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1314 LACUNAS NA PROTEÇÃO JURÍDICO-PENAL DO NASCITURO: OS DELITOS DE ABORTO CULPOSO E DE LESÕES AO CONCEBIDO * LAGUNAS EN LA PROTECCIÓN JURÍDICO-PENAL DEL 'NASCITURUS': LOS DELITOS DE ABORTO IMPRUDENTE Y DE LESIONES AL CONCEBIDO Gisele Mendes de Carvalho RESUMO O presente artigo tem por finalidade demonstrar a existência de duas importantes lacunas de punibilidade no ordenamento jurídico-penal brasileiro: a ausência de um tipo delitivo que proteja a integridade física e mental do concebido, por um lado, e a atipicidade do aborto culposo, por outro. Para tanto, o texto parte da premissa inarredável de que a vida do ser humano em formação, assim como sua integridade física e psíquica, são bens jurídicos dignos de proteção penal que atualmente não são tutelados de forma suficiente e adequada pelo Direito Penal pátrio. A análise dos bens jurídicos implicados põe em evidência que tais bens jurídicos são dotados de autonomia com respeito à gestante, pois o concebido não é mera parte integrante do corpo materno, que já resulta protegido através dos delitos de homicídio e lesões corporais. Muito pelo contrário, o nascituro é uma forma de vida humana que, embora dependa do corpo da gestante para seu desenvolvimento e proteção, é dotada de autonomia suficiente a ponto de merecer a criação de delitos específicos destinados à sua tutela, como o são os crimes de aborto culposo (ao lado do aborto doloso, punível pelo Código Penal brasileiro) e de lesões ao concebido (tanto dolosas quanto culposas). Assim, ao longo desta exposição, serão analisados os principais aspectos da estrutura do tipo dos futuros delitos cuja criação aqui se sugere, além do estudo das formas imperfeitas de execução (tentativa), dos sujeitos ativo e passivo desses crimes e das penas que a prática dos mesmos deveria merecer por parte do ordenamento jurídico brasileiro. Tudo isso partindo da premissa fundamental de que a vida do concebido e sua integridade física e mental são bens jurídicos cuja proteção não pode seguir sendo indiferente ao Direito Penal pátrio. PALAVRAS-CHAVES: VIDA HUMANA DEPENDENTE, INTEGRIDADE FÍSICA E MENTAL, ABORTO, LESÕES CORPORAIS, AMPLIAÇÃO DA PROTEÇÃO PENAL DO CONCEBIDO, PROPOSTAS DE LEGE FERENDA RESUMEN El presente artículo tiene por finalidad demostrar la existencia de dos importantes lagunas de punibilidad en el ordenamiento jurídico penal brasileño: la ausencia de un tipo penal que proteja la integridad física y mental del nasciturus, por un lado, y la atipicidad del aborto imprudente, por otro. Para tanto, el texto parte de la premisa * Trabalho publicado nos Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em São Paulo – SP nos dias 04, 05, 06 e 07 de novembro de 2009.

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LACUNAS NA PROTEÇÃO JURÍDICO-PENAL DO NASCITURO: OS DELITOS DE ABORTO CULPOSO E DE LESÕES AO CONCEBIDO*

LAGUNAS EN LA PROTECCIÓN JURÍDICO-PENAL DEL 'NASCITURUS': LOS DELITOS DE ABORTO IMPRUDENTE Y DE LESIONES AL

CONCEBIDO

Gisele Mendes de Carvalho

RESUMO

O presente artigo tem por finalidade demonstrar a existência de duas importantes lacunas de punibilidade no ordenamento jurídico-penal brasileiro: a ausência de um tipo delitivo que proteja a integridade física e mental do concebido, por um lado, e a atipicidade do aborto culposo, por outro. Para tanto, o texto parte da premissa inarredável de que a vida do ser humano em formação, assim como sua integridade física e psíquica, são bens jurídicos dignos de proteção penal que atualmente não são tutelados de forma suficiente e adequada pelo Direito Penal pátrio. A análise dos bens jurídicos implicados põe em evidência que tais bens jurídicos são dotados de autonomia com respeito à gestante, pois o concebido não é mera parte integrante do corpo materno, que já resulta protegido através dos delitos de homicídio e lesões corporais. Muito pelo contrário, o nascituro é uma forma de vida humana que, embora dependa do corpo da gestante para seu desenvolvimento e proteção, é dotada de autonomia suficiente a ponto de merecer a criação de delitos específicos destinados à sua tutela, como o são os crimes de aborto culposo (ao lado do aborto doloso, punível pelo Código Penal brasileiro) e de lesões ao concebido (tanto dolosas quanto culposas). Assim, ao longo desta exposição, serão analisados os principais aspectos da estrutura do tipo dos futuros delitos cuja criação aqui se sugere, além do estudo das formas imperfeitas de execução (tentativa), dos sujeitos ativo e passivo desses crimes e das penas que a prática dos mesmos deveria merecer por parte do ordenamento jurídico brasileiro. Tudo isso partindo da premissa fundamental de que a vida do concebido e sua integridade física e mental são bens jurídicos cuja proteção não pode seguir sendo indiferente ao Direito Penal pátrio.

PALAVRAS-CHAVES: VIDA HUMANA DEPENDENTE, INTEGRIDADE FÍSICA E MENTAL, ABORTO, LESÕES CORPORAIS, AMPLIAÇÃO DA PROTEÇÃO PENAL DO CONCEBIDO, PROPOSTAS DE LEGE FERENDA

RESUMEN

El presente artículo tiene por finalidad demostrar la existencia de dos importantes lagunas de punibilidad en el ordenamiento jurídico penal brasileño: la ausencia de un tipo penal que proteja la integridad física y mental del nasciturus, por un lado, y la atipicidad del aborto imprudente, por otro. Para tanto, el texto parte de la premisa

* Trabalho publicado nos Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em São Paulo – SP nos dias 04, 05, 06 e 07 de novembro de 2009.

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ineludible de que la vida del ser humano en formación, así como su integridad física y psíquica, son bienes jurídicos dignos de protección penal, que en la actualidad no resultan suficiente y adecuadamente tutelados por el Derecho penal nacional. El análisis de los bienes jurídicos implicados pone de manifiesto que tales bienes jurídicos son dotados de autonomía con respecto a la embarazada, pues el concebido no es una mera parte integrante del cuerpo de la madre, que por lo demás ya resulta protegido a través delos delitos de homicidio y lesiones. Muy al contrario, el nasciturus es una forma de vida humana que, aunque dependa del cuerpo materno para su desarrollo y protección, posee autonomía suficiente como para merecer la creación de delitos específicos destinados a su tutela, como lo son los crímenes de aborto imprudente (a parte del aborto doloso, punible según el Código penal brasileño) y de lesiones al concebido (tanto dolosas como imprudentes). Así, a lo largo de esta exposición, se analizarán los principales aspectos de la estructura del tipo de los futuros delitos cuya incriminación aquí se propone, además del estudio de las formas imperfectas de ejecución (tentativa), de los sujetos activo y pasivo de estos crímenes y de las penas que la práctica de los mismos debería merecer por parte del ordenamiento jurídico brasileño. Todo ello en base a la premisa fundamental de que la vida del concebido y su integridad física y mental son bienes jurídicos cuya protección no puede seguir siendo indiferente al Derecho penal nacional.

PALAVRAS-CLAVE: VIDA HUMANA DEPENDIENTE, INTEGRIDAD FÍSICA Y MENTAL, ABORTO, LESIONES, AMPLIACIÓN DE LA PROTECCIÓN PENAL DEL CONCEBIDO, PROPUESTAS DE LEGE FERENDA

1. Considerações introdutórias

Os crescentes avanços na área da Medicina pré-natal e no campo da reprodução humana assistida permitiram, por um lado, um maior conhecimento a respeito dos procedimentos biológicos que marcam o início da vida humana, sendo possível, na atualidade, interferir no processo de sua criação mediante a obtenção de embriões in vitro, além de detectar, prevenir ou inclusive, em alguns casos, curar ou paliar enfermidades quando o ser humano encontra-se ainda no interior do ventre materno ou sequer foi transferido para dentro dele. Por outro lado, porém, essas descobertas evidenciaram a vulnerabilidade dessas tenras formas de vida humana frente às novas técnicas. Os riscos provocados pela colheita de material genético para a realização de diagnósticos pré-implantatórios, realizados sobre o embrião in vitro, ou o diagnóstico pré-natal, no caso em que o exame se realize sobre o nascituro, ou mesmo a terapia embrionária ou fetal, que tem por finalidade a cura ou a prevenção de doenças ou defeitos congênitos, as transfusões de sangue, as radiações e as intervenções cirúrgicas no interior do ventre materno, bem como as modernas técnicas obstétricas que facilitam ou aceleram o parto, apresentam-se como novas formas de agressão contra a vida e a integridade física e mental do concebido. Essas novas formas de agressão demandam uma resposta penal que tutele de forma suficiente e adequada esses bens jurídicos, e para tanto faz-se mister a criação de novas figuras delitivas que o Código Penal brasileiro, que data de 1940, não foi capaz de acolher à época de sua promulgação. Para sugerir esses tipos penais, contudo, é importante ter em conta que concebido e gestante

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são dois sistemas biológicos distintos, pois o feto não é mera parte integrante do corpo da mãe, embora dela dependa durante a gestação. O ser humano não nascido é titular de um direito à vida e à integridade física e psíquica que necessitam de proteção, pois nem todo ataque à vida e à integridade física da gestante constitui necessariamente uma agressão ao nascituro. Daí porque se propõe aqui a criação de dois novos crimes no ordenamento jurídico-penal brasileiro: o aborto culposo e as lesões (dolosas e culposas) ao concebido.

2. Bens jurídicos necessitados de proteção: vida humana dependente e integridade física e psíquica do concebido

De tudo quanto foi dito, deduz-se que os bens jurídicos necessitados de proteção, e que ganhariam uma tutela adequada com a criação dos tipos penais antes sugeridos, são fundamentalmente a vida humana dependente, para o delito de aborto culposo (bem jurídico que atualmente só resulta parcialmente tutelado através do crime de aborto doloso) e a integridade física e psíquica do ser humano em formação.

