a expansão ultramarina européia entre 1500 e 1800”. (Sobre o assunto, v. do mesmo autor – LXXVIII).

(5) É o caso dos excelentes trabalhos divulgados pelos

“ESTUDOS HISTÓRICOS” da Faculdade de Filosofia, Ciências e

Letras de Marília – exemplo de dedicação e entusiasmo pela

pesquisa histórica.

(6) Oliver Ónody – LXXXVIII.

(7) v. infra, págs.244-249: “Preço de escravos no século XIX”.

(8) T. von Leithold – L. von Rango – LXX.

(9) Thomas Davatz – XLI. Um livro excelente cujas fontes de

informação foram, também, os anúncios de jornal, mas que

oferece igualmente poucas possibilidades de comparação entre os

preços no período imperial: Delso Renault – CII.

(10) v. infra, págs. 250-268: “Café, câmbio e inflação no Brasil

(1850-1900)”. Outro caso interessante é aquele da “política da

defesa do nível de renda” durante a Grande Crise de 1929, através

da compra e da queima pelo Governo dos excedentes de café: v.

uma refutação da tese tradicional em Carlos Manuel Pelaez – XC.

(11) v. na bibliografia final os grandes trabalhos de Capistrano de

Abreu, Roberto Simonsen, Afonso Taunay, Celso Furtado,

Maurício Goulart e outros.

(12) No que concerne à quantificação da economia brasileira em

fins do século XVI por Celso Furtado, v. infra, págs. 81 -90:

“Brasil 1600”. Quanto à reconsideração da estimativa feita por

48

48

Simonsen para a receita da exportação no período colonial, v.

infra, págs. 196-198: “Sobre o valor da exportação colonial”.

(13) Foi esta a técnica que utilizei para o cálculo da Renda Interna

no fim do século XVI – v. infra, págs. 81-90: “Brasil 1600”.

(14) Frédéric Mauro (LXXiX, pág. 78), insiste, com razão, nessa

pesquisa. Exemplos de levgantamentos dessa natureza encontram -

se nos grandes trabalhos de Pierre Chaunu – XXXIX bis e do

próprio Mauro – LXXVI.

(15) v. infra, págs. 201-208: “Notas sobre o volume da importação

de escravos”; págs. 209-218: “Novas notas sobre a importação de

escravos”.

(15 bis) Enquanto se aprontava o presente livro, um grupo de

professores e alunos, do qual faz parte o autor, constituiu o Centro

de Pesquisas de História Econômica do Brasil (CEPHEB). Espera-

se que, com o tempo, este Centro consiga preencher a lacuna

apontada no texto.

(16) v. infra, págs. 81-90: “Brasil 1600”; também, M. Buescu – V.

Tapajós – op. cit., pág. 166.

(17) Teodoro Oniga LXXXVII bis.

(18) As mesmas ponderações são válidas a respeito das esti -

mativas feitas por Sérgio Nunes de Magalhães Junior (LXXII bis);

v. infra, págs. 272-279: “A Renda interna (1920-1940): uma

tentativa de quantificação”.

(19) M. Buescu – V. Tapajós – ibidem.

(20) O mercantilismo pode ter sua filosofia sintetizada no sorites:

o poder é dado pela riqueza; a riqueza é dada pelos metais

preciosos; os metais preciosos são dados pela balança comercial

superávitária.

(21) Para certas limitações a essas características, v. Mircea

Buescu – Vicente Tapajós – XXI – págs. 24-25.

49

49

(22) Podem ser chamados “anticiclos” na medida em que

contribuíram para interiorizar a economia – conf. M. Buescu – V.

Tapajós – op. cit., pág. 25.

(23) Sobre o fim do ciclo do pau-brasil, v. infra, págs. 45-50:

“Novas indicações sobre o primeiro século do Brasil”.

(24) Sobre o fim do ciclo do açúcar, v. infra, págs. 109 -131: “O

Engenho Sergipe do Conde no século XVII: um levantamento

quantitativo”.

(25) v. infra, págs. 74-80: “Contribuição para a história do

subciclo do gado”.

(26) v. Roberto C. Simonsen – CXII, págs. 63-64 – um cálculo

sobre a rentabibilidade do ciclo.

(27) Sobre a persistência do ciclo do pau-brasil, v. infra, págs. 45-

50: “Novas indicações sobre o primeiro século do Brasil”.

(28) v. Vicente Tapajós – CXXI.

(29) Sobre a rentabilidade do escravo, v. M. Buescu – V. Tapajós

– XXI, pág. 124.

(30) v. supra, págs. 45-50: “novas indicações sobre o primeiro

século do Brasil”.

(31) v. infra, págs. 169-174: “Uma controvérsia em torno de

Antonil”.

(32) Sobre os direitos dos donatários – V. Tapajós – CXXI.

(33) v. infra, págs. 139-149: “Invasão holandesa no século XVII:

perdas da economia açucareira”. Dois livros são fundamentais:

Hermann Wätjen – CXXXIX e C. R. Boxer – XIII.

(34) A quantificação da exportação colonial foi feita por Roberto

Simonsen (CXII). Sobre uma possível reavaliação dos números, v.

infra, págs. 196-198: “Sobre a exportação colonial”.

50

50

(35) Sobre a vida social da época, é fundamental o livro de

Gilberto Freyre – LIV.

(36) A importância relativa do gado aparece quando relacionamos

o número de cabeças existentes em 1600 (650.000) com o número

de habitantes (100.000): isso dá 6,5 cabeças por habitante. No

Brasil de 1960, a relação não passava de 0,8.

(37) v. infra, págs. 167-168: “Panorama do século XVII”.

(38) Sobre a decadência do setor açucareiro, v. infra, págs. 169 -

174: “Uma controvérsia em torno de Antonil”.

(39) v. infra, págs. 189-193: “A economia do fumo segundo

Antonil”.

(40) As estimativas aqui alinhadas, forçosamente precárias , são

resultado de um método de cálculo que foi exposto em M. Buescu

– V. Tapajós – XXI, págs. 132-140.

(41) A queda da densidade (N.B.: em relação à área econo -

micamente ocupada) pode ser interpretada como reflexo do sub -

ciclo do gado, atividade tipicamente extensiva.

(42) Livro fundamental é o de C. R. Boxer – XII.

(43) Informações valiosas em Andreoni (Antonil) – IV.

(44) Detalhes quantitativos em M. Buescu – V. Tapajós – XXI –

Para um balanço da Colônia, v. infra, págs. 219-224: “Desen-

volvimento econômico do Brasil – raízes históricas”.

(45) Numa economia de agricultura extensiva, o aumento da den -

sidade demográfica, não acompanhado por progressos tecnoló -

gicos, poderia explicar, em parte pelo menos, a queda global da

renda “per capita”.

(Transcrito de História Econômica do Brasil , Rio de Janeiro:

APEC, 1970, págs. 25-33).

51

51

OS TRÊS PRIMEIROS SÉCULOS

52

52

A ECONOMIA AÇUCAREIRA EM 1600

E OS SEUS ASPECTOS QUANTITATIVOS

O fenômeno econômico é essencialmente

quantificável. Pelo caráter específico do seu suporte

material o valor econômico, ao contrário das outras

categorias axiológicas, apresenta duas dimensões: ao

lado das conotações qualitativas, definem-no, e de

maneira mais patente, as conotações quantitativas. Não

deve ser exagerado o mérito destas últimas, pois atrás

do quantitativo, de aparência rigorosa, sempre aparece o

qualitativo – mas, do ponto de vista formal, a

quantificação resolve o problema, como, por exemplo, o

preço unido do mercado estabelece o equilíbrio aparente

entre as partes, embora tenha, muito provavelmente,

significado qualitativo diferente para cada uma delas. A

apreciação objetiva do fenômeno econômico no seu

desenrolar histórico ficará extremamente precária se não

se basear na quantificação. Como se poderá falar

objetivamente em progresso ou retrocesso se a

afirmação se sustenta, apenas, em sinais exteriores, bem

precários?

Afirmar a necessidade da quantificação na

História Econômica não significa minimizar as

dificuldades de empreendê-la por falta de documentos.

Como se sabe, a tendência de precisar o fenômeno

53

53

social em termos numéricos é hábito recente que,

mesmo na Europa, mais avançada culturalmente, não

apareceu antes da segunda metade do século XVI.(1). É

fácil imaginar a penúria de elementos num Brasil

Colonial que a Metrópole manteve em quarentena

cultural. Contudo, as informações existem: por exemplo,

se em 1618, Brandônio, apesar de sua origem e

profissão, se apega bastante pouco aos números,

Gandavo, uns 70 anos antes, já tratava em termos

quantitativos a economia açucareira incipiente.

Lá onde os dados faltam, poder-se-á interpolar ou

extrapolar – método matemático de usar a imaginação.

Deverá aplicar-se com cautela e prudência, exigindo-se

que a construção resultante seja racional e coerente. Não

será fácil chegar a uma quantificação de uma certa

amplitude, abrangendo todo o passado da economia

brasileira. Até lá, será preciso juntar dados, conferi -los,

completá-los, construindo-se, aos poucos, a imagem

quantificada. Brilhante exemplo foram dados por

Roberto Simonsen(2) e Celso Furtado(3). Tentativas

mais ousadas, portanto mais aleatórias, foram feitas num

livro meu, em co-autoria com o Prof. V. Tapajós (4).

A necessidade de reconsiderar e conferir alguns

dados tornados tradicionais aparece ao analisar-se um

documento recentemente elaborado pelo XXI Curso da

CEPAL – BNDE (5).

Não vou referir-me aos valores indicados em

várias ocasiões e transformados em moeda atual, pois

parecem mais um erro gráfico. Por exemplo, diz-se que

o rendimento do açúcar era de “300.000 cruzados ou

54

54

Cr$ 28 mil”. O equívoco é evidente. Simonsen fala em

28 contos da sua época. Na realidade, 300 mil cruzados

do início do século XVII correspondiam a 120 contos

daquela época, ou seja, pouco mais de £ 115.000 (ouro).

Em valor atual (numa equiparação muito precária

quando se trata de épocas tão distantes), seriam cerca de

US$ 955.000.

Essa confusão entre valores atuais e valores da

época de Simonsen (que também não teve o cuidado de

indicar o que era objetivamente o valor da moeda da sua

época) repete-se em várias ocasiões, Mais grave é a

imprecisão de um trecho referente ao rendimento total

do pau-brasil durante 30 anos de exploração. Indica-se a

soma de 120.000 contos, porém sem precisar-se em que

moeda. Poderia presumir-se que se trata da moeda do

século XVI, mas, então, o valor indicado seria 100 vezes

o calculado por Simonsen para toda a exportação

colonial do pau-brasil, isto é, em 300 anos, e não apenas

em 30. Cem vezes o valor e dez vezes o período, a

diferença seria de 1 para 1.000. Isto mostra mais uma

vez a necessidade de adotar-se um instrumento de

medição objetivo e unitário na quantificação do passado

(6).

Incidentalmente, vale lembrar, também, os núme-

ros indicados no Relatório CEPAL-BNDE a respeito da

população escrava, quando se diz que “em 1700 já havia

três milhões (de escravos) aproximadamente”. Ora, de

acordo com as fontes mais seguras de informação e

cálculo, toda a população do Brasil em 1700 devia

situar-se em torno de 350 mil almas. Como pode

55

55

explicar-se o número de três milhões inscritos en toutes

lettres no Relatório? Nem um eventual erro gráfico

(1700 em vez de 1800) salva a situação. Em 1800 o

Brasil tinha aproximadamente 3.300.000 habitantes, do

que resultaria que a população escrava teria

representado 91% do total – o que seria um absurdo

evidente. Admite-se que no ponto culminante da

participação dos escravos na composição demográfica,

no período 1750-1800, essa participação devia ser de

cerca de 50%.

Voltando para a economia açucareira, vale a pena

confrontar, mais uma vez, os números concernentes à

produção de açúcar em 1600. Repetindo Porto Seguro

(apesar das sérias restrições feitas por Simonsen), o

Relatório CEPAL-BNDE indica 120 engenhos “com

produção de 70.000 caixas de 10 quintais a unidade”.

Uma pequena análise mostra, entretanto, a incoerência

da informação: 70.000 caixas a 10 quintais são 700.000

quintais ou cerca de 41 milhões de quilos ou 3,7 milhões

de arrobas. Divididos entre 120 engenhos, estes 3,7

milhões de arrobas dariam 30 mil arrobas por engenho e

por ano.

Ora, as informações são abundantes no sentido de

que a produção anual de um engenho, por maior que

fosse, era muito mais modesta. Em 1570, Gandavo

falava numa média de 3.000 arrobas por ano, e outra

informação sua sugeriria ainda menos (cita, para a

Bahia, uma produção excepcional de 50.000 arrobas

para 23 engenhos – pouco mais de 2.000 arrobas por

engenho). Brandônio, em 1618, diz que havia engenhos

56

56

pequenos de 3 a 5.000 arrobas e outros, maiores,

constituindo provavelmente a maioria, de 6 a 10.000

arrobas. Laet, na época da ocupação holandesa, dá um

mínimo de 3.000 e um máximo de 8.000. O próprio

Relatório CEPAL-BNDE adota os extremos de 3.000 e

10.000 arrobas. Como poderiam ser 30.000?

Mesmo adotando, conforme a advertência de

Simonsen (baseada na informação de Antonil), o peso de

35 arrobas por caixa, as 70.000 caixas dariam 2.450.000

arrobas, as quais, divididas para 120 engenhos,

corresponderiam a pouco mais de 20.000 arrobas por

engenho e por ano o que é, também, inadmissível (7).

O problema deve ser reconsiderado sob os dois

aspectos, do número de engenhos e da produção, a fim

de se chegar a um conjunto coerente de dados. No que

tange ao primeiro aspecto, deve-se, mais uma vez (8), e

apesar da autoridade de Varnhagen e Capistrano de

Abreu (que aderiu ao cálculo – cf. prefácio aos Diálogos

das Grandezas do Brasil), verificar se o número de 120

engenhos para o ano de 1600 é sustentável. Este exame

crítico parece ousado face à aceitação, quase unânime,

do número oferecido por Varnhagen, aceito en passant

por Capistrano, discutido, porém sem conclusão

definitiva, por Simonsen, adotado por Celso Furtado e,

finalmente, pelo Relatório CEPAL-BNDE.

Um levantamento das principais informações a

esse respeito permite estabelecer o seguinte quadro, com

os engenhos apontados pelos respectivos informantes

nas várias Capitanias do Brasil (9):

57

57

1570 1583 1584 1587 1612 1627

Rio Grande

Paraíba

Itamaracá

Pernambuco

Bahia

Ilhéus

Sergipe

Porto Seguro

Espírito Santo

Rio de Janeiro

São Vicente

-

-

1

23

18

8

-

5

1

-

4

-

-

-

66

36

3

-

1

6

3

-

-

-

-

60

40

-

-

2-3

4-5

-

3-4

-

-

3

50

36

6

-

2

6

2

3

1

12

10

99

50

5

1

1

-

-

-

-

18-20

18-20

100

50

-

-

-

-

40

-

Fontes: 1570 – Gandavo; 1583 – Fernão Cardim; 1584 – Anchieta; 1587 –

Gabriel Soares; 1612 – LIVRO DE DÁ RAZÃO DO ESTADO DO BRASIL;

1627 – Frei Vicente do Salvador.

Observa-se que nenhuma fonte abrange todas as

Capitanias. Portanto, para estabelecer a situação de

1600 deve-se proceder a uma corroboração, e a uma

interpolação dos dados disponíveis. Mas será possível

admitir que o número de engenhos cresceu de 60 em

1570 para 115 em 1583, isto é, de 90% em 13 anos,

para, depois, passar em outros 17 anos (de 1583 a 1600)

de 115 para 120, ou seja, um crescimento de apenas 3%?

A época foi de intensa expansão do ciclo, e o fato é que,

em 1627, corroborando os dados de Frei Vicente do

Salvador com os anteriores, pode-se aceitar um número

global de 240 engenhos.

Comparando-se os dados existentes, constata-se,

como era previsível, a redução da taxa de crescimento –

em decorrência da elevação dos números absolutos. No

período 1583/1612 é de 2-2,5%: em 1612/1627 é pouco

58

58

superior a 1%. Isto permitiria a interpolação da taxa de

crescimento de 3 a 4% para o subperíodo de 1583 a

1600. As várias hipóteses poderiam levar a cifras entre

160 e 190 engenhos em 1600, porém, face à informação

do Livro que dá Razão, etc., pareceria mais plausível a

cifra menor, 160 ou170 engenhos. O número poderia ser

ligeiramente aumentado levando-se em conta as

inevitáveis omissões das fontes informadoras. Isto nos

levaria perto de 200 engenhos em 1600, bem longe dos

120 tradicionalmente admitidos.

Se, outra vez, ao tentar quantificar a economia

açucareira, em 1600, adotei o número de 200 engenhos

foi para chegar a um conjunto coerente de dados, pois ,

aceitando a quantidade anualmente exportada de açúcar ,

tal como foi calculada sob a autoridade de Simonsen

(1.200.000 arrobas), chega-se à média de produção

anual de 6.000 arrobas por engenho, que parece

adequada, conforme as informações já citadas sobre a

capacidade produtiva dos engenhos. Afinal de contas,

poder-se-ia dizer que, face à penúria de dados, o número

de 200 é apenas indicativo, e 190 ou 180 engenhos são

da mesma ordem de grandeza. Pareceria ate que o

número mais baixo – de 160 engenhos – seria coerente,

pois corresponderia à média anual de 7.500 arrobas

(contando que se aceite o volume global de 1.200.000

arrobas por ano, e não mais). Isso sugeriria que os

pequenos engenhos eram muito poucos – o que, em

termos gerais, está certo. Mas até que ponto a maioria

era de engenhos de 7,8 ou 10 mil arrobas? Proceda-se,

como exercício, a imaginar uma distribuição de

59

59

engenhos, com a maioria de capacidade de 8-10.000

arrobas, mas admitindo-se, também, a existência de

engenhos médios e pequenos, ainda que em reduzida

proporção, e verificar-se-á difícil admitir a média de

7.500 arrobas por engenho. Por isso, parece-me mais

plausível uma cifra aproximando-se de 200 engenhos.

Uma pesquisa mais detalhada da produção dos engenhos

ajudará à elucidação da questão (10).

Essa pesquisa não seria tão estéril quanto poderia

parecer à primeira vista. É com base em informações

setoriais desse tipo que se poderá proceder à construção

de uma imagem mais objetiva, quantificada, da

realidade econômica do Brasil histórico (11) .

NOTAS

(1) John U. Nef. – LXXXVI bis.

(2) Roberto C. Simonsen – CXII. Parece-me, contudo, que certos

números deveriam ser reconsiderados. V. infra: “Sobre o valor da

exportação colonial”, (págs. 196 -198).

(3) Celso Furtado – LVI. Há excelentes tentativas de

quantificação macroeconômica dos ciclos açucareiro e mineiro,

bem como de outras épocas e setores. Demonstrei, entretanto, em

outra ocasião, que o confronto dos dados fornecidos para o ano de

1600 mostrava certa incoerência (V. infra, págs. 81 -90).

(4) Mircea Buescu – Vicente Tapajós – XXI.

(5) A Economia do Nordeste vista pelo XXI Curso da CEPAL -

BNDE (JORNAL DO BRASIL – 27.10.1967).

60

60

(6) M. Buescu – V. Tapajós, op. cit., págs. 30 e 145.

(7) Rocha Pombo (Simonsen – op. cit., tabela da pág. 382) admite

200 engenhos e 2.800.000 arrobas por ano – o que daria, ainda,

14.000 arrobas em média por engenho, bem acima do máximo

indicado por todas as fontes.

(8) Para uma primeira análise, v. M. Buescu – V. Tapajós, op. cit.,

págs. 21-22.

(9) Brandônio não figura por ser sua informação totalmente

imprecisa: em Pernambuco os engenhos são “infinitos”, na Bahia

são “muitos”, na Paraíba “não poucos”, no Espírito Santos

“alguns”, e assim por diante (v. infra, pág. 92).

(10) A pouca probabilidade da média de 7.500 arrobas por

engenho aparece, por exemplo, da leitura das contas do Engenho

Sergipe do Conde (o admirável levantamento feito pelo Dr. Gildo

Moura, sob a égide do IAA e publicado no II volume de

DOCUMENTOS PARA A HISTÓRIA DO AÇÚCAR – XLVI).

Num grande engenho, como aquele, a produção média anual

oscilava em torno de 10.000 arrobas. Não se deve esquecer que as

informações mais numerosas se referem a médias menores:

Gabriel Soares dá 120.000 arrobas para 40 engenhos na Bahia/

Fernão Cardim, 350.000 arrobas para 115 engenhos. Nestes, a

média situa-se em torno de 3.000 arrobas.

(11) Assim foi tentada uma quantificação da Renda Interna e da

Renda per capita em 1600, para comparação, mediante

interpolações, com as épocas subseqüentes: v. M. Buescu – V.

Tapajós, op. cit., págs. 165-168 e 174-176; v. também infra, págs.

81-90.

(Transcrito de História Econômica do Brasil. Rio de Janeiro:

APEC, 1970, págs. 62-67).

61

61

SOBRE O VALOR DA EXPORTAÇÃO

COLONIAL

Roberto Simonsen foi um grande pioneiro na

tarefa árdua de quantificar a economia colonial

brasileira, partindo de dados esparsos, incompletos e

incertos. (1) Outros trabalhos foram feitos com o mesmo

intuito, mas nenhum, excetuando-se as tentativas de

Celso Furtado, com mesmo sentido amplo de oferecer

uma visão global da economia brasileira, em termos

numéricos, objetivos. (2)

A sua estimativa do valor da exportação colonial

tornou-se ponto pacífico e indiscutível: £ 536 milhões,

das quais £ 300 milhões a cargo do açúcar. O quadro

que ele redigiu o seu clássico tratado (3) indica,

segundo diversas fontes, os valores da exportação de

açúcar em várias épocas, escolhendo aqueles que lhe

pareceram mais válidos.

Não se trata, nesta pequena nota, de proceder à

análise crítica das fontes e, conseqüentemente, dos

valores-base adotados para a construção do quadro

global. Quero apontar apenas – data venia – uma

contradição interna nos próprios dados adotados por

Simonsen, aspecto até agora despercebido pelos

estudiosos.

62

62

Para isso, é suficiente dirigir um olhar

“estatístico” para o gráfico que consigna, no mesmo

local do livro, as conclusões estatísticas, referentes à

exportação de açúcar. Numa apreciação muito

aproximada, mas válida como ordem de grandeza,

encontram-se as seguintes posições:

Período

Nº de

anos

Valor médio

(£ 1000)

Valor do período

(£ 1000)

(a) (b) (a x b)

1536-1570

1571-1580

1581-1600

1601-1630

1631-1641

1642-1650

1651-1670

1671-1710

1711-1760

1761-1776

1777-1783

1784-1795

1796-1814

1815-1820

1821-1822

35

10

20

30

11

8

20

40

50

16

7

12

19

6

2

300

450

1.500

2.400

3.100

3.600

3.000

2.000

2.000

1.900

1.600

1.300

1.200

1.800

2.300

10.500

4.500

30.000

72.000

34.100

28.800

60.000

80.000

100.000

30.400

11.200

15.600

22.800

10.800

4.600

Total 286 anos ------- 515.300

O resultado agregado é bem diferente do valor

indicado por Simonsen: £ 5151 milhões, contra £ 300

milhões, ou seja, 71,6% a mais. Evidentemente, nessas

condições, a exportação total não podia ser de £ 536

milhões, e um cálculo semelhante ao do acima leva a um

valor de, aproximadamente, £ 752 milhões, ou seja,

40,3% superior ao de Simonsen. (4)

63

63

Onde está a verdade? Nos dados parciais que

levam ao valor global de £ 752 milhões, ou no dado

global de £ 536 milhões? De qualquer forma, a opção só

poderá ser feita depois de novas pesquisas e

levantamentos. Uma modificação das conclusões, até

agora admitidas a esse respeito, terá vários reflexos não

destituídos de importância. É suficiente considerar que,

com o novo valor global da exportação e admitindo uma

tributação metropolitana, direta e indireta, de 60% do

valor exportado, a espoliação colonial subiria de £ 322

milhões para £ 451 milhões, valor-ouro. Uma diferença

de £ 129 milhões – ou seja, 948 toneladas de ouro ou, de

uma forma bem aproximada, mais de um bilhão de

dólares, em valor atual constitui elemento objetivo para

apreciar o ônus do colonialismo.

NOTAS

(1) Roberto C. Simonsen – CXII.

(2) Celso Furtado – LVI. Tentativas foram feitas, também em M.

Buescu – V. Tapajós – XXI.

(3) Roberto C. Simonsen – op. cit., - quadro e gráfico entre as

páginas 381 e 383.

(4) Observe-se que, conforme esses novos números, a participação

do açúcar na exportação colonial, seria muito maior do que

conforme o cálculo global de Simonsen (68,5%, contra 56,0%).

(Transcrito de História Econômica do Brasil , Rio de Janeiro:

APEC, 1970, pág. 196-198).

64

64

SÉCULO XIX

65

65

NOTA INTRODUTÓRIA

Mircea Buescu não dividiu por séculos a história

econômica de nosso país. Essa opção é da res -

ponsabilidade do organizador, com vistas à sim-

plificação da tarefa. Essa simplificação, contudo, não

constitui nenhuma violação de seu pensamento, como

explico nesta breve Nota.

Tendo chegado ao Brasil em 1949, vê-se que no

texto que divulgou, menos de vinte anos depois, na

segunda metade da década de sessenta, revelava pleno

domínio da língua portuguesa. Contudo, tornar-se-ia a

única síntese global de sua lavra. Tenho em vista a

História do História do Desenvolvimento Econômico

do Brasil (1967). Sentiu necessidade de respaldá-la com

a presença do conhecido historiador (Prof. Vicente

Tapajós – 1917/1998), certamente por considerar

insuficiente o seu domínio da História do Brasil. Toda a

volumosa – e de excepcional qualidade – obra posterior

corresponde a aprofundamento de determinados

aspectos, de retificações de maior precisão de avaliações

ali constantes, bem como de complementação do

processo básico que se acha apenas esboçado naquela e

nas obra que de imediato lhe seguiram, vale dizer, a

industrialização.

66

66

Assim, por exemplo, o primeiro livro subsequente

– História Econômica do Brasil: APEC, 1970 – resulta

do curso que ministrava na PUC-RJ e além do programa

de que se valia para ministrá-lo “Esquema de História

Econômica do Brasil”, antes transcrito, consiste de

ensaios de aprofundamento de temas relacionados aos

primeiros séculos, notadamente à economia açucareira.

Vê-se como soube valer-se da documentação disponível

a fim de obter coeficientes capazes de produzir

consistente quantificação do processo econômico. Acha-

se nesse caso o exame minucioso que efetivou da

documentação divulgada da atividade produtiva do

“Engenho Sergipe do Conde”, no século VII. Embora,

pelas características do tipo de divulgação que se

pretende com esta seção (LEITURA BÁSICA) não seria

adequado transcrever a todos, acredito que a amostra

selecionada é representativa. Além disto, foi o próprio

Buescu que reuniu em separado os ensaios que dedicara

àquele período de nossa história.

Evolução econômica do Brasil – de poucos anos

depois, 1974 – tem certamente maior amplitude desde

que, além de aprofundar a caracterização dos diversos

ciclos econômicos, refere aquilo a que corresponderia a

sua superação, isto é, a nova dinâmica representada pela

industrialização. Ainda assim, o maior desenvolvimento

ali existente diz respeito ao século XIX, notadamente ao

ciclo do café. A temática que efetivamente mereceria a

denominação de complementação da revolução indus-

trial, com base no programa estabelecido pela Comissão

Mista Brasil-Estados Unidos – da qual origina-se o seu

67

67

efetivo suporte, o BNDE – é posterior ao período

considerado.

O ápice da industrialização (década de setenta) e

problemática subseqüente (inflação, década perdida;

etc.) mereceria abordagens muito expressivas, em en-

saios autônomos. Devido a esse entendimento, pareceu-

nos que expressaria melhor a inteireza de sua con-

tribuição que transcrevêssemos – como século XIX -, os

estudos que o próprio autor subdividiu em primeira e

segunda metade daquele século, deixando assim, a

abordagem do período subseqüente para consideração

autônoma, inserida a seguir.

68

68

TEXTOS DE MIRCEA BUESCU

69

69

8. DIVISOR DE ÁGUAS

O ano 1808 em que ocorre a transferência da

Corte de Lisboa para o Rio de Janeiro, constitui marco

fundamental na história econômica do Brasil, iniciando

um período de transição, acabado entre 1830 e 1850, em

que se assentam algumas condições indispensáveis para

o futuro crescimento. Os resultados a curto prazo, neste

período, aparecem ainda muito modestos, quase nulos,

mas foi, então, que desapareceram alguns entraves

herdados da colônia e se criaram alguns rudimentos

estruturais favoráveis ao progresso. Daí, constituir-se o

período num verdadeiro “divisor de águas”.

Melhor compreensão da mudança será alcançada

se, primeiro, fizermos o balanço econômico da época

colonial.

8.1 Balanço do modelo colonialista mercantilista

Pode ser feito sob o aspecto quantitativo e

qualitativo:

a) Do ponto de vista quantitativo, a dependência

da renda interna monetária em relação à exportação e a

evolução aleatória desta, submetida a flutuações cícli-

cas, resultaram numa oscilação da própria renda interna

– oscilação esta que se amenizou à medida que crescia,

embora modestamente, a parcela relativa do setor autô-

nomo da economia, isto é, a parcela da renda interna que

70

70

não dependia da exportação. O Quadro 8.1 mostra es tas

flutuações globais a longo prazo.

Mais grave, o esgotamento econômico da colônia

manifesta-se no reduzido crescimento global da

exportação e da renda interna – portanto, da capacidade

de gerar uma renda monetária. Em termos per capita, a

situação é pior, assistindo-se a uma quadra da renda de

£ 30 em 1600 para £ 2,7 em 1800 (v. Anexo II).

Os valores absolutos ficam ainda mais reduzidos

se passamos para a renda nacional, que podia repre-

sentar uns 40% da renda interna. Talvez a queda relativa

seja um pouco menor se admitirmos que o ouro ex-

portado não sofria os desvios para os intermediários

comerciais, como no caso das demais mercadorias.

Seja como for, na véspera da independência, o Brasil

encontrava-se no mais baixo nível de renda per capita da

sua história. Quanto ao setor de subsistência, não-mo-

netário, sempre de muito menor dinamismo e importância

econômica, não podia compensar, com seu crescimento

simplesmente vegetativo, as perdas sofridas no setor

monetário.

Quadro 8.1

Exportação e Setor Autônomo

Exportação

(£ 1000)

Setor

Autônomo

(£ 1000)

Exportação

p.c.

(£)

Setor

Autônomo

p.c. (£)

1600

1650

1700

1750

1800

2.400

4.000

2.400

4.300

3.500

600

1.000

1.600

2.900

5.300

24,0

23,5

6,9

3,3

1,1

6,0

5,9

4,5

2,2

1,6

71

71

b) Vários aspectos qualitativos referentes à

evolução anterior a 1808, têm caráter nitidamente

negativo:

i) O colonialismo representou perda de substância

através de tributos cuja receita se aplicava na metrópole,

monopólios que reduziam o dinamismo e a capacidade

competitiva da economia brasileira, e intermediação

compulsória no comércio internacional, representando

outra perda de substância. O resultado global foi um

nível baixo de renda, a reduzida margem de poupança e

investimento, e a comprovada queda da capacidade de

gerar renda.

As proibições econômicas ligadas à aplicação do

pacto colonial (em produção, transportes, profissões)

impediram a diversificação e o aumento da produção,

bem como a criação de tradições profissionais. A mais

grave foi a proibição, por motivos políticos, de um

sistema educacional, resultando em baixa propensão

para trabalho, tecnologia e poupança, baixo horizonte de

consumo e reduzida motivação desenvolvimentista –

com efeito desastroso para o futuro econômico do país.

A insignificância da classe média pode ser

explicada, entre outras, por esta mesma causa. E,

também, um certo divórcio entre o cidadão e o Estado,

uma vez que este se identificou com a metrópole

espoliadora.

72

72

ii) Os reflexos do mercantilismo já foram

apontados em várias ocasiões, no que precedeu:

organização de uma economia monocultural com vistas

à exportação e, portanto, vulnerável às flutuações

conjunturais; perda de substância, em fatores de

produção ociosos, em decorrência da mudança cíclica;

abandono e fraqueza da economia destinada ao consumo

interno e sua substituição, em muitos casos, por

importações; disparidades regionais de renda; criação de

uma estrutura rural rígida, impedindo o bom

aproveitamento da terra com a mão-de-obra livre

disponível, império do espírito mercantilista, imedia tista

e pouco propenso ao trabalho pioneiro.

iii) A própria expansão territorial em grandes

áreas, sem encontrar obstáculos políticos intrans-

poníveis, apresentou aspectos negativos, embora tenha

permitido alcançar grandes espaços, com variedade de

recursos naturais: criação de núcleos econômicos

isolados a grandes distâncias, resultando reduzida

divisão social do trabalho, dificuldades de intercâmbio e

atrofia do mercado; incentivo para a cultura extensiva e

desincentivo aos investimentos agrícolas; outra vez,

fraqueza da economia destinada ao mercado interno;

desapego à terra, explicado também pelas tradições

índias e negras.

iv) A presença da escravidão constituiu-se em

fator altamente negativo pelo dispêndio no exterior para

a formação de mão-de-obra em vez de ter sido feito

73

73

internamente, incentivando atividades econômicas

adequadas; (o volume da importação de escravos é

controvertido, mas pode-se admitir, para o período

colonial, uma cifra entre 3,5 e 4 milhões de escravos –

ao preço médio de venda no Brasil de £ 30, montando a

mais de £ 1000 milhões; em 1840, um escravo custava

na África 30/40 mil-réis e era vendido no Brasil a

500/700 – outra drenagem de renda para fora); pelo

desestímulo ao investimento em equipamentos e

tecnologia, uma vez que se dispunha de um fator de

produção muito barato; pela marginalização de uma

classe sem recompensa pelo seu esforço produtivo e,

portanto, sem capacidade de dar maior dimensão ao

mercado nacional; pela ineficiência na produção em

decorrência da falta de motivação; pelo desprezo que

jogou sobre o conceito de trabalho, identificado com a

escravidão.

Alguns destes condicionamentos persistiram após

o “divisor de águas”, às vezes até hoje em dia,

explicando percalços e atrasos no processo desen-

volvimentista. Não resta dúvida, entretanto, de que no

período em foco foram removidos alguns elementos

negativos, em primeiro lugar o colonialismo e,

parcialmente, a escravidão. Se o modelo monocultural

de exportação se prolongou através do café, o foi em

outras condições mais favoráveis do que antes. Nocivo,

como se vai ver, foi o seu prolongamento excessivo.

74

74

8.2 Chegada da Corte

As mudanças econômicas provocadas pela

mudança da Corte, em 1808, foram fundamentais.

Na época da chegada de D. João VI, a cidade do

Rio de Janeiro tinha cerca de 50 mil habitantes. A

entrada de 15 mil pessoas com a frota real representava

um aumento de 30%. Em termos de renda, o incremento

foi, sem dúvida, bem maior, visto que se tratava, em

grande parte, de pessoas de altos rendimentos. Há,

contudo, uma ponderação a fazer. Em verdade, a nova

população tinha hábitos de consumo mais elevados, o

que constituía uma demanda potencial. A demanda

efetiva dependia dos níveis de renda. Ora, tratava-se de

pessoas que viviam, sobretudo, a cargo do erário

público, portanto seus rendimentos dependiam da receita

pública e esta, da renda nacional. O problema residia na

capacidade de resposta da oferta, isto é, da mobilização

de fatores de produção. Terra e mão-de-obra, embora

escrava, havia, mas faltavam capital, tecnologia e

espírito empresarial. Sobre os escravos pode-se dizer

apenas que eram distribuídos de forma desequilibrada,

com concentrações em regiões, como as minas, onde as

atividades econômicas estavam, em franca decadência.

Admite-se que os recém-chegados trouxeram

valores orçados em £ 22 milhões (mais de duas vezes o

valor estimado da renda nacional do Brasil), Contudo,

não se diz em que forma entraram aqueles valores, se

imobilizados em jóias, louças ou em dinheiro, por

exemplo. Mesmo a parcela em dinheiro, podia gerar

75

75

apenas uma despesa efetiva de consumo ou,

eventualmente recursos para investimentos. Dado o tipo

social que entrou com a Corte – dignatários,

funcionários, clientela política – a propensão para

investir e o espírito empresarial faziam falta.

Apareceram apenas alguns novos empreendimentos

agrícolas, e mesmo industriais, muito modestos. A

demanda crescente resultou numa pressão inflacionária

que atingiu algo em torno de 35% entre 1807 e 1819.

Vale lembrar, desde já, que a importação sofria o

impacto do bloqueio continental, criando um ponto de

estrangulamento da oferta. O outro prendia-se à própria

incapacidade da produção local. Esta sofria da falta de

renovação tecnológica e de excesso de escravos (talvez

50% da população em 1800). A própria terra, embora

disponível, não havia sido ocupada de forma

satisfatória: em 1800 havia, para cada habitante, 9,8

hectares ocupados; em 1600 eram 25,8 hectares . (v.

Anexo I).

8.3 Política econômica

Várias medidas inovadoras – sem que este termo

seja sempre compreendido num sentido positivo –

merecem análise mais atenta.

8.3.1 Liberalismo

O liberalismo consubstanciado em algumas das

providências da Corte no Brasil foi objeto de críticas,

76

76

Sob o ângulo teórico atual, estas críticas são às vezes

justificadas. Esquece-se, entretanto, que naqueles

tempos o liberalismo era doutrina dominante, e a adesão

de um José da Silva Lisboa aos ensinamentos já

consagrados de Adam Smith é muito explicável.

Acrescente-se que a doutrina liberal estava ligada à

oposição ao colonialismo e aos entraves criados pelo

mercantilismo e pelo pacto colonial. O libelo de João

Rodrigues de Brito, já em 1807, oferece exemplo

expressivo. (1) Quanto à identidade entre a política

liberal e os interesses da Inglaterra, a dominação desta,

naquela época, é um fato histórico, sobretudo em

relação a Portugal que devia pagar um preço econômico

para sua sobrevivência política como potência

colonialista.

Dentro deste contexto podem ser apreciados dois

atos da Corte no Brasil: a abertura dos portos em 1808

e o tratado com a Inglaterra em 1810.

a) O alvará assinado na Bahia em 28 de janeiro de

1808, permitindo a livre entrada dos navios estrangeiros

no Brasil, quebrou o pacto colonial por força dos

acontecimentos que haviam alterado as posições

geográficas metrópole/colônia. Fixada a metrópole na

área colonial, era impossível manter a claustração

colonial, era um contra-senso a metrópole cercear sua

própria liberdade.

Sob ângulo prático, era impossível limitar as

relações comerciais a Portugal, conforme a interpretação

rigorosa do pacto colonial, de vez que a ocupação

77

77

francesa impedia esse comércio. O fechamento total da

economia brasileira era solução inviável. A única

solução econômica que representava, também, um preço

político pago à Inglaterra, era a abertura para o

comércio internacional, em que a Inglaterra detinha

posição preponderante.

Aliás, para um país incipiente que não tinha nada

em termos de infra-estrutura, produção diversificada,

mercado interno, tecnologia e capacidade de capita -

lização, uma solução válida para sair do círculo vicioso

do atraso e da estagnação era aproveitar a demanda

externa para criar renda, e a oferta interna de produtos

primários – o que será feito, um pouco mais tarde,

graças ao café. Outrossim, nem capitais, nem mão-de-

obra imigrante encontravam atrativos num espaço vazio

que não havia ainda saído do jugo colonial e, por cima,

praticava a escravidão. Até 1850, as tentativas de

colonização tiveram resultados modestos – fundação de

Nova Friburgo em 1818, de São Leopoldo em 1824 – ou

mesmo a experiência de Nicolau Vergueiro (1847).

b) O tratado de 1810 com a Inglaterra (renovado

em 1827) teve, sem dúvida, caráter leonino. A con-

cessão de um direito alfandegário de apenas 15% para as

mercadorias importadas da Inglaterra quando as próprias

mercadorias portuguesas pagavam 16% e as demais,

como confirmado no ato da abertura dos portos, 25%,

constituía uma posição privilegiada. Outros privilégios,

em termos de foro judicial, tributação etc. foram

outorgados. A reciprocidade de tratamento preferencial

78

78

reconhecida para alguns produtos brasileiros, como o

açúcar e o café, no mercado inglês, era ilusória: quando

a Inglaterra quis, ofereceu condições iguais ou melhores

para produtos de outras procedências. Também inócua

era a outorga dada a Portugal de colocar taxas proibi-

tivas sobre a importação de açúcar, café e outros pro-

dutos procedentes das colônias britânicas, e sem impor-

tância o direito dos negociantes portugueses de se

estabelecerem na Inglaterra.

É óbvio que uma tributação alfandegária de 15%

era insuficiente em termos de proteção à indústria

nacional, sobretudo que, a partir de 1818, a mesma taxa

foi estendida às mercadorias portuguesas, e entre 1826 e

1828, aos demais principais parceiros comerciais do

Brasil. Do ponto de vista do estímulo às atividades

manufatureiras nacionais, a posição liberal adotada,

evidentemente para o benefício, em primeiro lugar, da

Inglaterra, não se justificava. Porém, não se deve pensar

que, sem essa política, a industrialização brasileira t eria

se iniciado desde aquela época. Faltavam muitas

condições para esse processo.

O fato é que os próprios ingleses que dominavam

política e economicamente o país, se instalaram como

comerciantes, e não como investidores industriais. Não

se deve minimizar a importância da presença destes

empresários ingleses que, além de dinamizar o

comércio, provocaram um efeito-demonstração, não

apenas em termos de níveis de consumo, mas também de

atitudes empresariais. A experiência de Irineu Evan-

79

79

gelista de Souza, futuro Visconde de Mauá, na casa

Carruthers, é eloqüente.

Apesar da abertura dos portos e da política

liberal, não parece ter havido logo, como se diz às

vezes, invasão de mercadorias inglesas. A importação

cresceu em comparação com o ano 1808 quando, por

força do bloqueio continental e das guerras

napoleônicas, havia caído ao mínimo de £ 425 mil (só

de Portugal).

As estatísticas são muito incompletas, mas

encontramos, em 1812, a importação total de £ 3.125

mil, £ 4.444 mil em 1815, £ 4.123 em 1819 e £ 4.590

mil em 1822. Ora, já em 1799, o Brasil importava de

Portugal £ 4.445 mil. Quem tinha sido deslocado da sua

posição era Portugal (em 1819 participava com 50,2%).

Quanto às queixas de abarrotamento de mercadorias,

devia-se à falta de transportes e armazéns, e à

exigüidade do mercado, e não ao crescimento absoluto

das importações.

Em valor per capita a importação era de £ 2,28

em 1822 – mas, em 1799, já havia atingido £ 1,35. Nos

anos 20 seguintes, a importação vai subir para £ 13.298

mil, ou seja, £ 1,58 per capital. O movimento portuário

não leva a conclusões diferentes: em 1806, apenas 641

navios entraram no porto do Rio de Janeiro; em 1810, já

eram 1.214, mas nos anos seguintes, entre 1810 e 1820,

a diferença não é muito grande. Só que em vez de serem

10% estrangeiros, passaram para 27%.

A remessa de lucros dos comerciantes ingleses

podia pesar sobre o balanço de pagamentos, mas

80

80

proporcionalmente representava menos do que ia antes

para Portugal. A realidade é que o setor externo sofreu,

até perto de meados do século, estrangulamento, e não

expansão.

8.3.2 Problemas financeiros e monetários

Um dos efeitos mais graves da queda das

importações e da incidência aduaneira de 15% foi o

impacto sobre a receita pública, uma vez que o imposto

sobre a importação constituía a principal fonte da

receita. Em 1808, ele representava 34% da receita – em

1820, não passava de 14%. Vimos que foi um período de

relativo aumento das importações a partir do mínimo de

1808, e apesar disso a receita do imposto de importação

cresceu bem menos do que a receita total.

O erário público lutava com dificuldades, não

apenas por causa da inépcia administrativa (apesar da lei

orçamentária de 1827, renovada em 1831) e os excessos

de gastos supérfluos, mas também em decorrência das

necessidades da organização da administração local

(Secretarias de Estado, Conselho de Estado, Conselho

da Fazenda, entre outros), da implantação de

instituições ligadas ao setor público (Academia Militar,

arsenais, fábricas de pólvora, por exemplo) ou de caráter

cultural (bibliotecas, arquivos) bem como por causa das

dificuldades políticas (guerra da Independência, no

Prata, no Pará, dos Farrapos). Entre 1823 e 1850/1, a

execução orçamentária apresentou 22 déficites e 7

81

81

superávites. Em valores acumulados, o déficit – 79.024

contos de réis – representou 17% da receita.

Três tipos de soluções foram procurados:

a) solução tributária: criação do imposto sobre a

exportação (em 1801 e 1836), décima sobre ao valor

locativo, sisa sobre vendas imobiliárias e meia-sisa

sobre escravos e algodão, tributos sobre carruagens,

navios e armazéns – todos estes desde o tempo de D.

João VI;

b) solução creditícia: empréstimos estrangeiros;

c) solução monetária: além das manipulações

sobre as moedas de prata e cobre, que iam provocar a

fuga do ouro e da prata, dificultando a situação

monetária, a criação do Banco do Brasil.

Estas últimas duas soluções merecem um

tratamento especial.

8.3.3 Banco do Brasil

Fundado em 1808, representou o início das

relações, às vezes espúrias, entre o poder públ ico e os

órgãos responsáveis pela expansão monetária. O

objetivo principal, expresso no alvará de constituição –

“obter fundos para a manutenção da monarquia” – era

uma limitação, senão um desvio, nas funções de um

banco que devia atender às necessidades de crédito de

um sistema totalmente desprovido de tais instrumentos.

A vida do Banco do Brasil vai ressentir-se desta

distorção. Constituído como banco particular com o ca-

82

82

pital de 1.200 contos de réis, e recebendo por 20 anos o

privilégio da emissão da moeda de papel com curso

legal, o capital foi subscrito com dificuldade,

completando-se apenas em 1817, demonstrando seja as

reduzidas disponibilidades de capital, seja o pouco

interesse pelos investimentos, seja, mais provavelmente,

a desconfiança em relação a um órgão controlado pelo

Governo. O capital foi aumentado depois, chegando a

subscrição a 2.235 contos até 1821. Entretanto, em

grande parte, os recursos foram fomentados graças à

ajuda do Governo (por exemplo, recursos decorrentes

dos impostos especiais criados em 1812) de forma que o

governo era principal acionista, controlando o Banco.

A atividade básica deste foi a emissão de papel-

moeda para as necessidades do Tesouro, sem nenhuma

relação com o lastro metálico ou com as necessidades

reais do sistema econômico. A distribuição de bons

dividendos baseava-se na emissão de papel-moeda,

criando uma falsa euforia. No balanço de 1821, no ativo

figuravam apenas 1.315 contos em moeda metálica e, no

passivo, as emissões somavam 8.872 contos de réis. A

volta de D. João VI para Portugal proporcionou a

retirada de suas participações criando um verdadeiro

pânico e outras retiradas pelos seguidores do rei. O

encaixe do Banco reduziu-se a 200 contos. Em termos

globais, a saída de dinheiro do país, nesta ocasião,

avaliada em £ 6 milhões, foi bem menor do que a

entrada inicial de £ 22 milhões, mas do ponto de vista

do Banco do Brasil a sangria foi grave. Entretanto,

mesmo sem este acontecimento, o Banco era fadado ao

83

83

insucesso não porque teria sido inviável em si, mas por

causa do seu modo de funcionar, com emissões

desastradas feitas para atender ao Governo.

Em 1808, o meio circulante atingia, conforme

estimativas, a 10 mil contos de réis. As emissões feitas

até 1821 somaram 8.872 contos, isto é, uma expansão de

quase 89%, que gerou uma alta de preços avaliada em

torno de 40%. É pouco provável que a diferença de 49%

tenha sido toda absorvida pelo crescimento do produto

real, pois isto levaria a uma taxa anual de crescimento

de 2,6%, pouco admissível. Devem ser levadas em conta

as saídas de dinheiro, desconhecidas, a título de déficit

comercial, remessa de lucros e transferências públicas e

privadas para a metrópole. Ademais, uma parte das

emissões deve ter compensado a falta de liquidez antes

ressentida.

Finalmente, o Banco do Brasil foi liquidado em

1829. Naquele momento o total dos bilhetes emitidos

era de 19.174 contos de réis e a divida do Tesouro, de

18.301 contos. Portanto, 95,48% das emissões

correspondiam às atividades do Governo, de pouca

repercussão econômica.

A curta existência do Banco não deixou de ser

uma experiência, uma etapa para realizações mais

sólidas. Tanto é que outros bancos comerciais foram

criados no período: Ceará (1836 - durou apenas 3 anos),

Comercial do Rio de Janeiro (1838), Bahia (1845),

Maranhão (1846), Pará (1847), Pernambuco (1851) e

Brasil (Mauá – 1851).

84

84

Os bilhetes do Banco do Brasil foram

encampados pelo Tesouro que começou também, por

conta própria, as atividades emissoras. A confusão

monetária completava-se com moeda de cobre, papel-

moeda emitido para a retirada do cobre da circulação e

moeda de cobre falsa (xenxém). Com o aparecimento

dos bancos particulares, começaram a circular vales

emitidos por eles – papel de crédito a prazo muito curto

com juros, desempenhando função de moeda. Em 1853,

o meio circulante somava 70.300 contos de réis,

compondo-se de 46.700 contos em papel do Tesouro,

18.000 contos em moeda metálica e 5.600 em vales

bancários.

Assim, a expansão monetária entre 1808 e 1853

teria sido de 603%, enquanto a inflação é estimada em

153%. A diferença representaria o crescimento do

produto (178%), à taxa anual de 2,3%. Outros meios de

avaliação indicam que a renda interna do Brasil teria se

elevado de £ 8,8 milhões em 1800 para £ 27 milhões em

1850, um crescimento global de 207%, ou seja, quase a

mesma taxa anual. (v. Anexo II)

8.3.4 Empréstimos externos

Outro recurso para complementar a receita pública

foi constituído pelos empréstimos externos. Se consi-

derarmos o valor absoluto destes empréstimos não pode-

mos dizer que o endividamento era exagerado. Entre 1824

e 1843, o Brasil contratou 5 empréstimos, correspondendo

a um compromisso global de £ 5.599.200, importância

85

85

pouco relevante se lembrarmos que entre estas datas a

exportação anual oscilou entre £ 4 e 5 milhões.

Os juros, 5% ao ano para todos os empréstimos,

também não eram exagerados. O que foi menos

favorável, além das vantagens retiradas pelos

negociantes, foi o tipo dos empréstimos que oscilou

entre o máximo de 85% e o mínimo, realmente

excessivo de 52%, de forma que a importância total

efetivamente embolsada pelo país foi de £ 4.335.000,

77,4% do compromisso de £ 5.599.200. Com isso os

juros reais montaram, em média, a 6,5% ao ano.

De fato, o aspecto negativo mais importante foi o

caráter fiscal dos empréstimos, destinados apenas a

cobrir os déficits orçamentários e dívidas públicas

anteriores, e não a investimentos capazes de inculcar um

certo dinamismo ao sistema econômico. Assim não

havia contrapartida positiva ao ônus que o

endividamento representava na execução orçamentária e

no balanço de pagamentos. Em ambos os campos, as

dificuldades provinham da pouca expansão do comércio

exterior, uma vez que o imposto de importação era

principal fonte de receita e a exportação era elemento

básico do ativo no balanço de pagamentos. Com déficits

permanentes na balança comercial (como se caracterizou

toda esta época) e com poucas entradas de capitais

estrangeiros que não encontravam muitos atrativos na

economia brasileira, o ônus da dívida pública era pesado

no balanço de pagamentos. Da mesma forma o era para a

execução orçamentária, enfraquecida pelas razões

expostas. Assim, o círculo vicioso continuava.

86

86

8.3.5 Política desenvolvimentista

Antes de tratar dos problemas de comércio

exterior – âmago do problema – vale mencionar as

importantes medidas tomadas por D. João VI com vistas

(em termos) ao desenvolvimento econômico.

- medida fundamental, revogação, já em 1808, do

alvará de 1785 que havia proibido as indústrias no

Brasil – aplicação do pacto colonial que não mais se

justificava após a instalação da metrópole no território

brasileiro;

- auxílios concedidos à construção naval (1809),

resultando na expansão desta atividade no Rio de

Janeiro, Salvador, Recife, etc.;

- reorganização do Arsenal da marinha (1809);

- isenção alfandegária na importação de matérias-

primas para as manufaturas nacionais (1809);

- vantagens concedidas para a fabricação de fios e

tecidos (1810);

- isenção de penhora dos equipamentos dos

mineradores (1813), medida ligada, ainda, aos objetivos

mercantilistas;

- liberdade de exercício da profissão de ourives

(1815).

Deveria acrescentar-se o fomento oferecido à

mineração e siderurgia, prêmios para transplante de

especiarias (outra vez, o mercantilismo), a abertura de

estradas, a isenção de impostos para novas culturas às

margens das estradas abertas, o fomento à irrigação, a

87

87

experiência com núcleos coloniais. A conclusão é que o

período de D. João VI foi muito mais rico em inovações

e iniciativas econômicas do que aquele que se estende

até a maioridade de D. Pedro II. É verdade que as

condições políticas foram diferentes.

Finalmente, não se deve esquecer, para a expli -

cação do desenvolvimento subseqüente, os progressos

feitos, até meados do século XIX, em termos de abertura

de horizontes culturais e formação de elites.

8.4 Gargalo externo

Apesar de concentrar-se a atividade econômico,

por tradição e falta de oportunidades, no setor

exportador, o comércio exterior apresenta, no período

indo até perto de meados do século XIX, posição

estacionária. Entre 1800 e 1830, o valor da exportação

anual oscila entre pouco mais de £ 3 milhões e pouco

mais de £ 4 milhões. Em termos per capita, ela cai de £

1,05 em 1800 para £ 0,63 em 1830.

Entre 1808 e 1819, a balança comercial era,

ainda, predominantemente superávitária, mas isto se

deve à queda brutal das importações (guerras

napoleônicas, bloqueio continental). Depois de terem

chegado ao seu ponto mais baixo, as importações

recuperaram-se, porém em 1830 estavam, até então, nos

níveis de 1800, em torno de £ 4 milhões. Em termos per

capita caíram de £ 1,35 em 1799 para £ 0,75 em 1830.

A recuperação parcial das importações fez com

que o período de 1822 a 1845 fosse altamente

88

88

déficitário na balança comercial – apenas em 4 anos

verificou-se superávit. Em 1850, no fim do período, a

balança continuava déficitária em £ 1.094 mil (£ 9.215

mil de importação, £ 8.121 mil de exportação). Os juros

anuais dos empréstimos estrangeiros até então

contratados somavam £ 280 mil. Acrescentando as

remessas oficiais e particulares e as operações

especulativas, pode-se imaginar as dificuldades surgidas

no balanço de pagamentos. E compreende-se a

suspensão, antes de 1850, das amortizações da dívida

externa. Aquelas dificuldades manifestaram-se na queda

da taxa de câmbio que da paridade mantida desde o

ciclo da mineração até o início do século XIX, de 67 1/2

pence/mil-réis, após ligeira melhora até 1814, cai

verticalmente até a média anual de 22 13/16 pence em

1830. Nova ligeira melhora surge até 1835 – período

deflacionário no Brasil – para depois fixar-se o câmbio

entre 25 e 28 pence/mil-réis, até 1865. A paridade legal

foi de 27 pence a partir de 1846.

A exportação não encontrou, ainda, outro produto

mais dinâmico. No decênio 1821/1830, com um valor

anual médio de £ 3.838 mil, ela depende, em primeiro

lugar, do açúcar (32%) e do algodão (20%). O café

encontra-se no terceiro lugar, com 19%, seguido pelos

couros e peles com 14%. Exportação altamente

concentrada – 4 produtos são responsáveis por 84,6% do

total. De 1821/1830 para 1831/1840, o preço por

tonelada do açúcar cai da média de £ 24 para £ 17, e o

do algodão em pluma de £ 66 para £ 48. A forte crise

internacional de 1825 afeta todos os preços de

89

89

exportação, inclusive do café. O Quadro 8.2 oferece um

panorama do ponto de estrangulamento do comércio

exterior e sua solução graças ao café.

A participação dos principais produtos na pauta

evoluiu da seguinte forma:

(em % do total)

Café Algodão Açúcar Couros Fumo

1821/30

1831/40

1841/50

18,6

43,8

41,3

20,0

11,0

7,5

32,2

24,0

26,7

13,8

7,9

8,0

2,4

1,9

1,8

Apesar da fraqueza mostrada (o privilégio da

isenção de penhora é uma prova), o açúcar, produzido

sobretudo no Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco, Pará e

São Paulo, tenta melhorar quanto à qualidade da cana e

aos equipamentos: em 1813 aparece a primeira máquina

a vapor num engenho.

O algodão (sobretudo em Maranhão, bem como

Ceará, Pernambuco, Bahia, Minas Gerais) utiliza, desde

1826, o descaroçador moderno, elevando a produ-

tividade, mas o período assiste à queda de sua posição

relativa.

A pauta de exportação é completada pelo pau-

brasil (costa do Nordeste; monopólio estatal desde

1822), fumo (Alagoas, Sergipe, Bahia), couros (Rio de

Janeiro, Bahia, Maranhão, São Paulo, Rio Grande do

Sul), cacau (Bahia, Pará), azeite de baleia – apesar do

declínio da pesca (Bahia), arroz (Bahia, Maranhão, São

90

90

Paulo), carne-seca e sebo (Rio Grande do Sul),

aguardente – para o escambo africano (Bahia, Pernam-

buco, Pará), mate (Paraná). Acrescentam-se as drogas

do sertão, no Norte, entre as quais começa a f irmar-se a

borracha e, a partir de 1840, a cera de carnaúba (Ceará,

Rio Grande do Norte).

A mineração está em franca decadência apesar de

certas descobertas na Bahia (Diamantes). Em 1824 é

permitida aos estrangeiros a exploração mineira, resul -

tando a entrada de empresas britânicas, fixadas nas

regiões mais produtivas. A Real Extração dos diamantes

é extinta em 1832.

O café, cuja produção havia descido do Pará e

Maranhão, firma-se no Rio de Janeiro e, depois de 1830,

melhora as suas máquinas de beneficiamento. A data

coincide com o aparecimento do ciclo do café. Na

década 1831/1840, o café com uma exportação anual

média de £ 2.153 mil, já representa cerca de 70% do

valor total. E graças ao café, a exportação total sobe de

£ 3.348 mil em 1830 para £ 5.384 mil em 1840 e £ 8.121

mil em 1850. Em termos per capita, a tendência

descendente inverte-se: de £ 0,63 em 1830 sobe para £

0,87 em 1840 e £ 1,2 em 1850.

Quando à importação, a pauta é típica de país

subdesenvolvido. Além dos escravos importados da

África, entram alimentos e bebidas – manteiga, sal,

bacalhau, vinho, azeite, farinha de trigo e vinagre (de

Portugal), cereais (Estados Unidos);tecidos, louças e

metais (Inglaterra), breu, potassa, couros e velas

(Estados Unidos), metais (Alemanha), papel (Holanda),

91

91

bebidas, móveis, medicamentos e artigos de luxo

(França) ceras, especiarias e óleos (África). Em

1839/1844, as manufaturas de algodão contribuíram com

33,8% do valor da importação; acrescentando os de lã,

linho e seda, chegamos a 48,2%. A farinha de trigo,

bebidas, carnes, manteiga, bacalhau e azeite perfaziam

outros 20%. As ferragens entravam com 3,2% e as

máquinas e acessórios não passavam de 0,2%.

A Inglaterra era o mais importante parceiro

comercial. Na exportação participava, em 1853/1858,

com 32.9%, seguida pelos Estados Unidos com 28,1%, a

França com 7,8%, a Alemanha com 6,0% e Portugal com

5,9%. Na importação, o domínio da Inglaterra era mais

nítido, com 54,8%, seguida pela França (12,7%),

Estados Unidos (7,0%), Portugal (6,3%), Alemanha

(5,9%). Havia concentração, também, em termos de

parceiros: cinco países respondiam por 80,7% das

exportações e 86,7 das importações.

8.5 Outras atividades econômicas

Poucas novidades podem ser ditas a respeito do

setor autônomo, fora da exportação, o qual se arrastava

penosamente por falta de investimentos (atraídos pela

exportação) e de renovações tecnológicas.

Na agricultura, os primeiros lugares eram detidos

pela mandioca, arroz, feijão, milho, trigo. O gado conti -

nuou dominando nas áreas tradicionais. As tentativas de

renovação com imigrantes portugueses encaminhados

para a agricultura (tal como Pombal já havia tentado no

92

92

Amazonas, Santa Catarina e Rio Grande do Sul) foram

pouco sucedidas. O mesmo aconteceu com os imigrantes

estrangeiros, a experiência alemã em São Leopoldo

(1824) e a do Senador Vergueiro, com colonização em

parceria (1847) – prejudicada pelos abusos e malenten-

didos de ambas as partes. O Ato Adicional de 1834

havia autorizado as Províncias de fundar colônias.

A entrada de colonos europeus contribuiu para a

introdução de culturas temperadas e a melhora das

técnicas agrícolas, mas até 1850, o fenômeno foi muito

limitado. A existência da escravidão e o regime precário

da propriedade rural constituíam-se em desincentivos

para os imigrantes. O próprio nível baixo da economia e

a falta de infra-estrutura exerciam influência negativa

sobre os imigrantes. A lei de 1850, que proibiu

doravante a ocupação das terras devolutas, importava na

fixação do statu-quo no regime agrário.

Entre as atividades primárias deve-se acrescentar

a extração do sal e, especialmente, a primeira salina

artificial em Cabo Frio, em 1822.

Quanto ao setor secundário, havia as atividades

caseiras (fiação, tecelagem, cerâmica, móveis), mas

também artesanato tradicional, bem como apareceram

pequenas fábricas de bens de consumo, sobretudo

tecidos (Rio de Janeiro e Minas Gerais). Mais para

registro histórico do que como resultado econômico

merecem menção as primeiras tentativas siderúrgicas,

entre 1809 e 1812. A experiência de 1835, em Iracema,

foi mais sólida.

93

93

O sistema de transportes continuou rudimentar,

embora a unidade política e administrativa e o

centralismo imperial tivessem contribuído para a

intensificação das trocas interregionais. No setor

marítimo, vale mencionar o emprego, a partir de 1819,

de barcos a motor. Outrossim, o esquema do mercado

não diferia muito do período colonial. (v. Gráfico 2)

8.6 Novos rumos

Os resultados positivos até o fim da primeira

metade do século XIX foram bastante magros. Graças ao

café, a exportação subiu para cerca de £ 8.100 mil em

1850 – crescimento de 131% sobre 1800, e a renda

interna de £ 8.800 mil para £ 27.000 mil, ou seja, 207%.

A renda interna per capita passou de £ 2,7 em 1800 para

£ 3,7 em 1850 – aumento de apenas 37%. Uma ressalva

pode ser feita no sentido de que, eliminado o laço

colonial, a diferença entre a renda interna e a nacional

deve ter sido menor. Admitindo que esta diferença caiu

de 60% para 30%, a renda nacional per capita teria

evoluído de £ 1,1 para £ 2,6, um crescimento de 136%.

É preciso acrescentar também, que, se nossas hipóteses

de trabalho são válidas no que concerne à relação

exportação/renda interna, o setor autônomo teria se

elevado de £ 5.300 mil em 1800 para £ 18.900 mil em

1850, a uma taxa global de 257%.

Outrossim, pouca coisa se realizou em termos de

infra-estrutura e renovação econômica. Apenas expe-

riências, esboços – e um ambiente cultural e político

94

94

mais propício para o progresso. Em primeiro lugar, a

libertação do ônus colonial. Mais especificamente, na

economia, a entrada de um novo produto conjuntural – o

café – graças ao qual se podia elevar a renda e a

capacidade de capitalização.

Até o fim do período, dois fatos iam juntar-se ao

panorama:

a) A abolição do tráfico, em 1850, com a lei

Eusébio de Queirós, após uma prolongada luta entre as

pressões abolicionistas da Inglaterra (convênio de 1830)

e as resistências brasileiras, fundadas nas tradições

escravagistas e nas necessidades de mão-de-obra no

momento em que a produção de café se expandia. As

perspectivas da abolição intensificaram a importação de

escravos (a média anual em 1846/1849 foi de 55.124

peças, decaindo completamente nos 6-7 anos seguintes),

mas incentivou, também, as tentativas de colonização

européia. De qualquer forma, liquidando-se uma das

fontes da escravidão, sobretudo quando a taxa de

crescimento vegetativo da população escrava era

negativa, a instituição estava fadada ao desapa-

recimento. Assim preparavam-se as bases para nova

solução ao problema da mão-de-obra.

b) O início do protecionismo, com a caducidade,

em 1844, do tratado com a Inglaterra e a introdução da

tarifa Alves Branco, no mesmo ano. Proteção ainda

insuficiente (a média da incidência era de 40%), porém

95

95

muito melhor do que a anterior, de 15%, e constituindo

o início de uma política protecionista, embora com

flutuações subseqüentes em ambos os sentidos,

permitindo uma certa evolução industrial na segunda

metade do século XIX. Uma evolução talvez retardada

por causa da própria concentração em torno do café cujo

ciclo dominou aquele período.

Quadro 8.2

Evolução do comércio exterior

Exportação Exportação Café Importação

Total

(£ 1000)

per

capita

(£)

Valor

(£ 1000)

Café/exp.

(%)

Total

(£ 1000)

per

capita

(£)

1746

1800

1810

1818

1822

1830

1840

1850

3.200

3.500

3.940

4.000

4.030

3.348

5.384

8.121

1,01

1,05

1,04

0,92

0,87

0,63

0,87

1,12

---

---

---

---

789

663

2.300 (3)

2.906 (4)

---

---

---

---

0,20

0,20

0,43

0,36

3.001 (1)

---

---

1.800

4.590 (2)

4.007

7.458

9.215

0,92 (1)

---

---

0,41 (2)

0,99

0,75

1,20

1,27

Indicações de leitura

Roberto C. Simonsen, 73; J. Pandiá Calógeras, 4; Sérgio Buarque

de Holanda, 217, tomo I-2.

NOTA

(1) Conf. Mircea Buescu, 34, pp. 230-238.

96

96

9. CICLO DO CAFÉ

9.1 Perspectiva em meados do século XIX

As primeiras duas décadas após a Independência

foram bastante inexpressivas em termos de performance

econômica. O setor tradicional, da exportação, tardava

em reerguer-se. A agricultura de subsistência sofria os

reflexos de condicionamentos negativos seculares. Pe-

quenas indústrias e atividades terciárias começaram a

brotar, porém, sem grande capacidade de expansão num

mercado de limitadas dimensões. Afinal, vivia-se num

círculo vicioso em que os níveis baixos de renda não

permitiam poupanças e investimentos com vistas à

elevação da renda. Quando à poupança externa, não

encontrava atrativos suficientes numa economia

rudimentar, a não ser em atividades comerciais ligadas à

importação. E a renda aplicava-se na importação de bens

de consumo que o mercado interno não podia fornecer,

bem como de escravos que constituíam a base da

produção agrícola.

A saída desse círculo vicioso foi possível através

do setor exportador que se dinamizou graças à

conjuntura favorável encontrada, a partir de 1830/1840

durante muitos decênios, pelo café. A atração exercida

pela exportação, pelas oportunidades no mercado

mundial, era a continuação do espírito mercantilista que

havia dominado a vida econômica brasileira durante

mais de três séculos. O sucesso do café ia enraizar este

espírito ainda mais, provocando certas distorções.

97

97

Entretanto, a solução era justificada – e encontra-

se, também, em outros casos de países subde-

senvolvidos. Não havendo um mercado interno capaz de

absorver excedentes, expande-se uma produção primária

que exige pouco capital, e em maior medida, fatores de

produção disponíveis – terra e mão-de-obra – portanto a

custo mais baixo, a produção de um produto de larga

aceitação no mercado internacional. Obtém-se, desta

forma, uma sólida fonte de renda que poderá irradiar -se

em outros setores da economia, embora sob alguns

aspectos negativos. Assim, acontecerá no caso do café,

mas, se essa irradiação ia se fazer com certo atraso, a

causa foi o excesso da mentalidade mercantilista que,

justificada pelo próprio processo do café, mostrará a

tendência de concentrar indefinidamente todos os

esforços produtivos no setor cafeeiro, até com o preço

de criar sérias distorções na alocação de fatores.

Como vimos no capítulo anterior, o ciclo do café

começou no decênio entre 1830 e 1840, quando este

produto assume a liderança na pauta de exportação e – o

que é mais importante – torna-se responsável pelo

reerguimento das receitas da exportação, constituindo-se

em setor dinâmico da economia em termos de

mobilização de fatores de produção e da geração de

renda. Pelo critério da liderança na exportação, o ciclo

do café não teria terminado ainda, porque até hoje em

dia, o café, individualmente, cobre a maior participação

relativa na pauta. Entretanto, pode-se argumentar que ao

longo das primeiras três ou quatro décadas do século

XX, na fase que poderia ser rotulada de pré-arranco do

98

98

Brasil, a indústria começa a assumir importância

crescente. Os fatores de produção são atraídos, também,

pelo setor secundário. As políticas econômicas não são,

exclusivamente, protetoras ao setor cafeeiro. Quanto à

criação de renda, é verdade que, até recentemente, a

agricultura representou parcela maior que a indústria no

produto real, mas, considerando só o café em face da

indústria, a situação mudara bem antes.

O presente capítulo versará, portanto, sob o

período de incontestável domínio do café na economia

brasileira até o último decênio do século XIX, quando se

verificam medidas de política econômica que parecem

dar menor importância ao destino do café.

9.2 Condicionamentos externos

Como se trata da expansão da produção e

exportação de um produto destinado ao mercado

internacional, neste deve-se procurar a motivação do

ciclo, a conjuntura favorável que irá incentivar a oferta.

Introduzindo-se, aos poucos, ao logo dos séculos

XVI, XVII e sobretudo XVIII, o hábito do consumo de

café na Europa, a demanda crescente, após a norma-

lização política que seguiu as guerras napoleônicas. foi

resultado do crescimento demográfico na Europa

Ocidental e nos Estados Unidos e, mais importante, da

elevação das rendas e dos padrões de consumo naqueles

países: em torno de 1840, a Inglaterra já estava na

segunda fase de sua revolução industrial, a França, a

Bélgica, os Países Baixos e os Estados Unidos haviam

99

99

ingressado na fase de arranco, a Alemanha preparava-se

para a mesma etapa de desenvolvimento.

A demanda crescente resultou na possibilidade de

aumentar as quantidades produzidas e vendidas. Antes

do início do ciclo, por volta de 1825, a exportação

mundial girava em torno de 1,5 milhões de sacas, dos

quais 5,15% fornecidos pelo Brasil. No fim do século

XIX, com o Brasil participando com cerca de 70% a

exportação mundial chegou perto de 13 milhões de

sacas. Não se deve esquecer o progresso realizado pelos

transportes marítimos após a Revolução Industrial: no

fim do século, a exportação de café somava quase 10

milhões de sacas – 600 mil toneladas. O auge do açúcar

havia exigido transporte de 30 mil toneladas.

O crescimento da oferta não se efetivou com

redução dos preços unitários de venda. Apesar das

alegações tradicionais concernentes à deterioração

secular dos preços dos produtos primários, mais

especificamente do café (invocando-se, neste caso,

inclusive a lei de Engel), não se constata tendência

descendente dos preços do café durante o século XIX.

(1)

É verdade que condições excepcionais no início

da década de 1820 (quando a oferta antilhana se

ressentia, ainda, dos efeitos das guerras e revoluções, e

a brasileira não estava preparada para responder)

elevaram os preços até mais de £ 5 por saca de 60

quilos. Esta conjuntura favorável contribuiu muito para

o primeiro impulso da economia cafeeira brasileira que,

até então, se arrastava sem assumir maior expressão.

100

100

Se considerarmos a segunda metade do século

XIX, constata-se que a cotação média da última década,

£ 2,81 por saca (1891/1900) é 43% superior a média da

década inicial 1851-1860 (£ 1,97 por saca). O que

caracteriza a evolução dos preços do café não é a

tendência a longo prazo, e sim, as flutuações cíclicas

dos preços. A causa não deve ser procurada apenas do

lado da demanda (retratação durante as depressões

cíclicas que se verificaram durante o período: 1857,

1867, 1873, 1882 e 1892), mas também do lado da

oferta, porque, sendo o cafeeiro planta de longa

maturação, o plantio era incentivado durante o período

de alta dos preços e o aumento da oferta, após 5-6 anos

de maturação, chegava muitas vezes nos momentos de

depressão, contribuindo, assim, para uma queda maior

do preço.

Depois de um período de baixa no fim da década

1820/1830 e uma posição bastante estável até 1840, a

cotação do café cai novamente a partir de 1842,

mantendo-se estável no início da segunda metade do

século. Verificaram-se depois, três ciclos: de 1857 a

1868 com a cotação máxima de £ 3,06 em 1863 e

mínima de £ 1,68 em 1868; de 1869 a 1885, chegando a

£ 4,31 em 1873 e, após flutuações, outra vez a £ 4,29 em

1879, com a queda até £ 1,77 em 1885; de 1886 a 1906,

subindo logo a £ 4,10 em 1887 e, após ligeiro

afrouxamento, £ 4.09 em 1893, para cair até £ 1,49 em

1898 e £ 1,47 em 1903.

Estas flutuações influenciavam, sem dúvida, a

rentabilidade, mas não implicavam forçosamente em

101

101

prejuízos. Do ponto de vista da receita cambial, a queda

de preços podia ser compensada pelo aumento das

quantidades exportadas – como na realidade aconteceu

na maioria das vezes. Para o país, o prejuízo podia

resultar da deterioração da relação de trocas, mas este

fato não foi comprovado, embora seja provável que

tenha acontecido várias vezes, justamente porque os

produtos importados, industrializados, podem mais

facilmente controlar sua oferta nos períodos de

depressão. (2)

Para o produtor, que recebia seus rendimentos em

moeda nacional, a queda das cotações internacionais

podia ser compensada pela deterioração da taxa de

câmbio, de modo a receber a mesma importância em

moeda nacional. Uma alta de cotações, juntamente com

desvalorização cambial, representava uma excelente

oportunidade de receita. Sem dúvida, os benefícios

retirados via desvalorização cambial correspondiam ao

encarecimento das mercadorias de importação, portanto

a um ônus suplementar suportado pelos consumidores

daquelas mercadorias (os quais eram, em grande parte,

os mesmos produtores de café cujas rendas altas

permitiam acesso àquele consumo).

9.3 Condicionamentos internos

Como em outros casos, o aspecto mais grave em

termos de mobilização de fatores de produção prendeu-

se ao trabalho, porque o café exigia mão-de-obra nu-

merosa, sobretudo enquanto se aplicou uma tecnologia

102

102

primitiva, sem máquinas e equipamentos. Por isso

mesmo as necessidades de capital fixo eram reduzidas.

Quanto à terra, havia disponibilidades suficientes.

Os principais condicionamentos são os seguintes:

a) Recursos naturais – O café, introduzido no

Norte no início do século XVIII, começou a descer à

procura de novas terras e climas adequados. No fim do

século encontrava-se no vale do Paraíba no Rio de

Janeiro. Ainda em 1860, 78% da produção de café

procedia desta província, 12% de São Paulo e 8% de

Minas Gerais. A passagem da supremacia para o Oeste

de São Paulo efetivou-se nos últimos dois decênios do

século XIX, beneficiando-se da mão-de-obra livre,

imigrante naquela região em grande volume, e da infra-

estrutura de transporte ferroviário (Santos-Jundiaí 1868;

Jundiaí-Campinas 1872; Campinas-Itu 1873; Mojiana e

Sorocabana 1875; ligação com a estrada de ferro D.

Pedro II, 1877). Até lá, o transporte era feito a dorso de

mulas e cavalos. Os novos meios de transporte

permitiram a integração de novas áreas de boa

produtividade natural sem elevação de custos.

A disponibilidade de terras incentivava a

produção extensiva. A terra esgotada era abandonada e

novas áreas eram integradas via queima das florestas.

Havia, apenas a vantagem de empregas as cinzas como

adubo. Afinal, integrava-se em maior proporção um

fator barato, a terra, com a ajuda de outro fator

relativamente barato, o trabalho. Enquanto isso

aconteceu, constituiu desincentivo à aplicação de capital

103

103

e à melhora tecnológica. O mecanismo de preços

permitiu manter os lucros sem necessidades destes

últimos dois fatores.

Outrossim, o regime agrário foi organizado pela

lei de 1850 que proibiu a ocupação das terras devolutas.

Doravante, novas terras, antes obtidas por doação ou

ocupação, só podiam ser adquiridas por compra do

Governo. A intenção pode ter sido forçar a mão-de-obra

livre disponível no campo a se empregar no lugar dos

escravos cuja importação ia cessar após 1850. O

resultado foi, além desta transferência embora parcial

para as grandes fazendas, o fortalecimento do latifúndio

(que contribuiu integrando, de fato, novas áreas) e o

enfraquecimento da pequena propriedade, acentuando

este fator negativo do desenvolvimento brasileiro.

