lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente...

22
345 R E S U M O Pretende-se com este artigo dar a conhecer várias estruturas rupestres de lagares que foram sendo identificadas e inventariadas desde 1993, no âmbito de várias prospecções arque- ológicas realizadas na vertente Noroeste da Serra da Estrela. No levantamento efectuado foi possível construir uma tipologia que inclui quatro tipos: rectangulares ou sub-rectangulares, de forma predominantemente quadrangular ou subquadrangular, circulares, de menor dimensão, e sepulturas escavadas na rocha transformadas. Apesar de não haver documentação que refira directamente este tipo de estruturas, é provável que a maioria fosse destinada à transformação da uva. Com efeito, o plantio da vinha está bem documentado desde a época medieval, contrariamente ao plantio da azeitona, e analisando a distribuição dos lagares veri- fica-se que a totalidade se localiza em altitudes compatíveis com o plantio da vinha. É ainda provável que estas estruturas se localizassem dentro das próprias vinhas. A B S T R A C T The aim of this paper is to present 23 rupestral mills identified and invento- ried since 1993 in the context of several archaeological surveys in the NW slope or Estrela Montain. It has been possible to propose a typology including four main morphological types: rectangular or subrectangular shape; predominantly square or subsquare shape; round square of small diameter; and the adaptation of rupestrial graves. Despite of the lack of written docu- mentation referring this type of structures, it is likely that the majority was made for grape processing. In effect, unlike olives, vineyards are well documented since medieval times — the distribution of all the rupestral mills shows their location in heights compatible to vineyards production. It is also likely that these structures were located in the vineyards themselves. 1. Introdução Conhecem-se lagares escavados na rocha em todo o Mediterrâneo, desde a Síria e Palestina, passando por Itália, França e Península Ibérica. No nosso território são mais vulgares no norte e centro do país, principalmente em áreas ocupadas por granitos. Apesar de comuns, até hoje o seu estudo não despertou a curiosidade de muitos investigadores dos espaços rurais. Efectivamente, Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente noroeste da Serra da Estrela CATARINA TENTE * REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 345-366

Upload: others

Post on 26-Jul-2020

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente ...patrimoniocultural.gov.pt/media/uploads/revistaportugu...2018/03/01  · Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente

345

R E S U M O Pretende-se com este artigo dar a conhecer várias estruturas rupestres de lagares que

foramsendoidentificadaseinventariadasdesde1993,noâmbitodeváriasprospecçõesarque-

ológicasrealizadasnavertenteNoroestedaSerradaEstrela.Nolevantamentoefectuadofoi

possívelconstruirumatipologiaqueincluiquatrotipos:rectangularesousub-rectangulares,

de forma predominantemente quadrangular ou subquadrangular, circulares, de menor

dimensão,esepulturasescavadasnarochatransformadas.Apesardenãohaverdocumentação

que refira directamente este tipo de estruturas, é provável que a maioria fosse destinada à

transformaçãodauva.Comefeito,oplantiodavinhaestábemdocumentadodesdeaépoca

medieval,contrariamenteaoplantiodaazeitona,eanalisandoadistribuiçãodoslagaresveri-

fica-sequeatotalidadeselocalizaemaltitudescompatíveiscomoplantiodavinha.Éainda

provávelqueestasestruturasselocalizassemdentrodasprópriasvinhas.

A B S T R A C T Theaimofthispaperistopresent23rupestralmillsidentifiedandinvento-

riedsince1993 in thecontextof severalarchaeological surveys in theNWslopeorEstrela

Montain.Ithasbeenpossibletoproposeatypologyincludingfourmainmorphologicaltypes:

rectangularorsubrectangularshape;predominantlysquareorsubsquareshape;roundsquare

ofsmalldiameter;andtheadaptationofrupestrialgraves.Despiteofthelackofwrittendocu-

mentationreferringthistypeofstructures,itislikelythatthemajoritywasmadeforgrape

processing.Ineffect,unlikeolives,vineyardsarewelldocumentedsincemedievaltimes—the

distributionofalltherupestralmillsshowstheirlocationinheightscompatibletovineyards

production.Itisalsolikelythatthesestructureswerelocatedinthevineyardsthemselves.

1. Introdução

Conhecem-selagaresescavadosnarochaemtodooMediterrâneo,desdeaSíriaePalestina,passandoporItália,FrançaePenínsulaIbérica.Nonossoterritóriosãomaisvulgaresnonorteecentrodopaís,principalmenteemáreasocupadasporgranitos.Apesardecomuns,atéhojeoseuestudonãodespertouacuriosidadedemuitosinvestigadoresdosespaçosrurais.Efectivamente,

Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente noroeste da Serra da Estrela

CATARINATENTE*

REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 345-366

Page 2: Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente ...patrimoniocultural.gov.pt/media/uploads/revistaportugu...2018/03/01  · Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente

Catarina Tente Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente noroeste da Serra da Estrela

REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 345-366346

sãoescassasaspublicaçõesnonossopaíssobreestatemática,oqueimpedeacomparaçãodetipo-logiasearelaçãodestascomasuafuncionalidade.

A principal limitação do estudo destes lagares reside na impossibilidade de, na sua largamaioria,serimpossívelrelacioná-losdeformadirectacomestratigrafiasarqueológicas,quepossi-bilitemarecolhadeinformaçõesquantoàsuacronologia,funcionalidademaisprecisaerelaçãocomeventuaisespaçoshabitadosoudeexploraçãoagrícola.

Os levantamentos gráficos e fotográficos dos 23 lagares apresentados neste estudo foramefectuados entre 1993 e 2005, sob a direcção da signatária. A sua identificação foi possível noâmbitodetrêsprojectosde investigaçãoquesedesenvolveramnestaregião.Oprimeiro,queseiniciouem1993,tinhaporobjectivoolevantamentodopatrimónioarqueológicodoconcelhodeGouveia.Entre2002e2004,desenvolveu-seumoutroprojecto,intituladoA Ocupação Alto-Medieval da Encosta Noroeste da Serra da Estrela,oqualseprolonga,desde2005,atravésdeumoutroprojectoqueabarcageograficamenteatodoAltoMondego,intituladoA Alta Idade Média no Alto Mondego.

Opresenteartigonãopretende,nempodeser,umestudoinovadorrelativamenteàfuncionali-dadedestasestruturaseàsuacronologia.Noentanto,oconjuntoanalisadopermiteavançarcomalgu-maspropostas,nomeadamenteoestabelecimentodeumatipologiaeumbalizamentocronológico.

Paraaregião-alvodesteestudoconhecem-seaindaoutrosseislagaresrupestresqueforamreferenciadosporAntónioValeranapublicaçãosobreopatrimónioarqueológicodeFornosdeAlgodres(1993).Contudo,comonãosãopublicadosdesenhoseperfiscomrespectivaescalaparatodososlagaresenãofoipossívelefectuaroseulevantamentofotográficoougráficoduranteosprojectosacimareferidos,optou-seporexcluí-losdesteestudo.

Todasasestruturasidentificadassituam-se,assim,nosactuaisconcelhosdeGouveiaeCelo-ricodaBeira,queocupampartesubstancialdavertentenoroestedaSerradaEstrela,quedominao grande corredor da Beira Alta. Este território divide-se em dois espaços diferentes: um maismontanhoso,umaespéciedemuralhaatravessadapornumerosospequenoscursosdeágua,quedescemaserraparadesaguaremnoMondego;eumaoutramenosmontanhosaquesecaracterizapelasplataformasdorioMondego.Estaregiãoéaindamarcadapelapeculiardegradaçãoeerosãodogranitoquemodelou,comotempo,“castelosderocha”.Estaexposiçãodarochadebasepermi-tiuautilizaçãoantrópicademuitosdosafloramentos,queforamassimaproveitadoscomobaseparaassentamentosdemuralhas,sepulturas,eiraselagares.

2. Modo de funcionamento dos lagares

Oconhecimentoquetemosdomododefuncionamentodealgunsdesteslagaresrupestresbaseia-se,parcialmente,nosconhecimentosqueactualmenteexistemquerdoslagaresromanos,querdoslagarestradicionais,atéhápoucotempoemfuncionamento.