No que diz respeito à vida humana dependente, faz-se mister destacar que se trata da vida humana que, em oposição à vida humana independente, ainda se encontra vinculada ao corpo materno e dele depende para seu desenvolvimento e sobrevivência. Há momentos, porém, em que a delimitação entre vida humana dependente e independente carece de maior precisão, como ocorre no momento do parto. Daí porque torna-se imprescindível, para o nosso estudo, traçar os limites mínimo e máximo da vida humana em formação. Para a análise do conceito de vida humana dependente, isto é, anterior ao nascimento, utilizaremos um método bastante empregado pelo Direito, particularmente pelo Direito Penal: a identificação de um substrato como pressuposto para o reconhecimento da existência de um bem jurídico digno de proteção pelo Direito. De acordo com esse critério metodológico, parte-se dos conhecimentos biológicos obtidos sobre o começo da vida humana -substrato ontológico ou natural-, com o fim de alcançar o conhecimento mais exato e fiel possível à matéria objeto de valoração jurídica. A partir daí, será possível identificar os distintos bens dignos de proteção jurídica, através da projeção de valorações, isto é, de juízos axiológicos, sobre a realidade biológica e os distintos fenômenos biológicos. O resultado dessa valoração demonstrará se essa realidade deve ser protegida pelo Direito e com que intensidade, o que por sua vez levará a decidir sobre qual setor do ordenamento jurídico (Direito Civil, Administrativo ou Penal) incumbirá essa tarefa e frente a que comportamentos (agressões) que possam lesar esse bem jurídico ele deverá intervir[1].

O ser humano tem origem a partir de uma única célula (o óvulo fecundado ou zigoto), que se transforma em um organismo com bilhões de células. O zigoto, como célula inicial única, contém toda a informação genética que constitui o "programa de desenvolvimento" do organismo. A partir da fecundação, o zigoto transforma-se em blastômero (embrião de 2 a 8 células), mórula (embrião de no máximo 64 células, que se forma 3 ou 4 dias após a fecundação) e blastocisto. Nessa última etapa, tem início o processo de fixação do embrião na parede do útero, denominado nidação ou nidificação. A nidação começa cerca de sete dias após a fecundação, quando o embrião

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alcança a etapa de blastocisto, e termina por volta dos quatorze dias[2]. É importante observar que, até o momento da nidação, o ser humano ainda não se encontra perfeitamente individualizado, pois não possui as características da unicidade (qualidade de ser uno e indivisível) e unidade (ser único e inconfundível): a primeira exclui a possibilidade de formação de gêmeos univitelinos, pela divisão do zigoto em dois ou mais embriões, e a segunda se consubstancia na garantia de que o óvulo fecundado não mais poderá fundir-se com outro embrião, dando origem às chamadas "quimeras humanas"[3]. O momento da nidação, portanto, supõe algo mais do que a fixação do embrião no útero materno: significa a formação de um novo indivíduo, no sentido mais completo da palavra.

Após a nidação, tem início a fase de gástrula, na qual se diferenciam as três camadas germinais primitivas (ectodermo, mesodermo e endodermo) das quais derivarão os tecidos e órgãos do futuro organismo[4]. O embrião continua seu desenvolvimento de forma que ao final da quarta semana já é possível dizer que existe um plano geral do futuro ser, sendo que por volta da oitava semana termina a fase embrionária e inicia-se a fase fetal. A última etapa consiste no desenvolvimento do feto, do terceiro ao nono mês, que então dará lugar ao nascimento de um ser humano. Feto, portanto, é o embrião com aparência humana e órgãos já formados, que a partir de então madurarão paulatinamente até o momento do parto. Inicialmente, a ciência distinguia tão-somente entre os conceitos de embrião e feto, fronteira que, como já visto, se demarcava a partir do terceiro mês de gestação. Contudo, a partir do momento em que se tornou possível o congelamento ou crioconservação de óvulos fecundados em laboratório por tempo indeterminado, como mais adiante se verá, um novo termo passou a ser utilizado nos laboratórios, e ganhou espaço na literatura médica em geral: o embrião pré-implantatório ou pré-embrião. O termo "pré-embrião", porém, será mais ou menos utilizado segundo a teoria biológica sobre o desenvolvimento intra-uterino do ser humano que se pretenda adotar. De acordo com a teoria concepcista, o desenvolvimento intra-uterino do ser humano pode ser dividido em apenas duas etapas (embrionária, até o início do terceiro mês de gravidez, e fetal, do terceiro mês até o nascimento). Por outra parte, segundo a teoria genético-desenvolvimentista, são três as fases atravessadas pelo ser humano em gestação: pré-embrionária, embrionária e fetal, sendo que durante a primeira, que vai da fecundação até o décimo quarto dia de vida, deve-se conceder uma forma de proteção distinta da que se outorga ao embrião propriamente dito, implantado no útero materno. Como se poderá inferir ao longo do presente artigo, opta-se aqui pela adoção da segunda teoria, mais moderna e condizente com os avanços recentemente experimentados pela ciência, de forma que se preferiremos denominar "embrião pré-implantatório" ou "pré-embrião" ao ser humano em formação desde a concepção até o décimo quarto dia de vida[5].

Essa distinção do ponto de vista biológico, porém, acarreta necessariamente também uma distinção do ponto de vista axiológico ou valorativo, em função do progresso qualitativo que se opera na vida humana em formação a partir do momento em que o pré-embrião se torna embrião, é dizer, a partir do momento em que o mesmo, cumpridas as duas primeiras semanas de vida, se fixa na parece do útero materno, dando início à gestação propriamente dita. Não resta dúvida de que a nidação, assim como o nascimento, supõe um incremento da condição humana que implica, por sua vez, um maior respeito e proteção a essa forma de vida, cujo desenvolvimento passa agora a ter uma maior estabilidade em relação à etapa anterior. E tudo isso se deve a uma série de alterações e acontecimentos biológicos vividos pelo pré-embrião, tal como ocorre

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também com o parto, que conquanto seja um dado de caráter estritamente ontológico, inaugura uma nova condição à pessoa humana -a vida humana independente- que por sua vez dá lugar a importantes conseqüências normativas que iremos destacar ao longo do presente estudo. Por outro lado, o fato de que o pré-embrião tenha se fixado no ventre materno também possui um significado especial, já que o útero não é apenas um espaço físico mais onde se pode "armazenar" o pré-embrião, tal como se faz nos laboratórios. Pelo contrário, o fato de encontrar-se o pré-embrião no interior útero materno significa que durante nove meses esse ser humano em formação evoluirá até o ponto de converter-se em uma vida humana independente da vida materna, enquanto que em um laboratório o pré-embrião pode permanecer meses, anos ou inclusive décadas sem jamais chegar a converter-se em pessoa[6]. Em outras palavras, entende-se que não se justifica "a tutela jurídica do embrião enquanto tal, senão apenas a tutela do embrião destinado a nascer, ou seja, destinado a converter-se em pessoa e, portanto, consistente, em concreto e não em abstrato, em uma potencialidade de pessoa, isto é, em uma pessoa futura"[7].

O correto emprego da metodologia antes referida requer a distinção entre as diversas fases ou etapas atravessadas pela vida humana ao longo de seu desenvolvimento, já que os diferentes cortes biológicos implicarão também, como veremos, valorações jurídicas e tomas de postura diversas quanto ao nível de proteção jurídica que lhes deve ser outorgado[8]. Assim, quanto mais se desenvolve o ser humano em formação, maior deve ser a importância (aspecto valorativo) que terá a vida que possui a potencialidade em si mesma de dar lugar a um ser humano (aspecto ontológico)[9].

Não resta dúvida de que o marco biológico do nascimento é acompanhado pela passagem do ser humano a um nível axiológico diferente, e tanto é assim que também o ordenamento jurídico responde de maneira diversa às agressões perpetradas após o nascimento, cominando penas mais graves ao homicídio que ao aborto. Dito de outra forma, a passagem da categoria de vida humana dependente à vida humana independente implica o fato de que, do ponto de vista valorativo, a alteração da condição físico-biológica ser humano é acompanhada neste momento por uma espécie de "reforço" do véu axiológico protetor que supõe a própria definição de pessoa. Isso não significa que antes do alumbramento não exista vida ou pessoa humana. Não resta dúvida de que o óvulo fecundado pelo espermatozóide dá origem a uma nova forma de vida humana, que se mantém desenvolve ao longo das etapas embrionária e fetal, embora a agressão operada nessas fases não seja sancionada pelo ordenamento jurídico-penal com os mesmos rigores das agressões levadas a cabo contra os seres humanos já nascidos. Significa tão-somente que após o nascimento, a vida humana entra em uma nova etapa biológica, independente da vida materna, e nessa nova etapa -e pelo simples fato de tê-la alcançado- o ser humano passa a ser merecedor de uma proteção mais efetiva por parte do ordenamento jurídico. Tudo isso vem a corroborar o fato de que a vida humana não se reduz à mera existência físico-biológica, mas se traduz em uma realidade dotada de um significado especial, que a distingue de todos os demais seres vivos: sua dignidade como pessoa.

Desde logo, é importante esclarecer que o conceito de pessoa a que nos referimos aqui não se confunde com o conceito de personalidade do Direito Civil, é dizer, ao conceito de pessoa como sujeito titular de direitos e obrigações. Pelo contrário: o conceito de pessoa humana aqui vicejado independe do fato de que ao ser humano se lhe possam atribuir direitos e obrigações na ordem civil, mas sim diz respeito à própria essência do

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ser humano -sua dignidade-, que lhe caracteriza como homem e o diferencia dos demais seres vivos. Daí porque é força concluir que a condição de pessoa e a dignidade que dela emana não há de ser outorgada ou conferida ao ser humano a partir da constatação de determinados requisitos -como ocorre com a personalidade civil, que no Brasil está condicionada ao nascimento com vida (art.2º, Código Civil)-, mas é algo inerente ao ser humano pelo simples fato de sê-lo, sem que se lhe possa atribuir ou retirar por razão alguma. A dignidade não é nenhum bem ou direito que se atribui ao homem, mas sim uma característica intrínseca e indelevelmente associada à pessoa humana enquanto tal, existente, portanto, com independência de sua previsão legislativa[10]. É muito importante que se faça essa distinção, pois uma confusão entre os conceitos de pessoa humana, titular da dignidade inerente a todo ser humano, e personalidade civil, atributo que se reconhece ao ser humano como condição para o exercício de direitos e obrigações na ordem civil, pode levar a uma redução do primeiro conceito aos estreitos limites do segundo, o que resultaria de todo indesejável.