Em 1854 foi decidida a revalidação das sesmarias

e doações quando cultivadas ou em início de cultivo (foi

criada a Repartição Geral das Terras Públicas). Por

outro lado, em vários casos, os colonos imigrantes

foram contemplados com lotes de terra criando um

importante setor agrário, muitas vezes de subsistência.

O café continuou, entretanto, em grandes latifúndios; o

que, com o tempo, se verificou menos apropriado para

reduzir o custo e melhorar a qualidade.

b) Mão-de-obra – A solução do problema foi

dominada pela mentalidade escravagista. Havia ainda, a

possibilidade de empregar o trabalhador local ou o

imigrante:

104

104

i) Apesar das tentativas, embora tímidas, de

fomentar a imigração estrangeira (a qual, de fato, não

encontrava grandes atrativos numa economia primitiva,

em recessão, num ambiente climático e social diferente

das pátrias européias de origem), o interesse fixou-se no

escravo tanto por tradição, como por conveniência

econômica. Havia a reserva de trabalho resultante da

expansão demográfica do século XVIII (quando a

população livre havia crescido quase oito vezes). Em

torno de 1830, a população livre situava-se perto de 3

milhões – e não havia, até aquela data, nenhuma ati-

vidade econômica capaz de absorver as disponibilidades

de mão-de-obra: açúcar, algodão, fumo, mineração eram

decadentes, e só o café, a partir daquele momento,

começou a representar uma demanda crescente de

braços. Havia, para o proletariado rural – gerado por

aquela decadência – o recurso à ocupação de terras

disponíveis (fato possível, até certo ponto, mesmo após

a lei proibitiva de 1850) para viver no setor de

subsistência, em condições de pouca rentabilidade, dado

o baixo nível cultural e tecnológico dos caboclos, pouco

interessados em melhorar sua vida. Mas as perspectivas

de trabalho, enquanto existia o escravo, não eram muito

brilhantes. Para o proprietário, o escravo era, ainda,

mais barato face à possibilidade de usar intensamente

sua força de trabalho.

ii) De fato, não se observou um interesse especial

pelo trabalhador rural livre durante o período em que

havia possibilidade de importar escravos. A iminência

da abolição do tráfico provocou a intensificação das

105

105

importações. Entre 1846 e 1849, a média anual foi de 55

mil escravos, bem mais alta do que o máximo que se

pode supor para o auge da mineração (talvez 25-30.000,

no máximo).

A população escrava subiu de quase 1,5 milhões

em 1823 para 2,5 milhões em 1850 – resultado das

importações maciças antes da suspensão do tráfico. Em

1872, no primeiro recenseamento, era quase a mesma,

demonstrando a impossibilidade de um crescimento

vegetativo. Na véspera da abolição da escravatura

situava-se em torno de 700 mil. É interessante observar

a localização da população escrava, correspondente ao

interesse econômico maior e à procura de novas

soluções de trabalho, como se vê no Quadro 9.1.

Observa-se que São Paulo, apesar da pujança do café,

usava parcela relativamente menor de escravos.

Quadro 9.1

População escrava por região

(em percentagem do total)

Rio de

Janeiro

Minas

Gerais

São

Paulo

Bahia/Pernam-

buco/Maranhão

1823

1872

1885

13,1

22,6

24,6

18,7

24,5

22,6

1,8

10,4

12,9

42,3

22,0

27,2

Funcionava, neste caso também, um círculo

vicioso: havendo escravos baratos, não se justificavam

investimentos em equipamentos mais avançados; nestas

condições, o trabalho livre não apresentava nenhuma

106

106

vantagem técnica, e não podia ser explorado plenamente

como o do escravo. A presença do escravo mantinha os

salários baixos, afastando, ainda mais, a solução do

trabalho livre.

Um escravo podia cuidar de até 3.500 pés de café,

mas é mais razoável admitir a média de 1.000 pés. Isto

dava, em condições normais, 100 arrobas de café por

ano. A £ 2 por saca em média a renda anual bruta era de

£ 50 enquanto o escravo no auge do ciclo do açúcar,

com 60 arrobas, produzia £ 120, mas não se deve

esquecer que, com uma cotação máxima de £ 4, o café

podia chegar também a £ 100. E não exigia inves-

timentos fixos tão elevados como o açúcar.

A abolição do tráfico tornou o problema mais

grave, sobretudo por elevar brutalmente o preço do

escravo: da média de 400 mil-réis, ou menos, antes de

1850, chega a quase 1.000 réis em 1855 e cresce,

depois, lentamente até 1.100/1.200 no fim da

escravatura.

Mesmo assim, o escravo apresentava vantagens

enquanto sua oferta podia ser mantida, sem substituição

pela máquina. Por exemplo, em torno de 1865, com o

escravo valendo 1.050 mil-réis, a amortização, para uma

vida média de 15 anos, era de 80 mil-réis, à qual devia

acrescentar-se a despesa de manutenção de cerca de 20

mil-réis por ano. A sua produção de 100 arrobas em

média, valia 440 mil-réis, dos quais deve-se deduzir

gastos com transportes, beneficiamento, impostos e

comissões, orçados em 160 mil-réis. A despesa de 90

mil-réis com o escravo oferecia um retorno líquido (sem

107

107

computar o custo da terra e dos equipamentos) de 280

mil-réis, ou seja, 211%.

O interesse pelo escravo resultou na transferência

de escravos do Norte e Nordeste, onde a rentabilidade

era menor, para o Sul. Houve projetos para impedir

estas transferências, mas a solução comum foi a

tributação das saídas de escravos: em Pernambuco

(1850) e na Bahia (1862) 200 mil-réis por escravo que

saía. As transferências, então, caíram após 1870.

Entretanto, em 1887 50% dos escravos existentes no

país localizavam-se na região cafeeira – São Paulo, Rio

de Janeiro, Minas Gerais. Novos golpes foram recebidos

pelo escravagismo: a Lei do Ventre Livre (1871) que, na

realidade, embora libertando os nascituros, permitia a

persistência da escravidão porque o proprietário do filho

de escravos podia, em vez de receber a indenização de

600 mil-réis, utilizar os seus serviços entre 8 e 21 anos

de idade; a lei da liberdade dos sexagenários (1885),

finalmente, a abolição da escravatura (1888). Face a

estas alterações, nova solução foi procurada com a

imigração estrangeira.

ii) Deixando de lado as esparsas tentativas de

colonização na primeira metade do século, o interesse

pela entrada de imigrantes cresceu à medida que a

solução escravagista se comprovava inviável. No

decênio anterior à abolição do tráfico entraram, apenas,

4.992 imigrantes. Nos dos decênios seguintes, foram

108 mil em cada um. Entre 1870 e 1879, as entradas

subiram para 193.931 e na década da abolição da

escravatura elevaram-se para 448.622. Houve, na base,

108

108

uma transformação cultural, ao mesmo tempo que as

condições econômicas permitiram a substituição do

escravo pelo trabalhador livre:

- face à escassez de escravos, houve necess idade

de introduzir equipamentos de forma que o trabalho se

tornou mais produtivo, permitindo salários mais

elevados;

- com o crescimento da economia e das

facilidades de infra-estrutura, os atrativos eram maiores

para os imigrantes estrangeiros;

- foram dados incentivos à entrada de colonos,

inclusive para obtenção de terras.

As experiências de colonização começaram com o

senador Nicolau Vergueiro que, em 1847, fundou a

colônia de Ibicaba. O sistema adotado foi o de parceria,

isto é, o colono recebia um lote de terra, adiantamentos

para viagem e equipamentos, para, depois, dividir os

lucros líquidos com o proprietário da terra e pagar suas

dívidas. Dentro deste sistema, foram feitos outras

experiências em São Paulo (em 1853/4 foram

autorizados empréstimos por 6 anos para subsídios a

viagens dos imigrantes) e Santa Catarina (Blumenau,

Joinville).

O sistema de parceria, entretanto, não se

comprovou satisfatório: apesar da lei de 1837 sobre o

trabalho dos colonos (renovada em 1879) havia abusos

por parte dos proprietários, era difícil fazer contas

certas sobre os lucros líquidos, o fornecimento de

equipamentos e mantimentos era espoliatório – e, por

outro lado, os próprios colonos encontravam

109

109

dificuldades em se adaptar às novas condições. Havia,

ainda, o fato de que os colonos produziam menos que os

escravos: uma família de 4/5 pessoas ativas cuidava de

1.500/2.000 pés, enquanto vimos que um escravo cobria

facilmente 1.000 pés ou mais. Chegou-se a protestos por

parte dos países de emigração, até a proibição da ida

para o Brasil (rescrito de Heydt, na Prússia, em 1859). É

verdade que tais restrições foram feitas mais tarde,

depois de abolido o sistema de parceria, e não apenas

pela Prússia, mas também pela França e Inglaterra.

Entretanto, havia uma realidade mais forte: a

expansão demográfica na Europa meridional, central e

oriental, sem grandes oportunidades de emprego; a

necessidade de mão-de-obra no Brasil, em condições já

relativamente melhoradas. As tentativas de imigrações

chinesas em 1855/1856 não vingaram.

Em geral, a vinda dos imigrantes foi subven-

cionada pelos governos provinciais, e várias orga-

nizações foram constituídas para sustentar o movimento

(Associação Auxiliadora de Colonização – 1871). Os

imigrantes não se fixavam mais em regime de parceria,

mas como assalariados, seja com um salário mensal,

seja com pagamentos proporcionais ao número de pés

sob seus cuidados ou ao volume de café produzido. A

região de São Paulo soube adaptar-se melhor às novas

condições, ativando a entrada de imigrantes, criando

infra-estrutura adequada, investindo em equipamentos; o

clima temperado era, também, mais atraente. O mesmo

não aconteceu com a região do Paraíba que se viu, neste

período, superada por São Paulo.

110

110

Enquanto a escravidão permaneceu presente, os

salários deviam sofrer sua influência. Evidentemente

este fato constituiu fator negativo para uma distribuição

melhor da renda e o fortalecimento da classe operária.

No início, o salário fixava-se perto do aluguel dos

escravos de ganho – a única diferença era que o

trabalhador livre não podia ser submetido ao regime

rigoroso do trabalho escravo, em quantidade e

qualidade: o assalariado trabalhava 10 horas diárias e o

escravo, 16-17.

Mais tarde, após 1870, com a redução da oferta

de escravos, a elevação do seu preço, a introdução de

máquinas que elevavam a produtividade do trabalho, os

salários começaram a subir. Na década 1870/1880

encontramos, na zona mais bem paga (São Paulo),

salários médios entre 14 e 20 mil-réis por mês e 600 e

700 réis por dia. Após 1880, o salário médio, na zona

privilegiada, sobe para 25/30 mil-réis mensais. A diária

era de 1/1,5 mil-réis mais comida, ou 2 mil-réis a seco.

Isto correspondia a algo mais do que o aluguel de

escravo, uma vez que a manutenção deste custava cerca

de 20 mil-réis por mês; acrescentando uma amortização

de 8 mil-réis (em 15 anos ao preço de 1.300 mil-réis),

mais um pequeno lucro, chegamos ao nível dos salários.

Em casos de pagamento por tarefa os resultados

podiam ser menores. Dá-se o exemplo de uma família

que podia produzir, anualmente, 200 arrobas de café

(correspondentes a 200 pés), recebendo 1.200 réis por

arroba. O rendimento não passava de 20 mil-réis por

mês.(3)

111

111

c) Tecnologia – Até 1850, a técnica de produção

ficou extremamente rudimentar; era a queima das matas,

o trabalho com enxada e foice (a charrua começou a ser

empregada mais persistentemente após 1870), o piso-

teamento dos grãos ou o uso de pilões à tração animal

ou à água. Em torno de 1830 já haviam sido aplicadas

melhorias no equipamento: ribas, carretão, depois

carretão de roda de baixo, monjolo, engenho de pilões.

A partir de 1850 são introduzidas as máquinas

para beneficiamento, aumentando substancialmente a

produtividade: descascadores podiam operar 800 arrobas

num dia de 10 horas, e despolpadoras até 1.200 arrobas.

d) Capital – No início, as necessidades de capital

prendiam-se sobretudo, à compra da escravos. No resto,

a terra não custava praticamente nada (o seu preparo era

feito pelos escravos) e os equipamentos eram

rudimentares. O aspecto mais grave era o longo período

de maturação: o café começava a produzir 6/7 anos após

o plantio: vivia 20 a 25 anos, mas a sua produtividade

máxima durava 10 anos (de acordo com a região e os

métodos de produção podia ser de 100 arrobas por mil

pés como em São Paulo ou de 30/40 arrobas como no

vale do Paraíba). Os capitais aplicados procederam dos

restos da acumulação dos tempos da mineração,

inclusive no setor comercial, dos latifundiários, das

disponibilidades da classe média, e provavelmente dos

capitais tornados disponíveis depois da abolição do

tráfico – mas não há provas diretas. Mais tarde, os

112

112

capitais estrangeiros, fixados inicialmente no setor de

comercialização, ingressaram no de produção.

Com custos baixos para uma produtividade

relativamente elevada do trabalho escravo, e com preços

de venda em alta, embora com flutuações, os lucros

foram elevados, e o seu reinvestimento constituiu a

principal fonte de capital.

Após 1850, as exigências de capital aumentaram

para investimento em máquinas e equipamentos. Em

compensação, a imobilização em mão-de-obra escrava

diminuiu, mas havia necessidade de capital de giro para

o pagamento dos salários. Nesta segunda fase, o

reinvestimento dos lucros continuou sendo a fonte mais

importante de capital. Havia, também, capitais trazidos

pelos imigrantes. Ademais, os comissários e as

companhias de exportação, em grande parte estrangeira

(em 1880, de 131 maiores exportadores, 66 eram

estrangeiros – e superavam em muito os nacionais),

adiantavam importâncias para capital de giro, e com o

tempo o sistema bancário em formação começou a atuar

no mesmo sentido.

O papel fundamental do reinvestimento dos lucros

mostra não apenas a capacidade de capitalização, mas

também a propensão para poupança e investimento,

denotando uma verdadeira classe empresarial que lutou,

inclusive no terreno político, pela defesa de seus

interesses e soube, sobretudo na região de São Paulo,

criar condições de expansão e melhora de produtividade:

introdução de imigrantes, adoção de equipamentos,

criação de infra-estrutura. A única restrição que se pode

113

113

fazer é que a miragem dos lucros cafeeiros atraiu demais

os investimentos, superdimensionando o setor em detri -

mento de outras atividades econômicas. A luta em torno

deste problema pertence ao período seguinte.

9.4 Empresa e rentabilidade

9.4.1 Estrutura agrária e comercialização

A empresa típica de café é a fazenda, o latifúndio

organizado nos moldes tradicionais, basicamente em

forma monocultural, acrescentando-se alguns produtos

de subsistência. O caráter autárquico da fazenda de café

é menos completo do que o do engenho de açúcar. Isto

quer dizer que a especialização da empresa é maior, mas

ao mesmo tempo a economia é mais diversificada,

havendo agentes especializados em atender ao consumo

interno (inclusive através da importação, fonte

indispensável à medida que o café concentrava todos os

fatores de produção do setor agrícola).

Esta fazenda de grandes dimensões é, no início, es-

cravocrata, passando, como vimos, sob a força das cir-

cunstâncias, para o trabalho livre, mais depressa em São

Paulo do que no Rio de Janeiro. Acima dos escravos en-

contramos os assalariados, em número cada vez maior,

todos sob a direção do fazendeiro que é, como já disse-

mos, um verdadeiro empresário. Com o tempo, a elevação

das rendas trouxe a propensão para o ócio e o lazer e,

114

114

então, fazendeiros passaram para a cidade, deixando a

fazendo sob a direção de administradores ou feitores.

A estrutura agrária continha uma classe

intermediária, os colonos – parceiros, arrendatários ou

proprietários – que se dedicavam, também, ao cultivo do

café, ficando ligados ao latifundiário com vistas ao

beneficiamento e à comercialização do produto. Nesta

faixa, a agricultura de subsistência era relativamente

mais expressiva.

Distribuição agrária desigual com efeitos

negativos para a formação econômica do país, porém

com uma faixa de propriedades médias bem mais forte e

mais ampla do que na economia açucareira. Podemos ter

uma idéia, embora um pouco alterada pela diferença de

época, ao analisar a estrutura agrária do setor cafeeiro

de São Paulo, em 1927.(4) Para um número de 39.897

estabelecimentos agrícolas possuindo 1.130,1 milhões

de pés, podemos construir o perfil do quadro 9.2.

Quadro 9.2

Estrutura agrária cafeeira

Tipo de estabelecimento % do total dos

estabelecimentos

% do

total dos

cafeeiros

Tamanho

médio

(pés)

- com menos de 5.000 pés

- de 5.0000 a 20.000 pés

- de 20.000 a 100.000 pés

- de 100.000 a 500.000 pés

- mais de 500.000 pés

Total

34,4

39,3

20,2

5,8

0,3

100,0

3,0

15,4

33,4

39,3

8,9

100,0

2.502

11.079

46.863

192.997

842.500

28.325

115

115

Observa-se que 73,7% dos estabelecimentos têm

tamanho inferior à média do setor e possuem apenas

18,4% do total dos cafeeiros, enquanto 6,1% dos

estabelecimentos são responsáveis por 48,2% dos

cafeeiros, tendo tamanhos superiores a 100 mil cafeeiros

e chegando a mais de 1 milhão (21 pés em que 20,2%

dos estabelecimentos possuem 33,4% dos cafeeiros,

tendo o tamanho médio de 46.863 pés por esta-

belecimento. O problema é saber qual era a rentabi-

lidade da empresa.

Antes, deve ser completado o quadro da

organização empresarial com as empresas de

comercialização. Normalmente não era o produtor quem

exportava. Havia firmas especializadas nestas operações

as quais atuavam através dos comissários, agentes

intermediários que adquiriam os produtos, adiantavam

capital de giro aos produtores, manipulavam no

mercado. Do ponto de vista da receita interna do café é

preciso deduzir os lucros auferidos pelos comissários,

mercadores e outros intermediários, lucros esses que,

em decorrência da sua posição privilegiada, ul -

trapassavam, às vezes, as proporções normais da

intermediação.

9.4.2 Rentabilidade

Apesar de todas as queixas dos cafeicultores,

sobretudo por causa da escassez de mão-de-obra, apesar

da decadência de certas áreas cafeeiras (por própria

116

116

inépcia empresarial), e apesar das flutuações cíclicas

dos preços, é ponto pacífico que as atividades cafeeiras

foram altamente rentáveis. Indicações temos na capaci-

dade de reinvestimento no setor, na elevação dos níveis

de consumo e na acumulação de capitais que iam germi-

nar em outros setores. É preciso, entretanto, tentar a

quantificação do problema.

A renda real do café flutuava sob a influência de

três fatores: cotação internacional, taxa de câmbio e

nível interno de preços. Tomando os preços de venda

em moeda nacional (resultantes da cotação estrangeira

multiplicada pela taxa de câmbio) em anos selecionados

de máximos e mínimos, e deflacionando-os pelo índice

de preços, encontramos a evolução do índice do preço

real que consta do Quadro 9.3.

Quadro 9.3

Café – preços nominais e reais

(índices – base: 850 = 100)

Preço nominal Deflator Preço real

1863

1868

1873

1877

1879

1885

1887

195,1

106,9

274,5

149,0

273,5

112,7

260,8

183,4

211,7

223,7

229,3

235,2

239,3

229,4

106,4

50,5

122,7

65,0

116,3

47,1

113,7

Observa-se que, com base no ano de 1850, um

ano relativamente normal, a renda real do café sofreu

117

117

altas e baixas, de acordo com a flutuação do preço

internacional, visto que, contrariamente à tese

tradicional, a desvalorização cambial não foi sempre

capaz de salvaguardar o nível de renda real.

Eventualmente, o produtor podia garantir sua renda

global, aumentando as quantidades produzidas e

vendidas, caso a sua capacidade de produzir e o

mercado comprador lho permitissem. Mas, o problema

estava em qual seria, num nível médio dos preços, a

margem de lucro do produtor.

Tomemos um exemplo típico: 1.000 pés de café

(em 1,3 hectares) produzindo 100 arrobas, na década

1861/1870. Não vamos computar o preço da terra por

ser muito aleatório, ou talvez nulo. Havia, entretanto, a

derrubada, a queima, a capoeira – talvez uns 120 a 150

mil-réis por alqueire, ou seja, uns 70 mil-réis por 1,3

hectares. Durante 6 anos, o café exigia cuidados sem

produzir nada. Eram os serviços de um escravo a 90 mil-

réis por ano (70 de amortização, 20 de manutenção), Um

total de 610 mil-réis a serem amortizados em 10 anos de

vida do cafeeiro em plena produtividade.

O preço médio de venda na década 1861/1870 foi

de 24.334 réis por saca, ou seja 6.084 réis por arroba.

Deduzindo as despesas de transportes, comissões de 3%

e impostos (um total de cerca de 25% sobre o preço da

venda), mais o beneficiamento (1%) e o trabalho do

escravo (900 réis por arroba) e ainda, o preço do capital

investido (12$ sobre 610 mil-réis, em 100 arrobas),

sobra um lucro líquido de cerca de 2.980 réis por arroba

– 49% do preço de venda.

118

118

Considerando o investimento inicial de 610 mil -

réis, o lucro, na produção anual de 100 arrobas, era de

49%. Em 10 anos de vida intensa dos novos cafeeiros,

os lucros podiam amortizar o capital inicial de 610 mil -

réis e deixar, não obstante, um lucro líquido de 2.360

mil-réis, ou seja, 287% sobre o capital investido (ou

mais, se amortizado parceladamente, o que reduzia os

juros).

Talvez haja um excesso no cálculo dos lucros,

subestimando-se o custo da terra – aspecto válido

sobretudo para os pequenos produtores que deviam

pagar arrendamentos, participações etc. Tampouco

foram computados os gastos em equipamentos. Não se

deve esquecer, igualmente, que em certas regiões a

produtividade por 1.000 pés e por escravo ou por

assalariado era menor de 100 arrobas. Havia, da mesma

forma, casos de espoliação pelos comissários e

capitalistas. Tudo isto podia aumentar os custos e

reduzir os lucros, mas não resta dúvida de que o café

oferecia uma excelente margem de rentabilidade, o que

explica a atração que exerceu durante todo o período e

os reflexos sobre o estado geral da economia nacional.

9.5 Comércio exterior

9.5.1 Resultados do café

A conjugação da pressão da demanda e da

capacidade de expansão da oferta resultou no

119

119

crescimento contínuo dos volumes exportados de café. O

passo decisivo foi dado entre 1830 e 1860. Depois, o

crescimento foi mais lento. As variações das cotações

internacionais eram compensadas pelo aumento das

quantidades embarcadas, de modo que a receita do café

cresceu, também, sendo principal responsável pelo

crescimento da receita total da exportação.

O Quadro 9.4 sintetiza a evolução. (v. também

Anexo IV)

Quadro 9.4

Exportação de café

(valores decimais acumulados)

Volume exportado

(1000 sacas)

Receita

(£ 1000)

Valor

medio

(£ /

saca)

Exportação

total

(£ 1000)

Part.

café

(%

s/total)

1821/30

1831/40*

1841/50

1851/60

1861/70

1871/80

1881/90*

3.178

9.744

15.677

26.253

28.977

36.341

53.326

7.189

21.539

21.736

49.741

68.004

112.754

135.027

2,26

2,21

1,39

1,89

2,35

3,10

2,53

36.792

49.214

52.690

102.019

149.471

199.391

219.735

12,5

43,8

41,3

48,8

45,5

56,5

61,4

* Entre 1833 e 1887, o ano fiscal não coincidiu mais com o ano

calendarístico, e foi fixado entre 1/7 e 30/6. As estatísticas

seguiram o mesmo critério. Assim, o período de 1831/1840 inclui

apenas 19 semestres e o de 1881/1890, 21 semestres.

Observa-se que os volumes embarcados

cresceram muito, no início, tanto em valores absolutos

como em relativos: de 1821/30 a 1831/40, 6.566 mil

sacas (+ 206,6%); de 1831/40 a 1841/50, 5.933 mil (+

60,9%); de 1841/50 a 1851/60, 10.576 mil (+ 67,5%). O

120

120

aumento da oferta, mais do que as crises da demanda,

pode ter contribuído para a depressão das cotações. De

qualquer forma, o aumento das quantidades mais que

compensou a queda dos preços de maneira que a receita

aumentou, entre 1821/30 a 1841/50, em 202,4%.

A partir de meados do século, as cotações elevam-

se paulatinamente, ao mesmo tempo que crescem as

quantidades exportadas, com uma diminuição do ritmo no

decênio 1861/70, da Guerra da Secessão norte-americana,

que provocou a diminuição da demanda. Não se deve

esquecer que na época, os Estados Unidos compravam

cerca de 41% do nosso café, e a Europa 56%.

Entre 1871 e 1890, os volumes aumentaram

substancialmente outra vez, e as cotações subiam;

somente no fim do período começou a manifestar-se o

enfraquecimento do mercado. De qualquer forma, entre

a década de 1861/70 e de 1881/90, o volume decenal

embarcado aumentou 84,0% e a receita 98,6%.

O café torna-se principal responsável pela expansão

das exportações. Individualmente, a partir da década de

1831/40, representa mais de 40% do valor total, chegando a

mais de 60% no fim do período. (v. Anexo III). O cres-

cimento absoluto da receita de exportação foi, princi-

palmente, devido ao aumento da receita do café a não ser

no período 1861/70 quando, em circunstâncias conjunturais

excepcionais, o algodão aumentou suas vendas no exterior.

Em relação à posição do café na renda interna monetária, só

podemos fazer suposições: se, em meados do século, a

exportação representava cerca de 35% da renda e 50% da

exportação correspondiam ao café, este era responsável por

121

121

cerca de 17% da geração da renda. No fim do século, com a

exportação a 25% da renda e o café com mais de 60% da

exportação, aqueles 17% teriam caído para 15% – tudo isto

significava, ainda, uma enorme participação, que mostra a

concentração monocultural da economia.

Ao mesmo tempo, o Brasil aumentava sua

participação no mercado mundial do café até dominá-lo,

de 18,2% na década de 18290 para 40,0% em 1840/49,

52,1% em 1850/59 e 56,6% em 1880/89. Até o fim do

século chegará a 66,7%. Com o café repetiu-se o que

apenas aconteceu com o açúcar entre o fim do século

XVI e meados do século XVII: o Brasil era fornecedor

regular e dominante do respectivo mercado. Entretanto,

torna-se difícil afirmar que o mercado do café era um

seller’s market. É verdade que já no século XIX, o

Brasil tentou orientar os preços (em 1883/84 financiou

um corner do café). Mais tarde, as políticas de

valorização serão aplicadas, às vezes, com sucesso a

curto prazo, mas contraproducentes a longo prazo por

proteger a entrada no mercado de concorrentes

marginais. O sucesso da manipulação de preços era

limitado pela elevada elasticidade da demanda na alta

dos preços e reduzida na baixa – fato ligado a pouca

essencialidade do produto.

9.5.2 Pauta de exportação: outros produtos

A exportação voltava a ser o setor dinâmico da

economia, fonte de renda, sustentáculo do balanço de

122

122

pagamentos e núcleo de capitalização. Entretanto, esta

situação devia-se, exclusivamente, ao café com a

exceção de alguns pequenos períodos.

A exportação, sem café, evoluiu como segue em

valores decenais acumulados:

(£ 1000) índice

1821/30

1831/40

1841/50

1851/60

1861/70

1871/80

1881/90

29.603

27.675

30.954

52.278

81.467

86.637

84.708

100,0

93,5

104,6

176,6

275,2

292,7

286,1

No início verifica-se uma tendência ligeiramente ne-

gativa e, em 30 anos, estacionária. Entre 1841/50, 1851/60

e sobretudo na década seguinte, a expansão deve-se,

também, ao algodão e, subsidiariamente, ao açúcar, peles e

couros, fumo e borracha. Finalmente, apenas a borracha

progride, enquanto os demais principais produtos recuam.

Não fosse o café, a exportação não teria encontrado novas

soluções, a não ser a da borracha, precária e passageira (até

1910). A exportação decenal de café aumentou, entre 1821/

30 e 1881/90, 18,8 vezes, a total 5.9 vezes e a dos demais

produtos apenas 2.9 vezes. E a exportação continuava

concentrada em alguns produtos. Entre 1840/50 e 1881/90,

a concentração acentuou-se entre 6 produtos, aumentando

sobretudo, a participação do café e da borracha:

123

123

(% do valor total da exportação)

1841/50 1881/90

Café

Algodão

Açúcar

Fumo

Peles e couros

Borracha

41,3

7,5

26,7

1,8

8,6

0,4

61,7

4,2

10,0

2,8

3,2

7,7

Total dos 6 produtos 86,3 89,6

Na zona do café, as próprias culturas de ex-

portação foram prejudicadas pela concentração dos

fatores de produção no produto prioritário. Nas outras

regiões dominaram, ainda, os produtos tradicionalmente

cultivados, marginalizados pela falta de um mercado em

expansão, pela incapacidade de competição por causa da

escassez de capitais e atraso da tecnologia.

Vale um rápido exame dos principais artigos de

exportação:

a) Açúcar. Continuou representando a principal

produção do Nordeste, embora tenha se desenvolvido,

também, no Norte e no Centro-Sul (Minas Gerais, Rio

de Janeiro e São Paulo). As quantidades produzidas e

exportadas haviam aumentado: no início da segunda

metade do século, andavam em torno de 8 milhões de

arrobas, mas o mercado ressentia-se cada vez mais da

concorrência do açúcar de beterraba que ia finalmente

cobrir cerca de dois terços do consumo mundial. Além

disso, apareceu a concorrência do açúcar africano e

124

124

indiano. Em 1878, a arroba valia, no máximo, 1.800

réis, ou seja pouco mais de £ 0,17.

A exportação cresce, ainda, até £ 21,6 milhões

durante a primeira década da segunda metade do século.

Depois, o valor fica praticamente estacionário, com uma

queda mais sensível entre 1861 e 1870 por causa do

retraimento da demanda norte-americana.

Face às novas condições competitivas, o açúcar

brasileiro não soube renovar-se tecnologicamente. No

princípio do século XIX houve melhoria nas variedades

cultivadas de cana, mas a lavoura ficou a mesma, à base

de enxada e foice, sem pelo menos o uso do arado, e

sofrendo as conseqüências das pragas. No tratamento da

cana, o século XIX trouxe a introdução da moenda de

cilindros de ferro, o uso de centrifugadores e o emprego

da máquina a vapor. Foram concedidos, inclusive,

incentivos tributários para o uso de máquinas, porém

sem grandes resultados: em 1857, Pernambuco tinha

1.106 engenhos dos quais apenas 18 movidos a vapor. E

proliferavam os pequenos engenhos (ainda em 1878, na

mesma província, abundavam engenhos que produziam

entre 2 e 6 mil arrobas por ano). Falta de capitais, falta

de mão-de-obra (sobretudo por causa da abolição do

tráfico e a atração exercida pelo café), atraso

tecnológico. Ao preço de 1.800 réis por arroba (1878),

um escravo produzia por ano 180 mil-réis (100 arrobas),

enquanto no setor cafeeiro, produzia 800 mil-réis, sem

precisar de tantos investimentos em equipamentos. A

zona açucareira não conseguiu recuperar o atraso

sofrido a partir da queda do ciclo do açúcar. Há quem

125

125

sustente que o atraso foi provocado, especialmente, no

século XIX pela aplicação de uma taxa cambial ditada

pelo café e inadequada por tornar o açúcar brasileiro

competitivo no mercado mundial. (5)

Uma tentativa de melhora empresarial foi feita a

partir de 1875 pela constituição dos engenhos centrais

(garantia de juros de 6,5-7% a.a., e outros favores para

atrair, inclusive, capitais estrangeiros). Eles deviam

beneficiar, com maquinaria moderna, a cana fornecida

pelos cultivadores, mas foi exatamente este o ponto de

estrangulamento do sistema, decorrente do atraso do

setor agrícola. Capitais ingleses foram investidos,

atraídos pela garantia de juros de 6,5% a.a. Nova fase

começou, em 1890, com a constituição das usinas,

grandes unidades de produção de cana e fabrico de

açúcar.

b) Algodão. O Brasil tinha perdido, já no início

do século, o mercado inglês para o concorrente norte-

americano. Novas oportunidades surgiram quando, por

causa da Guerra de Secessão, a concorrência norte-

americana foi eliminada temporariamente: o algodão

brasileiro chegou a representar 60% da importação

inglesa; no fim do século voltou para cerca de 20%. Os

preços refletiam, com efeito, a nova situação: em

meados do século, o preço da tonelada situava-se em

torno de £ 45; na década de 1861/70 chegou a mais de £

90. Já na década seguinte começava a baixa, chegando

ao mínimo de £ 33 em 1882/83, para recuperar-se a £ 56

no ano da proclamação da república.

126

126

A variação da conjuntura manifestou-se do

mesmo modo nas quantidades embarcadas e nas receitas

de exportação. Estas subiram de £ 3.952 mil na década

de 1841/50 e £ 6.325 mil em 1851/60 para £ 27.503 mil

durante os anos 1861/70. Depois a receita caiu até £

9.229 na década 1881/90. As principais províncias

produtoras e exportadoras continuavam no Norte e

Nordeste: Pernambuco, Alagoas, Paraíba, Maranhão,

Bahia, Ceará – contudo produzia-se, também, em São

Paulo (abandonado parcialmente a favor do café), no

Sul, no Centro-Oeste.

A introdução do tipo de algodão herbáceo no

início do século foi inovação bem-vinda, mas, tal como

em outros setores, a renovação tecnológica (por

exemplo, o descaroçador moderno) tardou. Após 1865,

este atraso tecnológico, a mudança da agricultura, a fuga

de escravos para o Sul, a falta de capitais esvaziaram

novamente o setor, diminuindo as perspectivas de

reerguimento econômico da região mais ligada ao

produto – o Norte e o Nordeste.

c) Borracha. Sem chegar a seu apogeu neste

período, a borracha, cuja demanda estava em plena

ascensão em decorrência do processo industrial e da

descoberta da vulcanização, começou a firmar-se antes

do fim do século, aproveitando as condições naturais (a

hévea é planta nativa), as disponibilidades de mão-de-

obra (proletariado rural do Norte e Nordeste, sobretudo

depois da grande seca de 1877), a tecnologia primitiva

acessível, a pouca exigência de capitais. A produção

127

127

localizou-se na Amazônia, facilitada pela introdução da

navegação a vapor após 1853.

O verdadeiro boom (ou subciclo) da borracha

situa-se entre 1890 e 1910, mas mesmo antes observa-se

o abandono de atividades tradicionais – lavoura,

pastoreio, artesanato típico – a favor dessa atividade

mais prometedora. Em 1850, a exportação anual não

passava de 1.467 toneladas; em 1880, entretanto, atingia

16.394 toneladas. Do valor acumulado de £ 2.107 mil na

década 1841/50 chegou a £ 16.920 mil em 1881/90.

Ao lado do café e os três grandes produtos

citados, acrescentavam-se as peles e os couros (£ 4.531

mil na década 1841/50, £ 10.967 mil em 1871/80,

caindo para £ 7.032 mil em 1881/90) produzidos quase

em todas as regiões, mas sobretudo no Nordeste e no

Sul, os dois centros de criação de gado. O fumo também,

(£ 948 mil em 1841/1850, £ 6.779 mil em 1871/80)

produzido sobretudo no Nordeste, expandiu suas vendas

para os países industrializados, mais do que compen-

sando a perda do mercado africano após a abolição do

tráfico.

Em posições inferiores: cacau, no Nordeste (Ba-

hia) e Norte (Pará), merecendo destaque porque so-

bretudo na Bahia, a simples coleta transformou-se em

lavoura; o ouro, cujas jazidas aparentes se esgotavam,

de modo que a produção caiu da média anual de 2.533

quilos em 1821/1850 para pouco mais de 2.240 quilos

em 1851/1865 e 1.735 quilos em 1866/1875 (novas pers-

pectivas abriram-se com a concessão de exploração por

empresas estrangeiras); madeiras, castanhas do Pará,

128

128

cravo no Norte; pau-brasil (em vias de completo desa-

parecimento), caroá, carnaúba, diamantes (Chapada

Diamantina; Serra das Arociras, em 1842) no Nordeste;

madeiras no Sul e Centro-Sul; erva-mate no Sul (a sua

participação no valor otal da exportação oscilou em

torno de 1,10-1,50% no período 1851/1890; cristal de

rocha e ipecacuanha no Centro-Oeste.

9.5.3 Importações

Tal como a pauta de exportação caracterizava um

país subdesenvolvido, exportador de produtos primários

– matérias-primas e gêneros alimentícios – apenas

parcialmente industrializados (como no caso do açúcar),

“a pauta de importação convergia para a mesma

caracterização. Como ela era formada na sua maior

parte de bens manufaturados de consumo e muito poucas

matérias-primas e combustíveis, denota a inexistência

de uma indústria exigindo insumos que não podiam ser

produzidos internamente. Ainda mais: encontra-se na

pauta, uma boa proporção de gêneros alimentícios, em

parte preparados, o que demonstra a incapacidade da

oferta agrícola local, absorvida como era pelo café.

Os levantamentos estatísticos são escassos, porém

algumas amostragens são expressivas. Podemos clas-

sificar os principais itens de importação em dois

momentos selecionados, conforme mostra o Quadro 9.4.

129

129

Quadro 9.4

Estrutura das importações

(% do valor total)

1839/40-1843/44 1870/71-1874/75

Manufatura de algodão, lã,

seda e linho

Artigos de vestuário

(calçados, chapéus, etc.)

Gêneros alimentícios e

bebidas (farinha de trigo,

sal, carnes, manteiga,

bacalhau, azeite, etc.)

Carvão de pedra

Ferro, aço, ferragens, cobre

Bens duráveis de consumo

(louças, ouro, prata)

Couros preparados

Papel e aplicações

Produtos químicos e

farmacêuticos

Máquinas e acessórios

49,5

2,1

21,0

1,0

4,8

1,8

1,6

0,8

1,0

0,2

43,0

3,4

19,6

3,5

8,8

5,4

2,7

1,6

1,5

2,9

Entre os dois qüinqüênios selecionados, a média

das importações subiu de £ 6,3 milhões para £ 17,1 mi-

lhões, portanto os valores absolutos em cada classe cres -

ceram. O aspecto global ficou, em termos relativos, qua-

se o mesmo, mas alguns detalhes podem ser apontados,

denotando alterações estruturais na economia: aumento

de certos produtos manufaturados indicando elevação

dos padrões de consumo; redução das manufaturas

têxteis correspondendo ao início da indústria nacional;

aumento das importações de máquinas, acessórios, fer -

ragens, metais, combustível mineral, em ligação ao

mesmo desabrochar da indústria. Os 5 itens ligados à

130

130

indústria (ferro, aço, cobre, carvão, ferragens, máquinas

e acessórios) aumentaram, entre os dois períodos se -

lecionados, de £ 447 mil para £ 2.269 mil, ou seja,

408%. No mesmo intervalo, as importações totais

cresceram cerca de 100%, apenas.

Após a estagnação do início do século encon-

tramos um crescimento paralelo às exportações: de £ 4,0

milhões em 1830 para £ 7,5 milhões em 1840, £ 9,2

milhões em 1850, £ 13,3 milhões em 1860, £ 14,9

milhões em 1870, £ 16,5 milhões em 1880 e £ 24,0

milhões em 1890 – em tudo um aumento de 6 vezes em

10 anos (7,9 vezes para as exportações). Em termos per

capita a importação cresceu, entre as duas datas-limites,

de £ 0,75 para £ 1,69 (para a exportação, de £ 0,63 para

£ 1,86).

9.5.4 Políticas comerciais

No período em foco, as políticas comerciais

concernentes à exportação não apresentaram nada de

especial. O café desenvolvia-se normalmente e não

parecia exigir uma estratégia específica, tal como devia

acontecer no fim do século e, ainda mais, no século

seguinte. Os problemas que preocupavam mais eram de

natureza financeira, monetária e cambial, como veremos

mais adiante. Outrossim, a perpétua desvalorização

cambial constituía incentivo para as exportações. E, o

poder competitivo destas era considerado bastante

grande para permitir a aplicação do importo de

exportação cuja incidência variou entre 2 e 9%; no fim

131

131

do Império era de 7%. Em 1850/51, o imposto sobre a

exportação representava 14,4% receita do Tesouro; em

1870/1871, 15,3%; em 1889, 9,3% – demonstrando a

necessidade de não onerar demasiado as exportações,

quando sua pujança começara a afrouxar. E havia,

também, impostos regionais (provinciais e municipais)

que as oneravam.

No que tange à política alfandegária sobre

importação, dominou o espírito fiscalista , a idéia de

obter uma receita para o erário público quando o

mercado interno, encolhido, não oferecia boas

perspectivas de tributação. Entretanto, esta política,

iniciada com a tarifa Alves Branco de 1844, teve

também reflexos protecionistas que irão manifestar-se

nas primeiras tentativas de implantação de uma indústria

nacional.

A evolução da política tarifária seguiu os

seguintes marcos:

- tarifa Alves Branco (1844), com uma incidência

média de 40%, mas variando entre 20 e 60%, com maior

tributação sobre têxteis e bebidas (50-60%);

- tarifa Souza Franco (1857), com taxas

específicas e ad-valorem, com reduções para alimentos,

ferramentas agrícolas, máquinas e matérias -primas para

as indústrias (estas últimas duas pagavam 15%);

- tarifa Silva Ferraz (1860), também com taxas

fixas e ad-valorem, com reduções para ferragens,

armamentos, ferramentas e máquinas;

- tarifa Rio Branco (1874), unificando a

132

132

incidência para 40%, com isenção para plantas, raízes,

máquinas agrícolas e industriais;

- tarifa Assis Figueiredo (1880), com novas

isenções para máquinas agrícolas e outras;

- tarifa Saraiva (1881), adotando uma incidência

móvel na base de listas de preços alterados conforme a

taxa de câmbio;

- tarifa Belizário de Souza (1887), aumentando a

incidência para os produtos com similar nacional e

negando a proteção às indústrias que não utilizavam

matérias-primas nacionais;

- tarifa João Alfredo (1888), com incidência

móvel para compensar as flutuações cambiais.

Observa-se que, ao lado da preocupação com a

garantia da receita do imposto de importação face às

flutuações de preços e câmbio (este imposto repre-

sentava 62,7% da receita em 1850/51, 54,2% em

1870/71 e 48,3% em 1889), medidas referiam-se ao

fortalecimento da agricultura, sobretudo a destinada à

exportação, e à sustentação dos primeiros passos da

indústria.

9.5.5 Balança comercial e distribuição geográfica do

comércio exterior

a) O início do século havia se caracterizado pela

estagnação das exportações. Entretanto, numa economia

cuja despesa se orientava tradicionalmente para o

mercado externo, a demanda de importações manteve-se

bastante ativa sobretudo depois da chegada da Corte,

133

133

cujo poder de compra era mais elevado.

A própria concentração de fatores de produção no

setor cafeeiro, principalmente a partir de 1830, se de um

lado reativou a receita de exportação, esvaziou, ainda mais,

a agricultura de subsistência. (Quase se pode falar num

multiplicador negativo das exportações em relação a esta

agricultura). As limitações da produção industrial e

artesanal impunham, também, o recurso à importação. O

resultado foi que, até a década 1851/60 inclusive, a

balança comercial foi quase permanentemente negativa – o

que criou, como vamos ver mais adiante, problemas no

balanço de pagamentos. Entre as décadas 1841/50 e

1851/60, as importações acusaram um aumento enorme, de

88,9% que reflete, provavelmente, as alterações provocadas

pelo café: elevação das rendas e esvaziamento da

agricultura de subsistência.

Nas três décadas anteriores à República, as

importações continuaram crescendo, porém em ritmo

menos acentuado – o abastecimento interno melhorava

tanto no setor agrícola como no industrial. Por outro

lado, as exportações aumentaram as taxas elevadas

graças ao café em plena expansão, ajudado pelo algodão

na década 861/70 e pela borracha no fim do período. O

resultado foi a transformação do déficit em superávit na

balança comercial, aliviando a posição do balanço de

pagamentos.

O Quadro 9.5 mostra a evolução da balança

comercial:

134

134

Quadro 9.5

Balança comercial

(£ milhões – dados decenais acumulados)

Exportação Importação Saldo

1831/1840

1841/1850

1851/1860

1861/1870

1871/1880

1881/1890

49,2

52,7

102,0

149,5

199,4

219,7

54,3

60,1

113,5

132,0

164,9

195,4

– 5,1

– 7,4

– 11,5

+ 17,5

+ 34,5

+ 24,3

Nos 60 anos em foco, o resultado global foi um

superávit de £ 52,3 milhões que representava mais de 4

vezes a exportação média anual do período (£ 12,9

milhões).

Entretanto, o comércio exterior mostrava aspectos

negativos, senão perigosos. A exportação, responsável

por uma grande parcela da renda gerada no país e

constituindo o setor principal de capitalização, estava

concentrada em alguns produtos e principalmente no

café – o que a tornava sensível aos eventuais reveses do

mercado internacional. E a importação – que era fonte

de abastecimento de bens de consumo essenciais e, mais

tarde, devia ser fornecedora de equipamentos e

matérias-primas para a indústria – dependia, em grande

parte, da receita de exportação.

b) A distribuição geográfica do comércio exterior

mostra o mesmo excesso de concentração: se este fato

não prejudicou os fluxos normais de exportação e

importação, aumentou o grau de dependência econômica

135

135

em relação a algumas praças dominantes.

Na segunda metade do século XIX, a Inglaterra

conserva a supremacia no comércio exterior brasileiro.

Principalmente, na importação ela apresenta-se como,

de longe, o mais importante fornecedor. Na exportação

os Estados Unidos mostram-se competidores impor-

tantes, em grande parte, por serem grandes compradores

de café.

Entre 1850 e 1870, a participação da Inglaterra

nas exportações brasileiras flutuou entre 30 e 40%, a

dos Estados Unidos entre 28 e 35%. No segundo plano,

com participações entre 5 e 10% entravam a França, a

Alemanha, a Argentina e Portugal. Em 1867/68, por

exemplo, estes 6 países cobriam 80% das nossas

exportações.

Nas importações, a concentração era maior, pois a

Inglaterra participou, no período, com 50 a 55% do

valor total, seguida pela França com 12 a 14%. Numa

faixa entre 5 e 10% encontravam-se os Estados Unidos,

a Alemanha e Portugal. Os mesmos 6 países citados

eram responsáveis, em 1858/59, por 93% das

importações brasileiras.

9.6 Agricultura de subsistência

No início da segunda metade do século XIX, a

agricultura destinada ao consumo interno, já mar-

ginalizada desde o início da vida econômica do Brasil,

sem capitais, sem tecnologia, não recebeu nenhum

reforço capaz de melhorar sua situação. A citada lei de

136

136

1850 sobre as terras devolutas não era de natureza de

alterar uma estrutura agrária pouco incentivadora para

a média empresa agrícola.

Esvaziamento maior sofreu a agricultura de

consumo por causa da própria expansão do café. Foi,

sobretudo no período de 1850 a 1870, que culturas de

subsistência foram abandonadas em benefício do café. A

forte alta dos preços dos gêneros alimentícios – fonte

perene de inflação – reflete a retração da oferta. A

abolição do tráfico, elevando o preço dos escravos,

prejudicou o setor de subsistência que, pela sua baixa

rentabilidade, não podia competir com os compradores

de escravos do setor cafeeiro. Isto fez com que

começassem a ser importados gêneros alimentícios

tradicionalmente nacionais – feijão, arroz, milho – além

daqueles, já antes, pouco produzidos no país – banha,

manteiga, presunto. Pode-se dizer que a expansão do

café provocou um fenômeno de substituição por

importações, isto é, o déficit de abastecimento provo-

cado pelo desvio de fatores para o café era coberto pela

importação. Com menores efeitos sobre a economia

nacional, mas com maior violência, o mesmo fato

aconteceu na Amazônia durante o subciclo da borracha.

Continuaram as culturas tradicionais – mandioca,

milho, feijão, arroz – mais a criação do gado, a pesca

(baleia), a coleta florestal, a indústria salineira, mas

sofrendo, todas, além dos revezes mencionados, da falta

de renovação tecnológica, da falta de mão-de-obra

qualificada (ou mesmo de mão-de-obra qualquer), da

falta de capitais em decorrência da baixa rentabilidade,

137

137

da falta de uma infra-estrutura de transportes (o pouco

que se possuía, estava, em grande parte, ligado à

exportação), da falta de um mercado mais amplo (a

concorrência das importações refletia-se negativa-

mente), da falta de créditos (uma lei hipotecária de 1864

previu empréstimos a 10-30 anos e 6% a.a. de juros, mas

normalmente eram os bancos comerciais que forneciam

créditos, a prazos e juros incompatíveis com as

atividades agrícolas).

No mesmo período, entretanto, um fator novo

veio impulsionar e diversificar a agricultura: a entrada

mais densa de imigrantes europeus a partir de 1850 e

principalmente após 1880. Tratava-se de população de

certos conhecimentos agrícolas, de maior produtividade

e de padrões de consumo mais elevados. Um suplemento

de demanda proporcionava maiores dimensões ao

mercado, e uma capacidade maior de produção permitia

a elevação das rendas. O processo verificou-se nas áreas

de preferência destes imigrantes – São Paulo e todo o

Sul, e um pouco menos no Centro-Sul.

Resultou uma certa renovação dos métodos

agrícolas com elevação da produtividade do setor de

subsistência. Resultou, também, maior diversificação da

produção, com possibilidade, desta feita, de substituir

as importações: trigo, vinhas e criação de porcos pelos

alemães e italianos no Rio Grande do Sul, frutas e gado

leiteiro no Paraná e Santa Catarina. E mesmo em São

Paulo, apesar da fixação em torno do café, certos

progressos em cereais, hortigranjeiros, pecuária. Em

termos absolutos e relativos, a economia de subsistência

138

138

cresceu, sobretudo, devido à expansão demográfica: a

população aumentou 2,5 vezes entre 1850 e 1900;

descontando os escravos, o aumento foi mais de 3 vezes.

Finalmente, as dimensões do mercado cresceram

em decorrência da elevação das rendas, esta, devida, em

grande parte, ao café: o efeito multiplicador não deixou

de se manifestar e não apenas nos reinvestimentos no

próprio setor cafeeiro, mas também em outros setores –

importação, artesanato nacional, comércio e, mais tarde,

na agricultura de subsistência. O mercado concretizou

suas dimensões graças à expansão da rede de

transportes.

É verdade que a criação dos meios de transportes

foi ligada, em grande medida, às necessidades do setor

exportador (assim, por exemplo, as citadas ferrovias de

São Paulo), mas não podia deixar de beneficiar o

mercado interno. Houve progressos na construção de

rodovias (União e Indústria – 1860 – para facilitar o

escoamento da zona cafeeira do Rio de Janeiro e Minas

Gerais; rodovias, embora rudimentares às vezes, foram

abertas em outras regiões). Progressos nas ferrovias:

iniciativa pioneira de Mauá – 1854; ferrovia D. Pedro II

– 1858; a partir de 1858 no Nordeste, São Paulo – 1867,

Rio Grande do Sul – 1874, Paraná – 1883, Santa

Catarina – 1884. A introdução do sistema de garantia de

juros para os investidores no setor foi incentivo

importante, e os capitais estrangeiros desempenharam

papel fundamental na expansão do setor. Alguns

empréstimos públicos foram contratados no estrangeiro

com o mesmo objetivo: o de 1858 (£ 1.526.500) para o

139

139

prolongamento da Estrada de ferro D. Pedro II; o de

1860 (£ 1.373.000) para o prolongamento da estrada de

ferro Pernambuco; o de 1883 (£ 4.599.600) para, entre

outras, melhoria de estradas de ferro; o de 1888 (£

6.297.300) para construção e prolongamento de estradas

de ferro federais; o de 1895 (£ 7.442.000) para a

estrada de ferro Este de Minas.

Ao mesmo tempo realizavam-se progressos na

navegação fluvial e marítima com a introdução da

navegação a vapor na Amazônia (1853), no rio São

Francisco (1872) e em outras regiões. Em 1851, abria-se

a primeira linha marítima regular entre Southampton e

Rio de Janeiro. Acrescentem-se, também, os avanços em

meios de comunicação (telégrafo, cabo submarino etc.),

ligados às necessidades de centralização administrativa

imperial.

Por outro lado, a expansão dos meios de

transporte oferecia novas oportunidades à indústria

incipiente, tanto em termos de demanda de produtos

industrializados como de criação de infra-estrutura para

o mercado nacional.

9.7 Início da indústria

Se, para identificar na economia brasileira o

fenômeno da industrialização (isto é, o momento em que

o setor secundário assume maior participação na

composição do produto e da população ativa, e maior

dinamismo em termos de rentabilidade, capitalização e

reflexos no resto da economia), teremos que esperar até

140

140

depois da Segunda Guerra Mundial, não quer dizer que a

indústria surgiu de uma vez naquela época ou em outro

momento único anterior. Como era normal, houve uma

evolução lenta que começou desde o século XIX.

Predominavam, inclusive na segunda metade do

século, as indústrias caseiras, o artesanato: fiação,

tecelagem, cerâmica, produtos alimentícios, pequenos

artigos de consumo. O setor foi melhorado, após 1850,

graças à entrada dos imigrantes europeus, de maiores

tradições artesanais. Quanto à indústria, a única

realmente digna deste nome, antes de 1850, era a de

construção naval. Houve, também, as tentativas

fracassadas da siderurgia, e a constituição de pequenas

fábricas de artigos de consumo, de alimentação e

vestuário.

As condições mudaram em meados do século,

tornando-se mais favoráveis para a constituição de um

núcle industrial nacional:

a) A partir da tarifa Alves Branco (1844), a

política aduaneira foi acentuadamente protecionista

(mesmo se não visava diretamente a este objetivo).

Como já mencionamos, algumas medidas específicas

foram tomadas para incentivar a entrada de equi-

pamentos e matérias-primas industriais.

b) Uma proteção suplementar resultou da

contínua deterioração do valor externo da moeda

nacional, deterioração que beneficiava os exportadores,

mas que, elevando o preço das mercadorias importadas,

protegia, também, a indústria nacional.

141

141

c) A elevação das rendas, resultante, em grande

parte, do café, implicou em intensificação da demanda

e, portanto, em expansão do mercado interno. Ao mesmo

tempo, permitiu o aumento da poupança que ia tornar -se

disponível para investimentos industriais. A longo prazo

a expansão das exportações foi compatível com a

implantação da indústria.

d) Como já foi dito, a criação da infra-estrutura

de transportes e comunicações constituiu, também para

a indústria, uma boa base. O aparecimento de

estabelecimentos bancários , apesar de suas limitações

inerentes à inexperiência e de suas práticas abusivas,

constituiu outro fator positivo.

e) A mudança das condições gerais da economia,

com a verificação de novas oportunidades de lucro,

atraiu capitais estrangeiros. Entre 1860 e 1890, 137

empresas estrangeiras foram autorizadas a funcionar,

entre as quais 22,6% no setor de seguros, 19,0% na

mineração, 13,1% nas ferrovias, 9,5% em serviços

públicos de gás, transportes e comunicações, 8,0% em

atividades bancárias, e 5,8% no setor de energia. Vale

sublinhar o interesse do capital estrangeiro pela criação

de infra-estrutura. O capital inglês foi predominante: em

1880 somava £ 23,1 milhões em títulos governamentais

e £ 15,8 milhões em investimentos privados.

f) A abolição do tráfico e a melhora das

condições gerais da economia abriram caminho para a

mão-de-obra livre, de outro nível tecnológico e outros

hábitos de consumo. Conseqüentemente, tanto a

demanda como a oferta de produtos industriais

142

142

cresciam.

g) A entrada dos capitais estrangeiros, inclusive

dos imigrantes, bem como o progresso dos meios de

comunicação permitiram um a certa renovação

tecnológica. O aumento das patentes autorizadas no

período constitui um bom indicador: entre 1851 e 1875,

222 patentes; entre 1876 e 1889, 1.249 patentes.

h) A renovação tecnológica, a racionalidade

econômica, o aumento do consumo correspondiam ao

progresso cultural processado desde a primeira metade

do século. No plano estritamente econômico este

progresso manifestou-se pela criação de uma

mentalidade empresarial cujo representante pioneiro e

mais brilhante foi Irineu Evangelista de Souza,

Visconde de Mauá.

A figura de Mauá distingue-se na sua época,

porque marca, por antecipação, uma nova fase em que o

agente dinâmico não é mais o fazendeiro, e sim o

homem da indústria, do comércio e das finanças. É

expressiva a variedade de campos em que Mauá foi

pioneiro – e com bastante êxito, até o melancólico e

desmerecido fim que foi sua falência: construção naval

(estaleiro da Ponta da Areia), navegação fluvial (Cia. de

Rebocadores a Vapor, no Rio Grande do Sul e Cia. de

Navegação a Vapor do Amazonas), ferrovias (ferrovia

Mauá-Raiz da Serra em 1854, e auxílio financeiro às

ferrovias Pernambuco-São Francisco, D. Pedro II,

Bahia-São Francisco, Santos-Jundiaí, Rio Verde em

Minas Gerais), serviços de utilidade pública (gás de

iluminação para o Rio de Janeiro – 1854), bancos

143

143

(Bando do Brasil – 1851, Banco Mauá e Cia., ligações

bancárias na Inglaterra e no Uruguai).

Mauá destaca-se pelo seu pioneirismo e pela sua

versatilidade, mas outros o acompanharam ou seguiram

seu exemplo, como, por exemplo, Teixeira Leite nas

ferrovias, Souto nas atividades bancárias, Teófilo Otoni,

Mariano Procópio nas rodovias. A presença do

empresário não foi dos fatores menos importantes para o

início da indústria.

Que este início se verificou já no período ora

analisado, não há dúvida contanto que não se dê sentido

exagerado a estes primórdios. Já vimos que a própria

evolução da pauta de importações fornece sugestões

valiosas quanto às possibilidades da produção nacional.

Vejamos outras:

a) De acordo com informações diretas, embora

precárias, o Brasil tinha, em 1850, 50 fábricas com o

capital de 7 mil contos de réis (cerca de £ 800 mil, valor

de 500 mil sacas de café). Em 1889 havia 636 fábricas,

com capital de 400 mil contos e 54 mil operários. A

produção teria sido estimada em cerca de 500 mil contos

– porém isto parece altamente exagerado. Acrescente-se

que a indústria era quase exclusivamente de bens de

consumo, sobretudo têxteis (60%).

b) Entre 1850 e 1860 foram fundadas 62

indústrias, além de 8 companhias de mineração, 20 de

navegação a vapor, 3 de transportes urbanos, 8 de

144

144

produção de gás, 23 de seguros, 4 de colonização, 8

estradas de ferro, 2 caixas econômicas e 14 bancos.

c) no censo industrial, de 1920, encontramos as

seguintes empresas, ainda existentes, e fundadas antes

de 1889:

Período de

fundação

Nº de

empresas

Operários/

empresa

Força motriz

(HP)/ empresa

até 1849

1850-1859

1860-1869

1870-1879

1880-1889

35

24

54

125

398

83,7

94,6

48,9

82,0

90,7

59,3

55,3

45,8

92,5

123,2

É interessante observar, que empresas fundadas

até 1859 tem, em termos de operários e força motriz por

empresa, dimensões maiores do que outras constituídas

mais recentemente. O tamanho pode explicar sua

sobrevivência até o censo de 1920, mas o fato é que não

encontramos a mesma situação para as empresas

fundadas em 1860/1879.

d) No período 1866/1885, a indústria têxtil

cresceu a taxas bastante elevadas: a produção a 9,4%, o

número de teares a 10,0% e o número de operários a

7,6% - taxas limitadas ao setor mais avançado, mas já

satisfatórias como indicadores de crescimento industrial.

Esses primeiros passos foram fundamentais, mas

insuficientes para poder-se falar num verdadeiro surto

industrial, capaz de alterar a posição predominante de

145

145

outros setores, a saber, a agricultura e, mais

especificamente, a agricultura de exportação, o café. O

período decisivo, de transição, coincidirá com o advento

da República, mas será ligado à crise do café e à

ocorrência de vários fatores determinantes para o

fortalecimento da indústria.

9.8 Moeda e finanças

Já temos encontrado aspectos monetários e

financeiros que influenciaram a evolução econômica do

Brasil na segunda metade do século XIX. Temos que

analisar agora, com mais detalhes, estes aspectos:

finanças públicas, endividamento externo, balanço de

pagamentos e câmbio, expansão monetária e inflação.

9.8.1 Finanças públicas

Uma atuação mais decidida do setor público teria

eventualmente apressado o processo de industrialização,

embora isto tivesse sido muito improvável, uma vez que

o Governo era dominado pela concepção mercantilista e

pelos interesses do café. Pelo menos, teria eliminado

certos percalços do sistema econômico. Entretanto,

naqueles tempos não se tinha, de modo geral,

compreendido o papel do setor público, tanto mais uma

sociedade em que o nível cultural era muito baixo ainda.

As idéias dos próprios dirigentes mais esclarecidos

resumiam-se numa posição liberal com certas

concessões protecionistas, porém de caráter fiscal,

146

146

respondendo a outro preceito básico, o do equilíbrio

orçamentário. Finalmente, o apego ao modelo do

padrão-ouro, como instrumento de equilíbrio monetário

e cambial. Desde já, diga-se que nenhuma dessas

políticas foi plenamente aplicada.

Ademais, o Tesouro Nacional lutou com difi -

culdades permanentes cujo resultado foi um déficit

orçamentário crônico. O fato deve ser expl icado, em

primeiro lugar, pelo despreparo administrativo, pela

falta de um organismo fazendário estruturado e treinado,

pela inépcia dos dirigentes. Do lado da receita, a

inexistência de uma base tributável mais ampla e de um

sistema adequado de impostos. Do lado da despesa,

além das causas gerais indicadas, pressões periódicas

por causa das guerras e revoluções; quanto a estas,

houve um período de relativa calma entre a revolução

praieira de Pernambuco (1847) e a revolução federalista

do Rio Grande do Sul (1893); em compensação, as

décadas de 1851 a 1870 conheceram as guerras contra

Rosas e Oribe, contra Aguirre e finalmente contra

Solano Lopes (guerra do Paraguai). Outras calamidades,

como a seca de 1878, agiram negativamente.

É importante sublinhar, desde já, a relevância do

setor externo tanto na receita como na despesa: os

impostos de importação e exportação constituíam a

principal fonte de recursos; o pagamento da dívida

externa (ela mesma resultante dos déficits orçamen-

tários) formava um item importante no dispêndio

público.

Vale analisar, em alguns detalhes, a execução

147

147

orçamentária:

a) Receita: Até 1844 ressentiu-se da estagnação

do setor externo, sua maior fonte de recursos, e da baixa

incidência do imposto de importação. A recuperação

começou a partir daquela época, mas no exercício

1849/50 a receita não passava de 28.200 contos de réis

contra 23.762 contos em 1829/30. Em ternos reais o

aumento limitou-se a 4,2%. Entre 1850 e 1880, a receita

subiu até 120.762 contos, ou seja, um aumento real de

118,9%. Isto correspondia a um crescimento anual de

2,5-2,6%. Como é totalmente impossível ter aumentado

o produto real a estas taxas, conclui-se que a carga

tributária elevou-se em termos relativos. Observe-se que

o próprio turnover com o exterior – exportação mais

importação – aumentou, no período, apenas 77,2% em

termos reais.

A principal fonte de receita era o imposto de

importação. A partir da tarifa Alves Branco sua

incidência cresceu, e como as importações se

expandiram, a sua arrecadação melhorou. Ademais, o

Governo aplicava taxas adicionais sobre as tarifas. Entre

1849/50 e 1879/80, a receita do imposto passou de

17.429 contos de réis para 64.756 contos, ou seja, um

aumento real de 89,9%. Em 1849/50, o imposto de

importação representava 61.8% da receita total; em

1879/80, 53,6%; no primeiro ano da República, eram

ainda 48,3%, apesar do crescimento da base tributável

dos outros impostos.

Outro imposto era o de exportação, cuja

148

148

incidência flutuou entre 2 e 15% sobre vários produtos.

Na primeira metade do século, seus resultados foram

modestos pelos motivos conhecidos. Em 1829/30 não

passava de 5,5% da receita, mas em 1849/50 esta

participação já era de 13,5%. Em 1889 tinha caído, outra

vez, para 9,3%.

Outra categoria de impostos foi a designada sob o

rótulo “imposto interior”, cuja arrecadação se

encontrava no primeiro lugar no período de estagnação

do comércio exterior: na receita total contribuiu com

33,5% em 1829/30, 17,4% em 1849/50 e 21,4% em

1889. Na realidade, tratava-se de vários impostos que

incidiam sobre as atividades locais: direitos de 15%

sobre a compra de embarcações estrangeiras, imposto

sobre a mineração do ouro, impostos sobre lojas, sisa

dos bens de raiz, impostos do selo, imposto sobre

escravos e outros; a partir de 1867, um imposto de 3%

sobre vencimentos públicos (já houve outro em 1843),

imposto de 1,5% sobre dividendos distribuídos pelas

sociedades anônimas, imposto de 3% sobre locações de

imóveis – inovações que denotam a mudança das

condições econômicas.

Discussões em torno da criação do imposto

territorial e do imposto de renda não levaram a nenhum

resultado. A resistência dos contribuintes – latifundiários

e homens de posse – foi maior. Por outro lado, para uma

economia ainda incipiente, a carga tributária era bastante

pesada: só a receita do Tesouro Nacional devia

representar uns 15% da renda interna monetária, mas

havia, também, os impostos regionais – provinciais e

149

149

municipais – muitas vezes invadindo, inclusive, a zona

de competência do poder central. A transferência de

recursos para o setor público era bastante forte, sem

corresponder a uma aplicação economicamente adequada.

b) Despesa. O seu crescimento, pelas razões

expostas, resultou em déficits quase permanentes. Entre

1829/30 e 1849/50, enquanto a receita estagnava, a

despesa subiu a 18.213 contos de réis para 28.950 contos,

ou seja, 36,9% em termos reais. Continuou subindo e

chegou a 150.134 contos em 1879/80 – aumento real de

165,0% sobre a despesa de 1849/50 – representando

aproximadamente 20% da renda interna monetária.

Quanto à composição da despesa, os dois princi-

pais destinos foram os Ministérios da Guerra e da Ma-

rinha de um lado, o Ministério da Fazenda (inclusive o

serviço da dívida pública), do outro. Em 1849/50, por

exemplo, os primeiros eram responsáveis por 40,6% da

despesa, o outro por 37,1%. Em 1867/68, em pleno es-

forço de guerra com o Paraguai, a despesa militar

chegou a 52,7%, elevando o total da despesa a 165.985

contos; o Ministério da Fazenda entrava com 29,5%. Em

1879/80, os ministérios militares não exigiam mais de

16,1%, enquanto a despesa da Fazenda representava

41,2%.

Com estes dois itens abrangendo entre 60 e 80%,

acrescentando-se as despesas da pasta do Império

(depois, do Interior), quase nada sobrava para despesas

de caráter desenvolvimentista, como agricultura,

indústria, obras públicas. A mentalidade do tempo

150

150

reflete-se na organização do orçamento.

c) Déficit. O resultado conjugado do com-

portamento da receita e da despesa foi um déficit

crônico: entre 1849/50 e 1886/87, apenas três exercícios

apresentaram superávit.

As causas podiam encontrar-se do lado da receita,

quando, em decorrência da recessão mundial ou local, o

comércio exterior se retraía, provocando a diminuição

da receita dos impostos de exportação e, sobretudo,

importação. Do lado da despesa, havia o ônus da dívida

pública interna e externa, além de causas acidentais.

Entre estas, a guerra do Paraguai quando o déficit

(94.784 contos de réis em 1867/68) chegou a representar

133,1% da receita. Depois, o resultado melhorou,

embora ainda déficitário. Outro aperto foi provocado

pela seca do Ceará: o déficit de 1878/79 subiu nova-

mente até 55,8% da receita.

Face à insuficiência dos recursos normais, o

Tesouro apelou para os empréstimos internos e externos,

e para as emissões de papel-moeda.

9.8.2 Endividamento externo, balanço de pagamento

e câmbio

A dívida interna cresceu durante o período, e seu

serviço constituiu um permanente ônus para o Governo.

No fim do Império, ela montava a 506 mil contos de réis

(entre títulos de dívida, empréstimos, depósitos nas

151

151

caixas econômicas etc.). Era uma importância subs-

tancial – talvez 50% ou mais, da renda interna do país –

que representava uma pressão inflacionária em

potencial.

Mais grave era o problema da dívida externa que,

além de efeitos inflacionários, periclitava o equilíbrio

do balanço de pagamentos. O total dos 11 empréstimos

contraídos durante a segunda metade do século XIX

pelo Império somara, em valor nominal, £ 40.755.700.

Destes, £ 13.796.400 tiveram, como objetivo, cons-

truções de ferrovias e outras obras públicas. O resto de

£ 26.959.300 destinou-se à cobertura de déficits

governamentais, pagamento de dívidas anteriores e seus

juros. O endividamento passou de £ 6.182.550 em 1850

para £ 30.152.500 em 1890 – aumento de 387,7%. Em

1850, o endividamento representava 76,1% da expor-

tação anual, em 1890, 114,3%.

Os tipos de empréstimos foram, também,

melhores do que no período anterior, variando entre 74 e

100%, de maneira que as importâncias efetivamente

recebidas somaram £ 36,8 milhões, ou seja, em média,

90% sobre o valor nominal. Os juros sobre a dívida

nominal oscilaram entre 4,5 e 5% a.a., o que

correspondia a juros reais de 5-5,5%. Se considerarmos

que os empréstimos de caráter financeiro não rendiam

nada, uma vez que cobriam déficits de custeio, a parte

realmente produtiva, de £ 13,8 milhões, devia cobrir os

juros do total, ou seja, numa incidência de 13 a 15% a.a.

O serviço da dívida pública externa, praticamente

suspenso até 1850 quando as condições se nor-

152

152

malizaram, não deixou de constituir um ônus pesado

sobre o balanço de pagamentos, sobretudo quando a

balança comercial caía ou os capitais estrangeiros se

retraíam. O desequilíbrio provocava a desvalorização

cambial e, até o restabelecimento da situação, exigia

novos empréstimos. Estes desequilíbrios devem ter

acontecido durante as crises cíclicas dos países

industrializados, compradores de produtos de expor-

tação brasileiros e investidores de capitais no Brasil.

Entretanto, não se tem uma evidência empírica do

mecanismo em seus detalhes. Pode-se observar que,

entre 1850 e 1880, a importação anual aumentou pouco

mais de 2 vezes, enquanto a renda interna cresceu quase

3,5 vezes. É lícito concluir que, apesar da expansão do

café, havia um ponto de estrangulamento na capacidade

de importar.

É impossível reconstituir o balanço de paga-

mentos daquela época, porque faltam uma série de itens:

despesas a título de serviços, entrada e saída de capitais,

operações especulativas. Conhecemos a balança

comercial, a entrada de empréstimos públicos e a

despesa com a dívida pública externa. Por outro lado,

constata-se uma deterioração secular da taxa de câmbio.

A paridade oficial passou de 67 1/2 d. por mil -réis no

início do século – ou 1.600 réis a oitava do ouro – para

43 1/2 d. em 1833 e 27 d. em 1846 – mas a taxa real

flutuou muito mais.

Uma teoria tradicional sustenta que a desva-

lorização cambial era resultado da queda de preços dos

produtos primários durante as crises cíclicas (trans-

153

153

ferência do ônus da crise para os exportadores de

produtos primários) e, face a esta queda, a defesa dos

rendimentos daqueles exportadores via deterioração do

câmbio (transferência do ônus para a comunidade

através do encarecimento dos produtos importados).

Além do mais, quando do restabelecimento das condi -

ções normais, não se procedia à revalorização cambial.

Não há, entretanto, evidência empírica a respeito

desse mecanismo, pelo menos de uma forma genera-

lizada. O fato ocorreu várias vezes, mas houve, também,

queda de preços sem desvalorização e, ainda mais,

revalorização cambial coincidindo com melhora de

cotações.

Mesmo na balança comercial não se constata

coincidência entre queda de cotações e déficits.

Constata-se que esta queda era compensada por um

aumento de quantidades vendidas de forma que nem a

receita do café, nem o valor total da exportação sofriam

forçosamente pela deterioração dos preços.

Com as informações truncadas que temos, não

podemos explicar muito bem a flutuação do câmbio

através do balanço de pagamentos. Eis uma posição

global no período 1850/1880:

(valores decenais acumulados em £ 1000)

Balança

comercial

Emprés-

timos

Amortiza-

ções e

juros

Balanço

1850/51-59/60

1860/61-69/70

1870/71-79/80

– 11.237

+ 17.160

+ 34.777

+ 4.097

+ 8.300

+ 7.963

– 6.486

– 11.015

– 11.386

– 13.662

+ 14.445

+ 31.354

154

154

No primeiro período, o saldo é nitidamente

negativo, coincidindo com uma queda de 10,2% do valor

externo o mil-réis (de 28,74 para 25,81 mil-réis).

Entretanto, na década seguinte, apesar do saldo positivo,

a queda do câmbio foi maior – 14,5% (chegando a 22,6).

A entrada de capitais pode ter sido importante após

1850, em decorrência da abolição do tráfico. Na década

1860/70, a guerra do Paraguai exigiu despesas gover -

namentais que podem ter desequilibrado o mercado de

câmbio. Independentemente disso, a taxa de câmbio

podia ser apenas um efeito da alteração do nível interno

de preços como reflexo de outras causas autônomas.

9.8.3 Inflação

Todo o século XIX brasileiro foi inflacionário

com apenas pequenas exceções. As variações por

períodos foram as consignadas no Anexo VI.

No período de 1826 a 1887, a alta de preços foi

de 181,3% (1,7 ao ano). Inflação relativamente amena,

mas que não deixou de provocar, a longo prazo,

distorções no cálculo econômico e na distribuição da

renda. As distorções foram mais acentuadas em mo-

mentos de maior alta de preços, como nos dias que

sucederam à abolição do tráfico, ou durante a guerra do

Paraguai.

Quais foram as possíveis causas inflacionárias?

(v. Gráfico 3)

155

155

a) Conforme a teoria mencionada, a inflação

resultava de um duplo processo de transferência do ônus

das crises do mundo ocidental, mas isto carece de

confirmação empírica, pelo menos para ser aceita de

forma exclusiva e radical. A inflação realmente consiste

em transferir rendas reais de um grupo para outro: é

lícito admitir que os cafeicultores fossem, muitas vezes,

beneficiários do fenômeno, mas não constantemente

beneficiários, através do mecanismo exposto. Observe-

se que, entre 1850 e 1880, face a uma alta de preços de

95,6% a taxa de câmbio não subiu mais de 30,1%.

b) Há indicações estatísticas, mas sobretudo

qualitativas, de que o setor agrícola, fornecedor de

gêneros alimentícios, foi um foco perene de alta de

preços a qual se alastrava em todo o sistema de preços.

Sabemos as limitações do setor de subsistência e ,

também, os reveses que sofreu por causa da atração

exercida pelo café. Talvez seja a explicação mais

plausível para a tendência altista a longo prazo dos

preços no Brasil.

c) A elevação do preço do escravo, após a

abolição do tráfico e antes da parcial substituição pela

mão-de-obra assalariada, explica igualmente parte da

forte inflação do período 1851/56 (42,9%, ou seja, 6,1%

ao ano).

d) É difícil não considerar, como causa autônoma,

a expansão do meio circulante. (v. Anexo IV) Entre

1849/80, o papel-moeda emitido aumentou de 46.884

contos de réis para 215.678 contos – expansão de

360,0%. Uma parte deste aumento podia justificar-se

156

156

pelas necessidades das atividades econômicas em

expansão – inclusive em decorrência da maior mone-

tização do sistema (a abolição do tráfico e a entrada de

imigrantes contribuíram neste sentido). Uma parte podia

representar a adaptação do meio circulante aos novos

níveis de preços, provocados seja pelo gargalo do setor

externo, seja pelo da agricultura. Entretanto, estes

fatores não podem explicar todo o crescimento do meio

circulante. Dois elementos contribuíram de forma

autônoma: os déficits governamentais e a demanda de

crédito.

Depois da liquidação do Banco do Brasil, a

emissão de moeda coube ao Tesouro Nacional. Criaram-

se vários bancos comerciais que não tinham direito da

emissão, mas que, de fato, colocavam em circulação

“vales” pagáveis a curto prazo e com juros, que

funcionavam como verdadeira moeda.

Face à confusão reinante no setor monetário, fez-

se necessária a criação de um órgão emissor que foi o

Banco do Brasil (1853), resultando da fusão do Banco

Comercial do Rio de Janeiro com o Banco do Brasil de

Mauá. Exercendo o monopólio de emissão, o novo

banco procedeu a uma grande expansão monetária,

enquanto persistiam os vales dos bancos particulares. O

excesso de crédito, às vezes especulativo, ao qual se

acrescentou a depressão nos países industrializados

(provocando queda de receitas de exportação e saída de

fundos) teve como efeito a crise de 1857.

Nova regulamentação tornava-se necessária, esta

veio, portanto, pela lei de 1860, que deu a autorização

157

157

de emissões ao Banco do Brasil e mais outros seis, sob a

condição de retirarem os vales da circulação e

garantirem a conversibilidade da moeda de papel.