Noconjuntoestudadonesteartigo,nuncafoipossívelrelacionardirectaouindirectamenteoslagaresavestígiosarqueológicosromanos,oquelevaasuporqueasuamaiorianãoseráefecti-vamenteromana.Foiestaconstataçãoquelevouàadopçãodeumanomenclaturamaispróximadostermosemportuguês.Paraumamelhorcompreensão,faz-searelaçãoentreonomeemlatimeotermoemportuguêsescolhido(Fig.1).

Oqueépossívelidentificarcomooregistoarqueológicodoslagaresrupestressãoasestrutu-rasqueforamescavadasnarocha,ouseja,apiaparaapisa(oucalcatorium),oscanaisdeescoa-mentodoslíquidosextraídosdapisae,eventualmente,emalgunscasos,opio(oulacus)eosbura-cosdepostequesuportariamaestruturaparaprensagem(oustipites).

Page 3: Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente ...patrimoniocultural.gov.pt/media/uploads/revistaportugu...2018/03/01  · Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente

Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente noroeste da Serra da Estrela Catarina Tente

REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 345-366 347

Independentementedaformaqueosvárioslagaresapresentam,todosteriamumaáreaparaesmagamento,fosseelaefectuadaporpisaporpéhumano,e/ouatravésdeprocessosmaiscomple-xosqueimplicavamautilizaçãodemecanismosemmadeira,pesos,contrapesosepedrasdelagar.Esteprocessoeraefectuadonumapia,frequentementedepoucaprofundidade(calcatorium)esca-vadanogranito.Olíquidoresultantedesteprocessoescorreriaporcanaisoubicasparaumnovoespaço,opio,queestavaseparadodoanteriorequepoderiaserescavadonarochaou,emalterna-tiva,seramovível. Emalgunscasos,apenassedelineavaumaáreadeapoioaumreceptáculoamoví-vel,quepoderiaseremmadeiraoumesmoemcerâmica,talcomoocorreemalgunscasosconheci-dosparaoperíodoromano(Alarcão,1997,p.146).

Noscasosemqueosistemaeramaiscomplexo,funcionariamuitoprovavelmentedeformasemelhanteaomodelodelagarcomprensaporalavanca(torcularium)propostoporAlmeida,Antu-neseFaria(1999).Naáreadeprensagemeramontadoumsistemaemmadeiraquesuportavaumaalavancaouprelum“àqualseaplicaumaforça,nestecasoagravidade,aactuarsobreapedradelagar”(Almeida,AntuneseFaria,1999,p.99).Estaestruturaemmadeiraassentavaemburacosdeposteoustipites,maséprovávelquestipitesescavadasnogranitonãosuportassemopesoexercidopeloprelumcomapedradelagarequeasarbores sedeslocassemdosorifícios,peloqueédeadmitiraexistênciadecontrapesos(Almeida,AntuneseFaria,1999,p.100).Talcomonoscasosestudados,tambémestesautoresadmitemquenemsempreestesburacosdeposterespeitamumaconfigura-çãopadronizada,surgindoporvezeslagaresquepossuem “uma stipitescompostapordoiselementosàqualseopõedooutroladoumamaissimples”(Almeida,AntuneseFaria,1999,p.100).

Foramigualmenteidentificadoslagarescomduasáreasdeprensagem,normalmenteumadeformarectangulareoutracircular.Almeida,AntuneseFaria(1999)registaram,também,lagarescomduasáreasdeprensagem,sugerindoqueumapudesseserparaapisapropriamenteditaeo

Fig. 1 Modeloteóricodelagardetorcularium (prensa)propostoporAlmeida,AntuneseFaria(1999).A–varadelagar(prelum);B–postedeapoiodavaradelagar(arbore);C–parafusoouelementodesuportedapedradelagar(malus);D–pedradelagar;E–buracosdeposte(stipites);F–contra-pesos;G–escora;H–pio(lacus);I–piaparapisa(calcatorium);J–bagaçoparaprensagem.

Page 4: Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente ...patrimoniocultural.gov.pt/media/uploads/revistaportugu...2018/03/01  · Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente

Catarina Tente Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente noroeste da Serra da Estrela

REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 345-366348

outroparaprensaportorcularium(Almeida,AntuneseFaria,1999,p.101).Namaioriadoscasosestudadosessainterpretaçãonãopareceserviável,jáqueaestasestruturasnãoestãoassociadosburacos de poste que pudessem suportar a estrutura para aplicação da prensa em madeira, talcomoomodelopropostoporaquelesautores.É,porém,possívelqueasestruturascirculares,emformadefrancela,pudessemtersidodeapoioaumaestruturadeprensaporfusoquefuncionariatodaemmadeira.

Asestruturasdelagaremmadeiraqueerammontadossobreestasbasesgraníticasdeveriamserremovidasnofimdecadacicloagrícola,paraquenãosedegradassemporexposiçãoàscondi-çõesclimatéricas,istoadmitindoqueemredordestasestruturasnãoseriamerigidosedifíciosqueprotegessemtodooconjunto.Refira-seapropósito,quenenhumdoscasosestudadossepôdeconstataraexistênciadequaisquervestígiosquepudéssemosrelacionarcomedifícios.TambémAlmeida, Antunes e Faria (1999, p. 100) admitem que os elementos em madeira destes lagaresfossemmontadosemcadaumdosciclos.

Sãorarasasmençõesdocumentaisàspartesconstituintesdoslagaresrupestres,masnumdosdocumentosestudadosporAndrésBarrioparaaregiãodeLaRiojaéreferidaavenda,em1082,deumlagaremBobadilla,queumcasalfazaoMosteirodeSanMillán.Nodocumento,olagarédescritocomo“uno troliare complito, cum sua pila et omnia causa”.Depreende-sedestareferênciaqueo lagareraefectivamenteconstituídoporduaspartes.Seriaaexpressãoomnia causa referenteàmaquinariademadeiraeapilaàbaseempedra?(AndrésBarrio,2006,p.2).

Nostrabalhosdecampoefectuadostambémnãoforamencontradospedrasdelagarseme-lhantesàquelaqueérepresentadanasFigs.1e2.Estefactopodeserexplicadodeduasformas.Aprimeirapartedoprincípioqueesteselementospétreosforamsistematicamentereaproveitados.Asegundaavançacomapossibilidadedeumsistemaalternativoàspedrasdelagartradicionais;estaspoderiamsersubstituídasporbolsasemcordaqueestariampresasàextremidadeproximaldavaradelagar,enasquaissedepositavampedrasavulsasatécriaropesosuficienteparaaprensagem.ComoaspedrasdelagarpodemaindahojeseridentificadasemalgunssítiosromanosnaBeiraédifíciladmitirqueemtodososcasosestudadosessaspedrasdelagarpossamtersidoreaproveita-das.Osistemado“sacodepedras”implicavanãosóuminvestimentomenorpornãoexigirotalhedapedradelagar,mastambémummanuseamentoexpedito.Noentanto,édeadmitirquetenhamcoexistido estes dois sistemas e outros que ainda não conseguimos vislumbrar o seu modus operandi.

Apósosprocessosdepisaeprensa,quandoestaeraaplicada,omostoseriatransportadoparaoutrasinstalações,cobertas,paraqueseprocessasseafermentação.Estasinstalações,quepode-mos,denominardeadegas,deviamsituar-sejuntodashabitações,noscasosdoscasais,emesmodentrodaspovoações,nocasodopovoamentomaisconcentrado.Comotempo,asadegase,maistarde,oslagares,passamaocuparumapartedacasa,desenhando-seoquehojeconhecemosdacasatradicionalbeirã.

