lapassade analise institucional teoria pratica 1973

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I I /)!) ANALISE INSTITUCIONAL: . ,'} / ' : ... __ ,/"" .... {L_..-.-(._ TEORIA E PRATICA CÉLIO GARCIA , MARCO AURELIO LUZ I CHAIM SAMUEL KATZ GEORGE$ LAPASSADE NO PRóXIMO NúMERO DE VOZES ESTUDOS LINGülSTICOS em Iwmeiwgem a J. Malloso Camara Jr . ARTIGOS DE Roman J akobson Thomas A. Sebeok Bernard Pottler Paul L. Garvin Harri Meier Dieter Woll Antonio To'Oar J. G. Herculano de Carvalho Robert Lado Brian Head F'. Gomes de Matos

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Analise institucional de lapassade

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Page 1: Lapassade Analise Institucional Teoria Pratica 1973

I

I

/)!)

ANALISE INSTITUCIONAL:

. ,'} / ' : ... __ ,/"" .... {L_..-.-(._

TEORIA E PRATICA

CÉLIO GARCIA ,

MARCO AURELIO LUZ I

CHAIM SAMUEL KATZ

GEORGE$ LAPASSADE

NO PRóXIMO NúMERO DE

VOZES

ESTUDOS LINGülSTICOS em Iwmeiwgem a J. Malloso Camara Jr.

ARTIGOS DE

Roman J akobson

Thomas A. Sebeok

Bernard Pottler

Paul L. Garvin

Harri Meier

Dieter Woll

Antonio To'Oar

J. G. Herculano de Carvalho

Robert Lado

Brian Head

F'. Gomes de Matos

Page 2: Lapassade Analise Institucional Teoria Pratica 1973

r'.

de

O. MANNONI

CHAVES PARA O , IMAGINARIO

Vinte ensaios que tratam de literatura (Mallarmé, Rimbaud, Sallnger, Henry James, Proust}, de teatro (o problema da Ilusão teatral), da lingüística saussureana e de textos ps/canalltlcos f reudianos, colocando como pólo central a problemática da Abundância do Significado. Instaurada na psicanáflse, esta Abundância do Significado - do ponto de vista de uma teoria geral das linguagens - reformula a maneira de as chamadas • ciências do homem • se pensarem científicas enquanto do homem.

CHAVES PARA O IMAGINARIO

_mais um volume da coleção

Epist emologia e Pensamento Contemporâneo

lANÇAMENTO

+vozEs

-ANÁLISE INSTITUCIONAL

'./ V R , ..

A V. I ' I

EDITO RI 'A~ . ·· · .. ,.::of\/ rt: 44 ·

N p , @ - H e c:::q · 5esesa : · Não é a primeira vez que nossa revista fala de Análise Institucional.

No número 5/1971 {junho/iulho) publicamos o artigo de Georges Lapassade: ·Um ensaio de Análise da Linguagem Institucional", escrito, então, especialmente para aquele .número sobre a Teoria da Linguagem.

Desde então temos acompanhado de perto o trabalho desenvolvido pelo autor francês, mesmo quando discordávamos de sua atuação em nosso meio universitário. Por outro lado. a nossa revista sempre esteve aberta às pesquisas efetuadas no campo da Análise Jnstituçional pelos professores que completam este número: Marco Aurélio Luz, Célio Garcia e Chaim Samuel Katz. Mais que o último, os dois primeiros têm colaborado constantemente em nossas páginas.

Procurou-se - através de um número que foge aos padrões habituais, inclusive com artigos não assinados - situar o problema proposto de maneira clara e precisa, dividindo-o em duas partes distintas: teorizações e práticas & documentos.

Na primeira, diz-se o que é Análise Institucional: · Análise Institucional é um método que visa elucidar as relações reais e não somente }urfdlcas ou puramente subJetivas que mantemos com as normas /nstituldas; a maneira pela qual os Individuas se p6em ou não de acordo a fim de participar ou de dar adesão a estas normas, assim como as formas singulares de organização que surgem e desaparecem·. Mostra·se também o nível de operações desencadeadoras de sua ocorrência e a relação entre prátíc8 teórica e prática Institucional. Na segunda, o processo da prática Institucional aparece sob vérios ângulos: comentério critico de uma "noite de loucuras ", intervenção numa escola de comunicação, uma nota sobre s estada do Prol. LBpassade entre nós etc. Não há necessidade de nos

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deter mais longamente porque os próprios autores escreveram uma apresentação de seus trabalhos. Cabe ao leitor a leitura critica.

Na secçào de Idéias & Fatos destacamos a análise do hospital psiquiátrico de Minas Gerais, de Francisco Paes Barreto e o artigo de Célio Garcia em que tenta responder a esta pergunta: "Qual seria a orientação, o projeto que animaria psicanalistas, pedagogos, psicólogos, terapeutas na sua labuta dláris'r Se devêssemos ainda realçar outro texto, escolheriamos o discurso não pronunciado de Marlon Brando ao recusar o Oscar. discurso, sem dúvida, histórico e que tem muito a ver também com o Brasil nesse momento de defesa do índio contra os gananciosas grupos plantadores de gado, denunci80os e nunca julgados, porque os juízes são brancos.

CJarinclo Neottf

APRESENTAÇÃO

Este número da revista VozES serve para marcar um acontecimento e suas repercussões. De meados de julho a dezembro f,le 1972 esteve entre nós, em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro, o professor francês, um dos criadorc.~ da Análise Institucional, Georges LapasS/lde. Neste periodo. uma pequena parcela da juventude universitária ligada à área dos saberes humanos e soc1ms bem como alguns professores mais velhos tiveram a Análise Institucional como rejer~ncia de seu pensamento e produção cultural. Três meses depois de sua partida, quando procuramos reunir o material para organizar esta revista, temos unuz certa tristeza ao ver o que foi deixado pela trajetoria lapassadiana. As pessoas que com ele conviveram

·e colaboraram se recusam agora a contribuir com fertos. Procuramos abrir espaço para contos, poesias, músicas, peças de teatro, colagens, divagaçt5es, aforismos etc. Uma parte dos prováveis colaboradores se furtou porque não queria escrever numa revista onde houvesse textos teóricos jeitos por «quadrados>; outra parcela, por descaso ou má vontade, por diversas vezes parou de se comunicar conosco (apesar de uma permanente reinsisUnâa nossa). O que é algo para ser meditado. Se é sempre positivo ter uma crônica sobre acontecimentos, ou se uma recusa de se textuafizar não é igualmente importante. Isto aprendemos com a Análise Institucional, o significadq (mas não ainda o significante) da contracultura. E por isto os quatro autores achamos que faz parte da produção teórica essa recusa, e nosS/1 trisfeuz se deve apenas a que valorizamos o texto escrito. Resolvemos não assinar os textos. A idéia original era de que sem um autor identificado em relação a um texto individual se perderia um dos eixos articulatórios da potência teorizante, que com isto se tornaria menos repressiva. Imaginem o professor X assinando uma poesia do Y que é muito doidão; ou o Y co-responsável por textos teoricos sobre antipedagogiaf Quer dizer, irlamos

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6 mostrar uma gama de possibilidades expressivas de uma importante crJrrenle analítica contempordnea e nos sacudir ou reprimir um pouco; coletivamente. Só que o resultado ~ ainda uma revista tradicional, sizuda, pela falta de colaboração dos «desligados~. Mas que é assinada coletivamente (talvez devesse ser assinada também peios que não se presentificaram mas que nem por isto deixam de estar presentes, não?). Isto nos faz pensar no que significa o comprometimen.to com um editor para a entrega de textos datilografados, bonitinhos, numa data determinada, fator este irrelevante para os que se empenham no estabelecimento de ama contracultura. Destruir o tempo e o espaço cultarais é uma das metas iniciais do drop-out, mesmo inintencionalmente, pois, afinal, <eu estou na minha~ etc. Nos faz meditar também sobre o que é uma certa atividade intelectual no Brasil de hoje. Nossa imensa satisfação ao escrevermos textos ou fazermos confedncias para trinta leitores ou oullintes pacientes (<o prazer do texto~ de que tala Barthe$). Ganhamos nossa certeza lógica, exacerbamos nossas idéias até aos cortes epistemológicos mais radicais e falamos qfUlse sozinhos. Ou melhor, para sermos mais rigorosos, o discurso se fala em n6s, mas o outro emplrico não nos escuta, cochilante e cheio. O que é isto e qual · o seu significado, especialmente numa problei7Últica de pais subdeunvolvido, eis a que não podemos deixar de nos dedicar.

O ONTEM faleceu Noel Nutels. Seu lugar mítico demarcado socialmente ua, segundo os jornais, de <grande sertanista brasileiro•. Só que ele o foi de um modo lindo. Vendo o morticínio progressivo dos indíos, Noel perguntou, escrevendo a Léví-strauss, o que se poderia fazer pela sua sobrevivincia. Afinal, teorizar sobre os mitos, as linguas ou os alimentos indigcnas é também uma forma de eliminá-los, preservando seu exótico para que a ferJria contemporânea possa ampllar o Outro inconsciente do homem lxlrguis branco civilizado. Noel o dizia de outro mo(/o. Culto cu1ti~simo, mas falando numa língdagem sofnda, onde os corpos dos índios eram também elaborados teoricamente: <Vocés não :r(Jo antropdlogos, são antropófqon.

Incorporando o sofrimento do outro, Noel se tornou um analista institucional silvestre. Passou a mostrar que o <anfropologuês> reduzia o lndio a não ter corpo, mas só ritos, religiões e costumes dist(ntos; corpo este que é uma das instituições mais preciosas que a teoria anfropoú)gica deveria -não apenas estudar­preservar. Mostrou também como a produção social, mais racional quanto mais formas elaboradas de Tecnologia usar, estava fadada a destruir o lndio, mesmo quando pensasse em preservar sua existincia. Além disto, pela luta inglória e gloriosa que levou para demonstrar seus pontos de vista, sua defesa vigorosa em defesa da vida do lndio, pela celeuma que levantou com sua energia e sua grande emocão e carinho, Noel se tornou um analisador do lndio brasileiro. A Noel Nutels -11nalista e analisador institucional, homem maravilhoso­dedicamos esta revista.

Rio, l i de fevereiro de 1973.

• A COES -

Ensaio de Análise Institucional Condições de ocorrência Os três níveis . Conceitos básicos Instituição, linguagem, desejo

Prática teórica, prática institucional

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, ENSAIO DE ANALISE

INSTITUCIONAL

Análise Institucional é um método que visa elucidar as relações reais e não somente jurídicas ou puramente subjetivas que man­temos com as normas instituídas; a ma­neira pela qual os individuas se põem ou não de acordo a fim de participar ou de dar adesão a estas normas, assim como as fonnas singulares de organização que surgem e desaparecem. Em outras pala­vras, entendemos por instituição não so­mente as formas constituídas,. mas também as modalidades de ação constituintes e os processos de institucionalização que resul­tam dos dois momentos precedentes. As relações sociais reais, assim como as nor­mas sociais, fazem parte do conteúdo do conceito <instituição». Uma outra particu­laridade de Análise Institucional vem a ser o fato dela operar sobre situações con- · eretas na prática social. A Análise é, pois, uma intervenção em grupos limitado~ tais como organizações, instituições (no sentido tradicional do termo), organismos, coleti­vidades. Ela tenta mostrar que, em toda situação, a ação das Instituições ausen­tes/presentes, isto é, a ação simbólica, é uma variável importante. Por conseguinte, não somente a face objetiva da instituição é levada em conta, mas também a face simbólica, não-objetivável em termos de da­dos de um. inquérito ou resultado de uma observação. Na qualidade de modelo de Análise social, alem de introduzir a dimen­são <instituição» nas análises sociológicas já conhecidas, ela chama a atenção para as implicações sociais, econômicas e po­líticas da observação sociológica. Trata-se, para o pesquisador e 'para o analista, de tomac como dados analisáveis, e não como

condições exteriores ao seu trabalho, as condições nas quais ele é chamado, por determinadas instituições, a intervir na qua­lidade de especialista reconhecido. Se fala­mos de observação sociológica, devemos encará-la como instrumênto de trabalho, tanto do analista que se encontra numa organização, quanto do pesquisador. Donde encontramos, atualmente, duas possibilida­des de aplicação da «Análise lnstitucionab: uma primeira quanto ao que chamamos situações concretas (será o trabalho pro­duzido em escolas, hospitais, empresas, or­ganizações ou instituições de um modo geral). Neste caso, existe Análise Institucional onde estão reunidas as seguintes operações: Em t• lugar, análise da <Demanda-., com­preendendo ·a demanda oficial formulada pelos responsáveis e a demanda implicita que se encontra nas entrelinhas desta de­manda oficial. Além disso, existe Análise Institucional quando procedemos à Análise da demanda do grupo-cliente, composto pelos membros da organização. O conjun­to formado pelo Grupo-Cliente e o gru­po-direção compõe o coletivo ou grupo maior sobre o qual vai incidir a interven­ção ou trabalho analitico. Em segundo lugar, existe Análise Institu­cional quando encontramos a <autogestão:. praticada pelo grupo maior em relação a horários, número de reuniões, entrosamento entre as reuniões e as outras atividades cotidianas: ordem do dia, programa, re­partição em eventuais subgrupos, demandas particulares com relação ao grupo de ana­listas, modalidades de pagamento. Os obs-

. tãculos à autogestão da experiência de

Análise Institucional revelam os Ji~itçs, que a Instituição impõe, as restrições que pro­vêem da instituição. Em terceiro lugar, encontramos a regra da <livre expressão:.. Trata-se de restituir, de tra;~;er à tona, de mobilizar durante as sessões de Arálise Institucional o não-dito, os rumores, os segredos da organização, a origem social de seus membros. Os obs­táculos, as impossibilidades a esta mobili­zação logo virão à tona e poderão se tornar evidentes. Esses obstáculos são ana­lisados como reveladores da estrutura ins­titucional e daquilo que chamamos o nãQ­saber dentro das organizações. O não-saber no sentido do desconhecrdo, censurado, negado. Em quarto lugar, a elucidação da «trans­versalidade:., isto é, a dimensão onde en­contramos o fato de se pertencer a outras categorias sociais; o fato de podermos iden­tificar ideologias e outras particularidades que vêm negar o fato de se pertencer em comum a uma determinada organização. Por conseguinte, a alusão a estes grupos, a estas categorias sociais e a estas parti­cularidades pode assumir um aspecto po­sitivo ou negativo: o que se propõe, o que se quer dizer é que essas particulari­dades, essas referências atravessam a or­ganização, eis que o sistema social global, a estrutura da sociedade dividida em clas­ses se revelam, se manifestam na unidade micro-social que é a organização. Se a instituição é o que reproduz as relações soCiais dominantes no seio de uma organi­zação ou de uma coletividade, a análise ·da dransversalidade:. terá que enfrentar resistências reveladoras das relações que os interessados mantêm com as instituições. Por conseguinte, podemos falar de <trans­ferência institucionab, isto é, quando nos referimos aos sentimentos, às fantasias, aos desejos e às frustrações de .cada um para com a instituição. Em quinto lugar: elaboração da <contra­transferência institucional:., ou seja, a aná­lise das respostas que o grupo de analis­tas fornece. O sociólogo, o psicossoci61ogo, o psicólogo social têm normalmente muitas dificuldades em reconhecer as implicações de cada um para com o objeto estudado (implicações de ordem afetiva, política etc.). As resistências a esse reconhecimento fa­zem parte do objeto de conhecimento, de estudo. Estas resistências encontram-se no campo de análise. Em sexto lugar: a construção ou elucida­ção dos canalisadoresJ>. Por analisador en-

tende-se alguém que, através das contra­dições que este elemento introduz na lógica da organização, enuncia e revela as deter­minações a que está submetida a situação. Por exemplo: um subgrupo divergente, através de sua presença e através de seu discurso ou através de seus gestos e ações, provoca nos membros do grupo maior ou coletivo a necessidade de se exprimir, de se expressar ou silenciar certas coisas. Prosseguindo, o analisador é capaz de exer­cer pressões ou então repressões revela­doras das relações de poder flue se en­contram ao nível institucional::f Finalmente, para concluir este parágrafo : o conceito de instituição não se limita a designar um modo de regulação externa aos indivíduos. Seu conteúdo é feito de articulações entre a a~ão histórica dos indivíduos, grupos, coletiVIdades, categorias sociais, sem esque, cer as normas sociais já existentes. Reco­nhecemos af um cuidado em estudar as formas constituintes e não-privilegiar as formas constituidas. Mas a dialética do constituinte e do constituído não se reduz a uma oposição entre normas e <condutas efervescentes» (Gurvitch), eis que as nor­~as instituídas são produzidas pela histó­ria, constantemente modificadas pelas forças constituintes. Por outro lado, as condutas efervescentes não são puramente espontâ­neas: elas só podem se originar e se efe­tiva~ a partir do que já. existe, isto é, a partir das implicações .institucionais dos atores (R. Loureau, 1971b). A segunda aplicação ou campo de trabalho da Análise Institucional pode se identificar em trabalhos publicados recentemente. René Loureau (1971) escreveu· um texto intitu­lado A conw.na: um laboratório histórico. Também Georges Lapassade (1971) escre­veu um artigo intitulado Um analisador hi$tórico, sobre o mesmo acontecimento (A' Comuna de Paris). Vimos portanto. a Aná­lise Institucional abordar acontecimentos históricos, situações vividas atualmente ou registradas em documentos à disposição do analista. Em terceiro lugar, encontramos a possibilidade de uma reflexão sobre Ciências Humanas a partir de concei­tos de Análise Institucional. A Análise Institucional neste caso se constituí nu­ma metodologia capaz de criticar a pro­dução proveniente das Ciências Humanas; t~ata-se de uma contribuição à teoria geral das ideologias. Os mecanismos da ideolo­gia instituem, atribuem aos indivíduos .o lugar que lhes é destinado, dissimulando o fato de que se trata de uma instituiçãl>.

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A ideologia é assim vivida e tida como uma condição natural que as garantias cmplricas e especulativas fundamentam. A proposição geral sobre a qual se basearia uma teoria geral das ideologias é a de que toda ciência, qualquer que seja seu nível atual de desenvolvimento e s~u lu­gar na estrutura teórica, é produzida por um trahalho de mutação conceitual no in­terior de um campo conceitual ideológico com relação ao qual ela toma distância (T. Hcrbert, 1968). Neste sentido, qualquer ciência e principalmente ciência da ideologia da qual ela se destaca. Se qualquer ciência é ciência de uma ideologia, a ciencia das ideologias não pode escapar a esta lei. Seu obíctivo seria a teoria ideológica da ideologia. As Ciências Sociais no estado atual produzem esta teoria e aí está a grande <utilidade teórica~ no que diz res­peito às Ciências Humanas. Proceder à Análise Institucional das Ciências Humanas significaria examinar a situação onde as Ci~ncias Humanas ocupam o lugar de um proccs.•;o que poderia ter se produzido e que elas censuraram c recalcaram. Assim constitt!iu-se. um arsenal teórico-prático de meio~ técnicos-políticos que se dão por objetivo responder a uma demanda prove­niente da formação social existente e que visa adaptar-readaptar as relações sociais reais. Proceder à Análise Institucional das Ciências Humanas ~ignifica estabelecer a distinção, como fez Lévi-Strauss, entre qlei e regr~. Não confundir, portan1o, o pré­consciente da regra · sintática imanente a um sistema fraseológico institucional dado com o inconsciente da lei estrutural que aciona as regras. Resulta dai qu'e a atri­buição do lugar a alguém numa formação social qualquer está impregnada dos me­canismos da lei inconsciente, e não é a tomada de consciência das regras pré-cons­cientes q ue poderá liberá-lo de sua alie­nação social. Neste nlvel, a Análise lns­:itucional seria um aprofundamento dos Instrumentos de análise macrossocial utili­zando os mesmos instromentos de t raba­lho com relação à abordagem analltica encontrada em instituições e organizações concretas.

O Situação da Análise Institucional com Relação à Pri tlca Psicológica

'A Análise Institucional su~deu a uma ,.abordagem que enfati~ava · o significado · eJI1.?Cional das organizações, instituições e

i .

grupos. Max Pagês representa bem aquele periodo quando 4iz: <os elementos condu­tores na vida dos grupos, como na vida dos índivlduos, são os sentimentos em par­te desconhecidos (inconscientes). Estes sen­timentos correspondem às angústias univer­sais do homem (medo de humilhação, de castração, medo do abandono, da super­proteção, de manipulação). Os grupos <!~:­fendem-se frente a estas angústias mobili­zando outras angústias, assim como a parti r de ·mecanismos gerais de defesa que ten­dem a impedir a expressão dos sentimen- · tos, inclusive a expressão individua l ou simbólica~.

Em outro texto acrescenta P ages : «A coo­peração inconsciente na alienação e na identificação é o sinal de uma cooperação e de uma solidariedade inconscientes au­tênticas, profundas, que elas exprimem ao mesmo tempo que negam; a cooperação é uma atividade orientada que modifica a afetividade individual ligada ao encontro na qualidade de significação deste encon­tro~. Finalmente, assinala a função de de­fesa contida na relação de autoridade con­tra um sentimento coletivo atual, isto é, contra um desejo inconsciente de coopera­ção verdadeiramente experimentado pelos participantes de um grupo ou de uma or­ganização. Escolhemos Max Pages para re-

. presentar este per fodo anterior à Análise Institucional porque ele leva às ultimas conseqüências seu modelo, com bastante seriedade científica, sem querer escamotear aspectos que eventualmente o exponham a críticas severas. De uma maneira provo­cante dirá: <as empresas industriais capí· ta listas servem ·de ocasião onde os homens procuram viver a experiência do a.mor, onde os homens fazem a experiência do sentimento amoroso. Digo, continua Max Pages, todos os membros da empN:sa: os funcionários, os operários, os che­fes, os diretores. Naturalmente trata-se de uma experiência muitas vezes vivida no conflito:.. Não me refiro aqui, esclarece o autor, cà alegria do trabalho~ nem à qualquer ideologia do tipo <harmonia-na­cooperação:. que cobre, não a experiência do amor, mas os meios . de que se vale a sociedade para se defender dos próprios receios. Pois bem, foi com essa abordagem do encontro e da cooperação inconsciente, autêntica e profunda que rompeu a Análise Institucional. MalÇ Pages percebeu a dificuldade em que se encontrava e na revista Arguments adiantou : cAs atitudes inconscientes de

unta sociedade deveriam ser abordadas a partir de comportamentos concretos, ativi­dades, estr uturas sociais que as exprimem por um método análogo àquele empregado pela Antropologia, mas aqui aplicado dire­tamente ao conjunto de comportamentos concretos na medida em que se investigas­sem não somente os elementos permanentes mas também as variações instantâneas:r.. Contudo, a alusão que faz o autor às instituições e suas finalidades assim como () propósito de abordar a estrutura social conto portadora e veículo de expressão não é levada às últimas conseqüências. O aut or permanece preso às suas hipóteses de en­~:ontrar o significado emocional profundo t.la vida dos grupos:.. Também a regra do ~aqui e agora:. foi ultrapassada em se tratando de Análise fn&­titucional. A esse problema já se fez alusão no texto de Garcia (1071). Restringir o trabalho ao que se passa entre quatro paredes significa de~conhccer os anteceden­tes úe um grupo (a sua história), assim também as coisas que se situam no futuro (seu caráter prospectivo, suas fantasias com relação ao futuro). Por conseguinte, o an­rcs c o depois do grupo consti tuem objeto tle análise, assim como o que se encontra fora da sak1, nos corredores, no organo­:::rama, ·na organização, ' nas inscriç<ies que se encontram muitas vezes em lugares cen­surados (banheiros etc.). Todo esse mate­rial se constitui em objeto de estudo numa experiencia em Análise Institucional. Vale dizer que a Análise Institucional assim de­finida dá ênfase ao discurso enunciado pelos participantes em situação de grupo, acreditando-se que o referido discurso faz menção à instituição onde, ele, discurso, toma foros de significação. Leva-se em conta o discurso enunciado por outros de­partamentos, outros setores, outros parti-

~cipantes presentes na situação, ou simples­mente lembrados.

LJ A Universidade e o Saber çoroo forma de poder

Uma Instituição a Analisar O Discurso Pedagógico

O ato pedagógico que inspira e dá for­ma à situação de aprendizagem só pode ser entendido se relacionado com a insti­tuição na qual está Inserido. Durante os últimos anos, demos ênfase ao método (,le e nsino e aos aspectos emocio-

nais presentes na situação de apren­dizagem. Temos falado em grupo, em aprender em grupo, em grupo de discussão. Temos fa­lado em relacionamento professor-aluno. Temos falado nas desvantagens da aula expositiva, notas atribuídas pelos próprios alunos, notas atribuídas pelo grupo. Neste caso, incluímos nossa atividade até o pon· to em que fizemos a revisão q ue nos ser­viu de ponto de partida para a redação deste capítulo. Es.-;a ênfase parece ter obscurecido, ter desconhecído um terceiro termo: isto é, o .~aber, a relação para com o saber, o sa­ber instituído em suas formas universi tárias. Essa pedagogia inspirada em Relações Hu­mana!l tem .esquecido o problema da ins­tituição. Vale citar a influência que tem tido Carl Rogers, nesse momento. Bastaria citar seu texto On Becoming a Person. E em Rogers reconhecemos o inovador, o ho­mem de intuições, mas em quem a estru­tura social, as instituições não são levadas na devida consideração. Se o não-direti­vismo é outra coisa que uma máscara ideo­lógica ou ilusão, então não se define como uma transformação da relação particular professor-aluno (como se estes dois seres fossem duas essências universais) mas co­mo uma transformação da relação que mantém o transmissor do saber (o profes­sor) frente ao próprio saber, não em ter­mos de conteúdo em Juta com outros conteúdos, mas na mcdid_a em que ele é institucionalmente produzido, conservado, transmitido, controlado, aplicado e sancio­nado (R. ·Lourau). Em Rogers, o não-diretivismo individual e social não contesta o diretivisino estrutu­ral. cL'auto-formation non-directive n'est pas fondée sur l'auto-gestion de cette for­mation:t, dirá G. Lapassade. Quanto às utilizações das técnicas de gru­po, gostaríamos de dizer que a pedagogia de grupo tende a autonomizar o grupo, esperando dele remédio para todos os ma­les. Ora, o grupo só existe na medida e.m que ele responde a exigências da socie­dade. Por outro lado, podemos dizer que o grupo é um fantasma, nele colocamos todos nossos desejos não satisfeitos, nos­sas frustrações. Em volta da mesa de reu­nião (dita mesa-redonda) acreditamos todos iguais. A mesa-redonda, como sabemos, é uma falácia Ela nega o problema do po­der, que mais cedo ou mais tarde reapa­rece. Anzieu já havia fa lado na c:grupite~, doença que nos tem atacado nas últimas

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dé<:adas.. Fazemos reunião de grupo para tudo. Por outro lado, não queríamos aqui su­bestimar o grupo. O lugar de convergência e de atrontamento das exigências e das solicitações advindas da instituição vem a ser o grupo, mas sem por isso assumir poder mágico. Concluindo este parágrafo: o mediador na relação profellsor-aluno, segundo R. Lourau, parece ser o saber. Mas também neste caso a diferença de status, entre aquele que está encarregado de transmiti-lo e aquele que é encarregado de adquiri-lo, cria uma oposição que as técnicas libe­rais mal conseguem camuflar. Um outro capítulo dessa Análise Institu­cional do discurso pedagógico deve se re­ferir aos exames, às notas. já lembramos a inovação liberal baseada na pedagogia de grupo que consiste em se pedir ao grupo que atribua uma nota a cada colega; ou ainda, que cada aluno estabeleça uma auto-avaliação. O liberal Carl Rogers já havia senten­ciado: «We wou!d do away with examina­tions:t (Personal Thoughts on .fcaching and Learning), e mais: <T he implication would be that we would do away with grades and credits. People would get to­gether if they wished to Jearn:t. O que este autor não disse é que a Aná­lise Institucional do exame nos leva a crer que ele é uma instituição destinada a se~ lecionar, em função do saber, pessoas que tiveram chance de fazer estudos. Pelo ti­tulo que ele (exame) confere, estabele­ce separações na sociedade em nome da­quilo que justamente pretende estabelecer união: em nome do conhecimento. Diria que o exame reflete a função social do saber. "A Análise Institucional deve ser uma inter­venção na prática do ato pedagógico. Po­der-se-ia objetar que o pedagogo não é um Psicólogo Social - é verdade. Por~ tanto, a formação dos futuros pedagogos deveria fornecer os instrumentos . susceptl­veis de serem utilizados na situação pe­dagógica. O professor não seria uma má­quina de ensinar. A análise das condições reai!l de seu trabalho não pode ser dei­xada de lado sem acarretar um isolamen­to e um caráter de magia que envolve ~ada disciplina ensinada pelo professor. A msistêncla sobre o aspecto social e insti­tucional do trabalho escolar restitui à Pe­~gogia seu fim educativo, negligenciado pelas técnitas que visam sobretudo aqui-

stçao do conhecimento. A esse respeito, di­ria que o ensino programado, interessado na eficácia da aquisição, deixa de analisar as ra~ões pelas quais alguém opta por esta ou aquela . aquisição.

O A Aproprla4jio do Saber

Em primeiro lugar, não consideramos o saber como um conjunto de conhecimento acumulado que o professor detém e procu­raria difundir através de técnicas mais ou menos dinâmicas a quem até então estaria privado deste saber. No entanto, reconhe­cemos que há um tipo de conhecimento constituído cuja transmis.c;ão parece em contradição com nosso discurso pedagógico. Por outro lado, sabemos que todo e qual­quer saber é o resultado de uma pesquisa. Contudo, essa pesquisa é o privilégio de alguns que são os criadores do saber. A pesquisa é reservada a uma minoria. E então segue-se a conclusão: n quantidade de conhecimento sendo enorme, s ua difu­são é uma tarefa prioritária. E está jus­tificada a rep11rtição entre aqueles que criam o saber e devem transmiti-lo e aque­les que devem memorizá-lo. A distribuição do saber pode, evidentemen­te, se resumir a uma questão de embala­gem e entrega. Esse procedimento satisfaz algumas vezes o estudante que, desta ma­neira, vê sua exigência neutralizada. Ou­tras vezes, e com ·freqüência, o eshidioso permanece insatisfeito. Pois que, de fato, n.ão . era o saber que ele pedia, mas o poder que está relacionado com (pelo me­nos assim c.rêem os que o pedem) o sa· ber. Essa distribuição do saber neutraliza aquele que vem à escola na sua função de solicitador, no seti papel de quem faz exigências, mas não o constitui em pesqui­sador-criador. Encontrar simplesmente ca­minhos já percorridos significa privar-se de espaço para a criatividade.

O A Reforma · UniversiUirla

A Reforma Universitária ora em curso no Brasil se apresenta em mais de um sen­tido como modernizante. E' de se acredi­tar que a Reforma encontre resistência por parte da Universidade na medida em' que ela, Reforma, implica até certo ponto: em declinio da Universidade, pelo menos se temos em mente o modelo antigo que t em presidido à organiutção e à susten-

tação das estruturas universitárias. Temos visto o Ministério da Educação Nacional desejoso de levar mais longe os objetivos da Reforma, frente à timidez ou hesita­ção do nosso ambiente universitário. Acresce que· a Universidade ainda repre­senta para muitos o exercício do poder a que se fez alusão no texto. Ora, abalar este poder significa pôr em questão um certo número de privilégios. Um caso ti· pico vem a ser a licenciatura de curta duração que obriga a uma redefinição e re­organização do campo das Ciências tal como ele se apresenta na Universidade Brasileira. Por outro lado penso que a noção de sistema não basta na abordagem do con­texto universitário. o <produlo:t (assim chamado), encontrado no final da cadeia de produção, não é tão bem definido como no caso de uma fabricação em série. Fa­la-se que o produto vem a ser em alguns \:asos o chamem culto:~>. E nada menos sistêmico do que o c:homem culto:t. Este vem a ser uma mistura de c:desejo:t, aven­tura intelectual, resposta a uma demanda do mercado, lugar· onde sopitam as mais variadas ambições. Quando se fala em pro­duto, em se· tratando de uma empresa, o Departamento de Produção sabe muito bem de que se trata. O produto (objeto, bem de consumo, matéria-prima) pesa de seu peso obietivo na balança da instituição. No caso do <homem culto:t, o produto tem conotações imaginárias, responde mui­tas vezes ao plano do simbólico, ou tjl)­

vez da utopia. Mas a reforma é moderni­zante. Ela o é na medida em que aciona dispositivos por vezes para-universitários a fim de suprir ·a falta de flexibilidade em atender uma demanda que se faz eviden­te no atual estágio de desenvolvimento do pais. Finalmente, como não poderia deixar de ser, a Reforma prepara, estrutura um no­vo arranjo no jogo de forças presentes na atual conjuntura brasileira. Em que sentido vai se inclinar a balança? Creio ~ecessário ·colocar a pergunta, não para mvalidar a Reforma, mas num sentido prospectivo, já que o sistema (se sistema e_xiste) muda constantemente; já que o des­ltno de uma Reforma é ser reformulada por uma nova Reforma. Somente um acompanhamento cuidadoso do que vai acontecendo enquanto a Refofma se implanta poderá nos dar elementos que respondam ã pergunta feita há pouco. Se alguém for simplesmente contra a Refor-

ma então não poderá perceber o desloca.­mento do poder proveniente da própria Reforma - eis que uma visão sectária impede um dimensionamento da situação. Se alguém idealiza a Reforma, fetichiza seus marcos referenciais, suas proposições­chaves (por exemplo: não duplicidade de ccadeiras:. ou unidades de ensino na Uni­versidade), não poderá perceber a quota de irracionalidade presente em todo sis­tema. Para finalizar, diria que o <produto:~>, «o homem culto•, não é nem adaptativo, deste modo nem sempre ele cassociates or identifies himself readily with the larger organizational of which he forms a par!:t, como parece pensar james Buchanan (1965) - nem tampouco o <produto:t é <an individual utility-maximizer:t - alternativa _que se oferece ao mesmo Buchanan quando ele recorre ao modelo econômico clássico. Nem adaptativo, nem c:utility-maximer:t, o «produto:~> só conhece cpntradições. Não c dizer que ele oscila misteriosamente de um pólo (adaptativo) a outro pólo (c:utifity­maximizer,.). O «produto• fabrica - isto sim - projetos não só no nível do desejo mas também no nível da produção social. Não há distinção especial a estabelecer entre a produção social da realidade e a produção desejante em t ermos de fa ntas­mas, no sentido freudiano do termo. A pro­dução social vem a ser simplesmente a produção de desejo sob determinadas con­dições. A libido não tem necessidade de mediação, nem de sublimação, nem de transformação especial para investi r o cam­po social (Deleuze e Ouattarl, 1972). Nós deliramos o campo social, assim como o campo social invade nossos projetos mais recônditos. E que não se venha pedir à Psicologia aquilo que a Economia não po­de dar, eis que ela atinge o seu !.imite -parece ser a posição de Mancur (1968): cWhere non-rational or irrational behavior is the basis for a lobby, it would perhaps be better tu tum to Psychology or Social Psychology than to Economics form a re­levan( Theory:.. O fracasso da Psicologia (Ciência da adap­tação) é tão grande quanto a falsa mo­déstia da Economia diante do problema aqui citado e pressentido por Mancur, assim como por Buchanan. Para abordar um campo onde a Psicologia se formou, iniciou sua construção como ciência, vamos abor­dar o problema da doença mental, para verificarmos o limite da Psicologia. Este limite está inscrito na própria constituição da ciência psicológica.

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0 Um Hospital Psiqul,trlco

Em um trabalho que tivemos ocasião de conduzir, num hospital Psiquiátrico, ado­tamos estratégia que procurava equilibrar participação dos médicos, pessoal funcio­nário administrativo e demais componentes da equipe psiquiátrica, e burocracia, isto é estabelecimentos de regulamentos, reda­çÍio de ofícios, decisões de diretor. Sem­ptc que possível, as. atividades de p~r!i­cipação nos da~·am p1stas para a defimçao da política administrativa. Na época lasti­mamos que a burocracia seguisse com mui­ta dificuldade a evolução do significado que tem a instituição vivida no nível do grupo. Haveria, pois, sempre esta possibi­lidade do envelhecimento do significante (nível da instituição) com relação ao signi­ficado (nível da vida do grupo). No refe­rido hospital, por mais de uma vez, pen­sou-se em criar dispositivos que assegu­rassem de uma mane.ira permanente o que se procurava atingir com o · trabalho de Análise Institucional; algumas sugestões levantadas diziam respeito a: 1) direção colegiada, 2) grupo de assessores situado entre a direção e o pessoal técnico, 3) reu­niões de caráter permissivo com ou sem a presença do diretor. Nenhuma dessas SO· luções foi tentada de uma maneira siste­mática. De fato, nenhuma delas resolveria o problema ou responderia à pergunta que inquietava a todos nós, psicólogos, psi­quiatras, direção do hospital, funcionários, analistas. Este problema, esta pergunta diz respeito à angústia que experimentamos quando vemos uma insti tuição, um· grupo, ou ainda uma palavra perderem seu sen· tido, passarem a ser denominados por ou­tro nome. Ao que parece, isso nos traz grande insegurança, pois estaria ameaçada nossa própria identidade. Principalmente se essa mudança ·se faz longe de nossa pró­pria experiência, ~ esta se realiza (Con­tra nÓS). Com este comentário ficamos a meio do caminho. A angústia de que se fala no comentário anterior parece solta no espaço, sem nenhuma conotação institucional, sem nenhum vínculo sócio-econômico. Vamos pois levar mais adiante nossa reflexão. Nossa deficiência nessa época consistiu em não relacionar burócracia e participação como faces de uma mesma superficie. Essa separação entre burocracia e participação, em se tratando de um hospital psiquiá­tT ico, tem gerado expcriblcias que vamos ordenar, fazendo alusão a três tipos.