Dominava sempre, como em todo lugar naquela época, a

idéia do padrão-ouro, inaplicável num país de poucas

reservas metálicas como o Brasil.(6) Uma nova crise em

1864, de proporções maiores que a de 1857, provocou

reações, consubstanciadas na lei de 1866, que passou o

direito da emissão ao Tesouro Nacional. O regime

perdurou nesta forma até o fim do Império.

O quadro 9.6 oferece um panorama sintético da

evolução monetária.

Quando 9.6

Indicadores monetários

Papel-moeda emitido (contos de réis) Déficit do Tesouro

(contos de réis)

Taxa de

câmbio

Índice de

preços

Tesouro Bancos Total (variação

% no período)

(variação

% no

período)

(variação

% no

período)

1850/51

1856/57

1861/62

1870/71

1874/75

1881/82

1885/86

46.884

43.677

33.724

151.078

149.501

188.111

194.283

1.313

51.540

45.704

40.728

32.367

24.129

19.300

48.197

95.217

79.464

191.806

181.869

212.240

213.583

---

+ 97,6

– 16,5

+ 141,5

– 5,2

+ 16,7

+ 0,6

---

+ 4.107

– 19.474

– 363.110

– 42.025

– 223.806

– 108.186

---

+ 4,3

+ 4,7

+ 19,1

– 11,7

+ 17,7

+ 17,8

---

+ 41,2

+ 1,4

+ 25,8

– 0,4

+ 9,9

– 4,7

As diferentes fases aparecem bastante nítidas. Até

1856/57 não parece o Tesouro o principal responsável

pelas emissões. A taxa de câmbio ficou, também, calma.

Foi no período em que, além das causas ligadas à abolição

e ao café, a expansão de crédito, decorrente da lei de

158

158

1853, é sugerida como principal causa inflacionária. O

período seguinte até 1861/62, apesar de ligeiramente

déficitário na execução orçamentária, e do comportamento

da taxa cambial quase igual ao período anterior, acusa

uma inflação reduzida, devido a maior contenção mone-

tária. A década seguinte é dominada pela Guerra do Pa-

raguai. Os fortes déficits orçamentários exigem emissões

maciças e a inflação acentua-se. A taxa de câmbio, causa

ou efeito da conjuntura, deteriora-se de modo mais

marcante. O qüinqüênio seguinte, de déficits mais amenos,

de melhora da posição cambial e de redução do meio

circulante registra, como não podia deixar de ser, ligeira

queda dos preços.

A nova crise de 1875 alertou para a necessidade

de recompor a liquidez do sistema: o meio circulante

subiu, mas a taxa de câmbio, deteriorada, atuou no

mesmo sentido inflacionário. Os últimos anos do Impé-

rio foram de contenção monetária – o que se refletiu

tanto na taxa cambial como na evolução dos preços.

Entretanto, a liquidez do sistema deve ter sofrido: em

1886/87, o meio circulante era apenas 5,5% acima do

nível de 1870/71, enquanto os preços haviam subido

2,4%. Isto representava uma expansão real de 3,0%,

quando, no período, o produto real deve ter crescido

algo em torno de 20% ou mais. Esta situação ia provocar

reações por parte dos primeiros dirigentes da República.

9.9 Balanço do período

A performance da economia brasileira na segunda

159

159

metade do século XIX foi bem diferente das medíocres

realizações do início do século, se nos referimos ao

nível de renda, à capacidade de capitalização e às

mudanças estruturais. Este tríplice progresso foi ligado

a três fatos básicos:

- expansão da produção e exportação de café;

- início da indústria;

- eliminação paulatina da escravidão.

Em termos de renda global, de acordo com

estimativas evidentemente precárias, o aumento entre

1850 e 1900 foi de £ 27 milhões para £ 160 milhões –

um crescimento de quase 500%, ou seja, 3,6% ao ano.

Nos 50 anos anteriores, a renda crescera pouco mais de

200% ou 2,3% ao ano.

Em termos per capita, a renda chegou, no fim do

século a £ 8,9 contra £ 3,7 em meados do século. O seu

aumento foi de 140% no período ou de 1,8% ao ano.

Entre 1800 e 1850, a renda per capita cresceu apenas

37% (de £ 2,7 para £ 3,7), ou seja, a uma pobre taxa

anual de 0,6%. A renda do setor autônomo cresceu mais

que a exportação, mas de forma ainda insuficiente, tanto

é que certos autores responsabilizaram esse setor pela

reduzida performance da época.

160

160

Ao mesmo tempo a renda tornava-se mais

desligada da exportação, dependendo mais das

atividades econômicas dirigidas ao consumo interno.

Esta parcela deve ter chegado, no limiar do século XX,

a uns 75% da renda total. (v. Anexo II e Gráfico 1)

No que tange à composição do produto, a

predominância da agricultura era ainda absoluta, mas a

presença de um pequeno setor industrial, o crescimento

das atividades bancárias, o desenvolvimento dos

transportes, a urbanização constituem indícios de uma

diversificação maior do produto, com um relativo recuo

do setor primário.

Outrossim, a distribuição da renda apresentava

grandes desigualdades tanto vertical como horizontal -

mente. O café tinha criado a classe dos grandes

latifundiários – os barões do café – bem acima dos an-

161

161

tigos latifundiários do Nordeste, mas também uma

classe rural média de certa expressão. Havia, também, o

setor comercializador: exportadores, comissários, inter -

mediários – de rendas bastante elevadas. A indústria não

tinha, ainda, criado grandes fortunas, mas havia, no

setor urbano, classes de rendas elevadas seja do

comércio e dos bancos, seja da administração pública. A

população escrava diminuiu até a sua extinção em 1888,

mas existia a grande camada de camponeses de rendas

muitíssimo baixas. Infelizmente, não possuímos infor-

mações estatísticas para quantificar o perfil de rendas.

Na mesma situação encontramo-nos no que

concerne às disparidades regionais de renda. De fato, o

centro de gravidade econômica havia descido do

Nordeste para o Centro-Sul desde o século XVIII. Se

considerarmos que o setor exportador era o setor

dinâmico que se refletia, através de um forte

multiplicador (apesar de certos aspectos negativos), nos

demais setores da economia, principalmente no caso do

café, a localização geográfica das exportações repre-

senta um indicador da distribuição regional da renda.

Em torno de 1880, a exportação de café, toda ela

localizada praticamente em São Paulo, Rio de Janeiro e

Minas Gerais, abrangia mais de 55% da exportação

total. Acrescentando mais parcelas de açúcar, algodão,

peles, couros e outros produtos, chegaremos a, pelo

menos, 65% para a região Centro-Sul e Sul. Isto devia

corresponder a 18-20% da renda total. Admitindo que os

restantes 80% se distribuíram de forma igual na

população, teríamos, para as províncias entre Minas

162

162

Gerais e Rio Grande do Sul (com população cerca de

50% da população do país) outros 40% da renda total

(50% de 80%). Acrescentando os 20% da exportação,

teríamos uma concentração de 60% da renda interna

naquela região – percentagem subestimada, visto que o

nível geral de renda daquela região era reconheci -

damente ao das demais regiões.

Numa sociedade escravocrata, o estoque de

escravos pode, também, constituir um indício da

concentração da renda embora o escravo possa ser

desperdiçado (como foi o caso depois da queda da

mineração em Minas Gerais ou mesmo no Rio de

Janeiro, quando o centro do café se deslocou para São

Paulo). Com estas limitações, podemos ainda observar

que, em 1872, 962 mil escravos, ou seja, 63,7% dos

escravos existentes concentravam-se nas províncias de

Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa

Catarina e Rio Grande do Sul, mais os escravos da

Corte.

O aumento da renda per capita verificou-se apesar

da expansão demográfica, maior do que no período

anterior. Na segunda metade do século XIX, a

população cresceu 148,6%, ou seja, 1,8 ao ano, contra

cerca de 119% (1,6% ao ano) durante a primeira metade.

Acrescente-se que no início do período havia cerca de

1,5 milhões de escravos (20% do total da população)

que não existiam mais no fim do período. Isto dava

outras dimensões ao mercado, além do fator

fundamental do aumento geral das rendas e da elevação

dos hábitos de consumo.

163

163

A área economicamente ocupada expandiu-se 3

vezes durante o século, contra um crescimento de quase

5,5 vezes da população. Assim, a densidade demográfica

na área ocupada aumentou de 10 para 18 habitantes por

km2. Face à falta de renovação tecnológica no setor

agrícola (salvo em algumas regiões e para certas

culturas) o fato não pode ser considerado auspicioso.

O Censo demográfico de 1872, primeiro a ser

realizado, oferece certas informações quanto à alteração

estrutural da economia. De uma população ativa de

5.758.364 (58% do total), 63,4% trabalhavam no setor

primário, 15,5% no secundário e 21,1% no terciário.

Pode-se duvidar da consistência das informações, mas o

quadro não deixa de ser sugestivo. Uma importante

restrição refere-se ao setor secundário em que foram

englobadas várias atividades artesanais.

Finalmente, a urbanização mostra progressos

substanciais, indicando elevação das rendas, mudanças

setoriais e transformações sociais em termos de grupos

de maior influência. Por exemplo, a população urbana

de São Paulo cresceu 156,6% entre 1860 e 1886.

A proclamação da República coincidiu com um

período de novas transformações, iniciado com a

abolição da escravatura e a subseqüente entrada maciça

de imigrantes, e completado com a preocupação maior

pela expansão industrial, embora se firmassem as

políticas de defesa do café. A transformação social e

política acompanhou a mudança da economia.

164

164

NOTAS

(1) v. Antônio Delfim Netto, 140.

(2) v. Hélio Schlittler Silva, 170.

(3) Para todos estes problemas, v. Emília Viotti da C osta, 113.

(4) J. F. Normano, 45.

(5) Nathaniel H. Leff, 93.

(6) v. Celso Furtado, 50, pp 176-182.

Indicações de leitura:

Antônio Delfim Netto, 140; Sérgio Buarque de Holanda, 217,

tomo II-3; Hélio Schlitter Silva, 170; Emília Viotti da Costa, 113;

Mircea Nuescu, 176.

Nota 1 – As referências ao montante da renda interna baseiam-se

em cálculos cujos detalhes se encontram em Mircea Buescu, 35.

Nota 2 – A quantificação da inflação no século XIX é ainda muito

precária. Adotamos os resultados do nosso tr abalho anterior

(Mircea Muescu, 176). Vale a pena alertar sobre o fato de que

muitos autores citam valores em moeda nacional e tiram

conclusões quanto às variações reais sem considerarem a alt eração

do valor da própria moeda.

165

165

REVENDO A POLÍTICA ECONÔMICA DO IMPÉRIO

No tempo em que exercia o magistério e me

dedicava ao estudo da História Econômica do Brasil,

fiquei interessado numa reavaliação da política

econômica do Império. Em face das inúmeras críticas

sofridas por essa política – sem critério histórico, a meu

ver – achei oportuno apresentar sua defesa com vistas à

sua reabilitação, pelo menos parcial. Hoje em dia,

quando se prepara uma escolha plebiscitária entre a

Monarquia e a República, gostaria de sublinhar que meu

discurso não representa uma opção política, mas apenas

um empenho científico em busca da verdade histórica.

Abordarei cinco facetas principais: o respaldo

dogmático da política econômica, a política monetária, a

política orçamentária, a política alfandegária e a política

de endividamento externo. Partirei das críticas for-

muladas por historiadores e economistas, apresen tando

em seguida os argumentos em que se poderia basear a

defesa das políticas adotadas. De modo geral, esta

defesa aponta para a falta de “historicidade” do ato de

acusação – isto é, a condenação da referida política em

nome de teorias econômicas surgidas muito mais tarde e

por cujo desconhecimento não podem ser respon-

sabilizados os dirigentes da época. A avaliação

“historicista” não pode deixar de levar em consideração

os condicionamentos do momento, os quais, salvo

166

166

algumas exceções, determinavam faltamente a menta-

lidade dos policy-markers e a estrutura das instituições.

Atente-se também para o fato de que em muitos casos

esses condicionamentos vinham de velhos tempos e

ultrapassavam as fronteiras do país.

Pode-se condenar um ministro da Fazenda do

Império por não ter tratado as crises de acordo com as

teorias de Keynes? A condenação pode ser válida sob o

ângulo puramente teórico, embora esta também seja

questionável, haja vista a precariedade das teorias, mas

ela aparece totalmente injusta em perspectiva histórica.

Não obstante, veremos que muitos comentaristas caíram

no pecado do “anti-historicismo”. E as críticas vêm, na

sua maioria, de historiadores!

Na mesma categoria inclui-se a crítica de que não

foram adotadas políticas estritamente genuínas, como se

cada país devesse arquitetar teorias próprias, sem

aproveitar a experiência estrangeira. Assim, o grande

economista francês Jean-Baptiste Say deveria ser

condenado por ter recorrido às luzes dos ingleses Adam

Smith e David Ricardo. Contudo, um historiador pátrio

censura em termos contundentes a adoção pelo Brasil

das teorias e políticas econômicas vigentes na Europa do

século XIX. Diz ele, não poupando expressões

insinuantes: “A classe de senhores de terras e de

escravos, manipulando o aparelho do Estado, adotou as

teorias econômicas vigorantes entre os seus associados

europeus” (Werneck Sodré, 1964, p. 263). Mas, que

teorias podiam adotar? Genuinamente brasileiras, depois

de 300 anos de colonialismo? Da América Latina? Das

167

167

tradições africanas? E o mesmo autor acrescenta:

“Aplicavam aqueles princípios com uma confiança ao

mesmo tempo interessada e ingênua” (ibidem, p. 264) –

tipo de crítica ambivalente: interessada, logo consciente,

ou ingênua, logo involuntária?

Aliás, a refutação das censuras feitas às políticas

econômicas do Império esbarra às vezes na dificuldade

resultante da ambivalência das críticas: rejeitando um,

parece aceitar-se implicitamente o seu contrário. Na

realidade, a ambivalência é prova de má fé ou de

criticismo à outrance. Por exemplo, enquanto o crítico

citado acusa a adoção cega das teorias alienígenas, um

outro, da mesma escola de pensamento, afirma

enfaticamente que “o Império viveu de expedientes e ao

sabor das circunstâncias do momento” (Prado Jr., 1963,

p. 205). Esta última formulação, depois de expurgada do

seu tom pejorativo, poderia referir-se, com propriedade,

a um certo pragmatismo, que tinha sua razão de ser,

como tentarei argumentar mais adiante.

* * *

Quando os críticos se insurgem contra “as teorias

econômicas vigorantes entre os seus associados

europeus”, visam evidentemente, em primeiro lugar, o

liberalismo econômico que conheceu o seu período de

glória no século XIX, por cima das investidas que

começou a sofrer desde o segundo quartel do século por

parte do chamado socialismo romântico, da Escola

Histórica e, mais tarde, do socialismo “científico” de

168

168

Marx e Engels. Não se trata de abordar aqui a

controvérsia teórica em torno do liberalismo. Sob

ângulo histórico é suficiente lembrar que ele dominou o

pensamento econômico a partir de Adam Smith e

Ricardo, passado por Say e Bastiat até Stuart Mill que

declarava, com confiança, que a Economia Política,

tendo alcançado todas as verdades essenciais, não podia

esperar mais nenhum outro progresso. E não se esqueça

que o opus magnum da economia liberal, os Princípios

de Economia de Alfred Marshall, foi publicado em

1890: o paradigma do liberalismo econômico veio à luz

um ano após a queda do Império.

O que se podia esperar dos teóricos e dirigentes

econômicos do Brasil entre 1822 e 1889? Os críticos

dão a entender que teria sido imprescindível uma teoria

específica para os países subdesenvolvidos, exigência

essa que continua até nossos dias sem ser satisfeita. A

realidade histórica é que, desde o tempo de D. João VI,

a política econômica era inspirada pelas “idéias

espalhadas pelos discípulos brasileiros de Adam Smith e

Say” (Vitor Viana, apud Ferreira Lima, 1976, p. 77). O

representante mais importante do grupo foi José da

Silva Lisboa, Visconde de Cairú, considerado “pai

ideológico de Rui Barbosa e Vieira Souto” (ibidem),

isto é, com influências ainda nos tempos da República.

No caso do Brasil, o apego ao liberalismo

econômico podia explicar-se pela sua identificação com

o liberalismo político. Portanto com os ideais supremos

de liberdade, independência e repúdio ao colonialismo.

Um testemunho expressivo é representado pelo de-

169

169

poimento prestado pelo desembargador João Rodrigues

de Brito, em 1807, em resposta a um questionário

redigido pelo governador da Bahia, o Conde da Ponte.

As reivindicações formuladas por Brito no sentido da

remoção dos entraves impostos ao comércio contêm

implicitamente um libelo contra o colonialismo de

forma global.

Essa implicância política aparece desde o início,

com a abertura dos portos em 1808 – a inserção do

Brasil no comércio internacional, pela qual o Brasil -

colônia recebia status independente de facto pela sua

capacidade de comercializar fora da reserva colonial.

A despeito desse aspecto, que me parece essencial

para uma explicação correta do ponto de vista histórico,

os críticos contemporâneos fazem inúmeras restrições

ao liberalismo brasileiro da época por seus efeitos

supostamente nocivos sobre a evolução da economia

nacional: chegam a considerá-lo “sistema prejudicial e

perigoso” (Ferreira Lima, 1970, p. 260). Referindo -se

aos conceitos do liberalismo, escreve o mesmo autor:

“Foi com esse instrumento ideológico em moda, mas

impróprio para o nosso caso, que as elites administrativa

e política tentaram resolver os problemas que se nos

apresentavam na época.” (Ferreira Lima, 1976, p. 82).

Outro comentarista, sem rejeitar em tese o liberalismo,

acusa apenas a incompetência dos dirigentes

econômicos” que “não souberam t irar partido da

liberdade de comércio no século XIX” e, daí, “tiveram a

evolução (do Brasil) retardada” (Nogueira, 1988, p.

335).

170

170

Tais afirmações constituem uma injustiça e uma

inverdade histórica. Obviamente, todo o comportamento

da sociedade, do governo e da classe dirigente, levou a

marca do atraso – reflexo de três séculos de

colonialismo, com seus conhecidos efeitos negativos.

Mas foi precisamente graças à abertura propiciada pelo

liberalismo econômico que o Brasil conseguiu um

primeiro impulso, condição para futuros progressos.

Dispondo apenas de mão-de-obra não qualificada,

sobretudo servil, e recursos naturais, sobretudo

tropicais, sem capitais e sem tecnologia, a abertura para

o amplo mercado mundial representava uma opor-

tunidade para aproveitar os citados fatores de produção

disponíveis, via exportação de produtos primários,

principalmente café. Não vamos entrar aqui na

controvérsia a respeito da alegada deterioração secular

dos termos de troca – a tese estruturalista que nem

sempre encontrou uma confirmação empírica. Tampouco

seria lícito exagerar os prejuízos ensejados pelas

relações de dominação que amiúde existiram, porém

pari passu com efeitos benéficos.

É ponto pacífico, contudo, mesmo entre os

detratores do modelo liberal, que o ciclo do café formou

os alicerces da moderna economia do Brasil: foi ele que

permitiu o aumento da receita da exportação e portanto

da capacidade de importar, fortalecendo o balanço de

pagamentos; foi o café que proporcionou em maior

medida o crescimento da renda nacional e a expansão do

emprego (sobretudo livre, a partir de 1850); foi em

torno do café que se criou uma infra-estrutura de

171

171

comércio, transporte e crédito, bem como uma

verdadeira classe empresarial. Então, como “não

souberam tirar partido?”

Os críticos lamentam o atraso do crescimento

industrial e responsabilizam pelo fato a prioridade do

café e o modelo aberto, mas parece-me uma visão

simplista, pois a formação de um surto industrial

dependia de muitos outros fatores. Houve, sem dúvida,

um certo círculo vicioso, uma certa inércia, assim como

a presença de importantes grupos sociais com interesses

ligados ao café. Eventualmente o despertar industrialista

podia acontecer mais cedo, mas de qualquer maneira não

se podem minimizar os benefícios trazidos pelo café e

portanto os méritos do liberalismo econômico adotado

durante o Império.

* * *

A política monetária foi um dos alvos preferidos

dos críticos. O que se lhe censurou foi a adesão ao

sistema do padrão-ouro que constituía o principal

ingrediente do liberalismo econômico no século XIX.

Mais uma vez incorre-se no pecado de uma

interpretação histórica. Pois que outra técnica monetária

se podia adotar quando o padrão-ouro dominava no

mundo ocidental – ou seja, na expressão pejorativa

citada, “entre os associados europeus dos senhores de

terras e escravos?”

Um conceituado economista pátrio, numa

incursão na História Econômica, escreveu: “O político

172

172

brasileiro, com formação de economista, estava preso

por uma série de preconceitos doutrinários em matéria

monetária que eram as regras do padrão-ouro” (Furtado,

1961, p. 181). Uma investigação com espírito histórico

deve contudo anotar que “o século XIX assistiu à

extensão e ao apogeu do estalão-ouro” (Niveau, 1969, p.

256). E sobre o espírito reinante no fim do século

escreveu outro historiador: “O sistema monetário

universalmente adotado era o padrão-ouro” (Pommery,

1945, p. 19). Embora naquela altura não se acreditasse

mais de forma absoluta no automatismo do mecanismo

câmbio/preços/ouro, nenhum controle severo se exercia

no mercado de câmbio, apenas intervenções discretas.

Entretanto, segundo observadores mais atentos há

evidências de que o padrão-ouro do final do século XIX

não funcionava efetivamente. Houve quem sustentasse

com suficiente razão que o padrão-ouro só funcionou

realmente na Inglaterra graças à sua posição de

liderança e às suas grandes disponibilidades de ouro.

Mas o sistema do padrão-ouro manteve seu prestígio

teórico e prático até em plano século XX, sendo

proposto como solução liberal e eficiente pelo Cunliffe

Report em 1918 e, mais tarde, na véspera do colapso da

Grande Depressão, pelo MacMillan Report, em 1929.

Parece historicamente gratuito imputar aos dirigentes

econômicos do longínquo Brasil do século XIX não

terem inventado uma solução original.

Aí, também, aparecem as posições contraditórias

dos críticos, isto é, censura-se a política monetária do

Império sob um certo ângulo e ao mesmo tempo sob o

173

173

ângulo contrário. Por um lado, critica-se a submissão ao

padrão-ouro, um sistema reprovável sob vários aspectos.

Diz um historiador: “Surgiu imperiosamente, como

dotada de miraculosos poderes, a doutrina econômica

vigente no exterior, com os seus conceitos e princípios

aqui rigorosamente adotados” (Werneck Sodré, 1964, p.

263). Por outro lado, um historiador da mesma formação

ideológica refere-se a “o que há de precário e irregular

nesta política monetária orientada pelo acaso e pelo

expediente do momento” (Prado Jr., 1963, p. 205). Esses

últimos qualificativos não combinam de modo algum

com a idéia de que os princípios do padrão-ouro foram

religiosamente aplicados.

Na verdade, a segunda série de qualificativos fica

mais perto da realidade, porém não necessariamente

com aquela matiz pejorativa. Simplesmente os

dirigentes econômicos foram guiados por um certo sadio

pragmatismo que os fizera afastarem-se da doutrina pura

do padrão-ouro, evitando assim as mazelas a ela ligadas.

(Um dos expoentes mais brilhantes desse pragmatismo

foi o grande ministro da Fazenda – em 1832, 1852/53 e

1868/70 – Joaquim José Rodrigues Torres, visconde de

Itaboraí). A oposição entre metalistas e papelistas,

correspondendo à controvérsia inglesa entre currency

school e banking school, com vitórias parciais entre os

dois grupos de contendores, testemunhou o referido

pragmatismo – o que rejeita a condenação proferida à

aplicação “cega” do padrão-ouro.

Os princípios deste sistema tinham na base a

defesa da taxa de câmbio (a estabilidade cambial), a

174

174

manutenção da conversibilidade, o controle das

emissões monetárias, a conseqüente estabi lidade dos

preços e o equilíbrio orçamentário. Nenhum destes

requisitos foi cumprido, embora tenha persistido um

certo fetichismo cambial, a obsessão de manter a taxa

oficial estabelecido em 1846, de 27 pence por mil -réis.

Como se pode verificar nas tabelas anexas, a taxa

de câmbio se desvalorizou num total de 66,8% entre

1840 e 1885 (Tabela I), os preços aumentaram, não

muito, mas continuamente (ibidem), a expansão

monetária foi ininterrupta (Tabela II), a execução

orçamentária foi cronicamente déficitária (Tabela III).

Este último aspecto, objeto de críticas acerbas e

duráveis, merecerá uma atenção à parte, mais adiante.

Resumindo as considerações sobre a política

monetária, vale citar a conclusão de uma análise

competente e objetivo: “Foi acertada a orien tação do

Governo brasileiro de adotar um padrão fiduciário

durante as crises internacionais, assim como um

sistema de taxa de câmbio relativamente flexíveis e

uma política monetária mais liberal, com o propósito

de limitar o efeito das contrações econômicas

originárias do exterior sobre a moeda, renda e preços

internos” (Peláez-Suzigan, 1976, p. 169). Tal

conclusão torna muito questionável a referência de

outro economista à “dificuldade que enfrentou o

homem público brasileiro da época para captar a

realidade econômica do país” (Furtado, 1961, p. 184).

Ou, nas palavras de outro, a referência à

“incompreensão de nossos problemas internos”

175

175

(Ferreira Lima, 1970, p. 259). De fato, a política eco -

nômica foi assaz realista.

* * *

Embora os preceitos do padrão-ouro tenham sido

criticados, uma das maiores investidas contra a orien-

tação econômica do Império refere-se justamente a uma

prática contrária aos dogmas ortodoxos: a existência

crônica de déficits orçamentários. É conhecido o slogan

“o Império é o déficit”, cunhado pelos republicanos que

não podiam imaginar que a República iria conhecer

déficits orçamentários quase tão duradouros quanto os

do Império (1823/1889 – 56 exercícios déficitários do

total de 67 = 84%/ 1890/1990 – 70 exercícios

déficitários do total de 101 = 70%).

Sem dúvida, tais desequilíbrios são altamente

indesejáveis, a não ser em hipóteses keynesianas, que

não vinham ao caso. Mas as críticas foram veementes

não apenas quanto à incapacidade dos dirigentes

fazendários, mas também insinuando que a criação do

déficit era procurada conscientemente como uma

solução fácil. De fato, aqui também verifica-se a

discrepância entre o discurso ortodoxo e a realidade da

prática. Os pronunciamentos oficiais, a começar pelas

Falas do Trono, apegavam-se aos princípios ortodoxos

do equilíbrio orçamentário. Em 1848, por exemplo, o

Imperador fala em criação de novos impostos “para

suprir o défict das despesas ordinárias e indis-

pensáveis”; em 1861, apela para “equilíbrio da receita e

176

176

da despesa” – repetindo-se o mesmo objetivo nas Falas

de 1862, 1866 e 1882. E os grandes dirigentes fazen-

dários pronunciaram-se repetidamente no mesmo sentido

– José Maria da Silva Paranhos, José Antonio Saraiva e

outros.

Então, de onde veio a discordância entre o

discurso e a realidade? A meu ver, das insuficiências

culturais e institucionais de um país recém constituído

após 300 anos de colonialismo. As limitações estruturais

existiram do lado da despesa, da receita e da

administração fazendária. Pode-se admitir que houve

uma certa culpa em desprezar essas deficiências ou em

não proceder mais ativamente à sua remoção. Mas, aí

também, é válido procurar uma explicação nos círculos

viciosos em que sempre se debate o subde-

senvolvimento.

Do lado das despesas é preciso citar primeiro os

gastos provocados pelas convulsões da Independência –

levantes em Pernambuco, Rio de Janeiro, a Cabanagem,

a Sabinada, a Balaiada, a Revolução Farroupilha – assim

como pelas guerras (contra Oribe, Rosas, Aguirre,

Solano Lopez), guerras de afirmação política ou

eventualmente de exaltação nacional; a despesa

decorrente de excesso do funcionalismo público ou da

politização (a “empregomania” de Nabuco de Araújo);

os gastos com a dívida pública interna e externa, para

cobrir a insuficiência da receita; a despesa com a

garantia de juros para investimentos em infra-estrutura,

uma despesa, afinal de contas, desenvolvimentista.

Limitações do lado da receita, pois, dado o baixo

177

177

nível da renda nacional e a exigüidade do mercado, a base

tributável devia ficar no setor externo, mais precisamente

no imposto sobre importações, estas também apertadas

devido às dificuldades do balanço de pagamentos.

Finalmente, limitações por causa das deficiências

administrativas, por conta do baixo nível cultural,

despreparo técnico, falta de quadros e tradição, bem

como a praga, não tão limitada ao Império, da

imoralidade administrativa. Vale acrescentar um recado,

derivado da citada politização e imaturidade política,

que foi a descontinuidade do comando: em 74 anos, 68

mudanças na direção da pasta da Fazenda.

Podia haver incompetência ou mesmo inépcia, mas

houve também importantes exceções, como por exemplo

na preocupação de reduzir a captação de recursos pelo

Estado sob pena de prejudicar as capacidades produtoras

da sociedade. Advertiu Itaboraí (no Conselho de Estado,

em 1867) que o aumento de impostos deve ser feito “sem

ofensa ou míngua das fontes de produção nacional”. E

Paranhos (ibidem, 1871) falou na inconveniência de

“atrair para o Tesouro os capitais nacionais disponíveis,

desviando-os dos canais da lavoura, do comércio e das

diversas indústrias".

São opiniões que seriam tranqüilamente

subscritas pelos estadistas atuais. Mas, evidentemente,

essa preocupação de não retirar demais recursos da

sociedade implicava na redução das disponibilidades do

governo. Daí, a necessidade de recorrer para fontes

externas – de que tratarei a seguir.

178

178

* * *

O recurso ao endividamento externo foi alvo de

críticas acerbas, talvez mais do que a adoção (teórica)

do padrão-ouro. Aparentemente justificar-se-ia censurar

o fato de que o endividamento externo tinha como

objetivo cobrir o desequilíbrio orçamentário, ou seja,

um expediente para compensar a inépcia administrativa.

Refere-se um comentarista a “apelos ao crédito externo,

não com o fito imediato de expandir as forças

econômicas do País, mas apenas para cobrir os déficits”

(Lemos, 1946, p. 4). Entretanto, o que foi argumentado

sobre as origens estruturais do desequilíbrio

orçamentário traz uma certa justificativa para esse tipo

de financiamento do déficit. Por outro lado, a

generalização está errada: considerando os empréstimos

contratados durante o Segundo Reinado, 34% do seu

montante foram destinados a investimentos em infra -

estrutura.

Os críticos foram extremamente exigentes. Al-

guns deles falam em “um caminho que seria longo e

melancólico, trazendo consideráveis prejuízos à

economia nacional” (Ferreira Lima, 1970, p. 194). O

mesmo refere-se à “bola de neve que nos precipitou no

abismo” (ibidem, p. 197).

É verdade que a política de endividamento

apresenta perigos, sobretudo quando, mantendo-se as

condições prevalecentes no seu início, se entra num

processo cumulativo: “Em virtude desse círculo vicioso

e pernicioso, o Brasil sempre viveu com sua economia e

179

179

suas finanças deprimidas diante de obrigações

irrevogáveis para com o estrangeiro” (Bouças, 1955, p.

75). O encadeamento entre causas e efeitos era,

entretanto, mais complexo e a referida “depressão” da

economia não deve ser debitada exclusivamente ao

endividamento externo. Esta transferência de culpa

ocorreu também em épocas mais recentes.

Naturalmente não faltaram insinuações referentes

ao imperialismo e às relações de dominação: “O país

viverá acorrentado aos seus credores, especialmente os

banqueiros ingleses” (Pinto, 1965, p. 93). Ou então, com

a obstinação de criticar. “Política de empréstimos no

exterior para saldar contas comerciais déficitárias”

(Werneck Sodré, 1964, p. 251), quando a partir de 1860

a balança comercial foi permanentemente superavitária,

com a exceção de um único exercício.

Talvez tenha havido erros ou mesmo culpas nos

apelos repetidos para o crédito externo ou abusos em

matéria de intermediação e comissões, mas afinal de

contas o endividamento não foi exagerado: no final do

Império a dívida externa não atingia mais de £ 30

milhões, correspondentes a pouco mais do que a receita

anual de exportação (Tabela IV). Por outro lado, os

prazos e os juros foram normais, do mercado. Quanto

aos tipos, os deságios sobre o valor nominal do

empréstimo, melhoraram paulatinamente até desapa-

recerem, testemunho da melhora da posição do País no

mercado financeiro internacional.

Em geral, os comentaristas hostis tendem a

sugerir que o recurso ao crédito externo constituía um

180

180

comodismo, uma solução fácil para acobertar a

incapacidade da administração fazendária. Pode ser, mas

basicamente é uma insinuação gratuita, pelo menos em

muitos dos casos concretos conhecidos. Por exemplo,

em 1867 Zacarias Góes de Vasconcelos declarava que

“os empréstimos externos são onerosos, os internos

difíceis” (Conselho do Estado). Neste campo prevaleceu

também uma posição pragmática, como se despreende

de uma declaração de Saraiva: “O empréstimo é um

recurso para os dias difíceis ou um meio de empreender

melhoramentos de tal influência no desenvolvimento das

indústrias, que dêem uma garantia eficaz aos

compromissos do Estado” (ibidem, 1881). E Belisário:

“Os empréstimos só se justificam por urgentes

necessidades, ou compensação de mais vantagens,

quando deles possa auferir a geração onerada com o

encargo do pagamento” (ibidem, 1887). Diria eu que os

dirigentes fazendários, corretamente, oneraram as

futuras gerações com o preço a pagar pela infância e

adolescência de um novo país.

* * *

Como já disse, o problema do equilíbrio

orçamentário estava ligado à principal fonte de receita,

qual seja, pelas razões expostas, o imposto sobre

importações. Assim, parece válida a afirmação de um

analista de que “a principal característica da tarifa

brasileira no século XIX foi o seu caráter fiscal”

(Normano, 1975, p. 184). Entretanto, neste campo

181

181

também, as críticas vão mais longe, alegando que a

política do liberalismo econômico, desprovido de qualquer

idéia protecionista, prejudicou o eventual processo de

industrialização. Diz um dos críticos mais ponderados:

“Durante a maior parte da existência do Império, a política

comercial baseava-se no livre-cambismo, o que tornava

extremamente difícil o estabelecimento de indústrias no

país, face à concorrência externa” (Baer, 1966, p. 14).

É verdade que uma dose maior de protecionismo

podia ajudar, porém, antes de mais nada, é preciso

atentar para duas circunstâncias históricas: uma, a de que

a adesão ao liberalismo correspondia à defesa do modelo

aberto, a oportunidade de expansão aproveitando o

mercado internacional; outra, a de que as condições

globais da economia, dadas as condições históricas e

culturais, não podiam proporcionar um rápido cresci-

mento industrial. O que se podia proteger quando não

havia indústrias, nem suficientes fatores de produção

industrial – mão-de-obra qualificada, tecnologia, capitais,

mercado, infra-estrutura? Dá-se o exemplo da política

protecionista de Alexander Hamilton nos Estados Unidos

(1816/1832), mas naquele momento os Estados Unidos,

independentes já fazia meio-século, se encontravam num

estágio muito mais avançado, tanto é que se admite

(W.W. Rostow o período 1840/1860w) como fase do seu

arranco.

Mas os críticos radicais vão mais longe. “A tarifa

de 1844 (a tarifa Alves Branco, que deu início à

regulamentação alfandegária) era puramente fiscal”

(Werneck Sodré, 1964, p. 255). O objetivo imediato era,

182

182

sem dúvida, fiscal, tratava-se de resolver o impasse

orçamentário, mas não era “puramente” fiscal, pois na

própria exposição de motivos a tarifa assumia o alvo de

“proteger os capitais nacionais já empregados dentro do

país em alguma indústria fabril e animar outros a

procurarem igual destino”. Objetivo nitidamente prote -

cionista, mesmo se nem sempre vingou devido a

preeminência teórica ou interessada do liberalismo. No

fim do período, a tarifa João Alfredo (1889) decretou o

aumento da incidência “a fim de que não sofram com a

concorrência iguais produtos de fábricas nacionais”. O

protecionismo foi tímido e flutuante, mas firmou-se

paulatinamente ao longo da legislação alfandegária do

Império.

Não entrarei em maiores detalhes, de vez que,

num trabalho anterior aqui apresentado, tentei uma

análise mais detalhada em termos quantitativos da

política protecionista. Um apanhado sumário (Tabela V)

demonstra não apenas o aumento da incidência do

imposto de importação, mas também – e isso caracteriza

a intenção protecionista – a discriminação das alíquotas,

taxando mais os bens de consumo importados,

eventualmente concorrentes dos produtos nacionais, e

incidindo menos sobre as matérias-primas, bens inter-

mediários e sobretudo bens de capital, favorecendo

deste modo os investimentos industriais.

Tal análise objetiva demonstra a injustiça da

rejeição de plano da política econômica do Império e do

seu respaldo liberal. Este realmente dominou, porém

amenizado através de um pragmatismo que considero

183

183

salutar por evitar eventuais excessos nocivos do laissez-

faire.

Tabela I – Preços e taxa de câmbio

Preços Câmbio

Índice Var. % mês / £ Índice Var. %

1840

1845

1850

1855

1860

1865

1870

1875

1880

1885

100,0

103,3

103,8

139,4

150,6

165,3

191,0

190,2

202,0

203,8

. . .

3,3

0,5

34,3

8,0

9,8

15,5

– 0,4

6,8

0,4

7,74

9,44

8,35

8,71

9,30

9,60

10,88

8,82

10,86

12,91

100,0

122,0

107,8

112,5

120,2

124,0

140,6

114,0

140,3

166,8

. . .

22,0

– 11,6

4,4

6,8

3,1

13,4

– 19,9

23,1

18,9

Fonte: Ónody

Tabela II – Expansão monetária Papel-moeda emitido Meios de pagamento

Índice Variação % Índice Variação %

1840

1845

1850

1855

1860

1865

1870

1875

1880

1885

100,0

127,2

119,7

172,8

210,7

275,8

484,3

452,1

534,9

528,2

. . .

27,2

– 5,9

44,4

76,0

30,9

75,6

– 6,5

18,3

– 1,3

100,0

127,8

121,5

180,0

226,8

320,3

548,8

518,0

651,0

657,0

. . .

27,8

– 4,9

48,1

26,0

41,2

71,3

– 5,6

25,7

0,8

Fonte: Peláez-Suzigan

184

184

Tabela III – Execução orçamentária

(contos de réis)

Receita Despesa Saldo

1840

1845

1850

1855

1860

1865

1870

1875

1880

1885

15.948

24.805

28.200

36.985

43.807

56.996

94.847

106.490

120.762

124.156

24.969

25.635

28.950

38.740

52.606

83.346

141.594

125.855

150.134

158.496

– 9.021

– 830

– 750

– 1.755

– 8.799

– 26.350

– 46.747

– 19.365

– 29.372

– 34.340

Fonte: Ónody

Tabela IV – Dívida externa e exportação

(£ 1000)

Dívida externa Exportação

Dívida externa /

Exportação

1840

1850

1860

1870

1880

1890

5.580

6.183

7.655

12.721

16.554

30.153

5.384

8.121

13.241

15.439

21.249

26.382

1,04

0,76

0,58

0,82

0,78

1,14

Fonte: Normano

185

185

Tabela V – Imposto de importação (incidência média %)

Tarifa Total Classe I Classe II Classe III

1844

1857

1860

1869

1874

1879

1881

1887

26,4

24,5

25,8

33,4

34,5

47,5

37,8

41,8

26,4

18,2

17,6

16,8

16,7

15,0

14,4

21,4

25,0

10,0

8,3

6,7

11,7

10,0

8,0

12,6

35,5

30,8

34,2

34,9

27,9

28,4

28,7

45,4

Nota

- Classe I – matéria-prima e bens intermediários

- Classe II – bens de capital

- Classe III – bens de consumo

(Pesquisa do autor)

BIBLIOGRAFIA

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(Transcrito de Carta Mensal, Rio de Janeiro, 37 (441): 3-13,

Dezembro 1991).

188

188

NOTAS SOBRE A ECONOMIA DO SEGUNDO REINADO

Numa palestra feita aqui cinco anos atrás (vide

Carta Mensal – Dezembro 1991) apresentei algumas jus-

tificativas históricas contra as críticas à política

econômica do Império. É interessante constatar,

contudo, que a despeito dessas críticas os pesquisadores

da economia brasileira da segunda metade do século

XIX afirmam, na sua grande maioria, que aquele

período registrou notáveis progressos, em contraste com

a primeira metade, cujo desempenho foi modesto, senão

negativo. E esta conclusão foi subscrita inclusive pelos

detratores da política econômica dos governos

imperiais, o que implicaria na pior das hipóteses que a

pujança econômica do país foi tão forte que compensou

os erros políticos.

Senão, vejamos alguns testemunhos confiáveis:

- Caio Prado Jr.: “(após 1850) o país entra

bruscamente num período de franca prosperidade e larga

ativação da vida econômica”.

- Celso Furtado: “Considerada em conjunto, a

economia brasileira parece haver alcançado uma taxa

relativamente alta de crescimento na segunda metade do

século XIX”.

- Heitor Ferreira Lima: “O progresso realizado na

economia brasileira na segunda metade do século

189

189

XIX...”.

- Carlos Manuel Peláez: “O período 1861/1900

mostra alta taxa de crescimento do produto real”.

Tudo isso poderia bastar para conferir ao Brasil

do Segundo Reinado uma certidão de bom

comportamento econômico, a despeito das conclusões

contrárias sugeridas pela eventual inépcia dos policy

makers brasileiros da época.

Entretanto, ouve-se ainda opiniões esparsas me-

nos favoráveis. Uma voz discordante é a de Nathaniel

Leff que se referiu ao “fraco desempenho econômico do

País no século XIX”. Esta afirmação poderia ter alcance

limitado, mas Leff acrescenta: “O Brasil experimentou

uma relativa estagnação em seu nível de renda per

capita para a totalidade do país durante a maior parte do

século XIX”. Tal declaração, desta vez não mais

qualitativa, mas referindo-se a um conceito macro-

econômico quantitativo, justificaria uma revisão do

problema.

Por outro lado, vários historiadores sustentaram,

embora sem confirmação empírica, que o Brasil do

século XIX não registrou alterações estruturais em sua

economia. Heitor Ferreira Lima parece categórico: “A

estrutura econômica não mudou”. E Virgílio Nova

Pinto: “Nenhuma alteração de estruturas é vislumbrada

... ao contrário, uma cultura cafeeira afirmando-se,

persiste a dependência agrícola” – asserção essa que

para o bem da verdade precisaria ser mais cir -

cunstanciada. Um comentarista mais recente (Lorenzo-

190

190

Fernandez) fala, com razão, em circunstâncias adversas,

“estrutura física desfavorável” e condições externas que

não estavam maduras”, para concluir que o país saiu

“por caminhos tangenciais” quando “não deu voltas e

retrocedeu”.

O objetivo do presente trabalho é limitado:

questionar à luz das informações objetivas, se possível

quantitativas, as conclusões negativas que os

historiadores ainda reservaram à economia imperial, em

contradição com as afirmações genéricas inicialmente

mencionadas a respeito dos progressos realizados na

época.

* * *

Comecemos com o problema do crescimento do

produto global e per capita. Antes de mais nada, é

preciso advertir sobre a precariedade de tal indagação a

respeito de um período em que ainda não havia Contas

Nacionais, de modo que o cálculo deve aproveitar

indicações indiretas – quase simples hipóteses de

trabalho.

Numa tentativa experimentada uns 30 anos atrás

(Buescu-Tapajós, 1967) parti dos valores constantes, em

libras esterlinas, da exportação, aplicando um coefi -

ciente de exportação interpolado entre o máximo de 0,80

diretamente calculado para o ano de 1600 e o de 0,12

constante das Contas Nacionais de 1950, na evidente

constatação da progressiva redução da participação das

exportações na formação do Produto. O coeficiente

191

191

assim interpolado teria sido de 0,40 em 1850 e 0,30 em

1900, resultando que o aumento do Produto Global no

período teria sido de 443%, ou seja, 3,4% ao ano (1,7%

per capita). Conclusão um tanto exagerada devido aos

valores altos demais do coeficiente de exportação, bem

como da receita de exportação anormalmente elevada

em 1900.

O cálculo foi alterado ulteriormente (Buescu,

1979) adotando-se coeficientes de exportação mais

realistas: 0,29 em 1850 e, terminando o período

imperial, 0,22 em 1890. Os valores da exportação

expressos em mil-réis foram devidamente deflacionados

– sem dúvida, outra aproximação face à insegurança dos

índices inflacionários. Assim procedendo resultou que o

Produto Real teria crescido entre 1850 e 1890 129%, ou

seja à razão de 2,1% ao ano; em termos per capita 0,4%

ao ano.

Esta conclusão coincide bastante com o cálculo

de Raymond Goldsmith que utilizou as informações

referentes ao volume dos meios de pagamento, aos

valores do comércio exterior, dos salários e dos gastos

governamentais, todos deflacionados (Goldsmith, 1986).

A conclusão foi que, em preços constantes, o Produto

Real teria crescido à razão de 2,0% ao ano – 0,3 per

capita. Eu também usei os valores dos meios de

pagamento deflacionado para calcular a renda entre

1920 e 1940, mas tive medo de me aventurar para

épocas mais longínquas, devido ao caráter aleatório de

dois parâmetros: o multiplicador dos meios de paga-

mento e a taxa inflacionária.

192

192

Alguns pesquisadores chegaram a conclusões algo

diferentes, mas em geral para taxas mais elevadas de

crescimento do produto per capita: Furtado, 1,5%;

Peláez 2,6%. Outros apresentaram conclusões menos

favoráveis: Leff, 0,1-0,8%; Haddad, 0,4%. De qualquer

forma, computada a elevada taxa de expansão

populacional (1,7% ao ano), a taxa de crescimento do

Produto Global teria se fixado entre 1,8% e 4,3% ao

ano, numa média de 2,8%, apenas um pouco acima dos

resultados de Goldsmith e dos meus.

Seriam esses números tão baixos para justificar a

condenação da economia do Segundo Império? As

conclusões pessimistas são muitas vezes tiradas da

comparação com as taxas de crescimento obviamente

altas dos atuais países desenvolvidos. Mas a informação

histórica correta leva a uma visão diferente. A

Inglaterra, entre 1822 e 1846, portanto já depois de seu

precoce take off cresceu 1,8% anuais per capita e,

segundo outros levantamentos, 1,7% entre 1806 e 1836

(e não se esqueça que o Brasil teve o seu take off mais

de um século depois). Praticamente na mesma época a

França cresceu a razão de 1,2% per capita. Entretanto os

países do Terceiro Mundo acusaram nas últimas décadas

do século XIX um crescimento per capita não mais do

que 0,2% ao ano.

Não computando a taxa de expansão demográfica,

o crescimento do Produto Global dos países hoje

desenvolvidos não foi no século XIX muito superior ao

do Brasil: Inglaterra 2,9% (1806/1836); Estados Unidos

2,6% (1799/1849); França 1,9% (1803/1854).

193

193

* * *

No concernente a inalteração estrutural da

economia durante o Segundo Reinado conhecemos o

fato mais flagrante que desmente tal asserção. É

impossível aceitá-la quando na época se concretizou,

como todo o mundo sabe, a mais importante mudança

estrutural no caminho da modernização: a abolição da

escravatura. Uma mudança lenta, às vezes penosa,

devido às resistências da tradição, da inércia e dos

interesses de certas classes – mas todavia uma mudança

cristalizada finalmente na Lei Aurea de 1888.

Como se poderia negar a transformação estrutural

quando em 1850 os escravos representavam cerca de

35% da população total e em 1887 essa participação

tinha baixado para 5,4%? O fenômeno deveu-se à

conhecida circunstância de que o crescimento vegetativo

da população escrava foi sempre negativo, ao que se

acrescentaram os efeitos da Lei do Ventre Livre de 1871

e da Lei Saraiva-Cotegipe da Liberdade dos Sexa-

genários de 1885. Em 1888 a parcela dos escravos

estava reduzida a zero.

Paralelamente, cresceu o número de imigrantes.

No início da segunda metade do século XIX, a entrada

de imigrantes se processou a um ritmo em torno de cem

mil pessoas por década. No decênio anterior à Abolição,

de 1880 a 1889, entraram 448 mil emigrantes. O

crescimento da população livre entre estas últimas datas,

cerca de 15%, se devia a imigração. A alteração

194

194

estrututal da população total e conseqüentemente da

população economicamente ativa aparece de maneira

nítida, desmentindo por números as alegações gratuitas.

* * *

Passando do campo demográfico para o

propriamente econômico, o problema básico é

identificar a conformação estrutural do Produto Real,

definindo a posição relativa do setor industrial.

Obviamente faltam dados estatísticos sistemáticos, a não

ser indiretamente, o que se pode deduzir dos censos

demográficos de 1872 e 1900.

Roberto Simonsen (1939) levantou informações

esparsas e não obstante não desprovidas de interesse

para o nosso objetivo: em 1850 o Brasil teria contado

com pouco mais de 50 estabelecimentos industria is,

entre salineiros, fábricas de tecidos (apenas duas),

indústrias de alimentação, pequenas metalurgias e

outros. Já em 1881 o número de fábricas de tecidos

chegaria a 44, crescendo o número total de industrias no

período de 1880/1890 que Simonsen rotulou como o

primeiro surto industrial: entre 1880 e 1884 foram

fundadas 150 indústrias e entre 1865 e 1889 mais 248.

No fim do Império já existiam 636 estabelecimentos

industriais, empregando 54,169 operários e energia de

65.000 HP.

Tudo isso sugere indubitavelmente uma alteração

estrutural, com uma participação crescente do setor

industrial. Uma indicação semelhante resulta também do

195

195

censo industrial de 1907. Nele aparece que dos 326

estabelecimentos industriais existentes no Estado de São

Paulo apenas 15 (com 6,3% do capital social total)

tinham sido criados antes de 1880, o que confirma um

crescimento no fim da segunda metade do século XIX.

Num exercício estatístico (Buescu, 1985) tentei

quantificar a estrutura do Produto Real do Brasil em

1900, incluindo, devido a limitação da informação

estatística, o período do Encilhamento que obviamente

não podia ser o único responsável pelo progresso

registrado. O exercício partiu da distribuição setorial do

Produto em 1949: setor primário, 24,5%; secundário,

26,5% e terciário, 49,0% (conforme as Contas Nacional

oficialmente calculadas). Aplicando regressivamente as

taxas setoriais de crescimento entre 1900 e 1947

segundo as estimativas de Cláudio Haddad (1974),

chega-se para o ano de 1900 a uma distribuição setorial

de 45,1% - 13,3% - 41,6%, uma estrutura ainda

subdesenvolvida, sem dúvida, porém já registrando a

existência de um não desprezível setor industrial (essas

percentagens setoriais não estão muito longe das

calculadas por Goldsmith: 49,2% - 14,9% - 35,9%).

Confrontando apenas os setores primário e

secundário a proporção seria de aproximadamente 77%:

23% - resultado bastante coerente com o de Vilella –

Suzigan (1973) referente ao ano de 1907: 79%: 21%. O

perfil encontrado parece também coerente com a

situação mais recente de países subdesenvolvidos no

período do pós-guerra, conforme Simon Kuznets, em:

Aspectos Quantitativos do Desenvolvimento Econômico

196

196

(1970).

De qualquer modo, a existência de um pequeno

setor industrial confirma a mudança estrutural

processada a despeito do domínio avassalador da

exportação sustentada pelo café. Tal situação poderia

explicar-se por simples evolução orgânica, mas

corresponde a uma modificação de mentalidade e

comportamento dos empresários e dos policy makers.

Como se sabe, a mudança foi reflexo dialético do

próprio sucesso do surto cafeeiro que resultou não

apenas em aumento de emprego e da renda, como

também na modernização estrutural da economia:

sistema ferroviário, rede bancária e comercial, espírito

empresarial.

* * *

Seria válido lembrar também certas modificações

do perfil setorial do produto. Uma refere-se à estrutura

dos transportes. Inevitavelmente aparece a presença das

ferrovias em decorrência da inovação tecnológica

surgida no início do século XIX. O Brasil entrou

atrasado nesta corrida: em 1854 não havia mais de 50

km de vias férreas. Mas em 1894 já eram 11.260 km,

ainda bem atrás dos países ocidentais, sobretudo se

levar em conta o imenso território do País, porém não

deixou de representar um passo inicial digno de registro.

Acrescenta-se também, como mudança quase

inevitável, a modificação do sistema de crédito com a

criação, embora ainda modesta, de uma rede bancária

197

197

nacional. No início do Segundo Reinado não existiam

mais que 3 bancos comerciais, com depósitos num

montante de 10 mil contos de réis. A sua dimensão

chegou no final do século a 35 estabelecimentos

bancários com depósitos da ordem de 200 mil contos de

réis.

* * *

Sob um aspecto importante, entretanto, justifica-

se a asserção da não alteração estrutural: no que tange

às relações econômicas internacionais, o Brasil perma-

neceu durante a segunda metade do século XIX país

exportador de produtos primários, concentrados no café.

A exportação continuou sendo o setor dinâmico: entre

1850 e 1890 a sua receita aumentou 225%, de 8.821 mil

libras esterlinas anuais para 26.382 mil; em termos per

capita subiu de 1,12 para 1,84 libras esterlinas. A

exportação continuou concentrada praticamente em 6

produtos primários (café, algodão, couros, fumo,

borracha e açúcar), os quais eram responsáveis por

86,3% da receita total em 1841/50 subindo para 89,5%

em 1881/90. A parcela do café elevou-se de 41,3% na

primeira década, para 61,7% na última.

Não obstante, verifica-se também neste campo

uma modificação estrutural: a exportação, e daí todo o

comércio exterior passou a representar uma parcela

decrescente na formação do Produto. Em exercícios

anteriores, começados uns 30 anos atrás, procedi a uma

avaliação rudimentar desta parcela que, como já disse,

198

198

sofreu uma redução secular, chegando a 29% em 1850 e

22% no fim do Império. Tudo isso, muito aproximado.

Numa pesquisa mais recente, Raymond Goldsmith

calculou coeficientes ainda menores para o comércio

exterior total: 0,31 em 1850 e 0,27 em 1889 – o que

daria para exportação 0,151 em 1850 e 0,146 em 1889,

coeficientes que parecem um tanto subestimados.

Mesmo assim, verifica-se uma pequena alteração

estrutural com a diminuição da parcela da exportação no

PIB.

Houve também outra alteração não desprovida de

significado: a da composição da pauta de importação.

Sem dúvida a conformação global permaneceu a mesma,

a de um país anterior à industrialização: grande

participação dos produtos manufaturados, reduzidas

importações de matérias-primas industriais e quase

inexistentes de máquinas e instalações.

A despeito disso, as estatísticas mostram ligeiras

modificações que sugerem uma certa transformação da

economia. Constata-se um pequeno aumento da

participação relativa de produtos ligados à expansão

industrial. As compras de ferragens, carvão de pedra,

ferro e aço, máquinas e acessórios subiu entre 1839/40 e

1870/75 de 5,4% para 14,0% do valor total da pauta. Em

compensação as compras de manufaturados têxteis,

algodão, lã, linho diminuíram de 44,5% para 40,8%; em

1902/1904 elas já tinham caído para 16,0% do total.

* * *

199

199

Os progressos realizados durante o Segundo

Reinado, embora relativamente modestos, não deixam

de assinalar uma ascensão para patamares superiores de

desenvolvimento. Desprezá-la seria negar a realidade da

evolução histórica, admitir um hiato dentro do processo

normal de crescimento e transformação.

É verdade que sob certos aspectos as mudanças

estruturais foram quase nulas, assim, por exemplo,

quanto ao perfil agrário, onde os latifúndios ociosos e os

minifúndios ineficientes permaneceram, senão aumen-

taram; ou quanto aos desequilíbrios regionais de renda,

de que já falamos aqui; ou quanto às grandes

disparidades entre um grupo limitado de pessoas de

renda elevada e a grande massa vivendo em estado de

pobreza. A persistência de tais mazelas poderia ser

imputada, entretanto, à própria República, durante

longos anos e às vezes até o atual momento. De modo

que parece excessivo o julgamento reservado ao

Segundo Reinado que, afinal de contas, se estendeu num

intervalo iniciado apenas 48 anos após a liberação dos

vínculos coloniais, que marcaram durante 322 anos a

história do Brasil.

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Janeiro 1997).

202

202

S É C U L O X X

203

203

APRESENTAÇÃO

Antonio Paim

Na História do desenvolvimento do Brasil (1ª

ed., 1967), Mircea Buescu afirma que “a divisão em

ciclos não representa apenas instrumento metodológico.

Corresponde a uma realidade profunda do processo

econômico nas condições de economia incipiente,

colonial e mercantilista.” Detém-se no conceito de ciclo

e enfatiza a circunstância de que determinado produto

atrai “os fatores de produção – capitais e mão-de-obra –

e se refletem em todos os outros principais setores da

comunidade.” Decorre de que “colonialismo e

mercantilismo impunham organização econômica

dirigida para a exportação e, especificamente, para a

exportação mais rentável.” E, ainda: “a importância do

setor externo persistiu mesmo após a independência e o

abandono da política mercantilista.” (obra citada; 2ª ed.,

págs. 21-23)

No tocante à indústria, logo adiante, afirma:

“Fala-se, também, num sub-ciclo da indústria, mas a

terminologia não se justifica, uma vez que o período da

industrialização, cujas datas marcantes se situam na

Primeira Guerra Mundial, na grande crise de 1929 e na

Segunda Guerra Mundial, representa justamente o

fortalecimento de economia autônoma, reduzindo a

204

204

dependência em relação ao setor externo (essa de-

pendência persiste sobretudo na medida das neces-

sidades de importações para industrialização, em ma-

térias-primas, combustíveis, equipamentos e técnicas).”

Deixa claro que introduz nova dinâmica no processo.

Como o coroamento de nossa Revolução Indus-

trial iria verificar-se nos anos subseqüentes, seus

aspectos mais destacados seriam objeto de estudos

autônomos, o que se reflete na seleção subseqüente.

205

205

TEXTOS DE MIRCEA BUESCU

BRASIL: PROBLEMAS ECONÔMICOS

E EXPERIÊNCIA HISTÓRICA

Capítulo VIII – Processo da Industrialização

A experiência histórica do Brasil em matéria de

industrialização contém importantes lições a respeito da

complexidade dos fatores positivos ou negativos que

podem condicioná-la. É verdade que o processo teve, na

base, uma situação sui generis, duplamente desvan-

tajosa: primeiro – e o mais importante – o status colo-

nial; segundo, o fato de que a própria Metrópole não

tinha potencial econômico de grande calibre para poder

transmitir tecnologia e mão-de-bra especializada, a não

ser nos setores ligados ao modelo exportador mer-

cantilista-colonialista. Entretanto, mesmo com uma Me-

trópole diferentemente estruturada, o pacto colonial

teria impedido o aproveitamento das eventuais capa-

cidades metropolitanas pela Colônia.

Primórdios do setor secundário

Apesar da utilização, por certos autores, do termo

“indústria” para várias atividades econômicas até

anteriores ao Descobrimento(1), constitui terminologia

mais adequada a que reserva a qualificação de

206

206

“indústria” à atividade secundária que produz bens,

inexistentes na natureza, através da utilização da

máquina (engenho que integra no processo de produção

fontes energéticas mais poderosas). Neste sentido não se

pode falar em indústria antes do fim do século XVIII, na

Inglaterra, quando justamente é identificado o início da

Revolução Industrial.(2) Como sempre, as separações

conceituais não são rigorosas, mas é lícito reservar o

termo “indústria” quando se trata de uso mais intensivo

da máquina.

Com algumas exceções, não desprovidas de

importância, o setor secundário limitou-se, em geral, ao

artesanato, no Brasil colonial. Há havia as tradições

índicas, embora rudimentares, em matéria de têxteis,

cerâmica, armas, canoas e utensílios comuns. Estas

ocupações continuaram entre os colonos, dentro das

limitações do pacto colonial e da tendência das classes

de nível social mais elevado de abastecerem-se na

Metrópole ou, de forma geral, na Europa. Isso aplicava-

se não apenas aos artigos de luxo – vestido, jóias,

tapetes – mas até aos utensílios, instrumentos de

produção, móveis e alimentos manufaturados (azeite,

vinho).

O artesanato local situado na zona urbana ou

perto das grandes propriedades agrícolas fornecia

alimentos, tecidos, artigos de couro e de madeira, além

das obras de construção civil. Sobretudo a partir do

ciclo do ouro, deve-se acrescentar a ourivesaria, ela,

também, cerceada, em certo momento, pelo pacto

colonial. Mais grave foi o cerceamento do artesanato

207

207

têxtil pelo Alvará de 1785 que proibiu o fabrico local de

tecidos, exceto os panos grossos para escravos. De

qualquer forma, não há elementos para avaliar, em

termos quantitativos, a importância do artesanato da

época.(3)

Como já disse, houve casos em que o setor

secundário assumiu feições de uma indústria. Um deles

foi a própria produção de açúcar, que exigia grandes

instalações, embora usando, ainda, fontes primitivas de

energia – escravos, bois e, quando muito, força

hidráulica. Outro caso igualmente ligado ao modelo de

exportação colonialista foi o da construção naval, com

vistas às necessidades dos transportes transoceânicos,

não apenas para a ligação Portugal-Brasil, mas para todo

o tráfico marítimo da Metrópole.(4) Quanto às tentativas

de organizar fundições, foram esparsas e temporárias,

não conseguindo ser relevantes no cenário da época.(5)

De fato, em decorrência do modelo mercantilista-

colonialista, faltavam os elementos necessários para a

constituição de um setor secundário poderoso.(6)

Contribuíram para isso, dentro de um verdadeiro círculo

vicioso: as proibições do pacto colonial, a redução

progressiva da renda nacional, a limitação do mercado

(em termos de demanda e meios de transportes), a falta

de capitais, o atraso tecnológico, a ausência de mão-de-

obra qualificada, a omissão do Governo.

No momento da Independência, o Brasil não tinha

um setor secundário razoavelmente evoluído para cons-

tituir-se em alicerce da futura indústria. Tudo isso

208

208

representou um elemento atrasador que devia ser

penosamente removido.

A lição de ordem geral é que, sendo o desen-

volvimento econômico um processo cumulativo de longa

duração, qualquer fator perturbador de um certo porte

marcará sua presença na evolução futura.

Início da indústria

Os fatos negativos acima enumerados prevale-

ceram, também, durante os primeiros anos da Inde-

pendência, só que naquela altura as predisposições e

possibilidades eram diferentes, apesar do enorme peso

representado pela herança colonial.

Foram notáveis as iniciativas de D. João VI, a

começar pela revogação, já em 1808, do malfadado

alvará de 1785: vantagens e auxílios à construção naval,

à fabricação de fios e tecidos, à importação de matérias-

primas para as manufaturas nacionais, às invenções

tecnológicas, etc., até a tentativa de criar uma side-

rurgia,(7) que fracassou porque continuavam, em peso,

os fatores negativos acima enumerados.(8)

O mesmo deve ser levado em consideração

quando se analisa o tratado comercial de 1810, com a

Inglaterra – que será herdado pelo Brasil independente.

Foi, sem dúvida, um tratado leonino que caracterizou o

poder de dominação da Inglaterra, não apenas sobre o

Brasil, mas, progressivamente, sobre todo o sistema

comercial mundial.

209

209

É verdade, também, que a taxa alfandegária de

15% sobre as importações de mercadorias inglesas

(estendida, de 1822 a 1828, a todos os parceiros comer-

ciais do Brasil) não podia representar verdadeira

proteção à indústria nacional existente ou por criar, mas

seria irrealista culpar o regime alfandegário – e somente

ele – pelo atraso da industrialização brasileira.

O regime alfandegário de 1810 teve efeito

altamente negativo sobre as finanças públicas, cuja

principal fonte de receita era o imposto sobre

importação. Com uma base tributável reduzida, pois o

valor da importação só começou a crescer após 1840, e

com uma incidência limitada a 15%, a receita era muito

modesta. Isso explica, em grande parte, as di ficuldades

enfrentadas pelo Tesouro Nacional. Dos 27 exercícios

financeiros entre a Independência e meados do século

apenas 7 foram superávitários.

De qualquer forma, não se deve esquecer que o

pensamento liberal – a teoria do livre-cambismo – devia

ser questionado apenas a partir do segundo quartel do

século XIX. Por outro lado, a vocação exportadora do

Brasil, materializada, com sucesso crescente, no café,

devia refletir-se em maior simpatia por um mercado

internacional livre de barreiras, que não obstruísse as

exportações. Não e de admirar, nessas condições, que

Governo e empresários convergissem num sentido pouco

favorável à indústria nacional e ao protecionismo.

Não obstante, houve, no período, já na primeira

metade do século XIX, uma lenta – muito lenta –

expansão das indústrias de bens de consumo básico:

210

210

alimentação e têxteis, mas também serralharias, es-

tamparias, fundições, etc. De fato, uma faixa inter-

mediária entre artesanato e pequena indústria.(9) Isso

nos leva, desde já, a admitir que o Brasil não conheceu

uma verdadeira “revolução industrial”, isto é, uma

passagem brusca e intensiva para a indústria, mas, sim,

uma evolução lenta, como aliás, se admite, também,

para outros países, como, por exemplo, a França.(10)

A atividade pioneira do futuro Visconde de Mauá,

em torno dos anos 1850-1870, era, talvez, prematura

dentro de um ambiente ainda despreparado para um

verdadeiro surto industrial – daí possivelmente o seu

fracasso final.(11) Mas o período não deixou de ser um

marco na evolução, com marchas e contra-marchas, da

indústria nacional.

É importante atentar para o trabalho preparatório

desenvolvido pelo café. O processo de causação circular

por ele proporcionado tinha caráter introvertido, isto é,

beneficiava o próprio setor, mas, com o tempo, esses

benefícios começaram a preparar o terreno propício para

mudanças: elevação da renda nacional, aparecimento de

um espírito empresarial, ampliação do mercado, criação

de infra-estrutura comercial, de transportes(12) e de

crédito e – talvez mais do que tudo – a introdução de

imigrantes como mão-de-obra assalariada e futuros

empresários (v. capítulos IV e VI, supra). Na medida

em que o ciclo do café começou a perder sua força, os

capitalistas passaram a procurar na indústria novas

oportunidades de investimento, em condições mais

adequadas, já existentes.(13)

211

211

Paralelamente, processou-se uma mudança de

mentalidades, em primeiro lugar no sentido prote-

cionista. Apesar de interpretações errôneas, já em 1844

a tarifa Alves Branco foi razoavelmente (e, também,

explicitamente) protecionista e, a despeito de ondas de

liberalismo, o protecionismo acentuou-se ao longo da

evolução da política alfandegária do século XIX,(14) ao

lado de outros incentivos industriais.(15) No fim do

século, o pensamento industrialista firmou-se, muitas

vezes acompanhado do espírito nacionalista.(16) Como

manifestações do empresariado industrial, cite-se a

criação da Associação Industrial em 1881 e do Centro

Industrial do Brasil, em 1902.

Não ficaria completo este panorama complexo

dos condicionamentos do crescimento da indústria se

não acrescentássemos o papel dos capitais estrangeiros e

do Governo (em grande parte, ainda na base de

empréstimos externos) nos investimentos de infra-

estrutura, sobretudo de transportes ferroviários. Con-

tudo, era impossível esperar uma atuação mais eficiente

do setor público quando ele se debatia no meio de

enormes dificuldades financeiras (v. capítulos V. supra,

e IX, infra).

O crescimento da indústria foi, ainda, modesto,

conforme nos ensinam os poucos dados estatísticos

disponíveis,(17) mas os progressos foram inegáveis em

termos de mudança da orientação da economia.

Os surtos industriais

212

212

É bastante enraizada a idéia de que o primeiro

surto industrial se verificou na primeira década da

República – no período de inflação acelerada rotulado

como “Encilhamento”.(18) Implicitamente, seria um

argumento de que a inflação ajuda o desenvolvimento

econômico.(19)

Não há dúvida de que a lei de 1888

(implementada em 1890) que estabeleceu normas mais

liberais no direito de emissão de moeda pelos bancos

veio não apenas oferecer maiores recursos aos

cultivadores gravemente atingidos pela abolição da

escravidão, mas também conferir maior liquidez ao

sistema, ressentido pela política contencionista dos

últimos decênios do Império. Isso podia ajudar a

expansão das atividades econômicas, inclusive in-

dustriais, dentro das novas mentalidades, exaltadas pelo

novo status político do País.

Sabe-se, entretanto, que a euforia e a liberdade

descontrolada resultaram principalmente num surto

especulativo: as operações na Bolsa de Valores

cresceram mais do que as indústrias. Se houve um certo

crescimento industrial, não se dispõe de nenhuma

evidência empírica de que foi devido à inflação, quando

ele pode ser melhor explicado pelos condicionamentos

já mencionados.

Ademais, de acordo com as limitadas informações

referentes aos investimentos industriais (capacidade

energética instalada, consumo aparente de aço e

cimento, importações de bens de capital), o período

seguinte à política saneadora de Joaquim Murtinho, de

213

213

1903 até a véspera da Primeira Guerra Mundial (o

chamado Reerguimento Econômico), um período de

estabilidade monetária e financeira, com uma inflação

mínima, sobretudo na sua parte inicial, apresentou

resultados muito mais favoráveis.(20)

Como se explicaria o sucesso? Não apenas pelo

ambiente político, social e psicológico – paz,

estabilidade, prestígio político, confiança nacional,

euforia – nem apenas pelo ambiente ideológico –

industrialismo, nacionalismo – mas também pela

conjugação dos esforços do Governo e dos empresários

(incluindo os capitalistas estrangeiros). O saneamento

da moeda e das finanças fortaleceu a posição

internacional do País atraindo investimentos e

empréstimos, estes, parcialmente para o Governo que,

não precisando mais cobrir déficits orçamentários, os

utilizou em investimentos de infra-estrutura.(21) As

imigrações forneceram mão-de-obra mais especializada,

alguns capitais, tecnologia, espírito empresarial. O bom

comportamento do setor externo (com a ajuda da

borracha e do café, sustentado pela primeira operação de

valorização) manteve um alto grau de capacidade de

importar.

Esse relacionamento do progresso econômico (ou,

particularmente, industrial) com o setor externo leva à

discussão da teoria tradicional dos “choques externos”,

segundo a qual os surtos industriais do Brasil foram

provocados de fora, por choques (a Primeira Guerra

Mundial, a Grande Depressão, a Segunda Guerra

Mundial) que afastaram a concorrência estrangeira, por

214

214

um lado, e privaram o País dos fornecimentos

estrangeiros, do outro (ou, num outro enfoque, tornaram

os preços de importação relativamente mais caros). Isso

teria induzido os empresários a eliminar o

estrangulamento através da expansão da indústria

nacional.(22)

Por trás dessa demonstração sente-se implici-

tamente a idéia de que as classes ligadas ao setor

exportador não teriam permitido a industrialização, a

não ser sob o impacto do “choque externo”. Diga-se de

passagem que é uma injustiça, uma vez que o

pensamento industrialista, protecionista e nacionalista

apareceu e cresceu antes da época dos choques externos.

A tese tradicional dos choques externos foi, aliás,

fortemente questionada pelas teorias “revisionistas”.(23)

Se entendermos por progresso industrial o

aumento da capacidade de produção, através do

investimento, é difícil admitir que isso ocorreu num

período de colapso do comércio internacional quando o

País não tinha condições de importar fatores indis-

pensáveis – equipamentos e tecnologia – que, por de-

finição, ele não era capaz de produzir. Podia haver,

apenas, oportunidades melhores de venda, pelas

indústrias já existentes, inclusive para mercados

externos (América Latina, África do Sul), na medida em

que o “choque” eliminava a concorrência dos países

industrializados, mas não os fechava, por razões

geográficas, à indústria brasileira – o que aconteceu

durante a Primeira Guerra Mundial e, ainda mais, a

Segunda.

215

215

Na medida em que a indústria nacional teve novas

oportunidades de venda nos mercados da América

Latina e da África do Sul, e atendeu a essa demanda

através da utilização intensiva da capacidade instalada,

ela efetivou um verdadeiro “desinvestimento”, isto é,

uma depreciação mais acelerada dos equipamentos.(24)

Os lucros assim conseguidos podiam (mas não

obrigatoriamente) servir para novos investimentos, mas

só depois do choque, uma vez normalizada a situação do

mercado internacional – o que ocorreu sobretudo após a

última guerra. O choque pôde constituir uma adver-

tência, provocou uma mudança de mentalidade cujos

efeitos se materializariam após a normalização do

mercado internacional. Portanto, os choques podem ter

contribuído para despertar a consciência desenvol-

vimentista, para convencer da necessidade de um

esforço maior no sentido de tornar o País menos

dependente do exterior – o que caracterizou, em todo o

Mundo, o período “autarcista” entre a Grande Depressão

e a última guerra. Mas a realização se efetivou nos

períodos de relativa normalidade.

As estatísticas são de claridade meridiana (v.

quadro no fim do capítulo). Os indicadores de inves-

timentos industriais apresentam níveis mais elevados

durante os períodos entre os choques, e não durante os

choques. A própria produção industrial registra taxas de

crescimento mais altas nas épocas de normalidade

(durante a Depressão a taxa chegou a ser negativa) e as

taxas de crescimento do produto real apresentam as

mesmas flutuações (v. quadro no fim do capítulo II,

216

216

supra). Vale observar, entretanto, que, de modo

sistemático, o produto industrial acusou taxas de

expansão maiores do que o produto total – o que

caracteriza o dinamismo do setor e, conseqüentemente, a

transformação estrutural da economia. O crescimento

concentrou-se, nas indústrias de bens de consumo não

duráveis, com poucas exceções (cimento, siderurgia),

substituindo-se as importações que, antes, atendiam à

demanda interna. Após a Segunda Guerra Mundial, o

processo estendeu-se aos bens de consumo duráveis.

A sucessão de surtos industriais seria, então, a

seguinte:

a) 1903-1913 – de que já falamos;

b) 1920-1929 – bom comportamento do setor ex-

terno, garantindo uma razoável capacidade de importar;

entrada de capitais estrangeiros (investimentos incen-

tivados no setor do cimento e da siderurgia); reduzida

atividade investidora do Governo que, não obstante a

política monetária e cambial um tanto confusa, não

chegou a prejudicar o crescimento da indústria e da

economia em geral;

c) 1933-1939 – a retração do comércio inter-

nacional não impediu as importações de equipamentos

industriais, graças a medidas seletivas; o Governo não

gastou muito em investimentos,(25) mas praticou uma

política mais agressiva de fomento à indústria, através

da expansão do crédito especializado(26) e da insti -

tucionalização dos instrumentos de amparo.(27) Não se

deve minimizar a importância das mentalidades reinan-

tes, não apenas no Brasil, mas no mundo inteiro: nacio-

217

217

nalismo e autarcismo – o que devia constituir-se num

suporte psicológico dos esforços pela indus-

trialização.(28)

d) 1946-1961 – processo de industrialização in-

tensiva através da substituição de importações (processo

algo fácil por dirigir-se a um mercado já definido);

ampliação do planejamento econômico,(29) concre-

tizado progressivamente no pós-guerra: Plano SALTE

(1948), Plano Nacional de Reaparelhamento Econômico

(1951), trabalhos da Comissão Mista Brasil-Estados

Unidos (1951/1953), Banco Nacional de Desen-

volvimento Econômico (1953), Plano de Metas (1957);

várias medidas de política comercial e cambial a favor

da indústria (taxa múltipla de câmbio; proteção

aduaneira; lei do similar nacional – aliás, existente

desde 1911; incentivos diretos, por exemplo, GEIA –

Grupo Executivo da Indústria Automobilística);

crescente interferência direta do Governo através de

empresas estatais ou de economia mista (ação iniciada

desde o tempo da guerra: Cia. Siderúrgica Nacional,

Cia. Vale do Rio Doce, Cia. Nacional de Álcalis,

Petrobrás, etc.; sobre a estatização, v. capítulo IX,

infra); apelo para os capitais estrangeiros (introdução do

câmbio livre pela Lei 1.807/1953; Instrução 113/1955,

da SUMOC, permitindo a entrada de conjuntos

industriais sem cobertura cambial).(30)

O processo de industrialização realizado neste

último período não foi isento de defeitos (ênfase para a

produção de bens de consumo duráveis, concentração

regional, tecnologia capital-intensiva pouco geradora de

218

218

emprego), mas é incontestável que permitiu grandes

progressos, manifestados em mudanças estruturais: em

1960, 25,8% do PIB provinham do setor secundário,

12,7% da população ativa concentrava-se no setor,

30,9% da produção industrial eram gerados pelas

indústrias modernas de ponta.

Mais questionáveis são, contudo, os

desequilíbrios criados fora do setor industrial: o pouco

interesse dispensado à agricultura, o descuido com o

comportamento das exportações, o esquecimento do

desenvolvimento social (educação, habitação) e, por

cima de tudo, os germes de uma inflação acelerada.

NOTAS

(1) É o caso do livro, aliás, de incontestável valor documentário,

de Heitor Ferreira Lima, 98, que abrange o período colonial.

(2) Um tear, mesmo mais sofisticado, não é máquina, no sentido

rigoroso da palavra, enquanto foi movimentado pela força do

homem. Senão, a própria roda do oleiro seria máquina e sua

utilização uma indústria e não um artesanato, como tradi -

cionalmente é qualificada.

(3) Para a descrição das atividades artesanais, v. Lima, op. cit.,

passim e 99, p. 75-126.

(4) Ibidem, p. 115-138; para a contribuição na carreira da Índia, v.