3. Descrição das estruturas

Osdiversoslagaresestudadosadianteenumeradosestãoorganizadosporfreguesiaeconce-lho,efectuando-separacadaumumadescriçãodassuascaracterísticasedaseventuaisinforma-çõesdocumentaisearqueológicasquesepossamdirectamenteassociaraessasestruturas.

outroparaprensaportorcularium(Almeida,AntuneseFaria,1999,p.101).Namaioriadoscasosestudadosessainterpretaçãonãopareceserviável,jáqueaestasestruturasnãoestãoassociadosburacos de poste que pudessem suportar a estrutura para aplicação da prensa em madeira, talcomoomodelopropostoporaquelesautores.É,porém,possívelqueasestruturascirculares,emformadefrancela,pudessemtersidodeapoioaumaestruturadeprensaporfusoquefuncionariatodaemmadeira.

Asestruturasdelagaremmadeiraqueerammontadossobreestasbasesgraníticasdeveriamserremovidasnofimdecadacicloagrícola,paraquenãosedegradassemporexposiçãoàscondi-çõesclimatéricas,istoadmitindoqueemredordestasestruturasnãoseriamerigidosedifíciosqueprotegessemtodooconjunto.Refira-seapropósito,quenenhumdoscasosestudadossepôdeconstataraexistênciadequaisquervestígiosquepudéssemosrelacionarcomedifícios.TambémAlmeida, Antunes e Faria (1999, p. 100) admitem que os elementos em madeira destes lagaresfossemmontadosemcadaumdosciclos.

Sãorarasasmençõesdocumentaisàspartesconstituintesdoslagaresrupestres,masnumdosdocumentosestudadosporAndrésBarrioparaaregiãodeLaRiojaéreferidaavenda,em1082,deumlagaremBobadilla,queumcasalfazaoMosteirodeSanMillán.Nodocumento,olagarédescritocomo“uno troliare complito, cum sua pila et omnia causa”.Depreende-sedestareferênciaqueo lagareraefectivamenteconstituídoporduaspartes.Seriaaexpressãoomnia causa referenteàmaquinariademadeiraeapilaàbaseempedra?(AndrésBarrio,2006,p.2).

Nostrabalhosdecampoefectuadostambémnãoforamencontradospedrasdelagarseme-lhantesàquelaqueérepresentadanasFigs.1e2.Estefactopodeserexplicadodeduasformas.Aprimeirapartedoprincípioqueesteselementospétreosforamsistematicamentereaproveitados.Asegundaavançacomapossibilidadedeumsistemaalternativoàspedrasdelagartradicionais;estaspoderiamsersubstituídasporbolsasemcordaqueestariampresasàextremidadeproximaldavaradelagar,enasquaissedepositavampedrasavulsasatécriaropesosuficienteparaaprensagem.ComoaspedrasdelagarpodemaindahojeseridentificadasemalgunssítiosromanosnaBeiraédifíciladmitirqueemtodososcasosestudadosessaspedrasdelagarpossamtersidoreaproveita-das.Osistemado“sacodepedras”implicavanãosóuminvestimentomenorpornãoexigirotalhedapedradelagar,mastambémummanuseamentoexpedito.Noentanto,édeadmitirquetenhamcoexistido estes dois sistemas e outros que ainda não conseguimos vislumbrar o seu modus operandi.

Apósosprocessosdepisaeprensa,quandoestaeraaplicada,omostoseriatransportadoparaoutrasinstalações,cobertas,paraqueseprocessasseafermentação.Estasinstalações,quepode-mos,denominardeadegas,deviamsituar-sejuntodashabitações,noscasosdoscasais,emesmodentrodaspovoações,nocasodopovoamentomaisconcentrado.Comotempo,asadegase,maistarde,oslagares,passamaocuparumapartedacasa,desenhando-seoquehojeconhecemosdacasatradicionalbeirã.

3. Descrição das estruturas

Osdiversoslagaresestudadosadianteenumeradosestãoorganizadosporfreguesiaeconce-lho,efectuando-separacadaumumadescriçãodassuascaracterísticasedaseventuaisinforma-çõesdocumentaisearqueológicasquesepossamdirectamenteassociaraessasestruturas.

Page 5: Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente ...patrimoniocultural.gov.pt/media/uploads/revistaportugu...2018/03/01  · Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente

Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente noroeste da Serra da Estrela Catarina Tente

REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 345-366 349

3.1. Castelo (Arcozelo da Serra, Gouveia)

Na área interna de um povoado fortificado foiidentificado este lagar, que resulta da adaptação deumadastrêssepulturasescavadasnarocha,aílocali-zadas.

Neste povoado, que se encontra na confluênciadaRibeiradeBococomaRibeiradeGouveia,afluentedirectodoMondego,foramidentificadosàsuperfíciecerâmicasproto-históricasealto-medievais.Aparente-mente,parecetratar-seserumsítiofortificadoduranteaProto-História,quedeverátersidoabandonadonoespaçodetempoquemedeiaoiníciodaromanizaçãoe a Alta Idade Média, para ser novamente ocupadoquandoainstabilidadedazonaimpeliuapopulaçãoaprocurarlocaiscomcaracterísticasmaisdefensivas.

Atransformaçãodasepulturaemlagarlevantaoproblema da cronologia deste tipo de estruturasprodutivas. As sepulturas escavadas na rocha devemser contemporâneas da reocupação habitacional dopovoado durante a Alta Idade Média, mais precisa-mente entre os séculos VIII e X (Tente, no prelo).Olagarterádesernecessariamenteposterior.Aques-tãoquesecolocaéquandosedáestatransformaçãodafuncionalidadedaestrutura.Quandofazsentidoqueumaestruturaclaramentefuneráriasejaadaptadaaumaestruturaparatransforma-çãodebensalimentares?

3.2. Lágeas (Arcozelo da Serra, Gouveia)

NosítiohojedenominadodeLágeasforamidentificadoscincolagaresescavadosemaflora-mentosqueocupamumaáreadecercade500m2.Trata-sedoconjuntodemaiordimensão,oquepodeindiciaraexistênciadeumaáreaespecíficadentrodeumapropriedadededicadaexclusiva-menteàtransformaçãodeprodutosagrícolas.

EstelocalécontíguoaoquehojesedenominadepropriedadedoAljão,masestavanoséculoXIIintegradonessapropriedade1.Emdocumentodatadode1141(?),queserefereàdoaçãodeumoitavodavilla de AldiamquePaioEneguizesuamulherfazemaoMosteirodeSantaCruzdeCoim-bra(VenturaeFaria,1990,p.184-186),existemalgunspormenoresrelativosaosrecursosdestapropriedade:

…Damus et concedimus vobis canonicis Sancte Crucis ipsam villam nomine Aldiam sicut jam diximus cum suis domibus, vineis, terris cultis et incultis, montibus et fontibus, pascuis, molinis et sedibus molina-rum et per ubi illa potueritis invenire…

ApropriedadedoAljãocontinhaparaalémdocasario,vinhas,camposdepasto,montesefontes,terrascultivadaseincultasemoinhos,distinguindoodocumentomolinis et sedibus molina-

Fig. 2 LagardoCastelo.

Page 6: Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente ...patrimoniocultural.gov.pt/media/uploads/revistaportugu...2018/03/01  · Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente

Catarina Tente Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente noroeste da Serra da Estrela

REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 345-366350

rum.ÉprovávelqueodocumentosepossareferiraoconjuntodelagaresdasLágeas.Areferênciaaocultivodavinhanapropriedadedeixaanteverquealgunsdesseslagaresdeveriamestarrelacio-nadoscomatransformaçãodauva.

O lagar1éumaestrutura sub-rectangularaoqual estáassociadoumpiobemdefinidoecompleto.Aestrutura2éconstituídapordoislagarescirculares,queapresentamaformadefran-celasduplas,comumadimensãobastantereduzidafaceaosoutroslagaresdesteconjunto.

Fig. 3 Lagar1dasLágeas. Fig. 4 Lagar2dasLágeas.

Fig. 5 Estrutura3dasLágeas.