Num primeiro tipo teríamos as experiências que consistem em separar no hospital ( no tempo e no espaço) zonas de psico1era­pia onde prevalecem relações afetivas pes--· soais, de zonas de organização adminis­trativa onde prevalecem relações puramente formais. Um segundo tipo inclui modifica­ções na organização formal do hospital. De uma maneira ainda isolada ~o atin­gidas (sempre que possível analisadas) as atitudes individuais, ao mesmo tempo em que se procurava vencer a resistência sus­citada pelas mudanças introduzidas. Provavelmente, nesse segundo tipo estaria incluído o traball1o que realizamos no Hos­pital, notadamente quando dissemos que nosso trn·balho estava orientado por um movimento de balança entre partiripaçáu e burocracia. Hoje, j á passado algum tem- , po, podemos dizer que se tratava de ve~­ccr resistências (quando conduzíamos ati­vidades de participação tipo Grupo T .) suscitadas pela nova orientação que partia da burocracia. Esta orientação dizia res­peito à renovação do quadro do hospital (quando os médicos antigos deixaram o hospital enquanto os novos se instalavam); exigência de maior rigor quanto à forma­ção dos jovens estagiários; introdução de novos especialistas entre o pessoal do hos­pital, tais como psicólogos, profe.ssoras, praxiterapcutas. Mesmo quando pensavamos acompanhar de perto a evolução da insti­tuição hospitalar para atualizar regulamen­tos mesmo neste caso, tinhamos em mente um' esquema de separação dos dois aspec­tos aqui abordados. Vamos defini r o ter­ceiro tipo, caracterizando as~im o trabalho de Análise Institucional realizado em hos­pitais psiquiátricos. As experiências do terceiro tipo visam modificar simultanea­mente a estrutura do poder e as atitudes. Esse tipo fundamenta-se no postulado de que não existe separação rígida entre fe­nOmenos coletivos e individuais, entre com­portamentos e moda!idades de pensamento que inspiram ações e relações entre as pessoas. Assim é que consideramos pouco útil conduzirmos experi~ncla do tipo Oru­po T. isoladamente, sem inseri-la na ins­tituição de onde provêm os participantes, sem pOr em pauta a própria organização. As experiências definidas como fazendo parte do tipo três, inspiram-se largamente em conceitos e procedimentos elaborados a partir do pen~amento freudiano. Esse pro­cesso de análise visa nfio os sintomas individuais, mas a significação institucio­nal que eles t raduzem. A evolução das

atitudes e das relações interpessoais acom7 panha a modificação das estruturas aqu1 definidas como sistemas de repres_entações simbólicas e de sentimentos coletivos de­te rminantes na vida da instituição. A no­ção de estrutura social por nós propug­nada admite que mecanismos de defesa designam tanto fenômenos S?ciai~ como fe­nômenos individuais. Adm1te tgualme.nte que tais mecanismps obse_rva~lo~ _em dt~e­rentes níveis - indivíduo, mst1tu1~ao, SOCie­dade - estão em est reito relacJOnament~ ~ se reforçam mutuamente. A esse respet­tt) vale lembrar hipótese de f rantz. ~anon, psiquiatra que trabalhou na Argella du­rante a guerra de libertação, segundo _a quat· a maior parte das doenças ~enta1s tratadas no hospital não eram sc~ao as­pectos (já aumentados) das relaç~ ~­dais vigentes no tempo da dom1naçao francesa em outras palavras a relação co­lonizado~-colonizado. Para André ~evy . (que tomamos como orientação para ~~~cuttrmos 0 problema das estruturas. so:_1a1S . e . de suas relações com as mohvaçoes indiVI­duais) não poderiamos afirmar que as es­truturas sociais são determinadas pelos ~entimentos coletivos e atitudes _e que es­tes elementos constituem a reahdade fu~­damental, ma~ que as atitudes ~ os se_nb­mentos coletivos (muitas vezes mconSCI~n­temenie) estão ligados às representaçoes das estruturas.

objeto, ritual da circunstância, pri~il~gio do que fala: eis três tipos de pr01b1ção que se cruzam, se reforçam, formando uma grade complexa onde se encontra preso o doente menta~ e de onde ele tenta uma explicação com o fl!Undo (tutelad~ como poderia ele se mamfestar?) . O dtscurso, aparentemente, parece pouco, .~a~ desde logo percebemos que as prmb1çues que a ele se referem são relacionada~ com o poder e o desejo (tutelado quer dtzer des­pojado do poder político; i_ntcrnado qu~r dizer privado, longe do ObJ.eto do deseJO - o hospital onde trabalhe! era um hos­pital só para mulheres).

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0 o Paradoxo Transparece ... o Discurso da Instituição ... O

Minha hipótese é a seguinte:_ suponh~ que em toda sociedade a produc;ao do discur­so (da fala, da expressão) . é . co~trolada, selecionada, organizada e red1strtbUJda . atra­vés de um certo número de procedm_ren­tos cjue tem por função afastar os pengos c controlar as ameaças. Numa sociedade como a nossa, conhecemos perfeitamente a exduáão - que é um dos exernpl_os dos mais evidentes quanto aos procedtmentos acima aludidos (interna~ento de pacien­tes). Nem mesmo a comunidade tera~u­tica foi capaz de encaminhar o _problema: ela liberou o doente mental e mternou a doença mental. Próximo à exçlusão temos um outro procedimento, bastante comum, que é a proibição. Sabemos perfeitamente que não temos direito de dizer tudo, que não podemos falar de tudo, em qualquer lugar. que, enfim, não é qualquer um que pode . falar a qualquer momento. Tabu do

O O Poder

0 movimento de Antipsiquiatr_i~ ati~ge nos-­sas posições ideológicas tradtcto.nal.s. Colo­cando em questão u status atn?ul_do. pe!a sociedade à cloucurn:., a AntípSIQUtatna contesta a concepção ~on~er~a_?ora ~ue tu.n­damenta a criação de mStltwçoes alienantes, abalando assim os fundamentos sobre os quais repousa a prática médica e o poder médico. (Só tive noticia de um caso d.e violência física por parte do _pessoal psi­quiátrico, foi quando uma pac1~nte . desres­peitou a autoridade de um médico, fechan­do-o numa sala de secretaria, c<?nser~ando a chave consigo. Invertia-se a Sltuaç~o : o mMico queria sair, a paciente não. deJXa~a. A chave estava com ela. A bnncade1ra acabou mal para a paciente). O Con.gres­so de Psiquiatria realizado e~ Araxa en­sinou-nos algo extremamente mter~ssan~e: as escalas de avaliação, os questio~ár1.os nos mostram uma tendência entre ~qu!a­tras no sentido de uma menor ace1taçao, no final do Congresso, em relação à Co­munidade Terapêutica (tema do Congres­so). A equipe que conduziu os trabal~os de avaliação aventou hipótese nos segum­tes termos: o Congresso de Araxâ colo­cava os psiquiatras, à medida . q_ue ~s discussões progrediam, frente à Jttunênct~ de uma prática de Comunidade Terapêut~­ca cada vez mais extensa, cad~ v.ez matS efetiva. Ora, Comunidade Te.rapeutica quer dizer para o psiquiatra, assim como para a instituição psiquiátrica de ~m m~o. g~­ral nova repartição de papéiS, redtStnbaJ­cã~ de poder. Não é fácil para qualquer um de nós desistir de . uma parte da liderança exer cida, renunciar ao exercido do poder ao qual estamos habituados.. P or­tanto, a iminencia de uma Comunidade

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16 Terapêutica provocou entre os colegas psi­quiatras um recuo na aceitação desta mo-. dalidade de relacionamento com o doente mental, pela percepção clara ou não que tiveram da situação. O mesmo raciocínio poderíamos utilizar para entender o entu­siasmo crescente, no caso (maior no final do Congresso do que no inicio), demons­trado por psicólogos com relação à idéia de Comunidade Terapêutica.

O O Doente Mental Ausente / Presente

Laing e Cooper nos mostraram que a doen­ça mental (a loucura) não existe cem!> um individuo; trata-se de um rótulo im­posto por um outro. Pa ra falar a ver­dade, nos defrontamos com uma situação onde o que há para ser ouvido é a ma­neira como a palavra alienada se encon­tra presa nas malhas de uma palavra alie­nante. Nos dizeres da Antipsiquiatria, a loucura não é jamais a falha contingente, nem a soma das fragilidades de um or­ganismo; ela é, pelo contrário, a possibi­lidade permanente de uma falha sempre presente. (0 doente foi o grande ausente no t rabalho que conduzimos no hospital a que nos referimos). Nada nos autoriza a dizer que a doença mental seja um insulto à liberdade, como pretendem os psiquiatras liberais e liberalizantes; ela ~ a fiel com­panheira do homem, ela segue e acom­panha os movimentos do homem. O ser humano não pode ser compreendido sem a doença menial, sem a loucura. (Não é a Psicologia que detém a verdade sobre a loucura, e s im o contrário). O doente mental é, portanto, examinado na portaria pelo médico de plantão. Fre­qüentemente é levado por famili ares que querem se ver livre dele, ou pela policia, no caso de hospitais para indigentes, que assim decide internar o c:loucot . Em se­guida, é encaminhado para uma enferma­ria onde vai aguardar os exames cllnicos complementares. Depois, deverá se subme­ter ao tratamento indicado. E não se fala mais nisto. Ele está presente. Mas faz-se o posslvel para não se falar nele. No dia primeiro de Maio de 1968 participei de ex­periência extremamente interessante no Hos­pital onde aprendi o pouco que aqui re­lato. Esta nova experiência intitulou-se c:Reunião Comunitária de Hospitab e con­sistiu num intercâmbio de papéis. Durante vinte e quatro horas, cada um doa médi-

cos, cada um dos funcionários, cada um ocupou um papel diferente daquele de que se via incumbido habitualmente. Comentá­rio à margem, no meu diário de expe-riência: · cE' uma pena que os doentes não tivessem sido incluídos, pois só então teríamos atin­gido o centro da questão,. Tínhamos a impressão, na época, de estar revirando completamente o hospital, vasculhando in­tei ramente suas estruturas, sua rotina. Que todos sairiam daquela <Reunião Comunitá­ria:. com outra visão dos problemas, mu­nidos de tolerância para com as imperfei­ções do sistema, dispostos a progredirem na aprendizagem do trato com a doença mental. Pois nada disso aconteceu.' Ou pouco, muito pouco. De fato, alguma coisa deve ter acontecido. Pois o vácuo não per­dura. Assim, , a jovem equipe, obíeto de · trabalho de Análise Institucional na época, ocupa hoje postos de direção de hóspitais, lugares de destaque nas associações cien­tificas e profissionais, consultórios de clién­tela particular. Houve um deslocamento da região onde se processava o conflito, mas os termos do conflito continuaram os mesmos. Antes do trabalho de Análise Institucional havia de­fasagem entre um grupo jovem e um grupo mais antigo. O antigo retirou-se, deixando lugar aos mais jovens. Os mais jovens passaram a viver conflitos que muito têm a ver com a parte censurada da Instituição e que jamais foi abordada. O processo de exclusão continuou sendo o procedimento por excelência, mesmo em se t ratando da relação frente ao saber. Onde residiria o impasse dessa investigação que não é ca­paz de nos dar condições para nos apro­priarmos do saber, do conhecimento como meio de ultrapassar as contradições?

O O Saber, o Conhecimento

A\?andonando os procedimentos cientlficos, faremos surgir um campo de onde o sa­ber poderá ser interrogado num contexto diferente. O abalo introduzido pela An­tipsiquiatria na instituição onde estão in­ternados os loucos, coloca a loucura em situação de ser percebida de uma maneira diferente e o psiquiatra a repensar sua própria relação frente ao saber. O que a Antipsiquiatria procura preservar, como nu­ma Psicanálise, é uma forma de saber que nunca é dado, e que se revela na lingua­gem do paciente, como se fosse um acon-

tecimento que se repete e que se revela nas falhas, nos lapsos, nos trocadilhos, nos esquecimentos contidos no discurso. Ela procura criar condiçOes para que o discur­so da loucura venha a ser enunciado sem restrições. A Antipsiquiatria não conhece o veredicto, isto é, ela não utiliza o .-dos­sier,, a pasta, a qual se é de alguma uti­lidade, que freqüentemente serve para tornar mais difícil a apreensão dinâmica de uma situação (a do paciente). A crença do pú­blico no que está escrito pelo doutor, pelo psicólogo em se tratando de testes, é um dos aspectos que orienta a entrevista com ( l paciente, para o estabelecimento de um veredicto. E' a família que pede esse ve­redicto. Ora, poderíamos dizer que é mais do lado da . família do que do lado do paciente que há alguma coisa a ser des­lindada, elucidada. Em reunião de grupo no cXIII arrondissemenb de Paris (onde

se levou a efeito a experiência mais ex­tensa de Psiquiatria setorizada) foi res­pondido a um pai que relatava o caso de seu filho para saber se ele (o filho) era ou não louco: c:Se ele ~ louco, não sa­bemos, mas que a família X está louca, tudo nos leva a crer,. Que tipo de Ciência seria praticada nessa instituição que seria o hospitaJ psiquiá­trico, tal como nós o conhecemos? Poder­se-ia dizer como Melman (1967): <O cam­po da Psicopatologia até Freud caracteriza:­se por uma certa aridez; nele encontramos noções tomadas por empréstimo a filósofos e ideólogos que constituem o velho fundo comum das idéias numa comunidade; seu caráter patente de inadequação com rela­ção ao objeto a que se destina (ou que tem em mira} o sintoma, nunca impediu uma aplicação e uma prática que é a da Psiquiatriu.

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QUANDO OCORRE ANÁLISE INSTITUCIONAL

Existe Análise -Institucional quando estão reunidas as seguintes operações:

I. Anâlise da Demanda: que compreende a demanda oficial formulada pelos responsá­veis, e a demanda implicita que se encontra atrás da demaoda oficial.

2. Autogestio: ~ o grupo cliente que decide sobre horário, número, espaço entre reu­niões, pagamento dos analistas etc.

3. Regra de liv~-expresslio: durante a aná­lise, o não-dito, os rumores, os segredos da organização, a origem socíal dos. par-

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ticípantes serão 4'trazidos à tona>. Os obs­táculos a esse deslocamento do <não-dito>, são analisados como reveladores da es­trutura institucional e daquilo que é o «não-saber> no interior das organizações. cNão-saber> no sentido do desconhecido, censurado e negado dentro da instituição.

4. Elucidações da transversaUdade: a divi­são da macro-estrutura social em classes, ideologias e outras particularidades refle­te-se no microssistema que é a organiza­ção, impedindo o <pertencer em comum:. a uma determinada instituição pelos seus membros. A análise da transversalidade en­frentará resistências reveladoras das rela­ções dos interessados para com o micros­sistema, e aqui falaremos da <transferên­cia institucional> que é o conjunto de desejos, frustrações de cada um para com a instituição.

5. Elaboração da Cootratransferência Insti­tucional: é a análise das respostas que o grupo fornece. As dificuldades de reconhe-

cer as implicações de ordem afetiva, polí­tiCa etc., para com o objeto estudado exis­tem, e as resistências a este reconhecimen­to estão também no campo de Análise.

6. Construção ou elucidação dos analisado· res: analisador é aquele que, através de contradições introduzidas na lógica da or­ganização, enuncia e revela as determina­ções que se escondem na lógica da situa­ção. Existe o analisador natural, que é exemplificado pelo <grupo divergente:., o qual - pelo seu discurso, presença, ges­tos ou ações - provoca nos outros mem­bros a necessidade de expressar ou silen­ciar certas coisas. Ele exerce pressões ou repressões no sentido de revelar as rela­ções de poder que se encontram ao nível Institucional. As outras operações mencionadas acima constituem os analisadores construidos para desempenhar um papel no dispositivo ana­lítico da intervenção. Dispositivo este que é o analisador experimental de base,

OS TRÊS NÍVEIS , DA ANALISE E A MUDANÇA

Como distinguir a cdimensão institucío­nab nas situações de formação e de in­tervenção?

A. As Estruturas

Tomemos como exemplo os Seminários de formação - aliás, foi justamente nestes seminários que começamos nossas pesqui­sas institucionais. A análise dos seminários de dinâmica de grupo leva-nos a descobrir uma dupla articulação do reprimido, que podemos enunciar da seguinte forma:

I) A ênfase que é dada à análise do grupo por si .mesmo (Grupo T, grupo centrado sobre SJ mesmo etc.), quaisquer que sejam os princípios desta análise (Jewlniana freu­diana, rogeriana), fa~ surgir um certo ma­terial analisável, que deve ser analisado. Mas, ao mesmo tempo, esta análise pode

ocultar as questões colocadas pelo nlvel· que chamaremos agora de organização da formação. • ·

2) A organização da formação, no mo­mento em que for analisada, deverá ser «ultrapassada>, para ser compreendida, pe­la análise da instituição da formação (o campo institucional, isto é, a instituição da relação entre o saber e o não-saber etc.). Temos, portanto, três nivels de análise, que devem ser trabti/hados:

a) o grupo; b) a organização; c) a instituição.

A tendência que encontramos com maior freqüência entre os formadores é a de se prender ao primeiro nlveJ, o nfvel do gru-­po; às vezes, mesmo o nivel especifico do grupo é ocultado pela análise psicológica

dos individuas que o compõem e de suas inter-relações (em Bethel, M. Pagês obser­vou um certo abandono do nfvel do grupo em beneficio da psicologia dos indivíduos em grupo). ·

a) O nível do .grupo é aquele onde se passa, em primeiro lugar, a análise. O grupo é o conjunto de pessoas reunidas aqui e agora, com um monitor, para se dedicarem à atividade de formação.

b) O nível da organização diz respeito à gestão (esta palavra é tomada em seu sen­tido mais amplo de arranjos relacionados com a programação da sessão). Assim, o seminário de formação é organizado em função de certos objetivos que foram de­finidos previamente pelos formadores e que são em seguida propostos a seus clientes (os estagiários), que deverão alcançar es-­tes objetivos; alguns meios são utilizados durante o seminário, como por exemplo, os grupos de evolução, as exposições, os intergrupos, os grupos comuns e as as­sembléias gerais. Chamaremos organização da jormaçãq esta disposição dos papéis e das atividades: a distribuição das tarefas, dos status e dos papéis (os formadores, os analistas, os conferencistas, os estagiários) utilizados no sentido de alcançar os objetivos da forma. ção (atividades de auto-análise do grupo, exposições, horários, programas etc.). Ora; na prática tradicional de estágios e semin,ários de formação, nunca se faz uma análiSe do aqui-e-agora em termos deste nlvel organizacional. Não são examinadas com maior profundidade as relações entre os indivíduos que estão sendo formados e a <organização> que produz o estágio, que distribui as circulares, que toma nota das inscrições, que paga os honorários dos animadores, que planeja as atividades anuais. Esta organização dos seminários é, freqüentemente, um grupo profissional privado de psicólogos. Geralmente; o nível organizacional é dei­xado na sombra. Não é abordado mais profundamente um problema que poderia ser assim enunciado: de que maneira são organizadas as <Associações de Psico-so. ciólogos> especialistas. em formação (e em intervenções)? E ainda: de acordo com que princípios, no interior destas organiza. ções, foi organizado este estágio, este se· minário do qual atualmente somos os <par­ticipantes»? De que maneira, enfim, vive­mos esta organização - seus horlirios,

seus programas para os estágios, que es­capam ao <não-diretivísmo> relegado so­mente ao nlvel de grupo? Que poderiamos dizer do pagamento exigido para a par­ticipação?

c) O nivel da instituição aparece quando descobrimos que, para que a formação seja desenvolvida através de certas estruturas organizacionais, é preciso que exista: a) Uma certa divisão e quantificação do tempo social (o tempo dos relógios; o calendário; um determinado organismo de formação agricola só pode organizar seus estágios no inverno, em função do ritm0 dos trabalhos no campo e sua relação com as estações). Por exemplo, o tempo ado­tado na escola, que não é o tempo das fábricas nem o tempo da agricultura, que é mais próximo do primeiro que do se­gundo devido a certas razões históricas. Durante os seminários adota-se, como se ela fosse universal, uma divisão do tempo socialmente aceita, com normas bastante rígidas, e que são em seguida legitimadas pelos <racionalistas> pedagógicos ou psi­canalíticos ... b) Uma divisão do saber, que faz uma distinção entre aquilo que pode ser desco­berto através da própria experiência (e da auto-análise) e aquilo que deve ser trans-­mitido; aquilo que, cdentro do campo da análise>, é pertinente a um certo <saber> sobre os grupos, e aquilo que não é per­tinente. Da mesma maneira as discipli­nas ensinadas nas escolas são cada vez mais separadas, apesar das tentativas que são feitas para <remendá-las> nas ativi­dades chamadas cinterdlsciplinares>. c) Uma ligação, geralmente impllcita, en­tre o Saber e o Poder, isto é, o Saber dá o Poder sqciai, permite assumir certos car­gos na divisão técnica e social do traba­lho. Além disso, a separação das duas tend~ncias ( cas duas escolas:.) permite a reprodução da sociedade de classes. d) Uma referência à idéia bastante geral da escola defínida como um lugar coletivo de formação separado das outras práticas sociais. Sabemos, entretanto, que esta idéia de escola apareceu numa determinada épo­ca da história e que está ligada, funda­mentalmente, ;o modo de produção capita­lista, que universallza esta forma de trans­missão (a cescola para todos:., a escola obrigatória). Esta escola serve de modelo estrutural para qualquer empreendimento que vise à formação. O não-diretivismo não modifica esta relação básica. •

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20 e) Uma relação de clientela, que é mais especifica, e que aparece quando um grupo profissional privado coloca seus serviços no mercado da formação. Esta forma ins-­titucional está relacionada com a institui­ção do mercado na sociedade onde atua, dependente da instituição dos serviços (compra e venda, e também honorários); a profissão de formador sendo, então, de­finida como uma profissão liberal (como as profissões de psicólogo, de médico, de advogado ... ) . Uma relação em t ermos de dinheiro está ligada a esta relação de clientela «privada>: a formação é paga. (Quem paga é uma organização ou os próprios indivíduos). E este pagamento en­contra seu lugar e seu sentido no inte­rior de uma sociedade onde a moeda é o equivalente universal dentro do sistema de trocas: o dinheiro é também uma instituição. Tudo isto que foi enumerado acima, que podemos classificar como sendo de ordem institucional, só pode ser explicitado . e examinado através de uma análise. •

B. O Problema da Mudança

O substrato institucional age, portanto, im­plicitamente na formação. Ele constitui, também, o objeto da intervenção analltica nos grupos e organizações. Mas, mesmo neste caso, não podemos vê-lo diretamen­te: vemos que uma fábrica produz auto­móveis; não vemos tão diretamente que ela produz lucro e que reproduz o capi­tal. Vemos que uma determinada organi­zação é hierárquica. Não percebemos dire­tamente, entretanto, como e porque a so­ciedade é hierarquizada. E, sobretudo, não percebemos que tudo isto - o lucro, o capital, a hierarquia - não são fatos na­tura!s ~ ~ternos. Não percebemos que, se as .mst1fU1ções fossem transformadas, po­denamos nos organizar de outra manei­ra, poderíamos mudar a organização da formação. Mas como mudar? Até aqui, estivemos restritos ao nível de uma an~lise estrutural dos grupos, das or­gamzaçoes e das instituições. A partir de agora, e antes mesmo de abordar como faremos posteriormente, os problem~s teó­ricos da mudan~a institucional, façamos uma reflexão a respeito da questão da mudança que é possível dentro das práti­cas que acabamos de descrever.

a) O grupo: dizemos que ele <evolui~, produzindo, eventualmente, mudanças indi­viduais nos participantes. Entretanto, há alguma coisa fundamental que não pode mudar dentro do <grupo de formaÇão:~>, e é justamente a relação de formação, pois que esta relação é instituída, ela significa a transversalidade da instituição dentro do grupo. E' por isso que a formulação do problema em termos de «relações peda­gógicas:~> (ou de pslcopedagogia da relação) faz com que a instituição seja ·ocultada dentro do grupo. Esta formulação dissi­mula, através de uma mudança ilusória, aquilo que é fundamental: a transforma­ção da relação de formação ao nlvel do grupo não pode se efetuar dentro do grupo.

b) Por isso, podemos tentar introduzir a mudança agindo ao nível da organização. E' neste nível que intervém a questão da autogestáo pedagógica. Quando propuse­mos, em 1962, tentar a autogestão de um estágio de formação, sem ter ainda per­cebido bem todas as implicações teóricas deste . projeto, nossa proposição foi rece­bida (ou mellior, mal recebida!) como um empreendimento irrealizável, uma utopia in­dividual Um pouco mais tarde, quando a idéia de <a.utogestão:o, ou mesmo de .:co-gestão> de programas foi ace1ta na universidade, L. Althusser «demonstrou> que o não-saber não pode co-gerir o sa­

·ber: de que maneira aqueles que ainda não sabem o que vão aprender um pouco mais tarde poderiam decidir, nesta condição .. de não-saber, o que é bom para eles? Maio de 68 varreu todos estes sofismas. Entretanto, na prática da . formação, são mantidas as formas tradicionais. Mas, com uma importante diferença: hoje, em 1972, são os próprios estagiários que às vezes se propõem a autogerir o estágio, ou seja, a organização da formação. Esta autogestão ass\lme então a forma de um contraprojeto organizacional e pedagó­gico. Não se trata de um debate puramente teórico, 9u de um <desvio ideológico:.. O <desvio:> é agora <organizacional:.. Trata­se de uma contraproposta de organização. Entretanto, pode-se observar que, se ela é aceita, os novos organizadores tendem a reproduzir o que já existia, na organi­zação institucional da formação. Interpre­tamos estas contradições dizendo que o peso do instituldo limita a inovação ins­tituinte. Em outras palavras: agir sobre a organização . não é agir sobre as insti-

tuições que atravessam esta organização. Para mudar a organização, seria preciso jã começar a mudar no nível da instituição. As. intervenções nas organizações sociais parecem, às vezes, · atingir mais diretamen­te as instituições. Na realidade, a resis­tência . à mudança - que vai até a sus­pensão destas intervenções, ou sua anula­ção prática - se estabelece em dois níveis, que importa distinguir:

O um nível organizacional, onde atuam os mecanismo.s de burocratização. Com efeito, a teoria da burocratização é uma teoria basicamente organizacional (na linguagem de· Max Weber e, posteriormente, dos so­ciólogos). Ela se torna institucional quan­do a relacionamos com a teoria do modo de produção e das classes sociais.

O um nível institucional, que é aquele .da · formação social como um todo. já lembra­mos que a organização da produção dis­simula a instituição da mais-valia. Mudar radicalmente a empresa não é somente mu­dar sua organização (a comunicação, a divisão de tarefas etc.). Trata-se, funda­mentalmente, de mudar o que chamamos a forma que assume a produção e a repro­dução das relações sociais - isto é, a instituição. (Aqui, no caso da empresa, a instituição das relações de produção, a ven­da da força de trabalho ele.). A análise da resisffnda à mudança (e, mais especificamente, das resistências à forma­ção e à intervenção) deve se fazer de ma­neira diferente, conforme se refira aos níveis dos grupos, das organizações ou das

. instituições. •

Em um movimento social como o de maio de 1968, a cmudança:. visa abertamente as instituições. Por exemplo, a in.stituição universitária, e não somente a relação pe­dagógica, ou a organização do ensino, mas o aparelho universitário como tal, engaja­do, assim, num processo de destruição. Sabemos que a resposta consistiu em mu­dar somente a organização, não dos es­tudos, mas apenas da gestão dos estabe­lecimentos. Assim, a divisão instituída do saber não foi modificada, e nem poderia sê-lo, radi­calmente, porque esta mudança implicaria uma desordem generalizada dos sistema, institucionais, ou seja, em linguagem mais clássica: uma revolução.

O Conclusão

Vimos que a reflexão crítica sobre as prã­ticas de . análise e de formação (produ­zidas pelo que chamamos de movimento psicossociológico) nos levou a marcar m~ lhor a especificidade dos trts niveis da análise, e a elaborar a teoria de suas in­terações. No final deste trabalho, torna-se evidente que estes níveis, ou cmomentos>, não se excluem mutuamente. Eles estão numa relação dialética. Mas, simultanea­mente, torna-se· também evidente que, do grupo à organização e, em seguida, da or­ganização à instituição; partimps do mais. vísivel em direção ao mais escondido, da aparência em direção· à «essência». O mais escondido é a instituição, lugar onde se encontra o inconsciente político, onde se cruzam as transversalídades sociais e aS instâncias do modo de produção. ·· ··

NOTAS

• Em 1962, fazlamos OJ'Osiçllo entre o grupo e a /nstltaíçáo,

· deixando d~ lado o elo repre­sentado pela organfza&lio. Den­tro da noção de instltulçAo co­locávamos, ao mesmo tempo, certos prol>lemas organizarionafs

. (organização material e peda­gógica do seminqrío) e o campo especificamente ínstilucion~l. A relaç!o institulda por toda par­te ~ntre o Saber c o não-saber. a exlst~ncia de lugares ~epnra­dos e Instituídos para a forma­-:ão, Isto é, a instituição univer.­sal d., escola, def;nem o campo fn&tituçiona l QlJe atravessa (trana­versa.UCiaiJe) ~s campos ou oJveJs

do grupo e da organiuçllo. • O nllo-<liretívismo não modili· ca e não podt modificar aquilo que chamamos at relar.õts Jru­tflulda& dé formação. No máxi­mo. e1e pode s,mboHzéu uma cont~stação às form as autorila­rias que esta relação assume. O nJl,. .. dtretivismo te .... 1~ a nJ;lcorc­~lzar a questlo institucional das reJur.õe& ae Jormaçllo, cuja tra­dução peicologizada. cst~"\ contida em fórmulas como, por exem­plo, a das "relações pedagó­gicas'~. s Segundo Marx, a an6US-e só é nece~sárta quando se trata do que. está "*escondido": a expto·

raçlo lenda!, com os dlzln;tos e a corvéia, é diretamente v•:d­vel e p81a ela nao há necusl­dade de análise. Entretanto, é necessária uma análise para ~or• nar clara a exptoraçlo c;op•l!­lista, dlsslmulacla na produçao da mais-valia. • Cabe ainda articular a reta­~ao dos trt~ niv~ls com: de um lado, a teoria do modo de produção; de outro, a teoria do cicscjo e da repressão. A artt­cu:aç~o $e faz ao nivel das Ins­tituições da sexuali~aae, da fa­míUa da separaçlo de- sexos c, por '01.1tro fado. 110 nlvel da orgaalzaçlo da prod11çlo.

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22 , ALGUNS CONCEITOS BASICOS

DA PEDAGOGIA INSTITUCIONAL

Instituição - Este termo pode ter dois sentidos: Como dado, a Instituição é um sistema de normas que estruturam um gru­po social e regem sua vida ou seu fun­cionamento. Como ato, a Instituição pode significar o lugar de formação ou educa­ção, como também o ato de instituir, de formar.

Instituição externa e Instituição interna -Toda instituição social se apresenta como um sistema de normas. A Escola é regida também por normas referentes à obrigação ~colar, horários, emprego do tempo, ati­VIdades escolares, notas, freqüência etc. Por conseguinte o trabalho pedagógico do corpo docente, da diretoria e da adminis­tração se situa sempre num quadro insti­tucional: a sala de aula, o departamento, a escola, a universidade, o ministério da educação. Entre estas instituições distin­guimos: as externas e as internas.

Instituições externas - são estruturas pe­dagógicas exteriores à classe, ou à esco­la: o currículo mínimo, leis do ministé­rio, regimentos que são impostos de fora e que determinam o funcionamento da escola.

Instituições internas - é o conjunto de técnicas institucionais ou educacionais que se pode utilizar na sala de aula ou na escola - como cargos, funções, horários, métodos, atividades educativas. Se a escola ou a sala de aula é uma instituição no sentido de que algo é ins­tituído - é criada por leis externas e por elas mantidas - ela é também uma lns­tit.uição no sentido de que pode fazer ou cr1ar suas instituições internas. Enquanto

insituição extr!rna, é organizada externa­mente pela administração burocrática. Co­mo instituição interna ela é capaz de ·ela­borar suas próprias instituições internas, ou de instituir. A escola ou a classe não é somente um lugar instituído; Ela pode ter também um caráter instifuinte. Neste sentido ela é dinâmica, porque é o lu­gar da aprendizagem institucional e uma ocasião para se fazer a experiência ins­titucional.

Autogestão pedagógica: A mais corrente concepção de autogestão é dada pelas or­ganizações sociais que a definem em ter­mos econômicos e administrativos. Esta de­finição se situa no nível das estruturas de poder, das instituições no sentido jurídico e sociológico · do. termo. Em Psicologia SG­cial o termo autógestão tem outras cono­tações: para o psicG-sociólogo a definição

. acima não é falsa, mas incompleta. A au­togestão supõe outros elementos de ordem efetiva como desejos, motivações, aspec­tos culturais etc. A autogestão implica em que os grupos sociais desenvolvam suas próprias instituições internamente. A autogestão pedagógica é um sistema de educação no qual o mestre renuncia 4t transmitir uma mensagem. Os alunos, em n!vel da classe ou da escola, dentro dos limites da situaçào escolar atual, decidem a respeito dos métodos, das atividades es- · colares e dos programas de formação. Na pedagogia institucional ou autogestão pe­dagógica o mestre não é um transmissor de informações, mas analista do processo de aprendizagem ou perito à disposição da classe que deve encontrar e desenvol­ver suas instituições internas próprias. As fórmulas de autogestão pedagógica podem variar segundo as situações, as idades etc.

-INSTITUICOES, LINGUAGEM E DESEJO

Há algum tempo venho pensando nas rela­ções entre língua e instituição. Não há razões para impedir a aproximação, já que a própria língua seria uma instituição. No entanto, quero aqui focalizar, de um lado, material colhido na prática de Análise Ins­titucional, de outro, considerações de or­dem teórica ao encaminhar uma reflexão sobre os efeitos determinados que tem a língua em se tratando de classes sociais. Recentemente, um comentário de Deleuze e Guattari (L'Anti-Oedipe, p. 246) me fez voltar ao assunto, agora de maneira mais clara. Já que os autores citados lembram: haveria lugar para mostrar que a domi­nação se exerce através e na transcendên­cia do operador lingüístico. Acrescentam que Bernard Pautrat pretendeu estabelecer aproximação entre Nietzsche e Saussure (no livro Versions du soleil, fif?!lres et systeme de Nietzsche, ed. du Seuil, IQ71 ). Este autor observa que Nietzsche, contra­riamente a Hegel, recon11ece através da língua as relações determinantes entre o senhor e o escravo. Assim não seria o trabalho, como pensou Hegel, o lugar de identificação das relações de dominação e servidão (dialética do senhor e do escra­vo). Haveria mesmo para Nietzsche uma língua dos senhores, por intennédio da qual a dominação se efetuaria. Poderíamos en­tão dizer que a classe dominante atribui sentido às palavras e que a classe domi­nada aceita e se submete à significação atribuída aos termos. Ocorrem também ca­llOs onde o sentido atribuido a uma palavra é modificado pela classe dominante. Só al­gum tempo mais tarde a . classe dominada vai tomar conhecimento da mudança. Até então, ela - classe dominada - estava apegada ao sentido antigo, fiel à tradição, rompida e espezinhada na prática ~cial. Reservamo-nos uma outra ocasião para exame de termos que elucidam o aspecto aqui levantado. · Mas (a linguà é uma faca de dois gumes: ela modela . a prática social, ao mesmo tempo em que é modelada por ela. Num trabalho de Análise Institucional, observan­do um grupo de discussão onde estavam ·presentes operários e psicólogos, pude fa-

zer a seguinte hipótese: a dificuldade de comunicação advém de um fator determi­nante ligado à utilização da lingua e ao seu funcionamento. Pareceu-me naquela oca­sião que os operários se escondem, se protegem (não no sentido de defesa psi­cológica, pois esta noção só serve para encobrir os aspectos políticos envolvidos) por ocasião de um diálogo, de uma negG­dação. Notem que emprego a palavra <ne­gociação» para designar o tipo de conversa entre psicólogos (ou qualquer outro tipo de técnico trabalhando na empresa) e ope­rários e funcionários. Trata-se de uma ne­gociação onde as partes evitam um con­fronto direto, onde é preciso fazer o pos­sível para evitar que uma parte ludibrie a outra etc. Nesse sentido têm razão os sociólogos da <análise do sistema,. quan­do encaram as relações no mundo do tra­balho como correspondendo essencialmente a uma barganha. Mas sobre o assunto haveria muita coisa a dizer, e fica para outra vez. · Quanto à minha prática, quero dizer qu~ os psicólogos se iludem quando f fazem hi­póteses sobre a empatia, a boa comuni­cação sobre a solução dos conflitos no mund~ do trabalho, sobre as <relações hu-­manas,., sobre o camor universab etc. O • que vejo cada dia na prática das institui­ções pode assim ser resumido: A língua é um código, e não é a ~s~co­logia que está interessada em descodlfJcá­la. Pelo contrário, a Psicologia, como prá­tica associada ao sistema, estabelece um supercódigo, como um código do código, trazendo confusão para os interessados, isto é, os operários e os que vivem no mundo empresarial. No caso que pude observar, os psicólogos se esforçavam ou faziam o possível para que o grupo de operários adotasse um procedimento ana· litico onde as operações mentais seguissem um esquema ordenado na abordagem dos problemas. E', finalmente, o objetivo coli­mado por todos os métodos de treinamento na empresa (TWI, Training Group, En• trainement Mental, Administração por ob­jetivos etc.). Só que todos eles desconhe­cem, ou fingem desconhecer, co pulo <lo

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'24 gato> - o que vamos examinar dentro em breve. No caso que pude observar, os psicólogos propunham exercidos onde o procedimento de análise das situações de· veria seguir as seguintes etapas: 1) enume. rar, descrever as situações; 2) identificar diferentes aspectos presentes na situação; 3) fazer surgir as contradições eventual. mente presentes no grupo; 4) situar o per. sonagem no tempo e no espaço, isto é, buscar informações ou um enfoque mais amplo, documentado; 5) situar o aconteci­mento com relação à época e à região onde estávamos trabalhando; 6) busca de causas e conseqüências. Enfim, nada de mais congruente com o esforço de ver claro, de analisar situações, encaminhar soluções. T udo dentro do me· lhor racionalismo, devidamente condimenta­do com alguns laivos de dialética no t ra­tamento dos problemas. Não me demoro no exame das fases por que deve passar uma discussão, fases aconselhadas e iden­tificadas por diferentes métodos em uso em diversas empresas, porque considero inútil tal empreendimento, T odos esses mé­todos se resumem numa seriação de ope­rações mentais mais ou menos ordenadas por uma teoria da informação, ou trata­mento de dados, sem nenhuma possibilidade de aplicação, sem nenhuma seriedade com relação aos objetivos a que eles se pro-

. põem. ~Recursos humanos~. ~relações hu­manas>, ~marketing,, «desenvolvimento de pessoab têm ·sido uma balela que as em­presas pagam bem caro, e que mais dia menos dia poderá ser devidamente avalia­da. Enfim, quero dizer que os meus psi­cólogos estavam reunidos com um grupo de operários e faziam o posslvel para que estes adotassem a grade de análise

· conhecida implicitamente ou não para iden­tificação de problemas, e encaminhamento de soluções no mundo ocidental, cristão, cartesiano. Pois bem, os operários, sem nenhum defícit intelectual, faziam questão de demonstrar confusão no trato do pro·

· blema, passando de uma fase para outra, se_m nenhuma disciplina, sem nenhuma in­clinação para a racionalidade. Convenci­me então de que se tratava de uma situa­ção exemplar - e que daquele exemplo deveria partir para uma série de hipóteses. Percebi que havia um grupo de psicólogos

· em· frente a um grupo de operários, cada um com seu jargão, cada um com seus

. ·objetivos mais ou menos bem definidos · e que não seria a Psicologia das R-ela~ • ções Humanas que me ajudaria a com-

preender o que estava acontecendo. Co­nhecia bem aqueles homens e sabia que eles eram hábeis no trato com as máquinas às quais estavam habituados. Conhecia igualmente os preconceitos de toda ordem que imperavam no meio polltico-sOcial que eles formavam. Não havia outra solução senão ouvir cada palavra q ue cada grupo pronunciava (psicólogos e operários). Ini­cialmente, constatei que os psicólogos pos­suiam um número bem maior de palavras, um repertório bem mais elevado - entre parênteses, não tenho a menor dificuldade em falar em repertório. Pelo contrário, a proporção ~ de um para dez ou mais. Isto é, se um operário dispõe de 500 palavras, o ·psicólogo dispõe de cinco mil. Só este dado indica bem a desigualdade na repar­tição do dicionário (cada palavra podendo equivaler a um certo número. de cruzei­ros, pode-se facilmente calcular o que re­presenta a pessoa possltir 500 ou 5 000 termos no seu repertório).' Uma segunda constatação levou-me a con­siderar que os psicólogos enunciavam de preferência certas palavras, enquanto os operários tinham preferência por outras. Este tema também fica para outra oca­sião, pois não estou de maneira alguma apressado em estabeleeer unta Semântica experimental que viesse corrobOrar o pon­to de vista aqui levantado. Pelo contrário, até agora só me interessa o ~ruldo>, co­mo diria o ciberneticlsta. Para dizer em poucas palavras, Interessa-me especialmen­te a inadequação da abordagem psicoló­gica frente . ao problema encontrado nas relações no mundo do trabalho. Enfim, ha­via uma barreira, de nenhum modo impu­tável, à dificuldade cre comunicação habi­tualmente .conhecida por pesquisadores ou engenheiros de ~relações humanas>. E não será a bordagem do problema por apro­ximações mais ou menos astuciosas basea­das na <teoria do equilibrio~ (veja-se Hei­der, ou mesmo Festlnger e outros) que viria resolver o problema. Há, a meu ver, um ~ef~ ito:. de linguagem que determina as ' relações no mundo do trabalho. E, ao final de um treinamento, os termos que passam a ser empregados pelos operários ou funcionários de uma empresa represen­tam aquele supercódigo (código do códi­go) a que me referi acima, que vem tor­nar mais confusas as relações no mundo do trabalho. Enfim, uma forma de domina­ção, uma ilusão de que são vitimas aqueles que as empregam (psicólogos e homens de empresa).