Demais disso, outro importante aspecto que se deve levar em conta é que há muito tempo foi abandonada a idéia de que o Direito Penal tem por finalidade a tutela de direitos subjetivos, sendo que o pensamento jurídico moderno se assenta no fato de que o escopo imediato e primordial desse ramo do Direito reside na proteção de bens jurídicos -essenciais ao indivíduo e à comunidade- dentro do quadro axiológico constitucional ou decorrente da concepção de Estado de Direito democrático e social[11]. Tais bens, como indica o próprio sentido da expressão "bem jurídico", são bens do Direito, e nesse sentido merecem proteção independentemente de qual seja o interesse que neles tenha o seu titular e da forma como ele queira fazer valer esse interesse (geralmente, através da defesa do direito subjetivo que o acompanha)[12]. Daí porque ao Direito Penal não lhe interessa a prévia constatação da existência de personalidade -enquanto personalidade civil- como condição para a proteção da vida do ser humano em formação, porque independentemente do fato de que o embrião ou feto seja ou não titular de direitos e obrigações na ordem civil, não resta dúvida de que ele é sim titular de bens jurídicos, pois no interior do ventre materno existe uma vida humana dependente cuja tutela se impõe[13]. Outra coisa é que, do ponto de vista jurídico-civil, queira-se discutir a titularidade do direito constitucional à vida por parte do nascituro, discussão em que, embora não venha ao caso aprofundar-se, parece encerrada no sentido da resposta afirmativa, segundo o disposto no artigo 2º do Código Civil brasileiro.

Assim, a vida humana tem início com a concepção, ainda que até o nascimento apenas se possa falar em vida humana dependente da mãe, e termina com a morte. Calha aqui assinalar que a proteção penal amplia-se a partir do nascimento, quando o delito de aborto cede lugar ao homicídio[14], admitindo-se assim, consoante se expôs, uma graduação na valoração do bem jurídico vida. Em que pese essas distintas valorações existentes ao longo do desenvolvimento do homem, há em todos os casos identidade de bem jurídico, já que a todo o momento tutela-se a vida humana, isto é, o ser humano enquanto realidade biopsicológica[15]. Opera-se diferenciação, porém, no que tange ao objeto material do delito, vale dizer, quanto ao elemento sobre o qual recai a conduta incriminada, que representa a materialização do bem jurídico vida em cada um dos tipos penais. Até o décimo quarto dia após a fecundação, o zigoto remanesce um conjunto de células totipotentes não-individualizadas (pré-embrião). Somente quando fixado na parede do útero materno (processo denominado nidação) o embrião adquire individualização e tem início a tutela constitucional da vida humana[16]. Portanto,

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embora já se possa falar em vida humana a partir da fusão entre óvulo e espermatozóide, a proteção da mesma situa-se em momento diverso, por cuidar-se aqui de questão jurídica, e não biológica.

Interessante questão vem à tona quando da determinação do momento do nascimento como início da vida humana independente. O nascimento é um processo mais ou menos longo, não instantâneo, que principia com as dores do parto e culmina com o total desprendimento do feto do ventre materno. O marco que separa o feto da condição de pessoa reside no início do nascimento, que se caracteriza pelos labores parturientium, naturais ou determinados por procedimentos artificiais, como o corte cirúrgico da cesárea, independentemente da expulsão parcial do feto ou de sua visibilidade exterior[17]. A relevância jurídica da precisão do início da vida humana independente é manifesta, já que a partir desse instante opera-se uma modificação nas valorações jurídico-penais do injusto e da culpabilidade, em razão da existência de uma vida autenticamente autônoma. Conforme já destacado, a mudança da qualidade jurídica do objeto material é decisiva para a qualificação jurídico-penal do fato como homicídio ou como aborto. Assim, até o início do nascimento, qualquer pessoa que atente contra o nascituro incidirá nas penas do delito de aborto (arts.124 a 128, CP), por se tratar o bem jurídico em questão de vida humana dependente, ainda subordinada à vida da mãe. Com as dores do parto e as contrações de dilatação, tem início a vida humana independente, bem jurídico do delito de homicídio (art.121, CP). Solução diversa implicaria manifesta contradição, vez que, no delito de infanticídio (art.123, CP), a morte do próprio filho dada pela mãe durante o parto ou logo após o mesmo, sob influência do estado puerperal, acarreta conseqüências jurídicas manifestamente mais gravosas que as do delito de aborto, de modo que, admitido o adiamento da tutela da vida humana independente para o momento da completa expulsão do feto do claustro materno, chegar-se-ia ao absurdo de se reservar sanções mais severas para a mãe que mata o próprio filho em razão do estado puerperal do que para aquela que o faz sem qualquer influência daquela condição biopsicológica. Por fim, atente-se para o fato de que quaisquer exigências posteriores ao início do parto devem ser abandonadas, de modo que é irrelevante, para a existência de vida humana autônoma, o corte do cordão umbilical ou a prova da respiração do recém-nascido, devendo ainda com mais razão serem abandonados critérios relativos à sua viabilidade, por suporem a aceitação de intoleráveis concepções eugênicas.

Dito isto, cumpre determinar se a vida humana, em suas diferentes etapas, encontra-se suficientemente tutelada do ponto de vista jurídico-penal. Como já destacamos anteriormente, a partir da fecundação, a vida do ser humano em formação é protegida através do delito de aborto, desde que o mesmo se encontre no interior do ventre materno. Antes disso, o pré-embrião in vitro, é protegido pelo Direito Penal brasileiro através da criminalização da utilização irregular (art.24) e da manipulação genética de embriões humanos (art.25, Lei 11.105/2005, ou Lei de Biossegurança), embora a lei nada mencione a respeito de sua destruição, sendo incabível a analogia com o delito de aborto, já que os mesmos encontram-se fora do claustro materno[18]. Estima-se correta a decisão do legislador brasileiro, pois assim como o Direito Penal não outorga idêntica proteção à vida humana dependente e independente, e tal distinção valorativa não implica necessariamente uma debilitação da tutela jurídica da vida humana, nada impede que o legislador proteja de forma diversa a vida humana antes e depois da nidação -momento que, como destacado, supõe um incremento valorativo da existência embrionária, que passa a se revestir das características de unidade e unicidade- sendo

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possível que opte, inclusive, por não intervir quando se trata da destruição da vida humana até o décimo quarto dia após a fecundação[19].

É claro que, ao advogar em favor de um tratamento distinto entre o embrião pré-implantatório e o embrião já implantado no útero materno, concedendo-se assim uma importância fundamental ao momento da nidação, abrem-se as portas para uma intensa discussão em torno à polêmica questão da admissibilidade do aborto doloso nas primeiras semanas de gestação, favorecendo-se a acolhida de um sistema de prazos em detrimento do sistema de indicações, atualmente vigente no Brasil (art.128, I e II, CP)[20]. Não é essa, porém, a intenção do presente trabalho, já que a discussão em torno ao sistema mais conveniente de aborto legal extrapolaria em muito os objetivos do presente artigo. Por hora, basta deixar claro que não só não é nossa intenção discutir esse polêmico tema, como tampouco pretendemos que, como consequência do tratamento distinto que acreditamos deva ser concedido ao embrião pré-implantatório, isso possa ser utilizado como argumento em favor da adoção do sistema de prazos para o aborto. Pelo contrário, ao estabelecer como um marco relevante o momento da fixação do pré-embrião no útero materno, tratamos de deixar claro, para logo, a importância do fato de que o pré-embrião seja acolhido no interior do ventre feminino, fato este que põe em evidência a diferença de tratamento que acreditamos deva existir entre o pré-embrião conservado em laboratório e aquele que já habita o útero materno, mesmo antes da nidação. Dito de outra forma, entendemos que tampouco devem ser equiparados em dignidade o pré-embrião conservado em laboratório e aquele que, entre o momento da fecundação e o da nidação, já se encontra no interior do ventre materno, razão pela qual nos pronunciamos contrariamente à acolhida do sistema de prazos para o aborto legal.

Pois bem, nesse particular aspecto, contata-se a presença de duas importantes lacunas no ordenamento penal brasileiro. Ora, no período que vai do início da gravidez (nidação) até o nascimento, é inegável a possibilidade de lesão, através do emprego das técnicas de engenharia genética e de diagnóstico pré-natal, dos bens jurídicos vida humana e integridade física do ser humano em formação. Destarte, diante dos recentes avanços operados no campo da Medicina pré-natal, particularmente através do desenvolvimento de poderosos métodos obstétricos de detenção e prevenção de enfermidades de origem genética (diagnóstico pré-natal, terapia genética intra-uterina, transfusões de sangue, radioterapias e intervenções cirúrgicas sobre o embrião ou feto), e não obstante a proteção da vida humana do nascituro já seja efetuada pelo Direito Penal através do delito de aborto, seria conveniente que lhe fosse dispensada uma tutela mais ampla, que abarcasse também sua integridade física e psíquica, aos moldes do que já ocorre em outras legislações (p. ex., arts. 157 e 158 do Código Penal espanhol de 1995[21]), pois não resta dúvida de que, embora com tais intervenções se busque a melhora da saúde do nascituro, é possível que através delas eventualmente se produzam danos à mesma[22]. É importante destacar que as lesões cuja sanção se propõe devem ser graves o bastante para comprometer seriamente o desenvolvimento do embrião ou feto, provocando-lhes um dano físico ou psíquico considerável. De qualquer maneira, o certo é que já não se pode pretender que o concebido seja considerado vítima do delito de lesões corporais, pois, por mais que as lesões que lhe sejam causadas durante a gestação pudessem perpetuar-se para além do nascimento, tem-se que a figura do artigo 129 do Código Penal é delito instantâneo de efeitos permanentes, e não delito permanente, e tendo em vista que o legislador pátrio considera tempo do crime o momento em que foi perpetrada a ação ou omissão delituosa (teoria da atividade ou da ação, art.4º, CP), o que teria lugar após o nascimento seria apenas um resultado lesivo produzido com

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anterioridade e impunível segundo a sistemática atual, mas não um delito de lesões corporais[23]. Dessa forma, assim como não se pune como homicídio, e sim como aborto, a conduta que atenta contra a vida do concebido ainda no útero materno e que culmina com a morte do feto após o nascimento, não teria sentido sancionar como lesões corporais do artigo 129 do Código Penal as agressões à integridade corporal do nascituro perpetradas durante a gestação[24]. Do ponto de vista da legalidade penal, aliás, não haveria outra solução, pois "o resultado se manifesta ou se produz após o nascimento, mas a agressão -a ação- recai sobre o feto, que é titular de um bem jurídico distinto; a particularidade de que haja uma evolução, um trânsito, de um bem jurídico a outro não deve desviar nossa atenção de quem em realidade é que sofre a agressão, pois o momento do nascimento, no qual se produz a mudança no objeto da agressão (de feto a indivíduo), determina um corte quanto à consideração do bem jurídico protegido (vida humana dependente e independente, respectivamente)"[25].