Page 7: Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente ...patrimoniocultural.gov.pt/media/uploads/revistaportugu...2018/03/01  · Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente

Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente noroeste da Serra da Estrela Catarina Tente

REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 345-366 351

Aterceiraestruturaéconstituídaporumlagardeformarectangular,associadoaumpiosub-quadrangularnocentrodoqualfoiescavadoumapequenacovaredonda,quepodeserinterpre-tadocomoreceptáculoúltimodelíquidosparaaíescorriampermitiralimpezadopio.Sãoconhe-cidosexemplosdeconcavidadescomoestanoslagaresestudadosporAntuneseFaria(2002,p.68).Olagarapresentaaindadoseuladodireitoumaoutrapia,deprofundidadereduzida,quecomu-nicaporcanalcomopio,sendodifícilatribuir-lheumafunçãoespecífica.Doladodestafoiaindaregistadoumburacodepostequepoderiaservirdeapoioaumavaradelagarmasnãoseidentifi-couoseupar.

Oquarto lagaréumaestruturabastantecomplexa.Consistenumcorpocentralde formasub-rectangularquecomunicadirectamenteporcanalcomumpio(lacus)completoebemdefi-nido. Associada a este corpo está um outro lagar de forma circular, semelhante aos lagares daestrutura 2, e que tem ligação com o pio. Vários outros elementos foram escavados em redor,nomeadamenteoquepareceseroesboçardeumoutrolagarcircularmascujocanalfoiescavadoemdirecçãocontráriaaoconjuntoequenãoconduzanenhumreceptáculo.Épossívelqueestaestruturanuncatenhasidoterminada.Doladoesquerdodolagarrectangularépossívelidentifi-carumburacodeposte,quetalcomooburacoidentificadonaestrutura3,nãotemoseuparparaapoiaroquepoderiaserumavaradelagar.Identificou-seaindaumburacodepostenoextremoinferior da estrutura, que poderia ter tido como função o apoio de alguma superestrutura emmadeira que estivesse associada a um sistema de prensagem diferente daquele proposto porAlmeida,AntuneseFaria(1999).

Aterceiraestruturaéconstituídaporumlagardeformarectangular,associadoaumpiosub-quadrangularnocentrodoqualfoiescavadoumapequenacovaredonda,quepodeserinterpre-tadocomoreceptáculoúltimodelíquidosparaaíescorriampermitiralimpezadopio.Sãoconhe-cidosexemplosdeconcavidadescomoestanoslagaresestudadosporAntuneseFaria(2002,p.68).Olagarapresentaaindadoseuladodireitoumaoutrapia,deprofundidadereduzida,quecomu-nicaporcanalcomopio,sendodifícilatribuir-lheumafunçãoespecífica.Doladodestafoiaindaregistadoumburacodepostequepoderiaservirdeapoioaumavaradelagarmasnãoseidentifi-couoseupar.

Oquarto lagaréumaestruturabastantecomplexa.Consistenumcorpocentralde formasub-rectangularquecomunicadirectamenteporcanalcomumpio(lacus)completoebemdefi-nido. Associada a este corpo está um outro lagar de forma circular, semelhante aos lagares daestrutura 2, e que tem ligação com o pio. Vários outros elementos foram escavados em redor,nomeadamenteoquepareceseroesboçardeumoutrolagarcircularmascujocanalfoiescavadoemdirecçãocontráriaaoconjuntoequenãoconduzanenhumreceptáculo.Épossívelqueestaestruturanuncatenhasidoterminada.Doladoesquerdodolagarrectangularépossívelidentifi-carumburacodeposte,quetalcomooburacoidentificadonaestrutura3,nãotemoseuparparaapoiaroquepoderiaserumavaradelagar.Identificou-seaindaumburacodepostenoextremoinferior da estrutura, que poderia ter tido como função o apoio de alguma superestrutura emmadeira que estivesse associada a um sistema de prensagem diferente daquele proposto porAlmeida,AntuneseFaria(1999).

Fig. 6 Estrutura4dasLágeas.

Page 8: Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente ...patrimoniocultural.gov.pt/media/uploads/revistaportugu...2018/03/01  · Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente

Catarina Tente Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente noroeste da Serra da Estrela

REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 345-366352

3.3. Clergo (Nespereira, Gouveia)

Pequenolagarcircularescavadonumaflora-mento granítico, localizado próximo da actualaldeiadeNespereira,concelhodeGouveia.Aáreaquepoderemosconsiderarcomodestinadaàpisaouprensagemépoucoprofunda,eocanaldeesco-amento não direcciona para nenhuma cuba empedra;masaformadoafloramentoondefoiesca-vado permite que fosse aplicado um receptáculoamovível, para onde escorreria os líquidos resul-tantesdaprensagem.

3.4. Quinta da Trêmoa (Nespereira, Gouveia)

JuntodaantigaEstradaRealdaBeira,actualEN17,foramidentificadosdoislagaresescava-dosemafloramentosgraníticoscontíguos.Trata-sededoislagaresdeformapredominantementerectangular.Aspiasparapisaencontram-seassociadasacanaisdeescoamentooubicaseapiosempedrabemdefinidos,deformasemicircular,comprofundidadessemelhantesàspiasparaapisa.Não foi possível identificar qualquer outra estrutura em negativo que suportasse as traves oupostesassociadosàprensagem.

Fig. 7 LagardoClergo.

Fig. 8 LagaresdaQuintadaTrêmoa.

Page 9: Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente ...patrimoniocultural.gov.pt/media/uploads/revistaportugu...2018/03/01  · Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente

Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente noroeste da Serra da Estrela Catarina Tente

REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 345-366 353

3.5. Barreiras (Paços da Serra, Gouveia)

Trata-se de um lagar escavado emafloramento granítico, localizado numaáreadelameiro,ondeforamtambémiden-tificadas duas sepulturas escavadas narocha. O lagar apresenta uma pia de pisa(calcatorium) rectangular, que se encontrafragmentada em duas zonas. A esta estáassociada um canal de escoamento bemdefinidoeumapequenacuba(lacus)circu-lar.Doladodireitodestafoiescavadaumaestruturasub-rectangular,masque,aparen-temente,nãofuncionariacomoreceptáculodoslíquidosdapisajáquenãotem,presen-temente,qualquervestígiodecomunicaçãodirecta com a pia de pisa. É provável quepudesse,alternativamente,funcionarcomouma base de apoio a uma qualquer estru-turaamovívelassociadaaolagar.

3.6. Penedo da Marreca (Vila Nova de Tázem, Gouveia)

Foraminsculturadosnummesmopenedodegranitoquatrocruciformes,sendoqueuméumacruzpotenteia,ouseja temasextremidadesbarradas, letraseumapequena lagareta.Estaencontra-seinacabada;oscanaisparaescoamentodelíquidossóchegaramaserdelineados.Nãoépossívelrelacionardirectamentetodososelementosinsculturadosnopenedo;noentanto,évero-símilasuarelaçãotemporal.UmaeventualcontemporaneidadepermitiriaintegrarestaestruturadelagaretainacabadajánaIdadeModerna.

Fig. 9 LagardasBarreiras.

Fig. 10LagardoPenedodaMarrecacomrepresentaçãodascruzeseletrasaeleassociadas.

Page 10: Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente ...patrimoniocultural.gov.pt/media/uploads/revistaportugu...2018/03/01  · Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente

Catarina Tente Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente noroeste da Serra da Estrela

REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 345-366354

3.7. Mário Figueira (Vila Franca da Serra, Gouveia)

Trata-sedeumlagardegrandedimensão,comumaformapredominantementequadrangu-lar,aoqualestáassociadoumpiodedimensãoreduzidafaceaoconjunto.Àpiaeaopioestáasso-ciadoumpardeburacosdepostedeformarectangularededimensõessemelhantesentresi.Naparteinferiordapiadepisafoidefinidoumrebordorebaixadoquepermitiaummelhordireccio-namentodoslíquidosresultantesdaprensagemparaocanaldeescoamentoqueligaaopio.Naáreainferiordaestruturafoiaindaescavadaumapiaquadrangulardegrandedimensãomascujaprofundidadeévariável,talcomosepodeconstatarnoperfilapresentado.Asuaformapermitesuporquepoderátertidocomofunçãooapoioaumaestruturaamovível,talcomoumacubademadeira, onde fosse possível ir depositando o líquido que escorria para um pequeno pio depedra.