Ainda com relação a este grupo, penso que o p&rticipante, operário ou funcionário tem dificuldade em falar sobre a própri~ situação. Assim, pelo que se disse nos pa­rágrafos anteriores, não se pense que o operário tem domlnio da língua como ínst~umento à sua disposição; pelo con­tráno, ele está submetido a ela, na quali­dade de modeladora da prática social e os significados que ele manipula não ~ão senão efeitos do significante. (Veja-se mais adiante parãgraro sobre o valor de uso c o valor de troca paralelamente às con· siderações sobre o significante e o sig­nificado). Lembrei, a propósito do grupo em ques­tão, que na cllnica o paciente também se mostra em dificuldades para falar de si mesmo, malgrado a escuta atenta do psicanalista. Lembrei o comentário de Freud sobre seu cliente, conhecido na literatura psicanalítica como o ~homem das . rataza­na.'»: cfoi alguém que se perdeu numa metáfora ... :., diz Freud. Não se trata de um comentário sobre o estilo do homem das ratuanas, ma.<> o que disse Freud vai aqui tomado ao pé da letra. Se um operário falasse, se ele fala a respeito de sua situação, tudo se passa como se ele se perdesse numa meUfora ... Por ?utro lado,. tem9s a dificulade que expenmenta o psicólogo em fazer interveo­ç~s. Como já disse, ·o operário diante do pstcólog~, que é um estranho a serviço d? patrao, se esconde numa linguagem d1ta <obstáculo à comunicação>. Agora ve­mos que também o psicólogo se esconde no seu tecnicismo, no seu jargão - e não há outro à sua disposição. Encontramos ai uma manifestação da divisão em clas-­ses, a llngua sendo um veiculo dessa di­visAo. A seu turno, sobre a llngua inci­dem os efeitos da divisão em classes.

E stARÍAMOS PJWPON~O . UMA Sóc!O-LII-1· gOistica? Não, pelo menos nos termos em que esta disciplina é conhecida. Assim, os autores assinalam o interesse em se estu­dar. a língua relacionada com o contexto ~ta_l, distinguindo uma macrossócio-lin­;ihsh.ca de uma microssócio-lingiiistica. Pa-a nos, nem uma nem outra. Ambas des­~onh~c~m os ~feitos a que está submetldo

Sujeito, aml:ias se restringem a um as­rec~o dcscritivista. A primeira lida com Cnomcrt:.>,; ao nível das Jlnguas (por exem­

f lo, quando uma língua é posta em con­acto com outra por força de vi~inhanc;:a ou

de contacto de dois povos). Neste _caso,

encontramos os chamados <conflitos lin- . güísticoS», processos de substituição pau. 2 latina de uma llngua por outra, sltuaçOea de especialização, isto é, uma Jlngua que passa a ser unicamente colonial e familiar enquanto a outra guarda seu caráter ~ prestigio, falada na corte, nos negócios ou na produção literária. Quanto à microssócio-lingüistica, eJa se ocupa de fenômenos de bilingüismo ou de estudos em torno da língua matern'a. Gosta ríamos de evitar tanto uma quanto outra . perspectiva. Passar do grupo para o soctal-polítlco, do indivíduo para o cul­tural, e _vice-versa. Para isso, não me atrr necessan amente às palavras, mas identifJ.­car as fontes de onde vêm os pedaçoS de frases, a.s alusões, as distorções, as idéias. Quero d1zer que o discurso produzido pelas inst ituições seria produto de outros d.iscur­sos. As frases já vêm feitas (tOdo mun. do sabe disso): As citações são impreci­~s, mal escolhidas., o que enriquece mais amda o estudo ora em q uestão. A instituição fala de «Vestir a mesma ca­misa>, <remar no mesmo barco~, ca em.. presa tem que dar lucro~, cnão podeJD08 : olhar somente o lado humano, - a racio- · na !idade e a solidariedade são postas como. marco de referência a cada momento. · 1\ empresa lida com o valor de troca (atri­buído à mercadoria), com o valor de- U90 quando pretende ser humanista· mas ela não admite ser chamada de jrra~ional. Em outras palavras, o valor simbólico ~ des­conhecido, diria que ele é temido. No en­tanto, a presença de um especialista ent· <ambivalência~. alguém que lida constame­mente com o valor simbólico, mostra beni que a empresa encerra alguma coisa que ~ constantemente negada, desconhecida. Do.r de a posição delicada ocupada pelo psi· cólogo na empresa, nas instituições de um modo geral, desde que ele não tenha sido promovido a chefe do pessoal, como é a lgumas vezes o caso. (Cada vez mais fre­qüente, ao que me foi dito!) Falar em ambivalência significa falar em improduti· vidade - e a empresa não admite reco­nhecer que não há improdutivos cem por cento, nem produtivos cem por cento. O merecimento é medido em função de ai· guma coisa que não existe, isto é, a pro­dutividade associada à mercadoria, esta definida em tennos de valor de troca. O sistema está longe de funcionar tão bem, como se tudo corresse macio. .. Este as­pecto é desconhecido pelos adeptos da canállse . de sistema:.. Ninguém tJerpnlul

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com o valor simbólico, eis que ele só conhece o dom e o estupro. Assim ~ que fui levado a me interessar pela produtividade/improdutividade numa empresa. A imprOdutividade não ·se deixa facilmente identificar, ela escorre, elà se esvoi · entre nossas mãos. Ela serve de or.asião (sempre disfarçada) para veicular, expressar uma série de desejos, fantasmas quanto à · situação de trabalho. Como abor· dar tal situação? As formas de produção social, dizem De­leuze e Guattari, implicam numa posição improdutiva, um elemento de antiprodução, associádo · ao processo, de uma maneira máis ou menos inesperada ... Ora, ao que tudo indica, o sistema despótico vem a ser a fonte de antiprodução. Ao lado deste comentário, lembrar que a grande desco­berta da Psicanálise foi a <produção do desejo>, a ~produção do Inconsciente:.. Fa­ço questão (depois de Deleuze e Guattari) do termo produção para assinalar que há um aspecto máquina nessa história. O In­consciente como produtor l! diferente · do l ntonsciente «teatro antigo:t, onde alguma coisa era representàda. O Inconsciente co­mo produtor foi ocultado por um idealismo que passou a falar em representação, em vez -de unidade de produção. Sinto-me à vontade, t o caso de dizer, para falar em <produção:., ~unidades de produção:., já que iniciei o texto sob a invocação do mundo empresarial. . . A redescoberta do Inconsciente produtivo implica em:

1) Confrontação direta entre a produc;ão do desejo e a produção social, entre o sintoma e a ideologia (atenção clinica!);

2) Elucidação da repressão que a máquina social (seja ela qual for) exerce sobre as máquinas dê desejo, e a relação entre re­calque e repressão.

El( iste, por conseguinte, um paralelo entre a: produção social e a produção do desejo. Em ambos os casos, uma instância de an­ti~rodução está sempre pronta a se apro­priar das formas produtivas. Por outro lado, não há distinção a estabelecer entre a produção social da realidade e a pro­dução do desejo em termos de fantasmas. A produção social (da empresa, por exem­plo) vem a ser simplesmente a produç~o de desejo sob determinadas condições. DI­zemos que o campo social é percorrido pelo desejo, e que ele, campo social, vem a set úm p roduto historicamente determinado

nessa situação. A libido não tem necessi· dade de mediação, nem de sublimação, . nem de transformação especial para investir as forças produtivas e as relações de produ­ção. Além disso, .as formas as mais re. pressivas, as mais mortíferas da repressão social, são produzidas pelo desejo. Somente dentro desta abordagem, vejo urria salda para as aplicações sem fim ·(e que cheiram a charlatanismo) levadas atê o mundo do trabalho pelas ciC:ncias humanas.

o OBJETIVO OA ANÁLISE I NSiiTUC;ONAL seria o desenvestimento da.s estrutljras re­pressivas. O objeto do desejo sendo o pró­prio real, não nos parece necessário admitir a existência de uma forma particular, de­nominada por alguns crealidade psíquica>, distinta da ordem das coisas. A resistên­cia à Análise Institucional revela uma for­ma de defesa do sistema que insiste em n:io se mostrar disposto a declarar sua improdutividade. A abordagem do proble­ma em termos do imaginário dá ao~ inte­ressados a impressão de que alguma coi~a se salva nesse ambiente de improdutivi­dade. Nesse sentido a Administração se­ria o lugar por excelência onde se mani· festa o campo do imaginário. As inicia­tivas do setor administrativo são sempre eivadas dessa ilusão que alguma coisa é recuperada, alguma disfunção é corrigida. O administrador é especialista da produ­ção imaginária. Ela lida com o que. não pode existir: Donde o lugar especial que o setor administrativo ocupa no organo­grama ou · nas relações entre dife'rentes serviços. Ao administrador cabe, em tese, o apoio às unidades de produç.ão. No en­tanto, todos conhecemos o desprestigio que envolve qualquer intervenção do ·setor ad· ministrativo. O setor de produção póde a qualquer momento lembrar a prioridade de que ele goza, eis que sua produção é real. Só ele é capaz de justificar a em­presa. E, no entanto, tambl!m o setor de produção é improoutivo. AI encontramos, da mesma forma, os recursos bem conhe· cidos, tais como <operação tartaruga:., «di· ficuldade de comunicação:., «direitos de antiguidade>, critmo controlado pelos ope­rários:. etc. Nem o cronômetro, nem cme· didas de tempo e métodos:. são capazes de eliminar a inércia do sistema. Os pro­gramas de incentivo à criatividade, ~as cai­xinhas de sugestões:. se encaminham para uma situação de ineficiência que só não ~

percebida . P.elo administrador. Eis que a este cabt: 'j!dministrar a ineficiência ... Por éonsegui.nte, o tema prÕdutividadejim­produtividade; para ser abordado com al­gum~ . po.ssíbili~ade de elucidação, terá que adm1hr co1_1cettos que dizem respeito à produção áo desejo, à repressão com re la· ção a esta ·. produção. Já encontramos em­presas que atribuem aos operários a auto­gestão de ·sua produção, cabendo a cada

um ~a determin~ção de seu ritm.o cje pro­ducao, a orgamzaçáo de seus ml!todos' &: trabalho, a ordenação de seus temp<>S inor.:· tps. .. E' um recurso do administrador a o abordar o probl~ma do desejo e da prO- · dução. do del!eio. Resta abordar essa nova mo~ahdad~ de relação que a instância; anbpr~uhva estabelece com as forças produhvas. ·

NOTA

1 As ~tatlstlcas são dos mt· lhorcs lexitógraros da Europa: um !tomem comum dispõe por volta de 300 palavras, enquanto uot cientista pe$guisaclor tem em seu rtpertórfo 30.000 palavras.

PRÁTICA TEÓRICA, , PRATICA INSTITUCIONAL

E' muito conhecida a análise que Freud fez do pequeno Hans. E' a primeira aná­lrsc de uma criança e possibilitará multas. aberturas para o posteri9r desenvolvimento dn Psicanálise adulta e infantil. Mais do que isto, é o grande modelo para se pen­sar a criança psicanaliticamente. Freud só viu Hans ocasionalmente. Quem lhe relatou o problema do menino foi seu pai, que era analisando de Freud. O pai era quem t razia os fatos e os comentários do filho. • Para c~rar Hans, Mannoni 1 · most.ra como F~eud Introduziu um mito que deveria ~ex­Jlhcar:. a Hans seu ciúme edipico e que este elaborou atê que perdeu o ~edo de ser castrado. E' às suas idéia.s sobre a an~lise Infantil freudiana que iremos se• S:utr aqui. ·

Preud era analista do pai de Hans. Não só. por isto, mas' pelos relatos de que o Pat era portador, Hans e ele se lig-aram profundamente, ·num plano imaginário a Freud. O interesse de Hans pelas muÍhe. re~ de sua casa será deslocado para as mulheres da casa de Freud. A mãe de

Hans é afastada do processo psicanali,tico e se dedicará apenas à sua filha, tomando uma amiga intima como confidente; en­quanto Hans terá na sua empregada da-. méstica o substituto da figura feminina (<falando> com ela sobre os assuntos sexuais).

~No discurso, que se processa de Freud a Hans, há um cent.ro para o qual con­vergem os fantasmas de todos os adultos (os país de Hans e f reud), em que Hans f! o representante do desejo do adulto (do desejo do pai de Hans por Freud e do interesse teórico que seu 'caso' representa para as pesquisas de Freud); é apenas pela seqüência dos fatos, forjando seu próprio instrumento de cura, seus mitos, que ele consegue a própria independência. A mãe, infelizmente, respondeu no plano da realidade por um 'abandono' à indepen· dência de Hans:.. • Assim Freud se introduziu na vida do ca­sal, satisfazendo às fantasias de Hans. cOra, na análise do pequeno Hans, Preud separava claramente o lugar ocupado pela criança no fantasma maternal (a mãe, re--

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jeitando na realidade o filho - e em ~ guida todos os homens - marcava a sua impossibilidade de renunciar ao objeto ima~ ginário que constitula para ela o seu filho enquanto· substituto fálíco), . Hans é assim o suporte do problema sexual d.e seus pais, revelável à medida do desvelamento dos fundamentos de sua angústia fóbica (da­quilo que produziu os sintomas). As arti­culações de Hans lhe serão manifestadas não por sua relação ao real, mas pelo ul­trapassamento e refazimento do lugar onde elas se estruturam: as dificuldades de seus pais. <A aparição da doença de Hans, pode considerar-se como a aparição daquilo que está errado nos pais. Não se podia, pois, cuidar de Hans sem abalar todo um edifício,. Mannoni marca dois nlveis da atividade psicanalítica, mas só se dá conta e a rti­cula o primeiro deles.

J• - freud, o analista real, concreto, par­ticular, professor Freud de Viena, se in­troduz nas fantasias dO!'; pais de Hans na medida em que elas (as fantasias) são uma trama unida à de seu filho. Mannonl acredita que Preud conseguiu introduzir os elementos míticos («multo antes de você nascer... eu sabiu etc.) adequados para a condução do drama edlpico de Hans, mas que não pOde prever que com isto aju~ daria a deslindar a trama parenta!, para a qual não propOs nenhuma elaboração. Ela elabora a atividade de produção teó• rica psicanalítica, as questões que suscita a lógica teórica da Psicanálise.

2' - Freud é a teoria que ele produz; mas na medida em que elaborando o de­sejo de Hans ele interfere no desejo dos pais, ele não é apenas (conj) quer Man­noni) um teórico que não pôde observar completamente os efeitos que causou, mas se torna em atividade de re-produção do desejo, seu lugar rejencial instituldo. Não se trata somente do fato de que Preud elabora a verdade do casal (mesmo quan­do ele não sabe que o está fazendo, como afirma Mannoni) , mas que o casal encon­tra na elaboração sua verdade, uma re­ferência concretamente articulatória. A pró­pria Mannoni conta que a mãe de Hans tomou uma mulher inculta como confiden­te; mas a fala em eco com essa confidente tem o lugar demarcado de camigu ou <companheira~. Enquanto. o lugar social de Freud é de um saber com torça de lei e não representação de uma verdade objeti­vamente dita (dessas que se ouvem tam­bém dos amigos e confidentes):

Desde que é expressa, a verdade só toma seu lugar quando é produzida em dois níveis insepardveis: um, teórico, objeto de análise epistemológica; outro, mítico-práti­co, objeto de análise institucional.

A palavra de Freud - para Hans e para seus outros maravilhosos «casos~ - não é apenas uma verdade teórica, mas uma verdade teoricamente produzida no contex­

. to de uma prática social. Por isto ela é também sua textura institucional.

NOTAS

• MANHONI, Maud. A crit~~tça, aua "doença" • os outro~. Trad. bnslleira. Zahar Editores, ~o 11111. • ldtm, p. 15.

D &QUERELAS

A noite de loucuras

O caixão Lapassade entre nós

Escolar Sobre a "Atuação" Textos

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A NOITE DE LOUCURAS

A cidade do Rio era varrida pelos ventos do temporal. A chuva eaía, os trovões ressoavam anun­ciando a água que invadia o andar térreo do ve lho Hospital. Acima, nas enfermarias, os doentes grita­vam ameaçados pela momentânea ausência da luz. No Hospital de loucos, a escuridão e a tempestade embalavam a nau dos in­sensatos. Estávamos no térreo ocupando a sala de aula de um dos professores médicos que lecionam psiquiatria para os estudantes­médicos estagiários. foram os estudantes da f aculdade pri­vada que conseguiram .a boa vontade dos médicos do velho Hospital para que na­quele dia ali o professor francês, da Uni­versidade de Paris, psicossociólogo com nove livros publicados, proferisse conferên­cia sobre o tema <A antipsiquiatriu. Esta boa vontade foi devida á recusa da Faculdade Particular em aprovar o convite feito por uma turma de estudantes a O. Lapassade, alegando que não sendo este professor francês um terapeuta, jamais po­deria falar sobre terapia ... Desta maneira a ideologia <do profissionalismo:. preserva o mercado de trabalho dos profissionais contra quaisquer inovações, estranhas ou <:estrangeiras:.. . . Todos podem prosperar imunes à critica ou ao questionamento, pois, de dentro, o profissional jamais sairá do discurso instituído que lhe rende a sua subsistência pequeno-burguesa ou mesmo burguesa, no caso das grandes clinicas e dos velhos profissionais. Mas se a Faculdade privada é uma escola cprofissionab que forma profissionais, que

não deseja ver questionado o que se en· sina, pra quem e pra que, pois se está pensando em investimento, o velho Hospital é uma instituição do Estado que <não visa lucros:o>. Portanto ele teve a boa vontade de nos admitir, mesmo sob o impacto da fúria de Xangô e Iansã, deuses dos raios e das tempestades, deuses da lei e da justiça, que preveniam com seu algúrio que no velho Hospital havia gente da Quimbanda, da contra-ordem, da contracultura, gente ligada a Exu. O professor gordo aguardava o inkio da solenidade. Fez-se uma roda e se aguar­dava que o professor francês tomasse a palavra e iniciasse a explanação de suas idéias que iriam ser ansiosamente recusa­das ou admitidas como uma possibilidade de se formar mais uma escola: a antipsi­quiatria. Não se sabe se foram os t.rovões ou a tem· pestade que deixaram o professor mudo. E quem começou a falar foi Chico, estu­dante de Belo Horizonte que falou de sua bissexualidade, ou homossexualidade. Chico disse que sofria um tipo de repres­são social específica como homossexual, que em termos psicossociais sua libertação só seria possível num nível psicopolitlco de atuação, isto é, nos moldes do (Gay Powen. O professor gordo e a estudante de voz suave indagaram sobre quem o reprimia como homossexual, que grupo de pes­soas ... ' Chico respondeu que era o sistema social em que vivia. E o movimento politico dos Homossexuais concretizava uma possibilida· de de libertação específica de sua repres-

são especifica eoquanto minoria .social re­primida. O professor gord9 retr.ucou que esta per­seguição ao homossexual era imaginária, e que na medida que ele se assumisse como tal ele seria livre. Chico disse ·que de fato a assunção era importante mas íl existência de estruturas de comportamento social objetivas eram a razão da repressão ... O professor gordo mais uma vez disse que na verdade é o perseguido que cria o perseguidor, e que na medida em que se comporta como perseguido, lógico que irão ,;urgir perseguidores; e disse: vejam o caso dos judeus. Nisto, Chaim, que é judeu, cortou sua palavra dizendo ser seu exemplo bastante infeliz posto que a morte de 6 milhões de judeus pelo Estado nazista era uma realidade que jamais poderia ser equacio­nadn nos termos em que se estava pro­pondo. Como se o fato de se -~:assumir t'nquanto judeu,. bastasse pra arrefecer a ideologia racista e a fúria repressiva da conjuntura social da Alemanha das déca­das de 30 e 40. As luzes se apagaram e a água penetrava na sala; numa tentativa de Xangô intervir na sessão que continuava apesar de tudo com o fogo das velas trazidas pelos ser­,·entes do Hospital. Sem saber, aquele ser­vente negro trabalhava para Exu, trazendo o fogo, símbolo da Quimbanda, contra a ãgua, símbolo da Umbanda. Com o fogo de Exu a sessão continuou ... Alguns médicos se levantaram pra (aten­der:. os loucos, que gritavam sofrendo a irradiação da Quimbanda, que simboliul a libertação de todos os desejos contra a Umbanda, que simboliza a camisa de força da repressão .. . Falava~se agora da atuação dos médicos no interior daquele velho Hospital Psi­quiátrico .. . A estudante dizia que as pessoas vêm <lá de fora:. sofrendo a doença mental, e ali encontram os médicos abnegados para re­tnoverem seu sofrimento, no Hospital não há repressão e ... O professor francês sugeriu que ela, que tinha uma voz tão suave, porque agora não falava um pouco de sua bunda ... Naquele momento foram declarados os ter­mos da sessão, mais uma vez, Umbanda ~:ontra Quimbanda. Protestos gerais. . . não estamos num gru­po terapêutico, estamos numa aula, numa conferência ...

- fale . alguma coisa, é preciso ter o 31 conferencista, quem · quer ·ser Q conferen-cista, quem quer ser o professor, estamos numa conferên~la, estamos numa aula, quem é o professor ... , não somos um grupo em terapia, . isto é ~ma conferência, onde está o conferencista, onde está o profe~~or. . . pra que fale de Larng · e Cooper, de Mannoni, mas que fale, que faça conferência ... As águas embalavam a nau sem rumo ... Todos com os pés pra cima, o fogo da vela mantinha acesas as discussões. - O que significa o jaleco, é preciso es­tabelecer e semiologia de um Hospital. O jaleco é o significado do lugar de médico na Instituição hospitalar. Quem é médico detém um saber que está institucionaliza­do, isto é, possui um lugar na hierarquia da Instituição. Sua palavra é única, é ela quem decide sobre os doentes, os que de­vem tomar eletrochoques ou cardiazol, to­mar remédios ou fazer lobotomia ... A palavra do médico não é só um saber mas também um poder. No âmbito da ins­tituição hospitalar ela é lei.. . O poder de XangO. - Sofrendo as irradiações de Iansã, a estudante de voz suave transformava-se na mãe terrível e castradora: Quem são vo­cês que invadem a nossa casa, sem saber do nosso trabalho; saibam que não tra­balhamos por dinheiro e sim por amor. - Acho que o <amou aqui pode também significar investimento de sua força ~e trabalho, pois este estágio valoriza sua formação profissional, além de dar margem a que você vivencie o (status:. de médico no Interior da instituição. Dentre todos os funcionários, sem dúvida, são os médicos aqueles que detêm o maior poder na instituição. Neste instante os ser­ventes procuravam puxar a água com os rodos, mas foram impedidos pelos médi­cos. Mais uma vez Exu tentava secar a água de XangO e lansã, e botar mais fo­go na sessão. Se o «saber,. detém o poder, o cnlio sa­ber> é a submissão, o trabalho manual era desrespeitado, só seria passado o. rodo quando a aristocracia do saber ass1m de­terminasse ... Um estudante: sinto-me a mesma pessoa com jaleco ou sem jaleco, só o uso porque o regulamento me obriga .. . - O regulamento, a organização da do­minação, o estabelecimento ela hierarquia autoritária, a buroc.racia impessoal, que co-. loca cada um como a mesma pessoa nos

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lugares da dominação ou da submissio ... O professor gordo olhou o relógio e en­cerrou a aula. No entanto, aqueles que quisessem continuar poderiam permanecer - era a voz da Instituição. A luz voltava, os doentes dormiam e so­nhavam sonhos insensatos, a chuva pa­rava, a água baixava . . . Era a paz de Xangõ . • . O professor se retirava com os estudantes de jaleco branco e vozes suaves ... Todavia, se saem os Orixàs, o terreiro é dos Exus ... O professor francês perguntava ao médico negro por que os negros sul-americanos recusaram-se nas Olimpíadas a unirem-se aos seus irmãos dos E.U.A. e da Africa afirmando a negritude através das sauda­ções do black power e outras manifesta­ções características. O médico negro começava a falar, sofria. a forte influencia de Exu, os demais mé­dicos que ainda restavam zelando pela lei de Xangô demonstraram bastante preo­cupação. - Na América do Sul os negros não têm o acesso á informação que tem nos ou­tros continentes. Isto em boa parte impede que eles possam compreender a sua real situação . .. E Exu fazia mais uma provocação: Fale como você enquanto negro vivenda a sua situação de médico aqui no interior deste hospitaL -Bem ... Uma estudante-médica: - seria bom que Chico falasse de sua experiência de ho­mossexual, ou que Chaím falasse de an-

tipsiquiat ria, ou que Lapassade, ou Marco Aurélio, ou ... Um estudante-médico: bem, não podemos mais contin uar porque os doentes precisam dormir. - Mas como, os doentes já não estão dor­mindo, são 22,30 h? - Não há uma outra sala, um outr o lo- · cal? - Não, retrucou o estudante-médico : vo­cês devem ir agora. Não podemos con­tinuar ... - Então é a instituição que se sente ameaçada. - Absolutamente, são pessoas que preci­sam dormir ... Os quimbandeiros iam sendo empurrados pelos corredores. fazia-se o despacho de Exu ... - Vocês nos expulsam, estão com raiva da gente ... - Sim, disse o estudante-médico, vocês só trazem o ódio, a violência, a agressivida­de.. . e os doentes precisam dormir. Na rua seguimos o caminho das encruzi­lhadas, rlndo como Exus que revelam o o que está por detrás da voz suave de XangÔ, lansã, Oxum, Oxalá e Ogum. Por detrás da lei de Oxalá, o bem, está a repressão disfarçada. E Exu foi mais uma vez expulso do terreiro, mas rindo, rin­do de não poder mais, da raiva dos Orixás ... Deixamos o velho ·Hospital, agora ~ <do­entes> poderiam dormir o csono dos jus--tos> .. .- · Quá, quá, quá .. ,

CONCLUSlO

O que aconteceu no Hospital nesta noite foi o que eu chamaria de uma <análise institucional selvagem~.

Não houve uma demanda, mas foi cedida uma sala de aula para que fosse feita uma conferência sobre antlpsiquiatria.

O fato analisador inicial, a declaração de Chico como homossexual, foi rapidamente r ecuperado pelo grupo, que admite o ho­mossexualismo, não se preocupando com sua regeneração heterossexual. Todavia o que se constituiu como fato analisador e que permitiu o desencadea­mento de um processo de sócio-análise, foi o fato do posto de conferencista nlio ter

sido preenchido. A palavra rodava de boca em boca sem que nenhuma autoridade pu­desse controlâ-la. E se a palavra social se liberta, ela é capaz das piores re­velações.

Não foi à toa que Sócrates, o liberador da palavra social por excelência, foi assassi­nado, e que a partir dai a palavra social no Ocidente está sempre sob o controle· das autoridades institucionais, as acade­mias platônicas, onde por ser filósofo, é preciso ser 'parte integrante da institui­ção, ser geômetra. O controle da palavra já tinha sido expressamente colocado pela diretoria da Faculdade Particular. O velho Hospital deu a oportunidade liberal dela

se desenvolver. Mas não suportou a sua liberação real. A angústia do professor e dos médicos, autoridades detentoras da palavra no inte­rior da instituição (saber como poder) era de que a autoridade do conferencis-ta não era preenclúda. Neste ponto - saber como poder -, médico-doentes e funcionários subalternos, professor-alunos e funcionários subalternos são relações homólogas. A palavra solta e questionadora era amea-

ça constante. Outro fato a nallsador que contribuiu para o encerramento da sessão foi o problema da negritude no Brasil, e especificamente como ela ia ser falada no interior do Hospital. Neste momento de liberação da palavr~ louca, contranormal, os médicos se mobi~ zaram para nos enfiarem na camisa da normalidade . .. Enfim, foi uma sessão de antipsiquiatria . ..

O CAIXÃO-A intervenção numa Escola de Comunicação

A intervenção na Escola de Comunicação (E. C.) começou na terça-feira, 8 de agos­to de 1972. A intervenção fora inicia !men­te solicitada pelo diretor da Escola, e o mediador desta reunião foi um professor de Sociologia (vamos chamá-lo de R.), da mesma Escola, membro da nossa· equipe úe analistas.

l. A primeira reunião realizou-se no dia 8 de agosto, à noite (a Escola funciona à noite). Uma parte dos alunos da Escola reuniu-se, como para um curso numa sala (Om alguns professores. No in~io, aoresen-: !amos um resumo da intervenção na FUMO, até que alguém fez uma intervenção para declarar que tudo aquilo cansava o públi­co, e não lhe dizia respeito diretamente. A segunda fase da reunião, bastante lon­~a. encaminhava-se para um beco sem sai­da, até o momento em que uma aluna assin~lou um problema· de material: não há na Escola o material suficiente para possihili tar a prática das técnicas da co­municação. A partir daí começou a ter­cei ra fase, onde foi possivel centrar o de­hate sobre o sequinte tema de intervenção: ~udar a «instituição~. para esta Escola l>rgnifica mudar o meio da comun1caç.'io: Que até então permanece um melo eseo· la_r. Reformou-se a Pedago~ia (dizem-se na~-diretívistns, fazem freqüentes a~sem­bleras gerais com os alunos); mas isto se f~z num meio que é a escola tradici•mal; srmnlcsmente trocam-se um pouco mais de men"'!lfl:ens criticas, a partir dos cont,.itctos atuais dos meios. ~ bem que o problema

não seja somente de autogestão formal para esta Escola, mas de práxis: praticar os meios, para mudá-los. Criticar os meios rtão significa criticar, mudar as mensagens. Diria, pelo contrário, que é mudar este meio, esta Escola, transformando-a numa oficina de comunicação. No fim desta pri­meira reunião, propus que no dia seguin­te trouxéssemos cachaça, violões e que preparássemos um happening : que fizésse­mos alguma coisa, que tentássemos comu­nicar de alguma outra maneira, isto é, mudar o meio.

2. No outro dia, os participantes vieram sem violões e sem cachaça. Mas S. trouxe re­vistas, cola e t esouras. Como fora previsto , na véspera, dividimo-nos em pequenos gru­pos de discussão, que se reuniram nas salas d·e aula (entre 20 e 21 h), para escutar os relatórios das comissões e dis­cuti-los. Enquanto se fazia o trabalho das comissões (que corresponde à primeira fa-se no nosso esquema), o diretor da Escola me convidou para visitar os novos locais (ainda em acabamento) onde a Escola de­ve se instalar dentro de alguns dias. Já estava pronta uma grande sala de aula: carteiras alinhadas da forma tradicional, como numa sala de espetáculos; a mesa do professor, embora sem estrado, colo­rada à frente, estilo «conferência:.. Propus então ao Diretor que desde aquela noite a reunião dos g rupos, prevista para 21 h, fosse realizada nos novos locais. Talvez perd~s.~emos, com a mudança, al­guns participantes; mas ganharíamos a pos.-

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34 sibilidade de simbolizar a ocas1ao de uma mudança da Instituição, a partir desta mu­dança real na sua base material. Como se fôssemos começar tudo de novo ... No fim desta assembléia geral, sem ter ouvido os relatórios de todas as cinco co­missões (apenas três os apresentaram), propus uma atividade de colagem, que se costuma fazer fora da sala de aula, onde encontrei inscrições em grafita como: ceu não tenho meios de mudar esta Escola-. . Antes que nos separássemos, por volta das 22,30 h, · propus que, a partir do dia se­guinte, em vez de continuar este r itual verbal da Análise Institucional e do Ba­lanço - pequenos grupos seguidos de uma reunião geral - começaríamos o trabalho do semestre: que fizéssemos a tarefa, mas solicitando a todos, alunos e professores, para redigirmos em conjunto o novo pro­grama (deixariamos de lado o programa preparado pela direção), para fixarmos os horários etc.

3. Terceiro dia da . intervenção. Reunião às 20,15 h no novo prédio. Não havia comissão de trabalho: todo mundo se reu­niu na sala onde se havia realizado, na véspera, a assembléia geral dos grupos. O secretário-geral me disse, antes de en­trar: <Venha, eu arrumei as cadeiras em circulo, separando-as umas das outras e acendi uma vela no meio da sala-.. Com efeito, havia no centro, sobre cinco banquinhos, uma espécie de altar ou ca­tafalco, com uma vela acesa. As pessoas chegaram, se Instalaram, e também se ins­talou um silêncio. Um longo silêncio. R. começou a afixar nas paredes as cola­gens que ele havia preparado. O jornal da Escola, intitulado cO Outro,, começa a circular. Nele o analista é criticado viva­mente, assim como a Análise Institucional. Reina, todavia, um profundo silêncio. Em seguida, entra um grupo carregando um caixão de papelão com alguns ramos de árvores. O caixão é colocado no meio da sala, sobre os banquinhos. A vela conti­nua acesa. Começam então a circular al­guns cartazes, com alusões diretas ao ana­lista, com desenhos mosirando um gesto de dedos que aqui alude à homossexuali­dade. Um professor da Escola, B., começa então uma longa intervenção; ataca o ana­lista, isto ó, o francês que não compre­ende nossos problemas, nossas tradições. R. (sabemos que ele é professor na E. C. e, ao mesmo tempo, membro de nossa equipe de analistas) responde violentamen·

te a B., acrescentando que fala na qua­lidade de professor, e não como analista. De minha parte, faço então uma inte.rven­ção para dizer que a morte está no centro, é o tema desta reunião da noite, não so.. mente a morte na análise, como se diz corriqueiramente, mas a morte na cultura brasileira, a morte na macumba, a mor­te no <Bordel Andalou». (Era como se eu assistisse, dois anos depois de minha estada no Rio, no meu enterro aqui, ern Belo tlorizonte. No final de meu relato sobre minha experiência no Rio, dizia que a morte entrava no meu quarto. Eis que o meu relato continua. Esta parte eu não comunico aos participantes) . Digo somen­te que escrevi um livro sobre minha obses­são da ~orte no Brasil. falo, agora e um pouco mais tarde, do desejo de morte, de me matarem aqui, agora, da violência e de Thanatos. E' o contrário de tudo que se fala em termos de rogeriãnismo ... Quanto à homossexualidade, viva o culto dos pretos, das mulheres e dos ·homos­sexuais.