Por outro lado, tem-se que a vida humana dependente, isto é, a vida do ser humano em formação no interior do ventre materno, só resulta protegida, de acordo com o Código Penal brasileiro, contra as agressões dolosas que contra ela pratiquem a própria gestante (art.124, CP) ou um terceiro, com ou sem o consentimento da mesma (arts.125 e 126, CP). Contudo, não existe proteção jurídico-penal para a vida do pré-embrião, embrião ou feto em gestação quando as agressões contra esse importante bem jurídico sejam provocadas por imprudência, negligência ou imperícia, ou seja, quando tenham caráter culposo. Não se pode considerar suficiente a previsão do aborto culposo como resultado que qualifica as lesões corporais dolosas (art.129, §2º, V, CP), pois nesse caso a ação delituosa dirige-se à lesão da integridade física da gestante, e não do concebido[26]. Impõe reconhecer que da mesma forma como nem todo atentado à saúde da gestante pode ser considerado simultaneamente uma agressão à integridade do embrião ou feto, nem toda lesão causada ao nascituro repercutirá necessariamente sobre a saúde da mãe, pois o concebido não é simples parte do corpo da mulher, devendo sua integridade corporal ser guindada à categoria de bem jurídico autônomo e digno de tutela penal[27]. Assim, se o Direito Penal pátrio não dispõe dos instrumentos necessários à proteção da integridade física e psíquica do nascituro, urge que sejam cunhados instrumentos jurídicos de proteção a esse bem jurídico. O que não se pode pleitear é o recurso à analogia com a finalidade de inserir nos tipos penais já existentes os comportamentos aqui referidos, lançando-se mão de um expediente inadmissível em matéria penal, quando utilizado em prejuízo do réu[28].

Por essa razão, passaremos a expor, a seguir, duas sugestões de lege ferenda para a alteração do Código Penal brasileiro, com o propósito de outorgar uma tutela mais completa e adequada à vida e à integridade física do nascituro, suprimindo a intolerável lacuna de punibilidade antes assinalada: a criação dos delitos de aborto culposo e de lesões ao concebido, nos moldes que proporemos nos próximos itens.

3. Estrutura do tipo de injusto dos delitos de aborto culposo e de lesões ao concebido

3.1. Aborto culposo

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As recentes descobertas em Genética humana estão permitindo a determinação e análise do componente genético fetal, e graças a elas está-se abrindo o caminho para a aplicação de diferentes medidas terapêuticas em relação ao embrião e ao feto (concebido[29]). Para tanto, em muito contribui o emprego da técnica denominada diagnóstico pré-natal, como prática da Medicina preditiva, e que pode ser conceituado como o conjunto de procedimentos de que dispõe a Medicina para obter informações sobre os defeitos congênitos (assim entendidas as anomalias do desenvolvimento morfológico, estrutural, funcional ou molecular, externas ou internas, hereditárias ou não) do concebido[30]. Por meio dessas técnicas, é possível diagnosticar uma enfermidade ou uma malformação fetal e inclusive predizer o sexo do ser humano em formação, o que por outro lado possui a vantagem de detectar a possível presença de doenças ligadas ao sexo (como a hemofilia e a distrofia muscular de Duchenne). Entre as finalidades a que se prestam esses exames, estão a de tranqüilizar os genitores a respeito da saúde e a viabilidade do feto; permitir o tratamento (medicamentoso ou inclusive cirúrgico) do concebido, com o fim de curar ou ao menos paliar certas enfermidades (a denominada terapia fetal); indicar a melhor forma de realizar o parto (p. ex., aconselhando-se uma cesariana); determinar o tratamento a seguir com o recém-nascido após o parto, ou adotar a decisão do aborto eugênico, nos países em que o mesmo é permitido[31].

São diversas as técnicas invasivas e não invasivas de que dispõe a Medicina preditiva para diagnosticar precocemente anomalias fetais de todo o tipo: ecografia, embrioscopia e fetoscopia, biópsia corial, radiografias, coriocentese, funiculocentese ou acesso direto ao sangue fetal, amniocentese, entre outras. De todas as técnicas citadas, a aminiocentese é a que permite atualmente detectar com mais precisão um maior número de enfermidades congênitas, relacionadas a alterações cromossômicas (p. ex., síndromes de Down, de Turner ou de Klinefelter), desequilíbrios metabólicos, doenças do tubo neural (espinha bífida), enfermidades vinculadas ao sexo, predisposição a enfermidades que só aparecerão mais tarde, na infância ou na idade adulta. O procedimento, considerado muito invasivo, consiste na extração de uma amostra do líquido amniótico, normalmente a partir da 16ª semana de gestação, mediante uma punção na cavidade abdominal, seguida do cultivo das células fetais contidas nesse líquido e a determinação da quantidade de alfa-proteína nele presente[32]. Essa técnica apresenta diversos riscos, como perda fetal (aborto espontâneo, morte intrauterina, natimortos), lesões ou infecções fetais, perturbações neonatais e complicações para a gestante (perfuração visceral, desprendimento prematuro da placenta, ruptura da bolsa amniótica, infecções várias, contrações uterinas e aceleração de parto, hemorragia pós-parto e inclusive morte da mulher)[33]. Contudo, pouco a pouco vão-se aperfeiçoando e reduzindo progressivamente os riscos inerentes a este exame, situando-se atualmente a taxa de abortos em virtude da amniocentese na casa dos 2%, mesmo índice dos demais riscos para a gestante e o concebido. Contudo, cumpre destacar que essa taxa não é insignificante, e pode ser maior quando a técnica utilizada é de invenção recente, razão pela qual não se justifica a ausência de uma adequada proteção penal da vida e da integridade do embrião e do feto, tal e como se encontra hoje no Código Penal brasileiro.

Atualmente, a vida do concebido é protegida nos arts.124 a 128, CP, contra as agressões dolosas à mesma, mas não resta dúvida de que os procedimentos pré-natais antes

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citados poderão por em risco a vida do embrião ou feto através de ações dirigidas em princípio à melhoria da sua saúde, mas que por imprudência, negligência ou imperícia do profissional sanitário, terminam comprometendo esses bens jurídicos. Dito de outro modo, o mais comum é que essas técnicas provoquem o aborto culposo, e não doloso, do concebido, e em tais casos, diante do panorama atual da legislação brasileira, a vida do concebido restará completamente carente de proteção, pois sequer é necessário reiterar a absoluta impossibilidade de aplicação das penas do homicídio culposo (art.121, §3º, CP) a estes casos, já que tal delito destina-se exclusivamente à proteção do ser humano vivente ou já nascido. Assim, após o início das contrações uterinas que antecedem o parto, ou do corte cirúrgico da cesárea, começa a vida humana independente e as agressões culposas à vida do sujeito seriam punidas como homicídio; antes disso, porém, a morte do concebido provocada por imprudência, negligência ou imperícia não merece outro tratamento no Brasil senão a impunidade.

De fato, a única forma de aborto culposo punível de acordo com a lei penal brasileira é a do art.129, §2º, V, CP, em que a morte do embrião ou feto tem lugar em virtude de uma lesão corporal dolosa provocada na pessoa da gestante. Não resta dúvida de que o bem jurídico protegido aqui é também, além da integridade física da mulher grávida, a vida do concebido, mas atente-se para o fato de que é necessário que o autor do delito provoque uma lesão dolosa da integridade física da gestante para que a punição do aborto culposo tenha lugar, coisa que nem sempre sucederá, pois ao realizar alguma das técnicas diagnósticas pré-natais antes citadas, o médico por vezes atuará sem o dolo de lesar a integridade da mulher, mas tão-somente com o propósito de curá-la ou tratá-la (isto é, quando a técnica em questão visa proteger a saúde da própria gestante). Em tais casos, a doutrina entende que a lesão corporal deverá ser reputada atípica, por ausência de desvalor da ação e desvalor do resultado, e, portanto, não se adequará ao tipo do delito do art.129, CP. Por outro lado, quando o médico atua imbuído da finalidade de tratar ou curar o concebido (terceira pessoa, distinta da gestante), a lacuna legislativa resulta menos grave, pois quando a intervenção cirúrgica tem por fim favorecer terceiro, a doutrina majoritária estima que o facultativo atuará com o dolo de lesar[34], estando a ação apenas justificada pelo consentimento da gestante e, no caso em que a intervenção cause a morte culposa do embrião ou feto, a aplicação do art.129, §2º, V, CP, seria adequada e suficiente.

A lacuna de punibilidade com respeito ao aborto culposo subsistiria, contudo, quando o autor das lesões corporais à gestante não seja profissional da área médica que aplique alguma das técnicas de Medicina preditiva. Assim, p. ex., pode-se imaginar o não raro fato de que o sujeito, ao dirigir veículo automotor, atropele uma gestante em avançado estado de gravidez (pois a adequação típica do aborto culposo exigirá a consciência desse estado, como decorrência do postulado da responsabilidade penal subjetiva[35]). Em tais hipóteses, o autor responderá pelas lesões corporais culposas na direção de veículo automotor (art.303, Lei 9.503/97), mas não pelo aborto culposo em concurso (formal) de crimes, já que o mesmo não possui autonomia típica em nosso ordenamento, figurando apenas como uma qualificadora do delito de lesões corporais dolosas previsto no Código Penal. A vida do concebido, em tais situações, resultará totalmente desprotegida, não havendo possibilidade alguma de responsabilização criminal do autor do aborto culposo.