Lapa, 88 e 89, p. 231-278.

(5) Lima, 98, p. 115-138.

(6) O caso das Colônias inglesas da América do Norte foi

diferente. Sem exagerar a importância do fator geográfico, pode -

se admitir que ele foi relevante para a modalidade do colonialismo

219

219

ali aplicado: em se tratando de colônias de zona temperada, não

havia condições de organizar a sua economia com v istas à

exportação para a Metrópole. A alternativa foi permitir atividades

para consumo local ou para exportação em zonas de estruturas

econômicas diferentes (por exemplo, Caribe) e tributar essas

atividades. O pacto colonial funcionava mais do lado das

importações das Colônias, e ainda parcialmente. Isso permitiu,

desde os primórdios, a constituição de uma economia algo autô -

noma e introvertida – o que correspondia, também, às intenções

dos colonos, diferentes da mentalidade mercantilista dos colo -

nizadores do Brasil.

(7) Simonsen, 153, p. 442-449; Lorenzo-Fernandes, 102, p. 85-87.

(8) Simonsen, 152, p. 11: “Na primeira metade do século XIX, a

inexistência de fatores positivos à industrialização do Brasil, a

política livre-cambista que adotamos e a concorrência das

manufaturas inglesas impediram a nossa industrialização.” Parece -

me que o primeiro argumento tem peso maior do que os demais.

(9) Lima, 99, p. 206.

(10) É a tese de Jean Marczewski, 107. A rigor, houve uma única

e verdadeira “revolução” industrial: a que ocorreu na Inglaterra,

na segunda metade do século XVIII.

(11) Nisso tiveram mérito os contatos com o estrangeiro,

possibilitados pela abertura dos portos, o tratado de 1810 e a

entrada de comerciantes, sobretudo ingleses. É bom lembrar que

Irineu Evangelista de Souza fez sua aprendizagem no Rio de

Janeiro, numa casa comercial inglesa – Carruthers – e, depois, na

própria Inglaterra. É um exemplo da importância da abertura dos

horizontes culturais e do intercâmbio tecnológico internacional.

(12) As ferrovias acompanharam a trajetória do café: Santos -

Jundiaí (1868), prolongada até Campinas (1872); Itu (1873);

Mogiana e Sorocabana (1875); extensão da ferrovia D. Pedro II

até Queluz (1877) e Ribeirão Preto (1883).

220

220

(13) Os primeiros capitais da indústria paulista procederam dos

cafeicultores, aos quais se acrescentaram os dos importadores e

dos imigrantes (v. Dean, 51).

(14) A reação liberal venceu sobretudo nas tarifas Souza Franco

(1857) e Silva Ferraz (1860), mas o protecionismo firmou -se; a

tarifa Belisario (1887) é um exemplo.

(15) É preciso lembrar, como instrumento permanente para

atração dos investimentos estrangeiros – na indústria ou na infra-

estrutura – a garantia de juros (de 5 a 7% ao ano) oferecida pelo

Tesouro Nacional, desde 1852. A tentativa de renovação da

indústria açucareira foi feita pela lei de 1875 que garantiu juros

de 7% para a criação de engenhos centrais. O fracasso desta

fórmula teve várias causas que não cabe analisar aqui.

(16) Os trabalhos fundamentais são de Dean, op. cit., e Luz, 103.

Os nomes de Américo Werneck, Amaro Cavalcante, Alcindo

Guanabara, Serzedelo Corrêa, Jorge Street, e outros, devem ser

citados como paladinos desse pensamento, já passando para o

século XX.

(17) Sobre a indústria têxtil, v. o livro clássico de Stanley Stein,

162. Na década de 1870/1880, as importações de máquinas e

acessórios representavam apenas cerca de 3% do valor total das

importações.

(18) Com maior rigor de terminologia, o Encilhamento foi o

período de 1890 a 1893 quando a inflação resultou do excesso de

especulação bursátil e crédito bancário. A inflação continuou até

1898, porém tirando sua origem, como tradicionalmente, do

déficit orçamentário do Tesouro Nacional (v. capítulo X, infra).

(19) Sobre este ponto teórico pode-se consultar: Magalhães, 104,

e Simonsen, 150.

(20) Buescu, 29. Houve uma certa alteração estrutural do produto

real: entre 1900 e 1913, o setor primário caiu de 40,4% para

33,3% do produto total e o secundário aumentou de 13,5% para

15,8%, em 1920 representariam 33,5% e 18,0% respectivamente

221

221

(Haddad, 74). Sobre o período 1903/1913, v. Apêndice 8, infra.

Quanto à política saneadora de Murtinho, acho que foi

injustamente criticada, como em Lima, 88 bis, ps 136-149 – mas o

assunto ultrapassa os limites deste livro .

(21) Sobre os investimentos estrangeiros em 1860/1913, v. Castro,

45.

(22) Para a teoria dos choques externos (iniciada com Simonsen,

152), v. Furtado, 66.

(23) Para as teorias revisionistas: sobre a Primeira Guerra

Mundial – Dean, op. cit.; para a Grande Depressão – Peláez, 130/

para a Segunda Guerra Mundial, Buescu, 24. Posições inter -

mediárias: Malan et alii, 105 e Versiani, 165 bis.

A chamada “escola estruturalista” é defensora da teoria

tradicional dos choques externos. Por exemplo, Tavares, 165: “O

recente processo de desenvolvimento econômico do Brasil teve

lugar fundamentalmente sob o impacto das restrições do comércio

exterior.” Os revisionistas colocam-se no pólo oposto: “Longe de

resultar das dificuldades das importações durante as duas guer ras

mundiais e a Depressão... o desenvolvimento inseriu -se num

conjunto de condições favoráveis ao comércio exerior” (Nathaniel

H. Leff, Long Term Brazilian Economic Development ). Sobre a

Primeira Guerra Mundial, Simonsen (op. cit.) havia escrito: “A

guerra européia deu novo e decisivo imuslo à evolução industrial

de São Paulo” – enquanto Dean (op. cit.) rebateu: “Poder-se-á até

perguntar se a industrialização de São Paulo não se teria

processado mais depressa se não tivesse havido guerra.”

(24) Buescu, 24. Como exemplo, as importações maciças de fusos

e teares após o término da Segunda Guerra Mundial – sinal de que

a indústria têxtil havia esgotado seus equipamentos, sem

possibilidade de reposição durante a guerra.

(25) Segundo Furtado (op cit.), o surto industrial após a Grande

Depressão resultou do mecanismo de defesa do café que permitiu

a manutenção do nível de renda do setor – renda essa que teria

sido transferida para a indústria. Mas, então, o surto industrial

222

222

seria devido à defesa do comércio exter ior e não ao seu abandono,

como dizem os estruturalistas.

(26) Criação da Carteira de Crédito Agrícola e Industrial, do

Banco do Brasil (1937).

(27) v. Wirth, 172.

(28) Um marco decisivo, nesse sentido, idealizado já antes da

guerra, mas realizado graças às motivações trazidas pela guerra,

foi a criação da Companhia Siderúrgica Nacional, com a sua usina

de Volta Redonda (1942-1946).

(29) Lafer, 86.

(30) Malan et alii, op. cit.; Lorenzo-Fernandez, op. cit.

Capítulo IX – Papel do Governo

.....................................................................................

Rumo à economia mista

Apesar da persistência prioritária do pensamento

liberal, o cenário da política econômica mudou, em todo

o Mundo, a partir do fim do século XIX. As deficiências

da economia de mercado levaram à intervenção cres-

cente do Governo no processo econômico – tendência

essa que se acentuou sob o impacto das dificuldades

trazidas pelas duas Guerras Mundiais e pela Grande

Depressão de 1929. O resultado, em escala mundial, foi

que, cada vez mais, se abandonava a economia de

mercado, no sentido puro do liberalismo clássico, a

223

223

favor de um sistema de economia mista em que

sobrevivem a propriedade individual, a empresa e a

iniciativa privadas e o próprio mercado, porém com a

imissão crescente do Governo, como orientador auto-

ritário da economia e como empresário e investidor.(1)

Na atividade não propriamente econômica do

Governo foram registrados progressos – fruto do

amadurecimento da comunidade, da experiência

adquirida e do aprimoramento dos quadros humanos. A

segurança externa foi preservada, sendo favorecida,

durante as duas grandes conflagrações mundiais, pela

posição excêntrica do País – o que permitiu um

envolvimento limitado, fora das fronteiras. A projeção

internacional do Brasil (como marcos: a conferência de

Petrópolis, a participação na Conferência de Haia no

período Rodrigues Alves-Afonso Penna. A Operação

Pan-Americana no Governo Kubitschek) criou um clima

de confiança e um sentimento de grandeza que devem

ter influenciado favoravelmente a atuação dos agentes

econômicos.

Progressos foram alcançados, também, em termos

de segurança interna, embora prejudicados, ainda, pelas

distâncias e pela persistência das estruturas locais,

passíveis de praticar abusos. É questionável a eficiência

da descentralização administrativa instaurada pela

República. De qualquer modo, a concentração do poder

econômico nas mãos do Governo central tornou a

descentralização, do ponto de vista econômico, bastante

ilusória. Essa concentração resultou não apenas do

processo político e das ambições de poder do centro,

224

224

mas também da necessidade de um planejamento

econômico centralizado, como veremos mais adiante.

A atividade normativa do poder público diver-

sificou-se e ampliou-se, tal como aconteceu em todo o

Mundo. A política monetária continuou seguindo os

moldes tradicionais, com períodos de maior ortodoxia

(durante as presidências Campos Salles, Rodrigues

Alves, Arthur Bernardes e Washington Luiz) e de maior

liberdade monetária (no Encilhamento e no Governo

Kubitsckek). Firmou-se e implementou-se a idéia de

utilizar o sistema bancário como instrumento de-

senvolvimentista. A Lei de 1890, da multiplicidade dos

institutos emissores do papel-moeda, já objetivava a

recomposição da liquidez do sistema para não prejudicar

as atividades econômicas. Inovações institucionais

foram feitas com a criação da Carteira de Redescontos,

do Banco do Brasil (de curta duração: 1921-1923 e

reintroduzida em 1935) e sobretudo da Carteira de

Crédito Agrícola e Industrial, do mesmo Banco (1937),

a fim de oferecer facilidades de crédito com vistas ao

desenvolvimento econômico.

Embora durante a quase totalidade do período o

poder emissor e várias atribuições de autoridade

monetária foram conferidos ao Banco do Brasil,

instituição privada, porém sob o controle do Governo, a

ação normativa do setor público no setor monetário

verificou-se, cristalizada em várias instituições, tais

como a Caixa de Conversão (1906-1914) e a Caixa de

Estabilização (1926-1929) e, mais tarde, a Superin-

tendência da Moeda e do Crédito – SUMOC (1945-

225

225

1965), com prerrogativas de banco central.

Estas instituições – principalmente as duas

primeiras – lidavam com o problema cambial, reputado

sempre da maior importância.(2) Em geral, dominou, até

a Segunda Guerra Mundial, a ortodoxia monetária e

cambial, sobretudo após a reforma monetária de 1926

até o estouro provocado pela Grande Depressão, às

vezes com efeitos deprimentes para a economia. Depois

da guerra, a política cambial tornou-se mais complexa –

com taxas múltiplas através de ágios e bonificações em

cima da taxa cambial oficial – tudo isso com o objetivo

de defender o balanço de pagamentos e, mais importante

e mais inovador, de estimular e proteger iniciativas

desenvolvimentistas.(3)

Atendendo aos crescentes anseios de industria-

lização, reforçadas pela ideologia nacionalista, a

política alfandegária acentuou o seu caráter prote -

cionista (a introdução da tarifa – ouro em 1890 e 1898

teve cunho predominantemente fiscal, porém com efeito

protecionista). Entretanto, em épocas mais recentes as

tarifas alfandegárias desempenharam papel de menor

importância: as alíquotas específicas da tarifa de 1934

tornaram-se, cada vez mais, inexpressiva em face da

elevação continuada dos preços, até 1957, quando foi

adotada uma tarifa ad valorem (Lei 3.244/1957). A

proteção da indústria nacional foi efetivada através da

política cambial e dos controles diretos (licença de

importação). Vale mencionar a concessão do “custo de

câmbio” (taxa de câmbio oficial, muito abaixo da taxa

do mercado) para pagamento das importações consi -

226

226

deradas prioritárias para o desenvolvimento (a mesma

Lei 3.244/1957).

A intervenção normativa do Governo manifestou-

se em outros dois campos, algo inovadores no País.

Primeiro, em políticas redistributivas de renda, seja de

renda pessoal (através do imposto de renda, introduzido

em 1924), seja da renda regional (através de organismos

especializados, tais como DNOCS – Departamento

Nacional de Obras Contra a Seca, a SPVEA –

Superintendência do Plano de Valorização Econômica

da Amazônia e, no fim do período, a SUDENE –

Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste.

Segundo, em políticas anticíclicas – de fato,

resumidas na defesa do café contra as depressões do

mercado mundial, começando com a Convenção de

Taubaté (1906), continuando com os planos de valo-

rização após a Grande Depressão.(4)

Ademais, a intervenção governamental se

aprofundou através de controles setoriais, ou através de

instituições especializadas, tais como os Institutos do

Café, do Açúcar e do Álcool, do Pinho, do Sal, do Mate,

assim como o Conselho Nacional do Petróleo, e outros.

A novidade mais recente – ocorrida, também, em

outros países – foi a sistematização da intervenção do

setor público através do planejamento. Os primeiros

planos econômicos aparecem na véspera da Segunda

Guerra Mundial(5) e após seu início, e tinham objetivos

limitados de mobilização econômica: Plano Especial de

Obras Públicas e Aparelhamento da Defesa Nacional

(1939), Plano de Obras e Aparelhamento (1944).

227

227

Apesar da resistência dos liberais puros,(6) as

experiências de planejamento continuaram e se am-

pliaram no pós-guerra, embora sem se chegar ainda a

verdadeiros “planos” de caráter macroeconômico(7). O

Plano SALTE, de 1950, era apenas um previsão de veras

para alguns setores prioritários, daí a sigla: Saúde,

Alimentação, Transportes, Energia. O Relatório da

Comissão Mista Brasil-Estados Unidos (1952) continha

um diagnóstico macroeconômico do Brasil, mas, como

solução, preparou apenas planos setoriais. O mesmo

caráter setorial teve o Plano de Metas (1957), sem

nenhuma avaliação macroeconômica e sem programação

financeira (o Programa de Estabilização Financeira, de

1959, foi rejeitado). O planejamento econômico, no

sentido completo da palavra, desenvolveu-se a partir da

década de 1960.

O aumento da participação do setor público da

economia não se manifestou apenas sob o ângulo

normativo. Já durante o “Reerguimento Econômico”

(1903-1913) o Tesouro Nacional reservou uma boa

parcela de sua despesa para investimentos de infra-

estrutura; portos, ferrovias, saneamento, iluminação;

essa parcela chegou a 24% em 1912. Os recursos foram

obtidos principalmente através de empréstimos externos.

No período que medeia entre a Primeira e a

Segunda Guerra Mundial, a parcela da despesa pública

destinada à formação de capital foi modesta, mas, em

compensação, o Governo começou a agir através de

empresas estatais ou de economia mista, absorvendo

vários setores básicos, além da infra-estrutura. Entre

228

228

estas empresas deve ser citada, em primeiro lugar, como

pioneira de grande porte, a Companhia Siderúrgica

Nacional (1942), seguindo a Companhia Vale do Rio

Doce, Companhia Nacional de Álcalis, Fábrica Nacional

de Motores e, mais tarde, como outro marco importante

a Petrobrás (1953) – além de outras empresas, sejam

criadas pelo Governo (Furnas, CEMIG), sejam entradas

sob seu controle (Cosipa, Usiminas). No fim do período

em foco, o Governo tinha domínio majoritário ou

mesmo total em setores estratégicos como eletricidade ,

petróleo, ferrovias, siderurgia, mineração, navegação,

comunicações.

Sem dúvida, é impossível negar o papel positivo

do setor público no processo de investimentos

desenvolvimentistas, sobretudo nos setores em que a

iniciativa privada não tinha condições de atuar por falta

de recursos suficientes e de interesse em termos de

lucros imediatos. O exemplo do Brasil não serviria de

argumento a favor de uma tese radicalmente liberal. Não

obstante, é verdade que muitas vezes se verificaram as

insuficiências das empresas públicas: falta de eficiência,

desperdício, empreguismo, politização. A lição histórica

leva, como amiúde acontece, a uma posição mediana de

colaboração empresa privada/Governo.

Participação do setor público na economia (em % do PIB)

1950 1960

Governo

- Despesa Total

- Consumo

19,0

12,7

24,2

14,2

229

229

- Poupança

- Formação bruta de capital

- Impostos diretos e indiretos

2,2

4,7

15,8

4,0

5,7

22,2

NOTAS

(1) Sobre o confronto empresa/Estado, v. Simonsen, 150, p. 181-

206; sobre a evolução mais recente no Brasil, v. Villela-Baer, 168.

(2) Tanto a Caixa de Conversão como a de Estabilização tinham

como objetivo a manutenção do equilíbrio da taxa de câmbio; para

detalhes, v. Villela-Suzigan, 169; Peláez-Suzigan, 131; Neuhays,

124.

(3) Detalhes em: Baer, 5; Malan et alii, 105.

(4) As interpretações e avaliações da política de valorização

depois de 1930 são muito controvertidas: v. Furtado, 66; Peláez,

130.

(5) A política de controle global, embora sem elaboração de

planos, foi praticamente iniciada com o Conselho Federal de

Comércio Exterior (1934-1941), e continuada com o Conselho

Nacional de Política Industrial e Comercial (1944 -1946) e a

Comissão de Planejamento Econômico (1944-1945).

(6) Sobre a controvérsia acadêmica em torno do planejamento, v.

Simonsen-Gudin, 154.

(7) v. Lafer, 20.

(Transcrito de Brasil: Problemas econômicos e experiência

histórica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1985, p. 83 -95 e

106-111)

230

230

LIÇÕES DA HISTÓRIA

O título da palestra sugere logo a pergunta se a

história é capaz de fornecer lições válidas para o

presente e o futuro. Posto em termos mais gerais seria

perguntar se a experiência dos fatos passados constitui

um bom apoio para tomada de decisões ou pelo menos

para compreensão da realidade. Nestes termos a resposta

afirmativa parece indubitável, pois todas nossas ações, a

não ser os atos puramente reflexos, têm algum respaldo

numa experiência anterior: sem esta capacidade a vida

se tornaria um pandemônio de busca interminável e às

vezes inglória de soluções para cada alternativa

aparecida perante nosso juízo. Entretanto, na realidade o

aproveitamento da experiência passada depende de

inúmeros fatores, não apenas da maior ou menor

evidência da qualidade da experiência passada, mas

também e sobretudo da nossa própria capacidade

racional de avaliar e assimilar. Um filósofo chinês teria

dito que o homem não aprende por experiência, mas sim

por fadiga – mas afinal a fadiga é ela mesma ainda uma

experiência repetitiva.

Não vou falar desse aspecto psicológico e

pedagógico que pertence a domínios em que, como

leigo, não tenho direitos de entrar. Quero referir -me à

utilidade do conhecimento histórico, especificamente

para o agente econômico e, mais ainda para o policy-

maker, na tomada de decisões dentro do processo

econômico sempre em evolução. A pergunta singela é se

231

231

o estudo da história tem alguma utilidade para o

presente e, mais audaciosamente, para o futuro.

Muitos poderiam questionar a utilidade do co-

nhecimento de épocas remotas, ultrapassadas, enquanto

estamos enfrentando angustiantes problemas atuais. Por

outro lado, muitos historiadores estão preocupados

principalmente com os aspectos pragmáticos de suas

indignações e obstinados em tirar alguma lição do

passado. Essa preocupação não é desprezível e ninguém

se atreveria em exigir sua expulsão dentre os objetivos

do historiador. Mas acho que o caso é mais complexo e

precisa de alguns reparos.

Antes de mais nada, o estudo do passado, tal

como outros objetivos das disciplinas sociais, pode ser

desprovido de qualquer conotação pragmática. Ele pode

justificar-se simplesmente pelo desejo de conhecer o

passado, pela curiosidade científica que se encontra nos

alicerces de toda ciência e constitui um dos grandes

mistérios e méritos da mente humana. Poder-se-ia alegar

que eventualmente o motor inicial de toda indagação

teria sido uma necessidade prática – a exigência de

resolver problemas ligados à própria sobrevivência.

Entretanto, em seguida, através de um mecanismo

mental peculiar, a procura utilitária teria se sublimado,

passando a justificar-se per se, como uma vitória do

intelecto, sem nenhuma preocupação pragmática. O

espírito chegou a encontrar satisfação no simples

desvendar dos segredos da Natureza, da Vida e da

História, uma vitória sobre o mundo em que ele se

encontra, visto numa perspectiva seja espacial, seja

232

232

temporal.

Não obstante, por mais desinteressado que seja o

conhecimento do passado, ele pode trazer valiosos

ensinamentos. Em primeiro lugar, o estudo mostrará a

complexidade do fenômeno social, o que servirá como

advertência contra eventuais tendências de simplificação

e contra uma visão às vezes elegante, porém irrealista

dos fatos históricos, uma visão centrada em torno de um

modelo pré-concebido de acordo com as preferências ou

limitações do historiador.

Em segundo lugar, o conhecimento desinteres-

sado não deixa de revelar a inter-dependência dos atos

históricos – sociais, econômicos, políticos, culturais –

reciprocamente condicionados. Em outras palavras,

descobre-se a unidade dos valores que constituem a

cultura de uma sociedade numa certa época. Acho que

essa lição não é desprezível: ela fornece uma orientação

valiosa para compreender outros momentos passados ou

atuais. Assim, o conhecimento neutro não deixará de

revelar um significado pragmático. Entretanto, se os

aspectos globais do conhecimento – complexidade e

interdependência – se aplicam de forma generalizada

aos fatos históricos, a pergunta que tanto o scholar

quanto o leigo enfrentam é se o conteúdo dos fatos

passados, fora do seu momento histórico, pode ainda ser

útil, ou seja, se o passado serve para compreender o

presente e enfrentar o futuro.

Se a resposta a esta indagação é positiva, isto

explicaria o apelo que, a certa altura, os economistas se

vêem dispostos a fazer a favor do conhecimento da

233

233

história. Como observou W. Arthur Lewis, “todo

economista atravessa uma fase em que não o satisfaz a

base dedutiva da Teoria Econômica e acredita que

possuirá visão muito melhor do processo econômico

pelo estudo dos fatos históricos”. (A Teoria do Desen-

volvimento Econômico).

Referindo-se quase explicitamente às mencio-

nadas características de complexidade e interde-

pendência, Joseph Schumpeter se manifestou de modo

mais incisivo: “Ninguém poderá entender o complexo

econômico de qualquer época se não possuir uma visão

adequada dos fatos históricos, e senso histórico bastante

ou algo que seja classificado como experiência his -

tórica... A maioria dos erros fundamentais corren-

temente cometidos em análise econômica é devida à

deficiência da experiência histórica”. (A História da

Análise Econômica).

Qual é, entretanto, o alcance dessa experiência?

A sabedoria popular afirma com a mesma segurança que

“toda história se repete” e que “a história nunca se

repete”. É a alternativa entre o nil novi sub sole do

Eclesiastes – nada é novo neste mundo – e o planta rhe

de Heráclito – tudo flui, nenhum momento do passado

voltará. Numa visão criteriosa, os historiadores aceitam

o valor da experiência passada para a compreensão do

presente, admitindo implicitamente que há uma certa

lógica evolucionista que liga o momento atual ao curso

anterior da história. Escreveu Frédéric Mauro: “Para

compreender nossa economia do presente torna-se

preciso compreender a do passado”. (Nova História e

234

234

Novo Mundo). Isso leva, de certa forma, à asserção

dramática de que “quem não aprende as lições da

história está condenado a repeti-la.” Mas, até que ponto

a experiência histórica pode ser aproveitada? Em que

medida a lição do passado pode ser aplicada às

condições do presente: Será que o mundo não evolui

continuamente de modo que o momento atual difi-

cilmente ou mesmo impossivelmente se assemelhará ao

momento passado? A opção exigirá racionalidade e

comedimento.

Ortega y Gasset apontou uma solução mediana,

destacando a tênue margem de aproveitamento da

experiência passada. Escreveu ele: “O saber histórico...

não dá soluções positivas ao novo aspecto dos conflitos

vitais: a vida é sempre diferente do que foi; mas ele

evita cometer os erros ingênuos de outros tempos”. (A

Rebelião das Massas). Assim Ortega y Gasset achava

mais importante a história dos erros do que dos acertos,

mas isso parece confirmar indiretamente o valor da

experiência histórica e a possibilidade de seu apro-

veitamento. Qual o caminho a seguir?

Uma base racional pode ser encontrada numa

formulação lapidar de John Hicks: “Cada fato histórico

tem algum aspecto sob o qual é único; mas em outros

aspectos ele é sempre parte de um grupo, às vezes de u

grupo bem numeroso”. (Uma Teoria de História

Econômica). De fato, Hicks refere-se à possibilidade de

repetição num universo estático, mas o binômio

unidade/repetição é também uma realidade numa

perspectiva dinâmica. Vale um certo desenvolvimento

235

235

em torno da observação de Hicks.

A essência do espírito humano, o comportamento

típico do homem, constituiria um argumento a favor de

uma certa repetição. Contudo, em que pese o

comportamento ligado à própria psicologia, como, na

econimia, o de um abstrato homo oeconomicus, há

sempre variedade individuais e coletivas ligadas aos

diversos fatores culturais, que não permitem identificar

uma verdadeira repetição ne varietur dos atos humanos

ao longo da história. Pois os sistemas econômicos, as

instituições, as atitudes e reações variam no tempo e no

espaço em função daqueles fatores – é um universo em

perpétuo movimento em que apenas através de uma

cuidadosa operação de redução e identificação se pode

encontrar semelhanças e repetições.

Assim, o passado é, até certo ponto, um fato

único, em cujo seio entretanto é possível encontrar

algumas permanências, uma certa continuidade que

justificam tomá-lo como padrão, tirando conclusões para

o presente. É uma questão de discernimento e come-

dimento, usar com cautela o cotejo temporal, a fim de

ver o que realmente é lícito extrair da experiência

passada. Frédéric Mauro formulou uma vez essa lição de

sabedoria: “A confrontação do passado e do presente

deve conduzir-nos à descoberta dos paralelismos, das

analogias, mas também das diferenças igualmente

instrutivas”. (ibidem)

O passado, mesmo quando diferente do presente,

oferece uma lição valiosa: o que é permanente é o ser

humano, com seus condicionamentos mutantes – ins-

236

236

titucionais ou conjunturais. Qualquer experiência

anterior contém uma lição seja no seu aspecto constante,

seja per a contrário. É importante apenas distinguir o

que é permanente ou pelo menos repetível, e o que é

passageiro, contingente, portanto sem aplicação válida

no presente ou no futuro. Aí aparece o perigo de uma

aplicação cega da idéias de que o passado se repete ou

de uma interpretação literal do tradicional aforisma nil

novi sub sole.

Quais, então as condições da experiência his-

tórica para efeito de aproveitá-la no presente? Uma

exigência básica seria o conhecimento exaustivo, na

medida do possível, da realidade histórica, a fim de

separar os fatos de caráter permanente (por exemplo os

ligados à própria natureza humana) e os fatos de caráter

passageiro, ligados às realidades institucionais e con-

junturas específicas, não repetitivas. A compreensão da

lição dependerá da capacidade racional e do preparo

intelectual do observador: perante o mesmo exemplo

histórico, o sábio tirará uma certa conclusão e o inepto,

uma totalmente contrária. E, sem dúvida, as conclusões

são tiradas em função da escala de valores do

observador.

Todas estas ponderações parecem bastante banais,

beirando o óbvio, mas a presença de muitas confusões

nas conversas diárias, nos meios de comunicação e até

em certos trabalhos acadêmicos parece justificar a

inquirição a que acabamos de nos dedicar.

* * *

237

237

Depois destas considerações de ordem geral,

achei oportuno apresentar alguns casos concretos como

ilustração das possibilidades e dos limites da lição

histórica. Os casos escolhidos foram tirados da História

Econômica do Brasil, mais especificamente da história

da inflação, visto que o fenômeno inflacionário se

mantém, infelizmente, da maior atualidade. Escolhi

épocas mais remotas a fim de dispormos de suficiente

perspectiva temporal e necessária imparcialidade,

longe das conotações emocionais do presente. O

período que vai da proclamação da República até o

início da Primeira Guerra Mundial fornece um material

sugestivo, com uma inflação aguda no começo do

período, seguida por um certo arrefecimento e, em

continuação, um curto intervalo deflacionário, após o

qual a inflação retomou seu curso habitual.

De fato, se quiséssemos fazer um cotejo quan-

titativamente mais próximo da realidade recente,

deveríamos voltar muito mais para trás até a época do

ciclo do ouro quando, sobretudo na sua fase inicial –

digamos entre 1693 e 1710 – certos preços subiram, na

região das Minas, numa proporção de até 300 vezes (30

mil por cento). A experiência não é desprovida de

interesse, de uma forma geral, uma vez que verificou

grosso modo a teoria quantitativa da moeda – sendo a

alta dos preços provocada pela abundância do metal

precioso em circulação. Poderíamos encontrar também

alguns condicionamentos cuja validade ultrapassa a

conjuntura do ciclo do ouro, como por exemplo a

238

238

persistência secular da corrida atrás do ouro, a velha

auri sacra fames . Mas tudo se passou num ambiente

muito diferente, dentro de uma economia colonial,

carente de estrutura mais sólida, com uma população de

ricos exploradores, de imigrantes aventureiros e de

escravos marginalizados. mesmo assim, a experiência

poderia oferecer certas lições, mas achei que, com ela,

mergulharíamos num universo demasiadamente dife-

rente do nosso. A escolha exempli gatia do quarto de

século de 1889 a 1913 me pareceu mais convincente

por se tratar de uma economia mais moderna,

capitalista ou quase, cujos ensinamentos seriam mais

válidos, tanto no sentido positivo como no negativo.

O período focalizado começa com o

Encilhamento, a inflação de 1890/1893, uma inflação

mais forte do que tinha ocorrido desde a Independência

até aquela data. Forte, contudo, em comparação com o

passado, mas irrisória em termos atuais, visto que a

alta dos preços foi provavelmente de 30-40% anuais

(alguns autores referem-se a percentagens mais altas,

porém sem nenhuma comprovação empírica confiável).

Não quer dizer que tal inflação não tenha provocado

reações na sociedade, inclusive quanto ao ambiente

especulativo que precedeu a alta dos preços. Uma des -

crição do fenômeno encontra-se na conhecida crônica

do Visconde de Taunay, publicada justamente sob o

título de O Encilhamento .

Taunay refere-se principalmente à especulação

bursátil que se iniciou no último ano do Império e se

intensificou em 1890/1892. Essa febre na Bolsa de

239

239

Valores poderia ser considerada como mais uma ca-

racterística social de apego ao jogo, que Afonso Arinos

chamou de tendência para “salvação pelo acaso”,

considerada por ele como de origem ibérica. (Conceito

de Civilização Brasileira). Esse aspecto nos ensinaria

não desprezar, na avaliação do processo econômico e

na formulação das políticas, os condicionamentos cul -

turais que podem vir de longe, em espaço e tempo.

Entretanto, para o período em pauta a febre bursátil

pode-se explicar primeiro por condições específicas: a

euforia da renovação política e social anunciada pela

abolição da escravidão e a adoção do regime repu-

blicano, considerada como um ingresso entre países

modernos, mais evoluídos.

Infelizmente, a expansão bursátil, até certo

ponto salutar, desembocou em especulação desenfreada

que Taunay desmascarou e condenou. Mas deve-se

atentar para a circunstância essencial de que a escalada

especulativa não teria sido viável sem ser sustentada

pelo maciço aumento da liquidez do sistema, resultado

de um relaxamento da política monetária. Isso faz

aparecer no palco a responsabilidade do governo – uma

lição que ao longo do século seguinte se tornou mais

evidente e mais grave.

Uma nova situação se criou através da reforma

bancária de 1890 (decreto de 17/01/1890 que retomou

os termos da lei do Império, de 1888, que não chegara

a ser aplicada). A intenção foi boa, pois havia

necessidade de criar maior liquidez no sistema face às

novas demandas monetárias decorrentes não apenas do

240

240

crescimento natural da economia, mas também so-

bretudo das exigências de capital de giro devido à

abolição da escravidão. O fato é que os últimos anos do

Império tinham assistido a uma política monetária

muito contencionista: entre 1870 e 1879 os meios de

pagamento cresceram apenas 20,3% e em 1889 se

situavam apenas 2,4% acima do nível de 1879! A

reforma bancária de Rui Barbosa judiciosamente quis

emendar e eliminar este entrave da economia.

Aí, a lição é positiva. A redução dos meios de

pagamento, agravada pela situação criada pela

Abolição, tinha efeitos nocivos sobre a atividade

econômica, embora não haja meios de avaliar quan-

titativamente o fenômeno. Corretamente, as autoridades

monetárias deviam velar para um suficiente grau de

liquidez. mas a lição histórica é limitada às condições

peculiares da economia brasileira do fim do século

XIX, com suas instituições específicas, com os hábitos

dos usuários, as capacidades do corpo administrativo,

etc.

Por outro lado surgiu um problema que traz um

bom ensinamento, de ordem mais geral: é que assume

importância capital a implementação de uma medida –

a implementação é até mais importante do que o

diploma legal; afinal o que funciona na realidade é a

medida implementada e não o dispositivo abstrato. O

que aconteceu foi que o decreto de 17/01/1890,

justificado em tese, foi aplicado sem critério, de forma

abusiva pelos dirigentes da Fazenda, principalmente

Tristão de Alencar e Henrique Pereira de Lucena.

241

241

O resultado foi que os meios de pagamento

cresceram 99% em 1890, puxados pelos depósitos à

vista cujo aumento atingiu 166%, enquanto o

crescimento do papel-moeda emitido se limitou a 53%,

ainda muito elevado. Em 1891 a expansão monetária

foi menor, mas ainda se situou em torno de 50%. Vê-se

que o foco expansionista reflete o relaxamento do

regime bancário. Vale acrescentar que, na época, não

se verificou nenhuma pressão significativa oriunda da

despesa pública: a execução orçamentária foi apenas

ligeiramente déficitária entre 1890 e 1893, até com um

exercício superávitário em 1891. É uma lição de co-

medimento do setor público, mas o ensinamento maior

consiste em que não é suficiente atacar a inflação

somente de um lado.

A permissividade oficial com respeito ao direito

bancário de emissão pode-se explicar por fatores

históricos cuja lição pode ser válida para outras

épocas: interesses escusos, favoritismo político,

demagogia. Mais uma vez, é lícito concluir que as boas

intenções podem ser prejudiciais pelas realidades

políticas, sociais e culturais, além das falhas insti -

tucionais de um país com escassa tradição cívica e

insuficientes quadros técnicos.

Será que a experiência inflacionária do

Encilhamento traz algum argumento convincente a

favor da tese às vezes sustentada do papel desen-

volvimentista da inflação? Não há condições de pro-

ceder aqui a uma análise mais detalhada do pretenso

surto industrial propiciado pelo Encilhamento, mas o

242

242

fato é que não se verificou uma grande expansão

econômica durante o Encilhamento e muito menos que

ela deve ter sido fruto do processo inflacionário

redistributivo: é ponto pacífico que a grande maioria da

pletora de empresas criadas durante o Encilhamento

foram de caráter especulativo e tiveram curta

existência.

Um testemunho coeso e insuspeito da conjuntura

é esclarecedor, no Relatório do Ministro da Fazenda

Bernardino de Campos (1898). Ele fala em “in -

conveniências da incipiente organização econômica...

as freqüentes agitações... a permanência e agravação de

uma circulação irregular e viciosa... grandes embaraços

e deficiências onerando e atrofiando o comércio, a

agricultura e a indústria nascente... as especulações, o

espírito de agiotagem... a paralisação dos negócios...” –

uma lição ainda válida.

Se houve ao longo dos anos, antes e depois da

proclamação da República, uma tendência progressista,

ela pode ser melhor explicada por outros fatores que

não o Encilhamento: a abolição da escravidão, a

entrada maciça de imigrantes, as políticas prote-

cionistas, etc. A advertência que resulta da

interpretação do episódio é de evitar o sofisma de

composição – post hoc, ergo propter hoc – ou seja,

que os pregressos verificados mais tarde, na virada do

século, teriam sido o reflexo do surto inflacionário do

Encilhamento. Não se deve confundir uma febre

especulativa com um movimento de real progresso –

isto já tivemos oportunidade de verificar em tempos

243

243

recentes.

Na realidade, entre o Encilhamento e o período

de expansão chamado Reerguimento Econômico, de

1903 a 1913, houve outra experiência, da qual é

possível tirar certos ensinamentos. Como no caso do

Encilhamento, não vou ater-me aos aspectos teóricos

da experiência – eles não são desprovidos de interesse,

mas, tendo em vista as mudanças dos conceitos teóricos

e das circunstâncias históricas, muitas das lições não

podem ser extrapoladas para os tempos atuais. Mas

existem aspectos permanentes, os em que “a história se

repete” e sua lição merece nossa atenção.

O período que estamos abordando agora é o da

experiência deflacionária de Joaquim Murtinho, na

presidência de Campos Sales. De acordo com

Murtinho, a economia brasileira se encontrava no fim

do século XIX sob o signo de uma dupla crise: a

elevação dos preços (27,8% em 1886, 18,7% em 1887)

e a queda das cotações do café (a saca de café tinha

caído de um valor de £ 4,09 em 1883 para £ 1,49 em

1898). Em ambos os casos, Murtinho deu uma

explicação em acordo com os conceitos clássicos:

tratava-se de um excesso de oferta – de moeda e de

café. Não interessa discutir aqui a questionável fórmula

quantitativa de Murtinho a respeito do valor da moeda

– o que interessa é que ele deu uma resposta certa,

acusando o excesso de papel-moeda. Indiretamente, a

redução do estoque monetário, provocando a va-

lorização cambial, devia reduzir a remuneração do café

em moeda nacional e conseqüentemente eliminar os

244

244

produtos marginais e, assim, sanear o mercado

cafeeiro.

Tais conclusões, válidas para o estágio da

economia e da sociedade brasileiras em 1900, são

altamente questionáveis, na sua essência técnica para,

por exemplo as condições do Brasil em fins do século

XX. Nesse caso, como em muitos outros, a lição da

História fica muito genérica face às diferenças

culturais e institucionais entre as épocas cotejadas.

Com perfeita cobertura do presidente Campos

Sales (uma importante lição quanto à necessidade da

coesão governamental), Murtinho aplicou com o maior

rigor, talvez excessivo, seu plano, retirando papel -

moeda da circulação e impedindo a expansão bancária:

entre 1898 e 1902 o papel-moeda emitido se reduziu

12,6%, os depósitos à vista 52,1% e os meios de

pagamento 24,9%; os preços caíram numa média

acumulada entre 25 e 35%; e a taxa de câmbio se

valorizou mais de 60%.

O caso Murtinho é um exemplo da relatividade

da lição histórica quando se trata de teorias econômicas

que são, por sua natureza, questionáveis. Assim, os

liberais puristas acharam que a política de Murtinho

constitui exemplo valioso a ser seguido, enquanto os

modernos críticos, imbuídos dos preceitos de Keynes,

acham que o exemplo de Murtinho tem valor per a

contrário, isto é, como uma advertência do que não

deve ser feito. Sob este ângulo, então, a história não se

deve repetir mas não deixa de ensinar.

As drásticas providências de Murtinho não

245

245

passaram sem sofrimentos: houve uma onde recessiva

que se manifestou principalmente na crise dos bancos,

de 1900, com falências, fechamento de bancos, etc.,

mas os indicadores estatísticos não detectam uma

profunda recessão: no quadriênio o produto real

cresceu à razão de 4,4% ao ano, um crescimento

razoável para uma economia subdesenvolvida. Mas,

sob o impacto das paixões políticas, o governo foi alvo

de críticas exacerbadas que beiraram a revolta aberta.

Com isenção, a História ensina – e este é um

ensinamento de dramática atualidade – que uma

operação de saneamento exige sacrifícios, Assim

sendo, os governantes e a sociedade devem ter uma

visão telescópica, numa perspectiva de prazo mais

longo. Murtinho teve essa visão cujos frutos surgiram

no período subseqüente – o Reerguimento Econômico

de 1903/1913 – quando se realizaram as promessas que,

nas críticas ferinas de Vieira Souto, Murtinho não teria

cumprido: renascimento do crédito público, desen-

volvimento do crédito privado, maior atividade

econômica, aumento da riqueza nacional.

Campos Sales e Murtinho tiveram que enfrentar

os maiores vexames e adversidades e uma imensa onda

de impopularidade – sabe-se que Campos Sales saiu da

presidência sob as vaias populares. Entretanto – mais

uma lição histórica – eles deram prova não apenas de

coerência em relação aos seus planos, mas também de

grande coragem cívica, sem a qual a política econômica

246

246

fica submissa à demagogia.

Palestra proferida em 19 de maio de 1994.

(Transcrito de Carta Mensal, Rio de Janeiro, 40(471): 41-48,

Junho 1994).

247

247

A EXPERIÊNCIA DEFLACIONÁRIA

DE JOAQUIM MURTINHO

As experiências do passado não podem ser

plenamente aproveitadas para a orientação das ações

presentes e futuras das sociedades, mas contêm sempre

ensinamentos valiosos devido à permanência dos

mecanismos do comportamento humano e de algumas de

suas motivações básicas. Assim, ao evocar a política

deflacionária de Joaquim Murtinho, respaldada na

autoridade do Presidente Campos Salles (1898/1902),

depois do tumulto monetário e financeiro da primeira

década republicana, não se pode pretender tirar, a não

ser com muita cautela, conclusões sobre a inflação e a

política antiinfracionária atuais ou normas a serem

aplicadas no presente: as condições econômicas, sociais

e políticas do Brasil – e do Mundo – mudaram muito ao

longo do século. Alguns preceitos, contudo, continuam

válidos. Vale, portanto, dedicar alguma atenção à lição

histórica oferecida pelo programa de estabilização

monetária e financeira de Murtinho, sobretudo no que

diz respeito a críticas e resistências da sociedade.

* * *

A situação política e econômica do Brasil na

véspera da gestão de Joaquim Murtinho explica e

eventualmente justifica a política por ele implementada

248

248

que, aliás, se enquadrava no pensamento econômico

oficial, predominante no fim do século: liberalismo,

padrão-ouro, teoria do comércio internacional.

Já no fim do Império houvera um sério abalo

provocado pela abolição do regime servil. O início da

República teve, entretanto, graves problemas de outra

natureza, ligados em grande parte à inflação e à

especulação bursátil conhecidas sob o rótulo de

“Encilhamento”.

Assistiu-se a uma excessiva expansão do crédito,

incentivada pela especulação bursátil, a uma forte

expansão monetária e a uma acentuada (para aqueles

tempos) elevação dos preços. Depois da relativa

calmaria do Império, os novos desequilíbrios de uma

intensidade inédita podiam preocupar a sociedade e os

dirigentes econômicos – mas a reação só veio dez anos

depois.

Entre 1889 e 1894 o papel-moeda emitido cresceu

261% e os meios de pagamento 190%. O impacto sobre

os preços foi menor, porém sensível numa economia que

não tinha conhecido inflação galopante (exceto o surto

passageiro e regionalmente limitado, no início do ciclo

do ouro): os preços subiram cerca de 114%.

Depois de uma breve trégua em 1894/95, os

preços retornaram à sua escalada, oriunda desta vez de

outro desequilíbrio, o das finanças públicas, em

decorrência de causas estruturais e conjunturais

(distúrbios políticos, administração deficiente, queda da

receita do imposto de importação, etc.). Acompanhando

parcialmente a desaceleração monetária, os preços

249

249

teriam acusado entre 1894 e 1898 uma alta em torno de

29%.

A grande preocupação veio de outra deterioração

do quadro econômico a qual afetava os pilares de um

sistema fortemente baseado no setor externo, sobretudo

na exportação de café. Ao longo da primeira década

republicana a taxa de câmbio despencou verticalmente,

uma desvalorização de 73% em 9 anos – o que era uma

afronta para a ortodoxia da política cambial e monetária

da época. Entretanto, a desvalorização cambial, maior

do que a elevação dos preços internos, devia favorecer a

exportação e, conseqüentemente, a balança comercial.

De fato, a exportação cresceu ligeiramente de 1889 até

1894, mas se reduziu no fim do período. A balança

comercial permaneceu superavitária, mas o saldo

positivo se reduziu.

Para os que acompanhavam mais de perto a

marcha dos negócios e da economia a grande

preocupação referia-se ao espetáculo assustador do setor

cafeeiro. A cotação do café em Nova York caiu

brutalmente devido ao desequilíbrio do mercado, com

uma superprodução cujo resultado era o aumento

acentuado dos estoques mundiais. Atraída pela demanda

elevada do período anterior, a produção brasileira de

café quase dobrou entre 1889 e 1898. Já antes falou-se

em “prenúncio de grave crise cafeeira” (Taunay) e

apareceram as primeiras sugestões de uma política de

defesa do café, que devia vingar apenas em 1906, com a

convenção de Taubaté.

250

250

De qualquer forma, já antes da gestão de

Murtinho, várias vozes autorizadas se levantaram

apontando para o estado precário da economia brasileira

e clamando por reformas drásticas para o saneamento da

situação financeira, monetária e cambial do País. Por

exemplo, no Relatório da Fazenda de 1898: “A notável

decadência a que chegou o câmbio no Brasil, excedendo

já em muito os limites naturais do câmbio real, só pode

ser atribuída em sua máxima parte ou quase totalidade à

depreciação do papel-moeda”... “as emissões bancárias

determinaram a desvalorização do meio circulante na

proporção expressa pelas taxas cambiais expostas, prova

de sua superabundância e medida de sua depreciação”.

E, já pensando em reformas: “É evidente que será

legítimo qualquer expediente que liberte o país desta

opressão (do câmbio baixo)”.

Um contemporâneo descreveu em termos

incisivos a péssima situação da economia em 1898 que

justificaria políticas saneadoras: “criação e agravação

contínua de impostos... abuso de crédito... aumento da

dívida... uma situação insusten tável” (Guanabara).

Algumas motivações políticas não faltavam, a

meu ver. O novo regime instaurado em 15 de novembro

de 1889 apresentava sinais de fragilidade e de ins-

tabilidade, sobretudo sob a ameaça de uma restauração

monárquica, bem como por instigar outras áreas de

conflito e descontentamento. A primeira década da Re-

pública foi interrompida por crises sucessivas que

tumultuaram o ambiente e sem dúvida não repre-

251

251

sentaram um bom ingrediente para a arrumação da

economia.

A desarrumação podia constituir, sem dúvida, um

argumento contra o regime republicano. Era, pois,

normal que os defensores do regime pensassem no

saneamento da economia a fim de não mais oferecer aos

adversários um campo propício às críticas. Tratava-se de

fortalecer o regime sob todos os aspectos, inclusive o

econômico, e esse intuito parece implícito, senão mesmo

explícito, nas medidas que eram preconizadas por

líderes como Prudente de Moraes, Bernardino de

Campos ou Campos Salles. O próprio Joaquim

Murtinho, no seu relatório como Ministro da Indústria,

Viação e Obras Públicas, em 1897, observava que

“consolidar a República não é simplesmente defendê -la

contra os atos de agressão violenta de seus inimigos”,

mas sim fazer uma política econômica sadia, baseada

nas idéias do liberalismo.

* * *

Como Ministro da Fazenda (1898), Joaquim

Murtinho partiu de um diagnóstico simples mas

rigoroso, posto que em termos hoje desatualizados. Para

ele, o Brasil padecia de duas crises: uma, econômica

“resultante da redução do valor da unidade do mais

importante (dos produtos): o café”, efeito por sua vez da

“produção exagerada em relação ao consumo”; outra,

financeira, resultante da “redução do valor da unidade

da massa (das rendas do Estado)”, por seu turno

252

252

conseqüência “da produção exagerada do meio

circulante em relação ao valor real da circulação”

(Relatório da Fazenda, 1899).

Vale observar que ao apontar os efeitos do

excesso da circulação monetária, Murtinho não se refere

de modo mais específico ao nível dos preços: ele

preferiu relacionar o valor da moeda à taxa de câmbio.

Mais expressivo é, entretanto, o fato de que ele coloca a

crise brasileira numa dupla equação de teoria clássica,

isto é, uma dupla discrepância entre a oferta e a

demanda. Mais tarde, no Relatório da Fazenda de 1900,

ele detalhou mais os desequilíbrios: “discordância entre

a produção do café e seu consumo, determinando a

redução do preço... discordância entre a nossa riqueza

anual em ouro, representada pelo valor da exportação e

a massa de papel-moeda inconversível em circulação,

produzindo redução do preço do papel, baixa de

câmbio... discordância entre a receita e a despesa

federal, produzindo déficits orçamentários, novas emis-

sões, novos empréstimos...”

A formulação do diagnóstico já indica as bases da

política saneadora: o restabelecimento do equilíbrio

entre a demanda e a oferta, o que implica na redução da

produção do café, na diminuição das emissões de papel -

moeda, no equilíbrio orçamentário. Alguns dos

conceitos emitidos por Murtinho são questionáveis, mas

sob um ângulo puramente pragmático levaram a

resultados profícuos em termos de combate à inflação e

de arrumação da economia.

253

253

A ênfase era dada ao saneamento monetário e

financeiro, o que não se pode estranhar num ambiente

dominado pela ortodoxia monetária e pelo sistema do

padrão-ouro.

Tal ortodoxia pode ser criticada pelos

economistas menos conformistas, embora ela mantenha

sua validade até para nossas experiências recentes. Para

seu tempo, Murtinho invoca, em apoio à sua política

econômica opiniões de alguns dos seus antecessores

ilustres, Souza Franco, Torres Homem, Dias de

Carvalho, Itaboraí, Zacarias de Vasconcelos, Ouro

Preto, Martinho Campos – testemunhas históricas

valiosas.

Autoridades estrangeiras – obviamente do mesmo

grupo da ortodoxia – convergiram no mesmo sentido,

mesmo depois da gestão de Murtinho. Paul Leroy-

Beaulieu, grande autoridade na época, citado por

Alcindo Guanabara, declarava: “O Brasil não tem senão

perseverar na trilha pela qual enveredou... a elevação do

câmbio se deve não tanto à melhora orçamentária, alta

do preço do café, aumento do stock do ouro, quanto à

retirada do papel-moeda”. E, em outra ocasião: “A

experiência do Brasil, de 1899 a 1905 é o testemunho

mais decisivo a favor das doutrinas econômicas sadias

sobre o câmbio nos países com padrão monetário

avariado... O exemplo do Brasil é especialmente típico e

honra grandemente o presidente Campos Salles, que

teve a iniciativa dessa política financeira saneadora”.

(apud Andrada).

254

254

A chave consistia em elevar o poder de compra da

moeda nacional através do enxugamento de sua

quantidade. E a valorização da moeda devia se

manifestar pela elevação da taxa de câmbio.

É curioso que muitas vezes Murtinho é censurado

por não ter dado bastante atenção ao problema do

balanço dos pagamentos (ele deduziu a taxa de câmbio

de uma relação mais simples, sem atentar para a

complexidade dos fatores incluídos no balanço de

pagamentos). Mas a importância reservada ao câmbio

implicava em ressaltar indiretamente o papel do setor

externo na economia.

O enfoque cambial podia ter também outra

justificativa, tal como foi formulado pelo próprio

Campos Salles na sua mensagem de 1899: “Sob o

domínio funesto do curso forçado e portanto na falta de

indicador direto que não existe senão quando o papel é

conversível, o critério para conhecer a deficiência ou

excesso do meio circulante é o estado do câmbio”.

Ademais, as duas crises diagnosticadas por

Murtinho estavam interdependentes, e o elo entre eles

era formado pela taxa de câmbio. O saneamento da

moeda, provocando a alta do câmbio, ofereceria menor

retribuição à exportação – principalmente de café – e

dest’arte eliminaria os produtores marginais do setor.

Inversamente, a valorização do câmbio reduziria a

proteção da indústria nacional frente à concorrência dos

produtos importados tornados mais baratos, e

consequentemente poderia provocar um deslocamento de

255

255

fatores de produção de uma indústria algo ineficiente

para o setor agrícola.

Sem dúvida, na formulação do diagnóstico e na

indicação das metas da política econômica revela-se o

apego de Murtinho ao liberalismo ainda dominante, à

sistemática do padrão-ouro e ao modelo tradicional de

uma economia exportadora de produtos primários,

integrada no grande comércio mundial baseado na

divisão internacional do trabalho.

* * *

Ao traçar-se o perfil ideológico de Joaquim

Murtinho é importante sublinhar que do ponto de vista

moral Murtinho foi irrepreensível pela sua coerência e

pela sua coragem; essa é sua principal mensagem e lição

histórica válida até hoje. Sob o ângulo teórico, ele é

questionável. O seu arcabouço teórico apresenta às

vezes lados altamente discutíveis. Mas, que teoria

econômica merece uma adesão incondicional?

Principalmente ao definir suas posições não se deve

esquecer o momento histórico em que se situaram e

seria anti-histórico julgá-as à luz das teorias que

surgiram muito depois e que Murtinho só poderia ter

previsto se ele tivesse sido realmente um gênio dessa

disciplina, o que, com todo o respeito, ele não foi. Ele

adotou para fins práticos extremamente plausíveis as

doutrinas do seu tempo. Se seu respaldo teórico parece

agora algo antiquado, os seus preceitos de política

econômica continuam válidos.

256

256

As posições de Murtinho podem ser identificadas

da forma seguinte:

a) Antes de mais nada, o liberalismo. Alguém o

tachou de “liberalismo econômico bastante radical” para

emendar depois “menos radical do que se pensa”

(Villela Luz). De fato, é preciso aceitar Murtinho como

um verdadeiro liberal ou rejeitá-lo na medida em que

não se concorda com o pensamento liberal.

Esse liberalismo não era apenas econômico, mas

principalmente político, visto que obviamente um está

intimamente ligado ao outro. Murtinho o diz claramente

já no seu Relatório de 1891 como Ministro da Indústria,

Viação e Obras Públicas: “A liberdade política não pode

ser completa sem a liberdade econômica” – tal como

pensam os atuais grandes liberais – Von Mises, Hayek,

etc.

Com um matiz pejorativo, o liberalismo de

Murtinho foi tachado de “darwinismo” ou

“spencerianismo”, isto é, um tipo de capitalismo

selvagem em que os mais aptos superam e liquidam os

mais fracos. De fato, o liberalismo, sob o signo da

concorrência, admite uma certa luta em que os agentes

econômicos tentam maximizar suas atividades: reduzir

os seus custos e elevar os preços de venda dos meios de

produção e dos produtos. E como a igualdade é uma

ilusão, evidentemente uma dose de sacrifícios

inevitáveis. É o preço a pagar pelo sistema, na medida

em que outra alternativa seria mais desvantajosa sob o

ângulo econômico, social e político. Ao criticar um

257

257

sistema, amiúde costuma-se opor à sua implementação

real, portanto eivada de imperfeições como qualquer

empreendimento humano, a imagem de um sistema

teórico, ideal, logo desprovido de qualquer defeito. A

discussão é delicada, mas parece claro que os detratores

do “darwinismo” ou “spencerianismo” econômico são

antes de mais nada adversários do liberalismo. Pode-se

encontrar um libelo, aliás talentoso, contra o liberalismo

por exemplo em Galbraith (A Era da Incerteza). Mas

uma vez mais, não se deve esquecer que Spencer

dominou o pensamento sociológico na segunda metade

do século XIX.

Para Murtinho, o conceito de liberalismo estava

ligado a valores econômicos que assumiriam até um

sentido moral: “Implantar em nosso espírito o ideal

individualista, ideal de energia, ideal de trabalho, ideal

de independência...” (Rel. da Faz., 1898). A terapêutica

podia ser dura, porém para um liberal convicto, isso

apresentaria o anverso inevitável de um sistema

altamente profícuo para toda a sociedade.

b) Entretanto, o liberalismo de Murtinho tem seus

limites. É verdade que o princípio básico é o não-

intervencionsimo do Estado: “Nenhum governo por mais

sábio, por mais poderoso e mais patriótico que seja,

pode substituir-se à ação de milhares de homens de

negócios” (ibidem). A idéia fundamental de caráter

econômico, é que a livre concorrência, afinal de contas,

contribuiria para a redução generalizada dos custos,

portanto para a maximização do objetivo de bem-estar

258

258

material: “a capacidade de produzir o máximo resultado

possível em relação ao capital empregado com o mais

baixo preço em um regime de livre concorrência” (Rel.

1899).

Não falta, contudo, uma dose de pragmatismo que

sempre esteve presente na política econômica daqueles

tempos, permitindo por exemplo desvios benéficos do

regime do padrão-ouro. No caso em pauta, uma posição

de frio “darwinismo” é atenuada pelos acenos a uma

certa intervenção estatal: “Quando se manifesta uma

crise no trabalho é dever do Estado afastar todas as

causas com que ele tinha contribuído para aquele mal;

mas seria contra os princípios de justiça proteger os

ineptos, os imprudentes, os viciosos, com o sacrifício

daqueles que lutam, que se esforçam e que vencem com

os elementos próprios da energia individual”. (Rel.

1897). Murtinho admite o intervencionismo na medida

em que ele restabelece a liberdade e as condições

normais do mercado.

Na realidade, a presença normativa do Estado é

inevitável: afinal, todas as medidas preconizadas para

“normalizar” o mercado do café via valorização cambial

ou para enxugar o meio circulante não passam de

intervencionismo estatal, porém com o objetivo de

liberalizar subseqüentemente a economia, senão, diz

Murtinho, cai-se no “despotismo econômico”, “o

aprisionamento da economia em normas cartorialmente

impostas pelo poder público” através de “um grande

número de leis” (Rel. 1897) – posição que, conve-

nhamos, é válida até nossos dias.

259

259

No caso do café, a atitude intervencionista é

nítida: “Restringir a cultura de café aos pontos mais

produtivos... limitar o desenvolvimento da produção do

café de modo a acompanhar o desenvolvimento do seu

consumo”. (ibidem, p. 152). É interessante notar como

exemplo da ambivalência das críticas, que Murtinho é

frontalmente acusado de ter defendido a agricultura em

detrimento da indústria, e ao mesmo tempo de ter

“deixado o café no abandono”.

c) Por cima das considerações pragmáticas,

Murtinho permaneceu fiel aos dogmas do liberalismo

político e econômico e de seus subprodutos, a divisão

internacional do trabalho e o padrão-ouro. Aquela, ainda

válida em princípio, com as ressalvas impostas pelo

protecionismo e pelo desenvolvimento mundial; este,

muito mais contestado ulteriormente e afastado a favor

de uma concepção monetária mais moderna.

Neste ponto também, críticas mais recentes

pecaram pela omissão das condições históricas de quase

um século atrás: “Exemplo típico (do apoio à ortodoxia

monetária) foi o de Joaquim Murtinho, metalista ardente

e sob vários aspectos mercantilista confuso... con-

duzindo-nos à violenta deflação conhecida” (Ferreira

Lima), A verdadeira confusão é misturar na mesma cesta

as posições liberais de Murtinho com um pretenso

mercantilismo que ele, na realidade, combateu (como

por exemplo no caso da política de valorização do café).

260

260

d) O respaldo teórico da ortodoxia monetária de

Murtinho – ou mais precisamente da medicação adotada

para equilibrar a economia brasileira – foi a teoria

quantitativa da moeda. Mas uma teoria apresentada

numa forma sui generis que foi inspirada pelo seu

conselheiro J. P. Wileman. É curioso que se admite que

Wileman influenciou profundamente Murtinho, sendo

elogiado pela sua “análise objetiva” e pelo fato de ter

percebido “o papel do preço do café como fator

determinante da taxa cambial” (Furtado), porém, por

outro lado, Murtinho é criticado por não ter “entendido

bem a função determinante do balanço de pagamentos

sobre a taxa cambial” (Villela Luz), o que é algo

contraditório.

A utilização da fórmula quantitativa da moeda

por Joaquim Murtinho foi asperamente criticada desde

Vieira Souto. Uma crítica mais recente referiu-se à

“convicção de Murtinho na teoria quantitativa da

moeda, erigida em panacéia geral para cura de todos os

males econômico-financeiros de todas as nações”

(Ferreira Lima). Pode-se admitir que Murtinho não foi

um grande teórico e mesmo que talvez ele tenha ficado

algo desatualizado, mas se se quiser identificar os

alicerces de suas argumentações, encontrar-se-ão os

princípios da teoria econômica clássica, a começar pela

lei da demanda e da oferta, com que ele explicou a dupla

crise da economia brasileira.

Não se deve esquecer que o grande livro de Irving

Fisher, paradigma da teoria quantitativa, foi publicado

em 1892. Sem dúvida, na época de Murtinho a teoria

261

261

quantitativa não havia assumido as sofisticações

subseqüentes que Murtinho não podia imaginar. O que é

peculiar nas demonstrações feitas Por Murtinho é que

ele encara o valor da moeda sob o ângulo cambial, o que

se pode explicar pelo apego dos adeptos do padrão-ouro

à ligação das moedas com o ouro via taxa cambial, ou

pela importância atribuída a esta taxa numa economia

profundamente arraigada ao setor externo.

Foi sumamente criticada e rejeitada a aplicação

por Murtinho da teoria quantitativa no caso brasileiro,

interligando o volume das exportações (tão importante

para uma economia dependente do setor externo), o

volume do meio circulante e a taxa de câmbio. A

equação de Murtinho mostra que o valor da moeda, isto

é, a taxa de câmbio, é o quociente entre o volume do

meio circulante (Murtinho omite o fator velocidade de

circulação da moeda) e o volume das transações, isto é,

o valor das divisas produzidas pela exportação. Sem

dúvida, a simplificação é facilmente criticável visto que

a taxa de câmbio depende do conjunto de fatores que

entram no balanço de pagamentos. A equação entretanto

era “operacional” constituindo-se num programa para o

saneamento da moeda.

Mesmo do ponto de vista teórico, ela podia

salvar-se quando, dado um certo volume de exportações,

ligava a taxa de câmbio ao volume da circulação

monetária, pois, se, dentro da teoria quantitativa, a

circulação determinava o nível de preços, chegava-se de

forma indireta a uma ligação taxa de câmbio/preços – o

que aproxima a posição de Murtinho, ainda que de

262

262

forma algo confusa, da teoria das paridades de poder de

compra.

Na realidade as oscilações do câmbio nem sempre

correspondem à expansão ou à contração monetária:

justiça seja feita, Vieira Souto percebeu muito bem o

fato, ainda que o seu radicalismo o tenha levado também

a exageros. Entretanto, independentemente da taxa de

câmbio, o valor da moeda, ou seja o seu poder de

compra era constantemente ligado ao volume da

circulação monetária: a maioria dos teóricos no fim do

século XIX pensaram dessa forma.

O purismo de Murtinho chegou a um exagerado

desnecessário quando ele sustentou o imperativo de

voltar para a taxa legal de 1846, de 27 d/mil-réis. Era a

aplicação rigorosa do padrão-ouro pelo reconhecimento

da taxa “real” de 27 d. – um verdadeiro feitichismo,

visto que o equilíbrio monetária e cambial podia

realizar-se em outros níveis.

De qualquer modo, o importante era que a

fórmula de Murtinho implicava um programa interno de

saneamento monetário e financeiro.

e) Criou-se a imagem de um Murtinho

nitidamente antiindustrialista, portanto, um retrógrado

que desejaria manter a economia brasileira num estado

primário, retardatário, imune a qualquer modernização e

progresso. Uma análise mais objetiva demonstrará a

injustiça de tal qualificação: a posição de Murtinho foi

muito mais criteriosa.

263

263

Sem dúvida, não se pode dizer que foi um

industrialista enragé. O seu apego ao liberalismo

clássico e ao seu sub-produto – a divisão internacional

do trabalho – levou-o a insistir na vocação do Brasil

como exportador de produtos primários, vocação essa

que, afinal de contas, tinha sido responsável pelo

progresso registrado ao longo do século XIX. O

comércio exterior constituía uma forte alavanca da

economia, mas seria errado pensar que Murtinho tinha

uma visão limitada. Já no seu Relatório de 1899 ele

escreveu: “Uma balança comercial desfavorável nem

sempre é sinal de decadência econômica em país em que

ela se manifesta”. Na realidade ele tinha uma visão

assaz correta da complexa realidade econômica e desde

o primeiro momento em que imaginou um programa

econômico para o Brasil, no Relatório do Ministério da

Indústria em 1897, ele colocou como objetivo “facilitar

comércio, indústria e agricultura”.

Não obstante, a condenação mais contundente foi

reservada ao antiindustrialismo de Murtinho, “seu

repúdio exacerbado e ostensivo à industrialização”

(Ferreira Lima). Mesmo críticos mais ponderados

chegam a afirmações deste tipo: “O liberalismo de

Murtinho e seus princípios darwinianos levaram-no a

combater a incipiente industrialização que se processava

no Brasil na época”. (Villela Luz). Em apoio a essa

crítica, foi censurada a posição racista de Murtinho ao

argumentar de modo muito infeliz que havia obstáculos

raciais contra a implantação de indústrias no Brasil

quando na realidade o progresso era estorvado por

264

264

fatores históricos. De fato, as teses racistas já tinham

começado a brotar na segunda metade do século XIX

(Gobineau, H.S. Chamberlain).

Embora politicamente avançado, Murtinho não

foi precisamente um pioneiro. No campo da economia

estava ligado aos princípios clássicos do liberalismo

econômico e da divisão internacional do trabalho que

reservava ao Brasil um ligar privilegiado entre os países

exportadores de produtos primários.

É interessante observar, mais uma vez, as

oscilações dos comentários entre a tradicional acusação

de antiindustrialista e uma interpretação mais objetiva

dos fatos. Um autor retifica: “Murtinho não era

propriamente desfavorável ao desenvolvimento indus-

trial do Brasil... O que na realidade Murtinho mais

condenava no processo industrial brasileiro era o alto

custo de produção”. (Villela Luz).

Tratava-se portanto de uma posição “econômica”:

a utilização racional dos fatores de produção disponíveis

em atividades de custo mais baixo. Este imperativo

incide em todas as atividades econômicas e não constitui

um pretexto para paralisar o surto industrial: “Temos

necessidade de aumentar a produção do País,

desenvolver suas indústrias e todas as outras fontes de

riqueza, promovendo assim o seu progresso”. (Relatório

1901). Era preciso, pois, maximizar o uso dos fatores de

produção disponíveis, sobretudo o do capital cuja

escassez era patente.

A exigência do custo baixo – preceito econômico

básico – aplicava-se logo a todas as atividades e não

265

265

representava especial e exclusivamente uma restrição à

produção industrial. Murtinho não foi muito feliz

quando forjou a expressão “indústria artificial”,

aconselhando a sua eliminação. Na realidade era melhor

dizer “indústria ineficiente”. O fato é que a expressão

“indústria artificial” se impôs como um sinal da aversão

de Murtinho à expansão das atividades industriais. A

tradução da expressão odiada foi dada pelo próprio

Murtinho já em 1897: as industrias naturais são as “que

têm condições de vida própria”. E em outro lugar

Murtinho esclarece: “O que caracteriza uma indústria

natural não é o fato de ter sua matéria-prima importada

ou não, mas o ter capacidade de produzir o máximo

resultado possível em relação ao capital empregado com

o mais baixo preço em um regime de livre concorrência”

(Relatório 1899).

Pode-se revelar, atrás dessa posição, uma

submissão talvez exagerada ao princípio da divisão

internacional do trabalho que, em nome da eficiência,

relegava o Brasil, inexoravelmente, no grupo dos países

produtores e exportadores de produtos agrícolas. Em

nome desse princípio, Murtinho insurge-se contra a

proteção industrial através da desvalorização cambial e

das tarifas alfandegárias.

De fato, dentro do conceito básico de eficiência

admitia uma dose de pragmatismo - racional e

equilibrado. "Não é possível, nem conveniente,

sobretudo numa época de grandes abalos, provocar uma

transformação brusca no nosso vicioso sistema

industrial, suspendendo instantaneamente proteções

266

266

oficiais, à sombra das quais se organizaram e vivem

muitas industrias artificiais entre nós". (Relatório 1899).

Murtinho não estava propenso a pensar muito

numa verdadeira política de protecionismo industrial,

mas é míster observar que o traço característico não era

propriamente o antiindustrialismo e, sim, o dogma da

eficiência econômica que ele quis impor, com o mesmo

rigor, à agricultura, ao café, dentro de um modelo de

liberdade, sem "despotismo econômico". (Relatório

1897).

* * *

A política de Murtinho lastreada na fórmula

quantitativa visando à valorização da moeda nacional e

fundamentada legalmente no Acordo de funding

celebrado em 1898 com os credores externos, previa em

primeiro lugar a retirada da circulação de um montante

de 115 mil contos de réis. O programa foi implementado

com bastante rigor. Não obstante, não se chegou a este

nível de contração monetária primária. Houve na

realidade uma retirada entre 98 e 104 mil contos, ou

seja, uma redução do meio circulante de 12-13%. Uma

perda sensível de liquidez, visto que os meios de

pagamento acompanharam a evolução, diminuindo cerca

de 25%. O sistema adaptou-se através da queda dos

preços.

Talvez o corte monetário tenha sido violento

demais, e Murtinho é apresentado como um cirurgião

cruel que operou sem nenhuma sensibilidade para com o

267

267

paciente. Mas não lhe era essa a intenção: falando da

contração monetária, ele disse que "é uma operação em

cuja realização a paciência, o total, o critério e a

prudência devem andar ao lado da coragem, da

tenacidade e da perseverança". (Rel. 1899). Talvez estas

últimas características tenham prevalecido demais - uma

questão de dosagem. Mas Murtinho não o considerava

assim, pois, no início da sua experiência escrevia: "Um

resgate brusco, trazendo como conseqüência uma

valorização rápida do meio circulante, traria grandes

prejuízos a certas classes sociais e especialmente aos

produtores nacionais" (ibidem) - sem dúvida pensando

primeiramente nos cafeicultores.

Outrossim, Murtinho achava que "a emissão de

papel-moeda criando valores potenciais provoca a

formação de negócios, alarga de fato a circulação

aumentando-lhe o valor primitivo durante o tempo de

existência daqueles valores potenciais" (ibidem), quase

justificando uma política expansionista; só que a

expansão devia ser em moeda conversível e, a seu ver, a

conversibilidade devia ser alcançada no nível do valor

legal de 1846.

A imposição da conversibilidade podia, contudo,

justificar-se naquele tempo quando o sistema bancário

não era disciplinado como freio e garantia de equilíbrio.

Acho que é um aspecto que mereceria destaque: a

moralização do sistema bancário através do padrão-

ouro. Uma lição interessante.

O próprio Vieira Souto, o grande crítico de

Murtinho, considerou correta a retirada de dinheiro da

268

268

circulação quando esta é superabundante - porém

avaliou como equilibrada a situação que se apresentava

no início da gestão de Murtinho e achou até que o

equilíbrio se restabelecera desde 1894. Talvez Murtinho

tenha exagerado os perigos da inflação, mas o fato é que

depois de um período de calmaria em 1894/95, os preços

tinham voltado a subir.

Quanto à idéia esdrúxula de que ao invés de

queimar o papel-moeda, o governo podia proceder a

investimentos produtivos, seria uma estratégia

"tipográfica" de desenvolvimento. Murtinho a repeliu

decididamente.

A contenção monetária devia encontrar um

sustentáculo no equilíbrio das finanças públicas para

eliminar o foco expansionista representado pelo déficit

orçamentário, porém este não exerceu sempre papel

nocivo durante o primeiro decênio da República, embora

a execução orçamentária não tenha apresentado

resultados brilhantes. No quadriênio 1898/1902 apenas

dois exercícios registraram magros superávits, 1899 e

1902. No total, um déficit líquido de 88,4 mil contos de

réis. Relacionado à receita, isto representava apenas

uma proporção de quase 6% - mas era ainda déficit.

Do lado da despesa, a melhora parece mais nítida

em 1901/1902 mas o período foi de deflação de modo

que em termos reais não se observa nenhum progresso.

Do ponto de vista da formação de capital do País, podia

se lamentar a pouca importância da parcela da despesa

do governo destinada a esse fim, mas essa situação

caracterizou toda a década e se prolongou até 1903.

269

269

Do lado da receita, reforçada pelo aumento do

imposto de consumo sobre vários produtos e pelo

aumento da incidência do imposto do selo, bem como do

importo de importação com a cota em ouro (a partir de

1900) – porém prejudicado pela ligeira retração das

importações – o progresso mais acentuado (em termos

reais) apareceu apenas em 1902. Obviamente, esses

aumentos proporcionaram a Murtinho opositores entre

consumidores, importadores, etc. Entretanto, a crítica de

que o aumento da carga tributária contribuiu para a alta

do custo de vida não tem nenhum cabimento. Ela é

rejeitada pelo observador da evolução dos preços, como

se verá a seguir. O próprio Murtinho repeliu as queixas

pela “carestia de vida insuportável” (Rel. 1901),

exibindo uma lista de 333 produtos que, entre 1899 e

1901 tiveram na quase unanimidade baixa de preços. É

bastante estranho que alguns críticos, inclusive recentes,

em sua ânsia de denegrir à tout prix a reforma de

Murtinho, se queixam da alta de preços e do

crescimento do custo de vida, ao mesmo tempo que

condenam a política deflacionária de Murtinho. A lição,

ainda válida, é que muitas vezes o desejo de criticar

supera a objetividade.

e) As informações sobre a evolução dos preços no

período são escassas e precárias. Um trabalho com

levantamentos em anos selecionados (Ónody) fornece

índices apenas para 1896 e 1900, registrando uma queda

de 7,4%, mas o período inclui 2 anos anteriores a

Murtinho e não alcança os últimos 2 anos de sua gestão.

270

270

Ademais, abrange somente a variação dos preços dos

produtos importados.

Outro levantamento (Buescu) limitado aos anos

terminais do período para 20 produtos fornece a

informação de uma queda global de 33,0% entre 1898 e

1902, obviamente índice não ponderado.

Outras informações algo mais detalhadas, ano a

ano, chegam a conclusões parcialmente discrepantes,

mas que convergem no sentido global já indicado, de

uma baixa continuada dos preços. Corroborando as

várias fontes, o resultado final indicaria uma queda de

26 a 27% - uma deflação nítida.

Ao avaliar-se a contração monetária acontecida

no período deve-se levar em conta essa valorização da

moeda. Com efeito se, em termos nominais, os meios de

pagamentos se reduziram 25% entre 1898 e 1902, em

termos reais, com uma deflação de 27%, a variação real

é positiva de 3%. Isto quer dizer que a liquidez do

sistema se recompôs em outro patamar. Mas, tampouco

isto quer dizer que a adaptação ao novo nível se tenha

feito sem sacrifícios.

* * *

Contestada ou não a medicação proposta por

Murtinho, o fato é que ao longo do período presidencial

de Campos Salles, assistiu-se a uma substancial

valorização cambial: a libra esterlina viu cair a sua

cotação de 33,380 mil-réis em 1898 para 20,237 mil-réis

em 1902. Essa queda de 39% de sua cotação pode ser

271

271

cotejada com a queda de 27% dos preços internos.

Murtinho calculou a taxa de câmbio “teórica” a partir de

sua equação quantitativa e acertou em grande parte,

porém se vê que a valorização cambial foi mais forte do

que a do poder de compra interno da moeda. De

qualquer forma, Murtinho deve ter se decepcionado por

ter a taxa de câmbio real ficado ainda longe da meta de

27 d/mil-réis (ou 8,889 mil-réis por libra esterlina).

Evidentemente, além do problema da paridade

dos preços intervinham os vários fatores que afetavam o

balanço de pagamentos – nisso os críticos de Murtinho

tinham razão. Murtinho é acusado de não ter prestado

atenção aos problemas do balanço de pagamentos, ao

passo que Wileman, seu consultor, o fazia. Na realidade,

Murtinho cuidou, sem indicação explícita, de vários

elementos atuantes sobre o balanço de pagamentos, a

começar pela suspensão por 13 anos do serviço da

dívida externa conforme o mencionado Acordo de 1898.

O saneamento da economia nacional devia atrair

capitais estrangeiros sob forma de empréstimos e

investimentos, como de fato aconteceu mais tarde. A

reconquista da confiança externa foi um elemento

muitas vezes ignorado ou desprezado pelos críticos. Por

outro lado, a balança comercial devia melhorar graças

ao freio posto às importações via elevação do imposto

de importação bem como – na visão de Murtinho –

graças à expansão da receita de exportação via

fortalecimento do mercado cafeeiro.

É curioso constatar que alguns críticos acusam

Murtinho por não ter prestado atenção ao preço do café

272

272

(Villela Luz). Mas então que queria dizer o empenho de

Murtinho em restringir a produção do café a fim de

fortalecer-lhe o mercado? O que Murtinho subestimou

foram as forças do mercado, não apenas do lado da

demanda, mas também do lado da oferta. A valorização

cambial não mudou a tendência decadente das cotações

mundiais e o esperado equilíbrio do mercado não se

restabeleceu.