Outras intervenções são feitas; uma delas, polêmica, é feita pelo Diretor para res­ponder aos meus comentários. No final, o Diretor anuncia que «vamos voltar amanhã para fazer juntos o programa do semes­tre e o jornal, colocando o materia l (no caso o mimeógrafo) no meio da sala . .. ~ E.', afinal de contas, o mesmo <progra­ma.. de mudança que eu havia proposto. Volto a colocar a questão da nossa presen­ça enquanto analistas. O Diretor responde que vamos continuar. Os estudantes, al­guns influenciados por idéias não-diretivis­tas, parecem aceitar este programa, da mesma forma corn que eles t eriam acei­tado o inverso: que começássemos com estruturas definidas anteriormente, com um programa já feíto e um horário fixado. Durante toda esta sessão, os alunos per­maneceram calados. Somente falaram o Diretor, os professores e nós, analistas, vindos do setor de Psicologia Social da Universidade Federal de Minas Gerais.

4. O quarto dia. Na parte da manhã, dis­cussão na sala de Psicologia Social. Fa­lamos da noite de ontem. Respondo a al­gumas perguntas. Uma delas diz respeito ao inicio • e uma intervenção. Tratava-se de saber se seria preferlvel começar por uma investigação preliminar para prever, se possível, os confl itos, para conhe(;er os dados do problema. Respondo que, com efeito, classicamente, ~ assim que procede-

mos, c foi assim que procedi, durante um mês, em Montréal. E digo: aqui não tenho tempo de passar por esta primeira fase exploratória. Com efeito, invento, talvez, um modelo mais ativo, dramatizando a intervenção. A segunda pergunta: se, depois de minha partida, a autogestão de estabelecimentos de ensino, como a FUMO e a Escola de Comunicação, poderia continuar. Respondo que isto depende daqueles que lá t raba­Jhnm, e que somente eles, alguns presentes aqui nesta reunião, podem responder. E eles respondem que será possível, com efeito, continuar até um certo ponto. (De­vo precisar que para nós, analistas, a autogestão funciona como um analisador construido para chegarmos à análise, para praticarmos a intervenção. Para eles, os atores sociais desta autogestão, é bem di­ferente) . falamos, igualmente, do simbólico, do ri­tual da morte e do enterro. A noi te, a intervenção continua. Sexta-feira à noite, quarta sessão na E. C.: estava previsto, em princípio, desde a véspera, que o <trabalho . da escola-., isto é, as aulas, começaria hoje. Na en­trada do novo prédio - cuja instalação está agora um pouco mais adiantada -há uma lista de temas para as comissões: comissão do jornal, comissão do D. A., comissão do programa e uma última co­missão onde, de uma maneira irrisória, estava escrita a palavra <livre-.. Este pla­no tinha sido elaborado pela manhã, por seis pessoas, cujos nomes estavam indica­dos num comunicado mimeografado e dis­tribuído. Quem são elas? Não sei, não o saberei nunca, provavelmente. A dificulda­de lingüística me impede de ter uma visão completa da situação e de controlá-la .. Aqueles que trabalham comigo não est ão preparados para este tlpo de trabalho de análise, de procurar identificar o fato sig­nificativo. Por volta das 20,30 h, as co­missões se reúnem em salas separadas. Não assisto a essas reuniões. Permaneço com um estudante de Sociologia, . na en­trada da Escola, e vejo passar todo!! aque­l~s Que vão embora, depois de uma «vol­tinha» pelas salas onde estão reunidos lllais ou menos 30 estudantes (sobre um total de 120 inscritos na E. C.). Além destes estudantes, um ou dois professo­res (que eu não conheço bem) vieram Para a reunião, mas não participaram dos trabalhos. Não pretendo tomar a iniciativa de reunir uma assembléia geral esta noite,

mas desejo que alguém (ou um grupo) 0 faça. Um movimento começa a se an~,Utciar neste sentido, fazendo entender que ter~ mos uma AO. R. toma a iniciativa e a a~sembléia começa por volta das 22 h. Numerosos no principio, os participantes vão pouco a pouco deixando a · sala en. quanto discutimos com dois ou três · ~em­bros do D.A. Na volta, dentro do carro, R. está bastante irritado. Para mim, trata-se de umà rea­cão de insegurança. Dizia ele: para que sen·e esta reunião de <análise:.? Para que <discutir> com dois ou três membros do D.A.? . Quanto a mim, não compreendia bem o que se passava, a não ser o aban­dono por parte dos participantes ... Hoje de manhã, sábado, 9,45 h, espero em casa de N. os outros participantes convi­dados para a reunião do Setor de Psico­logia Social. Somos dois, somente. A reu­nião· do Setor está prevista para 9 h. Sábado, 2 de agosto. Reflexões sobre a regra fundamental (Belo Horizonte). A intervenção me interessa mais, · atual­mente, do que a autogestão. O que· me importa aqui, neste momento, é o conhe­cimento (por exemplo, sua relação com ·a sexualidade, a repressã o sexual). Um certo atraso da consciência critica, um certo atraso do exercício da liberdade; a visibi­lidade imediata da repressão cultural e pedagógica: tudo isto nos deveria fazer progredir mais depressa na análise dos mecanismos institucionais. A autogestão (na FUMO, na E. C.) me interessa mais como analisadora do que como projeto social e uma promessa de mudança. Eles, os particípantes, não crêem na possibilidade de autogestão - eles não a desejam - , mas reagem e falam quan­do a autogestão l: proposta com tudo aquilo qoe ela implica. A autogestão é a primeira regra da inter­venção - é isto que q uero dizer. T alvez erradamente, tínhamos proposto, como pri­meira regra, a análise da demanda. Ora, parece-me, hoje, não ser necessário ana­lisar a demanda. Afinal de contas, é de­manda de quem? Do Diretor? Dos Estu­dantes? De quem mais? Por conseguinte parece-me desnecessário anal isar a deman­da para começar uma intervenção. A ques­tão do período exploratório que deveria preceder a intervenção ativa, será formu­lada nos seguintes termos: qual é a pri­meira regra? Se a primeira regra é ~ autogestão, isto é, um analisador construo­do, isto significa que desde o primeiro

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36 minuto a intervenção é ativa e provocante - e que a autogestão é a única regra fundamental da intervenção. A regra da livre expressão (inspirada na Psicanálise) passa igualmente para segundo plano, pois que a expressão é solicitada, provocada pelo dispositivo analisador construido. Assim, deverlamos relativizar a importância de outras regras inspiradas em setores vizinhos (como, p. ex., na Psicossociolo-­logia, na Psicanálise etc.), mas de certa maneira distintos da Análise I nstítucional, para conservarmos como regra fundamen· tal aquela que nos é própria, q ue foi cria· da pela Análise Institucional, a saber: a instrução, o convite de autogerir as reu· níões, de autogerir o processo de forma· ção, de autogerir a intervenção, que passa a ser um analisador fundamental para a anál.ise. Sábado, 10 h. Estamos - apenas um es. tudante de Sociologia e eu - espernndo a chegada dos outros, para uma reunião marcada para 9 h. Reunião do fim-de-se­mana, em casa de N. Por volta das 1 i h, chegam os part icipan­tes do Setor de Psicologia Social, de uma maneira d.ispersa, e parece que a reunião pode começa r. Falamos da reunião· da vés. pera, na Escola de Comunicação. Um pou­co antes, fizemos um breve relato da si­tuação na FUMO, das aulas autogeridas. Em relação à última semana (sábado pas­sado, neste mesmo local, casa de N.), a situação parece estar em regressão: hoje temos menos participantes do setor de Psicologia Social.

Faço um resumo:

I • semana - 24/30 de julho: Seminá­rio na OAP, com estudantes, psicólogos industriais etc. Relativo sucesso;

2' semana - 31 de julho/6 de agosto: Semana do <Setor:. e ainda a intervenção na FUMO. Melhor sucedida a intervenção do que a Semana do <SetoD;

3• semana - 5/11 de agosto: (volta às aulas) O <Setor:. começa a trabalhar nos departamentos, onde seus membros inter­vêm na qualidade d~ professores. Ao mes­mo tempo iniciamc.s uma intervenção na E. C., depois de uma interrupção (ao fim de uma semana) na FUMO, onde a expe­riência d~ autog<:stão continua. T emos a.inda duas ou três semanas em Belo Horizonte.

Comentário Final

Conclusão

Assim como a regra fundamental de livre associação entra em conflito com os hábi­tos do d.iscurso racional, que resiste e que torna necessário analisar a resistência à palavra livre, assim também a regra da autogestão vai de encontro ao instituldo e conduz a analisar a resistência ao apren­dizado da regra da autogestão.

COMENT .A RIO A PARTE, FEITO POR OUTRA PESSOA noh machlne désiran/t, qui st ditraq~e. puis rlcommenct,

pufs rlcommenu, puis $1 d~traque, oh machint, machine machlnique, IIUJchlni:umte•.

Creio que estamos de acordo em dizer que há dois tipos de investimento: um inves. timento da ordem do interesse, que encon­tramos na base das negociações, das coali· zões; um outro tipo de investimento, que diz respeito ao desejo. O que sei é que as teorias atualmente em voga nas Ciências Humanas já identificam o invest.imento da ordem do desejo. Não com este nome, é bem verdade, mas, por ex., X, num de seus textos, fala de racionalidade reduzi­da, de racionalidade restrita, r econhecendo um lugar onde a racionalidade não im­pera. Y fala de pagamentos laterais, que

seriam aquelas ocasiões onde o investimen­to da ordem do desejo se manifestaria: C acredita que esses pagamentos laterais são pouco importantes, pesam muito pouco na balança do sistema. Mas o que queríamos dizer é que a libido investe o campo social, as instituições. E' verdade que a análise institucional ainda está sendo fabricada, montada, e as suas peças ainda não são identificadas, recO" nhecidas, e às vezes o analista institu­cional lança mão de algo que somente serve para desfigurá-lo. A prova de que ll libido Investe o campo social, nós a temos

nos hospitais psiquiátricos, ou na produ· çáo menos controlada, por ex., na lite­ratura de cordel. Assim, num destes livri­nhos, O Filho de Evangelista, do Pavão Misterioso (o editor-proprietário é João José da Silva), o relato começa da se· guinte forma:

<r:O poeta é um artista, do cine maravilhoso; F.sta peça mostra a glória de um rapaz

audacioso, Filho de Evangelista, do Pavão Misterioso. Sabemos que Evangelista foi herói e teve

glória Dc esposar a linda Creusa, que todos Mm

em memória; Vamos ver do filho dele qual será sua

vitória. · Foi o Conde Evangelista, com um ano de

casado, Pai de um filho, e nesse clia houve festa

no reinado E per Oenival Batista foi o bebi batizado. As.~im os tempos se foram, passando de

mais a mais Com quinze anos depois, Oenival era um

rapaz /.indo, sabido e letrado, forte, valente e

audaz. No colégio ele estudou Geografia e Gra­

mática Fez cu.rso de l'ários livros, inclusive Ma­

temática E com dezessete anos, ingressou na Aero­

náutica. E depois. na Aeronáutica, chefl.OU um des-

conhecido Ingressou com Oenival, e fez-se amigo querido Chamado Cesário, e tinha o coração de

bandido. /á andava foragido de Eubéía, onde nll$ctU Porque ao duque pai dele grande prejuí­

zo deu e numa grande canoa atravessou o mar Egeu~.

~r.ata-se, portanto, neste texto, de um de­l~rto, no melhor sentido que a palavra tem, Onde a Aeronáutica se encontra ao · lado <lo Pavão Misterioso, que era, justamente, urna máquina de voar, que . transportou o herói quando ele loi salvar a sua amada. ~ambém a Eub.éia, a Grécia e a Macedô­nta se encontram aqui lado a lado, assim como a maneira que o herói encontrou de se salvar, quando empurrado por seu amigo mau-caráter. Diz assim :

<Estando acima do mar o Cesário se virou,

Abriu a porta do lado e ao rapaz empurrou

E com a câmara-de-ar Oenival se agarrou-..

Ainda sobre a máquina de voar, que é o Pavão, traz o texto:

cAo chtgar na Eubéia, aterrissou um bocado

O resto ficou voando, porém tudo preparado

Esperando ver o sinal para invadir o ducado-,.

Afinal de contas, o desejo é como está dito na história da Mártir Etelvina, a san· ta cearense :

eMas como o diabo sem chave faz um coração se abrir

O amor na mística fúria faz a virtude cair.

é' preciso que a alma tenha força para resisti,..,.

Quanto ao amor, a ele estão reservadas as prer.tações laterais; ou então, como se expressou Manuel Cândido da Silva:

cVinde a mim as santas forças de Jesus da QaliWa

Pra eu versar um romance, que tenho na minha idéia

O quanto sofreu Jônatas pelo amor de Mauriclia.

Neste drama eu apresento um romantt de valor

Cheio de lulas tremendas, de orgulho e de rancor ·

Onde vê-se o egoismo cair peratl/e o amor O amor é ama rosa, o amante

é um jardim E os corações das virzens são seu

trono de marfim Todo mundo se acaba mas o amor não

tem fim-..

Até a revolução, e que o diga Marx, ser­ve de motivo de alucinação e de dellrio. T ambém Severino de Oliveira já sabia do assunto:

cUm cabra de Antônio Sitvino, por nome de Zé Loção

Morto há vinte e quatro anos, baixou em uma sessilD

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Conf()U um drama mqderno dizendo que no inferno

Estava em revolução. Foi quem trouxe o ocorrido desta

tenebrosa cena Dizendo: Ld no inferno ninguém

termina quinzena Há grande revoluçi1o Tem morrido tanto cilo Que quem quer ver, contar faz perun.

Dentro deste inferno em revolução estão os renegados. Assim se expressa o autor:

«Vou fabricar este infemu tris vezes maior que o mundo

Para botar mulher ruim, gente falsa e vagabundo

Ateu, crente e amancebado, sei que é superlotado

Em menos de um segundo~.

SOBRE A ESTADA DO PROFESSOR o ,

GEORGES LAPASSADE ENTRE NOS

Oeorges Lapassade e René Lourau são dois professores de universidade na Fran­ça que têm tentado uma abordagem do funcionamento das instituições em ter­mos de <Análise lnstitucionab. A eles de­vemos a introdução do termo (a tese de Lourau intitula-se L'analyse lnstitutionnelle) e um certo número de textos, tanto teó­ricos como de aplicação, dessa modalidade de intervenção ao nível das instituições. Es­ta é uma primeira razão para que se faça menção dos nomes dos dois professores franceses num número da Revista de Cul­tura Vozes sobre a Análise Institucional. Acresce que Oeorges Lapassade veio ao Brasil a convite da Universidade Federal de Minas Gerais num programa de coo­peração com o Serviço Cultural da Em­baixada da França. Portanto, nada mais justo do que mencionar o trabalho que este professor realizou entre nós. Esteve ele igualmente no Rio de janeiro e aqui teve contacto com vários colegas interes­sados em Análise Institucional. A menção que se fa:z a Lapassade é também devida ao impacto que sua permanência causou em muitos, inclusive no autor desta nota. Não pretendo fazer um resumo histórico em se tratando de Análise Institucional, mas seria interessante lembrar que o tra­balho psicossociológico na França encontra ~us principais representantes em Max Pa­ges, atualmente na Universidade Dauphine, André Levy, da Universidade de Nancy, c?l~borador e secretário-geral da cAsso~ c1at1on pour la "Recherche et l'lntervention Psrcho-sociologique:. (ARIP), Jacques Ar­domo, membro de um outro grupo de pro-

fissionais conhecido pelas iniciais A.N.D. S.H.A., Didier Anzieu, da Universidade de Paris, também colaborador na associação acima mencionada, Anne Ancelin-Schutzen­berger, na Universidade de Nice, diretora do Grupo francês de Sociometria, e outros que deixo de mencionar. O movimento de Maio de 1968 abalou todos estes profissio­nais em seus fundamentos teóricos. Tam­bém as associações que formavam sofre­ram o impacto da reflexão a que foram levados os especialistas em Ciências Hu­manas na mesma época. Todos estes psi~

cossociólogos tinham recebido influência, direta ou indiretamente, de Moreno, Rogers. Freud, Lacan. Oeorges Lapassade e Renê Lourau, talvez menos comprometidos com o status de profissionais da psicossocioJ()­gia, ambos com experiência de Pedagogia, trazendo de alguma maneira formação so­ciológica ', se viram à vontade para intro­duzir uma abordagem que se beneficiava das contribuições presentes no panorama aqui descrito, e das inovações sugeridas no bojo da contestação de Maio de 1968, assim como da crise por que passa a Psi­cologia na França, desde aproximadamen1e 1960. Vejam-se inúmeras publicações, entre estas a Revue de Philosophie de la Fran­ce et de l'Etranger, n. I, 1971, janeiro­março, número dedícado a reações causa­das por circular enviada aos professare~ de Psicologia e Sociologia no Ensino Superior. Creio que Oeor11es Lapassade, depois de um entusiasmo passageiro pelas teorias de jacque,· Lacan, pôde, em associação com Lourau, definir m~lhor sua contribuição.

Da época de aplicação dos conceitos de Lacan restam algumas ·páginas de Orga­nisations, groupes et institutions. Não fo­ram muito felizes as transcrições das no­ções de significante e significado que ago­ra encontravam a denominação adaptada de «instituanb e cinstitué:.. Claro que as noções de 4'instituinte> e 4:instituido> po­deriam permanecer, não sendo de grande utilidade o respaldo da Lingüística Estru­tural via lacanismo. Na época em que Sartre publicou a Cri­tica da razão dialética também Lapassade tomou-se de entusiasmo e logo viu uma possibilidade de fundamentar um pouco mais a Psicossociologia tão combalida pelas crítkas que o próprio Lapassade lhe tem feito. Adaptott o modelo sartriano à <Di-· nàmica de Grupo:~~, que era a forma de intervenção que se conhecia na época para os trabalhos de reflexão sobre o funcio­namento dos grupos. Mas foi em torno do grupo que susten­tava a revista Arguments que Lapassade nos deu os textos mais importantes para a Psicossociologia, antes de elaborar a Análise Institucional, tal como ela aparece hoje em dia, em seus escritos. No entanto, acredito (não sei se o inte­ressado concordará comigo) que o melhor de Lapassade está em seus textos inspi­rados em certo surrealismo e escrita es­pontânea. O poeta do Bordel Anda/ou, o artista de Le livre jou nos convence mais do que o sociólogo de Chaves para a Sociologia ou o analista de L'arpenteur. Poi com toda essa bagagem que l..apassa­de chegou ao Brasil. Faltou mencionar sua primeira, mas não menos importante, vinda ao Brasil Aqui chegou com o Living Theater, na época do Congresso de Psi­codrama em São Paulo. Logo aprendeu rudimentos de português e sempre fez ques­tão de dispensar tradutores, mesmo quan­do não entendia bem o que se passava nos grupos onde trabalhou (o que, pr()­vavelmente, dificultou ainda mais a tarefa Que teve por vezes que enfrentar). Quero dizer que é um personagem controvertido. Creio que seu trabalho se ressente de uma formação cllnica, ao mesmo tempo em· que Questiona o cerne da questão (pode o Particular analisar o geral?). Tenderia no momento para uma espécie de Schizo~ 'l~ályse cavant la lettre:.. <Avant la lettre:., d1go, antes que Deleuze e Guattari teori­:zassem o tema e nos dessem o importante documento que é L'anti-Oedipe. Não me consta que Ouattari faça Schizo-andlyse

como ele prevê no seu livro. Quanto a Deleuze, é um professor de Filosofia e nunca passou por um hospital, muito me­nos por um consultório ou clínica. Pois bem, Lapassade faz Esquizo-análise: eu 0 vi fazer em Bruxelas e depois no Brasil. Nesse sentido, reencontro o poeta surrea- . lista, o artista, o inovador, o criador. Mas a Schizo-anályse ainda é um projeto, uma inspiração. Nem sempre encontramos con­dições para tal tipo de trabalho. Lapassade descobriu que fazia Schizo-anályse (não deu este nome) aqui no Brasil, quando de seu último estágio entre nós. Dai talvez a dificuldade que experimentamos em en­frentar com ele o dia a dia do trabalho em instituições. Um dia me senti ultra­passado e escrevi um bilhete de duas li­nhas me desculpando. Nunca mais o vi Creio que o livro científico é uma prisão para ele. Assim como o trabalho analítico, na medida em que este gênero de inter­venção isola o desejo do analista e o abor­da em cvase elos>. No entanto, este «drop­oub (que passa por mendigo em um café de Paris quando se dirige a amigos em uma outra mesa que não a sua - o garçon ocorreu pressuroso para evitar que o <clochard:. importunasse os professores de gravata... colegas de Lapassade), membro ativo de movimentos libertadores na revolução sexual que se alastra pelo mundo, tem sido ou foi (pouco importa) um cscholar>, um csorbonnard:. à toda prova. A <agregação:. foi apresentada com todo carinho, e sua tese, L'entrée dans la vie, elogiada pelo rigor de pensamen-­to. Tem dificuldade de se despedir e está sempre querendo ficar sozinho! Veja-se o episódio por ele vivido e relatado (Le Bor­del Anda/ou) sobre sua aventura kafkiana nos meandros da burocracia universitária francesa. Minha hipótese é que ele provo­cava um pouco aquela situação. Um dia me disse: «naquela época conseguia es­crever> - época em que a administração o tinha confinado em uma sala minúscula da universidade em Tours. Sua permanência no Brasil levou a mim e a meus colegas a uma intensa e sofrida reflexão sobre nossa prática profissional, sobre os inconvenientes que se escondem nas boas relações de um programa de co­operação cultural. . . sobre o precário es­tado em que se encontra a Psicologia, sobre os fenômenos religiosos no Brasil, sobre a pobreza de nossa reflexão en­quanto não está voltada para problemas nacionais.

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40 Um dia em Belo Horizonte se viu con­vidado a não fazer mais perguntas (e eventualmente se retirar) aos umbandistas, que já se mostravam irritados com sua cimprudência:~> (veja-se o US() coloquial que a palavra assume em Minas). Nesse sen­tido, é um colonialista como outros que já vi na univer.!>idade ou em programas de relações culturais. Não espera, desmascara o Informante, deixa de obter a informação. Em Análise Institucional tende a fazer o mesmo: a Isso chama cexpficitar o desejo:., antes de analisar a demanda. Ora, ana­lisar a demanda é a primeira regra da Análise Institucional que ele mesmo, jun­tamente com Lourau, ajudou a definir e, até certo ponto, a construi r. A sua c:imprudência:., como dizia há pouco, é o cacoete do militante. Nesse sentido, considero-o tradiciona~ <quadrado:., e um chato. Quero dizer, a~r de todas as inovações, criações, invenções, conserva-se um militante. Quer convencer, não tem a legria (meu filho, definindo bem o proble­ma, um dia comentou: Lapassade nunca rl l), não conhece o <prazer de escrever• :(R. Barthes), não escolhe o momento pa-

ra intervenções, pode-se tornar importuno, pedir contas e dar lição de moral, está sempre com os CQpains ... Enfim, se fi­zesse a Sch/ZQ·anályse de seu militantis­mo veria que um professor visitante volta ao seu país, sem grande dificuldade, e que os colegas do pais visitado ficam enfren­tando a rotina, o desgaste do dia a dia, as dificuldades próprias de cada época, que não sabemos fazer outra se não aque­las que fazemos, que não vamos abando­nas a universidade, nem o consultório, nem a Análise Institucional. . . nem os gru­pos a que pertencemos, nem aqueles a que nos referimos. No entanto, sua sensi­bilidade para com certos aspectos da re­ligiosidade no Brasil me parece extrema­mente fecundos. Seu livro, escrito em co­autoria com Marco Aurélio, me parece de uma felicidade rara. Claro, foi buscar em estudiosos brasileiros muitas idéias que ex­põe no livro, mas estou querendo dizer que tem muita sensibilidade e soube pes­quisar em pouco tempo, recolhendo o ma­terial necessário. Talvez encontre no «tran­se> o seu modo de viver. . . Um dia falou: o povo é Exu. Falou e disse.

NOTA

• Nlo sAo tampouco &odólogos de "met!er", nem d• formaçlo.

ESCOLAR Intervenção num Congresso de Comunicação

Salvor queria dizer vutlr, ~r upatDes • chapéu e, albt de tudo, obedecer ao conquistador branco. Nlo sem nzlo, ""' poeta mO<IerctstJJ escreveu:

Quando o portugula ch•gou Debaixo duma bruta cbu•a Vestiu o índto Ouo ptnal Foue uma manh/1 de aol O lndlo tinha derpldo o portugul•.

OSW .UI> DE ANDIIADE

o perfeito mltltaate t o mesmo boneco fulsaico do puritanismo - socrático ou americano - que ae apresentou ao mundo parA edllld-lo, pedante, cretino, facci0$0. I! nlo aerla u­tranho ouvlrmoa que foi proclamado o Dogma da Imaculada Revoluçlo.

0SWALD ~ ANDI!A~

Nas paredes do E-s-t-a-b-1-i-n Bar os ln­dios quimbandeiros antropofágicos escre­viam seus caracteres:

Ex-cobra Escola Escolar

Estavam cercados pelos ·índios filhos de Maria, afilhados de Catarina de Mé<lices e genros de D. Antônio de Maria. A tropa de choque garantia a seguran­ça da palavra do Bispo Sardinha Vieira Anchieta que rezava a missa e salvava as almas. Na véspera os lndios rebeldes haviam con­seguido comer a primeira missa, com toda selvageria nua e crua. Os índios batizados se revoltaram e até mesmo fingiram ir chamar as tropas por­tuguesas para acalmar os ânimos antro­pofágicos. Mas como croupa suja se lava em casa, no dia seguinte, em que o sacerdote iri~ falar sobre as mais belas páginas do Evan­gelho, os índios catequizados resolveram convocar todos os seus, para impedir qual­quer nova deglutição. Na primeira missa, três padres e mesmo alguns índios «civilizados:. haviam sido co­midos pelos caraíbas. Estavam programados cinco dias de missa e de farta catequese. Seria ensinada a ló­gica, a moral, a língua oficial e a alta filosofia. No entanto: - «Nunca fomos catequizados. Fizemos foi carnaval:.. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro. Catiti Catiti lmara Notiá Notiá lmara lpejú

A magia e a vida ... - Aqueles quimbandeiros desrespeitavam quaisquer regras ccivilizadas,, Se houvesse razão para -<protesto•, que fizessem um oficio dirigido a quem de di reito pelos canais competentes. Ora, sim senhor ... O Bispo Sardinha Vieifa Anchieta, que es­tava prestes a ser deglutido na véspera, Procurava mals uma vez, com voz de anjo, convencer a massa selvagem dos esfor­Ços da catequese empreendida por ele e Por aqueles índios d~ tochei ro filhos de Maria, que aceitaram os valore; civilizados ~ agora não mais sofriam da perseguição Incruenta das tropas portuguesas.

Muitos daqueles lndios deviam merecer o devido respeito, pois já tinham se des­tacado em batalhas passadas nas lutas con­tr~ os reinóis, ntê mesmo, daqueles que ah estavam, muitos experimentaram as agruras do cárcere e o tratamento que dele se deduz ...

Apesar da doçura de sua voz, foi comido pelo bando selvagem ... Nunca se esperou que aquele bando de bundas-de-fora fosse ter tal ímpeto selva­gem e libertário, e tanta fome desr epressi­va a ponto de querer comer a missa. A missa havia sido preparada com todo cuida~o para que os interesses portugue­ses nao fossem afetados pela prática ca­tequista. Desde as autoridades catequéti­cas até os indios batizados, todos queriam que tudo transcorresse na mais perfeita ordem e na paz do senhor. -r:udo pare~ia tão simples. Marcava--se 0 dta da m1ssa, convidavam-se os Bispos pal~stinos,. ~onfeccio~ava-se o catecismo, lóg•co e dsstinto, e fmalmente convocavam­se os fiéi.c;. Para atrair os fiéis, alguns espelhos, algu­mas contas, e talvez um show com Gil­berto Gil. .. Mas que m. . . que foi dar que ninguém entendeu ... Nos arredores da missa, famintos de sel­vageria quimbandeira, lá estavam alguns bundas-de-fora. Esses índios já tinham durante uma se­mana enchido os índios civilizados, que­rendo que esses aceitassem a ridícula po­stçao de tirarem a roupa e pintarem o rosto. Ora, seria o fim; o que dizer pra bierarquia catequética, e os reinóis ... - O que propunham era a anarquia a antropofagia, a liberdade da palavra e dos costumes lndios enquanto índios! - O que queriam era o fim da cate­quese, o fim do domínio reino!; pô, o que esses índios desejavam era serem fndios - que loucura ... Os organizadores da missa temiam esses. índios loucos ... Esperavam ansiosos a chegada dos fiéis, dos índios filh.os de Maria. Eles tinham ido ao show e se aguardava com grande ansiedade a sua chegada. Mas pra surpresa geral, até dos bundas­de-fora, nenhum deles apareceu ... Nenhum foi atraido pelos espelhos, cola­res e ncrri pelo show do Gil. Aquelas bu­gigangas já não atra iam nenhum para a missa. Agora só restava convencer os bundas-de­fora a aceitarem. E, pô, lá estavam eles dançando e ca~ t:lndo suas músicas selvagens, seu rebo­lado em festa ... Os Bispos esperaram a hora pra falar ... Não conseguiram, aqueles bugres tomaram a palavra e não largavam, pareciam to-

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z mados pelo diabo, pela quimbanda, por Exu ... Jam deglutindo um por um dos catequis­tas e até mesmo um por um dos índios filhos de Maria em meio à dança infer­nal. .. Entre ais, uis, e não..me-comas, os orga­nizadores iam sendo deglutidos, envolvidos num imenso carnaval. Fazemos parte de um imenso cadáver gan­grenado. - Atenção, atenção, tem dois carburóes dos reinóis à espera. - P ula que corre que salta, pulula, pa­ranóia, deus me livre e guarde ... Quem ficou, ficou, e os ânimos foram por ora acalmados. Era tudo mentira, mas tinha que ser. -- Que zona. - Agora acabou ... Agora na segunda missa Já está o Bispo Sardinha falando ressurrecto garantido pe­los lutadores de Karatê. Ele fala e ninguém ouve, pois uns não querem ouvir c os outros só ali estão para que esses ouçam ... Na verdade só a antropofagia nos divide - socialmente, economicamente, filosofica­mente ... De um lado os lndios quimbandeiros-an­tropofágicos de Pantera Negra, e do ou­tro os índios filhos de Maria do Bispo Sardinha ...

O terceiro dia de missa foi uma espécie de enterro dos ossos do primeiro. De certa forma, chuparam os ossos do missionário religioso e seu séquito ... Os urubus, os sapos e os morcegos pai­ravam no repasto ... Era uma deglutição sofrida essa da car­niça do Bispo Sardinha e seus lndios li­lhos de Maria. No quarto dia a missa foi cancelada. No quinto também. Os selvagens comeram o edifício eclesiás­tico ... Agora restam os reinóis.. . A revolução Caraiba-Quimbandeira. c:Tupy, or not T upy, that is the questiora.

• • • Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.

* * •

A alegria é a prova dos nove.

Em Angola Janga e Piratininga. Ano 4 t8 da deglutição do Bispo Sardinha.

Marco Aurélio Luz sob a <irradiação) do esplrlto

dt Oswald.

ANÁLISE INSTITUCIONAL DE UM GRUPO DE _CONTEST ACAO

ou ainda sobre a «atuação" (acting-out)

.. , "tout I~ trtrYa/1 anatytlque ed dutlni à 'ntttr' 4 14 ploce' 1t di& Ir par rappqrt aux ln~Utllll'ons".

R~NG I..OOilA\1

. . . NB:t-11 po•$ible de tro11ur refuge da111 unt sa~un ptr$onallste el myfllqut tans ot jalre le prl1onrutr ln<ontcitnt des ld~oloetes dont 10 mlulon ut de rlprlmtr, tout loutc• sortu de formes, lt dtslr?"

P. QuATTAlU

Em janeiro de 71, trabalhei com Georges Lapassade em Bruxeias, atendendo a um grup() formado por aproximadamente 70 pessoas, entr~ as quais se encontravam

professores da Universidade, estudantes, assistentes soctats, psicanalistas, psiqula~ tras. Quanto aos estudantes, faziam parte de um grupo interessado em contracultura

e se reuniam habitualmente na Universi­dade de Bruxelas. Uma outra par te dos membros do grupo estava de preferência interessada em animação cultural. Mas o que deu a tônica ao trabalho de Análise Institucional foram as considerações em torno do que se chama acting-out, ou seja, a possibilidade de uma atuação, de con­teúdo político, sem que esta atuação seja considerada «111ala palabra> no dizer de M.arie Langer. Marie Langer acrescenta que a atuação (anala palabra>) se opõe a ação, considerada boa ação ( cbuena pa­tabra:.). Entre nós, Bernardo Blay Neto assim conclui o seu artigo: crotular o acting out grupal tão-somente como re­:;istência parece-nos não corresponder à rea lidade; parece, isto sim, constituir re­:;istência do terapeuta em reconhecer suas insuficiênci11s. O que ~e chama de resis-1Cncia (muitas vezes o acting-out é rotu­lado como ta l) é, em última análise, in­f•,rmaçl!o ao terapeuta sobre suas insufi­dências ou inadequações~. lt Lourau havia comentado um incidente por ele vivido em maio de 1968. De fato, Cohn Bendit, personagem principal nos acontecimentos de maio de 68 na França, ~ ra freq üentador habitual de um seminário ~obre Análise Institucional, na qualidade de .::;tudante de Sociologia da Faculdade de Nanterre. Este seminário era dirigido por René Lourau. A uma reunião estava ausen­te Cohn Bendit. Ao que se soube, aquele participante se ausentava do grupo para proceder a uma cação/atuação> (?). De fato, naquela manhã, o reitor da Universi­dade de Nanterre foi obrigado a deixar o Iuca! da diretoria, a sua sala sendo ocu­pada por um grupo de estudantes, tendo à frente Cohn Bendit. René Lourau, na qua­lidade de analista, já se preparava para apontar o <acting-oub e a recusa de aná­lise. Os acontecimentos de maio de 68 se P.recipitavam na França e Lourau, refle­~rndo sobre aquela sessão que ele dirigira, a qual Cohn Bendit esteve ausente, chegou a admit ir que o gesto produzido por aque­le estudante de Sociologia tinha revelado llluito mais coisas censuradas, escamoteadas ~o. nlvel do processo social do que a par­t~ctpacão habitual ao grupo de Análise lns­!rtucional. Este acontecimento teve uma 'lllportAncia fundam.ental no desenvolvimen­to dos t rabalhos sobre Análise Institucio­nal, especialmente no que diz respeito ao act ing-.out. Com efeito, temos encontrado com freqll~n­cia, em autores que lidam com trabalho

em grupo ou intervenções pedagógicas, te­rapeutas de um modo geral, a idéia de ação. Que ela se chame social actíon (Max Pages), acting-out (Didier Anzieu), <ideo­logia-perversão> (R. Kaes), tudo ist() se refere ao político e a esta espécie de po­lítico se opõe a Psicanálise na qualidade de situação especifica, lugar onde se pro­duz o trabalho analltico. Este debate me faz pensar em uma resposta fornecida por um diretor de um grande jornal norte­america no : cSim, nós podemos publicar tudo que queremos, mas não podemos fa­zer aquilo que temos em ment~. Dizer não basta. Por outro lado sabemos que a análise se passa num nível simbólico. E' o real (a distinguir da realidade, da ordem das coi­sas), é o real do analisando que está em questão. Eis-me aqui em plena contradi­ção. Vivendo em um pais cuja realidade não pode esperar, leitor assiduo do texto freudiano, ei-me aqui dividido. Teria sido em virtude de uma colocação defeituosa do problema? Ou devemos descobrir nessa contradição o estado atual de reflexão onde se encontra a prática analítica. Marie Claire Boons havia assim resolvido a ques­tão: c:Poser aujourd'hui la question de la sublimation dans la pratique poli1lque c'est d'abord affirmer que la pratique désirante rendue possible enfin de cure, comme fruit d'un e!lpace inconscient qui avait toujours ~é rejetté, refoulé et que Freud a ouvert, aurait principalement à ne pas continuer de se couper du courant lústorique qui depois ~arx a désigné dans le prolétariat le lieu rejetté du monde capitaliste~.

Veria dificilmente uma Psicanálise, uma di­nâmica de grupo, uma prática do psiro: drama que se situasse fora do que cha­mamos um meio social, un milieu social, como disse Andre Levy, txttrnal institu­tions no d.izer de Max Pages, ou ainda les groups sociaux réels, para Anzieu. Estes três autores colocam neste nlvel o limite (permitido?) da intervenção analf­tica. Enfim, vejo com muito interesse as reflexões, os trabalhos que atualmente co­locam em questão as imposições institucio­nais com relação ao trabalho psicanalítico . A este respeito, uma noção impressionou­me fortemente. Quero me referir ao que escreveu Conrad Stein sobre .:o setor re­servado da transferêncin. Assim se ex­pressa Conrad Stein: co setor reservado da transferência, onde fica patenteado Ct>­mo de que maneira a ins tituição que pre­tende ser garantia de uma certa deo11tolo-

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44 gia psicanalltica favorece grandemente, pe­la sua própria existência, um certo tipo de bloqueio psicanalltico, o qual, longe de de­sencorajar aqueles que são atingidos por esse bloqueio, favorece aspirações a uma carreira dominada muito mais pelo anseio de uma respeitabilidade médico-psicológica do que pelo prazer de fazer análise:.. Penso neste momento no problema da aná­lise didática. Sobre o assunto enviei con­tribuição ao Encontro do Circulo Brasi­le.iro de Psicologia Profunda, realizado em Belo Hor izonte em junho de 1971, onde tento uma abordagem proveniente da Aná­lise Institucional com relação à prática <análise didática:. em um grupo de psi­canalistas. Continuo citando Conrad Stein: «O úni­co resultado objetivo e absolutamente in­discutível desta prática (análise didática) é confi rmar os didatas ou o conjunto dos responsáveis pela formação psicanalítica, num status de mantenedores da ordem so­cial:t. Tenho impress.'io que importamos, no que diz respeito a sociedades de Psica­nálise, tudo que havia de pior em matéria de burocracia européia, seja proveniente

da Alemanha ou da Austrla, ou passando por Buenos Aires ou Londres. Aliás é bem simples: os institutos de Psicanálise não fazem senão responder a uma determinada demanda. Mas qual seria essa demanda? Pois que se insiste de tal maneira em afir­mar e fortalecer os conceitos de cura, pois que o selar reservado da Trans{e­rlncia se apresenta como uma fortaleza inviolável, pois que a autoriUJção (fálica) dada aos candidatos analistas é função d(' uma «boa adaptação:., pois que o projelo terapêutico, mais ainda o projeto didátiro são obstáculos a que se desenvolva o pro­cesso psicanalítico, onde encontrar o statu!\ científico da psicanálise? O mais grave é que organi~ações recente~. que não têm atrás de si o peso cic perso­nalidades marcantes, carismáticas, como é o caso na Europa, essas sociedades de psicanálise não encontraram um meio de expressar uma nova fórmula, de produzir uma reflexão que faça justiça ao textn freudiano. Sabemos que a colônia imita n metrópole e ela, como n metrópole, pre­tende possuir suas «faculdades de direito:., >!:Suas escolas de engenheiros, . ..