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3.2. Lesões ao concebido

Conforme já destacado, atualmente, as amplas possibilidades de acesso ao concebido com fins terapêuticos ou de pesquisa representam graves riscos aos quais ficam expostas não só a vida, como também a integridade física e inclusive psíquica do ser humano em formação, comprometendo o seu normal desenvolvimento. Tais lesões, geralmente efetuadas através do corpo materno, podem dar lugar a graves malformações no corpo do concebido que serão determinantes para o desenvolvimento anômalo do mesmo durante a gestação e para que este, quando nasça, padeça diversas anomalias em sua integridade física e psíquica, podendo inclusive vir a falecer em virtude delas[36]. Com o fim de garantir a proteção desse importante bem jurídico não só à pessoa já nascida, mas também ao concebido, suprindo assim uma grave lacuna legislativa em nosso ordenamento, estima-se adequada a criação do tipo de lesões ao concebido, tanto doloso como culposo (este último, aliás, é o que na prática se verificará com maior frequência, pois tais lesões serão causadas em geral por profissionais sanitários durante exames pré-natais e afins, mediante a execução de manobras imperitas). A própria gestante, porém, deveria ficar isenta de pena no que tange à provocação culposa dessas lesões, por razões que oportunamente exporemos[37].

3.2.1. Tipo doloso

No ordenamento jurídico brasileiro, só são puníveis as lesões corporais dolosas (art.129, CP) dirigidas ao menoscabo da integridade física do ser humano já nascido, é dizer, provocadas no sujeito passivo em qualquer momento posterior ao início do parto até sua morte[38]. Antes desse momento, não existe nenhuma figura típica na legislação penal pátria que sancione as lesões corporais à integridade física ou psíquica do concebido, e não caberia analogia com o tipo do art.129, CP, já que, conforme destacado anteriormente, esse procedimento é absolutamente vedado em matéria penal quando em prejuízo do réu, como seria nessa hipótese.

Embora menos frequentes que as lesões culposas (mais comuns no âmbito da prática médica), não resta dúvida de que as lesões dolosas à integridade física ou mesmo psíquica do embrião ou feto deveriam ser criminalizadas em nosso ordenamento[39]. Também o concebido é titular do direito à integridade física e psíquica, e nesse sentido não existe razão para o esse importante bem jurídico reste desprotegido pelo Direito Penal brasileiro. Pense-se nas graves consequências que uma lesão durante a gestação poderia gerar ao longo de toda a vida do ser humano que vai nascer. O fato de que a ação que provocou as lesões ocorreu durante a gestação, e não após o parto, contudo, faria com que o comportamento do agressor fosse atípico, pois, como já salientado, ao adotar o Código Penal brasileiro a teoria da atividade ou da ação (art.4º, CP), e não do resultado ou evento, para o tempo do crime, não se poderia subsumir a agressão ao tipo do art.129, CP.

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A estrutura do tipo de injusto do delito de lesões ao concebido deveria abarcar todas aquelas ações que causem no embrião ou feto humano uma lesão ou enfermidade que comprometa gravemente o seu desenvolvimento normal, ou que provoque no concebido um grave menoscabo físico ou psíquico. Tal descrição abarcaria qualquer método ou procedimento capaz de provocar uma alteração patológica de caráter anatômico ou funcional no concebido, que afete seus membros, sentidos ou funções (p. ex., que ele nasça sem um dos braços, cego, ou com dificuldades cardiorrespiratórias), ou uma alteração somática do conjunto do organismo (p. ex., que seja portador do vírus da AIDS por um contágio ocorrido durante a gestação[40]), ou ainda uma alteração de suas funções psíquicas (doenças mentais) que gere o comprometimento das funções intelectivas. "Grave menoscabo físico ou psíquico", por sua vez, deve ser entendido como um déficit físico ou mental de cunho permanente e irreparável. A relevância da ação típica, porém, deveria ficar sempre condicionada ao fato de que as lesões possam comprometer gravemente o desenvolvimento posterior do concebido após o nascimento. Assim, a ação delitiva deve ocorrer durante a gravidez, mas os resultados podem se manifestar já no interior do ventre materno ou só algum tempo depois do parto. O importante, destarte, é que as consequências da lesão se protraiam para além do período da gestação. Ficariam excluídas, portanto, aquelas ações lesivas que provocassem consequências limitadas ao período pré-natal, mas que pudessem ser sanadas antes do nascimento (p. ex., porque o próprio concebido se recuperasse naturalmente do trauma, ou porque algum tratamento médico-cirúrgico intrauterino eliminasse por completo a lesão), pois as mesmas não comprometeriam de forma alguma a vida futura do concebido[41].

O tipo de lesões ao concebido também poderia ser cometido por omissão, quando o sujeito ativo ocupasse a posição de garante do bem jurídico protegido (art.13, §2º, CP). Assim, p. ex., cometeria esse delito por omissão o médico que sabe que a gestante consome algum medicamento capaz de causar malformações fetais (p. ex., talidomida, isotretinoína) e não a adverte desse risco[42].

Caberiam tanto o dolo direto quanto o eventual, sendo mais comum este último, em que o agente, embora não queira diretamente o resultado, assume o risco de produzi-lo (art.18, I, in fine, CP). É o que ocorre no exemplo do médico, antes citado, que não relata à paciente os efeitos potencialmente danosos de um medicamento para a formação do feto, sabendo-a grávida, ou daquele que contagia propositadamente a gestante com o vírus da AIDS, correndo o risco de que o mesmo seja transmitido ao concebido pela corrente sanguínea[43], ou ainda de quem golpeia fortemente a gestante, provocando lesões à integridade física tanto dela quanto do feto. Nada impediria, ademais, que a própria mulher grávida causasse as lesões dolosas ao concebido por dolo eventual, ao ingerir remédios que ela sabe serem capazes de causar malformação fetal, ou ao praticar de forma excessiva atividades físicas, esportes de alto impacto ou trabalhos perigosos. Certamente, ao ignorar os efeitos potencialmente lesivos da ingestão dos remédios ou das atividades, a gestante incorreria em erro de tipo que, sendo invencível, exclui o dolo e, sendo vencível, permite a punição pelo delito culposo[44] (art.20, caput, CP).

Cumpre observar que, caso o médico atue com o propósito de curar a enfermidade que padece o embrião ou feto (p. ex., realizando uma aminiocentese), e durante esse procedimento provoca uma lesão à integridade física deste, não realizará o tipo de lesões ao concebido em sua forma dolosa, pois o dolo, como já se disse, é incompatível com a vontade de curar, já que a ação terapêutica vai dirigida à melhora da saúde do

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concebido (falta o desvalor do resultado e, consequentemente, o desvalor da ação)[45]. Contudo, se resta comprovado que o facultativo atuou com inobservância do cuidado objetivamente devido (art.18, II, CP), responderá pelo crime de lesões ao concebido a título de culpa, que comentaremos a seguir. Já nas hipóteses em que a gestante deva submeter-se a um tratamento para a melhora da sua própria saúde, e o mesmo possa acarretar riscos à integridade física ou psíquica do embrião ou feto (p. ex., através da ingestão de medicamentos que possam gerar malformação fetal, ou que impliquem a exposição a radiações, como as radiografias e as radioterapias), o médico poderá realizar o tipo de lesões ao concebido, pois em relação a este, o dolo de lesar não pode ser cancelado pelo propósito de curar, como no exemplo anterior, já que a vontade curativa do médico, nesses casos, dirige-se à mãe, e não ao feto. Contudo, tais lesões estarão justificadas, pois o próprio Código Penal brasileiro concedeu maior valor à vida e à saúde da mãe em relação à vida e à saúde do concebido, ao autorizar o aborto terapêutico, por aplicação do estado de necessidade, que exclui a ilicitude da conduta (art.128, I, CP)[46].

Uma vez criminalizas as lesões ao concebido, deve-se ter em conta também que mesmo quando este não se encontre ainda no interior do ventre materno (pré-embriões in vitro, fruto das técnicas de reprodução assistida), nada impediria que a proteção penal da integridade corporal também se estendesse a ele, desde que fosse destinado à procriação, pois é possível que as manipulações genéticas originem processos geradores de deformidades embrionárias que podem comprometer a existência futura do ser humano[47]. Poder-se-ia argumentar que o crime de manipulação genética de pré-embriões humanos (tipificada pelo art.25 da Lei de Biossegurança) poderia abarcar o conteúdo do injusto das lesões ao pré-embrião quando estas fossem resultados da referida manipulação, por ser mais específico. Contudo, ficariam fora do tipo as hipóteses em que as lesões fossem produzidas em outras condições (como consequência da transferência de pré-embriões ao interior do útero materno, durante a fertilização in vitro), considerando-se, portanto, necessária a criação dessa nova figura delitiva, desde que, é claro, o pré-embrião cuja integridade física é lesada venha a ser transferido ulteriormente ao útero materno[48]. Entretanto, e sem ignorar as graves implicações que poderiam ter as lesões causadas nessa tenra fase do desenvolvimento humano, não se pode perder de vista as dificuldades de demonstração do nexo causal que a tipificação de semelhante conduta poderia pressupor, com a conseqüente possibilidade de vulneração do princípio da legalidade penal[49], razão pela qual talvez fosse conveniente apenas a criminalização das lesões causadas ao concebido já implantado no útero materno.

3.2.2. Tipo culposo

A decisão de criminalizar também as formas culposas do delito de lesões ao concebido é a mais acertada, pois não há dúvida de que são justamente estas as formas mais frequentes de configuração desse delito, sobretudo no âmbito sanitário[50]. O tipo de injusto do delito culposo fundamenta-se na falta de observância do cuidado objetivamente devido, e, ao contrário do tipo doloso, requer sempre a produção de um

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resultado e o nexo causal entre este último e a conduta descuidada, não admitindo punição em grau de tentativa.