3.8. Quinta dos Botos (Vinhó, Gouveia)

Numaáreaaplanadafoiidentificadaumaestruturadelagarqueseencontrafragmentado,nãotendosidopossíveloseucompletolevantamentográfico.Apresentaduaspiasparaprensagemoupisa,umadeformarectangulareoutracircularquecomunicadirectamenteatravésdeumabicacomaprimeira.Naparteinferiordesteconjuntoforamidentificadasoutrasduaspias,umadasquaisprofunda,quedeveriafuncionarcomopio,eoutra,semicircular,depoucaprofundidadeequeseencontraacopladaàanterior.Nãoéfácildescortinarasuafuncionalidade.

Fig. 11 LagardaQuintadoMárioFigueira.

Page 11: Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente ...patrimoniocultural.gov.pt/media/uploads/revistaportugu...2018/03/01  · Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente

Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente noroeste da Serra da Estrela Catarina Tente

REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 345-366 355

3.9. Forca (Açores, Celorico da Beira)

Aslagaretas,dadasaconhecerporValeraeMartins(1993),devemterdadootopónimoaestelocal,porteremsidocertamenteconfundidascomentalhesparaacolocaçãodepostesdeforcas.Essas estruturas escavadas na rocha são igualmente conhecidas nestes territórios, pelo que écomumalgunsentalhesexistentesemrochasseremapelidadosdeburacosdeforca,aindaquenemtodostenhamtidoessafunção.Nestecaso,trata-sededoislagaresescavadosemafloramentosdegranito,quedistamentresicercade30m.

Oprimeiroéumaestruturamuitosimples,naqualseidentificaumapiacomumaformairregular,àqualestáassociadoumpardeburacosdepostededimensõesdiferentesedeplantacircular.Éprovávelqueestaestruturapossanuncatersidousadacomolagar, jáqueapianãoapresentaumainclinaçãoquepermitissequalquerescoamentode líquidos,nemtemassociadoqualquercanalparaesseefeito.Umadasseguinteshipótesespareceserplausível:ousetratadeumlagarmuitorudimentarquenuncachegouaserterminado,ounãofoilagar,massimumaoutraestruturaescavadanarocha,cujafunçãoestariarelacionadacomadeposiçãodelíquidoseàqualestariaassociadaumaestruturaqueassentavaemburacosdeposte,talvezumacobertura.

Fig. 12 LagardaQuintadosBotos.

Page 12: Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente ...patrimoniocultural.gov.pt/media/uploads/revistaportugu...2018/03/01  · Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente

Catarina Tente Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente noroeste da Serra da Estrela

REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 345-366356

AsegundaestruturadaForcaassemelha-seaumlagardetipocircular,aindaqueapiaapre-senteumaformamuitoirregular.Naparteinferiordapiadepisa,foiescavadoumcanaldeescoa-mento que permitia associar a uma cuba amovível, que recolheria o resultado da prensagem.Devidoaotamanhoeàforma,nãoédedescurarahipótesedestaestruturaresultardatransforma-çãodeumasepulturaescavadanarocha.

3.10. Sarrado (Aldeia Rica, Celorico da Beira)

Junto da Aldeia Rica foram identificadosdois lagares de grande dimensão que distamentre si cerca de 200 m. O primeiro lagar, degrande dimensão, apresenta uma pia para pisade formasubquadrangulare foiescavadonumafloramentograníticoaltoeocupapraticamentetodooseutopo.Olíquidoresultantedaprensa-gemeraescoadoporumabicabemdelineadaelonga,queescoariaparacubasamovíveisquesepoderiamcolocarpordebaixodestabica.Àpiadeprensagemestáassociadoumpardeburacosdepostedeformasub-rectangularcomdimen-sõessimilares.

Olagar2apresentaumamenordimensãoface ao anteriormente descrito, mas tem umapiadepisacomumaformasemelhanteeestáassociado igualmenteaumpardeburacosdeposte de forma rectangular. Na parte inferiordapia,hojebastantefragmentada,identificou--se uma cuba de grande proporção, mas cujoregisto total foi impossibilitado devido aoestado de conservação da mesma. Junto dosburacosdeposteforamaindaescavadasoutrasestruturasemnegativo,quedevempertenceraoconjuntoqueserviriadeapoioàvaradelagar.

Fig. 13 Estrutura1daForca. Fig. 14 Estrutura2daForca.

Fig. 15 Lagar1doSarrado.

Page 13: Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente ...patrimoniocultural.gov.pt/media/uploads/revistaportugu...2018/03/01  · Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente

Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente noroeste da Serra da Estrela Catarina Tente

REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 345-366 357

3.11. Quinta da Fidalga (Linhares, Celorico da Beira)

NapropriedadedaQuintadaFidalga,localizadanosopédomonteondefoiimplantadooCastelodeLinhares,foramidentificadosdoislagarescompiasdepisadeformaquadrangular,àsquaisestãoassociadosparesdeburacosdepostedeformarectangularecubasparaescoamento.

Fig. 17 Lagar1daQuintadaFidalga.

Fig. 16 Lagar2doSarrado.

Page 14: Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente ...patrimoniocultural.gov.pt/media/uploads/revistaportugu...2018/03/01  · Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente

Catarina Tente Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente noroeste da Serra da Estrela

REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 345-366358

Olagar2temaparticularidadedeterescavadoumburacodepostenocentrodapiadepisa.Trata--sedecasoúniconoconjuntoestudado.Pressupõe-sequeasuafunçãoestivesseassociadaaumapoiosuplementardaestruturaondeassentaavaradelagaroueventualmente,poderiasuportarumaescoradamesma.

3.12. Ratoeira (Ratoeira, Celorico da Beira)

Na aldeia da Ratoeira foi identificadoumgrandelagarcompiadepisaquadrangu-lar(ValeraeMartins,1993,p.275).Omesmoapresentaumcanaldeescoamentobemdefi-nido e longo, que escoaria para uma cubaamovível.Aestapiadepisaestáassociadoumpardeburacosdepostedeformarectangularcomtamanhossimilares.

Fig. 18 Lagar2daQuintadaFidalga.

Fig. 19 LagardaRatoeira.

Page 15: Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente ...patrimoniocultural.gov.pt/media/uploads/revistaportugu...2018/03/01  · Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente

Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente noroeste da Serra da Estrela Catarina Tente

REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 345-366 359

3.13. Colícias (Vale da Ribeira, Celorico da Beira)

A sepultura 2 da necrópole de onze sepulturas escavadas narocha com o mesmo nome foi transformada em lagar através daabertura de um orifício na parte inferior da mesma. Anexa a esteorifício,quefuncionavacomobica,foiescavadaumaáreaexteriorqueserviriadeapoioaumreceptáculodeslocávelparaoqualescoa-riaolíquidoprovenientedapisa.

Maisumavezsecolocaaquestãodacronologiadestasestrutu-ras,jáqueanecrópoledeveriatersidohámuitoabandonadaparaquesepudessetransformarumadassuassepulturasemlagar.Pres-supõe-seaindaqueeranecessárionãosóanecrópolejánãoestaremutilização como não existir qualquer relação sentimental comaqueleespaçofunerário,paraquetaltransformaçãoocorresse.

3.14. Tapada das Pedras (Vale da Ribeira, Celorico da Beira)

Entreassepulturas3e4danecrópoledaTapadadasPedras,foiidentificadoumlagarcircu-larescavadonumafloramentogranítico.

Oproblemadascronologiasedaassociaçãoespacialdirectaentrelagaresesepulturasescava-dasnarochacoloca-seigualmentenestasituação.Todavia,contrariamenteaoqueocorrecomassepulturasquesãotransformadasemlagares,aquiháahipótesedeolagarpodersermaisantigodoqueanecrópole.Nessecaso,épresumívelquenomomentodeiníciodautilizaçãodesteespaçocomolocalfunerário,aestruturajánãotivesseserventia.Étambémverosímilqueestaestrutura,emformadefrancela,possaestardirectamenteassociadaàutilizaçãodanecrópoleeaosrituaisquenormalmenteacompanhamasinumaçõesdecorpos,comoasuaalavagem,preparaçãoeliba-ções.Comopossuicaracterísticasdelagar,nãoédescabidoesperarquepudesseefectivamenteserumaestruturamaisantigaquepodetersidoreaproveitadaparaessasfunções.Menosprováveléqueamesmapossatersidoesculpidaintencionalmenteparacumpriressafuncionalidade,poisconhecem-seoutroscasosdepiasescavadasnarochajuntoanecrópolesenãoapresentamformadelagares!