"DI.(RIO DA EXPERI~NCIA DE BRUXELAS"

Protocolo de um Grupo

No trem Paris-Bruxelas experimentei medo. Dizia-me: sem a presença de Lourau, La­passade iria se most.rar por demais pro­vocador. Compreendi então que Lourau era um elemento que dava segurança . . . a mim e ao grupo. Esta expectativa pôde ser confirmada desde a primeir a sessão de grupo. Os participantes logo perguntaram por Lourau. Lapassade também teria pre­ferido ter Lourau na equipe. Inicia-se uma longa discussão para saber porque Lourau não tinha vindo. Escrevendo este relatório penso que tudo isso acontecia independen­temente de Lourau. Eis que ele não estava presente. Mas porque não teria ele vindo a Bruxelas? Portanto o ausente estava presente de alg\Jma maneira. No grupo foi llda uma carta de Lourau. Fala-se de Lou­rau: cvocê conhece Lourau?:., pergun ta-se a alguém que falava do ausente, do mor­t<?. Com que direito falava aquele parti­Cipante do Lourau se ele não o conhecia? S_ó se podia falar daquilo que se conhe­Cia, o que é desde já uma res trição do ponto de vista analltico. O que se preci-

sava explicar era porque Lourau não es­tava presente e de que maneira sua ausên­cia representava uma restrição a q ue o grupo tinha que se submeter. Era necessá­rio explicar. De repente foi encontrada uma explic~c;ão: Lourau, convidado inicialmente pelo grupo de Br11Xelas para fazer parte do grupo de analistas, não tinha aceito em virtude de diverg!ncia com Lapassade. Lapassade, pela sua conduta privada, re­presenta o <particular:.. Como pode o <par­ticular:. analisar o <universa l:>? Com esse argumento conseguimos explicar tudo: h a­viamos explicado o incesto e a proib ição, ao mesmo tempo. O que não se explicou foi a eficácia do gesto até então proibido, da t ransgressão, que r sejam chamadas cbuena palabra:t ou <mala palabra:t. Nesse nível, de pouco vale o vocabulário ético das Sociedades de Psicanálise e suas posi­ções <universais,.. (Para salvar a Psicaná­lise preferiu-se uma maior tolerância para com a onda fascista nos anos que prece­deram a segunda grande guerra!) Ao li­quidarmos a q uestão em pauta naquele

grupo, ou seja, a questão do acting-out (atuação/ ação), muita coisa foi censurada c Lourau o analista ausente, circunscrito il sua mdrte'. Morte? Não, não é verdade. Lapassade disse: <a gente se sente sozi­nho:.. Como sozinho? Vai, leva uma cadeira até o meio da sala Uma cadeira vazia, o lugar de morte. Com esta encenação (psicodramática) mais uma vez tentava-se normalizar as coisas. Os mortos que per­maneçam em seus lugares. Numa etapa seguinte vamos ver como Cel. desempe­nhou um papel destinado a dar ao grupo uma sensação de segurança. Por enquan­to, fala-se de cgrupo selvagem:.. CJ. e ]. ,\o\. , cada um puxa a corda de seu lado. Silo os dois responsáveis que haviam con­vidado e feito os contados com a equipe de a na li~ tas. Lapassade intervém : c E' pre­dso acabar com esta confusão~ . Comen­tário à margem, no meu diário: ~Meu r am Lapassade. se pudéssemos pelo menos um dia terminar, da r cabo a essa con­tusão ... :. Nessas alturas, os adeptos do <aqui e agora:. começam a se manifestar: «estamos aqui para falar do que acontece agora, ne!(se momento:. . Imaginem ... o agora ao­tia longe. Lapassade, que conhece bem a música, inicia uma operação destinada a detectar os cgrupos:. ou subgrupos num grande grupo. Na qualidade de bom so­ciólogo, ele conhece bem sua teoria dos ,::rupos de refer~ncia. Para simplificar, con­clui: <A análise institucional coloca-se ao nível do grande grupo, do grupo de grupos:.. Nesse momento, vem à tona a questão do dinhei ro. E Lapassade, para mostrar seu lado São Franc.isco de Assis; declara: <0 dinheiro é um analisador. Vocês me pa­gam quando quiserem e quanto puderem:.. j. M., um dos organizadores, não estava mui to contente e sai-se com a frase bem conhecida, encontrada na boca de todo or­ganizador que assumiu compromisso con­sigo mesmo e está sobretudo interessado no sucesso do negócio (curso, seminário, <lnálise institucional, seja Já o que for): d lá uma porção de gente aqui que não foi convidada e que está esculhambando ') troço~. Portanto, houve convites. Foi preciso passar por uma pista para se che­gar até aqui. Poderia se pensar que não: assim rezava a ideologia do grupo. Mas reconhecermos que formávamos um g rupo, todos aqueles que aqui estavam desde al­gumas horas, isso era mais difícil. A drans­versatídade:t (Guattari, 1971) era desconhe-

cida, negada. Teria sido necessário traba- 45 Jhar nesse nivel. Mas Lapassade decide ali-viar a carga. Escolhe cerca de quinze participantes e sobe ao andar de cima, cio-diodo o grupo em dois. Era exatamente o fantasma do grupo. Analisador por ex­celência, ele se antecipava ao grupo .na recusa de sua ctransversalidade:.. Quanto aos outrO!I, Cel. poderá se encarregar de-les. Eis-me aqui em companhia de um grupo que bem poderia ser chamado de psicótico. Lapassade mais uma vez se en­carrega de mostrar como as pessoas são cindidas, divididas. Ele o mostra a sua maneira, isto é, além do bem e do mal, como diria Foucault. Estávamos no início da segunda jornada de trabalho. Durante t"do o segundo dia, ~e minhas lembran-ças são boas, se meú cscotoma permite restituir o que aconteceu, durante cerca de dez horas Cel. desempenhou o papel ntritmído ao analista , exigido pelo g rupo, isto é , assegurar a unidade do grupo. Claro está que no desenrolar dos aconte­cimentos não percebi tudo o que aqui re-lnto. Lapassade foi-se com um q uarto do grupo e eu, promovido ao posto de a na-lista único, encontrava-me numa sala com quarenta pessoas que esperavam tudo de mim, exceto que eu substitulsse Lapassade. Nesse momento, idéia genial, assim defino minha posição: <não tenho a menor inten-ção de fazer o papel de analista, mas pretendo permanecer onde estou• . {Onde estou? alguém por acaso poderia saber naquele momento?). Fico com o grupo. Era. tudo o que o grupo esperava: o bastao~ . para dar segurança ao grupo. Por outró lado, todos sabiam que eu não e!a um participante como os outros. Era Simples­mente aquele que no momento de aflição, onde a decomposição ameaçava o grupo, onde o acting-cut era possível, era aquele que dava segurança e unidade ao grupo - , como fazem todos os analistas que co­nheço. (<Voe! pode pensar e dizer essas coisas, mas os outros ... :t) O eterno a r­gumento, que divide o grupo entre adultos (adulterados?) e crianças (infantillzados) . Durante as sessões da tarde, duas ou t rês pessoas viío ao andar de cima, numa ten­tativa de se reunirem aos outros. Mas na sala de baixo a o:ilusão grupal:. . se mantinha, graças à presença do an~hsta (aquele que assegura a unidade e .tmpe-de o acting-out). A melhor prova e que os participantes logo encontra~am a pala-vra certa ( cbuena pai abra•) : Já que esta-mos aqui vamos analisar o que acontece

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aqui e agora; já que estamos em situa­ção de autogestão, já que somos adultos não temos neeessidade de Lapassade. Na realidade, tínhamos necessidade dele. Eis que ele era o profeta, o analisador como ele se lntitula nessas ocasiões. Nada de analista submetido à regra da abstinência, onde o menor ading-out é proibido, exor­cizado, afastado como falta técnica. Nem tampouco o genitor do grupo que encontra nesse personagem sua origem, sua unidade. Lapassade era o profeta, e será na quali­dade de profeta que ele descerá no final do último dia do andar de cima. Chegan­do na sala de baixo, onde se encontrava o grupo, ele encontrou o grupo. O gru­po o esperava.

O O Desejo do Analista

Encontro aqui novamente a questão le­vantada nos parágrafos onde discuti a de­fasagem entre o político e o trabalho ana­lítico (ao qual esta adstrito o analista). O presente parágrafo é destinado a reco­locar a questão, desta vez em função do que vivi no grupo de Bruxelas. Inicial­mente, mencionarei carta enviada por um participante de um grupo realizado em Bordeaux aos analistas, entre os quais en­contrava-se Max Pages. O referido parti­cipante, ao voltar de um grupo conduzido por Max Pages, sentindo a necessidade de ordenar na medida do possivel suas vi­vências pós-grupo, forneceu à equipe de analistas um documento por demais inte­ressante. Nessa carta, assim falava o mis­sivista: <a respeito do desejo do analista - possibilidade de integração do desejo do anaUsta num procedimento coletivo sob a forma de uma linguagem - ação real ou simbólica:.. •. A essa maneira de assu­mir o desejo, a essa maneira de trabalhar com um grupo cliente analisando, opõe-se o que se costuma chamar a <prática ana­lítica>. Novamente o problema do act aqui é levantado. Novamente o analisador aqui se opõe ao analista. Mas o problema nos traz multa inquietação e susc.ita muitas questões para ser resolvido em pouc.as pa­lavra~ Até a~ora não o consegui resol­ver. Pica claro. Até agora tenho colocado em oposição o cpolliico> é o <trabalho analltico>. Digamos que Lapassade deci­diu desempenhar o papel de analisador tal como ele mesmo e R Lourau o defi­niram. Admitamos em seguida que Lapas­sade conhece bem seu desejo e será a

partir dessa maneira que ele se faz ana­lisador. Mas quem garante que Lapassade conhece exatamente o seu desejo? Somos levados a admitir que trabalhamos mal grado nós mesmos, independentemente de nossa vontade, sem que o saibamos ou demos conta. Que nossos escotomas impe­dem-nos de ver nossos desejos. Mesmo Quando Lapassade fala de seu próprio de­sejo, não passa de um discurso sobre seu desejo. E posso, na qualidade de observa­dor, de co-analista, não reconhecer o que ele está falando. Posso dizer: são palavras, não passam de palavras. Qual era portan­to o desejo de Lapassade nesse grupo? Não sei. Como poderia sabê-lo? O que vem complicar particularmente o problema do acting-out (atuação/ação) (<mala pala.bra> <buena palabra>). Será que ele conseguiu «integrar seu desejo sob a forma de uma linguagem (ação real ou simbólica) num procedimento coletivo ... ?> Sim, talvez_ Mas, será sempre independentemente de sua vontade, de sua técnica ou de sua inten­ção política. Estamos sempre em atraso de um passo com relação ao nosso vir­a-ser, não é verdade? Igualmente descon­fiaria de todo e qualquer <proj~to tera­pêutico>, pelo menos numa perspectiva freudiana. .Mesmo se esse projet o é for­mulado · em termos de denúncia da utili­zação do psicodrama em função da <adap­tação:. dos pacientes ... •

Examinamos o documento publicado pelo Grupo Experimental Psicodramático Latino­americano e estamos de acordo com a maioria das proposições (novamente o problema do acting-out: atuaçãojaÇão). Todas elas nos parecem emergir dessa nova maneira de se considerar o acting-out. Podemos dizer então: 1) recusamos o em­prego das técnicas dramáticas como pro­duto de consumo, 2) recusamos o empre­go das técnicas dramáticas quando desti­nadas a dar uma ilusão através de gratifi­cações substitutivas (o amor universal tem servido para acobertar perversões as mais variadas), 3) recusamos o terapeuta que possui a verdade, recuS4mos a visão que reduz o cliente· a uma pessoa (personifi­cada, pessoalizada, personalizada, pouco importa) a ser recuperada, 4) recusamos o encontro misterioso, profundo, e alie­nante (onde a comunicação entre analista e analisando é explicada em termos de <comunhão> - a , q ue respondi que entre senhor e servo jamais houve comunhão). Certamente q ue recusamos todas estas mis­tificações, mas o que nos parece menos

claro, e onde estamos menos de acordo é quan1io se trata de inserir no mesmo texto um programa, um <projeto> terapêu­tico: c Propomos detectar e enfrentar si­tuações de injustiça sócio~conômica . .. > Mais uma vez, o acting-{}uf, a atuação, a ação (<buena palabra:.) estão em questão. Pois bem, e o poder terapêutico exercido por nós todos, «managers de l'âme:. na expressão de Lacan. j ustamente, seria ne­ces.<;ário colocá-lo em questão, e ele maneira nenhuma apro~·eitá-Io, seja num sentido, seja no outro. No Jundo sinto-me dividido. Em artigo recente Guattari intitulou Lalng, que ti­nha se retirado em um convento no Cei­lão para meditar, . . . «Laing divisé>. E ele (Laing), que tinha escrito, e tão bem, «0 eu divididO>. . . Maud Mannoni comen­tando o artigo de Guattar i já nos havia advertido: é isso mesmo, voces querem recuperar Laing com o espírito de organi­zação, vocês querem desviar a atenção de questões ·que no nivel da práxis mereceriam permanecer abertas. Uma das questões que mereceriam permanecer em aberto 'é cer­tamente aquela que denominamos a de­manda, em se tratando de um grupo, u':"a instituição, uma organização. A Anáhse Institucional se propõe justamente analisar a demanda, ao mesmo tempo em que ela a conserva em aberto.

L.! Conservar a Abertura

A atitude de neutralidade, de esfinge, de analista instalado na sua poltrona, atitu­de de defesa que me foi proposta e en­sinada em longos anos de análise didática não me convém. Nada tenho a fazer com

ela. Considero importante, no que me diz respeito, desmistificar essa atitude, esse vo­cabulário de frases feitas, essa atitude não diretiva apoiada em palavreado mais ou menos fenomenológico. O discurso que me fo i proposto como o falar terapêutico tem ares de impostura. Acho que Lapassade faz muito bem de não se deixar tratar de louco, ou neurótico. Na verdade, uma maneira de classificar as pessoas sabe mui­to se valer de uma nomenclatura psiquiá­trica para responder a objeções. Sabemos que a loucura é um limite e que nossos fantasmas nos rodeiam. Não estamos pe­dindo a ninguém fazer-nos conhecer essa realidade, sendo que é a de todos nós. Nem Psiquiatria, nem Psicologia. Que fazer? Conservemos a abertura, isto é, não encer­rar o debate, não deixar constituir um <se­tor reservado da transferênci,:.. No entanto, sab~mos que conservar a abertura evoca permanentemente riscos de dispersão do grupo (a promoção burocrática não pode­ria jamais permitir que os clientes candi­datos se dispersassem), ruphua violenta, contestação, enfim acting-out, que procu­ramos minimizar reduzindo o processo a um aspecto pré-determinado. O controle permite sobretudo evitar conflitos (em so­ciedades psicanallticas encontramos fre­qüentemente esse caso) que lembrassem a possibilidade de uma aventura, de uma experiência aventurosa aberta em direção à demanda, aos desejos múltiplos e con­t raditórios de grupos e indivíduos cuja realidade e história estariam em pauta. Acting-out por excelência, conservar a abertura !!1ignifica subverter o dilema atua­ção (<mala palabra>)ja~o (cbuena pa­Iabra>).

NOTAS

• Acracleço a M.u Pagb, assim como a sua equipe, por toda atenç1o que me t!m proporcio­nado, lnclusi'te confiando-me uma cópia de&ta cuta. • Documento redllldo pelo HQr u­po Latlno-Amer!uno de Pslco­drama•. Meus agradetlmtntoa a Raimundo que me prooorclonou conhecer nte documento.

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Diretório Acadêmico e estudantes: dois blocos que não se comunicam. Foi o que constatou a Análise lnst i· tuclonal feita pelo D.A. e pelo Setor de Psicologia Social da FAFICH, em três dias de debates . onde com­pareceram cerca de cinqüenta alunos da UFMG. Os estudantes que não transam com a direção do D.A. se sentem Inibidos em participar dos trãbalhos que ele desenvolve. "Existe um clima de repressão, na maioria das vezes acima dll consciência do aluno, que o leva a um Individualismo. Ele não pensa em se unir . com os colegas para fazer as coisas. O estudante universitário lntemaliza a institui-ção sem questioná-la. Isso castra sua capacidade de criação ", disse um dos participantes dos debates, acrescentando que Meste clima de repressão aparece sob a forma do listas de pre-sença, sistema de notas, negação de participação polft lca e até casos de atuação policial ". A Anál ise Institucional foi realizada na quarta, quinta e sexta-feira da semana pas-sada, e no principio, a Instituição colocada em xeque era o DA. de Filosofia e Ciên-

cias humanas. Mas . as discussões evoluíram no sentido de se questio.nar também todo o sistema universitário de ensino. Os problemas e grilos foram sendo colocados e as possi vais soluções começaram a aparecer , num clima pac if i-co, sem contudo deixar de ser polêmico. Depois de muita conversa produtiva e também de muito blá·

blá-blá, os participantes começaram a pôr em prática o que haviam decidido: desde sá-bado passado a sede do D.A. virou uma

oficina. Todo mundo trabalhando, fazendo colagens, cartazes, poesias. Um grupo faz

teatro-jornal, algumas pessoas se reuniram pra fazer o Impresso 2222. Enfim, os estudantes crian-

do. auto-gerindo. Mas Isso é apenas o inicio de um pro­cesso. Este trabalho não deve parar, nem ficar restrito ao

pessoal que atuou até agora. Queremos que você também par­ticipe desta nova fase do seu Diretório Acadêmico. D.A. D.A.

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IDEIAS & FATOS

PSIQUIATRIA SOCIAL

Crítica do Hospital Psiquiátrico de Minas Gerais

1. As Perspectivas da Psiquiatria Social

cNunca a Psicologia pode-­rá dizer a verdade sobre a loucura, já que ~ essa que detém a verdade da Psi­cologia•

(Michel Foucauft)

Não há uma concordância entre os diversos autores quanto ao significado e aos limites do que se conven­cionou designar de psiquia­tria social. O termo abran­ge uma variedade muito grande de trabalhos, que vão desde os aspectos só­cio-culturais da díade psi­quiatra-paciente até o estu­do comparativo das mani­festações de determinada doença mental em diversas culturas. Assim sendo, co­menta-se muito a dificulda­de de se definir a nova dis­ciplina, bem como a ambi­guidade de sua denomina­ção e a heterogeneidade de seus objetiv~. Para cada

autor haveria uma «psiquia­tria social:., e esta estaria exigindo uma sistematiza­ção, para que as futuras investigações não se per­cam no emaranhado dos conceitos. Apesar de todos os obstá­culos, podemos constatar que é crescente o número de trabalhos que se consi­deram filiados à psiquiatria social, assim como o inte­resse dos psiquiatras e de outros profissionais por esta área. Nela inclulmos o pre-­sente estudo. Não queremos iniciá-lo, porém, sem apre-­senta r algo que já foi rea­lizado visando uma sistema­tização, o que poderá ser útil ao desenvolvimento de nossas reflexões. Uma destas tentativas, que em parte resumiremos, re­laciona - por um lado -as furzró~s e - por outro lado - os campos que têm sido identificados com a psiq uiatria social. 00

Entre as funções, duas se re veste m de importância fundamental: 1. Assisténcia. 2. Ptsquisa. Quanto aos campos, podem ser de complexidade e- mag­nHude ascendentes:

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a) Diade psiquiatro-pat:ien­te. b) Tnslifui&ões. c) Coletividades. De acordo com estas dispo­ções, teremos: Ja: a psiquiatria social se realiza na relação mínima J: t, significando a compre­ensão deste encontro como acontecimento sócio-cultural. Esta perspectiva está pre­sente, por exemplo, na obra de SULLIVAN. " 1 b: incluem-se, neste nível, as tarefas assistenciais que envolvem a utilização de grupos a serviço do pacien­te (ambíentoterapia, comu­nidade terapí!utica, atendi­mento de familiares e outras modalidades). Nesta linha incluímos as proposições de j ONES" e de ACKERMAN. ' /c: neste item podemos si­tuar as formas de atendi­mento que abrangem gran­des comunidades (assistên­cia psiquiátrica setorizada, por exemplo). Esta preocu­pação está presente no tra­balho de SIVAOON. " 2a: a psiquiatria social, nes­ta faixa, representa-se por investigações sobre a diade psiquiatra-paciente. Mencio­namos um trabalho reali­zado entre nós por POR­TELA. •• 2b: caberiam aqui os estu­dos a respeito das institui­ções psiquiátricas, ou das famílias dos pacientes. In­cluímos, nestes caso, a pes­quisa de CAUOILL. ' 2c: a psiquiatria social é relacionada com estudos e pesquisas que abarcam as coletividades. Aproxima-se da sociologia e da antro­pologia cultural. Compreen­deria, por exemplo, os en­ques encontradns em BAS­TIDE • e W tTTKOWER ", res­pectivamente. O esquema que acabamos de apresentar é muito abran­gent·e., e faz da psiqu.iatria social uma disciplina híper­troliada.

Os autores ingleses tendem a usar o termo em seus significados la, I b e I c. Já os autores norte-americanos preferem aqui a denomina­ção «psiquiatria cumunitá­riu, reservando o rótulo <psiquiatria sodal> para os sentidos 2a, 2b e 2c. Uma exceção é LmOIITON, que en­globa na psiquiatria social tanto as funções de assis­tência como as de pesquisa, incorporando-lhe todos os itens mencionados. " Não terminaremos estas con­siderações sem nos determos num autor francês, BASTI­DE. • Segundo sua sistema­tização, a psiquiatria social seria um capítulo particu­lar da psicologia social; esta se interessaria pela socialização do indivíduo en­quanto que aquela por sua dessocialização. O estudo dos grupos e das coletivi­dades ficaria a cargo da sociologia das doenças men­tais (dimensão social) e da etnopsiquiatria (dimen­são cultural). A medida em que a psiquia­t ria tem uma preocupação primordial com o individuo, mesmo quando recorre aos grupos e às coletividades, de acordo com 8ASTIDE, a psiquiatria social compreen­deria os itens I a, I b, I c e 2a. Os itens 2b e 2c fi­cariam reservados à socio­logia das doenças mentais e à etnopsiquiatria. Finalmente, cumpre regis­trar, ao lado destas siste­matizações (e não sabemos até que ponto nelas inter­ferindo), o enfoque que con­sidera o «social:t não como um capitulo, mas como uma dimens(Jo da psiquiatria.

lt Crítica do Hospital Psiquiátrico de Minas Gerais : lntroduçlo

Este é um trabalho sobre os hospitais psiquiátricos de

Minas Gerais. Partimos de um objetivo bem definido : identificar as motivações ou as necessidades q ue, em nosso meio, têm determina­do a internação de pacien­tes nos hospitais psiquiátri­cos. E" nossa intenção exa­minar, sobretudo, o sistema de relações interpessoais, no qual estão presentes, entre outros fatos, a exclusão de uma pessoa de seu meio sócio-familiar e a sua in­clusão numa subcomunida­de instituída. Para uma me­lhor exposição, passaremos em revista inicialmente os setores da comunidade en­volvidos no problema, em seguida as próprias institui­ções psiquiátricas e por fim os pacientes (Intencional­mente em último lugar). Procurando alcançar os ob­jetivos propostos, recorrere­mos a impressões e refle­xões sobre nossa experiên­cia neste campo, a estudos de autores locais e a con­tribuições de autores es­trangeiros, que nos dispuse­mos a reelaborar, adequan­do-as à nossa realidade. Nossa critica é uma genera­lização. Quanto aos aspec­tos tratados neste trabalho, acreditamos que os diversos hospitais psiquiátricos mi­neiros diferem entre si ape­nas quantitativamente. Cum­pre, porém, diante de cada ca.so concreto, precisar a sua realidade. Da mesma forma, levantamos a possi­bilidade de uma analogia entre o que ocorre em Mi­nas Gerais e em outros Estados. Não cremos que os fenôme­nos aqui relatados sejam como um simples adjetivo que se juntou a um subs­tantivo e que a qualquer momento pode se desligar dele. E ' o hospital psiquiá­trico mineiro em sua t6tali­dade, portanto, que está em questão.

10. A Comu.nidade

O setor da comunidade que mais de perto nos interessa no desenvolvimento deste trabalho são as familias dos pacientes. Ut ilizaremos ain­da o termo em seu senti­do geral, ou referindo-nos a outros setores diretamen­te implkados nas situações (organismos policiais ou de asl;istência social). Que motivações poderiam conduzir uma família a in­ter nar num hospital psiquiá­trico um de seus membros?

Terapêutica

A resposta que primeiro s urge, e que parece a mais razoável, é a necessidade terapêutico. Diante de uma pessoa em crise, seus fami­lia res procurariam ajudá-la, buscando no hospital os re­cursos exigidos para o seu tratamento. Convém fa.zer alguns co­mentários sobre as concep­ções de doença mental e de tratamento mais comuns em nossa comunidade. Uma delas consiste em conside­rar a crise à semelhança de um corpo estranho, que o médico ( ou o místico) deVe remover. Constitui uma recusa a admitir as vivên­cias impugnadas como uma parte do paciente. Outra concepção compreende a .do­ença como uma liberação caótica e despropositada de certos conteúdos da vida mental. E' o individuo <des­parafusado:., para o qual o remédio é um <parafuso>, ou seja, a supressão de tais vivências emergentes. Cita­remos ainda a tendência a bipartir o paciente, diferen­ciando-se nele uma parte sa e uma parte enferma. E' o caso, por exemplo, do fa­miliar do alcoólatra, que nos diz: : «fulano é uma

pessoa boníssima, seu único defeito é o de beber>. Ao assim dizer, fica implícito um pedido: cpor favor, dou­tor, retire-lhe apenas o vi­cio de beber, porque o res­tante está boml>. Não se percebe a relação entre o impulso à bebida e os ou­tros aspectos da vida do paciente. Restringe-se cui­dadosamente a problemáti­ca a um compartimento. O que é um artifício tenden­cioso, pois, se formos ex­plorar o conflito em sua real extensão, muitas vezes o próprio familiar se vê nele incluido. O que prevalece na concep­ção de tratamento de nossa comunidade, como se obser­va, é a supressão do con­flito, e não a sua expressão e o seu exame. Mais adi­ante veremos que nossa prática psiquiátrica, habitu­almente, procura efetivar as referidas exigências das fa­mílias. O fato da comunidade re­correr ao hospital psiquiá­trico com o propósito de ajudar o paciente ocorre numa freqüência muito me­nor do que se supõe. Nem sempre a intenção explícita corresponde à intenção pre­ponderante. E' muito co­mum, entre nós, o psiquia­tra colher as infor,mações trazidas pelos parentes e tomá-las como efetivas, nu­ma atitude crMula que leva a uma visão distorcida do paciente. Embora na maioria das vezes s urja da família a iniciativa da internação, raramente seus propósitos são questionados. Nos últi­mos anos temos caminhado neste sentido, através de en­trevistas com os familiares e da observação de suas atitudes. Supomos que quan­do o desejo de ajudar é o principal, as atitudes da famllia, do pacienti! e do psiquiatra tendem a fazer

do atendimento extramural (ambulatório, consultório) a alternativa preferida. A esta altura, uma nova pergunta fica subentendida : que outras finalidades esta­riam subjacentes à hospita­lização? Cremos haver vá­rias respostas. Procurare­mos expor as que nos pa­recem mais importantes.

Rejeição

Em primeiro lugar, citamos a rejeiçlio. Certa vez, ouvi de um paciente: cexistem pessoas que possuem pro­blemas, e existem pessoas que são problema.s, e eu . tenho muito medo de ser uma pessoa-problema:.. Este é o caso de numerosos in­divíduos dos quais as fa­mílias procuram se livrar, abandonando-os nos hospi­tais psiquiátricos. As vezes são portadores de lesões orgânicas irreversíveis. Ou­tras vezes, são personalida-­des profundamente transtor­nadas. E' freqUente, porém, o aspecto psiquiátrico ser­vir apenas de pretexto, si~ tuando-se o problema em outros niveis (sócio-econô­mico, por exemplo). Ao· servir de abrigo para a rejeição, o hospital se trans-. forma em depós ito de pes­soas, consideradas como re.;. talhos humanos. Sua função passa a ser a de encobrir partes frágeis da comuni-­dade, evitando um contraste que poderia ser criador.

Segregação

Em segundo lugar, passare­mos a examinar a segrega­rão . o paciente psiquiátri­co pOde constituir-se nu!fl perigo rea l para a famiha e para a comunidade. t:;sta noção é bastante conhecida. O que ainda não foi suft-

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cientemente esclarecido e di­vulgado é o tanto que este perigo é imaginário, e o tanto que o <louco, é agre­dido pela sociedade, que nele vê refletida a sua pró­pria agressividade. Um dia na sala de admissões de um hospital público é o bastante para percebermos a hostilidade dos familia­res e dos policiais no trato com os pacientes. Infeliz­mente, de modo mais ou menos dissimulado, esta ati­tude persiste após a inter­nação: seus pertences lhes são retirados, um macacão lhes é imposto, processa-se seu confinamento nos pátios das enfermarias superpovoa­das, tudo isto num clima de relações interpessoais que seguem o modelo de uma extrema reificação. " A sociedade efetua uma di­vagem, uma discriminação : de um lado, os doentes, isolados nos hospitais psi­quiátricos, de outro, os sa­dios, correspondendo ao co­mum das pessoas. Os enfer­mos são escolhidos entre aqueles que evidenciam cer­tos caracteres que a socie­dade repudia e coíbe em si própria. A saúde mental, entendida como a ausência de doença mental, passa a se constituir num dos valo­res mais efetivos na atua­lidade. A mitificação age como tranqüilizndor social: a noção de doença mental emerge da necessidade de uma resposta para os con­flitos morais. " Na civiliza­ção ocidental industrializa­da, está substituindo com vantagens a noção de de­mônio. A comunidade se sente aliviada ao trancar nos hospitais psiquiátricos a loucura, a melancolia, a anti-sociabilidade, a homo~­sexualidade, enfim, aquelas características vetadas por sua censura. Assim proei!­dendo, os individuas vivem

.... ~.

a ilusão de que nada da­quilo tem a ver com eles, e a existência de pessoas se­gregadas embala esta tran­qüilidade.

Punição

Em terceiro lugar, passare­mos a considerar a puni­rão. Em nosso meio, a idéia de saúde mt:ntal está asso­ciada à de normalidade cul­tural, e em conseqüência, a psicopatologia está baseada no desvio. Doente mental é aquele que infringiu as pau­tas de comportamento, ou melhor ainda, as pautas existenciais socialmente de­terminadas. Explícita ou im­plicitamente, esta é a con­cepção dominante. Nesta perspectiva, o transgressor deve ser punido, como re­paração e corrigenda. A sociedade, porém, é ambiva­lente. Ora defende a puni­ção de modo aberto e inci­sivo, ora vê nela uma irra­cionalidade. Novamente o hospital psiquiátrico apare­ce como solução. O regime de internação, assim com­preendido, assemelha-se aos mecanismos de <formação de compromisso•, descritos por Freud 10

: o individuo é punido, mas isto se faz conforme uma derapêuti­ca:., que dota a punição de uma aparência amena ou aceitável. Parece-nos indubitável uma função punitiva de nossos hospitais. A simples inter­nação já cumpre por vezes este fim, à medida em que exclui a pessoa de sua ha­bitual vida familiar, sexual, profissional - atingindo to­do o seu sistema de rela­çôes, portanto. Além disto, I) ambiente hospitalar é co­mumente privador e coerci­tivo. A pobreza em recur­sos materiais (nos hospitais públicos, principalmente) · e

humanos (em todos), aliada à restrição de suas liber­dades, faz com que os pa­cientes cedo percebam as «leis• da casa em que se encontram.

Certa ocasião trabalhei nu­ma enfermaria Que estava com mais de cem pacientes, com uma média diária de cinco admissões, contando com dois médicos, e duas ou três atendentes em ca­da turno. Ouvi, então, de uma paciente que havia si­do internada em crise psi­cótica: cisto aqui não é um hospital, é uma cadeia, e o senhor não é um mé­dico, é um carrasco).

O psiquiatra participa da trama. Assume um papel censor e punitivo, consti­tuindo-se num suporte real para as projeções dos paci­entes, com poucas possibili­dades de um relacionamen­to novo e criativo. Na maior parte dos casos entra em contacto com o paciente quando este já foi interna­do. c:Estã na condição de alguém Que assume a dire­ção de um automóvel em movimento, com poucas po~ sibil idades de frear, ou de escolher outro caminho:. ...

A iniciativa parte da faml­lia, dos órgãos de assistê~ cia social, da policia, de outros médicos - mas pou­cas vezes dele. Chegamos ao irônico discernimento de que a sua alienação lhe dificulta uma aproximação personalízante do paciente.

As suas funções já foram traçadas por outros, só lhe resta executá-las.. Quando perfilamos algumas técnicas psiquiátricas (choque cardla­zóliço, eletrochoque, coma insulinico, lobotomia, im· pregnação medicamentosa), perguntamo-nos !\e é uma casualidade o seu aspecto agressivo.

lnvalidaçdo

Em quarto lugar incluímos a invalidação. Assim esta­mos denominando a ação corrosiva da liberdade de uma pessoa sobre a liber­dade de outra, de tal modo que esta última termina sen­do identificada como invá­lida ou doente mental. E~ ta noção, baseada no tex­to do CooPE.R •, está pre­sente em outros autores, que nos alertaram para o problema. •· .. A invalidação é um proces­so que implica numa série de medidas adotadas por certas famílias, visando anu­lar as tentativas de vivência a utônoma de um de seus elementos. Não pretendemos nos aprofundar neste pro­blema. Queremos apenas afirmar que ocorre com grande freqüência em nosso meio. Todo grup() familiar po~ sui um sistema de normas; muitas vezes, normas con­fusas e inflexíveis. Há si­tuações em que uma pessoa do grupo resolve separar­se. Verifica-se, então, uma reação da parte dos outros componentes, que tentam im­por sua autoridade. Se fra­cassam, podem ainda buscar fora da famflia um reforço para as suas pretensões. Existem casos em que esta crise se torna tão grave Que o ensaio de inde"pen­dência acaba por levar a pessoa a um hospital psi­quiátrico. O psiquiatra, no consenso das famílias, qua­se sempre é tido como uma pessoa poderosa, capaz de exercer sobre a conduta Qualificada como enferma uma influência corretiva. Mencionaremos uma outra possibiildade. Existem cir­cunstâncias em que o grupo familiar tem a n~ssidade de eleger um de seus mem­bros para exercer um papel

que comparamos ao de um <pára-raios:.. A escolha se baseia na fragilidade ou no npo de personatidade do eleito. A partir de então, ele se torna o escoadouro dos impulsos hostis. Veri­fica-se, assim, um desloca­mento: a agressividade q ue não pôde ser expressa em relação à pessoa apropria­da, encontra no futuro do­ente mental um alvo subs­titutivo. Numerosas são as situações em que, em nossa socie­dade, um individuo se v~

na contingência de suprimir (ou de reprimir) seus im­pulsos agressivos. Isto se obser va tanto no âmbito internacional como no âm­bito interpessoal mais res­trito. Focalizando o meio familiar, podemos ver como o cotidiano de cada pessoa está carregado de momen­tos em que a sua hostili­dade deve ser contida. As restrições estão em todas as partes: é o empregado que não deve responder ao pa­trão, é o funcionário que não deve desagradar o cli­ente, é a esposa que não deve discordar do marido. Não há vagas, é proibido, tem que pagar. A compe­tição promete mais do que os meios podem proporcio­nar. São, poré.m, os fatores inconscientes que assumem urna importância primordial nos fenômenos referidos: além das frustrações prove· nientes das coibições exter­nas, as pessoas sofrem a censura das representações fantasmát.ícas interiores. Se a agressividade não for de algum modo esvaída, uma ameaça começarlt a rondar. Há famílias que não conseguem outra saída se-­não a de escolher um de seus componentes como vi­tima. A violência é exer­cida, alguém é imolado em holocausto ao grupo.