As vozes favoráveis a uma intervenção no

mercado se intensificaram, mas parece injustificada a

interpretação de que foi a política de Murtinho

responsável pela subseqüente adoção da intervenção

(política de valorização que será iniciada pela

convenção de Taubaté, em 1906). Sem Murtinho, o

mercado de café ter-se-ia recuperado por si próprio? A

queda das cotações tinha começado em 1890 e a

alternativa teria sido continuar a forte desvalorização

cambial da moeda nacional. Mas valia a pena onerar a

comunidade inteira, provocando uma redistribuição da

renda, via câmbio, a favor do setor cafeeiro? É estranho

que tais posições foram adotadas por comentaristas que

se pretendiam partidários da modernização da economia

brasileira. Embora um tanto “darwinista”, a posição de

Murtinho foi mais “econômica”, visto que acentuou a

importância da eficiência e da diminuição dos custos:

“A redução (da produção) tem-se de dar infelizmente

pela seleção que elimina os mais fracos, deixando

subsistir os mais fortes”. (Rel. 1901) Como não podia

deixar de ser, tal posição garantiu a Murtinho o ódio de

mais uma classe, a dos cafeicultores.

273

273

O fato é que, apesar da permanência da cotação

do café em níveis baixos, a sua receita cresceu

paulatinamente. Isso foi possível graças a um grande

esforço quantitativo, mas evidentemente resultou uma

forte perda sob o ângulo das relações de troca. Murtinho

quis evitar isso – sem sucesso.

* * *

A política econômica de Joaquim Murtinho foi

fortemente criticada devido a seus efeitos negativos a curto

prazo: a crise dos bancos de 1900 e, de modo mais geral, a

pressuposta depressão, em dimensões catastróficas, da

economia nacional. Isso exige alguns reparos.

i) A crise bancária foi uma realidade. O que está

em discussão é a sua extensão, bem como a sua causa

mais profunda. Quanto ao primeiro aspecto, houve como

em todo “episódio Murtinho” exageros. Foi dito que “o

pânico bancário em 1900... quase destruiu o sistema

monetário brasileiro” (Peláez-Suzigan), embora este,

passada a crise, voltasse a funcionar normalmente, um

ano depois. Outro comentário excessivo diz que “os

bancos nacionais faliram quase todos”. (Ferreira Lima).

Outro9s, mais comedidos, dizem que “uma grande crise

bancária em setembro de 1900 levou à falência quase

metade do sistema bancário” (Villela-Suzigan). Roberto

Simonsen cita a falência de 17 bancos, sem definir o

tamanho do abalo – apenas observa que o feito colocou

“em penosa situação as classes produtoras”. Na

274

274

avaliação ponderada de Calógeras, se chega a apenas 9

estabelecimentos bancários.

Sem dúvida, o abalo não era desprezível,

atingindo algumas instituições de base do sistema

financeiro. A crise era inevitável face à perda aparente

de liquidez. Entretanto, pode-se fazer um exercício

cujos resultados são um tanto surpreendentes: partindo

da base de 1889, o montante dos meios de pagamento,

em termos reais, teria chegado em 1900 para um nível

superior ao de 1889. Até 1902 subiu ainda mais. Em

outras palavras, apesar do impacto contracionista, a

política de Murtinho não teria chegado a anulas os

excessos expansionistas ocorridos entre 1889 e 1898.

Murtinho procedeu criteriosamente ao enxuga-

mento do sistema, ciente do preço a pagar e dos riscos a

assumir, assinalando “os perigos que (o resgate do

papel-moeda) pode trazer, se não for executado com

grande prudência e extraordinário critério. O perigo está

em que a redução do papel-moeda traz como con-

seqüência uma redução na amplitude da circulação, na

extensão do aparelho circulatório, que se manifesta por

grande diminuição de negócios”. (Rel. 1899).

Talvez o empenho saneador tenha ultrapassado às

vezes os limites da prudência, mas a alternativa podia

parecer a Murtinho – e a outros – ainda pior. Murtinho,

entretanto, insistiu em que a origem do mal residia nos

abusos feitos durante o período de liberdade exacerbada

após 1889. A crítica, avalizada pela autoridade de

Calógeras, refere-se em primeiro lugar ao Banco da

República do Brasil que “conservou os germes da

275

275

destruição criados pela gestão desastrosa, dilapidadora

destas duas instituições (os bancos que fusionaram no

Banco da República)” (Calógeras), aduzindo, ainda, à

“fraqueza profissional da administração” do Bando da

República. (ibidem). Tendo sido vedadas novas

emissões de acordo com a lei de 1899, os bancos não

tiveram mais meios de refazer sua liquidez a fim de

atender a seus compromissos.

De fato, as autoridades monetárias não ficaram

insensíveis, mas na opinião de Calógeras, a procura de

uma solução foi torpedeada “por uma campanha de

sábias indiscrições”. Finalmente, às pressas, foi

arquitetado um plano de emergência de restauração

financeira (setembro de 1900) para acudir aos bancos

em apuros. Enfim, a crise foi superada, mas sem dúvida

não seria lícito minimizar o trauma sofrido pelo sistema.

Até que ponto o saneamento se justificava em tal

intensidade? Murtinho, obviamente, defenda as pro-

vidências tomadas: “A crise aguda que se manifestou

ultimamente no nosso mercado monetário veio, pois,

mais uma vez trazer a demonstração do acerto da

política e dos resultados fecundos que ela trouxe ao país

e, se é verdade que ela acarretou alguns sofrimentos,

não é menos verdade que esses sofrimentos, como

muitos outros, têm vantagens incontestáveis”. (Rel.

1901) E Murtinho aproveita para insistir em que, se a

crise foi devida à notável diminuição do crédito e à

ruína de muitos estabelecimentos bancários, a raiz dos

males residia “nas grandes emissões anteriores de papel-

moeda” (ibidem).

276

276

Pouco tempo depois, uma autoridade como

Calógeras veio fornecer um irrestrito atestado a favor

dos acontecimentos: “A derrocada dos bancos de 1900

produziu evidentemente benéficos: o saneamento

econômico e financeiro da praça do Rio, e dos principais

mercados em relação com ele, exigia esse preço”.

ii) Parece fora de dúvida que a forte contenção

monetária, financeira e creditícia não limitou seus

efeitos à crise dos bancos, mas toda a economia nacional

pode ter sido afetada. Há, entretanto, a que parece,

exageros de avaliação e não se deve esquecer que o

governo Campos Salles foi submetido por várias razões

– sobretudo políticas – a críticas duras que, em

perspectiva do tempo, não dão impressão de isenção e

objetividade. Um juízo mais ponderado diz com

prudência: “É provável que jamais se consiga avaliar

adequadamente os efeitos dessa política de contenção,

mas é fora de dúvida que esse período foi um dos mais

críticos na história econômica do Brasi l”. (Villela-

Suzigan) Seria irrealista uma defesa de Murtinho

negando-se os inevitáveis efeitos amargos da política de

saneamento. De fato, essa ressalva se pode fazer a

respeito de outras experiências mais recentes no Brasil.

As próprias fontes coevas – salvo as dos inimigos

declarados do governo – embora reconhecendo os

aspectos depressivos do momento, não chegam a clamar

contra uma catástrofe de dimensões insuportáveis.

Vejamos o Retrospecto Comercial do Jornal do

Commercio de 1900 – uma publicação ligada aos

277

277

interesses das classes comerciantes, portanto pouco

propensas a indulgências para com Murtinho: “O ano

passado (1900) foi ainda menos satisfatório do que o

anterior e as atribulações do comércio, tanto de

importação como de exportação foram persistentes e

agudas”. Não deixa de apontar a “atmosfera da

desconfiança” – que abre uma janela sobre a

impopularidade da política de Murtinho. Outro trecho é

mais contundente, referindo-se à crise, “a mais pesada

de que tenho lembrança durante mais do que um quar to

de século”. Isso se escrevia no auge da crise, que foi no

ano de 1900.

No ano seguinte o tom já é mais ameno: “Acre -

ditamos ter havido melhora no movimento comercial

durante o ano findo, não obstante as reclamações mais

ou menos persistentes”. Referindo-se aos negócios de

importação o Retrospecto esclarece que as queixas são

devidas mais a “esperanças exageradas” e menos à

“verdadeira diminuição dos negócios”. O leitor impar -

cial dificilmente encontrará nestes textos a imagem de

uma débâcle da economia. As tormentas se acalmaram e

sente-se a normalização, embora com a persistência do

trauma provocado pela crise: “A estabilidade do câmbio

durante o ano findo removeu notavelmente as queixas

do nosso comércio importador: mas tão enraizado se

mostrou o costume de referirmo-nos à crise tremenda

pela qual o país passa que em quase todos os

documentos publicados, dos mais variados objetivos,

consta tal frase sombria.” A frase foi retomada, retocada

e magnificada pelos comentaristas ulteriores.

278

278

Embora seja válida a observação citada de que

“jamais se consiga avaliar adequadamente os efeitos de

política de contenção”, vale juntar alguns indícios. Um

indicador global (embora precário) que seria a taxa de

crescimento do PIB no período, não acusa nenhuma

derrocada fatal, durável. De acordo com vários

pesquisadores, o PIB em valores constantes teria

crescido muito pouco em 1899; teria caído, também

pouco, em 1900, registrando depois excelentes taxas de

crescimento: 11% em 1901, 7% em 1902. (Goldsmith)

Estas últimas taxas parecem exageradamente altas, mas

seria ainda mais gratuito sustentar que as taxas teriam

sido negativas. Em 4 anos (1899/1902) o crescimento

foi de 18,7% ou seja à razão de 4,4% ao ano. Na década

anterior (1889/1898) a taxa média anual não havia

passado de 1,5%. Onde fica a recessão?

Numa economia predominantemente agrícola e

ainda com setores não monetizados, a crise monetária

podia ser amortecida. O importante era o compor-

tamento da agricultura de exportação, visto que o

coeficiente de exportação era muito elevado -

provavelmente 20 a 25% do PIB. Mas, com todos os

percalços encontrados, a exportação teve um com-

portamento razoável: depois de um biênio de estagnação

– mas não de queda – em 1898/99, a receita de

exportação subiu 30% em 1900 e 22% em 1901 e caiu

apenas 10% em 1902, situando-se ainda em nível

bastante elevado. Não se deve esquecer que o Brasil se

encontrava em pleno subciclo da borracha, com volumes

exportados crescentes e cotações em alta.

279

279

Do lado das importações, a retração é mais

visível, embora se pudesse esperar uma ativação graças

à valorização da taxa de câmbio. O valor da importação

caiu paulatinamente, porém não em grandes proporções,

entre 1899 e 1901; em 1902 voltou praticamente para o

nível de 1898.

Sinais recessivos, embora amenos, aparecem no

movimento do porto do Rio de Janeiro, em 1900/1901,

tanto no longo curso como na cabotagem, porém em

1902 já se tinha voltado para o nível de 1898 em quase

todos os casos mencionados (Lobo).

O movimento da Bolsa de Valores do Rio de

Janeiro, também, está longe de oferecer um cenário de

débâcle: entre 1898 e 1900 o volume de cambiais

negociadas aumentou: o do títulos da dívida púbica caiu

de 1899/1900, mas acusou forte aumento em1901/1902;

houve igualmente queda nas transações com ações e

debêntures em 1900/1901 e recuperação em 1902

(ibidem).

Pode-se interpretar também como sinal recessivo

a diminuição das importações de equipamentos in-

dustriais; entretanto, apenas o ano de 1901 apresentou

resultado evidentemente negativo. Por outro lado, pode-

se registrar como fator de animação da economia, o fato

de que se intensificara a entrada de investimentos

estrangeiros. (Castro).

Quanto à “onda de desemprego e de greves” de

que se falou, parece ter havido algum exagero. De fato,

a avaliação deveria referir-se ao setor industrial urbano

e a indústria representava uma parcela mínima do PIB

280

280

(12% em 1902) e conseqüentemente do emprego. Em

1907 o número de operários industriais era de 151 mil –

o que não representava mais de 0,7% da população total.

Um levantamento mais cuidadoso dos movimentos

grevistas poderia eventualmente detectar maiores

tensões durante a presidência Campos Salles, mas num

panorama superficial dos primeiros 10 anos da Repú-

blica, tal agravamento não aparece (Carone).

iii) Para finalizar, foi uma política de um

antiindustrialista ferrenho? Da mesma forma poder-se-ia

alegar que Murtinho foi um adversário ferrenho da

economia cafeeira na medida em que ela seguia padrões

antieconômicos. Outrossim, Murtinho seguiu a

tendência histórica de aumentos da proteção

alfandegária – mesmo se era por razões tributárias e não

protecionistas. Com a reforma de 1900, com a elevação

das alíquotas e a aplicação da cota-ouro de 20% e depois

25%, a indústria passou a ter uma forte proteção,

superior à dos regimes anteriores. Sem dúvida, não se

tratava de uma política industrialista explícita, mas esta

tardou a aparecer no Brasil e a sua ausência não deve

ser debitada a Murtinho. Mas por outro lado, se

Murtinho quis acabar com o regime preferencial para o

café, não lutou ele por uma nova alocação de fatores de

produção que beneficiaria indiretamente o setor

industrial? Se não se pode creditar a Murtinho uma

verdadeira política industrialista, as suas reformas

beneficiaram a economia brasileira como um todo,

inclusive o ainda frágil setor industrial. Numa

281

281

perspectiva mais ampla, ultrapassando os limites do

período presidencial Campos Salles, os benefícios iriam

aparecer claramente.

* * *

Houve, sem dúvida, insatisfações, protestos,

vítimas. Não se deve esquecer o clima de liberdade que

acompanhou as reformas de Murtinho. Na sua última

mensagem, Campos Salles lembrou algo melancoli-

camente: “Nunca atravessamos uma fase em que

tivessem sido mais livres, mais ilimitadas, mais

veementes e talvez mais sediciosas as expressões da

imprensa e da tribuna”. E é bom lembrar também que o

Retrospecto Comercial de 1901 quando fala das

agitações de rua, esclarece que estavam ligadas à

sucessão presidencial.

Um cronista competente descreveu da forma

seguinte os acontecimentos: “A hostilidade contra o

governo havia atingido seu máximo (1901) e tudo era

levado como pretexto para fazer-lhe oposição. Agitações

sem grande valor, contudo, exigiram a intervenção

enérgica da política do Rio. Essas notícias exageradas e

comentadas no Brasil e no estrangeiro, aumentavam as

facilidades de ação dos agitadores, auxiliados pela

violência das discussões parlamentares”. (Calógeras).

E qual era a explicação no plano das reformas

econômicas de Murtinho? “Todas essas inovações

fiscais e sobretudo o espírito draconiano dos regu-

lamentos que determinaram o modo de percepção e de

282

282

supervisão, provocaram sobre as praças comerciais do

Brasil um tollé geral, que foi até a insurreição”.

(ibidem) Em outras palavras, válidas para os nossos

dias: a tradicional resistência do corpo social a reformas

de gosto amargo a curto prazo, esquecendo as vantagens

de longo prazo.

De tal miopia parecem ter sofrido alguns co-

mentaristas mais recentes. Não se fale mais das críticas

exacerbadas – e gratuitas como as que afirmam que “as

medidas postas em prática por Murtinho se trans-

formaram para nós em fatores de retrocesso por

encerrarem caráter antinacional”. (Ferreira Lima, 1976).

Parece linguagem de comício eleitoral, usando co-

nhecidos chavões.

Outros críticos, muito mais competentes, pecaram

entretanto por um certo radicalismo no sentido de

censurarem em Murtinho uma política contrária a suas

posições teóricas – elas mesmas de valor relativo, como

sempre se verificou na história do pensamento

econômico.

Os críticos enfatizaram seja o seu fraco emba-

samento teórico, seja a inocuidade das providências

adotadas, seja, sobretudo, os seus efeitos nocivos a

curto prazo. O fato é que Murtinho atingiu grande parte

de suas metas: contenção monetária e creditícia,

equilíbrio das finanças públicas, valorização cambial.

Isso com seus ingredientes negativos talvez inevitáveis:

crise bancária, recessão, rigor do programa de

saneamento.

Entretanto, o melhor teste de política de Murtinho

283

283

deveria ser feito através dos seus efeitos numa visão de

prazo mais longo. Calógeras, com isenção, lembrou os

percalços de curto prazo, sem deixar de assinalar os

ganhos subseqüentes: “Com o risco de parecer insen -

sível e duro, tenho que confessar lealmente minha

profunda convicção de que, devidamente pesados os

males e as vantagens, a derrocada dos bancos de 1900

produziu resultados evidentemente benéficos...”

A política de Murtinho desagradou a gregos e

troianos, pois todos os grupos tenham uma ótica

limitada aos próprios interesses imediatos: os

consumidores rejeitaram o aumento dos impostos, os

empresários a redução do crédito, os cafeicultores a

valorização cambial – e assim por diante. Entretanto o

estadista deve possuir a visão “telescópica – a

capacidade de enxergar os efeitos finais a longa

distância. E a coragem moral para enfrentar as críticas.

Vieira Souto ironizou as promessas não cumpridas

de Murtinho: renascimento do crédito público,

desenvolvimento do crédito público privado, maior

atividade da circulação econômica, aumento da riqueza.

Isso foi escrito em 1902 e Vieira Souto podia ganhar

esperando apenas alguns anos para verificar a realização

das promessas de Murtinho. Pois, justamente a partir de

1903 e durante uma década, até a eclosão da Primeira

Guerra Mundial, o Brasil passou por uma fase de expansão

e equilíbrio econômicos que foi, com propriedade,

rotulada como “Reerguimento Econômico” – fase que

deve ser creditada ao trabalho preparatório de Murtinho.

Cite-se apenas rapidamente os sucessos regis-

284

284

trados: equilíbrio monetário e financeiro, fortalecimento

da posição cambial, confiança do mercado financeiro

internacional, fortalecimento do crédito externo, entrada

de investimentos estrangeiros, expansão das exportações

e importações, manutenção de saldos comerciais

elevados e boas taxas de crescimento do PIB e, mais

especialmente, do produto industrial (Buescu). Pode-se

dizer que o único fracasso foi a continuada expansão do

setor cafeeiro que teve como conseqüência a adoção das

políticas de valorização à qual Murtinho se tinha oposto,

de modo que seria uma distorção injusta – como alguns

o fizeram – responsabilizar a política de Murtinho de

um liberalismo puro demais, pelos desvios mercan-

tilistas da defesa do café que devia prolongar-se até

muito tempo depois da morte de Murtinho.

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289

289

ARRANCO OU TRANSIÇÃO

(1930/1960)

Passou discretamente, no ano passado, uma

comemoração de grande significado para a história

econômica do Brasil.

O semicentenário da constituição da Companhia

Siderúrgica Nacional (Volta Redonda), criada pelo

Decreto-lei 3.002, de 30 de janeiro de 1941 (1). A

importância estratégica da empresa, que devia entrar em

funcionamento apenas em 1946, não escapou aos

contemporâneos. Ainda em 1941, o presidente Vargas

considerou-a um “passo decisivo para a industrialização

e a independência econômica”. Na mesma época (1942),

Roberto Simonsen a entendia como “o início de uma

nova era industrial”.

Realmente, a criação da CSN não representa

apenas uma etapa significativa na evolução industrial do

país, um símbolo da decolagem econômica, mas também

um paradigma do desenvolvimento na época, sob a égide

de nacionalismo do intervencionismo estatal, do

autarcismo e do industrialismo. Mas adiante, reservarei

maior atenção a esses aspectos típicos daquele momento

histórico. Por enquanto, quero referir-me a Volta

Redonda como marco do que teria sido o arranco

brasileiro.

290

290

Uns 20 anos atrás, quando me dedicava com

entusiasmo aos métodos quantitativos em história

econômico, empreendi um exercício quantitativo para a

identificação cronológica do arranco brasileiro (2). O

exercício, com todas as limitações do método e dos

escassos dados estatísticos, devendo, portanto apelar

para extrapolações e estimativas, sustentava-se, não

obstante, na coerência das conclusões, em cotejo com

informações qualitativas.

A demonstração partia do esquema do arranco, tal

como apresentado no livro clássico do W. W. Rostow

(3). Como se sabe, ele afirmou que o arranco se

caracteriza por três condições inter-relacionadas (uma

simplificação): taxa de investimento produtivo superior

a 10% da renda nacional; crescimento elevado de um ou

mais setores manufatureiros básicos; existência ou

rápida eclosão de um arcabouço político, social e

institucional favorável ao desenvolvimento. Tal

esquema constitui um bom roteiro para análise, de modo

que voltará a aparecer mais adiante na exposição,

embora ele deva ser aceito de maneira circunstanciada:

antes de mais nada pode-se dizer que os condi-

cionamentos são reciprocamente condicionados – por

exemplo, a elevada taxa de formação de capital

condiciona o crescimento do PIB, mas ela por sua vez

pode ser elevada graças ao alto nível do PIB.

Na falta de informações diretas sobre a evolução

secular da taxa de formação de capital, o exercício

quantitativo consistiu em observar a partir de que data

aquela taxa podia ser superior a 10% do PIB, descontada

291

291

a taxa de depreciação, que não podia ser muito elevada

numa economia predominantemente agrícola. Estimei

primeiro as taxas de crescimento do PIB, de forma

indireta, de vez que as contas nacionais oficiais come-

çaram praticamente apenas na década de 50 (4). As

estimativas assim calculadas foram razoavelmente

confirmadas pelos levantamentos oficiais ulteriores (5).

A fim de passar das taxas de crescimento do

produto para as da formação de capital foi necessário

extrapolar o valor da relação capital/produto. Ora, nas

contas nacionais, após 1947, essa relação apareceu como

aproximadamente de valor 2. E, por razões estruturais,

era quase impossível ter sido maior nos anos

antecedentes. Portanto, com a relação capital/produto de

no máximo, 2 e com taxas de crescimento do produto

inferiores a 5% até a década 1940/50 (6), foi só nesta

década que a taxa liquida de formação de capital podia

ter ultrapassado o limiar rostowiano de 10% (7).

Isso me permitiu considerar, algo superficial-

mente, que o arranco brasileiro ocorrera no decênio

1940/50 (8) ou, rejeitando o período desfavorável da

guerra, em 1945/50. Dessa forma – para voltarmos à

data comemorativa – podia considerar a criação da

Volta Redonda como uma indicação ou pelo menos um

símbolo do arranco.

* * *

Entretanto, o arranco, como qualquer processo

histórico, mesmo quando se trata de uma assim chamada

292

292

revolução, apresenta-se como um processo de evolução

lenta, contínua, mesmo se mais acelerado durante um

certo período. Segundo o critério adotado, o momento

crítico da mudança teria se cristalizado em 1945/50,

porém a preparação desse momento vinha de longe: já

assinalei que, para haver uma certa capacidade de

formação de capital, a economia nacional devia en-

contrar-se num patamar razoavelmente elevado em

termos de taxa de crescimento e estruturas sócio-po-

líticas e econômicas (mais especificamente em termos

de grau de industrialização).

Como qualquer processo histórico o arranco não

surgiu ex nihilo, nem se podia completar instan-

taneamente ou num rápido lapso de tempo. Ao observar

a série secular das taxas de crescimento do Brasil, no

século XX, constatava-se que durante quase o primeiro

meio século flutuaram em torno de 4% ao ano (salvo nos

períodos de crise: a Primeira Guerra Mundial e a Grande

Depressão). Ademais, o processo de industrialização foi

também de longo prazo: excluindo os dois períodos de

crise mencionados, o setor industrial acusou taxas de

crescimento superiores ao conjunto da economia – quer

dizer, ele aumentou paulatinamente sua participação no

produto global.

Deixando os aspectos quantitativos do arranco e

considerando os que se referem aos condicionamentos

qualitativos do arranco (o setor político dinâmico, a

motivação nacionalista e autárquica, o intervencionismo

como instrumento desenvolvimentista), podemos admitir

que esta fase primitiva do arranco começou nos anos 30,

293

293

mais especificamente após a passagem dos efeitos

negativos da Grande Depressão. Alguns historiadores

sugerem que a revolução de 1930 representa o marco de

surgimento do Brasil moderno. Do ponto de vista

econômico, a modernidade consistiu no abandono do

modelo, já esgotado, de exportação de produtos

primários e na adoção mais ou menos explícita do

modelo industrialista: uma passagem lenta e às vezes

hesitante, a aplicação de decisões ambivalentes, favo-

recendo às vezes o modelo antiquado, porém cada vez

mais o modelo da modernização.

Parece, portanto, aceitável a adoção de uma

periodização – arbitrária como qualquer outra – que

fixaria o arranco ou melhor, a transição no período de

30 anos de 1930 a 1960, um lapso de tempo

praticamente da mesma ordem que os detectados por

Rostow para os países ocidentais. Adotando por hábito

tradicional subperíodos decenais, a periodização

compreenderia:

- os anos de 1930 a 1940; o surgimento das

condições mais nítidas da transição;

- os anos de 1940-1950: a marcha mais resoluta

para o novo modelo;

- os anos 1950-1960: a consolidação do novo

modelo.

Contudo, por mais que se queira compartimentar

a evolução, é difícil isolar o período selecionado dos

seus antecedentes. Se antes de 1930 a taxa de formação

de capital era inferior a 10% da renda nacional, esta de

qualquer forma aumentava, nos anos de normalidade, a

294

294

taxas ligeiramente superiores à taxa de expansão

demográfica; logo resultava num pequeno crescimento

da renda per capita. No produto real, como foi

assinalado, aumentava a parcela relativa da indústria: na

véspera da Primeira Guerra Mundial havia uma razoável

produção industrial nos setores alimentício e têxtil e,

nos anos 20 surgiram avanços na produção siderúrgica e

do cimento. Tinha-se constituído uma pequena rede

ferroviária e depois da guerra desenvolveu-se a rodo-

viária. A expansão do setor cafeeiro propiciou em

grande parte este progresso, incluindo a formação de

uma infra-estrutura bancária e comercial e o surgimento

de uma classe empresarial razoavelmente forte.

Por outro lado, as mentalidades haviam evoluído

num sentido mais adequado ao desenvolvimento

econômico. O protecionismo, já atuante no século XIX,

se tornou mais insistente e menos fiscalista, mesmo no

período de forte liberalismo entre a Primeira Guerra

Mundial e a Grande Depressão. O nacionalismo,

eventualmente econômico, se manifestou já no início do

século, por exemplo com Alberto Torres; as idéias

foram adotadas pelo tenentismo que assumiu também

posições de intervencionismo estatal, embora sem

formulações muito nítidas. A Grande Depressão, no

limiar da época em pauta, acentuou por motivos

estratégicos, como em todo o mundo, a ênfase no papel

do Estado na direção da economia e a tendência para o

autarquismo, O crescimento econômico ficava ligado à

expansão da indústria. O industrialismo, já detectado no

pensamento de Rui Barbosa, firmou-se, como por

295

295

exemplo, nas idéias de Amaro Cavalcante e de

Serzedelo Corrêa ou no comportamento do empresário

Jorge Street e, mais tarde, de Roberto Simonsen. Vale

ainda assinalar, na véspera desse período de transição, a

criação sintomática do Centro das Indústrias de São

Paulo. Foi neste ponto que, sob o impacto da Grande

Depressão e das políticas daí decorrentes, bem como o

da mudança do regime político, é lícito considerar

iniciado o período de 30 anos rotulado como arranco ou

transição.

* * *

Seguindo a periodização adotada, tratarei agora

do primeiro subperíodo: abandonando a rígida divisão

decimal, seria válido considerar o intervalo de 1932, fim

da Grande Depressão no Brasil, a 1939, início da

Segunda Guerra Mundial. Como já foi apontado, este

intervalo ainda não se enquadra no arranco propriamente

dito quanto ao critério da taxa de formação de capital,

mas pelas características a serem apontadas mais

adiante, inclui-se no conceito de transição: mudança da

estrutura sócio-política, ênfase de novos enfoques na

condução da política econômica, sinais de substituição

do antigo modelo exportador pelo modelo industrialista.

É importante assinalar a sensação de renovação

que se sentiu quando da instalação do novo regime po-

lítico em 1930 – talvez um impacto de esperança ou

simples desejo de transformação para melhor, tal como

se manifestara 40 anos antes, por ocasião da procla-

296

296

mação da república. Essa transformação se fez ao longo

da década, sob a égide dos princípios que dominaram o

pensamento econômico ocidental depois da Grande

Depressão. Tal como a Primeira Guerra Mundial abalou

a confiança na ordem política do mundo liberal, a

Grande Depressão solapou as esperanças de uma ordem

econômica baseada no liberalismo. Na confusão criada

pela Depressão, os países buscaram soluções próprias de

defesa, o que agravou a compartimentação da economia

mundial. O colapso do comércio internacional levou à

procura de soluções autárquicas, justificadas cada vez

mais pela deterioração do cenário político precursor da

guerra. O quadro ideológico dominado, portanto, pelo

autarquismo, peno nacionalismo econômico, pelo inter -

vencionismo estatal.

Foi sob o império destes princípios, que se deu a

renovação. Apesar das restrições que podem ser feitas a

esses princípios, deve-se admitir que, nas circunstâncias

do momento, tiveram efeitos bastante benéficos para o

desenvolvimento econômico do País. Isso não quer dizer

que devem ser elevados ao nível de paradigmas da

política econômica, porém é preciso não esquecer que se

tratava de um período de crise tanto política como

econômica. Não obstante, talvez seja enfática demais a

alegação de um autor de que “o ano de 30” marca o

início da “Revolução Nacional Brasileira” (8 bis),

sobretudo quando se recorda o retrocesso político de

1937, embora este também tenha sido em sintonia com

as idéias generalizadas na época.

Talvez seja ocioso lembrar, para definir o cenário

297

297

mundial, não apenas a marcha aparentemente bem

sucedida da planificação centralizada na União Sovié-

tica, bem como a extensão e o agravamento do interven-

cionismo estatal, a começar pelo país-líder do libe-

ralismo, os Estados Unidos. Não se pode aplicar apenas

ao Brasil a observação de que na época “o racionalismo

econômico serviu para identificar as prioridades e

investir o Estado de autoridade para entrar em ação”

(Wirth). Evidentemente, tal posição provocaria arrepios

a qualquer liberal enragé da atualidade.

Como no esquema de Rostow, a transição se

tornou possível graças ao “arcabouço social e político”

favorável ao desenvolvimento. Aí domina a figura de

Getúlio Vargas, responsável pela direção política e

econômica durante 15 anos, aos quais se deve

acrescentar, após um interregno de 5 anos, novo período

presidencial de 4 anos. Merece destaque a observação de

um estudioso de que “Vargas irradiava confiança no

futuro econômico do Brasil” (Wirth), traço psicológico

que encontraremos novamente na fase final da transição

durante a presidência Kubitschek.

O perfil ideológico de Vargas encontra-se, por

exemplo, num discurso, já em 1931, quando, referindo-

se ao problema da criação de uma siderurgia nacional,

ele indica os parâmetros da política econômica: nacio-

nalismo, autarquismo, intervencionismo estatal, indus-

trialismo. Disse Vargas: “O problema máximo, básico

de nossa economia é o siderúrgico... a grandeza futura

do Brasil depende principalmente da exploração de suas

jazidas de ferro... nacionalizar a indústria”. Somente

298

298

dentro dessa ideologia é permitido afirmar que o Bras il

teve um governo “identificado com os ideais de

renovação da política e da economia brasileiras” (Bres-

ser Pereira) ou que se tinha chegado ao “surgimento de

uma ideologia desenvolvimentista” (Wirth).

Pode-se identificar o espírito renovador, no

sentido de abandonar o modelo exportador a favor do

industrialista, na correspondente alteração do perfil

social, com a redução do poder da classe agrária e a

diversificação da sociedade, com o crescimento da

burguesia industrial e do proletariado urbano – isso,

pode ser considerado falacioso, pois essas mudanças

foram conseqüências e não causas da industrialização.

Mais relevante parece a presença de líderes empresariais

que batalharam pela industrialização: Roberto Si -

monsen, Euvaldo Lodi, Henrique Lage, etc. E no setor

público, Macedo Soares, Horta Barbosa, etc.

A ênfase reservada à indústria e ao mercado

interno refletia a decepção com o modelo exportador,

duramente atingido pelo colapso do mercado

internacional a partir de 1929. Não obstante, não se

deve subestimar a força de sobrevivência do antigo

modelo. A década focalizada se iniciou com a grande

operação de defesa do café, cujo alcance anticíclico é

objeto de controvérsias (9), mas de qualquer forma deve

ter contribuído, ao lado do programa do Reajustamento

Econômico, para minimizar o impacto da Grande

Depressão, tanto em intensidade como em duração (10).

O interesse persistente pela exportação aparece na

criação do Conselho Federal do Comércio Exterior

299

299

(1934) e dos vários Institutos destinados a sustentar

certos setores exportadores (açúcar, mate, cacau, pinho).

Mesmo Roberto Simonsen, grande industrialista,

propunha aumentar a participação do Brasil no mercado

mundial de produtos tropicais e a criação de um

Instituto Nacional de Exportação.

Entretanto, reservava-se atenção crescente ao

setor industrial, através de uma política seletiva de

importações, a fim de sustentar os investimentos

industriais, favorecendo sobretudo a indústria têxtil que

chegou a ser superdimensionada, o que lhe permitirá

expandir suas exportações durante a guerra. Sem entrar

em outros detalhes, é suficiente citar a criação do

Conselho Nacional do Petróleo e da Carteira de Crédito

Agrícola e Industrial do Brasil, a redação do Código de

Minas e Águas, bem como os planos visando a

industrialização e a modernização da economia, como

por exemplo o Plano Especial de Obras Públicas e

Aparelhamento da Defesa Econômica (1939).

Na falta de estatística macroeconômica, pode-se

encontrar um indício da intensificação dos inves-

timentos industriais no aumento do consumo de cimento

e aço, e da importação de bens de capital (11). A

mudança do centro de gravidade da economia é ilustrada

pela redução da proporção entre a receita do imposto de

importação e a do imposto de consumo (12). Por outro

lado, observa-se uma diminuição da participação das

indústrias tradicionalistas (alimentar e têxteis) no

produto industrial total, em benefício das indústrias

mais modernas (13).

300

300

O subperíodo seguinte, dos anos 40, se iniciou,

tal como o anterior, depois de um grande abalo: a

Segunda Guerra Mundial. A década incluiu duas fases,

de acordo com a conjuntura internacional – uma com as

dificuldades criadas pela guerra; a outra, com a euforia

e as relativas facilidades do pós-guerra. Assim a marcha

da transição continuou. Havia entretanto, mais do que

nos anos 30, os requisitos do arranco: estrutura

industrial incipiente e o arcabouço sócio-político

surgido com a revolução de 1930 e cujo impulso

assumiu eventualmente mais força devido aos desafios

criados pela guerra.

Voltando para àquele critério, um tanto

mecanicista, da taxa de formação de capital, já vimos

que foi nesta década que se atingiu o limiar rostowiano

de 10% da renda. Mais precisamente, no segundo

qüinqüênio, pois segundo cálculos diretos das Contas

Nacionais, aquela taxa foi, em média, de 14,1% em

1947/50, o que não parece ter sido alcançado no

qüinqüênio anterior (14).

O governo, ainda sob a pressão das circuns-

tâncias externas adversas, continuou mostrando inte-

resse pela aceleração do crescimento econômico através

da industrialização (15). E no mesmo sentido se com-

portaram os líderes dos setores público e privado. As

alavancas ideológicas que atuaram nos anos 30 fun-

cionaram com maior nitidez durante a guerra e depois:

nacionalismo, autarquismo, intervencionismo estatal.

Quanto à conjuntura externa, a tese tradicional, a

teoria dos choques externos, deve ser entendida com

301

301

muitas ponderações. Não se pode dizer que o choque da

Segunda Guerra Mundial, ao fechar o mercado externo

favoreceu o crescimento, ao provocar uma verdadeira

proteção compulsória da indústria nacional. A realidade

foi que o fechamento, se foi efetivo em relação à

Europa, não ocorreu na zona ocidental, a não ser em

decorrência das restrições bélicas. Pelo contrário, o

Brasil exportador teve à sua disposição, além do

mercado norte-americano, a América Latina e a África

do Sul – o que proporcionou à indústria brasileira a

oportunidade de exportar para estas duas áreas, livre da

concorrência dos países industrializados envolvidos na

guerra. Como, entretanto, as importações sofreram

grandes restrições, o Brasil acumulou substanciais

saldos comerciais que foram parcialmente desperdiçados

no pós-guerra. Outrossim, o choque externo prejudicou

o processo desenvolvimentista devido ao estran-

gulamento das importações e à retração dos inves-

timentos externos. Mas isso também não é verdade

completa, sendo a contraprova a própria Volta Redonda,

cujos equipamentos norte-americanos começaram a

entrar já antes do fim da guerra. Por outro lado, pode

ficar como saldo positivo o fato de a indústria ter

acumulado lucros com a exportação. E, ainda mais valeu

a lição da exigência de fortalecer a economia nacional, a

fim de fazer face aos imprevisíveis abalos externos.

Vê-se, portanto, que a guerra teve efeito

ambivalente quanto à passagem do modelo exportador

para o modelo renovador, industrialista: por um lado,

intensificou a ação no sentido da industrialização,

302

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embora seja ela prejudicada pelo retraimento das

importações, por outro lado, favoreceu as exportações,

enriquecidas, pelo menos nos últimos anos da guerra,

pelos produtos industrializados (16). Fazendo o balanço,

entretanto os fatores negativos superaram os positivos.

A transição prosseguiu na segunda metade da

década, num ambiente externo e interno de relativo

equilíbrio e euforia. Evidentemente, o fim da guerra e as

esperanças de reconstituição do sistema econômico

internacional constituíram as bases do otimismo: falou-

se cada vez mais clara e insistentemente no desen-

volvimento econômico como condição geral da paz; é

expressivo que o grande organismo de reerguimento

econômico no âmbito mundial, criado já antes do

término da guerra, se referiu à reconstrução e

“desenvolvimento” (BIRD). Ademais, no caso do Brasil,

uma revolução pacífica ensejou a volta para um regime

democrático – motivo de euforia e esperança.

As idéias progressistas eram adotadas tanto do

lado do setor público como crescentemente do setor

privado, dentro de um ideário de economia de mercado e

livre empresa, embora com a manutenção de uma boa

dose de intervencionismo estatal. Mais tarde foi notada

“a emergência (depois da guerra) de um grupo, em

constante expansão, de homens de empresa” (Relatório

COMBEU, 1954). E ainda no mesmo Relatório: “é

particularmente notável como muitos dos empresários

que iniciaram suas atividades na década dos anos 30,

conseguiram agressiva e vigorosamente dilatar as

fronteiras dos seus negócios e ramificar suas atividades

303

303

durante e após a última guerra”. Foram estes

empresários, congregados nas Confederações Nacionais

das Indústrias e do Comércio, que constituíram parte

daquela elite necessária para o arranco de acordo com o

esquema de Rostow (17).

Havia, por outro lado, o papel do governo, pois

obviamente não podia ser eliminado o intervencionismo

estatal na economia. Na época, o líder da ação em prol

de Volta Redonda declarava: “não é possível esperar

pelas iniciativas particulares... incumbências que não

interessam ou são superiores às possibilidades (da

iniciativa privada)”. (Macedo Soares, 1944). Não

obstante, faziam-se restrições, como nas palavras de um

técnico liberal: “A necessidade da intervenção do

Estado, para corrigir ou suprir as fraquezas dos

empreendedores particulares, não permite concluir que a

iniciativa particular seja decadente e deva dar lugar à

iniciativa estatal” (Bulhões, 1950).

A intervenção do governo, justificada também

pela conjuntura bélica até 1945, se manifestou nos

vários planos econômicos que visavam a indus-

trialização, em primeiro lugar por razões estratégicas –

como dizia o já citado Plano Especial de 1939, “a

criação de indústrias de base como a dotação da defesa

do País”. Dentro dessa atividade normativa e orga -

nizacional, cite-se o Plano de Obras e Aparelhamento

(1944), a constituição da Comissão do Planejamento

Econômico (1944), a criação da Superintendência da

Moeda e do Crédito – SUMOC (1945), culminando com

um plano mais abrangente, o chamado plano SALTE

304

304

(1948).

Os resultados, em termos de crescimento

econômico, foram positivos sem chegarem a ser

brilhantes. No segundo qüinqüênio da década, o produto

real cresceu à razão de 6,5% ao ano (COMBEU), sendo

a renda real beneficiada pela melhora das relações de

troca (18), bem como pelo aumento das importações

graças à normalização do mercado internacional (19). A

indústria progrediu, elevando suas taxas de crescimento,

ao mesmo tempo que se processava um deslocamento

qualitativo, das indústrias tradicionais, para setores mais

modernos (20).

Na terceira fase da transição, nos anos 50, o

processo chegou o seu apogeu. Os fatores positivos que

já tinham atuado nas décadas anteriores manifestaram-se

com maior dinamismo, num ambiente político interno

mais favorável (excetuando a tragédia de 1954), com a

volta para a normalidade constitucional. Cientistas

políticos quiseram detectar uma causalidade recíproca

entre a estabilidade política e o crescimento econômico

(21).

Devem ser acrescentados os condicionamentos

externos, que Rostow pareceu menosprezar no seu

esquema teórico do arranco. Com efeito, verificou-se no

pós-guerra “uma taxa de crescimento totalmente sem

precedentes na produção industrial mundial” (Paul

Bairoch). Paralelamente, o comércio internacional

aumentou substancialmente (22). Os países em desen-

volvimento participaram também destes progressos,

embora em menor proporção.

305

305

Pode-se identificar, na época, a presença de uma

elite desenvolvimentista, isto é, dedicada de modo

racional e sistemático à promoção do desenvolvimento

econômico, elite essa que atuou no setor privado como

no público, principalmente durante a presidência

Kubitschek, dentro de um modelo de economia mista

assim definido com relativa propriedade: “O núcleo da

política econômica de Kubitschek consistiu na

congregação da iniciativa privada... com a intervenção

contínua do Estado como orientador dos investimentos,

através do planejamento... O Governo se transforma em

instrumento deliberado e efetivo do desenvolvimento

econômico”. (Benevides).

Para definir as elites mencionadas, nada mais

expressivo que o testemunho de um de seus líderes que

mais tarde declarou “ter-se apaixonado pela luta do

desenvolvimento econômico”, sublinhando a presença

de um condicionamento psicológico fundamental: o fato

de que se vivia num “clima de esperança” (23). De -

veriam ser citados todos os empresários de iniciativa e

coragem, bem como, no setor público, os técnicos que

foram mobilizados do Banco do Brasil, da SUMOC, da

Fundação Getúlio Vargas, etc., e que, em muitos casos,

agiram em ambos os setores.

O papel do governo foi fundamental, incluindo-se

na categoria “governo” tanto as decisões de política

econômica como o comportamento das pessoas que

formavam o setor público – decisões e atitudes mo-

tivadas pelo espírito desenvolvimentista. As decisões

buscaram progressivamente um maior grau de racio-

306

306

nalidade e coerência, cristalizando-se na obra de

planejamento econômico. Aí deve-se citar, desde a

presidência Dutra, o mencionado Plano SALTE,

basicamente frustrado apesar de suas boas intenções.

Houve ainda outros planos setoriais: o Plano Nacional

do Petróleo, o Plano do Carvão Nacional, o Plano da

Eletrificação. Com maior abrangência, o Plano Nacional

de Reaparelhamento Econômico, o chamado Plano Lafer

(1951), a que deve ser ligado o ato de suma importância

que foi a criação do Banco Nacional de Desen-

volvimento Econômico – BNDES (1952), órgão desti-

nado a receber e distribuir recursos externos e

assumindo, com o tempo, o papel central no finan-

ciamento do crescimento econômico. Já antes, as idéias -

mestras da ação desenvolvimentista haviam se

cristalizadas nos trabalhos da Comissão Mista Brasil -

Estados Unidos (1951), cujos projetos específicos foram

integrados no Plano de Metas de Kubitschek – a

primeira em escala nacional. O interesse pelo

crescimento autônomo manifestou-se, às vezes com

excessos de nacionalismo irracional e xenófobo, na

campanha “o petróleo é nosso” que culminou com a

criação da Petrobrás.

Seria fastidioso citar aqui todas as medidas

governamentais visando o desenvolvimento, mas acho

que vale mencionar, para marcar a mudança do centro

de interesse, as medidas de política comercial e cambial

(Instrução nº 70 da SUMOC, a lei nº 3.244/1957) que

criaram mecanismos cambiais incentivando e subsidian-

do os investimentos para desenvolvimento. A ex-

307

307

portação ficou marginalizada – sinal da transição do

modelo exportador para o industrialista.

É preciso acrescentar que os anseios desen-

volvimentistas encontraram condições políticas e ins-

titucionais para transformar-se em providências efetivas,

através dos dispositivos legais em vigor ou graças a

medidas pragmáticas, como foi a chamada “admi -

nistração paralela” dos Grupos de Trabalho e dos

Grupos Executivos, durante a presidência Kubitschek.

Tudo isso proporcionou um excelente crescimento

econômico, de 1948 a 1961, a taxas anuais entre 5,6% e

10,3% (com duas exceções) e uma média anual de 7,1%,

correspondendo a 4,2% per capita.

Causa ou efeito, a taxa de formação bruta de

capital subiu para 17,4% do PIB em 1951/55 e 15,7%

em 1956/60. É importante sublinhar que o volume de

investimentos foi primordialmente sustentado pela

poupança interna, apesar da insuficiência institucional

do mercado de capitais, mas também pela poupança

externa que foi captada graças a uma série de

dispositivos legais favoráveis, tais como a lei nº

1.807/1953 que introduziu o mercado livre de câmbio; a

Instrução nº 113/1955 da SUMOC para importações sem

cobertura cambial, etc. No que tange à industrialização a

transição consistiu também na mudança estrutural do

produto industrial com o desenvolvimento maior dos

setores modernos, mais dinâmicos, em detrimento dos

setores tradicionais – valendo mencionar a implantação

da indústria de bens de capital e de construção naval.

Assim se completou o período de 30 anos que

308

308

constituiria o arranco ou a transição, sem que tal

periodização implicasse num estancamento no fluxo

contínuo da história. Passada a transição, considera-se

que a economia brasileira tinha conquistado posições

estruturais, garantindo um crescimento sustentado. Isso,

entretanto, não excluía estagnações ou recuos como

infelizmente iriam se verificar logo depois, no início

dos anos 60, repetindo-se nas décadas seguintes em

alternação com fases de maior expansão. A lição

histórica a reter refere-se à conjuntura de fatores

positivos, principalmente políticos e culturais que

permitiram a passagem para uma fase mais madura da

economia nacional. De fato, ampliando a perspectiva

limitada do arranco ou transição, pode-se concluir que

aqueles fatores condicionam também a manutenção de

um ritmo satisfatório de crescimento econômico.

NOTAS

(1) A história do empreendimento pode ser encontrada em dois

livros de autoria daquele que pode ser considerado como o grande

artífice de Volta Redonda, Edmundo de Macedo Soares e Silva:

Volta Redonda e o Desenvolvimento Industrial do Brasil . Rio de

Janeiro, 1944 e Volta Redonda , Rio de Janeiro. 1945. Um bom

relato histórico encontra-se também em: Wirth, John. A Política

do Desenvolvimento na Era Vargas. Rio de Janeiro, 1973.

(2) BUESCU, Mircea. Identificação cronológica do arranco

brasileiro, in: Estudos Historicos , Marília, 1970.

(3) ROSTOW, W. W. Etapas do Desenvolvimento Econômico. Rio

de Janeiro, 1964.

309

309

(4) O cálculo foi feito paralelamente a partir das séries conhecidas

dos valores da exportação e dos meios de pagamento, aplicando -se

respectivamente o coeficiente de exportação e o quociente da

velocidade-renda da moeda, ambos extrapolados; sobre este

cálculo, v. BUESCU, Mircea. História Econômica do Brasil –

Pesquisas e Análises. Rio de Janeiro, 1970.

(5) Conf. HADDAD, Cláudio. Growth of Brazilian Real Output

1900/1947. Chicago, 1974. A partir de 1947 foram redigidas as

Contas Nacionais pelo Instituto Brasileiro de Economia.

(6) Segundo minhas estimativas o crescimento anual médio evo -

luiu assim:

1903/13 4,05 1933/39 4,8%

1914/18 2,4% 1940/45 2,4%

1919/29 4,2% 1946/62 7,1%

1930/32 0,4%

(v. também: GOLDSMITH, Raymond W. Brasil 1850-1984. São

Paulo, 1986).

(7) De acordo com várias estimativas (Bernstein, Spiegel, Dias

Carneiro) a taxa bruta de investimentos foi de 8,7 -9,6% em

1941/43 e ultrapassou ligeiramente os 10% apenas em 1944/45; v.

BUESCU, Mircea. Guerra e Desenvolvimento. Rio de Janeiro,

1976.

(8) Opinião endossada pelo historiador francês Frédéric Mauro.

in: Histoire de L’Économie Mondiale 1790 -1970. Paris, 1971.

(8bis) Bresser Pereira, L. C. Desenvolvimento e Crise no Brasil.

Rio de Janeiro, 1968.

(9) A interpretação “Keynesiana” foi sustentada por Celso Furtado

em: Formação Econômico do Braisl. Rio de Janeiro, 1964. A

contestação veio de Carlos Manuel Peláez. História da

Industrialização do Brasil. Rio de Janeiro, 1972.

(10) Pode-se admitir, com base em estatísticas precárias, que no

Brasil a Depressão durou de 1930 a 1932, quando a queda global

da economia foi de 0,4%.

310

310

(11) A evolução foi a seguinte (médias anuais):

1921/29 1930/32 1933/39

consumo de cimento (1000 t) 361 354 554

consumo de aço (1000 t) 230 150 297

Import. de bens de capital (índice) 100 39 75

(conf. VILLELA, Annibal Villanova – SUZIGAN, Wilson. Política e

Crescimento da Economia 1889-1945. Rio de Janeiro, 1973.

(conf. VILLELA, Annibal Villanova – SUZIGAN, Wilson. Política do

Governo e Crescimento da Economia 1889-1945. Rio de Janeiro, 1973.

(12) A proporção foi de 1,98 em 1920 e caiu progressivamente

para 1,78 em 1930 e 0,93 em 1940.

(13) Em 1920 as duas indústrias tradicionais eram responsáveis

por 67,7% do total; em 1939 essa participação não passava de

53,8%.

(14) Conf. HADDAD, op. cit.

(15) A atividade empresarial do governo compreendeu a criação

da Fábrica Nacional de Motores, da Cia. Nacional de Álcalis, da

Cia. Vale do Rio Doce.

(16) A classe de produtos manufaturados não contribuía em 1939

com mais de 0,8% no valor total das exportações; em 1942/45 essa

participação subiu para a media de 16,9%; em 1947 tinha descido

para 7,4%.

(17) v. SIMONSEN, Roberto C. Evolução Industrial do Brasil.

São Paulo, 1973; v. também: SIMONSEN, Roberto C. -GUDIN,

Eugenio. Controvérsia do Planejamento na Economia Brasileira.

Rio de Janeiro, 1977.

(18) O índice das relações de troca elevou-se 35,9% entre 1940 e

1945, e 95,8% entre 1945 e 1950.

(19) O índice do quantum das importações, que não havia crescido

mais de 7,6% em 1940/45, subiu 79,1% de 1945 a 1950.

311

311

(20) O índice da produção real na indústria metalúrgica cresceu

232,2%; na indústria têxtil e alimentar limitou -se a 20,3% e

60,9% respectivamente.

(21) v. BENEVIDES, Maria Victória de Mesquita. O Governo

Kubitschek – Desenvolvimento Econômico e Estabilidade Política .

Rio de Janeiro, 1976.

(22) Em 1953/63 o crescimento do produto mundial acusou taxas

de 4,1% a 5,3% por ano. O volume do comércio cresceu 37,9%

entre 1948 e 1953 e 89,4% entre 1953 e 1963 (conf. KENNEDY,

Paul). Ascensão e Queda das Grandes Potências. Rio de Janeiro,

1991.

(23) Em 1950 os bens de capital correspondiam a 30,3% da

produção industrial; essa participação passou para 40,7% em

1960. Os setores modernos (metalurgia, mecânica, material

elétrico, material de transporte e química) aumentaram entre 1950

e 1960 sua participação no produto industrial total de 20,6% para

35,5%. Entre as mesmas datas o produto da indústria tradicional

(alimentar e têxtil) caiu de 50,2% para 36,3% do total.

(Transcrito de Carta Mensal, Rio de Janeiro, 38(455): 21-30,

Fevereiro 1993).

312

312

ACERCA DA TEORIA DOS

CHOQUES EXTERNOS

Completaram-se dois decênios desde o choque do

petróleo de 1973, que se repetiu em 1979, seguindo-se

novo choque em 1982, quando do colapso do sistema

financeiro internacional.

Desde logo depois do primeiro choque, o II Plano

Nacional de Desenvolvimento, promulgado em

dezembro de 1974, detectou – como não podia deixar de

fazer – a mudança do cenário internacional, porém sem

muito alarmismo. Ele falou em “novas realidades da

economia mundial e evidentemente na “situação de

escassez do petróleo”. Não obstante, apesar de apontar

“as dificuldades para manter o crescimento acelerado”, a

fim de “não se abalar a confiança” para “manter o

crescimento dos últimos anos”.

Tal posição respondia ao profundo anseio da

sociedade brasileira de elevar seu nível de vida e

eliminar a pobreza e a miséria. Ademais, justificava-se

tecnicamente, pois o crescimento econômico devia ser

mantido graças ao recurso ao mercado internacional de

capitais, em que, com os petrodólares, havia grandes

disponibilidades a juros baixos, às vezes negativos em

termos reais.

O III Plano Nacional de Desenvolvimento, de

maio de 1980, já depois do segundo choque do petróleo,

313

313

manteve uma postura otimista, e eventualmente

justificada pelo sucesso da política aplicada entre 1974

e 1979. Aí, talvez pela razão política de insuflar

confiança ou por convicção teórica, o III PND

ressuscitou a velha teoria dos choques externos – a

alegação de que as dificuldades no setor externo

propiciaram resultados positivos dentro da economia do

País. O III PND manifestava a confiança “na capacidade

de realização, historicamente demonstrada pela nação

brasileira... inclusive durante períodos de crise

mundial”. O principal artífice do II PND se pronunciou

depois, no mesmo sentido: “Pela experiência histórica,

foi exatamente em duas épocas de aguda crise de

balanço de pagamento, e conjuntura mundial contur-

bada, que o País realizou dois significativos surtos de

industrialização: a época da Depressão dos 30 e o

imediato pós-guerra”. (Velloso)

O III PD tinha explicitado tal alegação da forma

seguinte: “O setor externo sempre teve um papel im -

portante na evolução da economia brasileira. Alterações

nas relações econômicas internacionais traduziam-se

inicialmente em desequilíbrio na organização interna.

No momento seguinte, contudo, a reorientação adequada

da política econômica interna tem conseguido trans-

formar o desafio internacional em fator de dinamização

do crescimento brasileiro”. Lendo com maior cuidado

essas citações, parece que se trataria de um binômio

toynbeeniano de desafio/resposta cujo efeito positivo se

configuraria somente depois do abalo externo, mas

persiste a impressão, explícita ou implícita, de que o

314

314

choque tinha sido necessário ou pelo menos desem-

penhou um papel fundamental para a manutenção do

crescimento econômico e da industrialização.

É sobre esse conceito que vai versar o presente

comentário. (*)

* * *

A idéia básica da teoria dos choques externos

consiste em que o processo da industrialização e

portanto do crescimento econômico não se deu de forma

linear ou continuada, mas sim em surtos temporários,

provocados pela retração ou quase colapso do mercado

internacional. Em outras palavras, os abalos sofridos por

este mercado – a Primeira Guerra Mundial, a Grande

Depressão de 1929 e a Segunda Guerra Mundial –

agiram como verdadeira proteção compulsória, vinda de

fora e independente da vontade da sociedade brasileira.

Numa forma mais sofisticada, que implicaria uma certa

relação autônoma do empresariado nacional, a

perturbação do mercado externo teria provocado uma

distorção do sistema de preços, tornando mais altos os

dos produtos importados e portanto justificando a

produção nacional, com maior margem de lucro. Parece

que a idéia dos choques benéficos foi formulada pela

primeira vez em 1922, num livro de Hannibal Porto, O

Brasil Econômico de 1920 (apud Normano): “Foi

devido às dificuldades encontradas durante a guerra para

importação de artigos manufaturados que os brasileiros

decidiram explorar um grande número de indústrias”. A

315

315

tese foi endossada por Roberto Simonsen (num trabalho

publicado em 1939: A Evolução Industrial do Brasil) e

assim gozou da autoridade do grande líder empresarial.

Reconhecendo que a expansão da indústria tinha raízes

desde o fim do século XIX, Simonsen declarou que “a

guerra mundial daria por fim, a esse surto industrial

novos impulsos e novas direções”.

Entretanto, vale observar desde já que o

pensamento de Simonsen era mais circunstanciado: a

guerra “teve, de fato, uma pronunciada influência no seu

desenvolvimento posterior (meu grifo), por ter

provocado uma notável diversificação na fabricação de

novos produtos”. Oportunamente veremos qual foi o

significado daquela “diversificação”. Por enquanto, é

preciso reter a idéia de que os efeitos eventualmente

benéficos não teria surgido durante a guerra, mas sim,

posteriormente – o que dá outro sentido ao choque

externo.

De qualquer forma, a teoria dos choques externos

foi adotada por muitos historiadores, tornando-se

durante muito tempo paradigma para a explicação dos

surtos industriais. Foi dito, por exemplo, enfaticamente:

“O recente processo de desenvolvimento econômico do

Brasil teve lugar fundamentalmente sob o impacto das

restrições do comércio exterior” (Maria da Conceição

Tavares). Ou então: “A depressão da década de 1930

constituiu um incentivo à industrialização através de um

mecanismo automático de proteção, que é ainda mais

interessante do que as duas guerras mundiais” (Werner

Baer-Issac Kertenetzky – apud Peláez).

316

316

Como se explica o sucesso acadêmico e político

da tese dos choques externos? Pode-se detectar a idéia

de que as elites e seus interesses estavam tão arraigados

ao antigo modelo exportador de produtos primários que

não teriam admitido de bom grado a industrialização a

não ser sob a força do abalo externo. A escola

estruturalista adotou posições neste sentido: o seu líder

escreveu que “duas guerras mundiais... e a grande crise

econômica... mostraram aos países latino-americanos

que chegou o momento de enveredarem pelo rumo das

atividades industriais” (Raul Prebisch – apud Peláez).

Entretanto, pelo menos no que tange ao Brasil, tal

alegação é irrealista: sabe-se que o movimento

industrialista começou desde o século XIX (Mauá,

Serzedo Corrêa, etc.) e vários grandes produtores e

exportadores de café se tornaram industriais. Pode-se

admitir apenas que na medida em que vários fatores,

inclusive os choques externos, solaparam o setor

cafeeiro, propiciaram a busca de novas oportunidades

empresariais, em primeiro lugar no setor industrial.

Quanto à tese estruturalista, ela revela a desconfiança e

o repúdio ao sistema econômico internacional ao rezar

que o progresso industrial – e econômico, em geral – se

realiza melhor dentro de uma política isolacionista –

ideais autárcicos que brilharam ente as duas guerras

mundiais, com os desastrosos efeitos econômicos e

políticos já conhecidos.

O repúdio do papel criativo do comércio

internacional continha uma contradição básica: o

processo da industrialização, no sentido correto de

317

317

aumento da capacidade industrial, exigia capitais,

equipamentos e tecnologia que, por definição, o país

subdesenvolvido não possui. Pode-se imaginar um certo

crescimento auto-sustentado, autônomo dispensando os

recursos externos procedentes dos países desenvolvidos

via intercâmbio internacional, mas seria um crescimento

penoso, demorado, e não poderia justificar a

qualificação de “surto industrial”. A penúria provocada

pelo choque externo podia oferecer oportunidades de

vendas e lucros para as indústrias existentes – e isso

aconteceu de fato – porém isso não caracteriza um

verdadeiro progresso. Por outro lado, não deve ser

minimizado o papel da exportação como setor gerador

de renda e de mercado para a indústria, sobretudo numa

economia voltada para o exterior como a brasileira, cujo

fator dinâmico secular se encontrava justamente nas

vendas para o exterior. Por cima das contestações

teóricas, o fato é que a teoria dos choques externos não

encontrou uma confirmação empírica – como se verá

mais adiante.

Baseados em constatações concretas, vários eco-

nomistas, chamados “revisionistas” contestaram as po -

sições estruturalistas. Um estudioso da industrialização

de São Paulo concluiu suas análises com as seguintes

palavras: “Poder-se-á perguntas se a industrialização de

São Paulo não se teria processado mais depressa se não

tivesse havido guerra” (Dean). Outras contestações

vieram a respeito do papel do choque externo durante a

Grande Depressão (Peláez) ou Segunda Guerra Mundial

(Buescu). Sintetizando as conclusões teóricas e as

318

318

verificações empíricas, escreveu um historiador-

economista: “Longe de resultar das dificuldades das

importações durante as duas guerras mundiais e a

Depressão... o desenvolvimento inseriu-se num conjunto

de condições favoráveis ao comércio exterior’.

(Nathaniel H. Leff).

Foi feita uma tentativa conciliatória (Versiani),

distinguindo entre os suros de produção (durante os

choques, quando a conjuntura de escassez oferecia

oportunidades de venda e lucro) e surtos de in-

vestimento (durante os períodos de normalidade, quando

havia condições de investir); essa distinção foge,

entretanto, ao âmago do problema: o verdadeiro surto

industrial consiste no aumento da capacidade de

produção e não da possibilidade de vender com lucro.

Aliás, essas vendas eventualmente expandidas pres-

supõem a existência de uma indústria com capacidade

ociosa, capacidade essa adquirida no período de nor-

malidade de importações de equipamentos e tecnologia.

Os defensores da teoria dos choques externos não

puderam sair desse impasse: se houve processo

verdadeiro, ele ocorreu depois do choque, o que altera a

posição básica da teoria. Por exemplo, foi observado

que Fishlow, defendendo a importância da Primeira

Guerra Mundial como oportunidade de lucros, “enfatiza

a importância desse período de grande lucratividade

para os produtores internos, no que se refere aos grandes

investimentos do pós-guerra” (Versiani) (meu grifo). A

lucratividade podia ser fonte de progresso sob a

condição de os lucros serem reinvestidos na indústria. E,

319

319

de qualquer modo, os investimentos só podiam ocorrer

após a volta à normalidade, como de fato aconteceu.

Vê-se portanto que o papel dos choques externos deve

ser reconsiderado – o que tentarei fazer. Antes, porém, é

mister ver sinteticamente como evoluiu a economia e a

indústria em particular ao longo dos 50 anos

aproximadamente, que cobrem os três choques em pauta.

* * *

O indicador mais abrangente é, sem dúvida, a

taxa de crescimento do produto interno bruto ou produto

real. Embora os cálculos sejam precários anteriormente

à implantação das contas nacionais, a série estatística

mostra de modo convincente que, contrariamente à

versão primitiva dos choques externos, estes registraram

uma nítida desaceleração do crescimento econômico,

senão um verdadeiro retrocesso como em 1930/1932. Os

períodos de crescimento maior foram justamente inter-

choques. O mesmo fenômeno aparece nitidamente na

evolução da produção industrial, como se pode observar

na tabela seguinte: (variação anual média %)

PIB Prod. industrial

1903/1913

1914/1918

1919/1929

1930/1932

1933/1939

1940/1945

1946/1962

4,0

2,4

4,2

-0,4

4,8

2,4

7,1

6,4

4,7

6,2

-1,4

10,0

5,8

8,8

Fonte (até 1947): Haddad.

320

320

A inevitável precariedade dos cálculos esta-

tísticos pode ser compensada pela informação

qualitativa: durante os choques, numerosos são os

testemunhos da penúria e das restrições de consumo,

falta de produtos, principalmente combustíveis, cujo

abastecimento se baseava, em grande parte, na

importação. Melancolicamente, alguns dentre nós podem

lembrar-se de tais circunstâncias que não contribuem de

maneira alguma para conferir um papel positivo aos

choques externos.

No que concerne à capacidade de expansão da

economia graças ao volume dos investimentos, as

informações disponíveis não testemunham a favor dos

choques externos. Na falta de cálculos diretos (que

foram feitos nas Contas Nacionais apenas a partir de

1947) é válido observar (Villela-Suzigan) a evolução de

alguns indicadores indiretos da formação de capital fixo.

São eles: o crescimento da potência instalada, o

quantum de importação de bens de capital e o consumo

aparente de aço e cimento. A variação dos índices

anuais evoluiu da forma seguinte durante os choques em

relação ao período imediatamente anterior:

variação %

pot.

inst.

imp. bens

capitais

cons.

aço

cons.

cimento

1914-1918/1903-1913

1930-1932/1927-1929

1940-1945/1934-1939

-41,9

-73,2

-53,8

-74,1

-63,3

- 7,5

-54,2

-55,5

- 1,3

-58,8

-36,4

42,4

321

321

Os períodos expansionistas se situaram entre os

choques e seria uma inferência gratuita dizer que os

avanços representaram apenas uma reação provocada

pelos choques – isso podia ser parcialmente verdade ou

apenas coincidência. As informações desfavoráveis a

respeito da situação econômica durante os choques

devem ser confrontadas com a documentação inso-

fismável dos progressos conseguidos inter-choques:

durante o chamado Reerguimento Econômico (1903/

1913), período de equilíbrio interno e abertura externa;

durante os anos 20, grande expansão do comércio

exterior, mas também implantação das indústrias

siderúrgica e do cimento; entre a Grande Depressão e o

início da Segunda Guerra Mundial, quando novos

progressos foram feitos principalmente na indústria,

graças a um elenco de fatores favoráveis de com-

portamento e de política econômica e finalmente no

ambiente de equilíbrio político interno e externo que

caracterizou nos anos 50, o início do período

desenvolvimentista do Brasil.

Evidentemente este apanhado sintético é muito

simplificado: os fatos se apresentaram de maneira mais

complexa e circunstanciada. É preciso portanto tentar

definir melhor o impacto dos choques externos em função

de alguns parâmetros que seriam, a meu ver, os seguintes:

1º - o grau de dependência da economia nacional

em relação ao setor externo; o peso da exportação e da

importação, bem como dos capitais estrangeiros no

processo de crescimento da economia;

322

322

2º - o grau de intensidade do abalo externo – o

grau de perturbação sofrida pelo sistema econômico

internacional durante os choques;

3º - o grau de fechamento da economia nacional

em decorrência da perturbação externa: estrangulamento

da balança comercial e do balanço de pagamentos,

implicando portanto em retração do movimento de

mercadorias e capitais;

4º - o potencial econômico interno – o grau de

capacidade de defesa em função da dimensão do produto

interno bruto, da sua composição setorial, princi -

palmente quanto ao setor industrial, e da capacidade

interna de capitalização;

5º - a capacidade de reação da sociedade e da

economia, a sua disposição de mobilização contra a

adversidade externa – em outras palavras, a

possibilidade de um processo de desafio/resposta do tipo

toynbeeniano, a ser dada pelo governo e pelos

empresários; uma resposta que poderá ocorrer sobretudo

posteriormente ao choque, visto que, como já disse, o

estrangulamento externo afasta do País muitos dos

meios necessários para uma forte reação positiva.

Os cinco parâmetros enumerados oferecem uma

pista para avaliar a gravidade do choque, mas também

uma indicação sobre a maior ou menor possibilidade de

enfrentar o seu desafio. Vejamos como se apresentaram

323

323

esses critérios ao longo do período desde o início da

Primeira Guerra Mundial até o fim da Segunda,

prolongando eventualmente seus efeitos nos anos

seguintes.

* * *

(1) No concernente à importância do setor

externo, a economia brasileira evoluiu desde o fim do

período colonial num sentido de maior autonomia.

Cálculos aproximados (Buescu) estimam um coeficiente

de exportação de cerca 0,40 (40% do PIB) na época da

Independência, diminuindo gradualmente ao longo dos

anos: em 1910/1920 ter-se-ia fixado entre 0,13 e 0,17

até a véspera do primeiro choque externo; em 1939,

antes do terceiro choque externo; em 1939, antes do

terceiro choque teria chegado a 0,14, caindo até 0,12 no

fim da Segunda Guerra Mundial (Malan).

Tais coeficientes de exportação, aos quais

correspondem semelhantes coeficientes de importação,

não eram, afinal de contas, muito elevados, mas esse

aspecto quantitativo é menos relevante que o qua-

litativo, sobretudo na importação: deixando de lado o

problema do abastecimento em trigo, bem como em

outros artigos de consumo, persistiu e se acentuou a

dependência em relação aos insumos necessários ao

desenvolvimento industrial. Em matéria de combus-

tíveis, em 1914 a parcela do carvão no total da

importação era de 7,4%, enquanto os combustíveis

líquidos representavam apenas 2,8%. Mas essas

324

324

porcentagens evoluíram de forma assimétrica chegando

em 1939 a 4,0% e 6,4% respectivamente. O valor

percentual parece ainda modesto, mas já tinha

significado estratégico não desprezível. Muito mais

importante era o papel das matérias-primas, que em

1910/1913 eram responsáveis por 46,3% da importação.

Em 1920/1929 essa participação chegou a 53,7% e em

1939 era ainda de 47,0%. Aumentava ao mesmo tempo a

dependência em bens de capital importados: em

1911/1920 eles absorviam 10,1% da despesa total,

subindo para 14,0% em 1920/1929 e 22,3% antes do

último choque.

(2) Por definição, os choques esternos tiveram um

impacto negativo sobre as relações internacionais – isto

é incontestável. O que quero observar agora é que o

impacto negativo não foi homogêneo em todos os três

choques.

O fato teve efeitos diferentes e permitiram res-

postas ligeiramente diversas. No que tange à Primeira

Guerra Mundial, é preciso sublinhar a sua extensão e

intensidade sintetizadas na expressão de “guerra total”

(apesar de certas áreas de tranqüilidade), com imensa

mobilização de homens e materiais, incluindo guerra

submarina e aérea, com bloqueio recíproco, com imenso

desperdício e volumosas despesas, com retração do

intercâmbio internacional de mercadorias e capitais,

resultando na redução da capacidade econômica civil

entre os beligerantes. Os países líderes que desem-

penhavam papel preponderante no cenário internacional

325

325

(Inglaterra, Alemanha, França) sofreram profundamente.

Apenas os Estados Unidos ficaram algo excêntricos

tanto que continuaram crescendo, expandindo seu co-

mércio exterior (por exemplo, entre 1914 e 1918 suas

exportações subiram de 2,1 para 6,0 bilhões de dólares)

e aumentando sensivelmente seus empréstimos para o

resto do Mundo até um montante de 6 bilhões de dólares

– soma enorme nos padrões da época. As limitações

assinaladas tiveram sua importância para o desenrolar

da crise no Brasil.

No caso do segundo choque, o alastramento da

Grande Depressão incluiu todas as potências, sendo

mais grave nos grandes países industrializados. A queda

dos preços nestes países foi de 30-35%, chegando a 60-

70% nas commodities – fato agravante para os países

exportadores destes produtos. A produção industrial

mundial caiu 36% e o comércio internacional 25% (em

volume), desencadeando uma bola de neve.

Paralelamente a crise abalou o mercado internacional de

crédito, assistindo-se a uma retração generalizada, ou

até ao desaparecimento do movimento financeiro. Desta

vez não foi poupada aquela válvula de escapamento que

foram os Estados Unidos no choque anterior.

O panorama da Primeira Grande Guerra Mundial

praticamente se repetiu durante a Segunda, porém em

extensão e intensidade maiores. A intensificação da

guerra submarina prejudicou mais o comércio

internacional, inclusive em áreas mais longínquas, antes

poupadas. Não obstante, mais uma vez como fator

amenizador de que o Brasil pôde beneficiar-se, os

326

326

Estados Unidos cujo território não foi atingido,

expandiram suas atividades e aumentaram sua

capacidade comercial e financeira (como exemplo,

enquanto as exportações da Inglaterra se reduziram pela

metade entre 1938 e 1944, as norte-americanas mais que

quadruplicaram). Por outro lado, os Estados Unidos se

tornaram, mais do que em 1914/1918, o grande fi -

nanciador do Mundo. No caso do Brasil, as cir -

cunstâncias assinaladas facilitaram a resposta da eco-

nomia nacional ao choque.

(3) Em que grau os choques externos afetaram a

economia brasileira? Como resultados globais já mostrei

a inegável queda da taxa de crescimento econômico e de

investimento em todas as três crises – mais acentua-

damente na segunda.

Por definição, os choques atingiram as relações

do País com o exterior, afetando a geração da renda (via

exportação) e daí a capacidade de consumo e inves-

timento (via importação de mercadorias e capitais).

Comparando as médias anuais de 1914/1918 com as de

1909/1913 – isto é, do período do choque com o ime-

diatamente anterior – observa-se uma queda de 15,7%

na exportação e de 24,3% na importação. Da mesa forma

verifica-se queda entre 1927/1929 e 1930/1933 – aliás

bem maior, confirmando o que foi dito a respeito da

maior gravidade desta crise: -49,9% na receita de

importação, -61,4% na despesa de importação. O choque

da Segunda Guerra Mundial foi diferente: a importação

caiu ainda 2,5% em relação a 1935/1939, mas em com-

327

327

pensação a exportação cresceu 34,1%, devido à

manutenção das relações em certas áreas excêntricas

(América do Sul e África do Sul) e com os Aliados, via

Estados Unidos.

O maior impacto na importação explica-se ao

apenas pelas restrições impostas aos fornecimentos

pelos Aliados, mas também pela participação

relativamente maior da Alemanha nas importações do

Brasil antes da guerra: ela entrava com 16,1% em 1914

e 25,0% em 1938 (neste ano superando inclusive os

Estados Unidos que detinham 24,2%).

Um efeito sui-generis foi a oportunidade que a

indústria brasileira teve de expandir suas exportações

durante o primeiro e o terceiro choques para as áreas

ainda disponíveis – Estados Unidos (carnes e produtos

de açúcar, no primeiro), América do Sul e África do Sul

(têxteis, no terceiro). Durante este último choque os

produtos industrializados chegaram a ser responsáveis

por 19,7% da receita de exportação (em 1943) contra

menos de 1% antes da guerra. Deve-se sublinhar

entretanto que tal sucesso foi possível graças à abertura

parcial do nosso comércio exterior e não ao seu

fechamento.

No caso da importação a escassez provocada

pelos choques externos foi patente e ressentida tanto

pelos consumidores como pelos empresários que se

viram desprovidos das fontes tradicionais de

abastecimento. Já verificamos a queda do índice de

importação de bens de capital, claro indicador das

dificuldades de investimentos. A escassez de

328

328

combustíveis aparece nitidamente nas características,

confirmadas pelas experiências pessoais consignadas

nos testemunhos da época. Por exemplo, a importação

de gasolina caiu 22,0% entre a média de 1912/1913 e de

1914/1918; 22,4% entre 1928/1929 e 1930/1932; 13,7%

entre 1938/1939 e 1940/1944.

(4) Obviamente, entre o início do primeiro

choque (1914) e o do terceiro (1939) a economia

brasileira progrediu, mas, como já foi visto no quadro

estatístico apresentado, o crescimento global e industrial

se deu nos períodos entre-choques e não durante os

choques. Os progressos alcançados permitiram, com o

tempo, uma resistência relativamente maior e mais

eficiente, o que se constata sobretudo durante a Segunda

Guerra Mundial, não apenas graças à referida abertura

parcial da economia apesar do choque, mas também

devido a maior capacidade econômico do País.

As características são muito precárias, porém não

deixam de ter um certo valor indicativo. Em datas

selecionadas o PIB per capita teria subido de 94 dólares

em 1910 para 141 dólares em 1930 e 168 dólares em

1940. Isso daria valores globais de 2.088, 4.733 e 7.175

milhões de dólares, respectivamente – um crescimento

razoável. Ao mesmo tempo melhorava o perfil do

produto real, com um crescimento relativamente maior

do setor industrial. Considerando um universo composto

apenas dos setores primário e secundário, a distribuição

teria sido de 79-21% em 1919, 57-43% e 49-51% em

1949.

329

329

A capacidade industrial se verifica também no

volume de potência instalada que subiu de 244 MW em

1913 para 1.176 MW em 1939 – uma expansão de quase

5 vezes em 26 anos. Por outro lado o perfil industrial

amadureceu: por exemplo, as indústrias mais modernas

(metalúrgica, mecânica, material elétrico e transportes)

que representavam em 1919 6,6% do valor agregado

total tinham dobrado sua participação em 1939.

Isso não constituiu um benefício proporcionado

exclusivamente pelo choque externo, mas simplesmente

um aumento da possibilidade de reagir ao choque –

reação essa que se processou nos períodos de

normalização econômica e política entre os choques.

(5) O quinto elemento de avaliação do impacto

dos choques externos sobre a economia nacional prende-

se à capacidade e à disposição de reagir da sociedade,

dentro dos demais parâmetros mencionados. Trata-se

agora propriamente do binômio desafio/resposta. Sem

dúvida, em condições de normalidade política e social,

qualquer sociedade, levada pelo espírito de sobre-

vivência, deverá agir para diminuir ou mesmo limitar as

duras limitações impostas de fora. Entretanto, as reações

surgidas durante o período de crise surtirão pouco efeito

positivo, justamente por causa do estrangulamento da

economia em decorrência do estreitamento ou mesmo

colapso do sistema internacional. Se o abalo sofrido

teve como resultado o despertar das consciências e dos

esforços desenvolvimentistas, o que nem sempre pode

acontecer – os efeitos benéficos surgirão apenas após a

330

330

reabertura do setor externo, respaldo sine qua non do

crescimento equilibrado.