Fig. 20 LagardasColícias.

Fig. 21 LagardaTapadadasPedras. Fig. 22 LocalizaçãodolagardaTapadadasPedrasesuarelaçãoespacialcomassepulturasescavadasnarocha.

Page 16: Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente ...patrimoniocultural.gov.pt/media/uploads/revistaportugu...2018/03/01  · Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente

Catarina Tente Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente noroeste da Serra da Estrela

REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 345-366360

3.15. Tapada do Bufo (Vale de Azares, Celorico da Beira)

NoespaçoocupadopelanecrópoledaTapadadoBufo,foramidentificadasduasestruturasrupestresdelagares.Umaresultadatransformaçãodeumasepulturaantropomórficadecantossub-rectangulares, na qual foi escavado um orifício e uma cuba em pedra na parte inferior dasepultura.Devidoaoestadodefracturadesta,nãofoipossívelobterassuasdimensõestotais,maséprovávelqueservisse,nãocomopiopropriamentedito,masantescomoumespaçodeapoioaum receptáculo removível. Um segundo lagar subquadrangular foi identificado junto a outrasepulturadestanecrópole.Nãoforamidentificadosburacosdeposteassociadosaolagar.Abicafoibemdelineadaeacubaempedrabemdefinida,apesardeapresentarumadimensãomodesta.Talcomonolagar1,talvezestepioservissemaiscomoapoioaumacubademadeiraouaumvasi-lhamecerâmico.

Maisumavezsecolocaaquestãodarelaçãocronológicaentreestasestruturasfuneráriaseasuaposteriortransformaçãoemestruturastransformadorasdebensalimentares.

4. Proposta de tipologia

No grupo de lagares estudados, existe uma grande variedade formal, que nem sempre seenquadranomodelobaseapresentadonoponto2desteartigo.Efectivamente,daanálisedoslaga-resaquidescritos,épossíveldelinearumapropostadetipologiadestasestruturas(quesebaseianasuaformaedimensão),equeseencontrasistematizadaemtabelaegráficoapresentadosinfra,ecujostipossepodemdefinircomoserefereemseguida.

Fig. 23 Lagar1daTapadadoBufo. Fig. 24 Lagar2daTapadadoBufo.

Page 17: Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente ...patrimoniocultural.gov.pt/media/uploads/revistaportugu...2018/03/01  · Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente

Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente noroeste da Serra da Estrela Catarina Tente

REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 345-366 361

Tabela 1. Tipologia e dimensões dos lagaresDesignação Tipologia Piadepisa(m2)** Cuba(m3)** Buracodeposte Buracodeposte esquerdo** direito**

Castelo Aproveitamento de sepultura 2,90 x 0,46 = 1,33 0,36 x ? x 0,30 = ? S/ S/

Lágeas 1 Lagar Rectangular 2,80 x 0,47 = 1,31 0,50 x 0,60 x 0,23 = 0,07 S/ S/

Lágeas 2 Lagar Rectangular 3,40 x 0,54 = 1,83 0,63 x 0,78 x 0,28 = 0,07 S/ S/ Circular 0,65 x 0,70 = 0,45

Lágeas 3 Lagar Rectangular 2,80 x 0,44 = 1,23 0,60 x 1 x 0,42 = 0,25 0,12 x 0,12 x 0,09 S/ Circular 0,60 x 0,70 = 0,42

Lágeas 4 Lagares Circulares 0,65 x 0,75 = 0,48 0,67 x 0,69 = 0,46 S/ S/ S/

Clergo Lagar Circular 0,48 x 0,38 = 0,18 S/ S/ S/

Quinta da Trêmoa 1 Lagar Rectangular 2,74 x 0,46 = 1,26 0,46 x 0,52 x 0,26 = 0,06 S/ S/

Quinta da Trêmoa 2 Lagar Rectangular 2,58 x 0,46 = 1,18 0,76 x 0,74 x 0,22 = 0,12 S/ S/

Barreiras Lagar Rectangular 2,75 x 0,58 = 1,59 0,50 x 0,48 x 0,26 = 0,06 S/ S/

Penedo da Marreca Lagar Circular (inacabado?) 0,62 x 0,80 = 0,52 S/ S/ S/

Mário Figueira Lagar Quadrangular 2,25 x 3,15 = 7,08 0,40 x 0,58 x 0,23 = 0,05 0,46 x 0,18 x 0,26 0,58 x 0,26 x 0,28 1,12 x 1,33 x 0,40 = 0,64

Quinta dos Botos Lagar Rectangular 2,70 x 0,63 = 1,70 1,0 x 0,85 x 01,56 = 1,51 S/ S/ Circular

Forca 1 Lagar Circular (?) 0,70 x 1,20 = 0,50 S/ 0,16 x 0,16 x 0,12 0,44 x 0,25 x 0,20

Forca 2 Lagar Circular 1,65 x 0,60 = 0,99 S/ S/ S/

Sarrado 1 Lagar Quadrangular 2,32 x 3,15 = 7,30 S/ 0,44 x 0,20 x 0,22 0,50 x 0,24 x 0,16

Sarrado 2 Lagar Quadrangular 2,60 x 2,20 = 5,72 1,30 x 1,68 x 0,32 = 0,69 0,54 x 0,18 x 0,30 0,64 x 0,24 x 0,23

Quinta da Fidalga 1 Lagar Quadrangular 2,95 x 2,60 = 7,67 ? X2,40 x ? = ? 0,24 x 0,17 x 0,18 0,26 x 0,20 x 0,20

Quinta da Fidalga 2 Lagar Quadrangular 2,44 x 2,30 = 4,92 ? X1,68 x 0,89= ? 0,52 x 0,25 x 0,16 0,46 x 0,24x 0,26

Ratoeira Lagar Quadrangular 2,40 x 1,87 = 4,48 S/ 0,54 x 0,25 x 0,13 0,46 x 0,22 x 0,13

Colícias Aproveitamento de sepultura 1,72 x 0,48= 0,82 ? X0,18 x ? = ? S/ S/

Tapada das Pedras Lagar Circular 0,40 x 0,58 = 0,23 S/ S/ S/

Tapada do Bufo 1 Aproveitamento de sepultura 1,78 x 0,50 = 0,89 S/ S/ S/

Tapada do Bufo 2 Lagar Quadrangular 2,10 x 1,50 = 3,15 0,54 x 0,62 x 0,37 = 0,12 S/ S/

* Comprimentoxlargura**Comprimentoxlarguraxprofundidade

Gráfico 1 Dimensõesetiposdelagares.

Page 18: Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente ...patrimoniocultural.gov.pt/media/uploads/revistaportugu...2018/03/01  · Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente

Catarina Tente Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente noroeste da Serra da Estrela

REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 345-366362

Lagar rectangular ou sub-rectangularTrata-sedelagarescujapiadepisaapresentaumaformarectangularousub-rectangularàqual

está,namaioriadoscasos,associadoumpioempedraligadoàpiaatravésdecanaisdeescoamento.Aestetipodeestruturasnãoseassociam,normalmente,buracosdeposteemparesquepudessemsuportarumsistemadelagardetipotorcularium.Éprovávelque,nestelagar,apisafosserealizadaporpéhumanoeumaúltimaprensagemfosseefectuadanoutrotipodeestrutura,istoadmitindoqueseprocurariaquenãohouvessedesperdíciodeuva.Esteslagaresnãoapresentamumaáreaparaapisamuitogrande,peloqueamesmadeveriaserefectuadaporumapessoa,nomáximoduas.Inserem-senestetipooslagares1,2e3dasLágeas,osdoisdaQuintadaTrêmoa,olagardasBarrei-raseodaQuintadosBotos.