Existe maneira mais efici· ente de invalidar uma pes­soa que não seja a de identificá-la e fazê-la iden­tificar-se como doente men­tal? • A psiquiatria seria novamen­te envolvida, com a finalida-­de de <abençoar> o sacrifí­cio, emprestando-lhe um r-i­tual médico bem definido. Cremos que em nosso meia a hospi talização tem sido o recurso preferido para este fim. Embora não possamos apresentar um estudo por­menorizado da complexa di­nâmica familiar dos pacien­tes, podemos caminhar o suficiente para reconhecer evidências significativas. O caráter compulsório de um grande número de interna~ ções é um dado expressivo. Os pacientes não vêm, são trazidos, talvez como <eles não vivem, são vivid~. E quem os traz, geralmente, são suas famílias, as gran­des esquecidas da psiquia­tria. Somente nos últimos quinze anos nasceu a preo­cupação de um estudo sis­tematizado e intensivo das famílias, por parte de al­guns psiquiatras. Preocupa­ção que entre nós ainda é uma esperança. Em nossa prática, ainda não fomos capazes de entender o tanto que cada farnl lia ~ traz através de seu paciente, ain­da não conseguimos lidar com a sua fragilidade ex­posta nele: limitamo-nos àquele que se internou, e o nosso reducionismo nos frustra, pois o enigma se tornou insolúvel. Um outro dado que passa· remos a comentar é o ele· vado índice de reinterna­ções. Levantamentos estatís­ticos de um hospital público de Belo Horizonte revelam­nos que, das 7.450 admi~ sões de pacientes da capi­tal ocorridas num período de &ete anos, 3.463 (4ô,5%)

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foram reinternaçóes. •• Nllo possuímos levantamentos so­bre os pacientes previden­ciários, mas sabemos que nestes casos o índice é maior. Podc:ia ser objetado que o falo de haver uma percen­tagem elevada de reinterna­ções não implica, por si só, na existência de um pro­cesso de invalidação. Esta objeção é importante, por­que nos atenta para outros fatores responsáveis pelo reingresso de um paciente num hospital psiquiátrico, mas não chega a abalar nosso ponto de vista. Ba­seamo-nos também em ob­servações não quantificáveis, algumas das quais preten. demos relatar. Internar um paciente, em nosso meio, significa clas­sificá-lo. A pessoa passa a ter uma nova identidade. Um rótulo, um enquadra­mento. E' verdade que este processo se inicia no ambi­ente fal)liliar, mas o hospital o institucionaliza. A pessoa recebe um diagnóstico. E' controvertida a importância do diagnóstico em psiquia­tria. Mas, além (ou ao lado) do aspecto racional do pro­blema, existe outro, ético­irracional: o diagnóstico é discriminatório e estigmati­zante. O patológico é iden­tificado com o mau, e o patológico, aqui, é a totali­dade da pessoa, ou seja, é o esqui:tafrênico, é o obses· sivo, é o PP.

Uma vez egresso do hospi­o individuo enfrenta, além de sua problemática ante­rior, os entraves desta no· va identidade. T odas as suas atitudes estão sujeitas a uma vigilância persegui­dora. Suas iniciativas en­contram maiores resist~n­cias, e suas falhas são pu­nidas com severidade exa­cerbada. Quem se internou pela primeira, vez, é reco-

-:..-. ...

nhecidamente um candidato sério a novas hospitaliza­ções. Há pouco tempo atendi a uma paciente que havia sido reinternada porque bri­gou com sua irmã. Seu corpo estava marcado pc­las agressões sofridas, e na anamnese constava que tam­bém cometera semelhantes agressões. Na entrevista, uisse-me: «eu briguei sim, quase arranquei os cabelos dela, e eles resolveram o problema me internando; é que eu sou a doida~>. Quando enfatizamos a vio­lência que certas famílias p r a t i c a m contra um de seus elementos, ou quando comentamos a continuação desta violência no âmbi­to hospitalar, não estamos negando a inferioridade dos sentimentos persecutó­rios. Os mecanismos proje­tivos exercem papel funda­mental nos deUrlos paranói­des. O que estamos tentan­do mostrar é a precariedade dos limites entre o mundo externo e o mundo interno. O que em outras palavras consiste em interrogar em que proporção a persegui­ção é uma realidade na interioridade do outro. Per­guntaríamos ainda, com ba­se em ce.rtos autores ", se não seria mais importante ao invés da subjetividade, investigar a intersubjetivi­dade, ou melhor ainda, o sistema de relações das pes­soas atendidas. jACKSON, estudando a di­nâmica familiar do pacien­te esquizofrênico, chegou à conclusão que ele exerce um papel de equílibrio: sua melhora muda toda a situa­ção intrafamiliar. '·" E, en­tre nós, é percebida por muitos a ação sabotadora que alguns familiares de psicóticos exerxem sobre o seu atendimento. Não se­r ia o isolamento do pacien­te, então, uma atitude ina-

dequada, uma tentativa de <reduzir o irredutiveb? O êxito alcançado pelas té<:­nicas psicoterápicas indivi­duais tem-se verificado qua­se sempre com pessoas r e­lativamente autônomas, cu­jos problemas se situam mais ao nivel de sua famllia fa ntasmática. Aqueles que se encontram em nossos hospitais psiquiátricos estão num estágio anterior: ain­da se ligam fortemente às suas famílias reais. Ao que tudo indica, teremos que evoluir à procura de novas técnicas, capazes de pene­trar no âmbito das crises familiares, das quais só nos tem restado sacramentar e remoer os escombros.

Benefício

Em quinto lugar, citamos o beneficio. Este termo é con­cebido como o ganho espü­rio que as famllias ou a comunidade obt~m com a internação dos pacientes. O benefício advém do afasta­mento (ou da negação) de um problema, encontrado como o meio mais fácil de c:resolv~-lo:., ou da utili.:za­ção da doença como um pretexto para a obtenção de regalias institucionali:zadas. Voltaremos a falar sobre este tema, bem como sG­bre invalidação, em outra parte deste trabalho. Ao fim deste capitulo, al­guns comentários com o in­tuito de síntese. Eni re as principais motivações respon­sáveis por nossas hospita­lizações psiquiátricas, apon· ta mos a terapêutica ( enten• dida como terapêutica ·su· pressiva ou repressiva), a reje.ição, a segregação, a punicão, a invalidação e o benefício. São fatores que nos casos concretos estão associados, em intensidades variáveis.

Somos de opinião que nos­sa comunidade, ou setores dela, na maioria das vezes utilizam a internação como um meio de exercer sua agressividade com relação a certas pessoas, embora ao nível consciente ou explícito a hospitalização se processe em nome de cuidados as­sistenciais.

IV. As Instituições Psiquiátricas

A) Os Hospitais Psiquiátricos

E' muito comum o fato de ~ertas instituições s e r e m criadas para superar deter­minadas necessidades, e aos poucos, tomarem a si pró­prias corno um fim. A par­tir deste ponto, desvirtuam suas finalidades originais: ao invés de ajudar a comu­•tidade a superar suas ne­cessidades, agem no senti­do de perpetuá-las. Há, deste modo, um esclerosa­mento destas instituições. que não mais se constituem em fator de solução, mas em fator de preservação das exigênc.ias em função das quais foram criadas. F.stariam nossas instituições psiquiátricas incluídas nes­ta perspectiva? Acredi tamos que sim. No capítulo anterior, comenta­mos a cobertura que dão à ag"ressividade velada das fa­mílias e da comunidade. Trataremos agora de exa­minar em que grau con­tribuem para a manutenção e agravamento destas con­dições. A este respeito, nosso pon­to de vista básico é o de que a estrutura que tem o ltospital como centro trans­Formou-se em fator de in­ternação. O que se traduz assim: a maioria das ad­missões se rea.liza não por-

que o paciente precisa, mas porque o hospital precisa. Este e um dos motivos pe­los quais a atitude invali­dante encontra tanta resso­nância nestes estabelecimen­tos assistenciais. Certa vez, cheguei à conclusão que 70% de meus pacientes pre­\'Ídenciários estavam hospi­talizados desnecessariamen­te. E que entre os outros, muitos não teriam chegado àquele estado se contásse­mos com um atendimento ambulatorial adequado. Alguns hospitais públicos constituem uma aparente ex­ceção, uma vez que tudo fazem para <dar alta:. a seus pacientes. Mas a ex­ceção é realmenie aparen­te, pois, mais do que em outros lugares, ali se evi­dencia o esclerosamento da instituição. c.Dar alta-. sig­nifica reduzir o ônus, aca­lentar a acomodação, ex­pulsar o indesejável. O ideal destes hospitais é funcionar com o mínimo de pacientes capaz de garantir a sua existência coma hospitais. Se a lguma reformulação é proposta, como, por exem­plo, a ênfase no cuidado ambulatorial, as resistências se manifestam com toda a sua intensidade. ' A esta altura, toma-se opor­tuna a indagação: não seria a própria doença mental uma ins tituição, ou uma in­venção social? Isto pode pa­recer um absurdo, principal­mente quando dito a psi­quiatras. Mas esta impres­são inicial não nos deve impedir de considerar cui­dadosamente a questão. Iniciemos com SzASZ: <~ doença mental, é óbvio, não é literalmente uma <subs­tância,. - ou um objeto físico - e por esta razão ela pode ccxistir> somente do mesmo modo que ou­tros conceitos teóricos exis­tem ... " Em outras pala-

vras, diríamos que aplicar o termo doença ao que se observa ao nlvcl da mente é admissivel apenas com~ uma metáfora. E o que se tem feito é utilizar uma metáfora no seu sentida líteral. Do ponto de vista teórico, o conceito de doença men­tal representa uma reminis­cência do esquema dualista cartesiano, introduzido no campo da psiquiatria. Do ponto de vista prático, acarreta várias conseqüên­cias, como a de induzir à adoção do modelo médico na abordagem dos aspectos psíquicos. A seqüência me­todológica de exame, diag­nóstico, prognóstico, trata­mento e cura, bem como o critério de objetividade e o procedimento corretivo, são apropriados apenas para os aspectos somáticos. Parece­nos estranho a psiquiatria querer apegar-se a um mo­delo de cujos limites a pró­pria medicina está procu­rando libertar-se. Em nosso meio, por exemplo, perce­bemos esta procura, expres­sa num princípio que ouvi­mos d.o cardiologista ÜRJN· BAUM: <ver o corpo no homem, e não o homem no corpo:.. Ao extrapolar o modelo mé­dico para o campo do psi· quismo, a psiquiatria se converte numa pseudomedi:­cina, que opera visando re­tificar pessoas. Propõe-se a c:retitar:. a depressão do deprimido, a ansiedade do ansioso, a insônia do inso­ne, o delírio do delirante, os desvios dos anti-sociais, e assim por diante. Trabalha visando uma ausência, que subentende uma presença, a do igualitarismo conformis­ta e to talitário. Caricatu­rando, compraríamos esta tarefa à de uma indústria que usasse como n•aléria­prima os doentes para, em

. .. 3H

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série, tentar produzir indi­víduos nonnais. Nossos hos­pitais convertem-se, assim, num leito de Procusto pa­ra aqueles que neles in­gressam.

Estamos relatando sob vá­rios ângulos o fato de uma pessoa ser hospitalizada a partir da vivência inautên­tica de outras pessoas. O conceito de doença mental, nestas circunstâncias, seria uma construção útil para satisfazer aos anseios ló gi­cos de uma civilização ra­cionalista. Dizer que uma pessoa é doente mental sig­nifica dizer que ela tem al­guma coisa. Significa cir­cunscrever o problema a esta pessoa, mascarando as suas relações interpessoais, e, portanto, a envolvência de outros indivíduos na questão. Combater o mito da doença mental não equivale, como querem alguns, a negar a importância dos fatores or­gânicos. O que se procura é situar esta influência, com­preendendo que, por maio-­res que sejam os progres­sos neste campo, serão ne­ceriamente insuiicientes para esclarecer o fenômeno em toda a sua complexidade. O fato de um epiléptico ter uma lesão cerebral não ex­clui o seu relacionamento com os outros; e é exa­tamente nesta convivência que a sua problemática é tecida.

Não se trata, tampouco, de negar a existência de con­flitos graves que demandam cuidados específicos. O que se pretende é justamente um exame mais amplo dos con­flitos, a partir da crítica de um procedimento que tem contribuído para distorcê-los e agravá-los. Nossa afirmação inicial de que o hospital psiquiátrico mineiro está a serviço de

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necessidades alienantes da comunidade, encontra fun­damento ainda no descaso ou mesmo na oposição que ele tem exercido ao desen­volvimento da psiquiatria co­munitária. '· • No Brasil, no período de 1960 a 1965, as neuroses passaram do oita­vo para o terceiro lugar de nossa nosologia hospitalar. • Podemos garantir que em Minas Gerais houve mudan­ça semelhante. Entretanto, neste período, houve o ad­vento dos pslcofármacos, e entre nós, um melhor co­nhecimento das técnicas psi­coterápicas. Não seria este descompasso um indício de que o nosso hospital, além de efetuar a segregação; ainda é fator agravante?

O gigantismo hospitalar cen­trou-se em si próprio, e tudo o mais torno11-se apên­dice. Os ambulatórios são comprimidos e relegados, e nem esforços reiterados con­seguem retirá-los desta con­dição.

Na realidade, não existe, ou quase não existe alternativa. O psiquiatra, ao receber um paciente, vê-se de imediato na contingência de interná­lo, pois o contrário equiva­leria a não atendê-lo. Ou então a atendê-lo às pres­sas, numa relação rápida, superficial, pouco gratifican­te e pouco personalizante.

A hospitalização surge co­mo uma salda viável, com a vantagem de proporcio­nar a ilusão de um cuidado mais intensivo. Mas ao ser emitida a guia, rompe-se o frágil vínculo, pois é um sistema de rodízio que de­signará o hospital. Por que motivo, trabalhando nesta estrutura, haveremos de re­duzir toda a problemática a alguém catalogado como enfermo?

B) Os órgãos Previdencidrios

Um Ministro de Estado, re­ferindo-se a um de nossos órgãos previdenciários, com­parou-o a um dinossauro, numa alusão do seu porte e ao seu arcaísmo. Os gi­gantes estão se mostrando impotentes diante dos pro­blemas psiquiátricos. Tem sido atribuída a eles a res­ponsabilidade pela atual si·

·tuação da psiquiatria; ao mesmo tempo, atribui-se à psiquiatria a responsabilida­de pela gravidade crescente da situação dos institutos. Este jogo, como era de se esperar, em nada muda o rumo dos acontecimentos. Há, assim, uma interessante simbiose, através da qual os institutos e os hospi­tais psiquiátricos se iden­tificam ao assinarem os con­tratos e se diferenciam ao perceberem as falhas. Considerando-os separada­mente, observamos que, por serem a parte contratante, os órgãos previdenciários demonstram maior inquietu­de face ao panorama assis­tencial vigente, talvez mo­tivados pelo impacto do au­mento vertiginoso das des­pesas e pelas pressões exer­cidas por alguns beneficiá­rios e psiquiatras. Contudo, as reformulações até ago­ra introduzidas têm-se resu­mido a uma burocratização enervante e inútil, baseadas em análises simplistas e contraditórias. Exemplifican­do: ao mesmo tempo em que os dirigentes reclamam do excesso de internações em nossos hospitais, procu­rando impedi-las com um ritual que tanto tem de com­plicado como de ineficaz, eles remuneram satisfatoria­mente o cuidado hospitalar e irrisoriamente o atendi· mento extramural. Por outro lado, as tentati-

vas de reestruturação ong•­nárias de algum hospital ou de algum grupo se perdem quando defrontadas com as normas inarredãveis das vo­lumosas instituições. • Numa oportunidade, fizemos algumas sugestões a um su­pervisor de um instituto, que nos respondeu: c:eu con­cordo com os pontos de vista de vocês, mas não pos­so atendê-los; eu aqui sou apenas um funcionário de uma instituição>. Esta im­pessoalização que torna o individuo c:uma peça da en­grenagem>, se por um lado é tolhedora, por outro faz com que não se sinta res­ponsável pelo que ocorre. O supervisor nos dirá que ape­nas obedece a um chefe, que obedece a outro chefe, que obedece a um chefão. Se nos aventurarmos a che­gar ao chefão, receberemos uma r e s p o s t a prudente: <sinto muito, mas apesar do meu cargo (ou devido a ele), não posso deferi-los; tenho que respeitar normas já estabelecidas>. Os dinos­sauros fixaram-se no tem­po e uma das conseqüên­cias de sua alienação é a hipertrofia do hospital psi­quiátrico.

V. Os Padentea

No paciente não está a úni­ca, nem sequer a principal razão de sua internação, embora haja uma tendência a atribuir o fato à sua do­ença mental. Abstraí-lo de seu mundo e estudá-lo como indivíduo isolado é cometer aprioristicamente uma cisá(). E' necessário incluir, pelo menos, os familiares e os integrantes do corpo assis· tencíal para tornar a equa­ção compreensível. O que se tem feito, porém, visa dis­criminá-lo e reduzi-lo a um me.smo objeto de tratamen-

to. Quase todas as possibi­lidades de efetivar sua con­dição de sujeito estão blo­queadas. Ele não escolhe seu médico. Não escol!te o tipo de atendimento. Ele não remunera (na maioria dos institutos, o pagamento do paciente independe do tra­tamento). Não há, com o terapeuta, um relacionamen­to íntimo e duradouro. Ele não se sente responsável pelo êxito. Acabamos por concluir que, ao seu mundo dividido, se justapõe o mun­do dividido do psiquiatra. <Não é o psiquiatra ou a sociedade que criam a lou­cura, mas eles são respon­sáveis pela maneira com que ela se cristaliza nos asi­los:.. •• O encistamento foi a resposta que temos en­contrado para aqueles que nos trazem seus conflitos. Este fenômeno, visto do ângulo do paciente, mani­festa-se de duas maneiras diferentes. A primeira é aquela na qual o paciente força a sua in­ternação. Ocorre com gran­de freqüência nos organis­mos previdenciários. Verifi­ca-se em pessoas que de­monstram um indísfarçável desejo de não mudar o es­tado em que se encontram. Aparentemente, vêm à pro­cura de tratamento, mas ce­do se percebe que sua in­tenção é cristalizar os seus conflitos, ou seja, o que querem é precisamente o rótulo de doente mental (aliás, querem o que nos­sos hospitais lhe podem dar). Como poderíamos tor­nar inteligível tal comporta­mento? Aos motivos incons­cientes, que Freud, identifi­cou com o nome de resis­tência ", associam-se outros, que no âmbito deste traba­lho nos cabe ventilar. A identidade de inválido, em nossa sociedade, muitas ve­zes é algo.valioso. A grande

ma10na dos segurados pre­videnciários percebe o sa­lário minimo, ou pouco mais do que isto. Para consegui­lo, deve cumprir tarefas ár­duas, além de arcar com o ônus de uma família geral­mente numerosa. Quando uma pessoa nestas condi­ções se vê perturbada tam­bém por conflitos de outra natureza, a internação se torna um chamariz irrecusá­vel. <Adoecer> significa de­sincumbir-se das obrigações profissionais e familiares. Reduzir «uma boca:. em ca­sa. Afastar o fantasma do desemprego. Candidatar-se a uma aposentadoria. Arranjar alguns biscates, que soma­dos à pensão, perfazem um ganho muito maior. A sim­biose paciente-hospital ad­quire, deste modo, caracte­rísticas de modelo insupe­rável. E' a expressão de uma civilização que cada vez mais exige dos que tra­balham e que cada vez mais paternaliza a doença. A s e g u n d a circunstância através da qual a loucura se cristaliza em nossas ins­tituições ocorre quando o paciente é forçado a se in­ternar. Predomina nos hos­pitais públicos, onde a ad· missão é atribuida à extra­vagância, à fuga da reali­dade ou à conduta anti-so-­cial das pessoas indicadas. Quando nos aproximamos delas, verificamos que ge­ralmente vivem num ambi­ente humano opressivo, em­bora a opressão possa se processar num clima de su­tileza. Referimo-nos a esta dominação num duplo sen­tido: a pessoa é dominada pelos outros e por si pró­pria (ela escolhe a situação, ou não lhe foi possível ou­tra alternativa). Sua crise pode ser entendida como uma tentativa deseperada de reestruturação de sua inte­rioridaue e de seu sistema

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~.

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de relações. • Quando um paciente nos diz que seu pensamento está sendo rou­bado ou adivinhado, ou quando experimenta a vi­vência das vozes dialogan­tes, perguntamo-nos sobre a conveniência de investigar se isto não é um reflexo da tondição de quem ainda não c! existencialmente autônomo, ou de quem vive uma crise de libertação de pessoas reais ou eidéticas. O psi­quiatra, nesta conjuntura, é aquele que vai ccurar» o paciente, ou seja, fazê-lo retornar ao estágio ante­rior. Se não o consegue, se a rebelião persiste, ou se ela resiste malogradamente, então «O doen-te é crônico», então a internação é a sua sentença e o hospital o seu cárcere. Alguns querem invalidar es­tas hipóteses baseando-se na cetiologia orgânica das doenças mentaiS>. Seria re­almente ingênuo não levar em conta este aspecto do homem. Sobre isto já fize­mo~ comentários. Compete perguntar se a excessiva ên­fase nos fatores somáticos não constítui uma recusa de cada um de nós em reco­nhecer a responsabllldade nossa e da comunidade nes­tes problemas. Num hospital psiquiátrico mineiro atendi, certa oca­sião, uma mulher de 78 anos, viúva; entre outras manifestações, percebi uma amnésia anterógrada, indi­cando a presença de um processo de demenciação. A paciente referia-se às fi­lhas, residentes em Belo Horizonte, com veemente agressividade. Dizia-se ri­quíssima, dona de muitas terras e de muito dinheiro, ao mesmo tempo em que denunciava suas filhas co­mo ingratas e acusava-as por estarem querendo matá­la. Para ela, eu e as ou-

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tras pessoas do hospital fa­zíamos parte do mesmo complô. Na primeira entre­vista que mantive com uma de suas filhas, colhi as suas impressões. Sua mãe sem­pre foi muito nervosa. De­pois que ficou viúva (há 12 anos), passou a morar na casa dos filhos, perma­necendo um período em ca­da uma. Seu nervosismo au­mentava aos poucos, en­quanto os filhos relutavam cada vez mais em recebê-la. Nos últimos anos mostra­va-se inteiramente pertur­bada, e de nada valeram os trata.mentos realizados nos hospitais psiquiátricos. Pediu-me, encarecidamente, que a transfer isse para o Hospital Colônia de Bar­bacena.

VI. Considerações Finais

E' uma opinião bastante abalizada, a de que somen­te quem vive os problemas da assistência psiquiátrica pode avaliar as dificulda­des que a prática nos apre­senta. Tais problemas coin­cidem, no fundamental, com os mais sérios da própria condição humana. O que mais nos angustia, porém, não é isto. E' a impressão de que nossa psiquiatria está contribuindo para am­pliá-los. E' a constatação de que está padecendo das mes­mas deformações, num pro­cesso que assume gravida­de crescente. Nossa crítica emerge, assim, dentro dela e contra ela. Quando nos propusemos a escrever este trabalho, não tivemos a intenção de assu­mir a atitude de um c:es­pectador passivo:., que as­siste descomprometidamente os fenômenos analisados. Pelo contrário, procuramos vivenciar as condições de sujeito e de objeto da anã-

Jise efetuada, o que faz de nossa critica uma a utocrlti­ca. O psiquiatra é sempre uma presença, uma parte da realidade de seu paciente, e queira ou não queira, ele sempre se envolve na ques­tão. Seria necessário que es­tivesse num outro mundo, que fosse puramente uma coisa, um deus ou um de­mônio, para que conseguis­se se isentar. Nesta perspectiva, a dúvida não é saber se deveremos ou não, mas como nos envol­veremos com as pessoas. Trazemos dentro de nós as mesmas contradições das pessoas aqui mencionadas, e talvez seja exatamente es­te o motivo que nos impe­liu a tentar descortiná-las. Ao falar dos pacientes, não estamos querendo eximi-los ou purificá-los de seus con­flitos e de sua agressivida­de. O que estamos averi­guando é a nossa responsa­bilidade no que acontece. E o que estamos denuncian­do é o fato de estarem sen­do usados como o reposi­tório e o desaguadouro dos conflitos e da agressividade de outras pessoas.

Francisco Paes Barreto

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INFORM AÇÃO

leitura de Freud

Um texto se marca, recebe marcas. Assume diferenças, distingue-se dos outros. O

texto que vai abaixo já re­cebeu duas marcas. Uma primeira quando resultou de um trabalho em grupo em torno de um livro sobre pais e filhos. Este texto foi redigido à guisa de intro­dução. Introduzir o quê? In­troduzir a possibilidade de não se escrever enquanto se escreve (um livro). Introdu­zir o questionamento sobre um livro enquanto agente te­rapéutlco. Assim como ope­rar a desmontagem da no­ç!o de cura dentro do con­sultório de psicanálise {Gar­cia, 1971), a!tsim como in­dagar se uma escola para excepcionais pode ter outro objetivo, outra orientação que não ser c:agente tera­pêutico:.. O livro, o consul­tório de Psicanálise, a esco­la para excepcionais ao la­do de outras intervenções terapêuticas (psicopedagógi­cas) são aqui inquiridos quanto ao projeto que os anima, quanto aos funda­mentos teóricos/práticos que as determinam. A segunda marca que rece­beu este texto foi, justa­mente, a leitura em comum numa reunião da Escola de reeducação «Equipo em Belo Horizonte. Outras marcas virão. Agora esta, a da letra de forma. Esta é dura, enrijece. Tal­vez seja necessário des­montar o texto ao final da leitura. Cabe aos leitores fazê-lo.

Permitam-me, p o r t an to, aqueles que são os teste­munhos deste texto, que eu o publique. Creio tratar-se de uma reflexão sobre as práticas psicológicas onde se inclui, malgrado Freud, a prática psicanalítica. A Psi­cologia tem-se .prestado, f re­qüentemente, a esta função pedagógica, a esta função de agente terapêutico, co­mo por exemplo, na recen­te onda de Ps.icologismo,

que considero infeliz: para o Brasil e para a Psicolo­gia. Esta onda influiu nas relações pais-fi lhos, fazendo acreditar que os pais deve­riam tratar bem os filhos e, de certa maneira, isso consistia numa contestação das relações familiares tra­dicionais no Brasil. Creio que esta divulgação da Psi­cologia em nada ajudou o relacionamento entre pais e filhos porque, primeiramente a Psicologia tem má conS.: ciência e divulga apenas os conhecimentos que conside­ra úteis; em segundo lugar, porque os pais receberam esta ccontribuiçáo:. no sen­tido de que ela aliviaria um certo sentimento de culpa. Ora, este sentimento de cul­pa, ao que tudo indica, não foi abordado ao nivel em que ele se situa. Tem-se falado na cincidên­cia da realidade social no trabalho analltico,. (veja-se o IX Congresso Latino-Ame­ricano de Psicanálise, Cara­cas, julho de 1972). Acre­dito ser um tema de tra­balho extremamente interes­sante. Quanto a mim, pre­tendo recuar o foco da questão, perguntando-me so­bre a influência do «agente terapêutico:. (na medida em que ele se considera agente terapêutico) sobre o traba· lho analítico. Chego a pen­sar que os cativistas:. eram o alvo quando questionam os psicanalistas sob pretex­to que estes têm velada­mente ou não suas prefe· rências politicas, e que for­çosamente influenciam seus pacientes no sentido de uma determinada ideologia. A contestação deveria ser pos­ta nos seguintes termos: só o fato de algu~m pretender um papel de agente tera­pêutico já o situa frente ao outro numa relação de «re­cuperação•. No entanto, o trabalho analítico posSUi sua

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viabilidade, sua especificida­de. Qual seria então a ori­entação, o projeto que ani­maria psicanalistas, pedago­gos, psicólogos, terapeutas na sua labuta diária? O texto que se segue é uma tentativa de resposta a esta pergunta.

Relaçio Pais e Filhos

Mesmo estando os autores advertidos para os inconve­nientes desta função peda­gógica, didática, de que po­derá ser investido o livro, creio que ele poderá ser recebido e lido como um manual de instruções, um receituário: <Como educar seus filhos:.. Terlamos neste caso mais um exemplar des­ta coleção que se chama, de uma maneira geral, <Co­mo influenciar os outros e ser feliz• , <Como escolher sua noiva:., <Relações Hu­manas na corrida espaciab . . . Por conseguinte, gosta­ria de colocar o problema da função pedagógica, e o que significa alguém assu­mir a função pedagógica. Tenho para mim que uma das primeiras conclusões a este respeito é que a função pedagógica resulta em con­trole da informação. Se me instituo na qualidade de ocupante de um lugar pri­vilegiado em relação a ou­tro, a quem devo ensinar como ele deve educar os filhos, de certa maneira, no passo seguinte, vou escolher as informações no sentido de que o meu dlsclpulo pro­grida neste ou naquele sen­tido - em outras palavras, de que ele não se perca. Pois é justamente este con­trole da informação que gostaria de desmontar des-mistificar. ' Evidentemente aqui se ·co­loca o problema de saber que linguagem vamos usar.

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Se for uma linguagem mui­to rebuscada então ela não será entendida por esse pú­blico a que se destina o livro. Acredito, por outro lado, que esta abordagem a que me proponho será dificilmente entendida justa­mente porque ela é inusita­da, não porque o vocabu­lário seja necessariamente sofisticado. Creio poder ad­mitir que a razão desta di­ficuldade está na existência de uma «peneira•, de uma verdadeira grade ideológica que, no mundo ocidental, não deixa passar esse tipo de reflexão. Por conseguin­te, não é só uma dificulda­de de vocabulário. Por hi­pótese, qualquer outro tipo de informação, que tenha em vista a conciliação, a harmonia (mesmo que ilu­sória), é bem transmitida pelos canais de comunica­ção e, llnalmente, recebida pelo público. Além disso, gostaria de lem­brar um prazer narclsico entre o autor e os seus lei­tores. Estou certo, no en­tanto, de que os autores gostariam que ele fosse mais do que um simples incenti­vo a este prazer narcisico. Melhor seria que o autor ficasse no anonimato, ou que deixasse se absorver pelo seu projeto, pelo seu texto. E que o texto assu­misse autonomia diante do autor, e que questionasse o autor. Autor como ator, co­mo genitor. Em se tratando de psicanalistas, diria que o ato analítico é feito de si lêncio. <Le silence, en somme, rend possible la pa­role~. como se diz num tex­to a que recorro para es­tes apontamentos, texto de Xavier Audouard. A pergunta: o que devo fazer com meu filho? -pergunta a que estão ha­bituados terapeutas analis­tas, psicólogos qu~ traba-·

Iham em orientação, peda­gogos - a esta pergunta só resta uma resposta: «a senhora poderia fazer o posslvel para escutar a ex~ pressão de que seu fil!to lança mão para falar sobré sua ansiedade, suas fanta. sias, seus fantasmas. Se a situação vier a se tornar muito difícil, então se.ria me~ lhor que a senhora não le­vasse adiante a experiência, em seu próprio benefício. Mas o que a senhora tem a fazer seria escutar o fi­lho, mesmo que ele utilizas­se, como meio de expressão, a violt~nciu. O presente li­vro pode, portanto, ter um . objetivo de escuta educati­va, e não assumir a men­tira que se esconde por trás da palavra educação. Será que os pais são bastante . sólidos para se colocarem : em questão a partir do pro- · blema que lhes é revelado·. pelas crianças, pelos filhos? Seria necessário questionar a própria educação que re­cebemos, e também pôr em dúvida o equilíbrio do ca­sal, equillbrio conseguido a duras penas, e do qual os interessados não gostariam de ver privados. Mas quan­do os pais chegam a pôr em q uestão a própria edu­cação que receberam, por­tanto, a perceber o motivo de suas inquietações, tem início uma crítica radical e construtiva das próprias re­sistências. T rabalhando numa escola para excepcionais, chega­mos à conclusão de que há uma atração entre atraso ou retardo mental e alienação· ou doença mental. Para en­tendermos essa .atração, va­mos de inicio lembrar que o autismo, último recurso de que lança mão a crian· ça, pode ser definido e se constitui numa forma parti­cular de relação com o ou­tro e consigo mesmo. O ou-

tro, quero dizer, não uma pessoa única, determinada, rnas qualquer palavra, ex­pressão ou reação (da mãe, do médico, da professora, dos familiares ... ) que a f~ 11al de contas não são se­não manifestações do dese­jo, dos fantasmas, e das defesas deste mesmo outro frente à criança. Pois bem, a criança se define ou dei­xa de se definir (e cai na ::tienação, neste último ca­so) frente a este outro; é frente a este outro que ela, criança, vai estruturar s ua linguagem, seu mundo sim­hóiico. Se não tiver acesso n esse mundo simbólico, não poderá fundamentar sua existência enquanto sujei to - c:eu, Independentemente !lo ventre de minha mãe:.. Estará condenada a funcio­nar tal como «desejam-. aqueles que a cercam -eis uma primeira forma de alienação, radical, esta, on­de a criança nega sua pró­pria existência. Uma segun­da forma de alienação é aquela que consiste em se fixar, sem existência pró­pria, no papel que lhe foi atribuído pelo outro, papel que é o resultado das ne­cessidades, dos desejos, das defesa·s do outro (ansieda­de da mãe, fi lhos indeseja­dos por este ou por aquele motivo, filhos que compen­sam os pais dessa ou da­quela fru stração, pais que­querem se realizar através dos filhos ... ) . Para exem­plificar, encontramos nessa categoria crianças que são eternamente bebês, ou que tudo fazem para parecer retardados, ou aqueles que ~e mostram extremamente agressivos para correspon­der ao papel que lhes foi atribufdo, inconscientemente, pela mãe, ou aquele que se revolta sem nada poder fa­zer além disso. Encontra­mos casos onde uma melho-

ra da criança redunda em descompensação do pai ou da mãe, em vista do lugar que passa a ocupar a cri­ança, lugar não previsto pe­lo pai ou pela mãe em seu sistema de fantasias, de de­sejos ou de defesas. ' Pa­ra finalizar este parágrafo, diríamos que, se alguma coisa na criança aparece co­mo indesejável, mesmo in­conscientemente, para o pai ou para a mãe, a cri­ança não consegue encon­trar o seu lugar no mundo simbólico, única forma de escapar à falácia que nos oferece a imaginação, ou mundo imaginário. Faz-se aqui alusão ao estágio onde a criança, diante do espelho, sabe distinguir seu próprio corpo da imagem especular, através de um reconheci­mento de seu próprio limite, ou então acredita que não há limites entre seu pró­prio corpo e a imagem es­pecular, e permanece no mundo imaginário, sem ter acesso ao mundo simbólico. Se ela recusa o mundo sim­bólico, recusa igualmente a linguagem, as formas, os conjuntos e as relações, e todas as operações de que somos capazes a partir dos conjuntos e das relações. O estupor ou o autismo, manei­ra de fazer abstração, mas­caram a angústia da inexis­tência, ou da destruição de si mesmo (Faure, 1967). A rigor, respondendo à per­gunta se vale a pena pu­blicar um livro, sabendo-se que estes comentários vão ser deturpados, mais detur­pados do que já foram, gostaria de dizer que esta operação de desmonte é uma operação de caráter analítico, e essa introdução contribuiria par~ uma aná­lise institucional ao nível macrossociológico, ao abor­dar certos temas que têm sido o lugat' . onde a ideolo-

gia se estrutura de uma ma­neira mais enrijecida En­tão, talvez, essa introdução, apoiada nessa abordagem analítica, viesse a contribuir, de uma maneira bem redu­zida, é verdade, para uma análise institucional ao ní­vel macrossociológico. E' uma idéia que me surge, e assim estaria justificada a publicação do livro. Sobre a noção de cura, que é um momento crucial des­ta reflexão, vou me valer de alguns comentãrios en­contrados no livro de Xa-; vier Audouard. Este livro refere-se a uma experiência numa escola na França que se chama Samuels, uma es­cola para excepcionais. Tra­ta-se de saber se a escola deveria tratar aquelas cri­anças, reeducá-las. E foi um dos trabalhos mais interes­santes q ue já vi a este res­peito, onde a noção de cura, de reeducação, foi questio­nada, colocada em todos os seus aspectos. Os pais das crianças foram chamados freqUentemente a assistir a reuniões onde este problema era ventilado. Tendo traba­lhado com escola de excep­cionais, noto que as escolas de um modo geral, entre nós, estão dispostas a acei­tar muitas inovações, a res­peito de sexualidade infan­til, a respeito de afetivida­de, a respeito de relações pais-filhos, mas uma coisa elas não aceitam: que te~ nham outro projeto que não o projeto educativo. E che• go a pensar que esta pro­posta de que as escolas examinem a possibilidade de serem animadas, inspiradas, por um projeto que não o projeto reeducativo produz a mesma aversão que a peque­na burguesia e classe média alta de Viena demonstraram com relação às idéias de Freud, no que diz respeito à sexualidade infantil.