Como exemplo de reação simultânea, mas de

efeito limitado, cite-se, quanto à Primeira Guerra

Mundial, a utilização intensiva da capacidade industrial

criada antes do conflito, sobretudo nos setores dos

tecidos, carnes preparadas e produtos de açúcar (por

sinal, mercadorias necessárias para exportação, apro -

veitada ainda a abertura parcial da economia). Cite-se

também a criação de oficinas mecânicas destinadas a

consertar os equipamentos que não podiam ser

substituídos via importação, Tais ações de utilização

intensiva não representavam um progresso, um aumento

real da capacidade produtiva. Pelo contrário, e isso será

válido nos três choques externos, a utilização intensiva

dos equipamentos em 2 ou 3 turnos de trabalho cons-

tituía um desinvestimento, visto que acelerava o

processo de depreciação.

Dispõe-se de informações semelhantes com

referência à Segunda Guerra Mundial. Falando da

situação em toda a América Latina, uma publicação da

antiga Liga das Nações anotava: “As condições criadas

pela guerra impediram de realizar um aumento do

equipamento material... conseqüentemente o

desenvolvimento da atividade industrial exigiu uma

utilização mais intensiva das instalações existentes”.

(Revue de la Situation Economique Mondiale

1942/1943 – Société des Nations, Genève, 1945).

Existem numerosos testemunhos brasileiros da época a

respeito da utilização intensiva dos equipamentos e a

331

331

respeito dos paliativos empregados para enfrentar a falta

de substitutivos. Um reflexo deste processo aparece, por

exemplo, nas maciças importações realizadas após o fim

da guerra em fusos, teares e outros equipamentos para a

indústria têxtil que, devido às circunstâncias expostas,

havia trabalhado intensivamente a fim de aproveitar os

novos mercados a ela abertos na América do Sul e na

África do Sul.

Os exemplos mencionados referem-se às

atividades empresariais, mas evidentemente houve

também uma ação governamental, sobretudo na época

mais recente, à medida que se desenvolvia uma filosofia

de intervencionismo econômico. Mesmo durante a

Primeira Guerra Mundial o governo federal manteve na

sua despesa uma parcela razoável destinada à formação

de capital fixo – um pouco acima de 21% em 1914/1916,

aumentando no ano seguinte. O mesmo não aconteceu

durante os anos difíceis da Grande Depressão, quando

aquela parcela ficou entre 2 e 5% da despesa federal –

percentual que caracterizou todo o período de 1923 a

1938. O intervencionismo econômico cresceu, entre -

tanto, nos anos 30, manifestando-se de forma mais es-

petacular nos planos de defesa do café. A interpretação

dos efeitos destes planos é controvertida (v. contro -

vérsia Furtado-Peláez) e não poderia entrar aqui. Pode-

se admitir contudo que a defesa do café, complementada

com o Reaparelhamento Econômico, de sustentação dos

agricultores, teve certos reflexos positivos sobre a

economia, mas de qualquer forma essas ações e seus

reflexos se manifestaram depois da crise, sendo com-

332

332

plementados por medidas de planejamento e racio-

nalização econômica (por exemplo, a política seletiva de

importações).

A ação governamental foi mais evidente durante a

Segunda Guerra Mundial, como, por exemplo, com os

Acordos de Washington (1942) de sustentação de certas

exportações e, de modo mais efetivo, com a criação da

Companhia Siderúrgica Nacional, coroação de um

projeto idealizado desde antes da guerra e acelerado por

razões estratégicas. Isso explica em parte o aumento de

17 a 22% da parcela da despesa federal destinada à

formação de capital fixo. Mas, neste caso também, o

progresso alcançado foi possível graças à abertura

parcial da economia, permitindo a importação dos

equipamentos para Volta Redonda.

Como conclusão, temos que nos referir outra vez

à estatística da evolução do PIB, indicando maior

crescimento durante os períodos de maior crescimento,

nas fases de normalidade e de abertura para o exterior.

Foram essas fases, reflexos tardios do choque?

Constituíam elas realmente respostas aos desafios dos

choques, ou seja, em outras palavras, os progressos não

teriam se verificado sem aqueles desafios? Parece que

uma resposta afirmativa a estas questões seria gratuita,

pois, independentemente dos choques, havia suficientes

condicionamentos sócio-políticos para proporcionar à

economia brasileira os progressos por que ansiava a

sociedade.

Eventualmente, os choques apenas aguçaram a

vontade de renovar.

333

333

(*) O texto já estava redigido quando tomei conhecimento dos

trabalhos de dois colegas deste Conselho (os Conselheiros Dênio

Nogueira e Ernane Galvêas) que abordaram, com compe tência, o

tema dos choques externos. A minha contribuição poderia

justificar-se como uma complementação visando sobretudo uma

formulação mais genérica dos parâmetros dos choques externos.

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Janeiro 1994).

335

335

OS OBJETIVOS NACIONAIS

NOS PLANOS ECONÔMICOS

(1964/1985)

Numa palestra anterior, apresentei a evolução da

idéia de planejamento e de sua aplicação no Brasil num

período que se estendia desde a véspera da II Guerra

Mundial até hoje. Tratava-se, por assim dizer, de um

aspecto quantitativo: como evoluíram as experiências da

ação planejadora do Estado em termos de extensão e

profundidade.

Desta vez, quero abordar – cobrindo um período

menor, desde o governo Castello Branco até o governo

Figueiredo – o lado qualitativo dos planos, o seu

conteúdo quanto aos objetivos e às diretrizes. Esses

aspectos definem, até certo ponto, a evolução das

preocupações e motivações econômicas da sociedade

brasileira no período escolhido, tal como interpretadas

pelos dirigentes políticos e econômicos.

Neste relato histórico, em que, por limitações

óbvias, assinalo apenas os objetivos básicos sem muitos

detalhes setoriais, serão analisados os seguintes

documentos:

- Programa de Ação Econômica do Governo

(PAEG), de 1964;

- Programa Estratégico de Desenvolvimento

(PED), de 1967;

336

336

- Metas e Bases para a Ação de Governos

(METAS), de 1970;

- I Plano Nacional de Desenvolvimento (I PND),

de 1971;

- II Plano Nacional de Desenvolvimento (II

PND), de 1974; e,

- III Plano Nacional de Desenvolvimento

Econômico (III PND), de 1980.

* * *

É interessante, antes de mais nada, para definir a

posição dos planejadores, observar a qualificação que

eles deram à sua ação planejadora, a égide sob a qual

colocaram a respectiva obra. Nisso, o PAEG propõe-se

modestamente perseguir três objetivos: “Estabilização,

desenvolvimento e reforma democrática” – uma reação à

confusão política, econômica e social dos anos 1961-

1964. Já o PED, passada a fase insegura dos primeiros

anos do regime instaurado em 1964, mostra-se mais

exigente, abandonando a idéia fria de desenvolvimento

puramente econômico e referindo-se ao progresso

social, mais especificamente à “valorização do homem

brasileiro”.

Os sucessos conseguidos pela economia brasileira

após 1967 – o conhecido “milagre brasileiro” – refle-

tem-se no otimismo e nas aspirações crescentes já nas

METAS, que falam enfaticamente no “ingresso do

Brasil no mundo desenvolvido”. O otimismo transparece

também no I PND que se refere ao “Brasil nação de-

337

337

senvolvida”, com uma “economia moderna, competitiva

e dinâmica”, para explodir plenamente no II PND

(apesar dos sinais negativos do primeiro choque do

petróleo) falando no “Brasil como poder emergente” e

“desenvolvimento e grandeza”.

Mais tarde, a deterioração do cenário interna-

cional com o segundo choque do petróleo reflete-se no

comedimento do III PND que mantém, não obstante, a

confiança no futuro em que se prevê “a construção de

uma sociedade desenvolvida, livre, equilibrada e estável

em benefício de todos os brasileiros, no menor prazo

possível’ – expressão em que se identifica não apenas a

preocupação crescente com uma melhor distribuição do

desenvolvimento, mas também os sinais da abertura

política então incipiente.

* * *

Ao abordar os objetivos dos planos, é oportuno

observar que muitos se apresentaram de forma

permanente. Assim, são o crescimento econômico e o

emprego, a distribuição setorial e regional da renda e o

equilíbrio do balanço de pagamentos. Entretanto,

variaram em enfoque e intensidade de acordo com as

circunstâncias conjunturais, as opções estratégicas e as

abordagens teóricas.

Da mesma forma, verifica-se o destaque cres-

cente, após 1973, do problema energético em de-

corrência da crise do petróleo. Veremos também que o

próprio problema inflacionário, tão crônico, teve flu-

338

338

tuações em seu tratamento, de acordo com o agra-

vamento ou afrouxamento da escalada dos preços.

* * *

Como não podia deixar de ser, o desenvolvimento

econômico constituiu, em todos os planos desde o PAEG

de 1964, o objetivo primordial da economia nacional.

Esse interesse, correspondendo, em termos mais

comuns, ao anseio pelo progresso econômico, portanto à

própria essência da atividade econômica, tornou-se

crescente em escala universal após a Segunda Guerra

Mundial, quando surgiu o que Gunnar Myrdal chamou

de “o Grande Despertar”, a consciência da necessidade

do desenvolvimento, tanto é que, de forma sintomática a

ONU denominou o seu grande Banco, de Reconstrução e

Desenvolvimento. Detectou-se, na época, o “gradual

surgimento de uma consciência da responsabilidade

internacional no tocante à promoção do desen-

volvimento econômico” (Roberto Campos) e no caso do

Brasil, falou-se na “geração desenvolvimentista”,

justamente aquela que criou os primeiros planos

econômicos.

Com o tempo, verificou-se um certo refino do

conceito básico. Já vimos que o PED falou em

valorização do homem e mais tarde o I PND acentuou

que o desenvolvimento implica em modernização e

competitividade da economia. O II PND, logo após a

primeira crise do petróleo, cuida de reafirmar a

capacidade de crescer da economia brasileira e insiste

339

339

na meta de um crescimento acelerado. Mesmo o III

PND, embora a crise já mostrasse seus efeitos nocivos,

rezava pela manutenção do crescimento apesar das

dificuldades surgidas, confessando “a certeza de que a

sociedade brasileira está plenamente capacitada e

motivada para enfrentar e vencer os desafios adicionais

da economia mundial”. E mais: “o Brasil não pode

renunciar ao crescimento, seja por legítimas aspirações

do seu povo por maior prosperidade, seja pelo alto custo

social da estagnação ou do retrocesso”. Essa opção

absoluta pelo crescimento que tinha se fortalecido com

as boas performances econômicas, depois de 1967, tinha

seus riscos, porém se justificava a longo prazo. (1) O

preço pago pela manutenção do crescimento após 1980

foi o forte endividamento externo.

O crescimento econômico vinha emparelhado com

a criação de empregos, objetivo básico num país da

dimensão do Brasil, com expansão demográfica elevada.

Essa preocupação aparece desde o PAEG que se refere

ao esforço de investimentos para “assegurar opor -

tunidades de emprego produtivo”. Quando, entre as

medidas adicionais, fala nas políticas agrária e habi-

tacional, o objetivo da criação de empregos aparece

implicitamente. É interessante notar que, apesar de

referir-se “à mão-de-obra que continuamente, aflui ao

mercado de trabalho”, não há nenhuma alusão a uma

política demográfica. Os Planos subseqüentes

continuarão a mencionar a importância dos inves-

timentos para a criação de empregos, pelo que

afirmaram, sobretudo o III PND, a necessidade de

340

340

fortalecer a agricultura, tampouco mencionando qual -

quer programa demográfico. Entretanto as METAS e o

II PND já tinham esclarecido que “o problema de

controle da natalidade deve permanecer na alçada da

unidade familiar”. (2) De fato, aceitando-a a explosão

demográfica com um “datum”, irreversível, o problema

da criação de empregos tornava-se mais premente. Por

outro lado, firma-se o enfoque social do desenvol-

vimento econômico que aparece desde o PAEG, que fala

na “melhoria das condições de vida”, seguido pelo PED

que prega o crescimento econômico “aliado ao

progresso social”. Este enfoque acentuou-se ulte-

riormente – tendência generalizada em todo mundo den-

tro de uma visão mais globalizante do crescimento

econômico. No fim do período focalizado, o III PND, ao

falar dos fundamentos do Plano, menciona que “o objeto

do esforço nacional é a valorização do homem bra-

sileiro”, uma concepção mais humanística do de-

senvolvimento. (3)

* * *

Paralelamente ao problema do crescimento, é

oportuno indagar qual foi o modelo, entendido sob

vários ângulos, que os planejadores adotaram como

solução para o Brasil. Uma pergunta básica quanto a

esse modelo tem resposta inegável: os planejadores

afirmaram sua opção pelo modelo liberal, o modelo do

mercado e da livre empresa. Desde o início, o PAEG

proclama o papel regulador do sistema de preços, mas,

341

341

justificando sua própria atuação, sustenta a necessidade

da intervenção estatal através do planejamento eco-

nômico para corrigir as insuficiências do mercado,

principalmente no que tange ao volume desejável de

poupança, à formação das economias externas, à distri -

buição satisfatória da renda nacional e as distorções do

mercado.

Outrossim, os planos repetem a necessidade do

fortalecimento da empresa privada e afirmam ex-

pressamente “a opção pela economia de mercado” (III

PND). De fato, apesar da crítica socialista e da miragem

da planificação centralizada na URSS – entusiasmo que

ia arrefecer em anos mais recentes – o Brasil per-

maneceu basicamente fiel à tradição liberal, natu-

ralmente dentro da evolução geral rumo a uma economia

mista. Esse aspecto é ressaltado de modo mais explícito

no I PND que sustentara um modelo de mercado

“fundado na aliança entre o Governo e o setor privado”.

Essas relações entre o setor público e privado

apresentaram certas nuanças ao logo da ação

planejadora. Inicialmente, pode-se estranhar que o

PAEG, criado dentro de um clima de reação contra as

tendências estatizantes anteriores, não tenha reservado

maior atenção aos problemas da empresa privada e às

suas relações com o setor público. A idéia era contudo

de aplicar “uma política positiva que permita aos

empresários nacionais competirem, em igualdade de

condições, com os empresários estrangeiros, que operam

no país” (Velloso). Parece-me que isso representava

uma resposta antecipada às eventuais críticas contra a

342

342

política de abertura aos capitais estrangeiros.

O “fortalecimento da empresa nacional” foi a

tônica nos Planos subseqüentes, e ao lado dela, a

preocupação com a definição e eventualmente limitação

da competência do Estado.

O desdobramento dessas idéias básicas já surge

no PED que, ele também, proclama como primeiro

princípio da filosofia do governo “o fortalecimento da

empresa privada nacional” – uma adjetivação para

rejeitar eventuais críticas nacionalistas. Ademais, o PED

explicita que “o Governo não deverá executar

diretamente aquilo que puder eficientemente contratar”

e que “deverá ser extremamente cauteloso ao transferir

recursos do setor privado ara o setor público”. Por outro

lado, o PED expressa sua preocupação com dois fatos:

“o debilitamento do setor privado” e “a pressão

excessiva exercida pelo setor público”, e refere-se até à

“reversão da tendência estatizante”, sem contudo aludir

a uma verdadeira privatização da economia – o que se

verifica igualmente nos Planos ulteriores.

As METAS e o I PND bateram na mesma tecla:

fortalecimento da empresa privada, incutindo-lhe um

grau maior de modernização e competitividade. Não

obstante, às vezes tem-se a impressão de que se desejava

apenas manter o status quo: as METAS falam no

equilíbrio Governo/setor privado e o I PND na

integração Governo/setor privado, embora o processo de

estatização continuasse. Já o II PND dedica menor

atenção à empresa privada: fala apenas “na articulação

natural e fecunda entre o Governo e a iniciativa

343

343

privada”. Na mesma época, o autor desse Plano, um

tanto resignadamente, aconselhava “evitar o avanço da

estatização” (Velloso).

Nos anos seguintes, com a preparação da abertura

política, parece fortalecer-se a reação contra o

intervencionismo estatal. Entre os fundamentos do III

PND inclui-se a opção brasileira pela economia de

mercado, limitando-se explicitamente o papel do Estado

“aos campos de atividades exigidos pelo interesse e

segurança nacionais” ou em caráter supletivo. De fato,

manteve-se a porta aberta à estatização ou pelo menos à

manutenção do status quo.

* * *

O objetivo prioritário do desenvolvimento

econômico ficou ligado principalmente nos primeiros

Planos, ao combate antiinflacionário. Os dirigentes

econômicos da época criticaram duramente as distorções

inflacionárias (Campos, Simonsen, Galvêas). A

motivação imediata foi a escalada dos preços que

demonstrava tendências nítidas de aceleração. Por outro

lado, havia a resistência teórica dos grupos

estruturalistas e semelhantes, que consideravam a

inflação um instrumento de desenvolvimento através da

poupança forçada por ela produzida, ou então, como o

subproduto inevitável do próprio desenvolvimento.

Assim sendo a base teórica e factual, era normal que o

PAEG invocasse “o combate urgente ao violento

processo inflacionário” e colocasse a luta contra a

344

344

inflação como verdadeiro objetivo prioritário. A

preocupação com a inflação, além de merecer um

capítulo especial no PAEG, aparece como um leit-motiv

em várias oportunidades, construindo-se uma completa

estratégia antiinflacionária de caráter ortodoxo.

Essa preocupação arrefeceu já no Plano seguinte,

visto que entre 1964 e 1967 a taxa inflacionária

decrescera. O PED indica a meta de “uma relativa

estabilidade de preços” e dedica apenas dois parágrafos

ao problema. As METAS, nem tanto: entre os objetivos

básicos reserva-se duas linhas à inflação, com a

finalidade de “taxa decrescente até a relativa

estabilidade dos preços antes de 1974”. No I PND, o

problema da inflação já aparece totalmente ofuscado por

outras preocupações.

A ulterior deterioração do cenário externo, fez

com que o problema da inflação reaparecesse no II

PND, porém ainda de forma discreta: “reafirmar a

política de contenção da inflação pelo método

gradualista” – referência essa refletindo os debates

teóricos dos anos anteriores a respeito da melhor

estratégia, gradualismo ou tratamento de choque.

O recrudescimento da inflação sobretudo depois

do segundo choque do petróleo explica a volta para a

ênfase maior reservada à inflação do III PND que

alertou sobre “substancial pressão inflacionária de

origem interna e externa” e estabeleceu, infelizmente

sem conseqüências prática, que “o controle da inflação é

condição essencial para assegurar a eficiência, a

estabilidade e o crescimento continuado da economia

345

345

brasileira e a melhoria dos níveis de bem-estar de nossa

população” – linguagem que tinha sido abandonada nos

Planos anteriores (5).

* * *

Voltemos ao tema central do desenvolvimento

econômico a fim de identificar alguns aspectos

peculiares dos modelos adotados. Obviamente, os seus

redatores não podiam preterir os fatores básicos do

crescimento – trabalho e poupança. No concernente ao

primeiro, já falei sob o aspecto da criação de empregos

como já vimos a respeito do PAEG. O objetivo é

repetido no PED e sob uma forma ou outra até o III

PND, o qual proclama, como primeiro objetivo nacional,

“o acelerado crescimento da renda e do emprego”.

Acho que é oportuno sublinhar que a criação de

empregos é encarada não tanto sob o ângulo de

mobilização de um fator de produção, senão como

medida social de distribuição da renda. Por exemplo, o

III PND, refere-se ao “nível suficiente para ocupar de

forma produtiva os novos contingentes de mão-de-

obra... e para absorver progressivamente os contingentes

de desempregados e subempregados atualmente

existentes”. (6)

Outrossim, os Plano iniciais enfatizaram princi -

palmente o papel da poupança, talvez como reação ao

atraso, até 1965, do mercado de capitais do País. O

PAEG adota explicitamente o modelo de crescimento de

Harrod-Domar que se articula em torno do volume da

346

346

poupança disponível e da relação capital/produto. O

próprio planejamento é justificado em primeiro lugar, no

PAEG, para corrigir a insuficiente formação de pou-

pança pelo mercado. E várias políticas nele idealizadas

– financeira, tributária, bancária – tem, como escopo

manifesto, a formação de poupança.

Depois, o problema da poupança passou para um

lugar mais apagado, mas permaneceu, às vezes para

justificar o apelo aos capitais estrangeiros, assunto

politicamente delicado.

Aos poucos surgiu em lugar de destaque a questão

do fator humano, a importância do comportamento da

sociedade e portanto da educação. O capítulo

“Educação” aparece já no PAEG, dentro do título mais

amplo de “Desenvolvimento Social”, portanto não

referindo-se diretamente ao processo de crescimento.

Com o tempo, o pensamento econômico foi progredindo

no sentido de dar maior ênfase aos recursos humanos

como alavanca do desenvolvimento.

Os Planos ressaltaram progressivamente esse

aspecto e já o PED declarava a educação como

“programa prioritário... essencial ao desenvolvimento”.

Cada vez mais os Planos referiram-se aos recursos

humanos (METAS) ou à política de utilização dos

recursos humanos (I PND) e dedicaram capítulos

especiais, de destaque, à Educação.

Paralelamente cresceu a importância reservada ao

progresso tecnológico. A expressão praticamente não

existe no PAEG, mas o PED já aconselha a “amparar e

fortalecer a tecnologia nacional” e “estimular a pesquisa

347

347

científica e tecnológica”; e o I PND fala num verdadeiro

“Plano Tecnológico Nacional”. A idéia evidentemente

permaneceu, mas recebeu depois menor destaque, talvez

por ser considerada implícita: aliás, o III PND esclarece

que “é indispensável destacar a relevância da pesquisa

científica e tecnológica e sua aplicação para o

desenvolvimento nacional”.

* * *

Outra indagação possível prende-se ao tipo de

crescimento adotado do ponto de vista setorial. Nesse

sentido houve um certo afastamento do modelo indus-

trialista puro, isto é, um modelo de crescimento de-

sequilibrado em favor da indústria. É verdade que o

autor do PAEG escrevera ainda em 1953: “No caso

brasileiro... parece claro que o desenvolvimento

econômico deve ser associado a uma industrialização

intensiva” (Roberto Campos) e o próprio PAEG previu

“a recuperação das altas taxas de crescimento da

indústria”, enquanto para a agricultura se desejava

modestamente “a eliminação do seu relativo atraso”.

O PED considerou a indústria “fonte de con-

siderável dinamismo” e em geral os Planos, seguindo a

posição do PAEG, estabeleceram para o setor metas

quantitativas mais elevadas do que para o resto da

economia. Não obstante, já as METAS fizeram uma

ressalva, propondo “a objetivação de um desen -

volvimento mais integrado, ou seja, menos dependente

de um setor – a indústria”.

348

348

Em decorrência dessa visão mais equilibrada do

desenvolvimento econômico, os Planos reservaram, com

maior ou menor ênfase, um papel especial à agricultura,

para a transformação da agricultura tradicional (ME-

TAS); aumento da produtividade (PED); modernização e

progresso tecnológico do setor – porém às vezes com

vistas apenas à criação de empregos e redistribuição da

renda. O papel estratégico da agricultura foi ressaltado,

entretanto, pelo III PND em termos de fonte de

crescimento, criação de emprego, solução energética,

distribuição funcional e regional da renda nacional e

sustentáculo da balança comercial. Comedidamente foi

atacado, vez por outra, nesses termos, o problema da

reforma agrária com uma conotação bastante

conservadora (7).

Para completar este panorama setorial falta

acrescentar pelo menos dois itens:

1 – O aparecimento do problema do petróleo

depois dos choques de 1973 e 1979. Evidentemente,

reservou-se um certo espaço às questões energéticas em

todos os Planos, mas já o II PND vez várias referências

à crise do petróleo e colocou entre as “tarefas árduas” a

de que “o Brasil deverá ajustar a sua estrutura

econômica à situação de escassez de petróleo”. O III

PND seguiu no mesmo sentido.

2 – O maior interesse pela preservação dos

recursos naturais, poluição industrial (II PND),

ambiente (III PND), refletindo o interesse universal

crescente.

349

349

* * *

O equilíbrio do Balanço de pagamentos constituiu

uma preocupação constante dos Planos. Desde o início,

o PAEG colocou como quinto objetivo básico “corrigir a

tendência a déficits descontrolados do balanço de

pagamentos, a fim de evitar percalços decorrentes do

estrangulamento da capacidade de importar”. De fato,

tratava-se da adoção de um modelo definido de

economia aberta para o exterior, em contraposição do

modelo fechado iniciado, de uma certa forma, pelo

processo de substituição de importações e o qual, sob as

pressões do nacionalismo exacerbado, tendia para uma

posição autárquica.

A opção pelo modelo aberto foi amplamente

justificada pelos dirigentes econômicos da época. Um

deles explicou mais tarde o conceito: “uma economia

aberta, que enfatize as exportações como fator de

crescimento e admita a importação de capitais como

elemento de transferência de poupança e tecnologia”

(Roberto Campos), Parece-me que o móvel essencial da

opção se ligava à importância conferida pelo PAEG à

poupança, como já assinalei. Tratava-se de aumentar a

capacidade de expansão da economia através do

aproveitamento da poupança externa. Esta absorção

exigia a obtenção de meios para pagar o serviço dos

capitais, portanto a necessidade de ampliar as expor-

tações. Na época, tais posições enfrentavam a oposição

da corrente estruturalista que apontava efeitos nocivos

350

350

do comércio exterior, bem como a dos nacionalistas que

viam, na abertura, um fenômeno de dominação, uma

dependência em relação aos países industrializados . Os

partidários da abertura responderam, por exemplo: “(o

comércio exterior) é instrumento altamente eficaz para

abreviar o processo do desenvolvimento econômico e

antecipar a formação de uma sociedade industrial”

(Delfim Netto). E quanto à dominação estrangeira e a

dependência ressaltaram que “(a interdependência) nos

assegura o acesso ao desenvolvimento tecnológico e

coloca à nossa disposição o enorme mercado dos

grandes países industriais (Galvêas).

O PAEG definiu as facetas do modelo aberto – e

os Planos subseqüentes se fixaram na mesma linha –

apenas o PED, embora reconhecendo o esforço de

poupança obtido do exterior, pareceu insistir mais no

mercado interno; porém não havia de fato nenhuma

incompatibilidade real com o modelo aberto. Na linha

mencionada, as METAS e depois o I PND aconselharam

o equilíbrio do balanço de pagamentos para garantir o

nível da importação. Já o II PND adota uma visão mais

ampla referindo-se à “integração na economia mundial”.

É interessante que essa confiança na cooperação

econômica internacional se reforçou num momento de

crise da economia mundial: o II PD aconselha um

ajustamento à escassez de petróleo e o III PND, já

depois do segundo choque do petróleo, exalta o papel

dinâmico da exportação como fonte de renda, criação de

empregos, redistribuição da renda funcional e regional.

Por outro lado, o mesmo III PND assinalou “crescentes

351

351

pressões sobre o nível e custo da dívida externa”,

resultantes do endividamento externo conscientemente

assumido para manter o crescimento econômico após o

primeiro choque do petróleo, e imprevisivelmente

agravado pela escalada dos juros internacionais. O

debate sobre a dívida externa, iniciado após a redação

do III PND, tornou-se acirrado nos anos subseqüentes –

e ainda não terminou (8).

* * *

Finalmente, é preciso referirmo-nos a um tema

que figurou de maneira constante no elenco dos

objetivos planejados, mas cuja ênfase cresceu ao longo

do período. Trata-se da correção das disparidades de

renda sob os aspectos pessoal, funcional e regional. A

preocupação com as desigualdades regionais vinha de

longe, até antes da criação da SPVEA e da SUDENE.

Desde o início, o PAEG aponta a necessidade de “ate -

nuar os desequilíbrios setoriais e regionais”. E a visão

se alarga no PED que já fala em integração nacional,

expressão essa que vai se repetir nos PLANOS

subseqüentes, por exemplo no I PND (Programa de

Integração Nacional). No III PND o problema da

correção dos desequilíbrios regionais chega a ser

focalizado sob uma ótica ainda mais ampla: migrações,

desenvolvimento industrial e agrícola, política ener-

gética, etc.

Quanto aos outros aspectos das disparidades de

renda vimos que o PAEG se referiu ao desequilíbrio

352

352

setorial, dando destaque à distribuição da renda nacional

entre o setor do trabalho e do capital, mas encarou

também o problema das desigualdades pessoais para

cuja solução se referiu às políticas agrária, habitacional

e educacional. A inadequada e desequilibrada dis-

tribuição das rendas pessoais foi, cada vez mais,

abordada sob a pressão das correntes de pensamento

humanista e da opinião pública em geral. Talvez tenha

sido também uma razão de contestação política: Delfim

Netto observou que face aos sucessos da política

econômica após 1967, “o problema da distribuição da

renda se transformou em um dos mais controversos

temas da atualidade.”

A meta distributivista mantém-se com destaque

no PED (“participação de todos os brasileiros nos

resultados do desenvolvimento”), nas METAS

(Programa de Integração Social), no I PND (integração

nacional e social, PIS, PASEP), II PND (“melhoria da

distribuição da renda e oportunidades”), III PND

(“distribuição mais justa dos frutos do desenvolvimento

econômico”).

Continuou, entretanto, a controvérsia sobre a

opção prioritária entre crescimento e redistribuição, e

em geral os Planos, fiéis ao seu objetivo básico,

pareceram inclinados em favor do desenvolvimento,

dentro de um certo equilíbrio. As METAS advertiram:

“sem excesso distributivista” e o II PND falando na

redistribuição da renda adverte: “simultaneamente com

a determinação de manter o crescimento acelerado”.

Mais tarde, um dos artefatos dos Planos resumiu a

353

353

posição que havia vingado: “crescimento e redistri -

buição da renda devem vir juntos”. (Velloso) (9)

* * *

Não se trata nesse trabalho limitado proceder a um

balanço das realizações propostas pelos Planos: isso

exigiria a exposição de toda a evolução da economia

brasileira no último quarto de século. Falando apenas nos

objetivos adotados, pode-se afirmar não apenas que

representaram em geral boas intenções a respeito do

progresso do país, mas também corresponderam a um

esforço de racionalidade econômica e coerência. São

discutíveis, sem dúvida, as opções quanto ao modus

faciendi, mas isto é apanágio das incertezas humanas:

crescimento equilibrado ou desequilíbrio? Maior ou menor

ênfase na agricultura ou na indústria? Economia aberta ou

fechada? Maior ou menor intromissão do Estado na

economia? Redistribuir antes ou depois de crescer?

De qualquer modo não se pode contestar, mesmo

numa avaliação perfunctória, que efetivamente a

aplicação dos Planos registrou sucessos em vários

campos, sucessos que foram devidos a um complexo de

condicionamentos e não forçosamente ao planejamento

em si. Assim foi no caso do próprio crescimento

econômico, na expansão do comércio exterior, no

combate à inflação, no aumento da capacidade de

poupar. Progressos demasiadamente modestos ou quase

nulos verificaram-se no campo da agricultura, da

educação e da redistribuição da renda.

354

354

O balanço poderia apontar, também, as causas do

fracasso ou da limitação das metas: fatores externos,

deficiências administrativas, inércia da sociedade, e

outras de caráter econômico, político e social. Mas a

discussão desses aspectos, como se diz, “é uma outra

estória”.

Palestra proferida em 22 de novembro de 1990.

NOTAS

(1) No que tange ao desenvolvimento econômico, o balanço dos

20 anos aqui focalizados foi positivo. Depois de alguns anos de

crescimento modesto devido as perturbações políticas, econômicas

e sociais da época, o PIB começou a crescer a taxas r azoáveis e, a

partir de 1968 até 1976, cresceu a taxas elevadas entre 9% e 14%

ao ano (exceto em 1975), totalizando em 9 anos uma expansão de

115,4%, ou seja, na média anual de 10%. O segundo choque do

petróleo e, principalmente, o colapso do sistema fina nceiro inter-

nacional em 1981/1982 interromperam o progresso, contra riando a

opção desenvolvimentista dos Planos. Em 1977/1983 o cres -

cimento do PIB limitou-se à média de 2,8% por ano (sendo

negativas as taxas de 1981 e 1983). Houve ligeira recuperação

depois, No total do período de 1964 a 1985, o PIB subiu 176,2%,

a uma taxa anual média assaz satisfatória de 6,2%.

(2) A população economicamente ativa cresceu de 27,8 milhões de

pessoas em 1960 para 43,2 milhões em 1980, mas, em termos

relativos, houve um pequeno encolhimento: em relação à po-

pulação global ela caiu de uma proporção de 39,5% para 36,3%.

Estes números são entretanto algo irrelevantes sem certa qua -

lificação, principalmente porque havia um grande contingente de

ativos na chamada “economia informal”, incluindo semi-emprego

ou desemprego disfarçados.

355

355

(3) No tocante ao desenvolvimento social, os resultados foram

decepcionantes, malgrado alguns progressos realizados. Em 1983,

havia ainda 30,5 milhões de analfabetos (23,4 milhões em 1960),

19 milhões de famílias abaixo da linha de pobreza (de renda até 1

salário mínimo), 24 milhões de pessoas sem água encanada (32

milhões em 1960), 5 milhões de domicílios sem instalações

sanitárias (7 milhões em 1960), 30 milhões de pessoas sem luz

elétrica (44 milhões em 1960). O problema da “dívida social”

ficou no primeiro plano especialmente nos anos 80.

(4) Apesar das declarações a favor da empresa privada e contra os

excessos da estatização, a participação do setor público na

economia cresceu, quase por inércia, amparado pelos interesses

individuais ou grupais ligados ao setor. Alguns dados são

relevantes, por exemplo: as despesas governamentais subiram de

21,6% do PIB em 1959 para 27,7% em 1973; a ação do Estado

como empresário representava em 1969 cerca de 16% do PIB; o

Estado era responsável por 60% dos investimentos em capital

fixo; entre as empresas mais significativas do País em 1970, as

estatais participaram com 47,5% do patrimônio líquido, proporção

que subiu para 52,2% em 1976.

(5) Entre 1960 e 1964 a taxa anual da inflação subiu de 29,1%

para 90,7% (índice geral de preços-disponibilidade interna). As

políticas aplicadas a partir daquela última data pressionaram a

inflação para baixo, de modo que ela caiu paulatinamente de

57,1% em 1965 para 14,9% em 1973. Os choques do petróleo, a

inflação mundial e os descuidos internos permitiram novamente a

escalada dos preços: o ICP-DI elevou-se para 42,7% em 1977,

100,2% em 1980 e 225,5% em 1985. Não se trata de fazer aqui a

história desta inflação, nem a análise crítica das políticas

implantadas: existe farta literatura a respeito (Campos, Simonsen,

Delfim Netto, Galvêas).

(6) A taxa de formação fruta de capital oscilou em torno de 17%

do PIB nos anos 60. Nos 20 anos seguintes até 1982 situou -se em

torno de 20% do PIB, com um nível máximo de 24,4% em 1975.

As altas taxas de crescimento econômico na época explicam-se

por uma baixa relação capital/produto. Após 1985 a formação de

356

356

capital iria cair até 16-17% do PIB ou menos.

(7) Os progressos da agropecuária continuaram modestos. As

taxas de crescimento do setor flutuaram entre a média de 2,9%

(1980/1983) e 5,0% (em 1974/1979, enquanto a indústria chegou à

média anual de 7,5% em 1974/1979 e até 12,7% em 1968/1973),

mas se mostrou mais vulnerável em períodos críticos : taxa de

1,3% em 1964/1967 e 1,0% negativo em 1980/1983. De qualquer

modo, a alteração estrutural do PIB prosseguiu: a parcela da

agropecuária caiu de 15,0% em 1964 para 10,1% em 1985 e a da

indústria subiu de 30,0% para 35,5%.

(8) A expansão das exportações foi vertical (ajudada em termos

nominais após 1973 pela inflação externa e pela desvalorização do

dólar): em milhões de dólares, 1.406 (1963), 6.199 (1973), 20.132

(1980); 25.639 (1985). As importações subiram ainda mais (vide o

preço do petróleo), mas foram contidas no final do período: 1.487

(1963), 6.999 (1973), 24.961 (1980), 14.332 (1985). A

deterioração afetou o déficit em conta corrente do balanço de

pagamentos que evoluiu assim (em milhões de dólares): 114

(1963), 1.688 (1973), 12.807 (1980), 268 (1985). Os déficits em

conta corrente, a escalada dos juros internacionais e o

endividamento em bola de neve provocaram a seguinte evolução

da dívida externa bruta (em milhões de dólares): 3.968 (1963),

12.572 (1973), 53.848 (1980), 95.857 (1985).

(9) As estatísticas abrangem o período “crítico” de 1960 a 1970

que propiciou as críticas internas e externa ao modelo brasileiro

sob o ângulo distributivista. Um exemplo sintético mostra que a

faixa de 10% da população mais pobre aumentou sua renda, no

período, em 28%, enquanto os 10% mais ricos a aumentaram em

67%. Os 40% de renda mais baixa reduziram sua participação na

renda total de 11,20% para 9,05%, e os 10% mais ricos a

aumentaram de 38,87% para 48,35%. O coeficiente de Gini subiu

de 0,48 para 0,56. Quanto à renda regional, observa-se que a

região mais rica (Sul, Centro-Leste) aumentou sua parcela na

renda global de 74,7% para 76,7 do total, enquanto o resto do país

desceu de 25,3% para 23,3%.

357

357

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359

359

PROGRESSO E DECLÍNIO

DO PLANEJAMENTO ECONÔMICO

NO BRASIL

O planejamento econômico representa a etapa

mais avançada no processo de intervenção do Estado nas

economias de mercado, uma intervenção que se pretende

mais racional e mais articulada do que nas formas

anteriores do dirigismo estatal. De fato, a presença do

Estado na economia foi, em formas mais ou menos

acentuadas, uma constante histórica, pois não se pode

imaginar uma atividade econômica sem a existência de

uma infra-estrutura política, jurídica e administrativa.

Ademais, o Estado sempre assumiu ações propriamente

econômicas. Não falemos da fase dominada pela

doutrina mercantilista que foi uma doutrina de objetivo

político (o poder) procurado através de instrumentos

econômicos (principalmente o mecanismo da balança

comercial).

O triunfo do liberalismo econômico não implicou

na expulsão do Estado da economia; ele atuou pelo

menos através da ação tributária.

Pelo contrário, na medida em que a economia

liberal mostrava inevitavelmente suas imperfeições e

deficiências, ela sofreu abalos sob o impacto dos

ataques humanistas ou das críticas teóricas da Escola

histórica, do socialismo romântico e do socialismo

360

360

chamado “científico”. Juntando-se às investidas do mo-

vimento sindical. O Estado procedeu a uma intervenção

crescente em vários setores da economia, caminhando

para uma economia mista em que ainda prevalece o

mercado e a livre iniciativa, porém com uma boa dose

estatizante.

Talvez tenham contribuído, como um substrato

ideológico, velhas aspirações utópicas de uma felicidade

idílica, garantida pelo braço providencial do Estado –

tal como nos sonhos de Platão, Campanella ou Thomas

Morus.

Por cima das utopias, certas realidades atuaram

no mesmo sentido estatizante. Os desequilíbrios por que

passou a economia mundial nas primeiras décadas do

século XX propiciaram uma penetração maior do Estado

na economia liberal, abalada por crises periódicas. A

Primeira Guerra Mundial contribuiu nesse sentido, mas

o impacto fundamental foi a Grande Depressão de 1929

que deu oportunidade a políticas econômicas fortemente

intervencionistas, não apenas em Estados totalitários,

mas também nos países democráticos, a começar pelos

Estados Unidos de Franklin Roosevelt. Tratou-se de um

intervencionismo mais amplo e mais articulado –

precursor do planejamento.

Incentivo no mesmo sentido foi recebido da

experiência soviética de planificação centralizada, cujo

sucesso foi exaltado pela propaganda ideológica. Por

outro lado, a idéia de uma intervenção macroeconômica

estatal recebeu forte respaldo das teorias de Keynes.

Foi nos anos 30 que o intervencionismo sob a

361

361

forma mais racionalizada do planejamento quis assumir

posições abrangentes, num sentido macroeconômico e

não somente com o emprego de planos parciais. Aos

poucos, tornou-se uma verdadeira panacéia.

A intervenção estatal estendeu-se, ainda,

eventualmente com maior intensidade, nos períodos de

crise após a Segunda Guerra Mundial quando

proliferaram planos econômicos em vários países

liberais. Isso correspondia em primeiro lugar à

convicção de que o liberalismo puro era inoperante e

que o modelo certo devia ser o de uma economia mista.

Desse intervencionismo crescente brotou e se fortaleceu

a idéia de planejamento como fórmula racional de

orientação de uma economia mista.

* * *

Evolução semelhante em direção ao planejamento

ocorreu no Brasil. Entretanto, antes de abordar este

relato histórico é mister proceder a algumas precisões de

terminologia, inclusive para esclarecer o sentido do

título desta palestra.

Evidentemente, quando falo de declínio do

planejamento no Brasil não posso referir -me à palavra

lato sensu, ou seja, ato de fazer planos, elaborar um

plano ou roteiro, projetar ações desejadas. Nesse

sentido, o plano faz parte de qualquer atividade humana,

não apenas econômica, que pretenda um mínimo de

racionalidade.

Muitas definições do planejamento econômico

362

362

não passam, pelo menos implicitamente, de uma simples

afirmação da racionalidade necessária para o sucesso de

qualquer política econômica, tanto no nível macro como

no microeconômico. Diz um analista abalizado:

“(Planejar é) agir com racionalidade e senso de

previsão” (Velloso, citando James Tobin). Ou: “o

planejamento é... apenas um método racional de

expressar a volição coletiva” (Roberto Campos).

O planejamento, neste conceito de conjunto de

medidas bem ponderadas e logicamente sistematizadas,

é intrínseco a qualquer atividade econômica racional.

Mas não é disso que se trata nesta perfunctória

investigação. Ela se refere a um sentido mais restrito,

mais técnico de noção de planejamento. Para melhor

apertar a terminologia. Poder-se-ia partir de uma

definição ainda genérica, porém mais técnica de que as

declarações de racionalidade antes citadas, como a de

que “(planejamento consiste em) elaboração por etapas,

com bases técnicas... de planos e programas com

objetivos definidos”. (Aurélio)

O planejamento strictu sensu pressupõe uma ação

consciente do poder público com vistas a atingir certos

objetivos em nível macroeconômico. Aí vale aduzir à

diferença entre o planejamento aplicado nas economias

de mercado em que as medidas propostas são

obrigatórias para o setor público, mas apenas indicativas

para o setor privado; e de outro lado o planejamento

aplicado nos sistemas de economia sem mercado livre,

socialistas ou comunistas (a que prefiro chamar pla-

nificação) em que o plano substitui o mercado e todas as

363

363

atividades econômicas são decididas compulsoriamente

pelo órgão central de planificação.

De qualquer modo, na economia de mercado, as

medidas apresentadas dentro do plano exigem certas

condições de formulação técnica que confiram coerência

e lógica ao planejamento.

Numa formulação esquemática, um verdadeiro

instrumento de planejamento deverá conter: o

diagnóstico da economia – os objetivos perseguidos – as

metas quantitativas a serem alcançadas durante a

vigência do plano – as políticas governamentais a serem

aplicadas – e os recursos a serem mobilizados. Em

alguns casos, os chamados planos, não passam de

declarações de política econômica indicando estratégias

e metas, ou de programas de desenvolvimento, incluindo

também prioridades e incentivos. A experiência

brasileira nos últimos 50 anos revela uma orientação

crescente para o planejamento completo, seguida, em

anos recentes, de um certo abandono desse objetivo

ambicioso.

É o que tentarei mostrar a seguir.

* * *

A experiência planejadora começou no Brasil

dentro do ambiente até aqui sumariamente descrito. Tal

como em outros países, a aproximação da Segunda

Guerra Mundial e, depois, sua explosão necessitavam

uma direção mais firme e articulada da economia

nacional. Ao lado do DASP (Departamento Adminis-

364

364

trativo do Serviço Público), já existente, apareceu o

CFCE – Conselho Federal de Comércio Exterior (1934),

que apesar de seu título limitativo, assumiu funções

mais abrangentes, chegando a pensar na formulação de

um verdadeiro planejamento econômico nacional.

Inicialmente foram arquitetados planos setoriais

de emergência exigidos pelas realidades bélicas: em

1939, o Plano Especial de Obras Públicas e

Aparelhamento da Defesa Nacional, cuja missão era “a

criação de indústrias de base, com a dotação da defesa

do país”. Em continuação, criou-se para outro

qüinqüênio e com praticamente os mesmos objetivos, o

Plano de Obras e Aparelhamento (1944).

Várias iniciativas do CFCE e do DASP resul-

taram na criação de órgãos visando ações planejadoras,

como a Comissão de Defesa Nacional, a Coordenação da

Mobilização Econômica, o Conselho Nacional de

Política Industrial e Comercial o qual chegou a fazer

uma proposta de planificação nacional – e culminando

com a constituição da Comissão de Planejamento

Econômico (1944). Sugestões no mesmo intuito plane-

jador partiram das comissões norte-americanas que

estudaram modalidades de cooperação e

desenvolvimento no Brasil: Taub (1942), Cooke (1943)

e Abbinck (1948).

Foi nesta época que ocorreu o célebre debate em

torno da necessidade do planejamento econômico, entre

Roberto Simonsen e Eugênio Gudin. Simonsen, parti -

dário do planejamento, considerava “aconselhável a

planificação de uma nova estruturação econômica, de

365

365

forma a serem criadas dentro de determinado período a

produtividade e as riquezas necessárias para alcan-

çarmos uma suficiente renda nacional”. Gudin, liberal

ferrenho, referia-se ironicamente a “mística do Plano” e

ao “equívoco de pensar que se pode conciliar o domínio

do Estado sobre a economia com a democracia política”.

O pós-guerra assistiu, pelas razões já expostas, à

expansão das políticas econômicas planejadoras em

regime de economia mista. O primeiro fato a assinalar

nesta fase foi durante o governo Dutra, o plano SALTE

(1948) que contudo não passava de uma exposição de

despesas governamentais prioritárias (Saúde, Alimenta-

ção, Transporte, Energia), sem uma definição rigorosa

dos recursos a serem mobilizados e sem uma indicação

dos instrumentos de ação. De fato, o plano SALTE teve

uma vida curta e bastante inexpressiva.

Um novo passo foi dado pela COMBEU

(Comissão Mista Brasil-EUA) cujo relatório final

(1953) constituiu quase um esboço de planejamento,

com um diagnóstico global da economia brasileira, a

identificação de objetivos prioritários e a elaboração de

projetos setoriais. Paralelamente, foi decretado o Plano

Nacional de Reaparelhamento Econômico (1951) o qual

entretanto não constituía um verdadeiro plano no

sentido amplo da palavra, mas sim, um programa de

mobilização financeira com vistas ao financiamento dos

projetos administrados pelo BNDE (Banco Nacional de

Desenvolvimento Econômico), criado na época.

Ainda neste período preparatório, uma contri -

buição importante foi dada pelo Programa de Metas

366

366

(1955) do presidente Kubitschek. Sem constituir um

plano global, o Programa de Metas representou contudo

um aprofundamento da tendência planejadora, não

apenas pela sua elaboração mais completa, mas também

pela sua confiança na técnica do planejamento – a visão

progressista e otimista do desenvolvimento a ser

realizado através do plano. A institucionalização dessa

técnica verificava-se na criação de um órgão

especializado de supervisão e controle – o Conselho de

Desenvolvimento – e de órgãos de execução e acom-

panhamento – os Grupos de Trabalho e os Grupos

Executivos.

Não se tratava de um plano global, mas apenas de

“um somatório empírico de objetivos de origem muito

variada e não totalmente compatíveis entre si” (Lorenzo

Fernandes). Pode-se definir também como um conjunto

de programas setoriais, sem cobrir por inteiro a

economia nacional. Implicava entretanto numa opção de

prioridades que podem ser identificadas nas suas

categorias de projetos elaborados, que previam as metas

físicas e quantificavam os investimentos.

Uma iniciativa de chegar a um verdadeiro plano

incluindo medidas de compatibilização financeira foi

feita através do Programa de Estabilização Monetária

(1958), o qual, por motivos políticos, não chegou a ser

implementado.

Apesar das limitações indicadas, o Programa de

Metas representou um passo efetivo na direção do

planejamento global. Este começou com o Plano Trienal

de Desenvolvimento Econômico e Social (1963-65) do

367

367

Governo Goulart. Foi deste momento até 1979 que a

atividade planejadora chegou ao seu auge, coma

elaboração de planos macroeconômicos globais e não

apenas pluri-setoriais, planos assumindo as caracte-

rísticas antes mencionadas. Vale observar que a adoção

da técnica plena de planejamento começou com um

governo estatizante, senão de objetivos coletivizantes: o

Plano Trienal declarava no seu prêmio o propósito de

“assegurar ao Governo uma crescente unidade de

comando dentro de sua própria esfera de ação”, e, ainda

mais, “criar condições para que dentro de poucos anos

possam ser introduzidas técnicas mais eficazes de

coordenação das decisões”.

Os dirigentes subseqüentes do planejamento do

período citado foram de convicções basicamente li -

berais, porém houve, a partir de 1964, a afirmação

explícita de que era necessário incutir um grão maior de

racionalidade no sistema econômico e para tal fim o

planejamento constituía o instrumento indispensável.

Essa posição teórica refletiu-se também numa

institucionalização do planejamento, primeiro, de

maneira mais limitada com a criação da Comissão e

Planejamento Nacional – COPLAN – de 1961 e, depois,

do Ministério Extraordinário de Planejamento e

Coordenação (1962), transformado mais tarde em

Secretaria junto à Presidência da República (1975).

A consolidação do planejamento em termos de

implementação e controle dos planos foi complementada

pela criação do Sistema de Planejamento Federal (1972)

– marcando o ápice da evolução.

368

368

Os partidários do planejamento não desconheciam

as suas limitações: a deficiência das informações

estatísticas apesar dos progressos feitos; a precariedade

das projeções e dos modelos econométricos; as

incertezas decorrentes da presença de um grande setor

privado; as eventuais surpresas oriundas do setor

externo; a descontinuidade administrativa. Aliás, para

garantir a coerência do planejamento, os últimos planos

dessa fase foram estabelecidos por períodos que

ultrapassavam a duração do mandato presidencial.

Entrementes, firmava-se a convicção da impres-

cindibilidade do planejamento. Essa confiança não esta-

va desprovida de perigos, pois tendia a uma concepção

de auto-suficiência: a técnica de planejamento parecia

constituir por si mesma uma garantia de sucesso, uma

espécie de irrealismo tecnocrático. Tanto é que um

observador percuciente, embora comprometido com o

planejamento, escreveu: “a expressão planejamento

assumiu em realidade qualidades de mística” (Roberto

Campos).

Os planos produzidos entre 1963 e 1980

refletiram essa confiança no planejamento e se

empenharam em organizar a economia de acordo com o

modelo planejado. Assim, o Plano Trienal de 1963

começa pela definição dos objetivos da ação econômica,

bem como as metas setoriais, procede a projeções

globais da economia, identifica certos condicionamentos

da política econômica, projeta os investimentos setoriais

necessários, e constrói o programa de desenvolvimento

até 1965 e às vezes, até 1970. O fracasso do Plano

369

369

Trienal, sua vida curtíssima se deveram, além das

inevitáveis mazelas do planejamento, às condições

sócio-políticas da época.

O Plano de Ação Econômica do Governo – PAEG

– para 1964/66 progrediu no sentido do aperfeiçoamento

da técnica de planejamento criando um plano no sentido

mais rigoroso da palavra, embora tenha declarado

modestamente que “não tem a pretensão de apresentar -

se como um novo plano de desenvolvimento, mas apenas

um programa de ação do governo no campo econômico”.

Não obstante, constitui um verdadeiro plano pelo

qual “a ação governamental complementa, mas não

necessariamente substitui os mecanismos de mercado” –

expressão que reflete o conflito implícito do

planejamento numa economia de mercado. O PAEG,

entretanto, esclarece que “o planejamento econômico

vai importar numa definição sistemática e coerente por

parte do Governo, das medidas tendentes à criação da

ordem dentro da qual operarão as forças do mercado”.

Com este propósito, o PAEG define inicialmente

os objetivos e instrumentos de ação, estabelece metas

quantitativas de crescimento, passa a explicitar as

políticas a serem aplicadas setorialmente e apresenta o

orçamento de investimentos do governo e os programas

setoriais, com projeções até 1970 ou mesmo 1980. O

empenho planejador aparece ainda na afirmação de que

o PAEG prepara “as bases para um planejamento mais

orgânico e de longo prazo”.

Essa ambição se concretizou ainda durante o

governo Castello Branco no preparo de um Plano

370

370

Decenal de Desenvolvimento Econômico e Social

(1967).

O roteiro dos trabalhos para a formulação deste

plano e sua implementação revela a decisão de proceder

a um amplo planejamento incluindo os elementos

indispensáveis de um verdadeiro plano, como já

mencionado, acrescentando um programa de

investimentos governamentais e privados e um

orçamento-programa para o período 1967/1971. A

despeito desses preparativos, a mudança presidencial

determinou o abandono do Plano Decenal mesmo antes

de ser inteiramente formulado.

Nos períodos presidenciais seguintes (Costa e

Silva/Médici) a atividade planejadora continuou

intensamente através de dois documentos que, apesar de

não ter o título explícito, constituíam verdadeiros planos

do teor dos antecedentes, em intenção e formulação:

Diretrizes de Governo – Programa Estratégico de

Desenvolvimento (1967) e Metas e Bases para a Ação

do Governo (1970). Em que pese o abandono do

ambicioso projeto do Plano Decenal, o interesse oficial

pelo planejamento não arrefeceu. Os dois diplomas

citados, com duração de 3 anos cada um, assumiram

feições de um verdadeiro plano, com maior ênfase no

último, embora este tenha declarado modestamente que

“não constitui novo plano global” mas “trata -se de

documento de sentido eminentemente prático e mais

voltado para a execução”.

O Plano Estratégico contém a definição dos

objetivos básicos; as diretrizes da política econômica; o

371

371

programa estratégico e as diretrizes setoriais; A inten-

ção globalizante manifesta-se em que entre os setores

abrangidos, figuram não apenas os existentes no PAEG,

mas também outros como a Justiça e as Forças Armadas.

Não obstante, o Programa Estratégico limita-se à de-

claração pormenorizada das políticas governamentais a

serem implantadas, sem metas físicas quantificadas (o

que representava um recuo em relação ao PAEG).

Tampouco continha previsões de recursos para inves-

timentos, mas pretendia orientar a elaboração de um

Plano Trienal do Governo de 1968 a 1970.

As Metas e Bases, apesar da ressalva citada,

acentuavam a tendência planejadora em caráter macro-

econômico nacional. As suas pretensões mais abran-

gentes aparecem já na definição dos objetivos, incluindo

enfaticamente “a grande tarefa nacional”, ou “as

conquistas essenciais”.

A mesma tendência globalizante aparece na

formulação da ação setorial que abrange vários setores

inclusive alguns sem caráter econômico. Ademais,

estabelecem-se metas físicas quantificadas bem como

projetos, com investimentos também quantificados. Por

outro lado, o plano devia ser completado por um novo

orçamento plurianual de investimentos, e subseqüen-

temente pelo I Plano Nacional de Desenvolvimento

Econômico e Social (I PND) com vigência em 1972/74.

Com este I PND que será seguido pelo II PND

(1975/1979) chegou-se ao auge da ação planejadora. O

entusiasmo por essa ação pode ter sido também reflexo

dos sucessos alcançados pela economia nacional da

372

372

época – a do “milagre brasileiro” que lhe foi par-

cialmente creditado, pelo menos no tocante à

racionalidade da direção econômica.

As maiores pretensões de planejamento mani-

festaram-se tanto na amplitude e sofisticação dos

objetivos nacionais propostos, como no detalhamento

das políticas, dos instrumentos de ação e menor

interesse pela construção imponente de planos

detalhados em objetivos, instrumentos e metas

quantitativas? Talvez simplesmente fosse a decepção

dos resultados alcançados após 1975, demonstrando que,

devido a outros fatores reais, a existência dos planos

não representa uma garantia de sucesso. Isso pode ter

correspondido também ao ressurgimento mais vigoroso

do pensamento liberal, ao que se acrescentou em tempos

mais recentes a divulgação das enormes dificuldades

enfrentadas pela economia soviética, desfazendo o velho

mito da panacéia da planificação centralizada.

A discrepância entre os objetivos planejados e as

realizações efetivas decorreu, em muitos casos, das

insuficiências administrativas – um perigo sempre exis-

tente e mais acentuado em épocas de confusão política,

social e moral como ocorreu no último qüinqüênio. A

inflação crescente constituiu igualmente um fator de

insegurança nas previsões e programações financeiras.

Mas aquela discrepância entre as realidades e as

pretensões da ação planejadora podia decorrer de um

fenômeno social assaz corriqueiro que é a tendência das

instituições de cresceram de maneira autônoma, sim-

plesmente por sua própria inércia, fora da realidade.

373

373

Mas, houve outro elemento perturbador muito

mais grave que foi a deterioração do cenário

internacional com os choques do petróleo de 1973 e

1979 e o colapso do sistema financeiro internacional em

1982, o que tornou extremamente precárias as previsões

– daí a flexibilidade recomendada pelo III PND. Em

tempos mais recentes, após a nova Constituição de

1988, a situação se complicou ainda mais devido à

maior força de decisão do Congresso Nacional em

matéria econômica e à maior autonomia dos Estados e

Municípios, limitando o poder planejador do Governo

Central.

É impossível prever a evolução futura do

planejamento econômico no País, mas continuando a

tendência recente, ela parece fixar-se na formulação,

pelas autoridades públicas, de um conjunto racional e

coerente de diretrizes setoriais, tanto para o setor

privado como para o público, dentro dos objetivos

maiores da comunidade, ficando os resultados,

quantitativos ou não, a serem conferidos a posteriori,

como um resíduo. Tal comportamento pragmático

justifica-se especialmente no caso de uma conjuntura

econômica ou política cheia de imprevistos.

BIBLIOGRAFIA

CAMPOS, Roberto de Oliveira. Economia, Planejamento e

Nacionalismo. Rio de Janeiro, APEC, 1963.

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LAFER, Betty Mindlin. Planejamento no Brasil . São Paulo,

Perspectiva, 1973.

LEWIS, W. Arthur. Os Princípios do Planejamento

Econômico. Rio de Janeiro, Fundo de Cultura, 1960.

(Transcrito de Carta Mensal, Rio de Janeiro, 36(428): 53-62,

Novembro 1990).

375

375

OS ANOS 80:

A DÉCADA PERDIDA

Tornou-se lugar comum na opinião pública

qualificar os anos 80 como uma “década perdida” ao se

referir à performance econômica do Brasil. Os fatos

parecem justificar a denominação, porém é sempre

aconselhável desconfiar das caracterizações globais.

Uma observação atenta poderia descobrir se alguns

momentos do período focalizado, ou certos setores da

economia nacional, se salvaram da qualificação pe-

jorativa. Mais importante, a análise seria eventualmente

capaz de identificar os condicionamentos negativos de

evolução – o que constituiria um não desprezível

ensinamento da História.

* * *

Para se ter uma idéia mais clara dos acon-

tecimentos, é preciso começar por descrever o cenário

internacional da década, de vez que ele foi determinante

sob vários aspectos, principalmente na primeira parte do

período.

A década se iniciou ainda sob o impacto do

segundo choque do petróleo de 1979 que surgiu ines-

peradamente, mesmo na opinião dos especialistas do

assunto e numa proporção muito maior do que no

376

376

primeiro choque de 1973: em pouco mais de um ano, a

cotação internacional de petróleo quase triplicou (1).

Essa mudança abrupta dos preços relativos abalou

toda a economia mundial, não poupando os países

industrializados. Entre 1980 e 1982 o comércio exterior

destes países se retraiu ou ficou estagnado, as suas

balanças comerciais tornaram-se deficitárias, conse-

qüentemente cresceu seu déficit em conta corrente do

balanço de pagamentos e diminuíram suas reservas

internacionais (2). É importante sublinhar que, para se

defenderem, os países industrializados adotaram práticas

protecionistas que afetaram os subdesenvolvidos, por

definição mais sensíveis às contrações do comércio

exterior. Ademais, o desenrolar econômico dos países

desenvolvidos foi atingido, refletindo-se na redução das

taxas de crescimento e no aumento do desemprego, o

que também provocou políticas autônomas de defesa

com prejuízo dos países em desenvolvimento (3).

Por outro lado, o choque do petróleo se ma-

nifestou também nas pressões inflacionárias: sob este

aspecto, o impacto foi mais rápido, já deste 1979,

prolongando-se até 1981 e afrouxamento em 1982(4).

Essa escalada de preços, exorbitante pelos moldes das

economias ocidentais, justificou políticas antiinflacio-

nárias que, no caso mais relevante dos Estados Unidos,

se deram no sentido da contenção monetária e creditícia

– o que resultou na alta vertical dos juros internacio-

nais(5), com efeitos desastrosos para os países em

desenvolvimento: primeiro, como eles haviam aumen-

tado seu endividamento externo no período entre os dois

377

377

choques do petróleo a fim de sustentaram seu

desenvolvimento na base de juros baixos, o ônus da

dívida externa se tornou insuportável(6); segundo, a alta

dos juros desincentivou a formação de estoques, o que

se refletiu na queda das cotações dos produtos primários

exportados pelos países em desenvolvimento. Essa

queda contribuiu para aliviar a situação dos países

industrializados que já tinham melhores condições para

reagir contra os efeitos negativos da crise (7). Quanto à

posição dos países endividados, embora aliviada pela

baixa das taxas de juros internacionais após 1982,

agravou-se devido à crise financeira inaugurada com a

insolvência da Polônia e a moratória do México (1982),

e ainda mais pelo fracasso da Conferência de Toronto,

em setembro do mesmo ano, que marcou um verdadeiro

colapso do sistema financeiro internacional.

A partir de 1983 a situação se normalizou, prin-

cipalmente nos países industrializados que comandavam

a economia mundial. Mais tarde foi possível afirmar-se

que “no conjunto, os anos 80 foram marcados pela

retomada da economia mundial” (8), embora os países

em desenvolvimento, como sempre, tenham se apro-

veitado menos da conjuntura favorável, e a Europa

Oriental tenha começado a sentir as perturbações da

liberalização.

A recuperação foi naturalmente creditada ao

progresso tecnológico, mas este fato se tornou também

prejudicial aos países menos desenvolvidos por reduzir

a dependência da produção em relação aos produtos

primários, cujas cotações caíram sistematicamente.

378

378

Entretanto, o crescimento do Centro foi beneficiado pela

liberalização da economia e a limitação das políticas

monetaristas contencionistas (Reagan e Thatcher). Um

certo abalo pareceu surgir com o crash na Bolsa de

Nova Yorque em 1987, mas suas repercussões negativas

sobre a economia real foram superficiais e passageiras,

perdendo-se entre os fatores positivos da recuperação.

Esta refletiu-se também no intercâmbio co-

mercial, favorecendo como habitualmente, os produtos

industrializados (9). Não obstante, persistiram aspectos

de guerra comercial, de caráter protecionista, embora às

vezes apresentados sob forma de defesa liberalizante

(por exemplo no contencioso comercial entre o Brasil e

os Estados Unidos).

Ademais, o problema da dívida externa dos países

em desenvolvimento continuou onerando pesadamente

as suas economias, cirando dificuldades de negociação e

estrangulamento nos balanços de pagamentos. Houve, aí

também, um certo desanuviamento demonstrado pelo

empenho em solucionar o impasse dentro de uma

cooperação internacional maior(10).

* * *

Pode-se agora tentar alinhavar alguns aspectos

característicos da década no Brasil, tanto os que

justificariam considerá-la “perdida” como os que, não

obstante, se apresentaram como elementos posit ivos.

1. O aspecto que provavelmente mais justificou

379

379

aquela qualificação negativa foi a desaceleração do

crescimento econômico. O III PND em 1979 tinha

declarado enfaticamente que “o Brasil não pode

renunciar ao crescimento”, mas entre essa decisão e a

realidade surgiram os imprevistos já mencionados: alta

do preço do petróleo, perda nas relações de troca, crise

do sistema financeiro internacional. Depois, os maus

resultados ficaram por conta de fatores internos, como

veremos mais adiante.

Nas condições adversas surgidas desde 1979, o

primeiro triênio acusou uma taxa negativa de cres-

cimento do PIB – uma ilustração da interdependência

econômica em escala mundial. Apesar disso, o cres-

cimento do PIB brasileiro se recuperou em 1984/87 –

prova de que a estagnação não é inelutável: afinal, o

Brasil já tinha estruturas relativamente sólidas, de-

correntes de uma lenta evolução secular e mais dinâmica

nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial. Pode-se

especular que a frustração da última década resultou

também do confronto com as excelentes conquistas

conseguidas durante o chamado “milagre brasileiro”. A

decepção tornou-se maior quando, depois do despertar

de 1984/87, a economia brasileira voltou a registrar

taxas baixíssimas ou mesmo negativas de crescimento

no último triênio da década (11).

No total a taxa anual média seria de 1,5% (para o

período 1981/90) ou de 2,8% (considerando o período

1980/89). Taxas modestas, sem dúvida. Não obstante,

não se comparam tão desfavoravelmente com as dos

outros países, mesmo dentre os industrializados.

380

380

Conclui-se, como consolo, que o hiato entre o Brasil e

os países mais avançados não cresceu, pelo menos na

maioria dos casos (12).

2. É oportuno incluir aqui um aspecto um tanto

positivo: a redução da taxa de expansão demográfica .

De acordo com o levantamento recentemente divulgado

pelo IBGE, a população do Brasil cresceu entre 1980 e

1990 à razão de 1,9% ao ano, de 119 para 143 milhões

de habitantes, demonstrando uma nítida desaceleração a

partir dos anos 50, quando o crescimento demográfico

se dera à razão de 3,1% anuais. Quanto às causas da

mudança, não há indicações concludentes: urbanização?

elevação das rendas? trabalho da mulher? alteração dos

padrões sociais ou morais? De qualquer modo, do ponto

de vista econômico, se a taxa de 3,1% se tivesse

mantido, a população no último ano da década teria sido

de 152 milhões e não de 143 efetivamente computados

em 1990: uma diferença de 9 milhões a menos de novos

brasileiros exigindo habitação, alimentação, infra-

estrutura e educação. De forma global com um

crescimento anual bruto do PIB de 2,8% e expansão

demográfica de 1,9%, há aumento líquido de 0,9% ao

ano em termos per capita; a taxa se tornaria negativa

com uma expansão demográfica de 3,1%.

3. A desaceleração do desenvolvimento econô-

mico é colocada, entre outros condicionamentos, em

função da diminuição da taxa de formação de capital .

O momento crítico foi em 1986: a taxa de formação

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381

bruta de capital começou a cair desde o início da década

até 1986 voltando a se recuperar em 1987/90.

Obviamente os reflexos sobre o crescimento foram

defasados por alguns anos, porém é extremamente

difícil avaliar essa defasagem.

Verificou-se, progressivamente, um retraimento

dos investimentos privados, tanto internos como ex-

ternos, como resposta a um estado de instabilidade

econômica, à incredibilidade do governo, à inflação

crescente e à falta de uma política econômica trans-

parente e coerente. Por outro lado, diminuiu o fluxo dos

investimentos públicos, esteio importante do processo,

devido à crise financeira do setor público. A des-

confiança, alimentada pelas negociações infrutíferas em

torno da dívida externa, também foi provavelmente uma

das principais causas da retração dos investimentos

estrangeiros, cujo ingresso anual caiu de cerca de US$

1,5 bilhão no início da década para a média de US$ 560

milhões em 1983/90.

4. A menção referente ao retraimento dos in-

vestimentos públicos nos leva à sua causa mais

imediata, responsável aliás por outras mazelas do pe-

ríodo: o permanente e elevado déficit público. Essa

situação decorreu de um conjunto de condicionamentos:

a queda da renda tributária (ineficiência, sonegação), o

aumento das despesas correntes (excesso de

funcionalismo, irracionalidade, outra vez ineficiência),

o peso crescente da dívida pública interna – um círculo

vicioso.

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382

O resultado global é percebido na centralização

do aumento crescente do déficit do setor governo nas

contas nacionais (13). Isto refletiu-se negativamente no

crescimento, pois o setor público se tornou um peso

morto ao invés de injetar recursos na economia. Na

medida em que isso se tornou conhecido, constituiu um

fator de desencantamento da sociedade com o Estado e

com os governantes – um fator de desagregação.

Ademais como já disse, o déficit público eliminou uma

fonte importante (não apenas em termos quantitativos,

mas também e, sobretudo estratégicos) na formação

bruta de capital. Por outro lado, o déficit público e seu

financiamento tornaram-se, na opinião quase unânime

dos técnicas, uma fonte perene de inflação.

5. Sem dúvida, o estado inflacionário crônico e

com repetidas tendências de crescer constituiu uma das

principais razões e de efeitos sociais mais patentes para

a qualificação da “década perdida”. A história é bastante

conhecida. A taxa inflacionária subiu em 1980/82 para

um patamar em torno de 100% anuais: foi o efeito da

alta de preços causada pelo segundo choque do petróleo

e pelas dificuldades do balanço de pagamentos. Mas a

inflação persistiu proprio motu: começaram a agir as

estruturas inflacionárias de que já tive oportunidade de

falar aqui (agosto de 1990). No triênio 1983/85 a taxa

anual da inflação flutuou um pouco acima de 200%

anuais, alimentada pelo déficit público e eventualmente

por alguns deslizes da política financeira, monetária e

cambial. A experiência heterodoxa do Plano Cruzado em

383

383

1986 propiciou, malgrado seu diagnóstico errado, um

alívio temporário – “a fugaz trajetória do cruzado” (14),

prejudicado por interesses políticos eleitoreiros.

Na falta de uma política antiinflacionária

adequada, a marcha continuou depois, apesar das

tentativas dos Planos Cruzados II, Bresser Pereira e

Verão. A taxa inflacionária que estaria num patamar

ainda razoável em 1986 subiu continuamente até certo

de 200% ao ano em 1989. No primeiro trimestre de 1990

ela flutuou em torno de 70-80% mensais, justificando o

temor de uma hiperinflação, se esta, na realidade já não

existia (15).

Esse ambiente inflacionário destorceu as relações

econômicas, desincentivou os investimentos, estimulou

a especulação financeira, contribuiu para o agravamento

do déficit público e, de forma global, criou a chamada

“cultura inflacionária”, com raízes fundas, resistentes,

no início da década seguinte. Numa palestra anterior

(junho de 1991) tentei identificar responsabilidades não

apenas do lado do setor público, mas também do corpo

social como um todo.

6. Coloca-se no passivo da década perdida o

considerável aumento da dívida externa do País. Ela

cresceu de US$ 53,8 bilhões em 1980 para US$ 97,7

bilhões em 1990. Este montante correspondia a mais de

três vezes a receita anual de exportação. E os juros

pagos naquele ano de 1990 foram de $ 8,7 bilhões

contribuindo basicamente para o déficit em conta

corrente do Balanço de Pagamentos. O aumento da

384

384

dúvida implicou num escoamento de recursos,

desequilíbrio cambial e ameaça para as reservas

internacionais.

De fato, essa situação fora parcialmente herdada

desde o período entre os dois choques do petróleo

(1973/79), quando foi decidido manter o ritmo do

crescimento econômico através do endividamento ex-

terno, aproveitando a liquidez financeira internacional e

o baixo nível das taxas de juros, às vezes negativas em

termos reais. A bomba entretanto estourou no fim dos

anos 70 e sobretudo no início dos anos 80 quando as

taxas de juros internacionais subiram verticalmente,

onerando os países endividados. A situação agravou-se

com a citada deterioração do mercado financeiro

internacional em 1982. A crise da dívida externa

representou um grande estorvo para a economia

nacional, embora se deva rejeitar a idéia de que todos os

males procediam desse lado. Mas o Brasil teve que se

submeter a penosas negociações, mais a moratória

unilateral temporariamente declarada em 1987 –

percalços que afetaram o conceito do País no cenário

mundial.

7. Nesta altura, é oportuno, para clarear um tanto

o panorama, acrescentar um resultado positivo: o bom

comportamento da balança comercial , especificamen-

te – a expansão das exportações. No início da década o

comércio exterior sofrera ainda o impacto do segundo

choque do petróleo: o preço deste produto estava alto, o

valor da importação era superior a $ 22 bilhões e com

385

385

uma exportação razoável, a balança comercial apre-

sentava ainda um pequeno saldo negativo.

Aos poucos, este cenário melhorou. Apesar da

queda das cotações dos produtos primários e de alguns

tropeços na política cambial, especialmente a manu-

tenção de uma taxa cambial supervalorizada para não se

constituir em foco inflacionário, o valor da exportação

subiu paulatinamente e num salto notável chegou a $ 33

bilhões em 1988/90 graças a uma política cambial mais

realista. Ademais, o sistema de incentivos fiscais e

creditícios, embora criticado, desempenhou um papel da

sustentação.

Entretanto, como fator adverso, continuava a

desfavorável posição das cotações internacionais dos

produtos primários. A resistência da receita de expor-

tação deveu-se a um grande esforço quantitativo,

principalmente nas vendas de produtos industrializados:

estes já eram responsáveis por mais de 50% do valor da

pauta em 1980, mas esta proporção chegou a 70%, ou

pouco mais, no último triênio da década.

Paralelamente a despesa com importações se

reduziu, em primeiro lugar graças à queda do preço do

petróleo importado e ao esforço de substituição pelo

petróleo nacional e pelo álcool. A euforia traiçoeira do

Plano Cruzado ensejou um certo aumento da importação

que atendeu a uma febre consumista. Porém, o cres-

cimento das importações veio no fim do período graças

a uma certa liberalização do setor.

Devido ao esforço exportador e ao alívio do lado

das importações de petróleo, a balança comercial se

386

386

tornou superavitária, por um montante anual médio em

torno de $ 11 bilhões, ultrapassado substancialmente em

1988 e 1989(16).

Os sucessos alcançados na balança comercial

permitiram reduzir o desequilíbrio em conta cor rente do

balanço de pagamentos, desequilíbrio esse a ser

debitado na conta de serviços, mais especificamente às

despesas com juros. Ao longo da década, o déficit em

conta corrente foi mantido na média anual de $ 2,7

bilhões. Isso representou um relativo al ívio para o

equacionamento do grande problema do endividamento

externo.

8. Para enriquecer a conta positiva da década,

vale detalhar um pouco mais o caso do petróleo. Ainda

que se possa fazer restrições em termos de ritmo de

crescimento, eficiência e modernização tecnológica, é

preciso reconhecer que a década registrou nítidos

progressos na produção nacional de petróleo bruto (17),

embora se possa observar uma desaceleração quando se

afrouxou a pressão do preço do petróleo importado.

O chamado balanço do petróleo melhorou

sensivelmente, no sentido de que a parcela do petróleo

nacional aumentou em termos absolutos e relativos no

consumo total(18). Conseqüentemente a despesa de

importação que somava mais de $ 10 bilhões em 1981,

caiu para cerca de $ 4 bilhões em 1990, evidentemente

também por conta da queda dos preços.

O alívio veio também da substituição energética,

especialmente pelo álcool. Nesta área, apesar das

387

387

restrições ultimamente feitas ao Programa Proálcool, os

progressos foram inegáveis. Mas aí também a euforia

provocada pela queda das cotações internacionais, do

petróleo resultou num afrouxamento: entre 1985 e 1990

a produção do álcool ficou praticamente estacionária.

Não obstante, a performance do setor energético pode

ser colocada no ativo da década. Quanto ao atraso

tecnológico, essa faceta negativa não se limitou ao setor

energético, mas, sim, abrangeu vários segmentos da

indústria, em decorrência dos fatos já apontados: o

retraimento dos investimentos e as dificuldades do

balanço de pagamentos – aos quais podem ser

acrescentadas certas políticas isolacionistas do tipo da

lei da informática de 1984.

9. Talvez seja lícito condenar a “década perdida”

por não ter resolvido ou pelo menos atacado com

suficiente vigor o problema das disparidades das

rendas pessoais. Nisso, o pecado vem de longe. De

acordo com os levantamentos mais recentes, ainda que

inevitavelmente precários, a concentração da renda teria

aumentado na década: os 10% mais ricos da população

detinham em 1981 45,6% da renda nacional, elevando-se

para 52,3% em 1989; os 1% mais ricos evoluíram de

13% para 17,3% da renda total; em contrapartida o

quinhão dos 10% mais pobres caiu de 0,9% para 0,6%.

Em números absolutos, cerca de 14 milhões de pessoas

deteriam mais de metade da renda, enquanto os demais

126 milhões se limitariam aos restantes 47%. A certa

altura sustentou-se que o Plano Cruzado teria provocado

388

388

uma salutar redistribuição da renda, mas foi simples

ilusão decorrente da explosão do consumo. Como

novidade entre os fatores desequilibradores vale

mencionar o crescimento de uma classe privilegiada de

altos rendimentos, formada pelos detentores do poder

público, em todos os níveis funcionais e regionais –

reflexo do crescimento da estatização na economia.

Não obstante, apesar da persistência do que se

acostuma chamar “a dívida social”, as mazelas do

cenário distributivo se amenizaram sob alguns aspectos:

na proporção das pessoas alfabetizadas embora ainda

tristemente baixa; no número relativo de residências

com abastecimento d’água, com iluminação elétrica, e

com coleta de lixo. Pelo menos sob esses aspectos, a

década não foi totalmente perdida. (19) Entretanto,

apesar do mencionado programa em matéria de

alfabetização, continuou, em estado idêntico, a

deficiência educacional – mas o assunto sai do campo

estrito da Economia, embora seus efeitos se sintam em

todos os setores, inclusive econômicos.