Não raro, podem-se produzir lesões à integridade física ou psíquica do concebido quando o médico não observa o seu dever de cuidado de não receitar à gestante, p. ex., um medicamento potencialmente danoso à integridade corporal do feto. Todavia, não se podem ignorar, em tais casos, os inconvenientes derivados da necessidade de comprovação do curso causal que liga as condutas culposas ao resultado, especialmente quando se trata de ações sobre o embrião ou feto cujos efeitos sejam ainda desconhecidos pela ciência (tome-se como exemplo o famoso caso Contergan[51], ocorrido em meados do século XX). Demais disso, é forçoso salientar que a previsão do delito de lesões culposas ao concebido pelo Código Penal brasileiro encontraria obstáculo na própria atipicidade do aborto culposo, que tornaria incoerente a punição das lesões provocadas no embrião ou feto por inobservância do cuidado objetivamente devido, já que não teria sentido a criminalização dos atentados culposos à integridade física do nascituro se sua morte provocada de forma imprudente permanecesse penalmente irrelevante. Por outra parte, a previsão desse delito na forma exclusivamente dolosa teria pouca aplicação prática -embora dela certamente não se possa prescindir-, pois, como já destacado, na maioria absoluta dos casos tais lesões seriam causadas ao embrião ou feto por imprudência médica, e não de forma intencional. Daí porque a melhor solução seria que o legislador suprimisse ambas as lacunas de punibilidade aqui apontadas, criminalizando tanto o aborto culposo, quanto as lesões (dolosas e culposas) ao concebido no Código Penal brasileiro.

3.3. Formas imperfeitas de execução

Os tipos em questão são todos de resultado material, isto é, delitos em que é possível separar no tempo e no espaço a ação e o resultado, que se unem por um nexo de causalidade. Cumpre salientar, porém, que o relevante é que a ação delitiva tenha lugar quando o feto ainda se encontre no interior do claustro materno, mesmo que o resultado (isto é, a morte do concebido, ou as lesões que comprometam gravemente o seu desenvolvimento) só se verifique após o parto. Isso porque, de acordo com o Código Penal brasileiro, conforme já destacado, tempo do crime é o tempo da ação (art.4º), e não o do resultado. Assim, caso o sujeito provoque as lesões durante a gestação, mas o concebido não chegue a padecer um menoscabo da integridade física ou psíquica que comprometa sua vida futura, o delito será punido apenas como tentativa (art.14, II e parágrafo único, CP).

E se o feto finalmente vem a falecer, como consequência das lesões dolosas provocadas durante a gravidez? Em tais casos, a solução mais coerente com a teoria finalista da ação estabelece que, se o autor inicialmente obrou com o dolo de lesionar a integridade física ou psíquica do concebido, deverá ser punido pelas lesões em grau de tentativa, em concurso formal (art.70, CP) com o delito de aborto culposo (cuja criminalização é por nós aqui sugerida)[52]. O problema poderia ser igualmente resolvido mediante a criação de uma figura qualificada pelo resultado para o delito de lesões dolosas ao concebido, em que a morte culposa do embrião ou feto como decorrência das lesões fosse punida

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com margens penais mais amplas que as do tipo básico de lesões dolosas, como já se faz com respeito à vítima já nascida (art.129, §3º, CP). Também o dolo do sujeito ativo será determinante para diferenciar as lesões dolosas consumadas do aborto doloso meramente tentado, pois o propósito inicial do autor é o que permitirá distinguir entre o fim de atentar contra a vida ou de apenas lesionar a integridade física do concebido[53].

4. Sujeitos ativo e passivo

Em princípio, qualquer pessoa poderá figurar como sujeito ativo dos delitos de aborto culposo e de lesões ao concebido (delitos comuns). Contudo, o normal é que tais crimes sejam perpetrados por profissionais do âmbito sanitário, especialmente em sua modalidade culposa. Por outro lado, sujeito passivo desses crimes será sempre o concebido, que é o titular dos bens jurídicos protegidos nesses casos[54] (vida humana dependente e integridade física ou psíquica do ser humano em formação). A gestante só poderá figurar como sujeito passivo quando a agressão também lesione um bem jurídico de sua titularidade, como costuma ocorrer no delito de aborto, que poderá vulnerar sua integridade física, mas em tais casos o autor do crime deverá ser responsabilizado pelas penas do delito de lesões corporais dolosas qualificadas pelo aborto culposo (art.129, §2º, V, CP), que protege ambas as vítimas, ou pelo futuro delito de aborto culposo em concurso com as lesões corporais culposas (art.129, §6º) perpetradas contra a gestante.

A pena prevista para os crimes aqui sugeridos deveria ser especialmente agravada quando o autor de tais condutas (lesões ou aborto culposos) fosse o facultativo, pois dos médicos se exige uma maior diligência na realização de condutas que possam por em risco a saúde ou a vida do embrião ou feto. Esta seria, portanto, uma circunstância que atua sobre a medida da culpabilidade, já que o aumento de pena teria fundamento na maior reprovabilidade do autor pela realização da conduta típica e ilícita.

Seria ainda razoável que fosse afastada a punibilidade tanto do aborto culposo quanto das lesões culposas ao concebido em relação à gestante, por meio da previsão de uma escusa absolutória, tal como já ocorre no Código Penal espanhol (arts.146.3 e 158.3), por considerar-se que a imposição da pena nesses casos não é aconselhável do ponto de vista político-criminal[55]. Assim, p. ex., não teria sentido aplicar uma pena criminal à mãe que, uma vez iniciadas as contrações uterinas anteriores ao parto, deixasse imprudentemente de ir o mais rápido possível ao centro hospitalar mais próximo, ocasionando a morte do feto, pois já seria punição suficiente o fato de ser ela a responsável pela morte culposa do próprio filho[56].

5. Penas

Ao delito de lesões corporais ao concebido, tanto dolosas quanto culposas, deveriam ser aplicadas penas mais brandas que aquelas previstas para as mesmas condutas quando

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levadas a cabo contra o ser humano já nascido, mantendo-se assim a proporcionalidade que já existe na diferença entre as penas dos crimes de aborto e de homicídio dolosos. O delito de aborto culposo também deveria ser punido mais levemente que o delito de aborto doloso e, certamente, com menos rigor que o homicídio imprudente contra a vida humana independente.

Um setor da doutrina considera, porém, que deveria existir uma espécie de "inversão valorativa" no tocante às penas das lesões ao concebido e do aborto, argumentando que, nessa fase do desenvolvimento humano, ao contrário do que se prevê para a pessoa já nascida, resulta mais grave o fato de se lesar a integridade física ou psíquica do ser em formação, que estará obrigado a padecer as consequências desse crime por toda a vida, do que atentar contra a sua vida, impedindo que ele venha a nascer. Dito de outro modo, quando se trata de pessoa não nascida, sua integridade física e mental teriam maior valor que a sua própria vida[57]. Tal fato resultaria especialmente evidente naqueles ordenamentos (como, p. ex., o espanhol) que acolhem a indicação eugênica do aborto, pois neles o legislador manifesta expressamente sua preferência pela existência saudável do concebido, em detrimento de sua própria subsistência. Contudo, ao não ser este o caso do ordenamento penal brasileiro, consideramos que as penas do aborto culposo deverão ser sempre mais graves que as das lesões culposas ao concebido, ao menos até que se discuta seriamente a possibilidade de inserção da indicação relativa ao aborto eugênico em nosso país.

6. Conclusões principais

Ante o exposto, conclui-se que é imperiosa a necessidade de criação dos tipos penais de aborto culposo e lesões corporais ao concebido em nosso ordenamento, pois tais crimes viriam a preencher uma lacuna na proteção penal da vida humana dependente, através de uma tutela mais adequada e suficiente da vida e da integridade física e mental do ser humano em formação. Com a exposição dos argumentos favoráveis à incriminação, tratamos de demonstrar que a tipificação desses delitos, ainda não existente em muitos ordenamentos modernos, não seria o resultado de uma necessidade político-criminal transitória, ou da atuação de um Direito Penal simbólico e preventivo, mas sim um imperativo derivado do próprio texto constitucional, que protege a vida e a saúde humanas não só como direitos subjetivos, mas também como bens jurídicos, isto é, bens do Direito cuja tutela não pode ser negada inclusive durante as fases mais precoces do desenvolvimento humano. As novas e modernas técnicas de diagnóstico pré-implantatório, os exames pré-natais e mesmo a terapia gênica já demonstraram que são capazes de trazer melhorias antes impensáveis à saúde do concebido, mas não resta dúvida de que também podem expor a grave perigo sua vida e sua integridade corporal. Cabe ao Direito Penal intervir para que esses importantes bens jurídicos não permaneçam carentes de proteção.

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[1] Descrição da metodologia finalista (que parte da relação de fidelidade entre juízos axiológicos ou normativos, por um lado, e o substrato ontológico ou matéria de regulação a que se referem, por outro, com o fim de averiguar a autenticidade dos primeiros) adaptada de ROMEO CASABONA, C. M. El derecho a la vida: aspectos constitucionales de las nuevas biotecnologías. Actas de las VIII Jornadas de la Asociación de Letrados del Tribunal Constitucional, p.31-32.

[2] Insta salientar que a nidação assinala também o momento em que a vida embrionária adquire maior estabilidade, pois até então se constata que é bastante freqüente a ocorrência de abortos naturais: cerca de 50% das gestações terminam prematuramente até o décimo quarto dia após a fecundação. A partir da aderência do embrião no útero materno, porém, a percentagem de perdas diminui para no máximo 20% (vide MARIS MARTÍNEZ, S. Manipulação genética e Direito Penal, p.84-85). Costuma-se considerar que nessa primeira etapa que precede a nidação opera-se uma espécie de "seleção natural", em que a natureza "defende a qualidade da espécie, evitando o nascimento de um grande número de seres portadores de graves cromossopatias ou malformações congênitas" (GAFO, J. El aborto y el comienzo de la vida humana, p.245). Em idêntico sentido, destaca-se que "o momento da nidação ou implantação do embrião no endométrio materno representa também um ponto decisivo nas primeiras fases desde a culminação da concepção, no sentido de que já foram superados determinados fenômenos biológicos (fisiológicos, genéticos e hormonais) que assentam a sua individualidade e que denotam até então certa instabilidade biológica por parte do embrião" (ROMEO CASABONA, C. M., op. cit., p.41).

[3] Vide a respeito LACADENA, J.-R. Embriones humanos y cultivos de tejidos: reflexiones científicas, éticas y jurídicas. Revista de Derecho y Genoma Humano, v.12, 2000, p.82-84; GAFO, J., op. cit., p.243; MARIS MARTÍNEZ, S., op. cit., p.80-85.

[4] Vide LACADENA, J.-R., op. cit., p.78-79.