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A experiência relatada por Xavier Audouard diz como se levou adiante essa pos­sibilidade de que uma es­cola para excepcionais não tivesse necessariamente uma função reeducativa. Por con­seguinte, é o próprio pro­jeto pedagógico que é pos­to em questão nessa oca­sião. Vale a pena pergun­tar: se aquelas cria.nças não estão sendo reeducadas, qne estão fazendo naquela es­cola os psicólogos, profes­sores, pedagogos, práxi-te­rapeutas, assistentes sociais a serviço da escola. Reser­vo-me outra ocasião para responder a esta pergunta, mas tenho para mim que a eJCperiência citada tem al­guma semelhança com esta que nos anima no momento a escrever esta introdução. Em Samuels, tudo o que diz respeito à reeducação surge, mas abordado de uma ma­neira diferente. Por exem­plo, a rejeição dos pais para com os filhos conside­rados deficitários, u cepcio­nais, sua ansiedade e ex­pectativa para que os filhos voltem a eshidar numa es­cola comum, para que dei­xem a escola de eJCcepcio­nais, tudo isso é retomado, reexaminado em outra pers­pectiva. A repeito da cura de um modo geral, poderia­mos dizer então que qual­quer intervenção pedagógi­ca, psicoterápica, tem no fundo a intenção de curar, que quer dizer readaptar, ajusta r, consertar. Se a in­tervenção psicoterápica ana­lítica, pedagógica nã~ tem a intenção de curar, então ela pode se ddinir em ou­tros termos, e creio que em Psicanálise já se conseguiu definir um projeto que ins­pira o trabalho analítico, sem que este esteja neces­sariamente inspirado pela cura. Sei que as escolas de um modo geral, e especial-

mente as escolas para ex­cepcionais, ainda não conse­guiram definir um projeto semelhante, onde a noção de reeducação passasse por esta critica, e que não se assemelhasse, não se identi­ficasse unicamente com as­pectos corretivos. Por con­seguinte, se a noção de cura for desmistificada, posta de lado, por estar impregnada deste projeto pedagógico, desta intenção didática, en­tão a experiência analítica poderia se alongar mui to mais, e abordar este aspec­to a que se referiu Félix Guattari, um dos aspectos que esta introdução poderá pôr em relevo: é que o sistema não admite vazios. Para tudo ele tem uma ex­plicação. No caso de minha atividade na Universidade, sou instituído como a lguém que tem respostas para to­das as coisas. Assim sendo, o projeto pedagógico que me anima reprime aquilo que seria o silêncio, o vazio. O meu interlocutor, eventualmente, estaria a exi­gir de mim que eu tenha respostas, eis que ele tam­bém se encarrega de repri­mir a possibilidade do va­zio, a possibilidade do sem resposta. Portanto, o fato de não dar resposta signi­fi ca marcar o tempo do si­lêncio : e o silêncio é onde se revela aquele reprimido) que o sistema aparentemen­te preencheu. Só o fato de estarmos es­tudando na Universidade um determinado assunto, de um determinado ponto de vista - uma teoria ou um pro­blema nas Ciências Huma­nas - apesar de o estar­mos estudando apenas na Universidade e ainda numa fase precoce com relação ao andamento das pesquisas, pois bem, o que se tem visto é que essas idéias, essas pesquisas já têm in- ·

fluência no público, e é o caso das teorias comporta­mentistas, atualmente em vo­ga entre n<'•s. Vale lembrar que não há uma suposta fase neutra da Ci~ncia; des­de que ela começa a ser trabalhada na Universidade jâ tem inicio uma determi­nada influência no público. E' claro que há canais sutis de 1.:omunicação, aos quais não damos bastante atenção, e que me seria impossivel identificar no momento, mas creio que a grosso modo a V nivcrsidade vi\· c a r<!­boque da ideologia vigente. Sendo assim, se certos te­mas são trazidos à Uni­versidade, e têm sucesso, e recebem verbas e créditos, em grande parte é de se pensar que estes temas tam­bém estão emergindo na ideologia do meio-ambiente for a da Universidade. Não se trata, portanto, de considerar o público leigo como sendo aquele que vai deturpar os resultados das pesquisas e os problemas teóricos elaborados na Uni­versidade. Creio que seria uma desvantagem, para a reflexão a que me propo­nho, admitir que na Univer­sidade encontramos a posi­tividade, e que o público em geral é o momento em que a deturpação se intro. duz na reflexão cientlfica, ou com relação aos acha­dos teóricos produzidos por esta reflexão. Se a Univer­sidade não é o lugar pri­vilegiado onde se encontra a positividade, então não tenho que me preocupar com as deturpações que o . público eventualmente intró­duz, porque teria que dizer que também na ·universida­de encontramos deturpações, encontramos a ideologia e.n­volvendo a abordagem dita científica de alguns proble­mas. Finalmente quero le~ brar que há perguntas prá-

ticas, há questões práticas que são levantadas pelos pais, as quais aqui nesta introdução não terão res­postas, mas que um livro se propõe, senão elucidar completamente, pelo menos abordá-las. Por exemplo: até onde de­ve ir a liberdade concedida aos filhos; até que ponto pode o pai intervir de uma maneira enérgica ; em se tratando de uma escola (du­rante a introdução me re­feri a uma escola para ex­cepcionais) , em se tratando de uma escola especializa­da, onde as relações entre as crianças e os professores são postas em termos bas­tante inusitados, inovado­res, com relação às outras instítulções conhecidas entre nós, os pais podem se per­guntar o que acontecerá uma vez que as crianças deixarem esta escola, o que acontecerá na vida prática, já que elas não encontra­rão o mesmo tipo de rela­cionamento que encontram nas escolas modernas. Uma outra pergunta diz respeito ao insucesso escolar. Creio que cada vex mais a escola, o sucesso escolar será uma obrigação, uma escravidão para o jovem aluno. Seria necessário que pudéssemos aceitar o fracasso das cri­anças; mudarmos, tentarmos modificar esta mentalidade segundo a qual o suceSSJ) se traduz por diploma, eis que o sucesso escolar não é o único que conta. Há também o futuro adulto. E o s ucesso do futuro adulto não está em correlação per­feita com o sucesso esco­lar. Seria necessário ultra­passar este receio do fra­casso escolar; mas é bem verdade que o problema de encaixar o jovem no ensino Clássico se coloca de ma-· neira aguda quando o in­sucesso escolar marginaliza

a criança. Que papel terá a criança,. nestes próximos anos, na nossa sociedade? Gérard Mendel escreve um livro, que até certo ponto surpreende os mais liberais, pretendendo que se d~ o direito de voto às crianças de 15 anos. E' um exemplo. Talvez valha a pena refle­tir sobre ele. Mcndel fala sobre o fato de que as crianças se encon­tram na posição de coloniza­dos, frente aos adultos, que seriam os colonizadores. P ara terminar, lembraria que, por mais democráticos que sejam os pais, estes não t êm a possibilidade de transgredir a ordem que eles instituem. Só o filho t ransgride a ordem institui­da pelos pais. Por conse­g uinte, não há professores democráticos, nem tampou­co pais democráticos, eis que eu não transgrido a lei que eu próprio institui, e o progresso pessoal, o caminho que toma o homem na sua aventura, passa pela transgressão. Célio Garcia

• A eue aspecto Já llumos alu­slo quando falamos para uma mãe, dlttndo que nao levasse adiante a e>rperlhcla de ouvir o filho quando este falava da pr<lprla aD$ltdade, pois que a experiencia ottrapa$5ava ot li­mites aaportávcia para a pr6prla mlc.

BIBUOGRAFIA

AUllOUAAD, X., L •tdl• ptycltdll tJU­Iique dons urrt mattoll d'tnfattla . Ed. l'l!.pi, Paris 1970. FAURE, L., Dt r orrtüatlott c} rallénatlon. In: Rtelterches, se­tembro de 1967. 0UA1TAJII, F ., La traniVttlallti. In: Psychot~raple lnatltutlooelle, ano 1, n• L OAJICJA, C., Objetivai da prlco­tuapla. In : Revista de Psico­logia, vol. I, n• I, IG71.

CINEMA

Marlon Brando e o Oscar A recusa do ator Marlon Brando em relação ao úl-

limo Oscar - prêmio ins­tituído por Hollywood -pelo seu desempenho em O poderosu Chefão continua atingindo as mais diversas áreas dnematográficas. E, mais do que a recusa pro­priamente dita, o discurso que deveria ter sido lido na noi te da ent rega do troféu pela índia Sacheen Littlefea­ther vem comprovar a cons­ciência política do homem Marlon Brando diante das injust iças impostas pela so­ciedade americana. Depois úe um início bri­lhante (entre :;eus primeiros filmes, Sindicato de ladrões, 1954, de Elia Kazan) , um longo período de declínio artístico (tendo dirigido A face oculta, 1961), voltando a se impor como ator e homem de idéias a parti r de Queimada, 1970, de Gillo P ontecorvo (um dos gran­des filmes políticos dos nossos dlas, ao lado de O caso Mattei, Sacco & Van­zetli etc.). Quanto ao Oscar, t rata-se de uma estatueta bastante desmoralizada: desde 1m - quando a premiação foi feita pela primeira vez - a sua distribuição tem-se reve­lado politiquei.ra, medíocre, ridlcula. Com raras exce­ções, os premiados (filmes, diretores, atores, técnicos) representam interesses co­merciais, extracinematográ­ficos. Já o problema do lndio -abordado diretamente no discurso de Marlon Brando - sempre foi encarado sob uma perspectiva falsa atra­vés das lentes hollywoodia­nas. T ido como um «ban­dido~, um cmtmtgo:. dos homens brancos, o lndio sempre era vencido no fi­nal, graças às qualidades, à honradez e à bravura des­ses mesmos homens bran­cos. Alguns assassinos -como o General Custer -

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se tornavam heróis lendá­rios movidos pelo mecanis­mo ho!lywoodesco. Alguns diretores, timidamente, pro­curaram reabilitar a figura do índio, mas quase sempre de maneira romàntica: An­thony Mann, Devi's Door­wa)', 1949; Delmer Daves, Broken Arrow, 1950; Raoul Walsh, Co/orado Territory, 1950; William A. Wellmann, Across the Wide Missouri, 1951. Nos ultimos anos no­vos filmes foram feitos, mas ainda dentro de uma visão romàntica, como O Pequeno Grande Homem, 1971, de Arthur Penn. O violento discurso de Marlon Brando - que publicamos na Inte­gra - aparece como um marco na histó ria da dis-­tr ibuição do Oscar, embo­ra não pudesse te r sido lido na ocasião devida. Ve­jamo-lo:

Durante 200 anos, dissemos aos índios que lutam por sua terra, por sua vida, por suas famílias e pelo direito de serem livres: «Deponham as armas, amigos, e perma­neceremos amigos. Só se depuserem às armas, ami­gos, poderemos falar em paz e chegar a nm acordo que os favoreça>. Quando depuseram as ar­mas, nós os assassinamos. Mentimos. Roubamos suas terras. Obrigamos, pela fo­me, a que eles assinas­sem acordos fraudulentos, que chamávamos de trata­dos e que jamais cumpri­mos. Transformamos esses índios em mendigos, num continente em que viveram desde que a vida começou. E em qualquer interpretação da história, por desvi rtua~ da que seja, não fizemos o que era certo. Não fomos honestos nem fomos juste>s no que fizemos. Para eles não somos obrigados .a in~ denizá-los, não temos de cumprir certos acordos, por-

que isso nos foi dado em razão de nosso poder de atacar os direitos de outros, de tomar suas propriedades, de tira.r suas vidas, quan~ do estão tentando defender sua terra, sua liberdade, e transformar suas virtudes em crimes e nossos vícios em virtudes. Mas existe algo fora do al­cance desta perversidade: o veredicto terrível da histó­ria. E a história, sem dú­vida, nos julgará. Mas, o que importa isso? Que es­pécie de esquizofrenia mo~ ral nos permite gritar em altos brados, para que to­do o mundo ouça, que çum­primos nossas promessas, quando cada página da his­tória e quando todos os dias e noites, cheios de se­de, de fome, de humilha­ção dos últimos 100 anos de vida do fndio norte­americano desmentem esses brados? Aparentemente, o respeito pelos princ!pios e o amor ao próximo perderam a fun­ção neste nosso pais e tudo o que fizemos, tudo o que conseguimos realizar com nossa força, foi simplemen­te aniquilar as esperanças dos palses recém-nascidos neste mundo, tanto amigos como inimigos; não somos humanos e não cumprimos nossas promessas. Talvez, neste momento, es­tejam pensando: eMas que diabo tem tudo isso a ver com a Academia de Prê­mios? Por que esta mulher está aqui, estragando nos­sa festa, invadindo nossa vida com coisas que não nos interessam e que não nos dizem respeito? Des-­perdiçando nosso tempo e t.linheiro e introduzindo-se em nossos lares». Acho que a resposta a essas perguntas não formu­ladas é que a comunidade clnemato~tráfica foi tão res-

ponsável como qualquer ou­t ra por degradar o índio e ridicularizar seu caráter, descr evendo-o como um in­dividuo selvagem, hostil e mau. E' difidl para as cri­anças crescerem neste mun­do. Quando as crianças índias assistem t elevisão, quando assistem filmes e vêem s ua raça como é apresentada nesses filmes, sua mente sofre traumatis­mos cujos efeitos nunca saberemos. Recentemente, foram dados a lguns passos hesitantes pa­ra corrigir esta situação, mas foram hesitantes de­mais e muito poucos; por­tanto, eu, como membro desta profissão, não creio que possa, corno cidadão norte-americano, acei tar um prêmio aqui, esta noite. Acho que prêmios, neste pais e nesta altura, não de­veriam ser dados ou acei­tos enquanto a situação do índio norte-americano não for drasticamente alterada. Se não somos guardas de nosso irmão, ao menos não se jamos seus carrascos. Estaria aqui esta noite, pa­ra falar-lhes pessoalmente, mas achei que talvez seria mais útil se fosse a Woun­ded Knee, para ajudar a impedir, de todas as manei­ras posslveis, a assinatura de um tratado de paz que seria desonroso enquanto os rios correrem e a erva crescer. Espero que os que ouvem não considerem minha atitu­de uma intromissão insolen­te, mas um esforço sincero para concentrar a atenção em uma questão que poderá determinar se este pais tem ou não direito de afirmar, doravante, que acredita nos direitos inalienáveis de t o­dos os povos de permane­cerem livres e independen­tes em terras que os viram nascer desde épocas cuja

memória já se perdeu no tempo. Agradeço sua atenção e sua gentileza com a srta. Lit­tlefeather. Obrigado e boa noite.

TELEVISÃO

Pedro de Lara e Cia Ltda.

t. Caracterizaçl!o

Tomamos a Pedro de Lara meramente como protótipo; por isso, o que dissermos dele não tem sentido pessoal, mas somente exemplar. Pedro de Lara assomou na T V brasilei ra dentro de um contexto muito t ípico. Ele t! um "jurado", cuja ima­gem foi construlda, e ainda o é, por uma ofensiva "mo­ralista". Seu comportamen­to gira em torno de uma monotonia extr aordínária: fi. gura séria, que nunca sorri, caricaturesca neste sentido, defensor da "famflia brasi­leira", extravasando seus ataques de modo rispido, de sorte a provocar uma con­tra-ofensiva circular, isto é, que leve a reforçar suas possibilidades de ofensiva moralizante. Em termos de performance, qualquer outra peculiariedade pessoal desa­parece face a e.ste desem­penho estereotipado. Sua condição de jurado fa­cilita a tarefa, porque o ju­rado está muito próximo da atitude mora\izante. Na T V brasileira o jurado alcançou uma ascendência marcante sobre as massas espectado­ras, tornando-o praticamente uma figura indispensável ao sucesso de algum programa. Na verdade, o problema do júri é muito . mais compli­cado que seu mero sucesso teatral. Conclama, prega, chora, admoesta, decide car-

relras e o futuro da pátria. Isto talvez fosse posslvel, supondo-se que os jurados fossem competentes. Mas, deixando isto de lado, resta para o jurado sempre a ta­refa "artística" de se des­tacar, de marcar o espetá­culo com sua presença, e, sobretudo, de construir nos espectadores uma "imagem'' bem clara e inconfundível, porque esta é a base do êxito. Pedro de Lara buscou sua imagem na ofensiva mora­lizante em prol da "família brasileira". Nunca se definiu bem o que seria esta "f a­mllia brasileira", e is to já bastaria para fundamentar a suspeita de que o referido personagem está muito mais a serviço de sua "auto-ima­gem" do que da "família brasileira". Em outras pa­lavras: a "família brasileira" desempenha mais o .papel de instrumento de reforço e consolidação da "imagem" popular do ator. Mas se tentássemos precisar o sentido desta "família bra­sileira", te.riamos como ele­mento básico não tanto uma concepção determinada e de­senvolvida de "família", mas alguns estereótipos, que não são tanto da família, como do ator : o estereótipo bá­sico seria a proposição de que a família é um nticleo em essência moralizador, en­tendendo-se por "moraliza­ção" preferencialmente o "modo de vestir''. Esta vi­são, que não chega a ter sequer um "palmo" de com­primento e um "dedo' ' de profundidade, desperta inte­resse, não por estar contex­tuada dentro de algum ideal deci frável, mas pelo seu la­do grotesco. Decerto, não se pode negar .a ninguém o di­reito de ter uma concepção determinada sobre famllía e modo de vestir, "beijo" e modo de dançar. E' di-

reito de qualquer pai e qual­quer mãe achar que a TV brasileira seja devassa. Para este argumento, não have­ria meramente a base mo­ralizadora, mas também ou­tras razões boas. Por exem­plo, pode·se ver em certos programas, que usam e abu­sam da presença de garotas em biquíni, uma certa des­virtuação do "sbow", já que as "pernas" das garotas ca­talizam maior interesse que a própria apresentação do "apresentador". Mas é aqui que se pode perguntar: por que Pedro de Lara é jurado exatamente de um desses programas? Que sentido tem proclamar a "pureza" da fa­mília brasileira ao ritmo das "chacretes"? Parece-nos mui to patente : o problema real não é a família brasilei ra, mas a "imagem" do ator. Não se pode negar que a escolha deste veiculo de imagem te­nha sido inteligente: conse­gue certo impacto, toca mui­tas fibras Intimas e é publi­citário. Mas isto é apenas um lado da medalha. En­sina a Sociologia que há funções manifestas e funções latentes. Uma pesquisa não pode se deter na mera in­quirição das funções mani­festas, pois eias podem ser efeito de funções latentes. A ofensiva moralizante em prol da família brasileira é so­mente a crosta do fenômeno; o verdadeiro móvel dele é a busca de popularidade.

~ Funç!o da «<magem»

Um dos assuntos em que mais surge o problema d_a imagem, é o contexto elei­toral : · todo candidato é tão popular quanto a imagem que consegue despertar no povo. Por imagem n~o : e entende uma caractem:açao geral e esperada de um can­didato, por exemplo, que seja competente, saiba falar,

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70 saiba planejar, ande bem vestido etc. O termo ima­gem só alcança seu sentido pleno dentro de uma carac­terização extremamente es­pecífica, que torne seu por­tador inconfundível. O fun­damento desta especificação não precisa ser uma virtude ou uma competência; pode ser também um mero traço físico ou mesmo alguma ex­terioridade. Isto é colhido sempre com muita maestria pelos caricaturistas: o bi­gode do Jânio, os óculos do Costa e Silva, o nariz do Nixon, o rosto do JK etc. Como os artistas de TV muitas vezes não se desta­cam nem por alguma virtu­de, nem por alguma com­petência, sua imagem se compõe preferencialmente de algumas exterioridades: a "animação'' do Jair Rodri­gues, o "chapéu" do Wal­dick Soriano, a "movimen­tação" do Evaldo Braga, a ''carranca" do José Fernan­des etc. A construção de uma ima­gem se faz muitas vezes es­pontaneamente. Quando o a rtista possui qualidades ex­traordinárias, sua imagem surge por· si e é capitali­zada pelo próprio sucesso popular. Outras vezes a ima­gem é mais necessária no começo da carreira, passan­do a segundo plano depois. Roberto Carlos atua hoje com uma imagem muito só­bria e espontânea, que con­trasta com a dos tempos do "calhambeque" e do "in­ferno". Pelé nlio se preo­cupa demasiadamente com uma imagem determinada. Mas há artistas muito côns­cios do papel da imagem em termos sociais: Fio, do Flamengo, conserva seus dentes saltados por questão de popularidade. A imagem tem, · assim, uma função social muito especi­fica. Toda sociedade se de-

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senvolve dentro de um sis­tema de valores e normas, com causação mútua. Os va­lores e as normas são pon­tos de referência e pontos de orientação. Seus membros precisam de idolos que os orientem e preencham o va­zio comum das frustrações diárias. O comportamento social geral não acontece ao léu: pelo contrário, pode-se verificar sempre uma con­sist~ncia regular, que é no fundo ditada pelas coisas marcantes da sociedade: os valores teóricos gerais, os !dolos da massa, além das camadas dominantes. Nestes termos, a imagem se coloca dentro do contexto da "in­fluencia" social, já que ela "ajuda" a influir na massa, por tornar a pessoa mais atraente e mais identificada. Não existe uma sociedade sem "ídolos'', que muitas ve­zes surgem à revelia de sua própria vontade; a única questão pertinente não é a existência ou não de ídolos, mas de sua melhor qua­lídade. Nestes termos, a busca de uma imagem por parte do artista é um fenômeno nor­mal, que, quando bem pla­nejado, pode significar um alto nlvel de inteligência. Esta será sempre uma ques­tão básica em qualquer pnr cesso eleitoral: os psicólo­gos e sociólogos M partido dispendem enormes energias para construir uma "ima­gem" cataliz.adora em ter· mos de influência para o respectivo candidato. A ima­gem impede que o candi­dato seja um entre muitos semelhantes. E por outra, a oposição estará sempre in; te ressada em desfazer a ima­gem do adversário. Isto se reveste de importância maior ainda, se levarmos em con­sideração o fato de que a n1assa não está capacitada .para avaliar uma persona-

lidade pelas suas virtudes íntimas e pelo seu possível grande saber; a massa ava­lia através de "estereó­tipos". Todavia, a busca de urna imagem pode-se tornar tam­bém um "estereótipo", quan­do ela se torna mais impor­tante que seu próprio con­teúdo. Então ela é um indi­cador seguro da mediocri­dade do artista ou do can­didato. Parece-nos esta a situação de Pedro de Lara e muitos outros: sua apre­sentação constante e prafi­cam~nte única se reduz à mera busca de uma "ima­gem" popular, elevando um "instrumental" de apresenta­ção i.t "meta" da própria apresentação.

3. Algumas Imagens

Existe uma jurada que jul­ga os candidatos a cantor invariavelmente pela defi­ciente acentuação das oxí­tonas. Outra jurada, que não está mais atuando, só conhecia a nota 10 para os candidatos. Um jurado pro­curava se realçar por uma atitude frenética de ataque, acompanhada por um cons­tante tirar e pôr de óculos. Há um outro que, ao falar, eleva a voz aos brados e gesticula tanto, que parece estar apitando um jogo em campo. Há uma jurada que, a par de sua atitude digna e composta, compensa tudo com roupas leves, realçando sua juventude e frescor. Mas é necessário dizer que alguns jurados sabem se qualificar pela competência, relativamente, c.omo alguns peritos em música. Dizi.a Sócrates que, quanto ma1S se sabe, mais nos conven­cemos de que nada sabe­mot~. Decididamente, Sócra­tes não é o "ídolo" da maio­ria dos artistas. E, ironica­mente, persiste a p!'ocura

do ideal da TV educativa. Este ideal, porém, está se tornando, na boca de al­guns apresentadores, mais um estereótipo reforçador de sua imagem popular. O pro­blema não está bem na ne­cessidade da TV educativa, mas na promoção pessoal do apresentador, que vê nis­to um instrumento de as­censão popular. A isto acres­ce o vezo de confundir edu­cação com moralização. Mo­ralização - a comunicação mais fútil - estaria tam­bém a serviço da imagem. A qualidade dos ídolos pode indicar em um país a pró­pria qualidade da cultura. Não há povo sem ídolos, como não há sociedade sem valores, que são produzidos, mas também cunham o com­portamento social. A ques­tão pertinente não está na moralização da TV em ter­mos de seus ídolos, mas na seleção criteriosa - sempre difícil - deles. O apareci­mento do "júri" nos pro­gramas televisionados con­sagrou, pelo menos em parte, a mediocridade, qualificada pela falta de competência profissional em determinados assuntos e pela busca frené­tica de imagens. Esta busca de uma imagem junto ao público, que nos interessou aqui e que é de si um fe­nômeno normal, torna-se fre­nética junto à pessoa que, não tendo conteúdo· especi­fico a apreser•tar, tem que se agarrar à forma externa da apresentação. A isto acresce uma falta muito grande de tática, se a intenção fosse correta: a busca frenética de moraliza­ção da famllia brasileira re­sulta exatamente em seu contrário, pelo rid ículo que suscita na forma de apre­sentação, embora não se possa negar a ningu~m o direito a este ponto de vista.

Pedro Demo

LANÇAMENTOS RECENTES NA ÁREA DE

PSICOLOGIA

E DISCIPLINAS CORRELATAS:

PSICCI'I:RAPIA DE CRUPO: UM C\J IA AJxah3m S. úrchlnB

A apl icaçlo cl inica de cor>e:eltos derivados da dlnSmlca c» grupo, do psiquletrla soc~al , da P•icanAIIse do grupo,

ela semlnt1ca oeral etc.

ZEN·BUDISMO E PSICANJ{LISE Erlch Fromm. o. T. Suzukl e R. De Msrtl"o

Os pontos de encontro enlra PSicanálise e Zen e de como &JO con)unçao pode levar o Mmem ~ plena aproensiio do

si mesmo e da realidade.

ESTRUTURALISMO E PSICANAISf MOU$Iala S9IOU8n

Ull\3 oprosentação das idóias b:!slcu de Jacques Lacar>.

A PSICAM.4LISE HOJE Charlfls Rycrolt (org.)

Uma vls!o critica dos problemas e rumos da l)$lcnndliso contempor6nea.

PSICOLOGIA DA COMUN ICAÇAO HUMANA John Parry

As relaç6es enlre psicologia e toorla da lnfonniiÇio e d8 comunlcaçAo.

PRACM.4TICA DA COMUNICAÇAO HUMANA W(ltzJBWick. Besvln e Jackson

Os eleitos comPOrtamentela de comunicação humarut. particularmente nas chamadas desordens do compor:tamento,

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1'/. SITUAÇÃO INTERNACIONAL

Dólar e Petróleo

A ação da OPEP (Organi­zação dos Países Exporta­dores de Petróleo), que en­globa os produtores árabes e, particularmente, n Vene­zuela, começa a despertar iras que ameaçam atingir a insensatez : o britânico Nevile Brown, por exemplo, nos últimos dias de março disse que o Ocidente "pode­ria ver-se obrigado a esco­lher entre capitular ou pro­curar conseguir o petróleo à força". Trata-se de uma linguagem inoportuna, de quem supõe estar vivendo num mundo já ultrapassa­do de pelo menos meio sé­culo. Ameaçar alguém (e principalmente quando re­presenta um país débil, co­mo a Inglaterra), de usar a força contra aqueles que defendem lucros pela e;acplo­ração de suas riquezas na­turais, é esquecer que vive uma época em que isso re­presenta, felizmente, remi­njscência de um mundo em que o colonialismo consti­tuía sistema incontrastãvel. A ascensão constante do preço do petróleo, por outro lado, preocupa os meios fi­nanceiros do Ocidente, uma vez que concentra em mãos de alguns sheiks orientais, ou de minorias dominantes em países de estrutura po­lítica atrasada, um poder de compra que, no modo de ver de alguns economis­tas, pode vir a constituir ameaça muito séria à moeda norte-americana, já abalada pela desvalorização imposta pela realidade de uma es­trutura econômica poderosa mas afetada de profundos males e por um comércio exterior em reversã·o de ex­pectativas, como gostaria de diur um dos nossos mestres

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ern economia. E o proble­ma, assim colocado, disfar­ça a situação, colorindo-a de aspectos menores, mera­mente pitorescos. Para os países árabes, os maiores fornecedores de petróleo ao Ocidente, trata-se, realmen­te, do modo de aproveitar a transitória riqueza, aufe­rida em forma financeira, de que desfrutam n os dias atuais.

Ora, se essa fabulosa rique­za for utilizada apenas em benefício do consumo su­pérfluo e mandarinesco de alguns sheiks (que percor­rem os hotéis da Riviera, a~ompanhados de numeroso séquito, que compram auto­móveis de alto luxo, fabri­cados especialmente, q u e mantêm uma corte opulenta e vazia), deixará reduzidos vestigios e algumas sauda­des, quando chegar ao fim. E se for aproveitada em benefício dos povos ára­bes (assegurando-lhes s aú­de, educação, progresso ma­terial fundado na estrutura interna e estável), deixará vestígios gigantescos, alte­rando o destino desses po­vos e desses palses. Parece, entretanto, que a primeira hipótese; atualmente, é a mais provável. E' aquela que está ocorrendo, aliás, e em beneficio dos países m a i s desenvolvidos, nos quais aqueles beneficiários realizam as despesas suntuá­rias com que contra.stam a indigência de seus povos. Que será do Oriente, após o esgotamento das suas re­servas petrollferas? A continuar como vem sen­do, a situação se asseme­lhará em muito a que a nossa gente assistiu, em Mi­nas Gerais. com a decadên­cia da mineração aurífera; a mesma que a nossa aente assistirá , com o esgotamen­to das reservas ferriferas e de manganes de Minas e

do Amapá e da serra dos Carajás. Que ficou do es­plendor aurlfero que fez surgir Vila Rica e tantas cidades do altiplano? Urna buraqueira, apenas. Ficou, em Portugal, certamente, mais do que isso: o monu­mento da Mafra, a recons­trução de Lisboa, alguns exemplos isolados e raros de consumo conspícuo -para voltar a escrever em economês. Raimundo Cor­reia, que viveu em Ouro Preto, nos fins do século XIX, costumava exclamar: "Um céu destes em Vila Rica!", assinalando o con­traste entre a luminosidade esplêndida do céu e a cha­ga da buraqueira na terra que circundava a cidade, descaída de sua opulência, reduzida a burgo pobre. Ora, quando o preço do petróleo ascende, no mer­cado in ternacional, por 'for­ca das exigências dos pro­dutores m a i o r e s, os do Oriente P róximo e Médio, fornecedores de quase todo o mundo, particularmente do Ocidente, cabe sempre in­dagar a quem beneficiará tanto dinheiro. Será que o presidente Khadafy, da Lí· bía, continuará a usá-lo pa­ra fomentar ou abafar mo­t ins, a seu bel-prazer, ou será que os senhores da Arábia Saudita continuarão a espantar a Riviera com os seus gastos, ou será que os emires dos antigos pro­tetorados britânicos do Gol­fo Pérsico insistirão em seus ~stumes de descomedida e perdulária opulência? v pe­rigo dos lucros do petróleo estarem concentrados não e·stá, pois, nos movimentos que os senhores árabes po­derão fazer, pondo em pe­rigo o dólar, mas na pro­digalidade com que consu- ' mirão aquilo que lhes chega de forma tão fácil e que não afeta em nada o progresso

de seus países. Esses aspec­tos, por outro lado, dizem de perto com o equilíbrio político da região, em que o antagonismo com Israel se coloca como problema central.

A situação internacional do petróleo afeta mais do que os países da região, entre­tanto, porque afeta a quase todo o mundo. Afeta o Bra­sil, t ambém. A Petrobrá~, que está gastando cada ve1. menos em procurar petró­leo no Brasil e cada vez mais em procurá-lo no ex­terior, continua a receber petróleo por preço fixado há tempo e mais baixo do que o atuaL Concluldo o prazo dos contratos, porém, como é que ficarão tais contratos?

Estamos comprando a 3,40 dólares o barril, quando o preço vigente passou a 4 dólares. Estamos necessitan­do importar volume crescen­te de petróleo, uma vez que a produção interna estacio­nou, com perfodos de de­clínio. Os árabes dizem que "a época da energia barata acabou". Mr. Neville Brown, como ficou registrado, deu uma "deixa", tlpica dos tem­pos da rainha Vitória. Não serve a países como o Bra­sil, certamente. Não temos condições para empregar a força para obter riquezas naturais estrangeiras.

Temos preferência, .ag-ora, para abrir buracos e mais buracos no estrangei ro em busca de petróleo, enquan­to outros abrem buracos e mais buracos na Amazônia, em busca de minérios. Al­gum poeta melancólico di­rá, alguns decênios depois, aquilo que Raimundo Cor­reia disse, e muito bem em sua época, dos céus ama­<:ônicos.

Domingos de Almeida

QUADRINHOS

Bristow, o Anti-burocrata

Não existia no humorismo brasileiro ·um cara mais go­zador do que o Stanislau Ponte Preta. Faturando bas­tante na Televisão foi jus­tamente contra ela que ele lançou uma definição envol· vida de leves ressonâncias freudianas. Segundo o cria­dor do distraído Rosamun­do, a Televisão "é a máqui­na de fazer doido". E apon­ta-nos o que há de melhor no vídeo: "o botão de desligar". E' dentro dessa mesma cor­rente de idéias que gosta­riamos de situar urna outra (estranha) invenção do ho­mem moderno: a burocracia. Ela pode não chegar ao re­quinte patológico que Ponte Preta entreviu nos intrinca­dos bastidores onde traba­lhou. Mas essa gigantesca máquina que movimenta um exército de func ionários pú­blicos e privados poderia ~er definida numa equação bas­tante simples: homem + máquina + papéis + nú­meros = neurose. Nesse jogo de ·racioclnio chegamos enfim ao que nos interessa neste artigo. O leit-motiv da burocracia co­mo objeto de sátira, antes já usado em filmes, livros e peças teatrais, encontra nos quadrinhos sua mais instigante presença em Bris­tow, personagem criado pa­ra o Evening Standard por Franck Dickens, um tran­qüilo inglês de 42 anos apaixonado por ciclismo e por sua mulher Sagra, es­panhola de Burgos - e nada g~neroso com uma pro­fissão muito comum: escri­turários das grandes firmas londrinas. Em suas estórias ele nos apresenta uma visão

marcadamente t rágica da vida destes burocratas-robôs,· lançando o seu personagem careca e de bigodinhos fri­sados em caminhos tortuo­sos, labirínticos, safando..se no entanto pelo sarcasmo como súbitas incursões n~ mundo da infância que se tradu:z na quantidade de mo.. nólogos existentes na maio­ria das estorinhas vividas por Bristow. Vejam só o que pensa Bristow ante a expectativa de terminar mais um dia de trabalho: "Gra­ças a Deus a manQã termi­nou. . . somente mais qua ­tro horas agora ... " (Grilo n• 29). Mais ou menos co­mo se suporia teria dito o menino Oickens após assis­tir uma aula de matemáti­ca, 28 anos atrás : "Graças a Deus só faltam inglês, geografia e história. Depois posso ir para casa, e ficar brincando, e depois dormir, e só voltar quando chegar a hora de novo".

Aliás, foi outro Oidcens quem forneceu um panora­ma agudamente pessimista da educação vitoriana mi­nistrada através de mais de um século nos colégios bri­tânicos. David Copper/itld, uma das obras mais repre­sentativas de Charles Dic­kens, não seria uma cris-­talina radiografia da falên­cia de valores didáticos en­tão vigentes? Franck Dickens não adota em seu estilo nenhuma a­travaganza simbólica para servir de ilustração ao ca­taléptico universo que ele · pretende mostrar, referencia· do através da macrocompa· nhia Chester-Pcrry. Incisivo quanto ao tema escolhido, ele se revela na estrutura um cultor da síntese gráfi­ca. Sua técnica de desenho faz lembrar outro feroz: crí­tico da sociedade moderna, o americano jules Feiffer. Em ambos há uma forte

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74 predominância do texto, e em ambos a ausência de cercadura acentua o caráter fisiogn6mico do persona­gem (o terno de paletó preto e calças listradas, o chapéu coco a encobri r a careca, o bigodinho compõem o ti­po robót ico do funcionário Bristow) quase sempre en­volvido em situação terrível· mente absurda porque ter­rivelmente real. O abSurdo é o real que vive dentro de nós, como diria Samuel Beckett. A propósito, vale acrescentar um dado bas­tante revelador: os italia­nos Bunker & Chies qua­drinizaram recentemente a novela O Processo, de Franz Kafka, percuciente libelo em que o autor de Metamorfose atesta de maneira suti l o caráter corrosivo da buro­cracia, tema que ele desen­volveria ao longo de toda a sua obra literária. Verdade que esta quadrinização só se tornou possível a parti r da versão fílmica de Orson Welles. Verdade também que, no cinema, Orson Wel­les não esteve sozinho ao enfocar o tema dos mean­dros da burocracia criminal; existia a obra de um André C a y a t te. Na literatura, Kafka teve seguidores nesse duelo frontal com tão sin­gular entidade: a burocra­cia Um deles, Henry Miller, denomina o período em que trabalhou como funcionário dos Correios e Telégrafos, em Nova Iorque, de "pe­sadelo de ar refrigerado" e nos transmitiu em Primave­ra Negra toda a angústia dessa malfadada experiência que ocupou uma parte de sua vida. Marshalt McLuhan em seu fascin ante livro O Melo stio as Massagens chega a afír-

mar que "os maiores avan­ços na civilização são pro­cessos que quase arrulnam as sociedades em que ocor­rem", como que prevendo uma dialttica progressiva en­tre causa e eleito social. Estaria a burocracia ent re esses processos de · que nos fala o pensador canadense? Achamos que a resposta de­ve ser negativa. Anterior à tecnologia eletrônica ela es­taria mais inclinada a esta­belecer a continuidade de um determinado "status". O funcionamento dos quadros ora em vigência no Serviço Público e em algumas Em­presas condiciona o homem de tal maneira que o colo­ca, em pleno século da au­tomação, na mesma situação descrita por Albert Camus em seu importante ensaio L'Homme Revollé: "0 que vem a ser um homem revol­tado? Um homem que diz não. Porém, se ele recusa não renuncia: é igualmente um homem que diz sim, des­de o seu primeiro momen­to". Mais ou menos como Bristow (Grilo n• 14), mas­sacrado e/ou massificado pela burocracia, mas por ela irremediavelmente dominado numa dependência neuróti­ca: "Estou ansioso por che­gar e dar duro ... Os ve­lhos hábitos não largam a gentel" Aliás, dentro dessa depen­dência neurótica, Fudge, o chefe de Bristow, estaria quase que como a imagem familiar de um pai severo. Bristow, no entanto, não dei­xa de inventar seus ardis para escapar ao tr abalho e sair passeando como um fe· llz burocrata em férias, ain­da que seja tão condicio­nado à firma que, mesmo quando está realmente de fé-

rias, vá olhar por um te­lescópio para ver o que a turma do escritório está fa­zendo. E', afinal, um goza­dor, um observador das fra­quezas humanas, e que por sua vez é gozado pela ar­rumadeira do escritór io com uma mem;agem escrita sobre a poeira da mesa: "Esta mesa e arredores são uma desgraça" (Grilo n• 32). Metalingüisticamente, se po­deria ver ai uma desespe­rada e mordaz critica à pró­pria burocracia. Eis pois o chomo britanni­cus" pós-Segunda Revolução Industrial em sua psicologia refinada, caricaturado em sua sobriedade, tão tacanho em sua sub-vivência de bu­rocrata quanto a pompa mo­fada das cerimônias da Fa­mília Real. E outro perso­nagem criado por Franck Dickens, o gorducho Nico­la Biggelow (ainda não pu­blicado no Brasil), repre­sentaria esse burocrata em seu tempo de menino, tem­po de viver as despreocupa­ções de puxar o carr inho do elefante e comer as guio­dites da mesa pequeno-bur­guesa. Não há profecia mais exata! O futuro dos gordos filhinhos classe-média da Inglaterra está entre a pa­pelada de uma Companhia Chester-Perry q u a I qu e r, agüentando a cara feia dQS Fudge, a quadradice padrão dos jones, Hewitt e Pilking­ton, a elegância falsa e ri­dícula das Miss Glocklng e a sutil presença paternales­ca dos Sir Reginald Cllester­Perry da vida. Haja então humor e habilidade em cada um para saber encarar tudo isso com a esporlividade e o espírito de gozação de um Bristow.

Charlier Fernandes

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LIVROS

O SEGREDO DA MACUMBA, por Georges Lapassade e Marco Aurélio Luz. - Edi­tora Paz e Terra, Rio de Janeiro 1973. 102 pp.