* * *

Será que a experiência histórica da década

permite tirar algum ensinamento, descobrir explicações

ou, por ventura, estabelecer responsabilidades? Sem

dúvida, como sempre num processo social, há

obrigatoriamente uma herança do passado, abrangendo

instituições, hábitos, idéias e atitudes coletivas. O

fenômeno é irreversível e só resta lamentar os efeitos

389

389

negativos ou louvar os positivos. Da mesma forma,

devem ser aceitos com resignação os fatores exôgenos

que afetaram o início da década. Alguns desses fatores

tiveram efeito retardado após 1985, podendo-se apenas

censurar o insuficiente empenho em curar os percalços

do passado. Mas caberiam nisso algumas circunstâncias

atenuantes.

Passada a crise internacional do início da década,

o Brasil aproveitou também a conjuntura favorável,

apesar da herança incômoda representada pela divida

externa. Depois, num ambiente internacional propício, a

chamada Nova República entrou num processo de

deterioração econômica, com o crescimento baixo e às

vezes negativo, com inflação crescente beirando formas

hiperinflacionárias e com a desarrumação generalizada

da economia dentro de um ambiente político-social

perturbado.

Entretanto, o segundo qüinqüênio dos anos 80

iniciou-se sob o signo da euforia e da esperança: fim do

regime militar, democracia ainda que numa forma algo

tumultuada e irracional, eleições livres, mais tarde uma

nova Constituição supostamente mais liberal, e mais

moderna, na medida em que estas duas qualificações não

fossem interpretadas de maneira contraditória.

Nesta segunda metade do decênio, houve também

alguns aspectos positivos, como já assinalei, aspectos

esses ligados à vitalidade e inércia de uma sociedade e

de uma economia assaz maduras. Mas os percalços

subsistentes não podiam mais explicar-se por fatores

externos adversos.

390

390

Vimos que, em vários momentos da exposição

histórica apareceu a responsabilidade do setor público,

tanto na eclosão de crises como na incapacidade de

sanar as surgidas fora do setor. A responsabilidade do

governo (usando o termo num sentido abrangente a

todos os detentores do poder) foi sempre ressaltada

devido à capacidade, com seu poder político/econômico,

sobretudo num modelo de intervencionismo estatal, não

apenas de alterar os rumos da economia e as relações

entre os agentes econômicos, mas também de influenciar

o comportamento do corpo social, suas ações e reações.

Como desculpa de ordem geral, pode-se alegar

que os governos dos anos 80 foram confrontados com

três problemas básicos cujas soluções pareciam

incompatíveis: manutenção do crescimento econômico,

equilíbrio do balanço de pagamentos e combate anti -

inflacionário. O III PND, no final da década anterior,

tentou compatibilizar os objetivos através da ênfase

conferida à expansão da produção agrícola. Entretanto,

outras metas de curto prazo vieram prejudicar a linha

mestra adotada, e por outro lado, como parecia

inevitável, foram cometidos certos erros táticos, como

por exemplo, na opinião de alguns técnicos, a pré-

fixação da correção monetária e cambial ou a

manipulação dos índices da correção monetária a qual

afugentou os poupadores.

Havia, apesar de tudo, uma perspectiva

alvissareira ligada à renovação política – tal como

acontecera quando da Proclamação da República.

Infelizmente, o que se considerou como uma vitória

391

391

política não teve reflexos benéficos sobre a economia

nacional. De forma geral, o período de transição, já

delicado por definição, se processou num clima de

confronto e não de consenso, como se esperava

inicialmente. A euforia da abertura política desembocou

numa ilusão democrática que assumiu matizes quase

anárquicas, provocando confusão administrativa,

conflitos de competência e politização espúria. Assim, a

economia foi desprovida do indispensável respaldo de

sólidos quadros político-jurídicos, numa palavra, o

afastamento de um Estado de Direito, condição

indispensável do bom funcionamento da economia.

Um relato histórico fiel registraria muitos

episódios ilustrativos do quadro esboçado. Exempli

gratia, seria suficiente citar dois casos: a frustração do

Plano Cruzado, cujos efeitos foram totalmente

pervertidos por interesses eleitoreiros; e a campanha

pelo mandato presidencial de 5 anos, a qual resultou em

desperdício financeiro e desmoralização do poder

público. Frustraram-se as esperanças colocadas no papel

regulador, equilibrador da nova Constituição de 1988. O

resultado foi um texto híbrido, confuso, às vezes

contraditório: para citar dois exemplos, a descentra-

lização financeira que transferiu recursos para Estados e

Municípios sem a devida contrapartida de obrigações; e

a manutenção de alavancas estatizantes, em contradição

com o discurso liberal.

A confusão administrativa e a politização con-

tribuíram fortemente para a acentuação do mal básico

que era o déficit público. Da impotência de eliminar

392

392

esse déficit decorreu a permanência de um foco in-

flacionário, a diminuição da capacidade de investimento

e a desregulamentação geral da economia.

A degradação do poder e a permissividade daí

decorrente, a confusão administrativa, a incredibilidade

do governo e a desarrumação da economia provocaram

várias reações negativas entre os agentes econômicos: a

recusa de investir, isto é, de acreditar no futuro da

economia nacional; a fuga de capitais para o exterior; a

sonegação fiscal; a corrupção; a resistência a qualquer

medida reformista saneadora; a especulação (a ciranda

financeira propiciada pela ineficiência das medidas

antiinflacionárias); a adoção de medidas individuais de

defesa, eventualmente ilegais contra a inflação; a fuga

da ordem legal como no caso da expansão da economia

informal ou clandestina.

De forma geral e numa avaliação mais pessimista,

assistiu-se a uma certa ruptura entre a sociedade e o

poder público, e ainda mais a uma verdadeira crise de

solidariedade e cooperação. A culpa vai possivelmente

em primeiro lugar para os governantes cujo

comportamento induz e justifica em grande parte as

atitudes do corpo social, a não ser que se trate de um

fenômeno de raízes mais profundas, ligado à crise moral

de caráter mais generalizado em espaço e tempo.

É sob este ângulo que entendo a expressão “a

década perdida”.

Palestra proferida em 21 de maio de 1992.

393

393

NOTAS

(1) Em fins de 1979 a cotação do petróleo era de US$ 12,70. Em

abril de 1979 já atingia US$ 14,54, em julho US$ 18,00. Um ano

mais tarde, em novembro de 1980 alcançava US$ 32,00 e um ano

depois US$ 34,00 por barril; depois começou a queda.

(2) O comércio exterior (turnover) de 6 países princip ais –

Alemanha Ocidental, Estados Unidos, França, Itália, Japão, Reino

Unido – caiu de US$ 1784,9 bilhões em 1980 para US$ 1667,6

bilhões em 1982.

(3) A taxa de crescimento média do PND dos países

industrializados caiu paulatinamente de 3,6% em 1979 para 0,8%

em 1982.

(4) Ainda nos seis países selecionados, a taxa média da alta dos

preços ao consumidor subiu até 12,5% a.a. em 1980 e se reduziu

para 7,1% em 1982.

(5) Em 1978 a taxa Prime era de 11,75% e a Libor 12,50%; em

1980 chegaram a 21,50% e 16,40% respectivamente; em 1982

eram ainda de 14,60% e 13,60%.

(6) A dívida externa dos países em desenvolvimento cresceu de

US$ 276,4 bilhões em 1978 para US$ 505,2 bilhões em 1982.

(7) A história e análise do segundo choque do petróleo encontram -

se em dois livros de Ernane Galvêas: A Crise do Petróleo . Rio de

Janeiro, APEC, 1985 e A Saga da Crise . Rio de Janeiro, Forense

Universitária, 1985.

(8) Le Nouvel Etat du Monde – Bilan de la Décennie 1980-1990.

Paris, La Découverte, 1990.

(9) O comércio internacional de mercadorias cresceu de um total

de US$ 1990 bilhões em 1980 para US$ 2880 bilhões em 1988.

Nesse total, e entre as mesmas datas, o volume do comércio

394

394

cresceu 3% nos produtos minerais, 18% nos produtos agrícolas e

52% nos produtos manufaturados. Quanto à origem das expor-

tações, as dos países industrializados aumentaram de 62,5% do

total em 1980 para 70,3% em 1988, enquanto as dos países em

desenvolvimento diminuíram de 29,6% para 21,6% do total.

(10) Como exemplos as reuniões de Nova Yorque em 1985 entr e

os Estados Unidos, Reino Unido, França, Japão e Alemanha ou os

acordos subseqüentes de Paria (1987) e as tramitações dos Sete

Grandes ainda em Paris em 1989. Neste último ano surgiu também

o Plano Brady para facilitar a conversão e liquidação das dívidas

externas.

(11) Em 1981/83 a taxa acumulada foi de 7,1% negativos; em

1984/87 houve aumento de 26,6%; em 1988/90 voltou a ser

negativa em 1,6%.

(12) Os dados sobre o Brasil foram extraídos principalmente da

coleção de anuários A Economia Brasileira e suas Perspectivas.

Rio de Janeiro, APEC, 1981-1990.

(13) Esse déficit foi de 1,5 a 4,7% do PIB em 1980/84, subiu para

a média de 10% em 1985/87 e chegou a 15% ou mais nos anos

seguintes.

(14) No livro do mesmo nome, de Julian Chacel – Rio de Janeiro,

JMC, 1987. Sobre o mesmo assunto ver, de Ernane Galvêas, As

Duas Faces do Cruzado, Rio de Janeiro, APEC, 1987.

(15) A evolução medida pelo índice geral de preços – dispo-

nibilidade interna, foi a seguinte: 65% em 1986, 416% em 1987,

1038% em 1988, 1786% em 1989.

(16) O superávit comercial registrou os seguintes valores depois

dos fracos resultados de 1980/82 (em US$ bilhões):

1983 – 6,5 1987 – 11,2

1984 – 13,1 1988 – 19,2

1985 – 12,5 1989 – 16,1

1986 – 8,3 1990 – 11,0

395

395

(17) A produção nacional de petróleo bruto subiu de 10.785 mil

m3 em 1980 para 37.777 mil m

3 em 1990.

(18) Em 1980 para um consumo global de 1.094 mil bl/d apenas

17% cabiam ao petróleo nacional; em 1990, de um consumo de

1.225 mil bl/d já 50% eram nacionais.

(19) A parcela de pessoas alfabetizadas acima de 5 anos de idade

cresceu de 58,6% para 66,1% entre 1980 e 1989. As residências

com abastecimento d’água aumentou de 60% para 73% do total, as

com iluminação elétrica, de 75% para 87%, as com coleta de lixo

de 49% para 63%.

(Transcrito de Carta Mensal, Rio de Janeiro, 38(447): 53-62,

Junho 1992).

396

396

DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO:

CONDICIONAMENTOS

Embora se enquadrando no tema do desenvol-

vimento econômico, minha palestra adota um enfoque

limitado, a saber, da sua interdependência com o

conjunto cultural histórico. Assim sendo, não pretendo

tratar do comportamento propriamente dito do desen-

volvimento (produto, renda, emprego, etc.), mas tentar

identificar os condicionamentos do processo no Brasil

das últimas décadas.

É ocioso lembrar que os elementos condicio-

nantes imediatos são puramente econômicos: trabalho,

poupança e investimento, tecnologia. Isto corresponde

ao processo básico. No seu livro clássico sobre o

assunto, W. Arthur Lewis coloca o mecanismo da

causalidade em três níveis: primeiro, os recursos

naturais disponíveis e o comportamento humano; este

por sua vez, abrange como causas imediatas o esforço

para economizar, o aumento do conhecimento e sua

aplicação, e a expansão do volume de capital; por baixo

ficam as causas de terceiro grau: as instituições e as

crenças (diria melhor o sistema de valores) que

determinam o comportamento humano.

Os estudiosos enfatizaram a importância do cabedal

cultural que se encontra nos alicerces do desenvolvimento

econômico “São as mudanças nos valores que os homens

397

397

emprestam à vida... que são de importância decisiva na

orientação dos esforços econômicos em novas direções.”

(John U. Neff) “As forças econômicas devem ser

consideradas dentro de uma matriz sócio-cultural... fatores

políticos, sociológicos e psicológicos são altamente

relevantes... uma completa consideração dos esforços de

uma nação para levar a bom termo o seu desenvolvimento

econômico abarca a totalidade de sua história cultural.”

(Gerald Meier – Robert Baldwin).

Assim sendo, tratarei das diversas manifestações

da sociedade – idéias, atitudes, instituições e políticas – a

respeito do processo de desenvolvimento: primeiro, os

fatores relacionados aos “quadros” do processo que

formam o seu ambiente espaço-temporal: quadro natural,

quadro humano, e quadro histórico. Em seguida abordarei

os fatores ligados às diversas facetas da sociedade:

fatores culturais, sociais, político-jurídicos e econômicos.

Há neste empreendimento várias limitações. Foi

inevitável proceder a generalizações que podem fugir à

realidade, face às variedades horizontais e verticais no

comportamento da sociedade brasileira. Por outro lado,

os fatores a serem avaliados são, na maioria, de caráter

qualitativo de modo que as avaliações podem ser

altamente subjetivas. Espero que, generosamente, o

auditório as aceite como hipóteses sujeitas a discussão.

* * *

De acordo com o propósito desta palestra, ao

abordar a questão do quadro geo-fisiográfico não

398

398

procurarei apontar as realidades físicas, mas, sim, o

comportamento da sociedade perante as alterações do

quadro. Em primeiro lugar está a resposta ao desafio da

escassez, uma resposta quantitativa – a ocupação de

novas áreas – mas também qualitativa em que se

incluem as medidas adotadas contra secas e enchentes.

(1) Não se deve desprezar o fato de que a

disponibilidade de terras pode trazer ainda a propensão

para cultura extensiva, desperdício e dispersão dos

núcleos produtivos, embora amenizada pelo progresso

dos transportes e da tecnologia.

Apesar da amplitude dos recursos disponíveis,

aumentaram, pelo menos em certos círculos, as

apreensões quanto ao futuro esgotamento. Voltarei a

falar sobre essa campanha ecológica.

No setor energético, entretanto, a resposta

brasileira ao desafio da escassez foi basicamente

positiva, com a adoção de um vasto programa de

substituição dos derivados do petróleo pelo álcool de

cana-de-açúcar, além da intensificação da produção de

petróleo da plataforma marítima (2) e o ingresso no

campo da energia nuclear. A sociedade soube mobilizar-

se diante do desafio, ficando os percalços por conta das

inevitáveis limitações culturais e tecnológicas.

* * *

No que tange ao quadro demográfico, o que nos

interessa, tal como no caso do quadro natural é o

comportamento da sociedade diante da configuração e

399

399

evolução deste quadro. Algumas décadas atrás,

provocou preocupação a elevada taxa de expansão

demográfica, dado o ônus que tal fato tinha na estratégia

desenvolvimentista. Foram aventadas medidas racionais

para reduzir tal avalanche demográfica, mas a resposta

predominante da sociedade não foi muito favorável: o

hábito, a inércia, a oposição de diversos segmentos da

sociedade, resultaram numa certa insensibilidade ou

mesmo oposição a qualquer política de controle da

natalidade. Ademais, o problema perdeu sua acuidade,

pois em tempos mais recentes a taxa de expansão

demográfica caiu para patamares mais aceitáveis,

ficando contudo elevada nas camadas mais pobres da

população, de modo que o problema passou para o plano

da distribuição da renda.

A diminuição da taxa de crescimento popu-

lacional refletiu-se forçosamente na pirâmide etária em

que, 40-50 anos atrás, dominava fortemente a faixa da

população jovem, com certo desinteresse pelo grupo dos

mais idosos: era, e ainda é parcialmente, dada

preferência aos mais jovens na distribuição do emprego,

o que sob a ótica do desenvolvimento constitui van-

tagem em termo de dinamismo, porém perda em termos

de experiência e racionalidade. A solução transfere-se

para o terreno da educação (3).

* * *

Passando para o quadro histórico, pode-se dizer

que ele se apresentou sob luzes assaz favoráveis.

400

400

Começou com a euforia do fim da Segunda Guerra

Mundial, com a paz garantida pelo medo da catástrofe

atômica e com um esforço, no plano internacional e

regional, de cooperação e integração. O Brasil tirou

proveito da conjuntura, embora tenha adotado

inicialmente um modelo de crescimento introvertido.

Um aproveitamento do bom ambiente externo tornou-se

mais efetivo após 1964 quando o país adotou um modelo

aberto de desenvolvimento econômico. Como já aludi,

as mazelas provocadas pelo choque de petróleo de 1973

foram superadas, mas o de 1979 e a crise do sistema

financeiro internacional não permitiram a mesma

resposta positiva de um Brasil já fortemente endividado.

Uma possível reação positiva foi prejudicada, vez por

outra, por fatores internos, principalmente políticos, de

que falarei oportunamente. Mas acho que subsistiu uma

certa desconfiança em relação ao mercado internacional.

* * *

Vamos tratar agora do comportamento da socie-

dade em termos da realidade cultural global. Referindo-

nos, primeiro, ao ideário relativamente dominante, a

primeira pergunta seria se a sociedade desejava o

desenvolvimento econômico? E a resposta é claramente

afirmativa, não apenas por corresponder a faceta perene

da natureza humana, mas também por ser motivada pelo

baixo nível de renda e pela ocorrência da miséria e da

pobreza absoluta.

O avanço do materialismo, nocivo sob vários

401

401

aspectos morais, pode ser considerado como fator

indutivo do esforço desenvolvimentista. Talvez não haja

mais a euforia dos “50 anos em 5” ou do milagre

brasileiro, mas a confiança não falta, apesar dos

atropelos e das decepções da política. Não se deve

subestimar o efeito-demonstração, exacerbado pelo

poder crescente da mídia – o que desemboca às vezes

em imediatismo e numa certa impaciência contrapro-

ducente. De qualquer forma, a sociedade, pelas suas

elites, firmou-se na crença no desenvolvimento e no seu

tratamento racional.

Falando em crenças e racionalidade, pode ser

vista com desconfiança a proliferação de algumas seitas

religiosas de nível excessivamente primário, as quais

demonstram dose excessiva de fatalismo e se apegam às

práticas mágicas, o que desvia do esforço consciente

exigido pelo progresso econômico.

Num plano mais positivo assistiu-se ultimamente

a uma certa desclassificação do desenvolvimentismo em

favor do distributivismo. Esta mudança de prioridade

acentuou-se nos anos 70: a política desenvolvimentista

de JK, por exemplo, não foi questionada do ponto de

vista do distributivismo. Este interesse, evidentemente,

não pode ser descartado, mas a sua ênfase no ideário da

sociedade não deixa de constituir uma complicação para

a política desenvolvimentista: nada mais difícil do que

compatibilizar objetivos.

É fato que existe um crescente inconformismo

com a reinante distribuição da renda, o qual às vezes

parece ligado a uma contestação global do sistema –

402

402

negativismo extremamente nocivo. Não obstante, as

preocupações distributivistas não prejudicam radical -

mente o interesse pelo esforço desenvolvimentista. Este

está sendo ainda considerado ligado à industrialização,

embora o industrialismo tenha perdido algo do seu

ímpeto em favor de uma visão mais globalizante da

economia. A agricultura permaneceu algo margina-

lizada. A idéia de uma reforma mais ampla no campo

fez pequenos progressos, sem que a sociedade encontre

uma solução mais harmoniosa e eficiente em termos de

estrutura agrária e produtividade agrícola (4).

Outra complicação surge do nacionalismo

econômico. Numa forma equilibrada ele se mostrou

fator dinâmico do progresso e atuou proficuamente.

Entretanto nas suas formas mais radicais foi

contraproducente (por exemplo, na reserva de mercado

em informática). Apesar da onda internacionalizante,

tais posições puderam desviar as decisões de política

econômica para uma emotividade irracional. Na mesma

categoria podem ser incluídas manifestações antiliberais

e, como subproduto espúrio tão conhecido, o anti -

americanismo. Tudo isso redunda na redução da

capacidade de absorver poupança e tecnologia externas

com prejuízo do ritmo do desenvolvimento. O fato foi,

contudo, de efeitos limitados.

O desenvolvimento sofreu também em tempos

recentes uma certa inibição por causa do ecologismo.

Sem dúvida, a preocupação ecológica é válida,

colocando em causa perspectivas de longo prazo, mas a

sociedade parece ainda perguntar-se em que medida o

403

403

presente deva ser sacrificado em prol do futuro.

* * *

No campo dos fatores culturais é de capital

importância o modo em que a sociedade encara e resolve

o problema da educação. Nisso é lugar comum lamentar

o atraso brasileiro, mas não se deve desprezar os

progressos realizados, inclusive no setor do ensino

técnico. (5) Os malogros do Mobral não afetam a

qualificação positiva que se pode conferir ao esforço

educacional.

O que merece destaque é o interesse crescente

que o problema educacional despertou na comunidade,

não apenas nos círculos acadêmicos que nas últimas

décadas reservaram atenção maior a educação como

fator de desenvolvimento. Como comparação, vale

lembrar o reduzido espaço que a educação ganhou nos

primeiros planos econômicos até 1965. A própria

opinião pública começou a enfatizar a educação como

condição sine qua non do progresso. Constitui uma

realidade auspiciosa o interesse dos jovens pela melhora

do seu nível educacional, embora às vezes esse interesse

não seja acompanhado pela aceitação dos meios algo

penosos de realizá-lo.

No que tange ao conteúdo da educação, pode-se

aplaudir sob um certo ponto de vista o abandono do

beletrismo do século passado e a adoção de um ensino

mais pragmático, mais técnico, mais voltado para os

resultados práticos, embora possa ser questionado o

404

404

materialismo reinante e uma certa desqualificação do

humanismo. Às vezes esquece-se a importância dos

fatores éticos na boa atuação dos agentes econômicos.

Aqui entra em jogo a opção da opinião pública,

mas surge a dúvida quanto ao conhecimento correto das

aspirações do corpo social. Esse conhecimento vem

praticamente através da mídia, cuja diversificação e

capacidade dominam crescentemente a formação de

opiniões populares, às vezes em formas destorcidas.

Decisões importantes relativas ao desenvolvimento

econômico puderam ser induzidas pela mídia para

fórmulas espúrias, por interesse ou simplesmente por

inépcia.

* * *

Agora vamos abordar os fatores sociais no

sentido restrito da palavra, isto é, ligados à estrutura e

ao funcionamento da sociedade. Acho que se deve

atentar primeiro para o fato de a sociedade brasileira ser

aberta em proporções satisfatórias. Apesar de restrições

feitas com o intuito de desmoralizar o sistema, parece-

me que predomina o “homem cordial”, o que constitui

boa garantia de cooperação, embora com o risco de

decisões emocionais. Alude-se às vezes à discriminação

racial, sobretudo quanto aos negros, mas acho que

muitos fatos concretos não permitem uma conclusão

radicalmente desfavorável.

A miscigenação funciona e a marginalização está

diminuindo: é suficiente olhar para o número de negros

405

405

e mestiços que atuam nos setores político, econômico e

cultural até nos escalões mais elevados. O desenvol-

vimento econômico só pode ganhar com a integração.

Isso demonstra outro aspecto positivo: a mobi-

lidade social vertical. Recentemente organizaram-se

louváveis movimentos de solidariedade e integração dos

denominados “excluídos” – movimentos contudo com

um certo matiz maniqueísta que, pela insistência em

denunciar a exclusão, parecem poder exacerbar conflitos

de classe, prejudicando a mobilização para o desen-

volvimento econômico.

A mobilidade vertical é impulsionada, entre

outras, pela recompensa que através de instituições ou

simplesmente atitudes, a sociedade reserva ao sucesso

econômico. Este oferece, além de riqueza ou bem-estar,

prestígio e poder, mas o caminho é invertido em muitos

casos: o sucesso econômico vai para a classe política ou

sua excrescência, a burocracia. Estes casos corres -

pondem a uma distorção nem sempre vantajosa para o

desenvolvimento econômico. De qualquer forma, dada a

falta de rigidez das estruturas sociais, não estão se

formando classes fechadas, com acesso privativo a

riqueza, apesar da relativa marginalização dos non

possidentes.

Pode-se falar também de um grau assaz elevado

de mobilidade horizontal. Se as migrações internas são

menores do que outrora, há ainda deslocamentos

populacionais entre regiões, sem grades resistências.

Pode haver competitividade regional devido a interesses

econômicos locais, como foi por exemplo a propósito da

406

406

criação de pólos petroquímicos no Nordeste e de

siderurgias no Sudeste, porém sem ameaçar profun-

damente o equilíbrio das decisões finais.

A mobilidade horizontal manifestou-se sobretudo

na transferência do campo para cidade. Fenômeno

complexo, a urbanização constitui processo normal de

reestruturação e modernização com efeitos salutares em

termos de crescimento da classe média, mais dinâmica,

mas a urbanização foi demasiado acelerada e algo

anárquica(6), daí resultando a favelização das cidades

com seus efeitos negativos. Ao mesmo tempo o campo

ficou esvaziado, sem poder compensar totalmente a

perda populacional por progressos técnicos e ins-

titucionais adequados. Por outro lado, a classe média

urbana cresceu desordenadamente, corroída pelo fisca-

lismo e pela inflação.

* * *

Passaremos agora para outra categoria de fatores,

os político-jurídicos, de grande peso no processo

econômico, em termos de organização, decisões

normativas e participação do governo na economia.

Comecemos com o governo, entendido como o

conjunto de todas as instituições públicas detentoras de

poder de decisão. No concernente aos grupos

participantes ao exercício do poder, o panorama parece

bastante equilibrado, sem preponderância acentuada de

algum grupo: latifundiários ou industriais, civis ou

militares, capitalistas ou sindicatos. Já aludi às

407

407

competições regionais, sem intensidade de natureza a

prejudicar o equilíbrio geral da economia. Ademais, é

suficiente lembrar que abalos políticos com os de 1954,

1961, 1964, 1985 e 1992 não interromperam radi-

calmente o processo do desenvolvimento. Em tese, a

abertura política foi fator de consolidação da economia,

mas esta foi afetada nos últimos aos por fatos que se

prendem em grande parte à própria abertura liberal, ou

melhor, aos seus excessos. (“a embriaguez da

liberdade”). Um elemento perturbador consistiu na

indefinição das relações dos Poderes constituídos,

resultando em conflitos de competência, bem como

choques em função da rotatividade dos agentes de

decisão. Essa descontinuidade administrativa esteve li -

gada também a politização, ao clientelismo e ao empre-

guismo que prejudicaram a racionalidade exigida pelo

desenvolvimento.

A descontinuidade administrativa contribuiu para

confundir os agentes econômicos e reduzir sua

eficiência. Amiúde, os empresários não sabem mais que

normas lhe serão impostas – daí a recente insistência

não transparência das decisões governamentais. Por

outro lado o quadro político-administrativo defende-se

via aumento de suas dimensões, corporativismo e

proliferação burocrática – fenômeno ligado ao próprio

modelo de intervencionismo estatal e constituindo ao

longo dos anos um peso crescente para a livre expansão

da economia.

Muitos dos abusos estão ligados à crise moral,

aliás universal, que age de forma perversa sobre o

408

408

sistema do poder, contribuindo para acentuar a

desconfiança dos governados em relação aos gover-

nantes, e chegando às vezes a uma verdadeira ruptura

entre eles.

* * *

Para completar o cenário é preciso aludir às

políticas adotadas, não em seus pormenores de im-

plementação, mas apenas em seu espírito geral e nas

reações da sociedade a seu respeito.

E ponto pacífico que a orientação geral da

política econômica continuou sendo dominada pelo

liberalismo. Os programas de governo, mesmo no auge

do planejamento econômico, repetiram insistentemente a

fé nos princípios liberais, e a opinião pública teve de

modo geral as mesmas convicções, salvo uma minoria,

mais ou menos insistente e perturbadora, confessando

simpatias coletivistas, socialistas ou mesmos comu-

nistas. Tais posições tornaram-se mais discretas após a

queda do muro de Berlim, mas não desistiram.

A despeito da nota liberal dominante, o modelo

foi de uma economia mista com uma forte intervenção

estatal no processo econômico. Apenas recentemente

tomou-se posição mais firme no sentido de o Estado

desistir das atividades empresariais e se restringir a ação

normativa e supletiva e mais decidida em setores de

interesse comunitário. A índole individualista da

sociedade parece associá-la de forma orgânica ao

modelo liberal, mas é evidente que subsiste, com

409

409

bastante força, por hábito ou inércia, uma mentalidade

intervencionista ou de paternalismo estatal. Talvez se

trate de um círculo vicioso, mas muitas vezes as

resistências intervencionistas esconderam apenas

interesses corporativistas – veja-se a oposição do

funcionalismo de certos setores à política de

privatização.

Não obstante, domina a economia de mercado. E

a sociedade se integrou crescentemente no mercado, que

cresceu em termos relativos e absolutos com o aumento

da população, a elevação da renda e o crescimento das

dimensões físicas graças ao progresso dos t ransportes,

bem como através da expansão fora das fronteiras

políticas em decorrência da adoção após 1964 de um

modelo aberto de economia.

Apesar dos progressos feitos, o funcionamento do

mercado apresenta às vezes tropeços e contradições,

talvez por simples falta de tradição capitalista.

Distorções puderam decorrer dos abusos dos agentes ou

da própria intervenção excessiva do governo, da

exacerbação das práticas burocráticas e do aumento do

fiscalismo. Isto proporcionou outra distorção rotulada

como “economia informal”, eufemismo para indicar

práticas econômicas fora dos padrões legais. Como no

caso do intervencionismo, a atitude da sociedade oscila

entre a condenação teórica e a aceitação prática.

Na mesma ordem de idéias convém falar sobre a

atitude perante o fenômeno inflacionário. No plano

acadêmico perderam força as teorias que concediam à

inflação um papel desenvolvimentista. No plano social,

410

410

a inflação foi ainda mais desmoralizada depois das

repetidas experiências em que a alta de preços beirou a

hiperinflação. Mas, uma vez mais, pode-se detectar

imprevistos e contradições nas reações do corpo social.

A inflação crônica e a persistência das práticas

individuais ou coletivas de defesa antiinflacionária

criaram uma verdadeira mentalidade inflacionária, de

caráter especulativo, imediatista e egoísta, a qual

perturba o mercado.

* * *

Falta acrescentar alguns traços que me pareceram

mais expressivos do comportamento da sociedade a

respeito dos fatores de produção.

No capítulo trabalho, um ponto a assinalar é o

esvaziamento do preconceito em relação à participação

das mulheres, preconceito esse que de fato atingia

sobretudo as classes de posição social mais privilegiada.

Aí deve ser acrescentada a melhora qualitativa, visto

que os progressos educacionais atingiram a população

feminina ativa.

Por necessidade, hábito ou formação cultural

existe uma razoável propensão para o trabalho. Fala-se

vez por outra de uma “vocação lúdica” do povo

brasileiro, mas acho que qualquer generalização é irreal

por extrapolar hábitos de alguns grupos, em alguns

centros, sobretudo urbanos. A democratização da

sociedade, a redução de privilégios de classe ou de

casta, as imposições crescentes do próprio progresso

411

411

econômico e político representaram tantas motivações

para o trabalho. Esse ímpeto pode ter sido prejudicado

pela falta de recompensa devido a má distribuição da

renda, a inflação, aos excessos fiscais e outras

deficiências institucionais ou pela crise moral com seu

excesso de hedonismo. Entretanto há esforços no

sentido positivo: no plano puramente econômico devem

ser citadas as políticas redistributivas de renda, visando

às vezes de forma explícita a classe trabalhadora, como

nos projetos ainda não muito bem sucedidos de

participação de empregados nos lucros das empresas. O

fortalecimento dos sindicatos, salvo abusos demagó-

gicos, representa uma corrente de opinião equilibradora

com efeito sobre as decisões finais.

No caso da poupança e de sua contrapartida, o

consumo, manifestaram-se, tal como em outros casos,

contradições. De um lado uma crescente propensão para

consumo, o que se explicaria pela progressiva elevação

das rendas individuais, pelo efeito-demonstração exa-

cerbado pela mídia e talvez como reação do consumo

reprimido. Talvez se abuse da qualificação de con-

sumismo quando se trata de uma população na maioria

de rendas baixas e com grupos de pobreza e miséria.

Mas, em termos, a expressão contém um grau de

verdade, sobretudo no sentido de que muitos preferem o

consumo conspícuo ou ostentador em detrimento de uma

aplicação mais racional da despesa.

Não obstante, a poupança cresceu (8). É difícil

dizer se houve uma alteração profunda dos hábitos de

despesa ou se tratou apenas de flutuações conjunturais.

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412

Mas parece fora de dúvida que, sobretudo a partir de

1965, desempenharam papel positivo as inovações

institucionais que criaram novos instrumentos para

captação e aplicação da poupança.

As atitudes em relação ao capital são também

geralmente positivas, salvo certas posições ideológicas

minoritárias, principalmente a respeito dos capitais es-

trangeiros. Na maioria dos casos, os conflitos entre

capital e trabalho ou entre capitalistas e consumidores

não assumem proporções assustadoras, apesar do agra-

vamento provocado pela inflação. A classe empresarial

que se fortaleceu e se conscientizou paulatinamente,

desempenhou, com inevitáveis exceções de caráter

conjuntural ou pessoal, o seu papel positivo, mantendo o

nível de investimentos com a contribuição do setor

público. (9) Uma certa retenção do capital privado pode

explicar-se pela insuficiência da política governamental

em termos de continuidade e transparência. Persiste, por

outro lado, uma certa desconfiança em relação ao

conceito de lucro que alguns grupos estão tentados a

interpretar como uma espoliação.

O empresariado mostrou suficiente espírito de

inovação também, no que tange à tecnologia, com a

adoção de novas técnicas de produção baseadas na

automação e informática. Nisto merece destaque igual -

mente a adesão da mão-de-obra, demonstrando o

trabalhador brasileiro uma notável capacidade de

adaptação com vistas a elevação da produtividade, a

despeito do atraso geralmente verificado neste sentido.

Sem dúvida, a adoção de técnicas capital-intensivas

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pôde prejudicar o objetivo de criação de empregos – é

mais um exemplo da dificuldade de compatibilizar

objetivos conflitantes. Acho que em geral prevaleceu o

espírito modernizador e renovador da sociedade: embora

reconhecendo a necessidade de criar empregos, mostra-

se maior atração pelo uso intensivo da inovação

tecnológica.

Recapitulando, o posicionamento em relação ao

trabalho feminino, à diversificação da poupança e à

modernização tecnológica constitui fator auspicioso

para o futuro do desenvolvimento econômico.

* * *

Que conclusão pode-se tirar desta exposição, com

suas falhas e insuficiências? Afinal, a conclusão

consiste no que foi dito desde o início: o desen-

volvimento econômico é um processo extremamente

complexo, de equacionamento bastante aleatório, de vez

que entra em jogo uma multidão de condicionamentos

positivos e negativos. Quer isto dizer que o processo

deva ser deixado nas mãos da fatalidade? Obviamente,

não. O processo é de desafios e respostas, e estas

dependem da capacidade mais ou menos racional do

corpo social. O desenvolvimento econômico é feito pelo

homem, na medida em que, dentro das imperfeições de

sua natureza, o homem está capaz de enfrentar seu

destino.

Palestra proferida em 25 de maio de 1995.

414

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NOTAS

(1) A expansão da área cultivada foi de 232 milhões de hectares

em 1945 para 376 milhões em 1985 (aumento de 62%, menor do

que o crescimento demográfico).

(2) O petróleo da plataforma marítima chegou a ser responsável

por 70% da produção nacional (1992). A produção de cana -de-

açúcar cresceu mais de três vezes entre 1970 e 1989, a de álcool

14 vezes.

(3) O perfil etário modificou-se também: a proporção de idosos

(de mais de 60 anos) aumentou de pouco mais de 40% (1955) para

quase 80% (1991) da população total.

(4) A proporção dos latifúndios diminuiu: a parcela dos

estabelecimentos de mais de 10.000 há caiu de 19% para 16% do

total e a dos mais de 100.000 ha caiu de 0,5% para 0,3% entre

1950 e 1980. Paralelamente houve aumento relativo das proprie -

dades de até 10 ha: 1,5% em 1940; 2,5% em 1980.

(5) Em 1995 havia ainda 18% de analfabetos na população maior

de 15 anos de idade: em 1960 essa proporção era de 39%.

(6) Entre 1940 e 1991 a população urbana cresceu de uma

proporção de 31,2% do total para 73,3%.

(7) Em 1940 apenas 19% da população economicamente ativa era

mulheres; essa participação subiu para 35 ,5% em 1990.

(8) Em percentagem do PIB, a poupança bruta subiu de 14% em

1947 para 20,6% em 1992, tendo passado por um auge de 21,8%

em 1972.

(9) A formação bruta de capital fixo subiu de 14,9% do PIB em

1947 para 18,0% em 1985.

(Transcrito de Carta Mensal, Rio de Janeiro, 41(485): 33-43,

Agosto 1995).

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CORRENTES DE IDÉIAS SOBRE

A ECONOMIA BRASILEIRA

(1965-1990)

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416

CORRENTES E IDÉIAS SOBRE A

ECONOMIA BRASILEIRA (1965/1990)

Neste trabalho tentei fazer um levantamento

sucinto de algumas idéias que dominaram a opinião

pública, as autoridades e os meios acadêmicos no Brasil

em matéria de economia e política econômica. Não se

trata propriamente de uma avaliação de tais idéias,

embora os juízes de valor sejam às vezes inevitáveis. O

objetivo foi basicamente histórico: expor o que

aconteceu com as convicções duráveis ou passageiras –

uma lição quanto à força, mobilidade ou fragilidade das

opiniões e teorias em voga no último quarto de século,

em confronto com os fatos históricos.

* * *

Nos anos 60 provocaram grande alarde,

comentários e eventualmente protestos as previsões do

Hudson Institute, publicadas no livro O Ano 2000 de

Kahn-Wiener. Vaticinaram que o hiato entre a renda per

capita do Brasil e a dos países industrializados

aumentaria muito até o fim do século. A relação da

renda per capita EUA/Brasil passaria de 12,7 para 20,1;

Alemanha Ocidental/Brasil de 6,8 para 15,4; Japão/

Brasil de 3,1 para 17,0 e assim por diante.

Os fatos, entretanto, encarregaram-se de refutar,

pelo menos parcialmente, as previsões do Hudson

Institute. Já entre 1965 e 1990, a renda per capita do

417

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Brasil crescera 104,8% (crescimento bruto de 281,3%,

menos expansão demográfica de 86,2%), alcançando

US$ 573 (em dólares de 1965), sensivelmente acima dos

US$ 506 projetados por Kahn-Wiener para o ano 2000.

Ademais, o hiato da renda per capita reduziu-se em

alguns casos (dados de 1988): 7,4 para os Estados

Unidos, 7,1 para o Canadá; e 6,4 para a França (em

1965: 12,7, 8,8 e 6,9 respectivamente). Em outros casos,

realmente o hiato aumentou: Japão, Alemanha Ociden-

tal, mas trata-se de países excepcionalmente dinâmicos.

O erro do Hudson Institute foi de proceder a uma

extrapolação linear a partir da fraca performance

brasileira no início dos anos 60 – um procedimento

bastante primário que prejudicou as previsões e, de uma

certa forma, contribuiu para desmoralizar a futurologia.

É verdade que Kahn-Wiener tiveram a precaução de

advertir em várias ocasiões que estavam trabalhando

num “horizonte livre de surpresas”. Mas isso é

irrealismo, pois o futuro está sempre cheio de surpresas.

De qualquer modo, tais procedimentos encontradiços em

vários planos e programas governamentais, confrontados

com as realidades diferentes, provocaram um certo

abandono das ilusões futurológicas e talvez uma

descrença na própria capacidade antecipativa da política

econômica.

A inexistência do horizonte livre de surpresas

proíbe, de certa forma, projeções de médio e longo

prazos, ou mesmo de curto prazo. O quarto de século

aqui focalizado incluiu pelo menos duas surpresas: os

dois choques do petróleo de 1973 e 1979. É curioso que,

418

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mesmo depois do primeiro choque, comentaristas

abalizados consideravam altamente improvável uma

nova escalada dos preços do petróleo. Mais uma prova

da precariedade das projeções.

* * *

Uma projeção destorcida, porém num sentido

otimista, verifica-se quando se fala, entre historiadores

e economistas, da taxa “histórica” do crescimento do

PIB brasileiro, de cerca de 7% ao ano. Sem dúvida que

tal simplificação não nega a existência de flutuações;

mas por que esses 7% representariam um nível “his -

tórico” normal? Na realidade a taxa média no quarto de

século enfocado ficou em torno de 5%. Os 7% cons-

tituem simplesmente a projeção de um curto período

relativamente favorável de 1956 a 1961. A taxa histó-

rica, isto é de prazo mais longo, por exemplo dos

últimos 100 anos, vem se verificado bem menor. A

escolha dos 7% é algo arbitrária e poderia ser con-

frontada com a média de 8,6% de 1967/1980 ou a de

1981/1990 que não passou de 1,5% ao ano.

A presença dessas flutuações nos leva ao

questionamento de outro conceito muito repetido nos

comentários. O de desenvolvimento auto-sustentado.

Esta expressão dá, por um lado, a ilusão de que o

desenvolvimento econômico, uma vez iniciado,

continuará sem interrupção ad infinitum e, ainda mais,

se acelerará de acordo com o admirável processo dos

juros compostos. Por outro lado, aquela expressão

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sugere a visão de um ideal autárquico, a de um país

totalmente fechado, isolado, que para crescer só precisa

de suas potencialidades próprias, dispensando qualquer

apoio de fora.

Sobre esta última ilusão falarei mais adiante.

Quanto à visão de um desenvolvimento auto-sustentável,

isto é, que continua hoje porque existiu ontem e

continuará amanhã uma vez que acontece hoje, esta

visão só pode ser aceita sob a condição de uma total

simplificação dos fatos históricos. Vimos, aliás, que tal

concepção mecanicista foi responsável por alguns

percalços da futurologia. No caso do Brasil, depois do

arranco razoavelmente identificado em torno dos anos

50, houve excelentes taxas de crescimento seguidas de

um curto período de estagnação ou até retrocesso

(1961/1966). Depois de um período brilhante

(1967/1973), houve altos e baixos com períodos

recessivos em 1981/83 e na passagem da penúltima para

a última década do século. Certos casos históricos

mostram até que a queda do crescimento pode

desembocar num verdadeiro colapso.

Evidentemente, num horizonte livre de surpresas,

internas ou externas, uma vez ocorrido o arranco, criam-

se condições para um desenvolvimento econômico

durável: expansão de alguns setores industriais

dinâmicos, maior capacidade de poupança e

investimento, mas sobretudo “a existência ou a rápida

eclosão de um arcabouço político, social e institucional”

(Rostow), o que permite falar-se em desenvolvimento

regular, uma situação normal ou bem “um progresso

420

420

continuado, embora flutuante” (idem).

Entretanto, as surpresas são inevitáveis e em

nossos tempos houve a oportunidade de se verificar as

possibilidades de reversão das tendências de

crescimento e de que a noção de desenvolvimento auto-

sustentado é válida apenas rebus isc stantibus.

Atendo-nos apenas ao último quarto de século,

assinalamos que a tranqüila marcha do desenvolvimento

econômico foi interrompida por fatores externos

adversos: os choques do petróleo e o colapso do

mercado financeiro internacional (1981/1983).

Estes últimos eventos ensejaram a retomada da

idéia escapista de que a responsabilidade dos males

recai sempre em cima do estrangeiro – o que seria um

argumento a favor do fechamento da economia nacional.

Entretanto os períodos recessivos no fim dos anos

80 e início dos 90 demonstraram que a auto-sustentação

do desenvolvimento constitui um engodo quando entram

em crise as condições políticas, sociais e institucionais

que ensejaram o arranco e seu desdobramento. Nos anos

60 começou a se sofisticar a idéia do desenvolvimento:

abandonada a fórmula simples do binômio “trans -

porte/energia” começou a se pensar num esquema

correto, baseado em poupança e trabalho, talvez com

maior ênfase na poupança, de vez que o trabalho era

considerado uma condição óbvia. Foi a essência do

modelo Harrod-Domar adotado como instrumento de

análise do PAEG de 1964.

Já no Plano Decenal de 1966 que se limitou a um

exercício macroeconômico sem ser implementado, a

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421

adoção do modelo Cobb-Douglas implicava na

introdução de fatores institucionais mais complexos.

Entretanto, a tendência mais característica da época foi

no sentido de colocar maior acento nos recursos

humanos e na educação, como parâmetros básicos do

desenvolvimento econômico. A ênfase era certíssima,

contudo parece que a educação foi pensada mais em

ternos quantitativos e, quando qualitativos, apenas sob o

ângulo do preparo tecnológico. De fato, o sucesso

econômico exige transformações culturais mais

profundas e as idéias evoluíram no sentido de que são

necessários esforços por uma mudança qualitativa da

sociedade, cuidando de outros aspectos como

racionalidade, responsabilidade, solidariedade. Os

fracassos da década perdida causaram uma certa

perplexidade, pois não parecia explicável a fraca

performance da economia brasileira quando não era

mais lícito responsabilizar por isso a conjuntura

internacional, já normalizada da segunda metade da

década de 80. Houve um certo despertar – talvez ainda

muito frágil.

* * *

Observou-se corretamente que uma explicação da

desaceleração do crescimento se encontraria na queda

das taxas de poupança e investimento. Mas por que

aconteceu tudo isso? O problema mereceria uma analise

mais pormenorizada que ultrapassa as pretensões e

dimensões destes comentários. Mas dentro do objetivo

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mais limitado de historiar as mudanças de opinião e

conceitos, parece-me que cada vez mais, a sociedade

entendeu ser o desenvolvimento econômico em grande

medida um problema político, não apenas no sentido de

políticas econômicas governamentais, mas de maneira

mais ampla no que tange ao funcionamento das

instituições, à regulamentação e ordenação da economia,

como também à confiança do corpo social, Pode-se dizer

que se perdeu de certo modo a miragem da inexo-

rabilidade do desenvolvimento. Afinal de contas, isto

pode ter contribuído para uma idéia mais objetiva, mais

madura do processo.

* * *

Dentro das teorias e opiniões ligadas ao mesmo

problema, os anos 60, no liminar do quarto de século

aqui focalizado, presenciaram a controvérsia em torno

do binômio inflação/desenvolvimento. Durante algum

tempo foram bem recebidas as teses estruturalistas que

redimiam a inflação: ela constituiria um instrumento

desenvolvimentista através do mecanismo da poupança

forçada ou seria um processo inevitável devido aos

estrangulamentos setoriais provocados pelo próprio

crescimento. Alternativamente, ela representaria uma

fatalidade histórica ligada às estruturas econômicas dos

países subdesenvolvidos. Mesmo um economista

ortodoxo pôde afirmar, na época, com o consenso de

muitos outros, que “inflações pequenas, descontínuas e

de curta duração podem ser usadas para redistribuir

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423

recursos na direção dos investimentos’. (Roberto

Campos).

Essa visão algo pacífica da inflação decorria

também da constatação empírica de que o

desenvolvimento tem podido conviver com a inflação.

Com efeito, a economia brasileira cresceu ao longo de

sua vida independente dentro de um ambiente

inflacionário crônico. Mesmo nos períodos de maior

crescimento econômico a inflação persistiu: em torno da

média anual de 17% nos anos 1950/58, mas subindo

para 35-40% no fim dos anos 50 e para mais no início

da década seguinte, até na fase brilhante do “milagre

brasileiro” nos anos 1967/1973, quando caiu de 80%

para 15% anuais. A excelente performance econômica

nesta fase, num ambiente desinflacionário, conseguiu

por algum tempo criar na opinião pública uma

mentalidade de repúdio à inflação. Na época observava-

se que a inflação podia apenas “criar um clima eufórico

de vendas, nominalmente elevadas e propensão para

consumo” e que ela constituía tão-somente “um ingre-

diente artificial para infundir otimismo e euforia entre

investidores e consumidores” (E. Galvêas).

Outrossim, as teses estruturalistas perderam seu

prestígio anterior, seja por causa das falhas da

argumentação, seja por causa da inconveniência de suas

conclusões.

Essa visão, válida para as “pequenas” inflações e

sob a condição de não funcionar o mecanismo auto-

propulsor da inflação, se esvaeceu com as inflações

galopantes dos anos 80. A aceitação benevolente da

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inflação começou a ser abalada já depois do primeiro

choque do petróleo, quando os preços subiram desde

16% ao ano (1973) até 46% (1976). Com o segundo

choque do petróleo e os desacertos da política

antiinflacionária, a taxa da inflação chegou a 110% em

1980 e, com pequenas flutuações, continuou subindo até

241% em 1985. Os vários planos de combate (Cruzado I

e II, Bresser Pereira, Verão, Collor) contribuíram apenas

para dar certas freagens, mas também para comprovar a

resistência do processo. O espírito inflacionária firmou-

se dentro da sociedade.

Depois da fase algo eufórica da convivência, veio

com maior vigor a oposição aos males evidentes da

inflação galopante ou da hiperinflação, se assim devia

ou não ser chamada a inflação de 40% ao mês em fins

de 1989 ou de 70/80% em início de 1990: parece mais

uma questão semântica. Porém, era cada vez mais difícil

louvar as virtudes da inflação desenvolvimentista ou

propiciadora de poupança forçada. O que todo mundo

via era a fuga para aplicações especulativas, a ciranda

financeira, a retração dos investimentos, a saída dos

capitais – um processo perverso e insuportável de

redistribuição da renda, bem como políticas antiin-

flacionárias insuficientes e mesmo contraditórias. Isso

resultou em atitudes individualistas de defesa, per-

petuadoras do processo. A cultura inflacionária chegou

ao seu auge. E era difícil a opinião pública aceitar

teorias pró-inflacionárias.

* * *

425

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Entre os instrumentos oficiais de defesa contra os

efeitos da inflação colocou-se em primeiro lugar a

correção monetária ou indexação. A atitude coletiva em

relação a esta variou também. No início e durante todo o

período em que a correção acompanhou a marcha

descendente da inflação, ela foi bem vista como um

meio de coexistência pacífica. Entretanto, com o

recrudescimento da inflação e sua renitência, a

indexação começou a ser considerada “ la bête noire” do

processo – o mecanismo de realimentação indefinida da

tendência altista.

As altas crescentes de preços tornaram mais

acentuados os procedimentos – de caráter público ou

privado, setoriais ou generalizados – de correção dos

preços e dos rendimentos para seu alinhamento, o qual

nunca chega a se realizar na falta de uma operação

drástica e dolorosa sobre as fontes inflacionárias.

Assim, a indexação voltou com todo o seu falso

prestígio. Ademais, isso contribuiu novamente para uma

certa aceitação passiva do processo inflacionário.

As políticas antiinflacionárias ressentiram-se da

marcha imprevista e às vezes irresistível da inflação,

bem como das atitudes da sociedade por ela provocadas.

A bem sucedida política ortodoxa implementada em

1964/73 que deu pouco crédito às idéias estruturalistas

agitadas naqueles tempos, responsabilizou pela inflação

o déficit orçamentário, a expansão monetária e creditícia

e os excessos salariais. As medidas governamentais

visaram esses parâmetros e a opinião pública se

426

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convenceu do acerto de tal diagnóstico e da política daí

decorrente.

Os choques externos da década de 70 e início de

80 abalaram em parte a confiança na ortodoxia, mas esta

dominou ainda até meados da década de 80, quando em

face da escalada irresistível dos preços, foram lançados

novos diagnósticos e ensaiados novos remédios

(baseados na teoria da inflação inercial) com êxito

apenas passageiro. Firmou-se entretanto, cada vez mais,

a convicção de que o grande responsável era o déficit

público e a perplexidade foi grande, mais tarde, quando

a redução deste déficit não teve forte impacto sobre a

marcha da inflação. Para esta contribuía toda a

sociedade, como tentei argumentar numa palestra aqui

apresentada no ano passado.

Parece finalmente que a opinião mais

generalizada é de que a inflação constitui um problema

político num sentido não apenas limitado à atividade do

poder público, mas também num sentido mais amplo,

compreendendo fatores sociais, culturais e psicológicos,

e que conseqüentemente exige uma solução política.

Como no caso do problema do desenvolvimento, a visão

estritamente econômica perdeu do seu rigor em favor de

uma concepção globalista, sócio-política.

* * *

Um problema que preocupou constantemente a

opinião pública e os meios acadêmicos foi o da posição

e das dimensões do Estado dentro da economia.

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427

Obviamente as idéias a este respeito evoluíram nos

últimos 25 anos, mas, a meu ver, nem tanto quanto se

declarou ou se desejou. É verdade que já tinha passado o

tempo do ideal autárquico proclamado nos tempos

difíceis após a Grande Depressão e durante a Segunda

Guerra Mundial. Não obstante, o ímpeto da atividade

econômica estatal persistiu, por inércia ou por falta de

alternativa eficiente. Os estuturalistas até quiseram dar

uma justificativa teórica – de fato bastante falaciosa:

diziam que uma vez esgotado o modelo exportador de

produtos primários e o de substituição de importações, o

dinamismo da economia só poderia proceder de uma

intensificação da ação do Estado, em termos de

investimentos, produção e direção. O sofisma consistia

na troca das premissas.

Mesmo não levando em conta os interesses

ligados ao processo de estatização e à burocracia, o

estatismo encontrou um respaldo no intuito de

racionalização econômica através do planejamento. Foi

a época do pós-guerra quando os aparentes sucessos

políticos e econômicos da União Soviética conferiram

um brilho supostamente inegável ao sistema de

planificação centralizada.

A profissão de fé liberal, implícita nos anos 40 e

50, passou a receber o tratamento de dogma fundamental

a partir de 1964. Como tive a oportunidade de

mencionar numa palestra anterior, os planos econômicos

governamentais insistiram enfaticamente durante mais

de 20 anos na implantação de um modelo econômico

baseado no mercado e na empresa privada, embora

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428

admitindo a necessidade da presença do Estado na

economia, sob a condição de definir e delimitar sua área

de ação. Foi um período de “fúria planejadora” pelo

menos até 1980, portanto de aumento do dirigismo, de

regulamentação administrativa e da criação de

instrumentos burocráticos.

A euforia em torno do planejamento, como

reflexo dos bons resultados atingidos durante o “milagre

brasileiro” foi sucedida por uma certa decepção quando

nos anos 80 a performance econômica começou a

deteriorar-se demonstrando que, em face dos fatores

aleatórios externos e internos, a atividade planejadora e

reguladora do Estado não é suficiente. Ainda mais, a

expansão do setor público conduziu de forma visível à

redução da eficiência, ao emperramento burocrático, à

politização da economia.

Já falei aqui em outra oportunidade sobre o

arrefecimento da atividade planejadora desde o fim dos

anos 70. Não obstante, a presença do Estado na

economia continuou muito forte, propiciando dento da

opinião pública críticas ao modelo intervencionista.

Essa posição crítica foi alimentada também pela onde

liberalizante prevalecente em várias regiões do mundo,

inclusive na área socialista, onde Gorbachev continuou a

obra de Kruschev de destruição dos antigos mitos

leninistas/stalinistas.

O governo instalado em 1990 enfatizou sua

profissão de fé liberalizante no meio de dificuldades

cuja exposição ultrapassaria os limites cronológicos

desta palestra. De fato, se é lícito falar numa corrente

429

429

liberalizante, não devem ser subestimadas as resistência

ideológicas estatizantes e socializantes. Essa dicotomia

contraproducente se materializou nas contradições da

Constituição de 1988. De onde vêm essas resistências?

Seria outro estudo mais amplo a ser feito. Eu apontaria

um primeiro lugar, para a vitalidade dos mitos,

refletindo comportamentos irracionais da sociedade:

apesar dos fracassos políticos e econômicos do modelo

soviético e do seu respaldo ideológico marxista, muitos

ainda não conseguem abandonar as ilusões com que

foram alimentadas durante decênios. Apontaria também

para as tradições de populismo e paternalismo, ainda

conservadas em várias camadas da população e

renovadas com propósitos demagógicos. Finalmente, há

as resistências procedentes dos interesses da burocracia

que luta pela defesa de suas prerrogativas. Mais uma vez

o problema é basicamente político.

* * *

É ponto pacífico que o início do quarto de século

aqui focalizado assistiu a uma radical mudança no

modelo econômico brasileiro no que tange ao setor

externo. Passou-se de um modelo fechado, introvertido,

para um modelo aberto, extrovertido, em que merece

maior atenção o intercâmbio comercial e financeiro com

o exterior. Essa mudança de posição foi aparentemente

tranqüila, mas não deixou de provocar controvérsias.

Sem dúvida, antes de 1965 ou mesmo desde o fim

da Segunda Guerra Mundial, ocorrera uma mudança na

430

430

política econômica em comparação com o período

posterior à Grande Depressão, quando por motivos bem

conhecidos houve uma ruptura do sistema econômico

internacional. Políticas econômicas nacionais, defen-

sivas e eventualmente agressivas, haviam provocado o

estancamento, do comércio internacional com a pre-

valência da filosofia autárquica – fonte de tensões que

contribuíram para a explosão bélica final.

O triunfo das potências liberais que se esforçaram

por reorganizar a economia mundial no pós-guerra,

propiciou uma recomposição do sistema econômico

internacional, fundamentado nos princípios do libera-

lismo econômico e da cooperação internacional.

O Brasil integrou-se naturalmente na nova ordem

internacional, adotando uma postura liberal, embora

subsistissem resistências protecionistas, nacionalistas,

às vezes chauvinistas, bem como a ilusão da solução

autárquica. Tal filosofia marginalizava de certa maneira

o comércio exterior, embora a própria substituição de

importações implicasse na abertura para o exterior para

ser possível absorver capitais, tecnologia e

equipamentos necessários ao processo substitutivo. O

fato é que houve uma verdadeira estagnação das

exportações e dos coeficientes de comércio exterior.

Entretanto, não foi desprezada a entrada de capitais

estrangeiros seja sob forma de empréstimos ou de

capitais de risco (v. sobretudo a Instrução nº 113/1955

da SUMOC) , pelo menos até 1962 quando prevaleceram

algumas idéias xenófobas (v. Lei nº 4131/1962).

Uma sensível mudança veio a partir de 1964

431

431

quando, aparentemente com a adesão da opinião pública

e de boa parte dos círculos acadêmicos, o governo

adotou de forma explícita um modelo econômico aberto.

A idéia era de acelerar e melhorar qualitativamente o

desenvolvimento econômico através da integração

maciça de poupança externa, tecnologia e equipamentos.

E para as necessidades da importação e do serviço de

capitais era imprescindível incrementar as exportações,

o que foi feito primordialmente através de uma política

cambial realista e do sistema de incentivos fiscais e

creditícios. Aliás, a característica do modelo foi esse

interesse pela expansão das exportações. Uns 15 anos

depois, o III PND enfatizou mais o papel estratégico das

exportações, não apenas como respaldo do balanço de

pagamentos que na época há havia começado a

apresentar graves problemas, mas também como fonte

de renda e emprego e como instrumento redistributivo

da renda regional e pessoal.

O coeficiente de exportação chegou à média de

9,2 em 1980/84 e o de importação a 7,9 (em 1960/64,

4,5 e 6,0 respectivamente). Em valores constantes a

média anual das exportações cresceu 655% e a das

importações 586% entre 1960/64 e 1980/84.

Num ambiente internacional favorável, o modelo

foi um sucesso, contribuindo para fortalecer a posição

dos seus partidários.

* * *

Evidentemente o modelo aberto não estava

432

432

desprovido de riscos, de vez que era sensível às

eventuais perturbações da economia internacional. De

fato, a década de 70 foi profundamente abalada pelos

dois choques do petróleo, que afetaram em diversas

proporções tanto os países em desenvolvimento como os

industrializados, tanto os países do mundo ocidental

como os do bloco socialista, estes supostamente mais

estanques em relação ao exterior.

Como indicador expressivo pode-se mencionar a

evolução do PIB dos países industrializados, a qual

acusou queda em 1974/75, se redirecionou em 1976/79 e

voltou a se desacelerar 1980/82. Por outro lado

verificou-se uma queda no volume do comércio

internacional: também entre os países industrializados,

em 1980/82, as importações acusaram queda anual

média de 0,5% e as exportações um modesto aumento de

3,1% ao ano, contra crescimento de 6,8% e 6,4%

respectivamente no biênio anterior.

Obviamente, os países em desenvolvimento, com

menor capacidade de resistência, sofreram mais. Para

compensar as graves restrições impostas aos seus

balanços de pagamento tiveram que se submeter a um

perigoso processo de endividamento externo, de modo

que a dívida externa bruta desses países subiu de US$

96,8 bilhões em 1973 para US$ 505,2 bilhões em 1982 –

um crescimento de 5,2 vezes em 10 anos. A crise fi -

nanceira internacional de 1981/83 agravou substancial -

mente a situação.

O Brasil não constituiu de forma geral uma

exceção nessa degringolada generalizada. Sem entrar em

433

433

detalhes que foram melhor expostos e analisados por

outros (v. Galvêas), citarei apenas poucos números: o

déficit acumulado da balança comercial foi de US$ 27,5

bilhões em 1974/80, com uma exportação anual média

de US$ 12,4 bilhões e importação de US$ 16,3 bilhões.

Aproveitando, entre 1973 e 1980, a boa posição

dos juros internacionais, às vezes negativos em termos

reais, o Brasil optou por uma política de sustentação do

desenvolvimento econômico através do endividamento

externo. Realmente assim foi possível garantir taxas

razoáveis de crescimento do PIB (entre um mínimo

anual de 4,9% e um máximo de 10,3%). A dívida

externa cresceu, e com a escalada dos juros inter-

nacionais após 1979 e o colapso do sistema financeiro

internacional, a situação se tornou intolerável: a dívida

externa que em 1979 era de US$ 49,9 bilhões, atingiu

US$ 107,5 bilhões em 1987. Ademais as restrições

externas, como já vimos, provocaram a queda brutal da

taxa de crescimento econômico: em 1981/83 o PIB

registrou uma redução de quase 8%.

O desenrolar inesperado dos acontecimentos

externos forneceu argumentos aos críticos da política

adotada de crescimento econômico lastreado pelo endi -

vidamento externo. Tudo isso resultou num certo

desencantamento com o modelo aberto, sem contudo

firmar-se uma alternativa válida nos meios acadêmicos

ou mesmo na opinião pública em geral.

* * *

434

434

Vale finalmente lembrar que durante muito tempo

prevaleceu uma teoria que conferia ao setor externo um

papel positivo, propiciador da industrialização e do

desenvolvimento, porém, pode-se dizer, às avessas: a

deterioração do mercado internacional favoreceria o

crescimento da indústria nacional como se fosse graças

a uma proteção compulsória. Esta “teoria dos choques

externos” iniciada por um comentário de Hannibal Porto

(1992) e reforçada pela autoridade de Roberto

Simonsen, rezava que os grandes momentos de

interrupção do intercâmbio mundial – a Primeira Guerra

Mundial, a Grande Depressão e a Segunda Guerra

Mundial – agiram favoravelmente, induzindo os empre-

sários a proceder a investimentos industriais substi -

tutivos das importações afetadas pela conjuntura externa

adversa.

Ocorreu aí também uma reação que questionou

fortemente essa visão e considerou a ruptura no sistema

internacional como especialmente prejudicial, pelo

menos a curto prazo. Contrariando posições acadêmicas

bastante enraizadas, aquele questionamento pela cor -

rente revisionista referiu-se tanto à Primeira Guerra

Mundial (Warren Dean, como à Grande Depressão

(Carlos Manuel Peláez) e à Segunda Guerra Mundial

(Mircea Buescu). Ulteriormente o revisionismo tornou-

se mais maleável, reconhecendo que os choques ex-

ternos podem ser tido reflexos positivos a prazo mais

longo. Isto é, o impacto do choque externo provocara

novas atitudes empresariais que iriam frutificar após a

normalização do cenário internacional.

435

435

É interessante que a tese dos choques externos

ressuscitou depois do segundo choque do petróleo, no II

PND, talvez por necessidades estratégicas. (O II PND

fala em desequilíbrios devidos à alteração das relações

econômicas internacionais, porém “no momento

seguinte” a reorientação adequada da política econômica

“transformou o desafio internacional em fator de

dinamização do crescimento”). Interpretou-se aí a crise

do petróleo, portanto, como um estímulo, um desafio

que exigiu uma resposta positiva da economia nacional,

como por exemplo no grande programa do Pró-Álcool e

nos esforços de substituição de importações de bens de

capital.

Entretanto a capacidade de resposta era bem

diferente da prevalecente nos choques anteriores. Nos

anos 70 o Brasil já dispunha de capacidade industrial e

tecnológica que permitia a resposta positiva. Ademais,

salvo por pouco tempo, o sistema internacional

continuou funcionando com eficiência, logo a ruptura

não era tão rigorosa. Pode-se dizer, de modo geral, que

as mazelas sofridas nos anos 80 afastaram todas as

simpatias pelos “choques externos”.

* * *

Inevitavelmente, foram abrangidas nesta

despretenciosa comunicação apenas algumas opiniões e

teorias certas ou erradas, que alcançaram relativo

sucesso no último quarto de século. Espero contudo que

o apanhado apresentado tenha podido dar uma noção da

436

436

fugacidade das idéias econômicas, o que, afinal de

contas, caracteriza todos os empreendimentos humanos.

O ensinamento da História é que devemos ser muito

precautos e circunspectos em face da voga temporária

de certas opiniões e teorias, inclusive quando adotadas

nos mais acadêmicos ou agitadas nos discursos

políticos.

Sem dúvida, os problemas aqui abordados exigi-

ram análises mais aprofundadas, para isso, a palestra

precisava dispor de mais tempo, o autor da mais

competência e o auditório mais paciência.

Palestra proferida em 12 de março de 1992.

BIBLIOGRAFIA

BUESCU, Mircea. Guerra e Desenvolvimento. 1976.

CAMPOS, Roberto de Oliveira. A teoria do Colapso. 1966.

DEAN, Warren. A Industrialização de São Paulo . 1971.

GALVÊAS, Ernane. Brasil: Economia aberta ou fechada? 1982.

GALVÊAS, Ernane. A Crise do Petróleo. 1985.

LANGONI, Carlos Geraldo. A Economia da Transformação. 1975.

PELÁEZ, Carlos Manuel. História da Industrialização do Brasil.

1972.

437

437

SIMONSEN, Mário Henrique. Brasil 2001. 1969.

SIMONSEN, Mário Henrique. Brasil 2002. 1974.

VELLOSO, João Paulo dos Reis. A Solução Positiva. 1978.

(Transcrito de Carta Mensal, Rio de Janeiro, 37(444): 49-58,

Março 1992).

438

438

CAPITAIS ESTRANGEIROS

(Um debate no Conselho Técnico)

O presente trabalho comenta algumas palestras

proferidas entre 1955 e 1958 no Conselho Técnico da

Confederação Nacional do Comércio e publicadas na

Carta Mensal. Elas foram reunidas, junto com outras

palestras, num volume sob o título Problemas Econô-

micos e Financeiros (1958). Escolhi os debates em torno

dos capitais estrangeiros por constituírem um capítulo

expressivo na história das idéias econômicas no Brasil,

representando também um testemunho da atuação do

Conselho Técnico na difusão e discussão daquelas

idéias.

* * *

Para melhor compreensão das posições assumi-

das, parece-me oportuno lembrar inicialmente, de modo

sucinto, o ambiente histórico e ideológico, no âmbito

nacional e internacional, no momento em que se

processaram os debates.

A conjuntura internacional naqueles anos

posteriores de apenas uma década ao fim da Segunda

Guerra Mundial (1), foi dominada pelo programa da

reconstrução após os danos da guerra e pelo problema

do desenvolvimento, tornado este assunto de premente

439

439

atualidade em decorrência da liberação das antigas

colônias (“O Grande Despertar” – na expressão de

Gunnar Myrdal). Isso exigiu uma forte mobilização de

capital em dimensões planetárias, o que determinou a

organização do Banco Internacional de Reconstrução e

Desenvolvimento (BIRD). Assim, vê-se que o problema

debatido no Conselho Técnico era de incontestável

relevância.

As soluções estavam dificultadas pelos desequilí -

brios monetários e cambiais (para cuja solução havia

sido criado o Fundo Monetário Internacional),

acentuados pela escassez de dólares ( the dollar gap) –

sinal da discrepância entre a penúria no mundo e a

posição preponderante dos Estados Unidos. A

paralisação do sistema internacional e as dificuldades

comerciais e cambiais tornaram preocupante o problema

do balanço de pagamentos, preocupação essa que se

revelará nos debates em pauta.

Por outro lado, os desequilíbrios monetários pro-

vocados pela guerra e persistentes no pós-guerra colo-

caram na berlinda o problema da inflação, espectro

ameaçador ressuscitado pelas experiências infelizes de

certos países europeus. De qualquer forma, a fim de

compreender o ambiente ideológico, é bom não esquecer

que a idéia dominante era a do liberalismo e do multila-

teralismo econômico, em oposição às políticas autárquicas

praticadas no período entre a Grande Depressão e a

Segunda Guerra Mundial. Tal universalismo enfrentava

ainda os obstáculos criados pelo nacionalismo renitente

bem como pela posição contestatória assumida pelo

440

440

comunismo agora vitorioso ao lado dos aliados ocidentais.

Essas tendências poderão ser descobertas em intensidades

variadas no confronto de idéias de que vamos tratar.

* * *

O ambiente nacional era também de euforia,

decorrente da paz externa e da renovação política interna,

com a volta para um regime liberal democrático. O Brasil

queria abrir-se ao fluxo internacional de mercadorias e

capitais (2). Entretanto, os vestígios das políticas

anteriores subsistiram durante a presidência Vargas e

exacerbou-se um nacionalismo econômico, tal como se

manifestou na campanha “O Petróleo é nosso” (3). O

conflito chegou finalmente a uma solução de compromisso

com a lei 2004/1953 que criou a Petrobrás (4).

A política econômica tornou-se mais liberal

durante o governo Kubitschek, mas teve que enfrentar

ainda as resistências nacionalistas de franca oposição à

colaboração dos capitais estrangeiros (5). As

dificuldades ligadas ao setor externo persistiram (6),

mas de forma geral foi adotada uma atitude assaz

equilibrada no concernente aos capitais estrangeiros (7).

A reação nacionalista antiliberal iria explodir apenas

mais tarde durante a curta presidência Goulart.

* * *

Entre os depoimentos aqui analisados vem em

primeiro lugar o relato feito por Glycon de Paiva (1955)

441

441

sobre os debates ocorridos em Washington na reunião

dos governadores do FMI e do BIRD. Dispensarei aqui

as opiniões de vários participantes estrangeiros, limi -

tando-me à posição brasileira a cargo de Eugênio Gudin.

Seus comentários (complementados em palestras de

1957 e 1958) referem-se primeiro às limitações que po-

dem ocorrer aos fluxos de capitais do lado dos países

fornecedores ou recipientes. A contribuição positiva dos

capitais estrangeiros parece tão óbvia ao autor que não

exige maior demonstração. A formulação lapidar é dada

por Glycon de Paiva, citando as palavras pronunciadas

pelo delegado inglês na referida reunião internacional:

“Financiar desenvolvimento econômico sem lançar mão

do capital internacional é impor ao povo gravames e

restrições desnecessárias”. Segundo Gudin, salvo limita -

ções impostas para eliminar excessos e evitar processos

inflacionários, as possibilidades dos capitais estrangei -

ros são ilimitadas para propiciar “maior exportação,

maior substituição de importações, maior produção

doméstica”. Não é de estranhar pois que Gudin censure

a reduzida contribuição dos países desenvolvidos no

fluxo de capitais em direção aos subdesenvolvidos.

Em outro documento Roberto Pinto de Souza

(1958) enumera os méritos da captação dos capitais

externos: adição à insuficiente capitalização interna,

aumento da capacidade de importar, absorção de

tecnologia mais avançada e eventual subsídio para o

equilíbrio no balanço de pagamentos. Mesmo Caio

Prado Jr. (1957), apesar de suas restrições – como

veremos mais adiante – reconhece pelo menos os

442

442

méritos do capital de financiamento, enquanto que “o

capital que cria aqui empresas subsidiárias é

prejudicial”. Nesta última ressalva difere frontalmente

de Gudin que prefere os investimentos por serem mais

eficientes do que os financiamentos e por acompa-

nharem a conjuntura.

Gudin, economista liberal ortodoxo (talvez

demasiadamente ortodoxo), coloca apenas algumas

condições racionais para o bom aproveitamento do

aporte estrangeiro: que não exceda uma certa proporção

do produto real (embora Gudin não considere o perigo

de desnacionalização da economia); que não tenha uma

aplicação ineficiente; que não provoque inflação (8).

Vê-se que restrições não são feitas ao processo em si de

participação de capitais estrangeiros, mas apenas ao

modus operandi – aos abusos ou desvios do correto

aproveitamento das fontes externas do capital. Gudin

assinala também os obstáculos a enfrentar pela abertura

aos capitais estrangeiros: a oposição dos que temem a

competição estrangeira e a dos círculos nacionalistas

xenófobos.

Disto tratarei mais adiante.

O debate em pauta concentrou-se entretanto em

grande parte ao problema do balanço de pagamentos,

isto é, ao desequilíbrio nele provocado pelo serviço dos

capitais estrangeiros, principalmente os de empréstimo.

Tal preocupação aparece eventualmente na posição do

próprio Gudin que, como bom ortodoxo, enfatizava o

equilíbrio das contas externas (e subsidiariamente –

outro dogma ortodoxo – o papel nefasto da inflação),

443

443

porém não ao ponto de rejeitar para tal o aporte

estrangeiro: teria sido uma incoerência (9). Sem negar a

eventualidade de desequilíbrios provocados pelo movi-

mento de capitais, Gudin ressalva que estes dese-

quilíbrios podem surgir de outras causas, principalmente

do que ele chama de “crises” da balança comercial. A

experiência dos anos recentes, com o choque do petróleo

e o abalo do sistema financeiro internacional, forneceria

uma comprovação da hipótese de Gudin.

Entretanto, os adversários, basicamente ideológi-

cos, dos capitais estrangeiros insistem de forma radical

nos desequilíbrios “inevitáveis” e crescentes por eles

provocados. Diz Caio Prado Júnior: “o apelo às

inversões estrangeiras cria encargos que acabam

superando aquilo que eles dão” – um sofisma, pois

compara a entrada única do capital com o fluxo de

encargos do capital sem levar em conta os custos

gerados por aquele capital”. (10).

Sem comprovação estatística, Prado declara que

“as remessas de lucros para exterior trazem prejuízos

para as importações” – mas isto pode acontecer por

causa da insuficiência das receitas cambiais. Pode-se

realmente criticar a política econômica da época por

uma certa incoerência: enquanto se liberava o mercado

de câmbio, não se tomavam medidas de incentivo às

exportações que ficaram estagnantes ou mesmo

decrescentes (v. quadro 1) – política mudada apenas em

1964. Gudin observou, como aliás se pode constatar do

referido quadro, que o serviço dos capitais tem peso

limitado na formação do balanço de pagamentos; as

444

444

amortizações tiveram peso maior mas afinal de contas

elas representavam uma redução da dependência em

relação àqueles capitais.

Quadro 1

Balanço de Pagamentos 1950/1959

Dados selecionados

(em US dólares milhões)

Ano

Balan-

ça

comer-

cial

Expor-

tação

Inves-

timen-

tos

Finan-

cia-

mentos

Amor-

tiza-

ção

Juros Lucros

Balanço

de

pagtos.

1950

1951

1952

1953

1954

1955

1956

1957

1958

1959

425

68

-286

424

148

320

437

107

65

72

1359

1771

1416

1540

1558

1419

1483

1392

1244

1282

3

-4

9

22

11

43

89

143

110

124

28

38

35

44

109

84

231

319

373

439

-85

-27

-33

-46

-134

-140

-187

-242

-324

-377

-27

-20

-22

-34

-48

-35

-67

-67

-58

-91

-47

-70

-14

-93

-49

-43

-24

-26

-31

-25

52

-291

-615

16

-203

17

194

-180

-253

-154

Eram, portanto, altamente alarmistas as adver-

tências de Prado Júnior: “as novas inversões es -

trangeiras... trazem um elemento de agravamento do

desequilíbrio... um endividamento progressivo... implica

uma compressão de certas importações essenciais para a

própria sobrevivência da economia brasileira, como as

de equipamentos”. (11) Na realidade, tais perspectivas

445

445

negativas, algo demagógicas, não eram inevitáveis ou

implícitas na política de abertura. De fato, não se

efetivaram (12) a não ser muito mais tarde, nos anos

1970/80, em condições peculiares muito diferentes.

Prado Júnior acrescenta que os capitais entrados

“não criam automaticamente como antes os recursos

necessários para a liquidação internacional das

obrigações assumidas” – “como antes”, isto é, quando

os capitais se destinavam, à expansão das exportações,

fase que foi devidamente superada.

* * *

É bastante curioso que em grande parte a

discussão sobre os perigos e desvantagens da entrada de

capitais ficou concentrada prioritariamente sob o ângulo

do balanço de pagamentos, mas não faltaram reparos

num sentido diferente. Já na palestra de 1955 Gudin

observara que “os Estados Unidos não compreenderam o

caráter multiplicador do investimento internacional em

termos de emprego, produção, mercado de bens e

títulos” – colocando a discussão numa perspectiva mais

ampla, não limitada aos efeitos sobre o balanço de

pagamentos. Rejeitava em seguida explicitamente

aquela visão estreita: “Alguns imaginam que os únicos

investimentos bem fundados são aqueles que contribuem

para a melhoria do balanço de pagamentos do país re-

cipiente... investimentos existem que podem determinar

um excelente crescimento de atividade econômica e que

não representam qualquer ação direta sobre o balanço de

446

446

pagamentos”.