[5] É oportuno registrar que o termo "pré-embrião" foi introduzido pela embriologista norte-americana A. McLaren em 1986 para designar aquele ser no qual se encontram unidos os gametas feminino e masculino, ou seja, desde a fecundação até aproximadamente quatorze dias depois, enquanto ainda não tenha se completado a nidação no útero materno (vide CÁRDENAS-GÓMEZ, O. C.; SIERRA-TORRES, C.

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H. El concepto legal de persona en Colombia: ¿Razones biológicas para modificarlo? Revista de Derecho y Genoma Humano, nº 20, 2004, p.78).

[6] Tanto é assim que, inclusive do ponto de vista semântico, costuma-se distinguir entre o embrião pré-implantatório e o "nascituro" (que literalmente alude "àquele que vai nascer"), nomenclatura com a qual se costuma aludir ao embrião e ao feto no interior do útero materno, e que acreditamos possa ser perfeitamente estendida também ao pré-embrião em idênticas condições. Salientando essa diferença, registra-se com acerto que "embora não reste dúvida de que essa denominação seja aplicável ao embrião implantado e ao feto, pois para eles o curso da gestação já se iniciou e dará lugar normalmente ao nascimento de um novo ser, não é tão simples assim dizer o mesmo em relação ao embrião in vitro, posto que requer um ato humano -não reprodutivo em si mesmo- técnico de transferência ao útero de uma mulher e sua conseqüente implantação no endométrio" (ROMEO CASABONA, C. M., op. cit., p.27, nota 31). Mais adiante esse mesmo autor acrescenta ainda que "com efeito, qualquer que seja o significado que se outorgue à palavra gestação, não resta dúvida de que ao estado do embrião in vitro -inclusive se nesse meio artificial prossegue a divisão-multiplicação celular até certo limite- não é possível atribuir-lhe tal condição -a de gestação- reservada ao processo de desenvolvimento no útero materno" (op. cit., p.33-34).

[7] FERRAJOLI, L. La cuestión del embrión entre Derecho y moral. Jueces para la democracia, nº 44, 2002, p.11.

[8] Como bem se destaca, "pode parecer artificioso esse procedimento de diferenciação, pois a vida humana é desde a concepção (momento do começo da vida humana ou, se se prefere, de uma forma de vida humana) um contínuo biológico em constante evolução e desenvolvimento. Mas o Direito deve operar desse modo, seccionando a realidade para assim poder captá-la melhor e poder efetuar a seguir suas próprias valorações" (ROMEO CASABONA, C. M., op. cit., p.32).

[9] Vide ROMEO CASABONA, C. M., op. cit., p.41.

[10] Vide GONZÁLEZ PÉREZ, J. La dignidad de la persona, p.94.

[11] Vide PRADO, L. R. Bem jurídico-penal e Constituição, p.147.

[12] Vide GRACIA MARTÍN, L. In: DÍEZ RIPOLLÉS, J. L.; GRACIA MARTÍN, L. Comentarios al Código Penal, Parte Especial, t.I, p.27.

[13] Nesse sentido, vide JUNQUERA DE ESTÉFANI, R. El embrión humano: una realidad necesitada de protección. Revista de Derecho y Genoma Humano, nº 12, 2000, p.34-35.

[14] Vide ROMEO CASABONA, C. M. El Derecho y la Bioética ante los límites de la vida humana, p.157; GRACIA MARTÍN, L., op. cit., p.34.

[15] Como destaca LAURENZO COPELLO, P. El aborto no punible, p.139.

[16] Nesse sentido ROMEO CASABONA, C. M., op. cit., p.155. O fato de se fixar o início da tutela da vida humana a partir do começo da gestação não significa, porém,

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que os pré-embriões existentes até o momento da nidação não possam ser objeto de proteção penal, mormente quando se cuidam daqueles produzidos por técnicas artificiais de reprodução que virão a ser implantados no útero materno. Nessas hipóteses, cuida-se de amparar a inalterabilidade e a intangibilidade do patrimônio genético da espécie humana, entre outros bens jurídicos (vide, a respeito, ROMEO CASABONA, C. M. Do gene ao Direito, p.258 e ss. e 312 e ss.).

[17] Nesse sentido, LÜTTGER, H. Medicina y Derecho Penal, p.64 e ss. Em sentido oposto, situando o início da vida humana independente a partir da completa expulsão do feto do claustro materno, ROMEO CASABONA, C. M. El Derecho y la Bioética ante los límites de la vida humana, p.158 e ss.; GRACIA MARTÍN, L., op. cit.,p.34. Impõe observar, porém, que os diferentes critérios encontram-se subordinados à orientação legislativa de cada país: o Código Penal alemão (§ 217), o austríaco (art.79), o italiano (art.578) e o português (art.356), a exemplo do brasileiro, apontam como sujeito passivo do delito de infanticídio o ser humano nascente ou o recém-nascido. Destarte, é mister reconhecer que "a delimitação da proteção penal que em vários aspectos se segue dessa situação é explicável pela origem e sistemática da lei; trata-se de um estado de coisas que só pode ser modificado pelo legislador" (LÜTTGER, H., op. cit., p.84).

[18] Um setor minoritário da doutrina entende, contudo, que a destruição de pré-embriões humanos in vitro caracterizaria o delito de aborto (vide, p. ex., MALUF, E. Manipulação genética e o Direito Penal, p.36). Todavia, essa postura não pode ser aceita, pois a própria etimologia da palavra -ab ortus, isto é, extrair de algum lugar- impede que através dessa figura delitiva seja regulamentada a destruição de embriões pré-implantatórios, pois a prática do aborto pressupõe necessariamente a destruição do produto da concepção originado no útero materno (vide RODRÍGUEZ DEVESA, J. M.; SERRANO GÓMEZ, A. Derecho Penal español, Parte Especial, p.74).

[19] Nesse sentido, vide VALLE MUÑIZ, J. M.; GONZÁLEZ GONZÁLEZ, M. Utilización abusiva de técnicas genéticas y Derecho Penal. Poder Judicial, nº 26, 1992, p.119 e ss. Nessa linha, sustenta a doutrina mais autorizada que "constitui uma realidade distinta a situação do embrião in vitro enquanto não foi transferido a uma mulher e não se produziu a subseqüente implantação daquele nesta última, pois o zigoto resultante não tem capacidade por si só de desenvolvimento até que seja transferido a uma mulher" (ROMEO CASABONA, C. M. El derecho a la vida: aspectos constitucionales de las nuevas biotecnologias, cit., p.34).

[20] Como bem registra a doutrina, o sistema de indicações para a acolhida do aborto legal parte do esquema regra-exceção: a regra é a punição do aborto; a exceção, permitir o aborto voluntário em certos casos expressamente regulados em lei (indicações), entre as quais as mais comuns costumam ser a indicação terapêutica (risco de vida para a gestante), a indicação ética ou criminológica (quando a gravidez é produto de estupro ou outro delito sexual), a indicação eugenésica (se existem riscos comprovados de que o feto padeça graves enfermidades físicas ou mentais) e a indicação econômico-social (quando razões variadas induzem à mãe a não culminar a gestação, como o elevado número de filhos, os escassos recursos econômicos, a alta taxa de natalidade vigente no país, etc.). Esse sistema é adotado pela imensa maioria dos ordenamentos mundiais, como Espanha, Itália, Suíça, Reino Unido, Dinamarca, Suécia, Finlândia, Noruega, Holanda, Costa Rica, Colômbia, Guatemala, Honduras, Paraguai, Argentina, Bolívia, Equador, México e Japão (onde, por razões demográficas, é admitida inclusive a

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indicação econômico-social). Já de acordo com o sistema de prazos, o aborto poderá ser livremente praticado até um determinado momento da gestação, que costuma ser fixado em torno às doze primeiras semanas, período em que o embrião passa à categoria de feto. A partir do prazo assinalado pela lei, o aborto só poderá ser praticado de forma lícita se sobrevém alguma das indicações antes referidas. Esse sistema é acolhido por países como Áustria, França, Cuba e Rússia. Optam por um sistema misto, que condiciona as indicações a um determinado prazo, Bélgica, Grécia e Alemanha (sobre o tema, vide, por todos, ROMEO CASABONA, C. M. El Derecho y la Bioétiva ante los límites de la vida humana, p.298-310).

[21] Cumpre destacar que, com anterioridade à entrada em vigor do atual Código Penal espanhol, a doutrina daquele país já se posicionava de forma crítica com respeito à existência dessa lacuna de punibilidade na proteção penal da vida e da integridade do concebido, sugerindo a criação dos tipos em questão (sobre o tema, vide ROMEO CASABONA, C. M., op. cit., p.401 e ss.).

[22] Sugere idêntica incriminação para o ordenamento jurídico italiano ROMANO, M. Legislazione penale e tutela della persona humana (Contributo alla revisione del Titolo XII del Codice Penale). Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, nº 1, 1989, p.74, e para o alemão, ROXIN, C. La protección penal de la vida humana mediante el Derecho Penal. In: Dogmática y Ley Penal. Libro Homenaje a Enrique Bacigalupo, t.II, p.1198.

[23] Vide LÜTTGER, H., op. cit., p.78.

[24] Como observam, em relação ao Direito Penal español, FLORES MENDOZA, F. El delito de lesiones al feto en el Código Penal español de 1995. Revista de Derecho y Genoma Humano, nº 5, 1996, p.177; HIGUERA GUIMERÁ, J.-F. El Derecho Penal y la Genética, p.322; PERIS RIERA, J. M. La regulación penal de la manipulación genética en España: principios penales fundamentales y tipificación de las genotecnologías, p.161 e ss.; RAMÓN RIBAS, E. El delito de lesiones al feto. Incidencia en el sistema de tutela penal de la vida y la salud, p.386.

[25] ROMEO CASABONA, C. M. Del gen al Derecho, p.443.

[26] Deve ser afastada, ainda, a solução pela qual se sancionariam as lesões graves ao concebido como aborto tentado, pois, nas lesões, a conduta vai dirigida contra a integridade física ou psíquica do nascituro, enquanto que no aborto, o dolo do autor diz respeito exclusivamente à destruição do embrião ou feto (vide CUERDA RIEZU, A. Límites jurídico-penales de las nuevas técnicas genéticas. Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, t.XLI, fasc.2, 1988, p.420, nota 24).