O livro dos dois autores chama a atenção para a ne­cessidade de se distinguir a Umbanda, que funciona co­rno um discurso social de reapropriação, e o candom­blé, que se prende a uma problemática de mitos etio­lógicos ligados às forças da natureza. Coloca-se, então, que a origem étnica diversa explica a diferença de ri­tual entre ambos. Mais adiante lembra-nos que o fato aludido explica a di­ferença fundamental respon­sável pelo caráter diferen­cial entre um imaginário povoado de significados etio­lógicos, por força de ação interditara ao nível de re­gras de parentesco ( can­domblé), e o da Umbanda na medida em que esta tem um imaginário social povoa­do de significados políticos (daí o excelente aproveita­mento de Althabe, feito por Marco Aurélio, combinado com a problemática dos AlE de Althusser), pelo fato de sua interdição se dar ao ní­vel das relações políticas re­presentantes da I uta forma-

dora das relações sociai::; brasileiras. Dai o uso da categoria freu­diana de esquecimento, poi~. como palavra não-dita, o ri­tual de sua liberação polí­tica e sexual tem no negro que se submeter à interdi­ção, à palavra social do branco. Impossível de tra­zer ao real, resta ao negro dramatizá-la em seu ritual. E' precisamente nesta dra­matização que se distinRUi­rá as estratégias da Um­banda e Quimbanda. A pri­meira corrobora a repressão a Exu, incentiva um exu que policie o exu-quimbandeiro, enquanto a segunda lhe dá o lugar central. Excelentes neste sentido a análise da dominação de exu por ogum em analogia ao processo his­tórico dos Palmares, onde os Capitães do Mato índios são representados pelos ca­boclos, seu chefe é Oxossi, Domingos Jorge Velho é lu­gar-tenente do Rei de Por­tugal (representado por Oxa­lá) e a análise psicanalítica da palavra macumba. Resta-nos comentar também o excelente uso da tópica freudiana, onde, ao nível do real, os praticantes (que são em sua maioria a pequena burguesia branca para a Umbanda, e o proletariado

- principalmente o núcleo residente nas favelas - pa­ra a Quimbanda) não per­cebem que somente ao nível inconsciente eles se lembram da Angola janga se são quimbandeiros, ou se inte­gram no respeito institucio­nal se são umbandistas. Pois somente o conteúdo mani­festo lhes é oferecido, e o que a análise do livro nos revela é o conteúdo latente - eis o porque do ótimo trabalho com a categoria de elaboração secundária tirada dos textos freudianos sobre os Sonhos. ótima, de igual modo, a analogia da proble­mática da dominação como forma de comunicação (Al­thabe) e a estrutura psíqui­ca de vassalo (Reich). Um segredo esquecido, não-dito, que os Deuses, Orixás, de qualquer política ou religião, dão graças para que não seja re!embrado.

Antônio Sérgio Mendonça

A importância do estudo de Marco Aurélio Luz (co-au­tor de Segredo da Macum­ba) está em demonstrar a fecundidade das proposições que desde 1968 vêm sendo discutidas e trabalhadas en­tre nós neste novo "conti­l)ente teórico" que se chama cUncia da história. Vamos por partes. 1. A tradição dos estudos sobre as religiões afro-bra­sileiras tem sido de cunho marcadamente evolucionista. Ou seja, tais estudos "pro­curam a origem do culto para se chegar ao conheci­mento de seu funcionamen­to";. considera que, de pos­se desta origem, isto é, do que era antes de se modi­ficar se estará de posse da essência pura do fenômeno. Dado a origem, se estudará as modificações por ela so­frida, cujo conjunto daria, noutra versão do evolucio­nismo, a totalidade do fe­nômeno. No caso destes cul-

tos, a análise visaria - por trás destas formas diversas que assumiu ao longo da história colonial e posterior (candomblé, macumba etc.) - a versão original (afri­cana) donde teria t u d o partido. A crítica de tal abordagem no campo das ciências hu­manas, feita de modo ra­dical por Lévi-Strauss, pa­rece condenar o evolucionis­mo a, ·no máximo, "um pro­cedimento sedutor, mas pe­rigosamente c ô mo d u, de apresentação dos fatos". Se na biologia um cavalo gera um cavalo modificado, nas ciências sociais um macha­do não dá origem a outro machado.' Fora esta abordagem aca­dêmica, as religiões afro­brasileiras são objeto de criticas religiosas (católica, em geral), espiritualistas, onde o kardecismo procura se ressaltar como uma reli­gião "espiritualizada", "cien­tífica", "civilizada", em opo­sição ao "primitivismo" gros­seiro daquelas. 2. No Segredo da Macum­ba a umbanda é tomada como uma instituição social. O que significa isto? E' que ao invés de situá-la como um conjunto doutrinai ou então mitológico, acampa. nhado de um ritual, a um­banda é definida como um sistema de representações e atitudes (nível ideológico) relacionado com os demais níveis sociais, especificamen­te na função de assegurar as relações de produção (que são formas de exploração do sobretrabalho). Exploremos esta dupla indicação. Como ideologia, a Umban­da será uma linguagem es· truturada, que propõe uma representação da realidade soci:tl, um sistema de valo­res e um código de atitude e comportamentos; enquanto ideologia, é uma forma de produção da identificação

dos indívlduos (agentes so­ciais), um modo de situá­los, para eles, na teia de relações sociais. Ora, sua representação da realidade social é deformada, e é esta a principal característica da ideologia; deformada por sua dupla articulação - no simb6lico e nas relações ~ociais.

3. De fato, a linguagem da ideologia, mesmo que reela­borada nas apresentações doutrinárias, é de natureza simbólica. Seja na organi­zação do altar, que repre­senta as relações das enti­dades, seja no significado de cada entidade, seja nas leis éticas da umbanda, o que opera é um conjunto de mecanismos (substituição, deslocamento, condensação) dest:obertos por Freud na interpretação dos sonhos. A linguagem onírica e os con­ceitos sobre ela produzidos pela Psicanálise (como nos sintomas, nos lapsos) cons­tituem-se, portanto, na "via real" para a compreensão da estrutura da ideologia. Ora, o que se dá ai é o jogo de dois discursos im­bricados - o manifesto e o latente - em que, por meio daqueles mecanismos, opera-se uma permanente deformação das representa­ções. Por efeito, primeiro deste modo de linguagem. a ideologia é deformante. 4. Mas na sua função social de assegurar os lugares dos indivíduos nas relações so­ciais e sendo estes lugares (dadas as relações de cla!õ-' ies) assimétricos, a repre­sentação social e o sistema de atitudes são necessaria­mente deformados. De tal modo, porém, que é possí­vel (como no caso do so­nho) ler a deformação e in­dicar o que está sendo d~­formado - tarefa da teona das ideologias, região da ciência da história.

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E' justamente aqui que se dá o encontro de todas es­tas linhas de análise. O que é recalcado pela deforma­ção inconsciente? O desejo. {A discriminação segregado­ra do Exu, tão longamente estudada no livro). Passan­do por Reich., onde a re­nressão do desejo seria a ~.mdição de uma ideologia de "vassalagem", estamos nas ~truturas ideológicas re­produtoras e garantidoras da estmtura de dominação so­cial de classe. Esta passa­gem é feita por intermédio da estrutura parenta!, que é onde se dá a eclosão e recalque do desejo : nas for­mações sociais de clas~e.

tendo seu núcleo na autori­dade, é transposta então do parenta! para o social. Neste sentido a Umbanda é uma ins tituição social que representa, no imaginário, a formação social brasileira (sua origem, portanto, per­dendo relevância teórica) "com suas leis próprias de ocultação e inversão das classes sociais que se est a­beleceram no Brasil, numa formação quase sempre con­flituosa". Esta representação reproduz a dominação do branco (as entidades cató­licas acima das negras, no altar) com função de con­firmar o seu adepto (negro, prolet ário) no lugar de do­minado. Mas, para fazê-lo, dá-se a deformação que está expressa na luta para ex­pulsar o Exu (desejo, ne­gro revoltado); esta luta é que caracteriza a Umbanda versus a Quimbanda. Pois na Quimbanda, Exu, o ne­gro livre, livre do trabalho escravo e da moral senho­rial, ainda reina no terreiro. Presente enquanto tal no imaginário de nosso negro e das classes mais pobres de hoje, o Exu é o sinal de uma resistência à dornesti­cação definitiva, um apelo à . libertação.

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Mas de uma libertação no imaginário, pois seu espaço social, onde se realizaria -o Quilombo, a República Ne­gra dos negros livres -, foi destruido por aquele que hoje ocupa o topo do altar (São j orge-Domingos Jorge Velho) e a memória desse espaço livre apagada, ape­nas restando dissimulada na denominação vaga de "ma­cumba" (de mocambo, mo­radia dos quitombolas). Enquanto u m imaginário conflituoso, a luta Umban­da-Quimbanda representa as alternativas do neRro e po­bre brasileiros. Alternativas imaginárias, mas cuja eficá­cia poder-se-ia da r num rcor­denamcnto seu com o es­paço social, não mais o do Quilombo. Para ta l, es te estudo de Marco A. Luz constitui uma original contribuição.

Antônio Serra

• Lévi-Strauss, RaÇQ ~ história. Jn: nRaç_a c ciancia-. I. Pers­pectiva, Sto Paulo 1970, p. 239. Sem dúvida a critica de U vf­Strau5s nlo vai além das proxi­mldadu do corte epistemológico que separa a ciência da fdeo!o­gla. l'ol Altbusser e também Ba­ffoar que desenvolveram e reto­maram as ba~s cientilicas da ciência da história que realiza uma critica teórica ao evolucio­n ismo, e que se caractertu co­mo a cl~nda dos dl-rersos mo­dos de produçl o.

VIDA PAJIA ALtM DA MOR­TE, por Leonardo Boff. -Editora Vozes, Petrópolis 1973. 206 pp.

Este livro é uma prova de que se pode escrever teolo­gia com beleza. Livro boni­to, gostoso de se ler. Alguém pode ter preguiça de abri-lo, pensando que é re­petição dos eternos lugares comuns sobre a doutrina do além. Pode ter medo de en­tra r a í, pela própria natu­reza obscura do invisível. Infelizmente não tem ha­vido muita vontade de ba­nhar essas dou trinas nas.

águas de conquista da an­t ropologia. E' mais cômodo apelar para a velha dico­t omia: mundo de cá, mundo de lá; vida da terra, vida do céu ... Por não ter literatura inte­ligível sobre a vida futura, o povo deixa simplesmente de lado as explicações de uma teologia simplista. Tem medo de ir contra, mas ar­ranja outras explicações mais fáceis e menos pesadas. Já era hora de se lavar esse campo importante onde há tanta angústia, tanta per­gt~nta no ar! Era hora de entrar ai corajosamente, com uma palavra positiva, sem apologética e sem rodeios. Boff sistematiza um "pro­cesso de desmi tizaç"ão", com muita lealdade, com muita lógica, sem tapeaçôes e sem vontade de compor ou con­temporizar. Coloca bases teo­lógicas e tira conclusões. Não esconde seu pensamen­to, mesmo que choque. Diz a verdade com simplicidade, com humildade, como quem pesquisou muito, refletiu e olhou para a vida com um olhar claro. Não é fácil o caminho por onde ele entra. Fácil é o contrário, pois os trilhos es­tão prontos. Gostaria de saber comunicar-me, para tr anspor este livro para a linguagem popular e sai r contando uma porção de coisas importantes. Faria uma int rodução com sua visão teológica colocada em rica antropologia. Depois, um feixe de pensamentos sobre cada uma das verda­des do conjunto morte-res­surreição. Garanto que as idéias deste livro tirariam mui tas mira­gens, muitas idéias fixas e obsessões da cabeça cansa­da do povo. Há muita neu­rose, muito complexo de cul­pa, alimentados por certos a:otiomas sobre vida eterna,

sobre morte e juízo. Muita gente sofrendo com isso mais do que é preciso .. . Quantos velhos martiriz.ados pela idéia de eterna con­denação, porque um dia, Já longe no tempo, tomaram uma gota de água antes de comungar, comeram um pe­daço de carne em dia de abstinência, deixaram de pa­!{ar uma conta por esque­cimento! Quanto sofrimento inútil, por não se ver clara a verdade de Deus. Deus é muito melhor do que vocês todos juntos, dizia um ve­lho mestre! Se fizesse essa síntese, omi­tiria o capitulo Indulgências, no a~ndice. Ele destoa da coragem das outras partes. Se não estivesse no apên­dice, pareceria uma bondo­l"a concessão do autor, sem o suporte das outras colo­cações. Difíci l encontrar lu­gar para elas, dentro dessa visão rica de Reino, de ho­mem, lle Deus, de vida. E' um capitulo da história da Igreja, conseqüência de uma visão de Igreja. Repito que está no apêndice, como ou­tros modos de ver. Não tira nem um pingo da grande­za do livro. Pensando bem, aumenta ... A·sintese está além das pos· sibilidades de uma simples recensão. Mas seria impor­tante que alguém a fizesse, em termos de divulgação. Carlos Mesters faria i~ muito bem. Vale a pena, Carlos!

Marcos Antônio N oronha

CóDIGO NACIONAL DE TRANSITO, por Affonso Avi­la. - Edições 1300, Belo Horizonte 1972. 20 pp.

"A" obra poética do mineiro "Affonso Ávila t em-se desta­cado com um rigor e um vigor pouco comuns em noseo pais. O rigor e o vi-

gor críticos, esclareça-se, nascem marcados pela prá­tica va nguardista na área de poema que o domina com absoluta lucidez. Em um texto de 1966, Affonso Avi­la demarcava o lugar de sua direção criativa, uma di­reção capaz de apontar os caminhos urgentes da pro­dutividade literária brasilei­ra: cO poeta novo, impon­do-se uma responsabilidade definida perante o significa­do social da linguagem, impôs-se também unia liber­dade absolut a de pesquisa e criação. . . . A linguagem do poeta novo tende, assim, a ser no Brasil uma lin­guagem sob permanente pressão cr itica, provocada quer pela instabilidade das formas em evolução, quer principalmente pela cont!­gência de uma problemáti­ca humana bastante aguda e imediata:. ( in: «0 poeta e a consciência critica>, pp. 83/84) . Este livret o, de 20 páginas e 8 poemas, de uma certa maneira cristaliza a produ­ção criativa do autor de O lúdico e as projeções do barroco e complementa os dados semânticos lançados em Código de Minas: um li­vreto que existe fisica mente como um poema/livro, já que os seus oito blocos poe­máticos obedecem a uma mesma estruturação Indica­tiva de leitura. Os poemas interligam-se como uma su­cessão de cortes explorató­rios tendo em vista uma determinada t otalidade slg­nificacional. Antecipando os blocos, uma frase-slogan : quem obedece a sinalização evita aciden­tes. A capa (de Myrlam Avila) já anunciara o pro­jeto do livro, explíci to na frase-slogan: o vermelho da .-chapada:. reforça o si­nal de estacionamento prol-11/do, visão tipográfica q ue

abre as portas de um mun­do impregnado pela deter­minante poética. Existe to­do um sentido de alegoria (segundo a concepção de Walter Benjamin) que re­mete a capa e os poemas à hora presente, à nossa realidade concreta de ho­mens concretos. A própna limpeza visual da obra tem um caráter vanguardistico ligado ao problema da ale­goria. E' ' 'erdade que exis­te um lado objetivo na re­lação instaurada por Affon­so Avi la entre poeta/ho­mem/sociedade: o lado das proibições e da censura que atinge o pedestre diante do tráfego ou que atinge a pessoa fisica diante do sis­tema econômico e social Este lado está especificado em Código nacional de trt1n­sito. Cada bloco apresenta um denominador comum verbal ou fráslco ao próprio poe­ma, elemento repetitivo ca­nalizador das tensões estéti­cas reveladoras da taxa .in­formacional do produto. A&­sim sendo, tora do per igo I à direita (às direitas) I luz baixa I quando a farsa for continua I com prudlncia I na pista 1 sob neblina I e I em declive servem aos pro­pósitos criativos dos poe­mas a partir de uma filtra­gem vocabular fundada . na repetição de alguns signos verbais. Esta repetição não tem a gratuidade da redun­dância, mas funciona como um campo aberto par a as permutações localizáveis de maneira impllclta no projeto do livro. O consumidor, em­bora não exista qualquer indlcaçã.o direta por parte do Autor - e aqui reside um dos maiores méritos des­te novo Código - , pode participar livremente das permutações, recriando asso­ciações frásico-vocabulares de acordo com o pensamen-

331

79

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80 to central da obra. Por exemplo:

não vire a página dentro do falso não vi re a página como servo à direita não vire a página ao cruzar outro veiculo não vire a página dentro da farsa

/OU/

dentro da faixa conserve-se à direita dentro da faixa ao cruzar outro veiculo dentro da faixa quando a farsa for contf.-

dentro da fai xa dirija com prudencia.

nua

Só não conservamos um certo preciosismo tipográfi­co na medida das colunas por simples questões técni­cas. O elemento repetitivo da 1 • versão faz parte do 4• poema, talvez o mais bem realizado do livro: cnlio ul­trapasse 1 quando a faixa for continua /1 não ultraje a pátria I quando a farsa for continua 11 não vire a página 1 quando a farsa for continua 11 não pule a pauta 1 quando a farsa for continua 11 não mude a prática 1 quando a farsa for contfnua>; o da 2• versão faz parte do 1' poema, que tem em fora do perigo seu demarcador semântico: <dentro da faixa I fora do perigo I I dentro da fauna I fora do perigo (etc.):.. Sem dúvida, na área verbal como proposta de vanguar­da, o nome de Affonso Ávila desponta com bastante solidez:. Decerto, se este es­tudioso do ba rroco como c:uma linha de tradição cria­tiva> já tivesse dado o seu particular salto gráfico-vi­sual na pesquisa do poema, estarlamos lidando com

produtos muito mais ricos em formulações signicas. Mas a importância criativa de um Código nacional de trtJnsito - e a importância de poemas como Por que me ufano de meus pais, Passagem de Mariana, M()­tetes à feição de lobo de mesquita, Anti-sonetos oaro­pretanos, Pequeno catálogo colonial de nomes, cor de pele e meios de vida e As siglas - está na raiz de uma poesia condicionada à mineiridade e à (uma certa) teatralidade. Teatralidade es­ta que marca o seu lugar através de indicações con­cretas (cf. Motetes à feição de lobo de mesquita, Os anciãos) e de pressupostos críticos abertos à imagina­ção do leitor : a visualiza­ção de um espaço cênico em vários e vários poemas.

Moacy Cirne

INFANCIA NO BRASIL EM TRANSFORMAç.lO, por Agui­noldo N. Marques. - Edi­toro Voz.es, Petrópolis 1973. 248 pp.

O A. é médico pediatra do Ministério da Saúde. E' ne­cesário ressaltar que o trata­mento do problema da in­fân cia não dá apenas um nl­vel suficiente em termos de Ciências Médicas, mas tam­bém um grande nfvel em termos de Ciências Sociais. A obra vem extraordinaria­mente bem documentada e bem montada teoricamente. P rocura caracterizar o sub­desenvolvimento, buscando para isto uma convergência de critérios. Acentua carac­terfsticas econômicas, so­ciais, demográficas, cultu­rais, sanitárias, polltlcas e administrativas. O leque analftico é bastante amplo; e a parti r dele, desce à rea­lidade brasileira, primeira­mente no plano das condi-

ções sanitárias gerais da nação, e, a seguir, no plano específico da infância. E' certamente impressio'nan­te o acervo de dados de que dispõe, ainda mais se levar­mos em consideração q ue o A. não perde de vista, em nenhum momento, a perspectiva interessante da comparação mundial. Neste ponto, terá aproveitado bem o seu acesso aos dados ofi­ciais do Ministério de Saú­de, bem corno a dados de organizações mundiais liga­das ao Minist~rio. Em capltulos subseqüentes, dedica-se a problemas espe­clficos, como a desnutrição na infância, a administração sanitária, o ensino e a pes­quisa em pediatria. Há uma forte acentuaçflo da Incapa­cidade administrativa e das distorções econômicas. Nes­te sentido, acrescenta, no fim, um capitulo onde pro­põe soluções. Tais soluções se concentram em três tó­picos prmc1pats: medidas de caráter geral na econo­mia, que levariam a con­testar e retificar a produção deficiente em termos de ali­mentação e distribuição, bem corno o aproveitamento da mão-de-obra ; medidas ge­rais na área da saúde; me­didas especificas no doml­nio da saúde e da educa­ção da infância. E' adepto do não controle da natali­dade. No fim de c.ada capitulo in­sere urna bibliografia espe­cializada, o que toma a obra muito útil em termos de a proveitamento acadêmi­co, além da oferta muito impressionante de dados. Trata-se de estudo muito realista, que nllo parece partir da defesa velada de qualquer ideologia, mas se propõe analisar o que a realidade dá, pura e sim­plesmente.

Pedro Demo

UTEIATURA PORTUGUESA MODERNA, por Massoud Moisés (org.). - Cultrix/ Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo 1973. 204 pp.

A importâ.ncia de um dicio­nário que registre nomes, fatos e tendências, quando elaborado com um mlnimo de lucidez cr itica, pode ser facilmente verificável na área quase sempre comple­xa da valoração literária. E quando um dicionário apresenta os seus verbetes de maneira concisa, com as informações necessárias (com juízos críticos que po­derão ser polêmicos, con­forme a orientação metodo­lógica do organizador), um bom passo já foi dado em direção à sua mais imedia­ta finalidade: o didatismo em geral para-universitário. Os 268 verbetes que cons­tituem este volume - or­ganizado por Massaud Moi­sés, com a colaboração de Alvaro Cardoso Gomes e mais nove nomes pertencen­tes ao Centro de Estados Portugueses da Faculdade de Filosofia , Letras e Ciên­cias Humanas da USP -primam (quase sempre) pe­la conC'isão irreparável, pela eficiência valorativa, pela informação correta. Portan­to, um dicionário que atinge plenamente o seu objetivo. E atinge plenamente o seu objetivo em particular no que se refere aos poetas, no­velistas e romancistas mais conhecidos, ou mais estima­dos pela critica: Almada­Negreiros (pp. 15/16) , José Gomes Ferreira (pp. 73/75), Vergílio Ferreira (pp. 76/ 77), Adolfo Casais Monteiro (pp. 118/119) , Fernando Namora (pp. 123/124) , Joa­quim Paço d' Arcos (pp. 141/143), Fernando Pessoa (pp. 146/150), Mãrio de Sá­Carneiro (pp. 169/170) etc.

Inclusive, tivemos a grata surpresa de encontrar cata­logado o poeta caboverdiano Luís Romano (p. 166), ho­je residindo em Natal, no Rio Grande do Norte. Entretanto, o livro de Mas­saud Moisés se apresenta bastante falho, com lacunas imperdoáveis, na parte refe­rente à nova produção U­terária de Portugal. Se Melo e Castro - um dos mais atuantes e fecundos poetas experimentais portugueses­está incluldo (p. 114), o seu verbete, assinado por Car­los Felipe Moisés, pauta-se no mais completo equívoco quanto às metas t ipográfi­cas da poesia experimental. Lamente-se, ainda, as ausen­cias de dois grandes van­guardistas; Ana Hatherly e António Aragão, para não falar nos mais novos (Nel­son Portelínha, Manuel Leo­poldo Passos, Silvestre Pes­tana). Hatherly é autora do importante Anagramdtico (1970) e Aragão tem de­senvolvido um trabalho da maior significação poética na ltha da Madeira.

Moacy Cirne

A NARRAnVA DE FICÇlO, por V'.cente Ataídc. - Edi­toro dos Professores, Curiti­ba 1972. 170 pp.

O Autor é professor na Universidade Católica do Paraná, onde aparece como um dos maiores animado­res (divulgadores) da nova literatura brasileira, promo­vendo cursos e debates os mais variados em torno de problemas cruciais de nossa produtividade literária. Dal porqne o nosso interesse por um livro que se volta de maneira explfcita para a narrativa ficcional, cujos parâmetros ínformaclonais são instigantes para qual-

quer estudioso da literaU­dade. O livro de Vicente AWcJe divide-se em duas Partes distintas; a primeira, teô­rica (Morfologia da ficção)· a segunda, critica (Três en: saios). A primeira tennina por apontar soluções ficcio­nais brasileiras e problemas gerais da ficção; a segun­da analisa as obras de Ly­gia Fagundes Tel!es, Al­cântara Machado e Samuel Rawet. Em vários níveis, um volu­me repleto de sugestões cri­ticas interessantes e úteis, se pensarmos no leitor uni­versitário que vai consumi­lo. A segunda parte, de igual modo, apresenta abor­dagens quase sempre corre­tas sobre os três au1ores referidos, em particular so­bre Samuel Rawet, quando o estudo se torna mais com­pleto, procurando detectar no contista de Os set~ so­nhos as dimensões de uma certa evolução estilística, ·o problema da trama (argu­mento) no arsenal criativo (ou não) do conto brasi­leiro e a angústia e a soB­dão que dominam os per~­sonagens rawetianos. Contudo, não encontramos no livro de Vicente Atafde nenhum elemento concreto que determine a sua posi­ção critica diante de um posslvel construturalismo. Ou seja, se A narrativa df! flcçlfo pretende ser um ma­nual de abordagem inter­pretativa construtural, resta; nos a pergunta: o que se­r ia uma critica construtu­ral? Os dados metodológi­cos aqui esboçados antes nos remetem para um cert? impressionismo de teor d!­dático, em especial na pr~­meira parte, quando mul­tas das questões levan1adas já foram superadas pela nova critica & pela nova narrativa. Um só exemplo:

Page 42: Lapassade Analise Institucional Teoria Pratica 1973

82 sltuar os constituintes fic­cionais como agentes forne­cidos por áreas semântico­morfológicas gastas (o en­redo, o personagem, o tem­po, o espaço, a situação­ambiente, o ponto de vista).

M &acy Cirne

UMA TEORIA DE POLITICA COMPARADA, por Gabriel A. Almond & G. Bingham Powell Jr. Tradução de Nor­ceu de Almeida F., Rev. técnico de Eurico de l. Fi­gueiredo. - Zahar Editores, Rio de Janeiro 1972. 206 pp.

Existe um grande interesse no estudo de polltica com­parada. A comparação de vários regimes políticos, tan­to em dimensão histórica (comparação de regimes pri­mitivos com os atuais), co­mo em dimensão mundial (comparação entre os vá­rios regimes vigentes na atualidade), é uma das abor~ dagens mais fecundas, por­que permite uma experiên­cia metodológica e emplrica de extraordinário valor. Em­piricamente, cada regime oferece uma perspectiva pró­pria, com concepções espe­cificas: a história, que so­brevive a mandantes e man­dados, pode abrir ao es­tudioso dimensões novas pa­ra a formulação de uma teoria, bem como sugerir a impossibilidade de certos desenvolvimentos. Metodolo~ gicamente, a comparação pode Induzir à superação de Instrumentais anallticos, tidos muitas vezes por evi­dentes, bem como a uma contestação crescente de termos e conceitos alienan­tes. Os AA. manifestam uma li­nha funcionalista caracterls.­ti.ca da moderna abor.dagem Cibernética, por exemplo, de Easton e Deutsch. Um dos cap!tulos centrais se dedica

extensamente a vários tipoS de funções : função de de­cisão de normas, estrutura de decisão de normas, pa­drões de decisão de nor­mas, função de aplicação de normas, função de adju­dicação de normas, função de comunicação ... Em sua tipologia, como se­ria de esperar, os AA. dis­tinguem duas perspectivas básicas: sistemas políticos primitivos e tradicionais, de um lado, e formas demo­cráticas e autoritárias mo­dernas, de outro. Entre os primeiros arrolam: sistemas políticos primitivos, siste­mas patrimoniais, sistemas burocráticos centralizados, sistemas políticos feudais; entre os segundos: a cidade­estado secularizada, siste­mas polltlcos democráticos, autoritários e sistemas mo­dernos pré-mobilizados. A obra tem UM interesse acadêmico relevante; pode­se lastimar que não ofereça bibliografia. Mas, ainda assim, o gabarito interna­cional dos AA. garante pela representatividade de seus enfoques.

Pedro D2mo

A CRIAÇÃO DE UM PAPEL, por Constantin Stanislavski. Tradvçõo de Pontes de Pau­la Lima. - Editoro Civiliza­ção Brasileira, Rio 1972. 270 pp.

Para se falar da teoria do teatro do nosso século, há que citar três nomes fundamentais: Stanislavski, Brecht (teatro dialético) e Orotowski (teatro pobre). Stanislavski, influenciado por Freud, volta-se para as ações, os objetivos flsicos e principalmente psicológicos da personagem. O grande mestre do teatro deixou-nos uma trilogia importantíssi­ma : A Prepara,ão do Ator

(sua obra mais importante), A Construção da Persona­gem e A Criação de um Papel. Stanislavski cria ele mesmo algumas personagens para nos dizerem as verdades da ribalta. Nos diálogos apa­rentemente simples mas cheios de intenções, ele nos dá o caminho para se con­seguir alguns momentos de arte teatra l. Para Stanis­Javski, tudo distrai o ator. São os espectadores, com o riso, silêncio e até aplausos; são os <spot-lightS>; são as entradas e as saídas de cena, quando o ator se <des­liga> do seu papel. Enfim, existe um sem número de interferências a prejudicarem o trabalho do ator. Mas, esse mesmo ator, deve pro­curar os momentos de boa representação, persegui-los, entregar-se a esse trabalho fascinante de modelar o pa­pel. O teórico russo acon­selha trabalho e trabalho. Através da expiração vem a ingpiração, eis em slntese o lema de Stanislavski. Para a criação de um papel deV&­se fazer esta pergunta: <Que faria eu (ator) nas mesmas condições~ Criar primeiro as condições flsi­cas desse momento da per­sonagem, pois que as moti­vações interiores brotarão naturalmente, segundo Sta­njslavski. Stanislavski propõe o se­guinte rotei..,.o de trabalho para A Criaçif& de um Pa­pel: o perlodo de estudo, desde o primeiro contacto com o papel, sua análise esgotando posslbllldades da personagem, o estudo das circunstâncias externas e internas motivadoras e a avaliação objetiva da peça. A segunda parte é o pe­ríodo da experiência emo­cional. Os impulsos interio­res que levam à aclio tea­tral, os objetivos criadore&

e a partitura do papel (que é a apreensão dos momen­tos não-verbalizados da pe­ça). O terceiro período é o da encarnação física no próprio papel Trata-se do período mais difícil e que Stanislavski compara à ado­lescência de um jovem. Já agora aparecem os objetivos e as aspirações do papel e há que pô-los em ação. Em quarto lugar o autor nos dá uma demonstração prá­tica do seu método, através da análise de Otelo. A se­guir é também analisado O Inspetor Qual e, finalmente, temos dois pequenos apên­dices Que são roteiros para a criação de um papel e algumas improvisações so­bre Otelo.

}. Albert& Braga

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Page 43: Lapassade Analise Institucional Teoria Pratica 1973

84 nsmo, A pe.qult4 em contunl­c~çh; ..a secunda (pesqulut) , Estudo comparativo -dos Jornala dltrlot ele Sl o Paulo, l!studo comparativo de cinco revlstat sem4nal• Ilustrados, Estudo com-

. parati•o da vlolfncla no jorna• llsmo brasileiro.

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Estrutura/limO I ttorla da lite­ratura, Luis Costa Lima. 492 pp. Cr~ ~.oo. - Obra e•· ponenclal dA nova critica llte­rãria brasileira, fundamentada ooa pressupostos estruturalistas do pensamento contemportneo. O formalismo russo e 01 llmltet ela problexn6tlta estética, moU­•açio e tensl o nos sistemas s im· bólicos & os discursos de re­pruentaçfo figuram no centro das preocupaç6es estruturais de L C L.

Sociedade stm tscolat, lvao llllch. 188 PP. - ~Pretendo dis­cutir certos enfoques que nos deixam perplexos quando acei­tamos a hipótese de que a so­ciedade pode ser dcsescolarlzada; procurar critérios que nos al u­dem a distinguir as lnstltutçau que merecem progredir pOr(lue promovem o aprendizado num meto desescolarizado ; e esclore­cer aquelas metas pessoais que poderiam fomentar o advento de uma Era do Lazer (schola) em oposiçlo a um a economia domlnl(la pelas lnd6strlu de serviço" (11 ), Um livro lmpor­tantlsalmo.

Po~tnJU, Ruben Vela . 19<1 pp. -Versos de um poeta e diplomata are:entlno, avaclado com o prl­~nelro premio Cludad Buenos AI­res, em 1972. Apruentaçlo crl­tlca de BeiJa )02el, que nos dll QUe os temas, os poemas de Rllben Vela utlo cbelos de slc­nlllcaçto humana e socia l. Com isto acreditamos que IIÓ se pode chegar • ser crande poct.a quan­do se cbt~Ou a exprt!sar, poe­ticamente, o mundo.

Sabu tn•tlhtctr, Alfons Oeecken. 84 pp. - Este pequeno volume mostre, antes de mate ••da. co ... mo a Idade madura e a velhice podem su, numa vida humana,

anos de graude produtividade sabedoria, dlscernlmeato e r~. O Autor se baseia na sua experiên­cia no Oriente, onde as peasoaa Idosas alo membros respeitados da sociedade.

Para uma aoclo/ogla do prot~•­tantlsmo briUiteiro, Waldo A. César . 48 pp. Segulldo volume da toleçlo Trlllas. O Autor é llcentiado em Sotiolo&ia, tendo curso de especlalbaç!o no Cen­tro de E.cumcnl$mo de Genebra. O preunte trabalbo - vaUoso sob os mais diVersos aspectos -foi encomendado pelo Instituto Superior de Estudos Teotócicos (São Paulo).

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Contra-revoluçlío e revolta, Her­bert 1\larcuse. 136 pp. - Quais as possíbllldodes mais evidentes das transformações sociais que se esperam nos Estados Unidos? Em que direção, ou dirtções, se dariam essas transformações. A perguntas como essas HM dâ neste livro respostas de ampla penetraçlo no âmago da com­plexa sltuaçl!o revotuclon.trta existente no mundo civiUzado de nossos dias.

Problsmos fundamentais da teo­lla sociologica, John Ru. 226 pp. Cr$ 20,00. - Slgnlllcatlvos apontamentos para a perfeita compreeosllo e delimltaçlo da teoria socloló~lca como base da pesquisa SOCJ olégica. Principal& capltulos: A sociologia como tlfncla. A sociologia emplrlsta, O objeto da sodologta, O pro­blema do funcionalismo, Os va­lores na teoria soclol6gtca, A korla do conflito e da mudaaça social.

Outa/1-tnapla, Joen Fegaa & Irma Lee Sltepherd. 414 pp. Cr$ 30 00. - Cotetlnea de ensaios voltados para a teoria, as téc­nicas e as aplicações da gestalt­terapla. A atualidade da mattrla pode ser detectada nos dklersos capltulos que o constituem como livro de r rande Interesse: Fun­cionamento sensorial em psico­t erapia, A• tardas do ler4J)cvta, A experl!ncla de arte-gestalt etc.

AdmJn.l•traçdo ~/caz, Raymond O. Loen. 338 pp . - Considera do am 1ula de teor p rttlco para o admtniatrado r que queira reallur o menor número de tarclat com arn;a maior efi~cla pari a em­presa. Seu objetivo primordial consiste em laaer com que o administrador dlstlnca com cta­rna entre administrar e ue­cutar: no primeiro caao, ele apenas UJf1'Ja; oo aegu.ado, ele multiplica esforços atravb de seu pes.soal.

REEDIÇOES

Psicologia Social, Aroldo Ro­drigues. 2' edição. - Vo­zes, Petrópolis. W e learn english, Otília Arns. 8• edição. - Vozes, Petrópolis. Mutações em educação se­gundo McLuhan, L-auro de Oliveira Lima. 5' edição. Vozes, Petrópolis. Comunicação, expressão. e cultura brasileíra, Maria He­lena Silveira. 3• edição. -Vozes, Petrópolis. Raça, Guilherme de Almei­da. 2' edição. - José Olym­pio, Rio de janeiro. Elenco de cronistas moder­nos, Rubem Braga et alii. 2• edição. - Sabiã, Rio de janeiro. Sociologia do Direito, F. A. de Miranda Rosa. 2" edi­ção. - Zahar, Rio de Ja­neiro. Introdução à sociologia, T. B. Bottomore. 4' edição. - Zahar, Rio de janeiro.

Diretor rosponsdve/: Frei Frederico José Leopoldo Vlor. O. F. M. RedtJÇio: Editora Vozes Limitada. Coi~a Posto! 23, Pé1rópoll•. RJ lmpreaso naa Otieln, .. Gr,fica• dit •&Jilore Vcnea ltc!a. •. Petr6poll:a

SEMIOLOGIA & DISCURSO TEORIA SOCIAL ANÁLISE DAS LINGUAGENS EPISTEMOLÓGICAS

· são números da REVISTA DE CULTURA VOZES que anali8cun 0

di8curso da semiologia e a importância da epi8temologia na teoria científica doa

nossos dias: uma teoria vital para ci compreensão do mundo de hoje.

São números que veiculam artigos, entre outros, de

CARLOS HENRIQUE IIICDBAR (Semlo/0(1111 como con«Jto em estado pr6tlco)

NADIA PAULO Pt:RRf:IRA t Semlo/0(1111 1t teo111 do romiiiiCe}

MILTON JO$E PINTO (Categorln d11 lr~tertNetiÇIIo .emlntlca)

em SEMIOLOGIA & DISCURSO, 10/1970

8EVEIIINO CAIIIAI. PltHO (VocM>ullrlo de ftPI5Iemo/0(111}

CARLOS CRUZ (Sobre o conceito dft eiS$~$ 60CIIM)

LUIZ l'lliPE BAITA NEVES (0 t>nU<Jo doa al<tem" de parenteno/

em TEORIA SOCIAL, 6/ 1971

AllNO VOQIL IEp/stemoiOgt• e T-1• de Hlst6ri-J

ANTONIO StRQIO MENDONÇA {Re·lelturll de Oawald)

IIIENO KIJ'IJINAN {Um ~,. fenotnltll016glco: o mundo/

em ANAUSE DAS LINGUAGENS EPISTEMOLóGICAS, 4/ 1972

REVISTA DE CULTURA VOZES