O argumento está repetido em outro trecho,

referindo-se desta vez aos financiamentos: “Quando um

empréstimo é concedido a um país subdesenvolvido

surgem condições novas de emprego, de incremento do

comércio, de expansão do mercado”... Este enfoque

diferente que permite uma avaliação global do aporte

dos capitais estrangeiros sou sumariamente definido por

Roberto Campos, durante o debate (1957). “Os efeitos

dos investimentos estrangeiros não devem ser consi -

derados à luz do balanço de pagamentos e sim da renda

nacional.” (13) Uma posição totalmente oposta à de

Prado Júnior a qual, no desejo de desmoralizar o papel

dos capitais estrangeiros declara peremptoriamente que

“a questão de renda nacional não entra em jogo”.

* * *

A discussão não deixou de abordar o tema

polêmico, de caráter político/ideológico, representado

pelo nacionalismo como estorvo inevitável à entrada dos

capitais estrangeiros. De acordo com Gudin, a avaliação

lógica do problema é contaminada por “aspectos

irracionais” ligados a um “nacionalismo exclusivista...

um nacionalismo vesgo misto de jacobinismo e do

fantasma do imperialismo econômico e político”. Gudin

apressa-se em observar que o imperialismo dominante

do século XIX era na época do debate “defunto há mais

de trinta anos”. Entretanto, a insistência ideológica

devia sobreviver até os nossos dias.

447

447

A rejeição do estrangeiro pode se explicar

eventualmente, segundo Gudin, “por um complexo de

inferioridade que afasta a aproximação e a colaboração

do capital estrangeiro” – um verdadeiro medo da livre

competição. Ao mesmo tempo, uma concepção com-

partimentada da economia mundial, bem oposta à atual

globalização, particularmente acirrada quando se trata

da exploração das riquezas naturais (aí Gudin pensou

com certeza nos combates emocionais, na época, em

torno do “Petróleo é nosso”).

Havia, portanto, os opositores da colaboração

estrangeira, eventualmente sem uma manifestação

explícita contra o imperialismo, mas quase

evidentemente como rejeição do capitalismo e do

liberalismo econômico. O capital estrangeiro era visto

como o inimigo da economia nacional, um inimigo

abusivo e espoliador. Ele perseguiria apenas a obtenção

de benefícios para fora do país: “ele continua

permanentemente ligado à sua fonte”, diz Caio Prado,

referindo-se especificamente ao capital de investimento.

Em sua atuação dentro do território nacional, ele

praticaria atos abusivos sem benefícios para os

nacionais – prática em que “é de presumir que estejam

fortemente apadrinhados”, mais uma vez a tese

antiliberal da cumplicidade capitalista. Ainda mais, ele

atuaria “através da manipulação do mercado acu-

mulando lucros maiores”. O aumento da produção

basear-se-ia simplesmente num “consumo discriminado,

criado por uma hábil propaganda e por um sistema de

distribuição e venda muito perfeito”. O alvo era, na

448

448

época, a Coca-Cola, colocada na berlinda como caso

típico de uma infiltração estrangeira que não visava be-

nefícios para o povo brasileiro e seu bem-estar. O cunho

marxista da oposição aparece nitidamente quando Prado,

referindo-se de forma implícita ao processo da mais-

valia, declara que “esses empreendimentos (estran-

geiros) representam uma maneira de captar a maior

parcela do valor que se entrega ao consumidor”. (14) É

oportuno mencionar que tais afirmações não se apóiam

em nenhuma, ou muito vaga, evidência empírica.

* * *

O nacionalismo econômico e a xenofobia pre-

tendem colocar-se num plano mais objetivo quando aler-

tam sobre o perigo da desnacionalização da economia. O

vaticínio de Caio Prado é que “acabaremos tendo no

Brasil, nas indústrias, o que não passará de um aglo-

merado de subsidiárias e filiais de empresas estran-

geiras”. Como se trata de futurologia, a veri ficação

deveria ser procurada pelo autor na realidade estatística,

mas nenhum esforço está sendo feito neste sentido. E a

história não ia confirmar a previsão catastrófica. De

fato, uma vez admitida e procurada a entrada de capitais

estrangeiros de investimento, a desnacionalização não é

uma fatalidade, mas apenas função da política econô-

mica de amparo às empresas nacionais.

As críticas mais específicas no debate em pauta, a

respeito da desnacionalização, dirigiam-se à Instrução

113/1953, da SUMOC, que para acelerar o processo de

449

449

industrialização permitiu a entrada de equipamentos

industriais completos sem cobertura cambial. Segundo

uma dessas críticas (Roberto Pinto de Sousa – 1958)

esta facilidade oferecida ao investimento estrangeiro

traria além da sangria da remessa de lucros uma

concorrência nefasta ao capital nacional sem proteção,

nem permitiria a acumulação deste capital, enquanto que

as empresas estrangeiras nunca se nacionalizaram (o que

constitui também futurologia). A crítica passa para o

segundo plano os progressos que se obteriam em termos

de criação de emprego, crescimento da renda nacional,

substituição de importações, etc. (15).

Evidentemente não deve ser dispensada uma

política de defesa da indústria nacional e os críticos em

foco têm a desculpa de ter-se manifestado, em parte,

durante a vigência da tarifa aduaneira de 1934, que por

suas alíquotas específicas tinham se tornado totalmente

inócuas (a incidência média de 35% tinha caído para

2,3% em 1956). A situação mudou a partir da Lei 3244,

de 1957, que adotou alíquotas ad valorem, o que as

tornou imunes à inflação crescente.

Mas, mesmo antes, a economia nacional não

estava sem proteção: é suficiente lembrar os setores de

atividade reservados aos nacionais: navegação, minas e

energia, cabotagem, para citar apenas os principais.

Ademais, não era lícito falar em uma desnacionalização

da economia quando se olhava para a evidência

estatística (16) e, sobretudo, quando se verificava que os

setores estratégicos da economia eram ocupados pelas

empresas estatais (17): os liberais podiam deplorar um

450

450

excesso de estatização mas não se podia dizer que a

liberdade concedida aos capitais estrangeiros periclitava

o grau de autonomia da economia nacional. Entretanto,

os idiossincrasias existiam como continuam existindo, a

despeito dos apelos para a racionalidade econômica.

A controvérsia a respeito dos capitais estran-

geiros continuou nos anos subseqüentes, culminando

com o abalo produzido pela lei 4131/1963 sobre a

Petrobrás, altamente restritiva, até a sua alteração num

sentido liberal pela lei 4360/1964, que consagrou as

teses gloriosas no debate aqui comentado do Conselho

Técnico da Confederação Nacional do Comércio.

NOTAS

(1) A bibliografia é imensa. Entre os trabalhos acessíveis no

Brasil: M. Niveau. História dos Fatos Econômicos Contem-

porâneos. 1969.

(2) Após a guerra vingou a idéia de abandonar o isolacionismo

econômico (conf. John D. Wirth. A Política do Desenvolvimento

da Era de Vargas . 1973).

(3) “Surgiu um nacionalismo de cunho agressivo, a títulod e

réplica do nacionalismo que sempre existiu... Esse nacionalismo

caboclo passou a substituir certos conceitos de patriotismo lírico e

ingênuo.” (Herculano Borges da Fonseca, Regime Jurídico do

Capital Estrangeiro. 1963).

(4) A história do episódio, contada sob o ângulo da visão

nacionalista ou mesmo xenófoba, encontra -se em: Jesus Soares

Pereira. Petróleo, Energia Elétrica, Siderurgia. 1975.

(5) Assim formou-se uma Frente Parlamentar Nacionalista, “grupo

451

451

de pressão com uma plataforma nacionalista, que condenava o

imperialismo em geral e o capital estrangeiro em particular,

principalmente em matéria de petróleo e remessa de lucros”.

(Maria Victoria de Mesquita Benevides. O Governo Kubitschek.

1976).

(6) De acordo com a pesquisadora do assunto, os problemas

enfrentados pelo governo Kubitschek foram: o déficit do balanço

de pagamentos e a deterioração das relações de troca; os pontos de

estrangulamento; e a inflação. (Benevides, op. cit.).

(7) O marco foi a lei nº 1807/1953 que implantou o mercado livre

de câmbio com liberdade para o movimento dos capitais

estrangeiros. Uma exposição crítica do regime jurídico dos

capitais estrangeiros encontra-se em Fonseca, op. cit.

(8) O perigo da inflação era talvez um tanto exagerado por Gudin

dentro de sua ortodoxia, pelo menos nos padrões que iriam

imperar mais tarde. O índice geral de preço ao consumidor

registrou a seguinte evolução (em % ao ano):

1951 – 13,0 1955 – 22,5

1952 – 17,1 1956 – 23,0

1953 – 13,2 1957 – 21,3

1954 – 18,3 1958 – 13,7

As ligeiras e passageiras pressões para cima podiam, contudo,

preocupar um ortodoxo como Gudin.

(9) Uma colocação correta do problema encontra -se num texto

mais recente: “Feita a opção de acelerar o desenvolvimento

econômico utilizando maior parcela de financiamentos externos

não se trata mais de saber se a dívida externa do País crescerá ou

não... tudo o que se pode discutir é a forma pela qual se

administrará o crescimento dessa dív ida.” (Ernane Galvêas,

Brasil: Economia Aberta ou Fechada? 1982). O argumento é

válido, em termos, para os capitais de investimento.

(10) Roberto Campos fez uma análise percuciente do problema

dos capitais estrangeiros num pequeno estudo – “Controle da

remessa de lucros e empresas estrangeiras” – incluído em:

Economia, Planejamento e Nacionalismo . 1963. Ele assinalou o

452

452

sofisma de comparar a remessa de rendimentos, que é um fluxo,

com a entrada de capitais que é uma adição de estoque,

sublinhando que não se deve exagerar a sua importância no

panorama mais amplo do balanço de pagamentos.

(11) Foi na época deste debate que o governo brasileiro iniciou

uma política de câmbios múltiplos com a Instrução nº 70/1953 da

SUMOC e a Lei nº 3244/1957, justamente para p roteger as im-

portações essenciais.

(12) A conta de capitais estrangeiros apresentou realmente um

saldo negativo de US$ 230 milhões em 1947/1953. Entretanto,

após a Lei nº 1807/1953 entre 1954 e 1960 o balanço tornou -se

positivo nos detalhes seguintes (em US$ milhões):

Empréstimos entradas: 3.047

amortização: -1.921

juros: - 467

saldo: 659

Investimentos entradas: 721

lucros remetidos: -269

saldo: 452

Saldo total: 1.111

(13) A idéia foi retomada no trabalho citado na nota (10) supra em

que Campos apresenta um quadro abrangente do ativo e do

passivo do movimento de capitais estrangeiros, em primeiro lugar

em relação à renda nacional e complementarmente ao balanço de

pagamentos.

(14) Em outra ocasião, Caio Prado tinha se mostrado mais

contundente – talvez o Conselho Técnico o tenha inibido! Referiu -

se então “à situação de dependência e subordinação orgânica e

funcional da economia brasileira com relação ao conjunto

internacional”. E precisando a idéia: “As inversões estrangeiras

são elementos de um sistema amplo e geral e a vida econômica do

Brasil é... função de contingências da luta de monopólios e grupos

financeiros internacionais concorrentes”; E dando o nome

específico ao processo: “o imperialismo atua como um poderoso

fator de exploração da riqueza natural”. Voltando para o problema

do balanço de pagamentos: “O capital internacional invadido no

453

453

Brasil representa um importante fator de desequilíbrio das contas

externas e déficits crônicos.” (História Econômica do Brasil.

1960).

(15) É oportuno lembrar que entre 1955 e 1959 a indústria de

material de transporte, a principal beneficiária da Instrução 113,

acusou um crescimento de 393%, enquanto a indústria em geral

não passou de 47%.

(16) Contrariamente às previsões pessimistas dos adversá rios dos

capitais estrangeiros, a participação destes na economia nacional,

embora tenha aumentado, não chegou a ter uma posição pre -

ponderante. De acordo com o levantamento feito em 1974 a

participação no valor das vendas totais das 5.113 maiores em -

presas do País desdobrava-se da forma seguinte: Governo: 16,1%;

empresas privadas: 55,8%; empresas estrangeiras: 28,1%.

(17) “O governo praticamente controla o sistema financeiro e

cambial, os transportes e as comunicações, bem como a energia e

a indústria de base, tornando mais forte ainda o Poder Nacional.”

(Galvêas, op. cit.). Muito recentemente, a participação do

Governo na economia está em vias de se modificar, porém sem

perder o controle.

(Transcrito de Carta Mensal, Rio de Janeiro, 43(508): 17-26,

Julho 1997).

454

454

NOTAS HISTÓRICAS SOBRE IMPERIALISMO,

DEPENDÊNCIA E DOMINAÇÃO

Os acontecimentos ocorridos no mundo

comunista em torno do ano 1990 foram uma verdadeira

explosão, uma mudança antes impensável mesmo em

tempos que Galbraith judiciosamente qualificou como

“a era da incerteza”. É verdade que sinais de

transformação vinham de mais longe, pois as próprias

revoluções não surgem ex nihilo, mas sim, seguem uma

certa lógica evolucionista.

As conseqüências dessa explosão não são ainda

bem definidas. Por enquanto, pode-se lembrar

resumidamente os traços imediatos da mudança: o

desmoronamento do império soviético, inclusive dentro

das fronteiras da antiga União; o fracasso do modelo de

planificação econômica centralizada, antes considerado

verdadeira panacéia; finalmente, a desmoralização do

arcabouço ideológico marxista-leninista.

A propósito deste último ponto pôde-se ler, nos

comentários ocidentais afirmações como: “o marxismo

ocupa agora um lugar secundário no pensamento

ocidental” (Le Nouvel Etat du Monde, 1991). Ou ainda:

“Como força ideológica, a idéia de uma superioridade

econômica (ainda que virtual) do socialismo pareceu

definhar definitivamente durante os anos 80.” (ibidem).

Por outro lado, Henry Kissinger, numa recente palestra

no Brasil, aludiu ao desmoronamento do comunismo

como movimento político (Centro de Economia Mundial

455

455

– FGV, 1992).

Essa avaliação parece precipitada. A força e a

inércia dos mitos, depois da longa propaganda a favor

do socialismo e comunismo são capazes de garantir

maior longevidade às suas propostas político-econômi-

cas a despeito de sua derrota. Além do mais, a

existência da pobreza e da miséria, da má distribuição

da renda, e de outras injustiças sociais favorecem o

fascínio exercido pelas propostas utópicas do socialismo

que, nas palavras de Schumpeter, “promete o paraíso no

mundo real”.

Obviamente, depois do que aconteceu no “paraíso

comunista” os seus partidários considerariam impru -

dente sustentar uma defesa explícita e direta do

comunismo. Prefere-se insistir na crítica do capitalismo

e do liberalismo sob os títulos de imperialismo, colo-

nialismo e outros males supostamente comprovados: é a

defesa indireta do mito.

Esse empenho em salvá-lo a todo custo constitui

prática tradicional: a versatilidade da defesa do dogma e

os subterfúgios nela usados podem ser identificados ao

longo dos anos. Partindo dessas indicações, a presente

palestra quer apontar alguns usos e abusos de conceitos

como imperialismo ou colonialismo, e finalmente tentar

encontrar um caminho mais objetivo, neutro, para

definir as situações evocadas pelos conceitos

mencionados. Naturalmente, analisar em profundidade

todos esses conceitos seria tarefa incompatível com as

limitações de tempo da palestra e de competência do

autor.

456

456

* * *

Um dos temas mais repetidos entre os nossos

historiadores marxistas-leninistas em suas publicações e

pronunciamentos é o imperialismo: o termo aparece ad

nauseam, às vezes graças ao seu matiz dramático, mas

não forçosamente dentro do esquema rigoroso de Lênin,

a saber: a fase final do capitalismo quando seus agentes

buscam novos mercados a fim de salvar mais-valia e, no

limite, chega a práticas realmente imperiais: intervenção

na política interna, aplicação da força, a guerra e a

conquista colonial. Mais adiante abordarei algumas

críticas feitas a essa teoria, nas palavras de analistas

competentes.

Por enquanto, quero sublinhar o caráter nega-

tivista, contestatório das teses dos seguidores marxistas,

empenhados em condenar a todo custo o capitalismo

pelas suas práticas espoliatórias. Os termos são

aplicados indiscriminadamente, misturando o imperia-

lismo com o colonialismo, dentro da ofensiva ideológica

exercida pela inteligentsia esquerdista. Há sinais claros

de que tais investidas vão se perpetuar apesar da crise

do comunismo – ou talvez melhor: devido à crise do

comunismo, como uma reação de defesa dos mitos.

A crítica se estende a todo o sistema comercial e

financeiro internacional, visto como um instrumento de

exploração e espoliação. É suficiente observar o

desprezo com que os historiadores marxistas tratam

aquele sistema a despeito das vantagens por ele

457

457

proporcionadas tanto aos países mais desenvolvidos

quanto aos mais atrasados, como se esclareceu desde os

tempos de Ricardo, e como se verificou, por cima de

inevitáveis percalços, ao longe de dois séculos de

liberalismo.

Para aqueles historiadores, o mercado interna-

cional não passou de um “ingrediente” da conquista

econômica. O seu efeito se resumiria a uma relação de

submissão da economia nacional aos interesses externos,

considerados conjuntamente, sem nenhuma discrimi-

nação mais criteriosa. O sistema internacional é definido

lapidarmente como “uma situação de dependência e su -

bordinação orgânica e funcional da economia brasileira

com relação ao conjunto internacional”, (Prado J r.) –

sem nenhuma referência à idéia de cooperação e

interdependência, ou de vantagens recíprocas.

Esse silêncio é característico entre muitos

historiadores “revisionistas” da história econômica do

Brasil que procuraram originalidade condenando o

modelo exportador vigente desde à Independência e

graças ao qual foi possível a expansão cafeeira e

portanto a colocação, ainda que retardada, das bases do

futuro progresso econômico do País. Para esta categoria

de historiadores, a economia cafeeira “foi largamente

explorada pelo capitalismo internacional... os seus

lucros canalizaram-se para a remuneração dos capitais

internacionais neles invertidos” (Prado Jr.). Tais

proposições ainda abundam nos livros-texto

universitários.

Que houve interesses externos, às vezes

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458

prevalecentes, não se pode negar, mas parece exagerado

um comentarista sério e competente – e não marxista,

mas seguindo a onda – insistir em denominar como

matiz de nosso crescimento econômico no século XIX, e

mesmo depois, a “formação dependente” como uma

conotação visivelmente depreciativa (Lorenzo Fernan-

dez). Afinal, existiu em toda a história econômica um

crescimento puramente autônomo? A Inglaterra durante

a primeira Revolução Industrial? Os Estados Unidos

durante o seu take-off no início do século XIX? Seria

fastidioso, repetir aqui conhecidas experiências his -

tóricas que demonstram a importância do aporte externo

do desenvolvimento dos mais poderosos e bem suce-

didas economias.

O conceito de dependência tem um fundo de

realismo, mas os marxistas e semelhantes lhe dão um

sentido unívoco, apenas de espoliação capitalista,

quando a realidade é mais complexa. Será que o Brasil

do século XIX se encontrava numa situação de total

dependência econômica no sentido de que sempre os

centros de decisão se encontravam no exterior? Ou, mais

especificamente, por exemplo, que o mercado de café

foi sempre um buyer’s market? A dependência neste

caso seria em razão direta com o grau de

vulnerabilidade econômica e, sob este aspecto, o Brasil

era evidentemente mais fraco, como fornecedor de um

artigo de sobremesa para os consumidores, mas

elemento vital para a sua economia. Entretanto houve

reversões quando o mercado de café se tornou um

seller’s market. Esta condição pôde justificar, porém

459

459

como efeitos questionáveis, a política de valorização

iniciada com a convenção de Taubaté.

Numa forma mais amenizada e indireta, a

condenação do sistema internacional foi feita pelos

estruturalistas sob a alegação de que o mercado mundial

é estruturado de modo a prejudicar secularmente as

economias mais atrasadas, portanto a perpetuar um

mecanismo de espoliação em escala mundial. Não se

trataria mais do esquema aparentemente rigoroso do

imperialismo leninlista, mas não deixa de conter no seu

bojo um repúdio ao mercado livre internacional . Entre

outras, tal tese sustenta que a existência do Centro

desenvolvido e da Periferia subdesenvolvida “impõe nos

casos extremos que as decisões que afetam a produção e

o consumo de uma economia dada são tomadas em

função da dinâmica e dos interesses das economias

desenvolvidas” (Cardoso). Tal posição é mais ponderada

do que a do imperialismo, mas persiste ainda a sugestão

da inevitável espoliação capitalista. Fica rejeitada

explícita ou implicitamente a idéia de independência, ou

seja a capacidade autônoma na tomada de decisões

econômicas – o que não passa de um exagero histórico.

* * *

Especialmente radical e irracional é a investida

contra os capitais estrangeiros – ação tão conhecida no

posicionamento do grupo que pode ser designado como

a Esquerda. Esta vê na entrada dos capitais estrangeiros

um fenômeno imperialista, apenas uma invasão

460

460

espoliatória. Quando se tem a pretensão de invocar uma

verificação empírica, a argumentação é simplesmente

falaciosa: confronta-se o montante de capitais entrados

com o volume acumulado das saídas a título de lucros e

juros remetidos para fora (Carone), ou seja: compara-se

um estoque com um fluxo. Nenhuma referência, do lado

do ativo, aos ganhos em termos de produto, emprego,

tecnologia – resultantes da entrada daqueles capitais.

Há apenas alusões a “manobras políticas”, mas a

condenação é radical: “A vida econômica (do Brasil),

não é função de fatores internos, de interesses e ne-

cessidades da população que nele habita, mas de

contingência da luta de monopólios e grupos financeiros

internacionais concorrentes” (Prado Jr.). O modelo

marxista é básico nessas exposições: o objetivo do

movimento de capitais é “extorquir em proveito próprio

a mais-valia do trabalho brasileiro” (ibidem). O

resultado é que “o imperialismo impede a estruturação

normal na base das verdadeiras e profundas ne-

cessidades da população do país” (ibidem). Nenhuma

alusão a uma cooperação, mesmo que desequilibrada,

entre os fatores de produção internos e o capital externo.

Na argumentação, mesmo sem uma referência explícita

ao imperialismo leninista, o conceito é subentendido

como uma realidade já comprovada.

De fato, muitas vezes o termo “imperialismo” é

empregado num sentido mais genérico, como um

processo de espoliação operada pelos mais fortes

(sempre capitalistas) contra os mais fracos. Mas o termo

“imperialismo”, sob a autoridade dos profetas Marx e

461

461

Lênin, exerce um fascínio, um impacto emocional.

Tanto é que, por exemplo, os historiadores do tipo

mencionado tentam demonstrar a sua presença

(espoliação através de juros, comissões, etc.) já desde os

primeiros empréstimos contratados pelo Império,

portanto no tempo em que o capitalismo ocidental não

tinha chegado à maturidade do esquema leninista.

Historiadores mais objetivos reconhecem que os

investimentos estrangeiros foram feitos em “setores de

atividades completamente novos entre nós”,

investimentos “que exigiram avultados capitais de que

não dispúnhamos” (Ferreira Lima). Mas, por cima destas

verdades, a tentação anticapitalista é grande demais, de

modo que, o mesmo autor se apressa a denunciar que

“nossa incursão na economia internacional nos sujeitava

completamente às grandes potências... drenando para

fora toda fonte de recursos” (ibidem). Anotem o caráter

absoluto da alegação:

Poder-se-ia encontrar uma certa justificativa des-

sas teses se fossem apresentadas em formas mais mo-

deradas. Mas a fúria anticapitalista e antiliberal chega a

termos apocalípticos: comentando a política de endi -

vidamento externo desde o Império fala-se em “abismo

financeiro”, “Brasil – presa fácil da especulação”,

“tentáculos absorventes” (credores dos capitalistas) –

expressões que se encontram até em analistas moderados

(como, por exemplo, Valentim Bouças).

As citações feitas já têm 30 a 40 anos, mas não se

considerem obsoletas. Expressões semelhantes aparecem

em trabalhos recentes, em artigos de jornal, nos

462

462

panfletos que surgem todos os dias nos meios de

comunicação, nos slogans e chavões dos políticos.

Palavras como colonialismo, imperialismo, dependência,

espoliação rendem em propaganda política. A confusão

semântica representa um bom instrumento de conquista

da opinião política, da mesma forma como se brinca

com os conceitos de liberdade e democracia.

* * *

É recomendável pôr alguma ordem nos conceitos:

cada termo – imperialismo, colonialismo, dependência –

deve, numa boa disciplina aristotélica, dizer alguma

coisa específica e não é logicamente válido jogá-los, uns

em cima dos outros, com o objetivo de condenar os

pecados do capitalismo. Uma análise criteriosa pode

identificar excessos e abusos, mas as modalidades e

intensidades são bem diferentes. No discurso da Es -

querda, a ação das multinacionais quase se confunde

com um empreendimento colonialista – alegação que é

conceitual e historicamente incorreta.

Imperialismo não é manobra comercial, é um

exercício de poder, de poder político – a raiz do

vocábulo é imperium, o poder da autoridade. No próprio

esquema de Lênin, que representa a matrix pura do

imperialismo – o traço típico não é a busca em si da

mais-valia, mas sim, o exercício do poder a fim de

extrair a mais-valia.

Para Lênin, a busca desesperada da mais-valia,

quando as fontes internas estão se esgotando, leva

463

463

necessariamente ao aproveitamento espoliatório de zo-

nas novas onde os salários baixos evitam a redução

progressiva da taxa de lucros. Isso faria parte da própria

lógica do capitalismo, mas nesta fase de espoliação fora

das fronteiras – “o mais alto estágio do capitalismo”,

nas palavras consagradas de Lênin – o traço carac-

terístico é a aplicação do poder, a necessidade dos

capitalistas de interferir na condução política, impor

suas condições, submeter o país através da força,

inclusive pela guerra. O imperialismo consiste justa-

mente na interferência do poder político – que, no

modelo de Lênin, é uma decorrência necessária do

capitalismo na sua fase final de maturação.

A introdução do conceito do imperialismo na

argumentação marxista respondeu à necessidade de

explicar o fortalecimento do capitalismo, contrariamente

ao pensamento marxista originário, isto é, explicar a

postergação do debate do capitalismo. Neste sentido,

Galbraith observou que “(a idéia de) imperialismo

preencheu uma enorme lacuna no pensamento

revolucionário, bem como em sua política”. Entretanto,

tomando o termo de imperialismo na sua característica

de exercício do poder político, ele deixa de constituir

um título exclusivo de condenação do capitalismo.

Assim, W. Arthur Lewis pôde anotar: “o desejo de

explorar outros povos pode persistir também na

sociedade socialista”. De fato, na Europa Or iental falou-

se correntemente em imperialismo soviético, uma

realidade contundente que não tinha nada de subproduto

do capitalismo.

464

464

A ambigüidade dos seguidores de Marx-Lênin

consiste em usar o termo genérico de imperialismo, isto

é, ação imperial, ação de força e opressão, como argu-

mento a favor da tese de que o capitalismo maduro deve

obrigatoriamente desembocar no abuso de poder em

escala internacional e por isso deve ser condenado sem

remissão. Essa ambigüidade justificou Schumpeter a

referir-se ao “termo equívoco e amiúde aplicado erra-

damente de imperialismo”, explicitando que “podemos

sempre definir o imperialismo de tal modo que

signifique exatamente o que implica na interpretação

marxista”.

Contra o panorama rocambolesco da conspiração

capitalista-imperialista em escala mundial, a crítica

objetiva observou que “a realidade em todos os países

industrializados é o poder empresarial e não o poder

empresarial internacional” (Galbraith) e que, longe

daquele esquema golpista do capitalismo, “os grupos

capitalistas se modelam infinitamente mais sobre a

política do país do que a modelam” (Schumpeter).

Aliás, aludindo à comprovada versatilidade da

argumentação marxista, o último autor citado proferiu

um veredicto final: “Esta teoria do imperialismo oferece

um bom exemplo, senão o melhor, de modo de que o

sistema marxista usa para resolver os problemas,

fortalecendo ao mesmo tempo o seu prestígio”.

Por outro lado, a investida contra o capitalismo é

reforçada pela inclusão da noção de colonialismo.

Misturam-se os conceitos e fala-se tranquilamente do

neocolonialismo como uma característica do

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465

capitalismo, inclusive atual. Esquece-se que a

dominação colonial é “o governo de um povo por uma

potência geográfica e etnicamente distante” (Galbraith)

– não exploração como seria feita, por exemplo, pelas

multinacionais, mas um governo, um exercício de poder.

Houve realmente colonialismo pré-capitalista na grande

expansão dos séculos XVI-XVIII. Houve também um

novo colonialismo no século XIX, na África e na Ásia,

fatos históricos de caráter peculiar. Entretanto, aplica-se

os termos de imperialismo e colonialismo, num sentido

vago, emocional, com o intuito de identificá-los com o

capitalismo e condenar este capitalismo como único

instrumento de espoliação.

* * *

Acho que os fenômenos de poder e coerção nas

relações econômicas poderiam ser colocados numa

perspectiva mais ampla, mais abrangente, no quadro do

conceito de dominação. Este problema já foi levantado

em vários níveis: no nível dos indivíduos, das empresas

ou das nações. a existência de agentes dominantes e

dominados. O enfoque foi proposto desde o século

passado, sobretudo no nível das empresas, como em

BöhmBawerk, ou no nível de grupos como em Veblen.

Uma análise mais percuciente foi formulada por

François Perroux. Mas, afinal, o próprio Aristóteles em

sua política não menciona o roubo como um dos meios

para adquirir riqueza?

Pode-se colocar o problema por cima das

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466

instituições político-econômicas que são apenas capazes

de oferecer maiores ou menores oportunidades de

dominação. Acho possível partir de uma realidade

psico-fisiológica: a consciência da personalidade e sua

afirmação, a qual inclui a tendência de impor aos outros

agentes as próprias decisões – evidentemente em se

falando do processo econômico, decisões que visam a

aumentar o bem-estar. Já Veblen falou da “inclinação do

homem para a dominação e a coerção”. E Perroux é mais

explícito: “Cada ser humano, sendo como é egoísta,

exerce uma dominação no mundo externo... O poder é

procurado por si mesmo. Mais do que metas de

incremento material, as tendências egoístas do homem

individualizado estão na base de uma afirmação de si

próprio”. Seria então uma libido dominandi natural, a

qual, entretanto, obviamente não é responsável por todo

o comportamento humano: o ser humano, ao exercer a

dominação, reconhece nos outros, seus semelhantes, e

portanto pode ser levado, dentro das inevitáveis

contradições humanas para uma atitude de solidariedade

e cooperação. “O homem, devido à razão com que é

dotado, tem a faculdade de sentir a dignidade na pessoa

do seu semelhante como na sua própria pessoa e afirmar

assim sob esse aspecto sua identidade com ele”

(Servier). Não impera forçosamente a idéia de homo

homini lupus (Plauto), mas também às vezes a bela

oração de Terêncio: homo sum, humani nihil a me

alienum est.

A teoria da dominação traz uma visão mais

ampla, superando a obsessão da espoliação capitalista.

467

467

Já John Bates Clark se referiu a casos de exploração por

parte de qualquer fator de produção e não apenas do

capital – trata-se apenas de relações de força (apud

Barre). De acordo com Perroux, o exercício do poder e

da coação pode ser até não intencional – o que poderia

ser achado irrealista, a não ser que a não-

intencionalidade seja entendida como um processo

inconsciente decorrente da própria natureza humana, tal

como sugeri antes. E Perroux acrescenta que o efeito de

dominação fica “em oposição lógica com a

interdependência recíproca e universal” – uma outra

formulação das tendências opostas já mencionadas, a da

imposição da própria vontade aos demais seres humanos

ou a da solidariedade com aqueles seres.

Na escala internacional, Perroux sublinhou o

valor operacional do conceito de dominação, de vez que

“tem por objetivo substituir aos conceitos vagas ou

apaixonados sobre o imperialismo... verificações e

regras inevitáveis”. Perroux viu o mundo econômico

como “um conjunto de relações patentes ou

dissimuladas entre dominantes e dominados” e, ainda

mais, contrariamente às habituais críticas da Esquerda

afirma que “o crescimento econômico mundial teve

lugar por ação das economias nacionais sucessivamente

dominantes”.

Sem dúvida, essa visão deve ser corrigida

acrescentando-se-lhe as inevitáveis facetas escuras do

quadro. Seria interessante redigir uma história da

dominação econômica em escala internacional,

identificando primeiro as motivações, basicamente a

468

468

busca de riqueza e poder, completadas pela corrida atrás

de prestígio, triunfo de crenças religiosas e outras, não

se esquecendo o importante papel desempenhado pelo

nacionalismo exacerbado, muitas vezes motivador de

dominação, opressão e extorsão.

O relato histórico poderia mostrar as diversas

fases, forma e graus da dominação, desde a conquista

imperial escravista da Antigüidade, passando pela

disputa entre os Estados nacionais na época moderna e

em continuação o colonialismo dos séculos XVI-XIX, o

autêntico colonialismo que consiste na completa sub-

missão política da colônia ao poder da metrópole a fim

de propiciar sua exploração. Os leninistas poderiam

acrescentar os casos, embora questionáveis, em que a

conquista imperial teria decorrido de busca externa da

mais-valia. Num esquema objetivo, sem preconceitos

ideológicos, poderiam ser incluídos processos de do-

minação econômica pacífica, como a das multinacionais,

sem intervenção político-militar. Lembre-se os gritos de

alerta que a dominação norte-americana provocou

depois da Segunda Guerra Mundial, tal como aparecem

no célebre best-seller de Servan-Schreiber, O Desafio

Americano. Quando a conjuntura mundial mudou, a

advertência se deslocou para o Desafio Japonês, título

do livro de Hakan Hedberg, mas, vejam: desafio

pressupõe uma certa competição e não um império

absoluto.

Afinal, tais jogos de poder em torno do problema

econômico, sempre existiram e vão existir, sem

assumirem, com necessidade, os extremos descritos pelo

469

469

marxismo-leninismo e constituíram apanágio exclusivo

do capitalismo. Os choques do petróleo de 1973 a 1979

são exemplos de dominação exercida pelos países ainda

longe da fase de maturidade capitalista do modelo de

Lênin.

Uma curtíssima excursão pela história econômica

do Brasil permitiria identificar certas relações de

dominação sem os aspectos excessivos imaginados pelos

campeões à outrance das teses do imperialismo e do

colonialismo. Dominação, mas sem aquela idéia de que

os centros decisórios se fixaram inexoravelmente fora

do país. Refiro-me ao Brasil independente, porque nos

tempos coloniais, por definição, o centro de decisão se

achava na Metrópole.

Os primórdios da Independência foram interpre-

tados como uma continuação camuflada das relações

coloniais – foi dito que o Brasil trocou apenas de me-

trópole: Inglaterra no lugar de Portugal. Como ilustra-

ção típica indica-se o tratado de 1810 com a Inglaterra.

Sem dúvida, tratava-se de um pacto leonino, de do-

minação, uma situação de independência, porém não

absoluta, tanto é que, quando caducou o tratado, não foi

renovado e o Brasil iniciou uma política comercial

autônoma, até protecionista, embora ainda tímida.

O episódio da abolição do tráfico africano é

também expressivo: apesar das pressões da Inglaterra,

chegando quase a um estado de guerra, o Brasil aderiu

ao tráfico durante quase 40 anos. Foi um caso de

dominação, mas não de dependência absoluta.

O Brasil inseriu-se no sistema comercial

470

470

internacional, mas isto não o impediu de praticar uma

política autônoma de padrão-ouro, fugindo às exigências

ortodoxas de equilíbrio orçamentário, câmbio estável e

contenção monetária. Reinou um pragmatismo que, a

despeito das eventuais pressões revelava um centro

autônomo de decisão.

Necessariamente também, as crises do sistema

econômico internacional se refletiram na economia

nacional – um aspecto de dominação mas também de

interdependência. Uma tese muito em voga, embora

frágil, foi a de que a inflação brasileira no século XIX

teria resultado de duas verdadeiras conspirações:

durante as depressões, os países industrializados

importadores de café teriam forçado a queda das

cotações do café para se ressarcirem de seus prejuízos;

por sua vez, os exportadores de café forçaram a

desvalorização cambial para manterem suas rendas em

moeda nacional. Entretanto, não se comprova uma

situação de dependência absoluta; apenas um jogo de

dominação, mais complexo da realidade, longe de

caracterizar um esquema imperialista.

Mais expressivo é o caso das políticas de defesa

do café. Nisso, o Brasil, gozando de uma posição do-

minante no mercado do café – tentou implementar uma

política autônoma de valorização com resultados ques-

tionáveis, mas caracterizando uma relação de domi-

nação, sem que, com isso, provocasse um processo

imperialista ou de submissão de seus parceiros

comerciais.

Não me demorarei mais em outros exemplos

471

471

históricos.

* * *

Que conclusão poderia ser tentada a partir das

notas perfunctórias desta palestra? Seria possível

identificar alguns pontos sujeitos a posterior meditação,

referentes aos conceitos abordados, a saber:

- o termo de imperialismo é próprio ao esquema

leninista, sujeito a restrições e não obstante usado

abusivamente por razões ideológicas, às vezes num

sentido genérico, para efeito de condenação do

capitalismo, supostamente único agente de coerção

imperial;

- o termo de colonialismo designa uma forma

histórica específica, mas é usado em situações

impróprias, também com o propósito de desmoralizar o

capitalismo;

- o conceito de dependência corresponde melhor

às realidades político-econômicas, mas é amiúde

aplicado num sentido pejorativo, com prejuízo da idéia

mais realista de interdependência;

- o conceito de dominação parece abranger, como

subcategorias, todas as noções antes mencionadas, de

maneira mais isenta, desligada dos conflitos ideoló-

gicos, porque oriunda – a meu ver – de uma realidade

psico-fisiológica do ser humano.

Mas, como se dizia na jurisprudência romana; sub

judice lis est – a causa está sob julgamento.

472

472

Palestra proferida em 17 de maio de 1993.

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474

474

INFLAÇÃO:

MENTALIDADES E ESTRUTURAS

Nos infindáveis debates em torno da inflação

brasileira repetiu-se com crescente insistência, que a

inflação constitui principalmente um problema político.

Sem dúvida, ninguém pretende ignorar ou minimizar o

seu caráter econômico, visto que é definida numa forma

tradicional como “um excesso de demanda monetária”

(conf. Emile James), face a “uma oferta insuficiente”.

Um desequilíbrio que se resolve através da “elevação

contínua do nível geral de preços”.

O caráter político do processo – entendendo-se o

termo “político” lato sensu, isto é, que afeta a vida da

sociedade inteira – esse caráter aparece de modo patente

numa visão mais sociológica da inflação, que a define

como “uma luta entre diversas classes sociais pelo

produto total” (segundo Delfim Netto) --ou nas palavras

de Eugênio Gudin, como “uma ten tativa perpetrada por

um grupo econômico de se apropriar de uma parte da

renda real pertencente a outros grupos” -- uma

apropriação via elevação dos preços. O mesmo sentido

competitivo manifesta-se na afirmação de que “a raiz

sócio-política das inflações crônicas... se pode encontrar

na incompatibilidade da política distributiva do

governo” – como diz Mário Henrique Simonsen.

É mister, portanto, considerar o processo

475

475

inflacionário não apenas isoladamente como processo

econômico, mas dentro da realidade sócio-política que

pode oferecer uma explicação das origens da inflação a

partir de certos comportamentos da sociedade. Afinal, o

mencionado desequilíbrio entre demanda e oferta pode

ser provocado ou, pelo menos, facilitado por qualquer

das manifestações do corpo social: mentalidades,

atitudes, instituições, estruturas. Alguns fatores serão

mais propícios ao desencadeamento ou à alimentação da

inflação, tornando a respectiva economia mais

vulnerável ao fenômeno. Será, logo, útil detectar – pelo

menos a posteriori – esses fatores com vistas à sua

eliminação ou ao seu amortecimento.

Esse enfoque sócio-político-psicológico do

fenômeno econômico não constitui novidade – apenas

fica amiúde esquecido. No que tange ao comportamento

dos indivíduos perante a inflação, já Albert Aftalion

sublinhou que “é na mentalidade do detentor de renda

que é necessário analisar todas as grandes decisões que

influem sobre o futuro da moeda” (apud P. L. Reynaud).

Por outro lado, é preciso considerar a existência de uma

certa configuração social favorável à inflação; “para a

pressão inflacionária se transformar em inflação são

necessárias certas condições estruturais”, diz Emile

James.

Evocar a importância das estruturas não quer

dizer adotar as posições do estruturalismo para o qual os

aumentos de preços derivam de pressões decorrentes da

oferta estruturalmente inelásticas por exemplo no caso

de uma agricultura secularmente atrasada ou de um

476

476

comércio exterior baseado na exportação de produtos

primários.

Tal teoria, muito exaltada após a Segunda Guerra

Mundial, principalmente sob a égide da CEPAL e de seu

mentor, Raúl Prebisch, não goza mais, hoje em dia, do

mesmo prestígio. Não obstante, ela contém uma dose de

verdade, porém um valor explicativo limitado, insu-

ficiente para caracterizar toda e qualquer inflação. O

próprio Gudin, que não era nada estruturalista, admitiu

certa vez a existência de “estruturas inflacionárias”,

principalmente nos países subdesenvolvidos, devido a

suas condições peculiares políticas e econômicas. De

fato, o caráter crônico do processo deita suas raízes nas

mentalidades e estruturas inflacionárias imperantes no

país.

Isso nos leva a uma concepção que constitui o

embasamento teórico das presentes despretenciosas

considerações. Compreende-se o fenômeno inflacio-

nário, bem como qualquer outro lado econômico, como

sendo imerso na complexa realidade histórica, sendo

condicionado pelos fatores constitutivos dessa realidade,

ao mesmo tempo que condicionando os seus demais

componentes. Trata-se, até certo ponto, de uma inversão

da posição marxista para a qual a infra-estrutura

econômica – o modo de produção – representa o condi-

cionamento único e absoluto da super-estrutura social,

das idéias e das instituições.

As estruturas englobam elementos complexos e

variados: elementos geográficos, demográficos, morais,

institucionais, sociais e, obviamente, econômicos. Estas

477

477

estruturas, que correspondem a certas mentalidades do

corpo social podem favorecer ou gerar inflações porém

não obrigatoriamente.

É lícito incluir entre esses condicionamentos

fatores que podem ser qualificados de “neutros” em si,

mas que na realidade puderam exercer alguma influência

sobre o processo inflacionário. Antecipando os exem-

plos históricos, poderia citar o fenômeno da seca

crônica no Nordeste ou a excessiva expansão demo-

gráfica ou a urbanização rápida e descontrolada. Ade-

mais, condicionamentos inflacionários podem ser total -

mente exógenos – vejam as duas guerras mundiais, ou

os choques do petróleo de 1973 e 1979.

O que interessa aqui é identificar ao longo da

história os condicionamentos – não apenas econômicos

– que proporcionaram ou facilitaram o processo

inflacionário, tornando-o crônico. Para efeito de análise

pode-se seguir um modelo tradicional (conf. Delfim

Netto) em que figuram como parâmetros principais: o

déficit governamental; o crédito ao setor privado; os

reajustes salariais; e a taxa de câmbio.

Os economistas identificam e analisam estas

causas diretas da inflação. Agora a tentativa consiste em

olhar para um segundo plano por baixo das causas

imediatas, afim de descobrir os condicionamentos que

propiciaram e eternizaram os mecanismos infla-

cionários.

Sem dúvida, os próprios condicionamentos têm,

por sua vez, causas anteriores; mas procurá-las seria

enfrentar uma verdadeira probatio diabolica, sem fim.

478

478

O historiador da inflação deve limitar-se à identificação

dos condicionamentos históricos – mentalidade e

instituições – que constituíram as oportunidades do

processo inflacionário.

* * *

Um exemplo concreto deste modelo de

investigação, tal como esbocei em 1976 numa palestra

no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, aborda o

processo inflacionário no século XIX. Um dos fatores

inflacionários foi o permanente déficit orçamentário –

financiado por emissões de papel-moeda. Não

prevaleceram os preceitos do padrão-ouro, subproduto

do liberalismo econômico então reinante. Vingou o

pragmatismo – mais acessível. O que se encontrava atrás

desse déficit crônico? Do lado da despesa, as revoluções

(os abalos da nova estrutura política independente), a s

guerras (principalmente a do Paraguai), as despesas com

as secas do Nordeste. Com um caráter menos

insuperável: o excesso de funcionamento público – a

“empregomania”, na expressão de Nabuco de Araujo –

sinal de uma estrutura política ainda imatura. Do lado da

receita, a exigüidade da base tributável, limitada

sobretudo ao imposto sobre importações – sinal de uma

estrutura econômica vertida para o exterior, de um

mercado interno precário e de um baixo nível de rendas

individuais, além de um liberalismo irracional que

impedia o aumento do imposto sobre importações.

Ademais, o despreparo administrativo, herança dos 300

479

479

anos de colonialismo e reflexo do baixo nível edu-

cacional. A sonegação dos impostos poderia ser ligada à

característica cultural que Affonso Arinos rotulou como

“desrespeito à ordem legal” – para ele um resíduo índio-

africano; de qualquer modo, uma mentalidade

persistente.

A procura de soluções fáceis e imediatistas levou

à política de empréstimos externos de caráter fiscal que

se avolumaram em bola de neve. A dívida externa, além

das remessas particulares dos imigrantes – outro aspecto

estrutural – pesou fortemente sobre o balanço de

pagamentos, criando repetidas pressões inflacionárias.

Havia também uma fragilidade estrutural no

balanço de pagamentos pelo fato de se sustentar quase

unicamente nas exportações e estas praticamente no café

e mais alguns poucos produtos primários. Os

estruturalistas exageram o papel do estrangulamento

externo, mas este aspecto não pode ser minimizado, na

medida em que contribui para a desvalorização cambial,

encarecendo os produtos importados, embora, segundo

minhas pesquisas, o papel inflacionário dos produtos

importados tenha sido, na época, bastante modesto.

A expansão monetária através de emissões de

papel-moeda resultou em vários casos do excesso de

crédito para atender à demanda especulativa dos agentes

econômicos – uma mentalidade imediatista de efeito

inflacionário. Isso aconteceu, por exemplo, após a

reforma bancária de 1853 (na época em que José de

Alencar escreveu a peça “O crédito”, em que ironizava

os excessos criditícios e Ferreira Soares se referia a um

480

480

“carnaval bancário”). Também em maior medida, no

início da República – quando a expansão monetária e

creditícia acompanhou a febre de especulação bursátil

(descrita pelo Visconde de Taunay no seu opúsculo “O

Encilhamento”). Os excessos poderiam ser debitados à

frágil estrutura bancária – sem quadros, sem tradições -

mas, eventualmente, a um certo espírito de jogo que

Afonso Arinos inclui na mentalidade coletiva da

“salvação pelo acaso”.

No caso do custo da mão-de-obra houve uma

situação sui generis. O liberalismo que levou à abolição

do tráfico africano e, finalmente, do próprio instituto

escravista, provocou a curto prazo, a despeito de seus

méritos humanitários, o encarecimento da mão-de-obra

escrava até sua substituição pelo trabalho livre – um

elemento do lado da inflação de custos.

A ação direta sobre os preços sob forma de

especulação e açambarcamento, assinalada por exemplo

por Sebastião Ferreira Soares em 1860, explica-se pelos

resíduos da mentalidade mercantilista e, mais ainda,

pela inconsistência de um mercado que permitia mo-

nopólios e oligopólios, e eventualmente por uma certa

falta de solidariedade social: Ferreira Soares fala em

“sistema de se enriquecer fazendo a miséria pública”. E

também, pela ausência de estruturas políticas e

administrativas aptas a impedir tais práticas.

Finalmente, deve-se apontar a inelasticidade da

produção agrícola de alimentos, setor em que a carestia

apareceu de modo mais acentuado, como o ressaltaram,

em várias oportunidades, as Falas do Trono.

481

481

Os meus levantamentos estatísticos sugeriram que

as altas de preços no século XIX foram mais graves

entre os produtos nacionais de consumo interno do que

os de exportação ou importação. As origens vinham de

longe, desde a marginalização da agricultura de

subsistência devido à mentalidade mercantilista,

agravada no século XIX pela concentração dos

interesses em torno do café. Essa insuficiência da

produção agrícola poderia ser ligada também a certas

estruturas culturais, como a que Afonso Arinos

denunciou como “desapego à terra”.

* * *

Não vou me alongar mais nesse panorama do

século XIX. Esta excursão pelo passado poderia parecer

ociosa, porém vale observar que alguns dos seus

aspectos se repetiram mais tarde. O cotejo do passado

mais longínquo com os tempos mais recentes revela a

permanência de condicionamentos inflacionistas, a

despeito das alterações sofridas pela economia e pela

própria cultura do Brasil. Senão, vejamos:

- O déficit orçamentária permaneceu, com poucas

exceções, crônico, tendo nos seus alicerces o despreparo

administrativo, as despesas suntuárias (vide construção

de Brasília), as limitações estruturais da receita (até

1964 a arrecadação do imposto de renda, introduzido

apenas em 1924, foi insignificante); a politização da

despesa (por exemplo quando do torpedeamento do

Plano Cruzado). Eugênio Gudin quis identificar a causa

482

482

das inflações latino-americanas no surgimento, após

1930, de governos populares propensos a despesas

demagógicas “sem consideração do preço a pagar”.

- Um sério agravamento decorreu da crescente

mentalidade estatizante que aumentou exageradamente o

aparelho administrativo e a despesa com um funcio-

nalismo público superdimensionado.

A procura de soluções fáceis para o déficit

público levou – como sempre – ao recurso a emissões de

papel-moeda e, alternativamente, ao apelo excessivo

para a dívida pública, constituindo-se num ônus

crescente em bola de neve. A história recente da dívida

pública interna oferece um exemplo típico.

- O populismo pode explicar em certos anos

(como em 1961/1964), os excessos de uma política

salarial distributivista que resultou numa pressão de

caráter inflacionário.

- A atuação empresarial mostrou também

excessos em várias oportunidades, quando, aproveitando

a estrutura mono-e-oligopolística do mercado e a

estrutura desequilibrada da distribuição da renda

nacional, procedeu a manipulações excessivas de

preços. Múltiplas experiências recentes denunciam tal

mentalidade.

- Do lado dos consumidores, características

culturais e mentalidades levaram às vezes à exacerbação

do efeito-demonstração e ao excesso do consumismo,

acentuando a pressão inflacionária do lado da demanda.

- Práticas mercantilistas continuaram por muito

tempo no comércio exterior, por exemplo, com a defesa

483

483

do café e a desvalorização forçada da taxa de câmbio,

como em 1906 e 1926.

- A alteração estrutural da agricultura no sentido

de maior diversificação da produção reduziu a sua

pressão inflacionista, que, não obstante, perdurou

devido às falhas estruturais da comercialização e do

armazenamento e, em boa medida, por causa da

miragem da mentalidade industrialista que relegou a

agricultura para o segundo plano.

- Entre as posições favoráveis à inflação vale

acrescentar uma certa corrente de pensamento estru-

turalista, rezando pela inevitabilidade do fenômeno

inflacionário ou mesmo pela sua exaltação como

instrumento desenvolvimentista.

- Ademais, o próprio desenvolvimentismo à

outrance – isto é, sem consideração pelas capacidades

reais da oferta – justificou excessos inflacionários.

Referindo-se à política de Kubitschek disse um

historiador: “O recurso à inflação garantiu, em parte, o

crescimento econômico do país”. (Benevides)

* * *

Identifiquei até aqui de forma rudimentar

elementos que propriamente não fazem parte do

processo econômico da inflação, mas que puderam

induzi-lo ou sustentáculo. Entretanto, a própria inflação,

ao permanecer e ao agravar-se, cria mentalidades e até

estruturas específicas que constituiriam o que se poderia

chamar de “universo inflacionário”, e agiriam como um

484

484

processo de causação circular.

Quando anos atrás escrevi uma história dos

preços no Brasil entre o fim do século XVI e o do

século XIX (300 Anos de Inflação) anotei que a

inflação brasileira tinha sido amena, um tipo de inflação

rastejante, a taxas anuais abaixo de 10%, mas que pelo

fato de ser crônica, multi-secular, influenciou a

sociedade no sentido de traumatizá-la, de fazê-la aceitar

facilmente a inflação e eventualmente prepará-la para

patamares mais elevados. Outros falaram com

propriedade, em “tolerância inflacionária”, na expressão

de Mário Henrique Simonsen.

Alguns analistas acharam que as sociedades

latino-americanas suportariam, sem reação, altas de

preços de até 25% anuais, mas este patamar me parece

um tanto exagerado – talvez uns 15% sejam mais

realistas.

Acontece, entretanto, outro fenômeno como resul-

tado da persistência crônica da inflação. A convivência

com a inflação, sobretudo quanto esta assume inten-

sidade maior, leva os agentes econômicos a mudarem de

mentalidade e comportamento. É como se a inflação

fosse o estado natural da economia, requerendo

respostas adequadas da comunidade. O resultado é o

fortalecimento e a maior duração da inflação. Essa

passagem para a “mentalidade inflacionista” – a mu-

dança psicológica do corpo social – talvez não tenha

sido bastante ressaltada, a não ser recentemente.

Não obstante, encontram-se observações perti-

nentes como, por exemplo, a de que no Brasil, já na

485

485

década de 1960, devido à maior intensidade da inflação,

“um clima de especulação se instalou em todos os

setores de atividades”, como descreveu Ernane Galvêas.

Mudanças semelhantes foram detectadas em outros

países, como na França na mesma época. Escreve M.

Niveau: “A psicologia do consumidor francês habituado

à inflação aceita as altas contínuas com processo

normal... ele não mais procura os melhores preços nos

mercados... é a completa inversão da lei da oferta e da

procura”.

De fato, no universo inflacionário, os agentes

econômicos procuram esconder distorções e abusos atrás

do processo inflacionário: o que em linguagem correta é

especulação, transforma-se em “remarcação de preços”

– a inflação vai esconder a manobra especulativa. A

estocagem ou o açambarcamento consti tuem apenas

“defesas” contra a inflação futura, porém ao mesmo

tempo perpetuam a inflação. Do lado dos salários,

aumentos insólitos são apresentados como simples

“reajustamentos” em relação a inflação esperada. E,

como sempre nos fenômenos sociais, a expectativa de

um fato provoca o aparecimento do próprio fato e dessa

forma as operações derivadas da mentalidade infla -

cionária vêem-se justificadas a posteriori.

Neste sentido, um economista mais frio disse que

num ambiente inflacionário “todos os membros da

economia deveriam converter-se em especuladores”. (N.

Georgescu-Roegen).

A mentalidade inflacionária funciona, tanto do

lado da oferta como do lado da demanda, ajudada mais

486

486

uma vez pela estrutura do mercado mono-oligopolista e

pela desigual distribuição nas rendas pessoais –

elemento estrutural que favorece a inflação e, por sua

vez, é agravado pela inflação.

Do lado da demanda, a resposta inflacionária é a

febre consumista, como foi possível verificar no Plano

Cruzado.

A este propósito, seria oportuno lembrar que a

idéia de inflação inercial, que foi o diagnóstico do Plano

Cruzado, tinha a sua dose de verdade. Entretanto, se o

choque heterodoxo então aplicado apagou a inflação

passada, a falta de outras medidas ortodoxas permitiu a

realimentação da mentalidade inflacionária – as

expectativas inflacionárias de que tanto se falou nos

anos 60.

Sem dúvida, não se pode levar o combate

antiinflacionário exclusivamente para o plano

psicológico, mas este não deve ser menosprezado. Já

depois da Segunda Guerra Mundial, referindo-se à

inflação, que grassava nos países europeus, um relatório

da antiga Sociedade das Nações (1946) afirmou que “o

tormento inflacionário foi principalmente resultado de

fatores psicológicos”.

Essas mentalidades são às vezes profundamente

enraizadas no espírito da comunidade, sustentadas por

estruturas inflacionárias que vem de longe e sob as mais

variadas formas. Qualquer política antiinflacionária

encontrará a resistência das mentalidades e das es-

truturas, dificilmente removíveis a curto prazo. Assim

sendo, um combate eficiente de longo prazo contra a

487

487

inflação exige, em última instância, do corpo social,

alterações de comportamento no sentido da racio-

nalidade, moralidade, solidariedade e patriotismo. Mais

uma vez, ao enunciar tais objetivos, o impasse eco-

nômico desemboca num problema educacional.

Palestra proferida em 2 de agosto de 1990.

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490

490

O FASCÍNIO DO

DISCURSO MARXISTA

Tornou-se lugar comum apontar a importância

histórica do desmoronamento do império soviético

simbolizado pela queda do muro de Berlim. O abalo

político teve efeitos inclusive no plano doutrinal: a

ideologia marxista-leninista foi profundamente afetada,

perdendo a força com que se apresentou durante

décadas. Constituiria entretanto uma inferência preci -

pitada concluir que com isso a Esquerda abandonou suas

posições, tanto é que um historiador francês, François

Furet, chegou a vaticinar que esta vasta falência

(soviética) continuará a gozar de circunstâncias

atenuantes na opinião pública mundial e talvez a

conhecer uma renovação de admiração.

O fenômeno é intrigante por ter-se manifestado

sistematicamente ao longo da história pública do

comunismo desde 1917 até o citado abalo nos anos 90.

O fascínio do discurso marxista resistiu através das

fases daquela história. Presos por este fascínio os seus

admiradores defenderam-no com perseverança e

fanatismo. Essa dedicação a uma causa poderia

eventualmente ser apreciada como prova de força moral

e devoção, porém tal julgamento torna-se questionável

diante dos meios empregados na defesa de suas

convicções: deturpação dos fatos, camuflagem da

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realidade, propaganda de má fé. E causa espanto o fato

de que tais meios foram e são sistematicamente

praticados por segmentos das elites intelectuais. O

presente trabalho tenta historiar e analisar esta

capacidade de sobrevivência do fascínio exercido pelas

ilusões marxista-leninistas sobre as elites intelectuais.

* * *

Um bom ponto de partida encontra-se nas

palavras de Joseph Schumpeter que reconhecera vários

méritos em Marx. Observa Schumpeter: “Sob um certo

importante aspecto, o marxismo é uma religião... ele

pertence ao grupo de religiões que prometem o paraíso

na Terra”. E conclui: “Isso explica o sucesso do

marxismo”. Estas palavras constituem um pertinente

epígrafe à tese aqui exposta.

A força do dogma deriva também do fato de se

pretender científica e com isso pode satisfazer o espírito

dos positivistas. Porém não deixa de ser estranha essa

mistura de materialismo dialético e histórico com uma

dose de quase misticismo. A pretensão científica

mistura-se com uma visão escatológica e os marxistas

não se incomodam em manipular fatos e idéias a fim de

sustentar seu dogma. Escreveu um competente

historiador da Economia: “A transferência ilegítima, no

sistema marxista, de postulados não provados de um

campo para outro, cujos silogismos são então

transformados em racionalizações do que se tinha

postulado inicialmente... constitui o fascínio peculiar do

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sistema”. (Erich Boll)

Poderíamos ir mais longe e encontrar a

explicação dessa adesão a uma doutrina místico-

científica no avanço do positivismo desde o século XIX

e na sua obra de solapar as religiões tradicionais: “É no

século XIX que a História substitui Deus como Todo-

Poderoso sobre o destino dos homens... porém é no

século XX que se manifestam as loucuras políticas desta

substituição” (Furet). Já Renouvier tinha afirmado que

“o mundo sofre da falta de fé numa verdade

transcendental” (apud Furet) e os marxistas pensaram

tê-la encontrado nos ensinamentos dos mestres Marx e

Lênin.

Com essa mistura de adesão quase mística e

pretensão científica, os marxistas e depois os leninistas

e stalinistas chegaram à convicção de possuir armas

infalíveis para resolver todos os problemas da

Humanidade. Evidentemente tal convicção representa

um forte atrativo não apenas para as massas, mas

também para as elites intelectuais que aqui nos

interessam.

Mas o processo sedutor pode ser mais detalhado.

Basicamente, o socialismo brilha pelas promessas do

seu discurso: pura e simplesmente o paraíso terrestre,

numa abundância sem limites superando a escassez da

Natureza. Mas qual era o elemento motor do processo?

A contrapartida desta perspectiva idílica é um panorama

de ódio, uma vez que a História é movida pela luta de

classes, uma forma de bellum omnium contra omnes . E

a solução não surgirá através do amor “que move as

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estrelas” na imagem de Dante, mas de uma relação de

força, a ditadura do proletariado, isto é, a organização

do ódio para a destruição da classe inimiga. Esse ódio

pode também exercer um verdadeiro fascínio sobre

todos aqueles que estão descontentes com o presente,

mais especificamente com a sociedade capitalista.

O anticapitalismo ou daí o antiliberalismo das

elites encontrou apoio inicialmente talvez como uma

reação emocional contra a Grande Guerra pela qual foi

responsabilizada a sociedade liberal capitalista. Acres -

centando a Segunda Guerra Mundial, tiraram daí a

conclusão de que eliminando o capitalismo se acaba

com as guerras. Mais tarde, agiu no mesmo sentido a

Grande Depressão, concluindo-se que a proposta

socialista levaria a um equilíbrio econômico perfeito.

As elites passaram por cima das contradições e

confusões socialistas ou comunista: levadas pelo

fanatismo ideológico, simplesmente abandonaram os

valores tradicionais da cultura ocidental. Pode-se

portanto falar de uma “traição dos intelectuais”,

retomando a expressão lançada por Julien Benda como

título de seu livro outrora de grande sucesso. Benda

denunciou os intelectuais (les clercs) – as elites que têm

a função de “defender os valores permanentes e

desinteressados como a justiça e a razão. Elas traíram

essa função a favor dos interesses práticos”, ou seja,

políticos. Assim, a idéia de liberdade pura foi

substituída pelo conceito de liberdade econômica, a

justiça pelos objetivos da revolução, a razão pelo

argumen6to da autoridade política – Marx, Lênin,

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Stalin. Esta substituição foi feita graças a um arrasador

aparelho de mistificações e falsificações.

O livro de Benda, ou pelo menos seu título, foi

lembrado por outro livro muito recente de autoria de

Christopher Lasch: A Rebelião das Elites e a Traição da

Democracia – título que lembra ainda mais a célebre

obra de Ortega y Gasset, A Rebelião das Massas . Ortega

tentara explicar a decadência espiritual do Ocidente pela

invasão das massas culturalmente despreparadas para

exercer o poder conquistado. E agora Lasch condena as

atuais elites pelos pecados apontados por Ortega nas

massas, entre elas a incapacidade de organizar e viver o

verdadeiro liberalismo. Houve também nessa adesão

anticapitalista das elites o seu empenho em evitar

qualquer aproximação com o espírito burguês, consi -

derado o mais desprezível dos qualificativos.

* * *

Continuando o exame do fascínio exercido pelo

marxismo, encontraremos como linha mestra a antili -

beralismo e seu subproduto, o anticapitalismo. Entre

suas motivações não faltam boas intenções: afinal, o

inferno está pavimentado com boas intenções. Nesta

categoria poderia entrar um certo idealismo utópico, o

anseio por um igualitarismo ideal – uma visão idílica

tipo Rousseau: de fato, aquela promessa do paraíso que

vimos caracterizar a escatologia marxista.

Com isto, os marxisto-leninistas construíram um

modelo político-econômico ideal e, sendo ideal, rico de

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todas as perfeições. Eles insistiram em comparar esse

modelo com o modelo capitalista real, o qual, sendo

real, não podia deixar de ter imperfeições com todos os

empreendimentos do gênero humano. Conduzidos pela

ilusão da proposta marxista, ficaram obcecados pela sua

realização e pela revolução que devia implantar o

modelo. Daí uma forte propensão para a engenharia

social em cujo nome o regime soviético, paradigma do

processo, achou oportuno usar todos os tipos de

coerção. Cultivam o sonho de uma sociedade totalmente

planificada sem riscos ou surpresas – esquecendo que o

preço a pagar seria a perda da liberdade.

Onde aparece a culpa das elites intelectuais? Em

primeiro lugar na desinformação quando elas pela sua

própria essência tinha o dever de procurar e dizer a

verdade. As eventuais alegações de ingenuidade no

conhecimento das realidades comunistas não constituem

uma desculpa para uma classe por definição esclarecida.

É, por exemplo, estarrecedor que Sidney e Beatrice

Webb, distintos intelectuais do socialismo fabiano

inglês, declararam que a URSS representava o início do

desaparecimento do Estado. Isto quando o aparelho

político e policial do Estado Soviético estava no seu

auge. Ignorância ou má fé?

É verdade que a poderosa propaganda soviética

escondeu as realidades, e o fanatismo das elites tornou-

as presa fácil daquela máquina. Para uso externo a

realidade soviética foi sistematicamente fantasiada (o

potemquinismo, na expressão de Guy Sorman) e as

elites caíram nessa armadilha. É deprimente a história

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de ilustres intelectuais ocidentais, como os Webb já

citados, ou Romain Rolland, prêmio Nobel de literatura,

que visitaram a União Soviética, e só vendo as aldeias

de Potemkin não pouparam elogios ao regime quando de

lá voltaram.

O fanatismo fez com que aqueles partidários

desconsiderassem as advertências feitas por conhece-

dores do regime comunista, os que viveram aquela

realidade e ficaram desiludidos com as falsas promessas.

A propósito desta circunstância vale citar a declaração

do filósofo inglês Bertrand Russel, de que “o

bolchevismo... é o regime detestado como uma tirania

na Rússia mas esperado como uma libertação fora da

Rússia” (apud Furet).

As advertências vieram de gabaritados ex-

comunistas como Pierre Pascal, Boris Souvarine, Panait

Istrate, Ignazio Silone, André Caliga e o mais célebre, o

romancista francês, prêmio Nobel, André Gide, que

visitou a URSS e na volta (1936) publicou suas

impressões, um verdadeiro escândalo para a Esquerda.

Por exemplo, escreveu Gide: “Duvido que em qualquer

país hoje em dia... o espírito seja menos livre, mais

submisso, menos aterrorizado, mais vassalizado”. Mais

tarde, já depois da Segunda Guerra Mundial, a

propaganda comunista foi fortemente desmentida pelos

livros de dois conhecedores por dentro do regime,

Victor Kravchenko (Escolhi a Liberdade) e Milovan

Djilas (A Nova Classe), bem como Orwell, Koestler e

outros.

Mas a traição dos intelectuais aparece de forma

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patente nos meios por eles usados na defesa do dogma.

Um método consistiu em simplesmente omitir os fatos

negativos da gestão comunista, na URSS. Os sim-

patizantes evitaram lembrar o genocídio da coletividade

agrícola, os expurgos, as deportações e liquidações ou

eventos políticos degradantes como o pacto Ribentropp-

Molotov que abriu as portas à Segunda Guerra Mundial.

Os aduladores do modelo falaram ad nauseam nos

progressos econômicos propiciados pela planificação

centralizada, mas não fizeram referências ao seu custo

em termos de trabalho forçado, compressão insuportável

do consumo, falta de eficiência e desperdício.

Quando os fatos não foram silenciados, foram

colocados num contexto em que a interpretação dos

valores tradicionais confundissem a opinião pública.

Hayek já escreveu que para se conseguir o abandono dos

antigos valores, “a técnica mais eficiente... é continuar a

usar as antigas palavras alterando-lhes o sentido”.

Assim, falaram ainda em liberdade, justiça, legalidade,

etc., contudo num sentido contrário ao tradicional. Às

vezes, admitindo os fatos, os partidários do comunismo

procederam a verdadeiras acrobacias semânticas para

disfarçar a realidade. Um professor sério como Charles

Bettelheim chegou a usar eufemismos como por

exemplo “meios psico-físicos de coerção”, para designar

o arsenal de horrores usado pelo regime comunista.

Um exemplo de desvio das realidades foi a

identificação da URSS com a luta antifascista, de modo

que os adversários do fascismo acharam na URSS a

encarnação desta luta – esquecendo que ela própria era

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um modelo de totalitarismo e que a essência do regime

comunista não diferia do fascismo, como tão bem

demonstrou Hayek. Até se admitir essa semelhança, o

comunismo soviético gozou dos louros da luta e

finalmente da vitória contra o fascismo.

A confusão foi ilimitada, oriunda da ingenuidade

ou da má fé dos partidários. Já seria de estranhar que o

homem do valor de H. G. Wells escrevera que “o

comunismo apesar de tudo e a despeito de Marx podia

tomar um poder construtivo enorme”. E por sua vez,

Bernard Shaw afirmou que “Stalin é um bom fabiano e

isto é o que de melhor se pode dizer de qualquer um”.

Às vezes a interpretação eufemística podia

explicar-se por interesses políticos. Assim não é de se

estranhar que Joseph Davies, sendo embaixador norte-

americano na URSS na época dos grandes processos de

expurgo, a eles assistiu sem entender nada ou não querê-

lo por dever do ofício. Mais incomoda é a desculpa que

o grande liberal Hayek invoca no prefácio da edição de

1976 do seu livro O Caminho da Servidão : “A pouca

ênfase que dei è relevância da experiência da Rússia foi

uma falha talvez perdoável quando lembramos que,

quando escrevi o livro, a Rússia era nossa aliada na

guerra”. A verdade teve limites políticos mesmo para

um intelectual como Hayek.

E para fechar esta série de citações de

ambigüidades, vejamos o que escrevia Jorge Amado no

momento em que a URSS e Stalin se encontravam no

seu auge: “Eu amava a URSS exatamente porque lá não

só existe a liberdade de crítica e de imprensa, como o

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exercício do direito de crítica é mesmo um dos

princípios em que se funda a sociedade soviética” (O

Mundo da Paz, 1952). O autor confessou estar pensando

“na imensa ação moral da URSS sobre o nosso tempo”.

E mais: “O passado – os restos de um podre mundo

capitalista – jamais poderá vencer o presente soviético”,

lembrando a “força invencível do mundo que Lênin e

Stalin haviam criado”. Sonho? Ou delírio?

* * *

Em meados do século a ilusão marxista sofreu

sérios abalos. O momento crucial foi o histórico

discurso de Krushev no XX Congresso do PCUS (1956),

quando denunciou os crimes do stalinismo. Começou um

processo de revelação das realidades comunistas,

confirmando o que anteriormente os partidários e

simpatizantes do sistema qualificavam de mentiras

forjadas pelos capitalistas. No clima de relativa

liberalização as denúncias intensificaram-se, oriundas

especialmente de dentro do sistema – foram, por

exemplo, as obras de Pasternak e Soljenitsin, para não

falar dos repetidos testemunhos dos refugiados dos

países satélites da Europa Oriental. A contestação

começou também de dentro, no campo econômico como

as propostas de reforma apresentadas por Liberman e

Trapeznicov na União Soviética. O golpe de

misericórdia foi dado por Gorbachev, questionando o

regime tanto no plano político como no econômico, sem

contudo rejeitar as bases do pensamento leninista.

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Mas o nosso propósito não é discutir as causas e

os efeitos das críticas e eventuais reformas, mas sim,

perguntar qual foi a reação das elites fascinadas pelo

marxismo em face das revelações agora incontestáveis

sobre o regime. Elas, sempre movidas pelo fanatismo,

simplesmente persistiram na defesa do sistema a

despeito da evidência dos fatos. Essa defesa continua

sendo feita através dos mesmos métodos já men-

cionados: silêncio a respeito dos fatos incontestáveis,

deformação dos mesmos, subterfúgios semânticos, e

assim por diante.

Em face da denúncia oficial do stalinismo a

reação defensiva da Esquerda consistiu em rejeitá-lo

separando-o do socialismo “puro” de Marx e Lênin e

escondendo o fato de que os germes do stalinismo –

autoritarismo, centralização do poder, estado policial –

se encontram na tradição de Lênin e mesmo de Marx.

Tanto é que até um grande comunista como Trotsky,

quando magoado pela perseguição stalinista, identificou

a evolução fatal do sistema: da ditadura do proletariado

para a do Partido e finalmente para a do Chefe do

partido.

As elites esquerdistas voltaram para a velha

prática ilusionista, discriminando o socialismo “real”, já

condenado, de um outro “socialismo ideal”, a velha

utopia do paraíso socialista, considerando o stalinismo

como uma simples crise conjuntural dentro da perfeição

do modelo marxista. Dentro dessa tática de acenar com

a perspectiva de um outro socialismo, foi ressuscitada a

figura de Bukharin, suposto paradigma de um

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“comunismo com rosto humano” pretedindo o fato de

que o próprio Bukharin foi um seguidor de Stalin de

cuja política participou até sua própria liquidação.

É um verdadeiro fetichismo quando a Esquerda se

refere, sem maior aprofundamento, a um outro

socialismo, não explicando como seria e como

funcionaria, mas que seria ainda socialismo. Assim, um

líder comunista pátrio, tendo honestamente admitido o

fiasco da teoria marxista e o colapso do socialismo real,

conclama que “temos que reinventar o socialismo”.

(Roberto Freire, JB, 9.06.1991)

* * *

Confesso que me faltam capacidade e fôlego para

analisar todas as manifestações das elites neste período

em que o fascínio pelo marxismo resistiu aos desmen-

tidos dos fatos. Escolhi apenas o exemplo de um

scholar, historiador, professor da Universidade de

Londres e muito louvado pela Esquerda: Eric

Hobsbawm. Refiro-me especialmente a um livro recente,

A Era dos Extremos (1995). Aparece nele o mesmo

empenho em camuflar ou deformar as realidades a fim

de não marcharem a imagem da experiência comunista

representada pela União Soviética. Torna-se evidente o

propósito de minimizar ou mesmo ignorar todos os

graves acontecimentos que comprovadamente estigmati -

zaram aquele regime: a coletivização agrícola e a

liquidação dos kulaks, as deportações e o t rabalho

forçado, os expurgos, o pacto de 1939, a espoliação dos

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países satélites. A despeito das revelações de Gorba-

chev, Hobsbawm sustenta ainda que o sistema socialista

é “economicamente racional em teoria”, mais uma vez a

ilusão do modelo ideal. Aconselha pois “separar a

questão do socialismo de forma geral da experiência

específica do socialismo realmente existente” – a velha

condenação do socialismo real para salvar o dogma.

Assim Hobsbawm, como os seus antecessores ou

coevos, acena com outras alternativas indefinidas: “o

fracasso do socialismo soviético não se reflete sobre a

possibilidade de outros tipos de socialismo”. Quais?

A benevolência para com a União Soviética

estende-se às suas ações políticas. Hobsbawm afirma

tranqüilamente que “a URSS não era expansionista e

menos ainda agressiva, nem contava com qualquer

extensão maior do avanço comunista além do que se

supõe houvesse sido combinado nas conferências de

cúpula de 1943/45” e que “não há índice concreto de

que ela pretendesse ampliar as fronteiras do comunismo

até meados da década de 70”. A URSS apenas “usou

uma conjuntura favorável que não criara”. Se os avanços

dos Estados Unidos são imperialistas, os da URSS

representam tão somente a expansão “normal” do

socialismo. Parece que Hobsbawm viveu num outro

planeta ou o fascínio marxista o cegou por completo.

* * *

Essa mistura de fanatismo e confusão surge

eventualmente mais acentuada no Terceiro Mundo onde

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as elites, além das motivações já mencionadas, estão

menos preparadas e mais sensíveis às promessas

comunistas, bem como à obra da propaganda devido ao

impacto emocional da pobreza ali reinante. A idéia

infiltrada pela propaganda é que só o modelo

socialista/comunista pode resolver os problemas, a

despeito das experiências reveladoras do Império

soviético. Ademais, as reivindicações igualitaristas não

são desprovidas de um certo ódio e revanchismo para

com o mundo capitalista e daí para com o liberalismo

em geral.

Entretanto as suas elites não esclarecem o

funcionamento efetivo da proposta comunista tanto no

plano da igualdade quanto no da liberdade. Rejeitando o

rigor dos dogmas marxistas e descartadas as pretensões

teóricos de Lênin, para não lembrar mais o des-

moralizado modelo stalinista, sobram aos defensores do

mito marxista sobretudo posições negativas centradas

em torno do antiliberalismo, criticar o liberalismo

onerando-o com todos os pecados possíveis: capitalismo

selvagem, imperialismo, colonialismo. Abandona-se

formalmente o cabedal teórico do marxismo ao mesmo

tempo que se continua usando e abusando dos conceitos

tradicionais de imperialismo, dependência e eviden-

temente anticapitalismo e antiamericanismo.

Pode-se dizer que o fascínio do discurso marxista

se manifesta sobretudo em formas negativistas. Essa

posição, bastante cômoda como qualquer crítica des-

trutiva, foi uma constante na atitude dos simpatizantes.

“É fundamental que o argumento comunista foi

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principalmente negativo: anticapitalismo, antifascismo,

etc. O mesmo acontece agora: exemplo, as críticas ao

neoliberalismo sem definir os méritos do comunismo”.

(Furet)

Afinal de contas, a capacidade de sobrevivência

do fascínio marxista estaria ligada, em grande parte, a

essa posição negativista, ao arsenal de críticas a outras

propostas, sem que o socialismo se sinta obrigado a

assumir seus fracassos e justificar as suas propostas. É

suficiente a obstinação cega de seus discursos,

sustentados por uma bem articulada propaganda, graças

à infiltração nos meios de comunicação. E a explicação

desse fanatismo talvez deva ser procurada naquela

observação inicialmente citada de Schumpeter sobre o

caráter quase religioso do discurso marxista – a

promessa de um paraíso terrestre.

BIBLIOGRAFIA SELECIONADA

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