Lagar resultante do aproveitamento de uma sepulturaEstegrupo,naverdade,deveserconsideradosubtipodoslagaresrectangularesousub-rectan-

gulares.Emtermosdemorfologia,todososlagaresresultantesdaadaptaçãodesepulturasescavadasnarochaemlagaresapresentamumaformarectangularousub-rectangularedeveriampartilharcomessesamesmatecnologiadetransformaçãoaelesassociada.ForamidentificadosnestegrupooslagaresdeCastelo,daTapadadoBufo1,dasColíciase,eventualmente,olagar2daForca.

Lagar quadrangular ou subquadrangularEsteslagaresapresentamumapiadepisadegrandedimensãocomumaformaquadrangular

ousubquadrangular,depoucaprofundidade,talcomosepodeobservarnoQuadro1eGráfico1.Aestapiaestásempreassociadoumpardeburacosdeposte,normalmenterectangularesousub--rectangularesecomdimensõessimilaresentresi.Apresentamdorebordodapiadepisadistânciassemelhantes.Namaioriadoscasosestudados,oslagaresestãoassociadosapiosdepedradedimen-sãovariável,aindaquehajacasosemquenãofoiescavadonenhumpio,situaçõesemqueéprová-velquelhesfossemassociadosvasilhamesamovíveispararecolheromosto.Aesteslagaresestavaassociadaumaestruturademadeiraquesuportariaavaradelagar,a“pedradelagar”,oscontra-pesos,etc.EsteéotipoqueseencaixanomodeloteóricoapresentadoporAlmeida,AntuneseFaria(1999),aindaqueemnenhumdosestudadostenhamsidoidentificadasestruturasnegativasparasuportarumaescoraparaavaradelagar.Épossívelqueasescoras,ateremexistidonesteslagares,fossem suportadas de uma forma que não se tivesse de recorrer a encaixes na rocha, tal comoocorreparaospostesdeapoiodavaradelagar.Doslagaresestudados,inserem-senestetipoosidentificadoscomoMárioFigueira,Sarrado1e2,QuintadaFidalga1e2,RatoeiraeTapadadoBufo2.

Lagar circularDe um modo geral, apresentam uma pia circular ou semicircular, com dimensões muito

modestas,talcomosepodeconstatar,quernatabelaquernográfico.Namaioriadoscasosestu-dados, os lagares circulares apresentam uma forma semelhante a uma francela. Estes lagarespodemocorrerisolados,associadosentresi,comonolagar4dasLágeas,oucomlagaresrectangu-lares,comosãooscasosdoslagares2e3identificadosnasLágeaseodaQuintadosBotos.

Nestegrupo,podemosaindainserirolagardoClergo,opossívellagar1daForca,aestruturadaTapadadasPedraseolagarinacabadodoPenedodaMarreca.

Aformadesteslagareseasuaconstanteassociaçãoalagaresrectangularessugerequeambosrepresentariam fases diferentes na extracção do mosto. A primeira transformação dar-se-ia noslagaresrectangularesatravésdapisa,sendoasegundaprensagemefectuadanumaprensaporfuso,

Page 19: Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente ...patrimoniocultural.gov.pt/media/uploads/revistaportugu...2018/03/01  · Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente

Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente noroeste da Serra da Estrela Catarina Tente

REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 345-366 363

amovível.Aprensaporfusodeveriaseremmadeira,sendoatinaconstituídaportábuasnaverticaljuntascertamenteporanéisdemetal,porentreasquaisescorreriaolíquidoresultantedaprensadefuso.Atinaeoaparelhodeprensagemassentarianolagarcircular,oqualerareceptáculoparaomostoe,atravésdossulcosescavadosnapedra,dirigiriaesteparaoutroreceptáculo,certamenteamovível.

5. Principais limitações e possíveis conclusões

A falta de contextos arqueológicos que possibilite a obtenção de mais informação para oestudo da forma de funcionamento e cronologias destas estruturas rupestres, aliada à escassainformaçãodocumentalsãoasprincipaislimitaçõesparaasustentaçãodenovaspropostascrono-lógicasefuncionais.

Nãoobstanteessaslimitações,algumainformaçãosevaiconseguindocompilar,ealgumasconclusõessãopassíveisdeserretiradasquandosefazemestudosmaisexaustivosdeconjuntosalargados,comooqueaquiseapresenta.São,contudo,conclusõesquedificilmentepoderãosergeneralizadas.

Aprimeiragrandeconclusãoprende-secomaevidentemultiplicidadedeformasesoluções,asquais,todavia,seconseguemencaixaremquatrograndestipos.Estesnãodevemserassociadosacronologiasdiversas,jáqueéfrequenteidentificarmosconjugaçõesdediversostiposnomesmosítio,comoacontecedeformaevidentenasLágeas.Amorfologiaestariacertamentemaisrelacio-nada com o modo de funcionamento do lagar. Apenas no grupo dos lagares quadrangulares esubquadrangulares,podemossuporautilizaçãodeumsistemadeprensaporalavanca;nosrestan-tesémaisverosímilqueaobtençãodomostoseprocessasseessencialmenteatravésdapisahumana,emconjugação,emalgunscasos,comumaprensadefuso,deacordocomapropostaqueapresen-tamosparaomododefuncionamentodoslagarescirculares.Asestruturas3e4dasLágeassãoexemplo deste tipo de sistemas mistos. Mas, mesmo nos casos dos lagares quadrangulares esubquadrangulares, a prensagem através do sistema de madeira só deveria ser aplicada após aprimeirafasedeextracçãodemosto,atravésdapisaporpéhumano,paraassimobterummaioraproveitamentodauva.Nãosabemosseseprocederiaounãoàmisturadosmostosobtidospelosdoismétodos.EntreosRomanos,apráticadeveriaseradasuanão-junção,recomendaçãojáefec-tuadaporPlínio,poisogostodosmostosnãoeraigual(Brun,1997,p.149).

Asegundaconclusãoprende-secomacronologia.Desdelogosedestacaofactodenãoteremsidoidentificadosquaisquervestígiosarqueológicosdatáveisdeépocaromanaquepudessem,even-tualmente,estarassociadosaesteslagares.Empoucoscasosfoipossívelobservaraocorrênciademateriaiscerâmicosalto-medievaisnasimediaçõesdospenedosondeforamescavadasestasestru-turas.Asituaçãomaiscomumé,noentanto,ainexistênciadequalqueroutrovestígioarqueológico,paraalémdasestruturasemnegativoesculpidasnarocha.NocasodeLaRiojaedaCatalunha,conhecem-sereferênciasdocumentaisaestetipodelagaresdesdeoséculoX,oumesmoIX,sendoqueamaioriadasmençõesdatadosséculosXIaXIII(AndrésBarrio,2001,p.152-153).Admite-secomohipótesedetrabalhoqueestascronologiaspossamserconsideradastambémparaalgunsdoslagaresestudados.

Todavia, a identificação de lagares resultantes da transformação de sepulturas medievaisescavadas na rocha, ou a coexistência espacial de lagares com necrópoles, leva a crer que, pelomenosalgumasdestasestruturas,serãomaistardiasqueaAltaIdadeMédia.Comefeito,sóapósaestabilizaçãodafronteiranoséculoXIcomeçaramaexistircondiçõesparaumaagriculturamais

Page 20: Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente ...patrimoniocultural.gov.pt/media/uploads/revistaportugu...2018/03/01  · Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente

Catarina Tente Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente noroeste da Serra da Estrela

REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 345-366364

estável, condição principal para a dedicação constante que uma vinha exigia. Mas proliferaçãodestasestruturaspeloscamposagricultadosdeveterocorridoapenasnaBaixaIdadeMédia.

Deve-se esperar igualmente que alguns lagares possam datar de Época Moderna ou quealguns deles, mais antigos, possam ter sobrevivido em actividade até essa época. São exemplosdessa permanência de utilização os lagares rupestres do século XVI documentados em Itália(AndrésBarrio,2001,p.155),ouoslagaresreferenciadosporAntuneseFaria(2002,p.67)nazonadaMedaequedatarãodoséculoXVII.Éverosímilque,àsemelhançadoqueocorreuemLaRiojaa partir do século XIII (Andrés Barrio, 2001, p. 154), alguns dos lagares estudados se tivessemtransferido na Baixa Idade Média para as aldeias, deslocação que ocorreria num contexto deconcentraçãoesenhoralizaçãodestasactividades.

Noqueserefereàfuncionalidademaisespecíficadestasestruturas,parecenãoserexpectávelqueasdiferentesformasdoslagaressepossamrelacionarcomtransformaçãodauvaoudaazei-tona.Omododefuncionamentoquesepresumeparaesteslagaresédifícildecompatibilizarcomossistemasutilizadosparaatransformaçãodaazeitona.Todasasestruturastêmumaáreaparaapisahumana,aqual,nocasodoesmagamentodaazeitona,sópodiaserefectuadacomorecursoatamancosdemadeira,técnicaqueterásidoabandonadaaindanoperíodoromano(Alarcão,1997,p.144).Faltamtambém,noregistoarqueológico,componentesespecíficosparaoesmagamentodaazeitona,elementos,comosejamamola oleariaouotrapetum,comoseumortariumdecolunanocentro(milliarium)(Alarcão,1997,p.145).

Fig. 25 Mapadelocalização:1–Castelo;2-5–Lágeas;6–Clergo;7-8–QuintadaTrêmoa;9–Barreiras;10–PenedodaMarreca;11–QuintaMárioFigueira;12–QuintadosBotos;13-14–Forca;15-16–Sarrado;17-18–QuintadaFidalga;19–Ratoeira;20–Colícias;21–TapadadasPedras;22-23–TapadadoBufo.(Tiposdelagares: rectangular;transformaçãodeumasepultura; quadrangular;circular).

Page 21: Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente ...patrimoniocultural.gov.pt/media/uploads/revistaportugu...2018/03/01  · Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente

Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente noroeste da Serra da Estrela Catarina Tente

REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 345-366 365

Assim,amaiorprobabilidadeéadeesteslagaresteremsidoutilizadosapenasnatransforma-çãodauva.Estaétambémaconclusãoquepodemosretirarsecruzarmososdadosdelocalizaçãoaltimétricadestes lagares (Mapa1)comosdadospublicadospor IsabelCastroPinana Encosta Ocidental da Serra da Estrela(1998,p.34-42).Segundooqueestaautorapôdeapurarnadocumen-taçãoqueestudouparaosséculosXIIIaXIV,“asvinhascultivavam-seportodaaparte,nãoultra-passando,noentanto,osnovecentosmetrosdealtitude”(p.34);nestaregião,“osvinhedos,concen-tram-se,sobretudoameiaencosta,entreos400eos500metros”(p.37).Efectivamente,nenhumdoslagaresidentificadossesituaacimados900m,estandoagrandemaioriasituadaentreos400eos600mdealtitude.

Um estudo mais atento da toponímia actual da vertente noroeste da Serra da Estrelapermiteigualmenteidentificarmuitostopónimosrelacionadoscomavideira,asvinhaseauva.Contrariamente,existemmuitopoucosrelacionadoscomaazeitonaouaoliveira,aindaque,pelomenosdesdeaBaixaIdadeMédia,sejafeitonestaregiãooseucultivoeasuatransformaçãoemazeite.IsabelCastroPinaapenasconseguiuidentificardoisolivais,oquealevaapresumirquehaveriaum“fracoíndicedeprodução”nestedomínio(Pina,1998,p.43).Admiteaautora,comtodaalógica,que,entreosoutroscultivosdemaiorimportância,deveriamexistiralgumasoliveiras, mas a sua ocorrência e quantidade não está documentada, presumindo-se que nãotivesseexpressão.

Aindaque, lamentavelmente,estasestruturasruraisnãosejamreferidasnadocumentaçãoestudada por Isabel Castro Pina, o que não nos permite tirar conclusões mais específicas, é desuporqueesteslagaresrupestressesituassemjuntodasvinhas,oquejustificaasuadisseminaçãopela paisagem rural visível actualmente na região. Em suma, lidamos com uma área parca emdocumentaçãoequenospermitemaisacolocaçãodehipótesesdoqueaafirmaçãodeconclusõesdefinitivas.Noestadoactualdosnossosconhecimentos,porém,nãoédeexcluirapossibilidadedeestarmosperanteasorigensda“regiãoDemarcadadoDão”.

Agradecimentos

Umespecialbem-hajaàminhacolegaeamigaAnaRitaMartins,quemeacompanhounamaioria dos levantamentos aqui apresentados. Agradeço ainda a colaboração em alguns doslevantamentos à Maria João Brun, ao Manuel Tente, ao Rui Cardoso e ao António FaustinoCarvalho.

NOTAS

* InstitutoPortuguêsdeArqueologia Estedocumentoébastanteprecisoquantoaoespaçoocupadopor1 OAljãoéreferidonumdocumentodatadode1140e1141 estapropriedadereferindocomolimitesperfeitamenteidentificáveis

(VenturaeFaria,1990,p.184-186),queserefereàvendadavilla de actualmenteaaldeiadoArcozelo,orioMondegoeoRioTorto

AldiamefectuadaporD.AfonsoHenriquesaGarciaeaPaioEneguiz. (Tente,2007).

Page 22: Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente ...patrimoniocultural.gov.pt/media/uploads/revistaportugu...2018/03/01  · Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente

Catarina Tente Lagares, lagaretas ou lagariças rupestres da vertente noroeste da Serra da Estrela

REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 345-366366

BIBLIOGRAFIA

ALARCÃO,J.de(1997)-Atecnologiaagráriaromana.InPortugal romano. A exploração dos recursos naturais.Lisboa:MNA,p.137-148.

ALMEIDA,C.B.de;ANTUNES,J.M.;FARIA,P.B.de(1999)-Lagarescavadosnarocha:umareminiscênciadopassadonatradiçãodatécnica

vinícolanovaledoDouro.Revista Portuguesa de Arqueologia.Lisboa.2:2,p.97-103.

ANDRÉSBARRIO,F.(2001)-Trujalesylagaresenladocumentaciónmedievalriojanaysurelaciónconloslagaresexcavadosenlaroca.Douro -

Estudos e Documentos.Porto.6:12,p.151-160.

ANTUNES,J.M.;FARIA,P.B.de(2002)-LagaresdoAltoDouroSul.Tipologiasetecnologia. Douro - Estudos e Documentos.Porto.7:14,p.65-77.

BROCHADO,C.L.(2001)-AlagaretadecontrapesodaQuintadaFonte,Monção.Douro - Estudos e Documentos.Porto.6:12,p.63-76.

BRUN,J.-P.(1997)-UmaadegaeumlagarnavilladeTorredePalma. Portugal Romano. A exploração dos recursos naturais.Lisboa:MNA,p.149-151.

PINA,M.I.(1998)-A encosta ocidental da Serra da Estrela. Um espaço rural na Idade Média.Cascais:Patrimonia.

TENTE,C.(2000)-EstudosobreassepulturasrupestresdoactualconcelhodeGouveia(1993-1998).Gaudela.Gouveia.1,p.44-72.

TENTE,C.(2007)-A ocupação alto-medieval da encosta noroeste da Serra da Estrela.Lisboa:InstitutoPortuguêsdeArqueologia.

VALERA,A.C.(1993)-Património arqueológico do Concelho de Fornos de Algodres, 1.ª fase da carta e roteiro. Lisboa:AssociaçãodePromoçãoSocial

CulturaleDesportivadeFornosdeAlgodres.

VALERA,A.;MARTINS,A.(1994)-LevantamentoarqueológicodoconcelhodeCeloricodaBeira.Relatóriodotrabalhodecampo.Trabalhos de

Arqueologia da E. A. M.Lisboa.2,p.273-282.

VENTURA,L.;FARIA,A.S.(1990)-Livro Santo de Santa Cruz (cartulário do séc. XII).Coimbra:INIC.