[27] Nesse sentido, registra-se ainda que "do ponto de vista médico, essa identificação entre o feto e o corpo da mãe não é correta: apesar da conexão interna, se trata de 'dois sistema biológicos diferentes': sua independência chega até o ponto em que ambos os sistemas circulatórios se encontram totalmente separados; o feto não constitui uma função da mãe e uma lesão ocasionada a ele não é um sintoma do organismo materno. A lesão ao feto não afeta para nada a saúde da gestante (...). Só se a própria saúde da interessada resulta vulnerada é que será considerado o delito de lesões em seu prejuízo"

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(LÜTTGER, H. op. cit., p.79-80). Nesse sentido também, vide, entre outros, FLORES MENDOZA, F., op. cit., p.174-175.

[28] Vide, sobre a analogia em matéria penal, PRADO, L. R. Curso de Direito Penal brasileiro, Parte Geral, p.180-182.

[29] Faz-se a opção pelo termo "concebido" em detrimento de "nascituro", pois, como já salientado anteriormente, esta última expressão faz alusão ao ser humano destinado a nascer, enquanto que o primeiro termo não carrega essa expectativa, o que nos parece mais correto, já que o Direito Penal deve proteger a vida e a integridade do embrião ou feto independentemente de que o mesmo finalmente nasça ou não com vida. Na Espanha, porém, os delitos dos art.157 e 158 do Código Penal são denominados legalmente como delitos de "lesões ao feto", o que faz com que a doutrina daquele país mergulhe num intenso debate a respeito do alcance dessa expressão, que interpretada literalmente poderia excluir da proteção do artigo os pré-embriões e embriões humanos (no sentido de uma interpretação ampla da palavra "feto", vide FLORES MENDOZA, F., op. cit., p.182; GRACIA MARTÍN, L.; ESCUCHURI AISA, E. Los delitos de lesiones al feto y los relativos a la manipulación genética, p.31-33 e ROMEO CASABONA, C. M. Genética y Derecho Penal: los delitos de lesiones al feto y relativos a las manipulaciones genéticas. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: RT, nº16, 1997, p.37 (argumentando corretamente que o pré-embrião e o embrião são ainda mais vulneráveis que o feto, razão pela qual não caberia outra interpretação, tendo em vista o sentido que o legislador quis imprimir à norma); a favor de uma interpretação estrita, vide, p. ex., BENÍTEZ ORTÚZAR, I. F. Aspectos jurídico-penales de la reproducción asistida y la manipulación genética humana, p.419; PERIS RIERA, J. M., op. cit., p.165 e HIGUERA GUIMERÁ, J.-F., op. cit., p.324; na opinião deste último autor, uma interpretação ampla do termo "feto" implicaria a adoção de analogia in malam partem, inadmissível em matéria penal. Tudo isso só põe em evidência a necessidade de que o legislador empregue os termos técnicos corretos ao redigir os tipos penais, com vistas a evitar posteriores polêmicas doutrinárias.

[30] Vide ROMEO CASABONA, C. M. Del gen al Derecho, p.187-188.

[31] Assim, p. ex., na Espanha, o aborto eugênico é permitido até a 22ª semana de gestação, quando, mediante o parecer de dois especialistas de um centro ou estabelecimento público ou privado acreditado para tanto, diferentes daqueles profissionais que realizarão o aborto, se presume que o feto nascerá com graves enfermidades físicas ou psíquicas, (art.417 bis.1, 3ª, CP).

[32] Vide ROMEO CASABONA, C. M. El Derecho y la Bioética ante los límites de la vida humana, p.374.

[33] Vide ROMEO CASABONA, C. M. Del gen al Derecho, p.189.

[34] Isso significa que se o médico pratica determinada intervenção com o escopo de tratar o paciente, e logra efetivamente recuperar ou salvar sua vida ou saúde -isto é, obtém, com a intervenção, um resultado favorável e desejado- sua conduta será atípica, pois não lesiona bem jurídico algum, mas sim melhora a saúde do paciente. Contudo, quando a intervenção se realiza com finalidade de tratamento de terceiras pessoas, e não do próprio paciente que a ela se submete (p. ex., transfusões de sangue, transplantes de

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órgãos) ou com objetivos estéticos ou de experimentação, considera-se que a conduta do médico sempre realizará o tipo (objetivo e subjetivo) de lesões corporais ou de homicídio dolosos (vide, a respeito, CEREZO MIR, J. Curso de Derecho penal español, t.II, p.316-323; PRADO, L. R., op. cit., p.355-356).

[35] Vide PRADO, L. R. Curso de Direito Penal brasileiro, Parte Especial, vol.2, p.139.

[36] Como salientam ROMEO CASABONA, C. M. El Derecho y la Bioética ante los límites de la vida humana, p.401 e GRACIA MARTÍN, L.; ESCUCHURI AISA, E., op. cit., p.15.

[37] Vide infra, item 5.

[38] Vide, nesse sentido, por todos, PRADO, L. R., op. cit., p.129 e 132.

[39] Compartilha esse entendimento, na doutrina nacional, SOUZA, P. V. S. Criminalidade genética, p.95-96.

[40] Pois o contágio ocorrido no momento da fecundação (p. ex., o genitor transmite intencionalmente uma doença hereditária de que sabe ser portador) é atípico, não só pelas dificuldades de prova do nexo causal, mas sobretudo pelo fato de que no momento da procriação, o objeto material do delito de lesões ao concebido (isto é, o embrião ou feto) ainda não existe (vide GRACIA MARTÍN, L.; ESCUCHURI AISA, E., op. cit., p.33 e BENÍTEZ ORTUZAR, I. F., op. cit., p.428, nota 909).

[41] Vide, nesse sentido, GRACIA MARTÍN, L.; ESCUCHURI AISA, E., op. cit., p.37-38; em sentido oposto, entendendo que mesmo aquelas lesões que tenham repercussão exclusivamente durante a gravidez sejam reputadas típicas, FLORES MENDOZA, F., op. cit., p.184 e ss.; BENÍTEZ ORTUZAR, I. F., op. cit., p.428.

[42] O exemplo é de BENÍTEZ ORTUZAR, I. F., op. cit., p.431. Não seria assim, porém, no caso em que o concebido padecesse malformações ou enfermidades prévias a qualquer conduta imprudente da mãe ou do médico. Em tais casos, em que o diagnóstico pré-natal detectasse a existência prévia de tais lesões, e o médico ou os genitores decidissem não iniciar tratamento algum, não é possível entender que os mesmos seriam responsáveis pelas lesões dolosas em comissão por omissão, pois a estrutura dos delitos impróprios de omissão se fundamenta na não evitação de um resultado inexistente ex ante, e não na não evitação de um resultado danoso que já existia antes da própria omissão (é dizer, a enfermidade ou malformação fetal), e muito menos na omissão de um resultado positivo que não existia com anterioridade à omissão do garante (nesse caso, a restauração saúde do concebido, que nunca foi saudável). Assim, estima a doutrina que só existiria responsabilidade por um delito de lesões ao feto por omissão caso, iniciado o tratamento curativo, o médico ou os genitores decidissem interrompê-lo injustificadamente, havendo perigo de regressão ao status quo ante prejudicial à saúde do concebido, pois aqui, sim, os garantes do bem jurídico assumiriam o domínio do curso causal que leva ao resultado lesivo, algo que não fizeram no primeiro caso, em que a situação prejudicial à saúde do embrião ou feto é preexistente ao comportamento omissivo. Nessa segunda hipótese, embora típica, a omissão do médico ou da gestante poderia estar justificada caso se comprovasse que a

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continuação do tratamento poria em perigo a saúde ou a vista da mãe, bem jurídico ao qual o ordenamento confere maior valor, em detrimento da vida e da saúde do concebido, ante a possibilidade de justificação do aborto terapêutico do art.128, I, CP. Sobre o tema, vide com maior detalhe GRACIA MARTÍN, L.; ESCUCHURI AISA, E., op. cit., p.48-51.

[43] Vide GRACIA MARTÍN, L.; ESCUCHURI AISA, E., op. cit., p.40.

[44] Lesões culposas pelas quais, porém, a gestante não será punida por razões que mais tarde serão expostas (vide infra, item 5).

[45] Nessa linha, vide GRACIA MARTÍN, L.; ESCUCHURI AISA, E., op. cit., p.46-47. De qualquer maneira, adverte a doutrina que a responsabilidade por dolo eventual seria possível nos casos de intervenções terapêuticas arriscadas sobre o feto, quando a análise da proporcionalidade entre o objetivo perseguido, os meios disponíveis e os riscos que supõe a intervenção adquire especial relevância (vide ROMEO CASABONA, C. M., op. cit., p.379).

[46] Vide GRACIA MARTÍN, L.; ESCUCHURI AISA, E., op. cit., p.47-48.

[47] Nessa trilha, vide CUERDA RIEZU, A., op. cit., p.427; GRACIA MARTÍN, L.; ESCUCHURI AISA, E., op. cit., p.32; PERIS RIERA, J. M., op. cit., p.165; FLORES MENDOZA, F., op. cit., p.182 e 193. Esta última autora esclarece que, em tais casos, o fundamento da proteção penal não seria a tutela da vida humana dependente em si mesma, mas sim o direito de toda pessoa a nascer livre de danos à sua integridade física, que possam comprometer sua vida futura.

[48] Pois, conforme dito anteriormente (vide supra, item 2), não consideramos que a vida e a saúde do pré-embrião in vitro não destinado à procriação sejam dignas de proteção jurídico-penal, devendo sua tutela ficar a cargo do Direito Civil e do Direito Administrativo (em idêntico sentido, FLORES MENDOZA, F., op. cit., p 183).

[49] Sobre as dificuldades de prova do nexo causal nesses delitos, vide ROMEO CASABONA, C. M., op. cit., p.404 e PERIS RIERA, J. M., op. cit., p.165-166.

[50] Como destacam, com razão, ROMEO CASABONA, C. M., op. cit., p.448; FLORES MENDOZA, F., op. cit., p.188 e PERIS RIERA, J. M., op. cit., p.166.

[51] Sobre esse caso, registra-se que "nos anos sessenta foi ministrado a inúmeras mulheres grávidas da Europa e da América do Norte um analgésico -a talidomida- supostamente inócuo para a gestação. Contudo, milhares de crianças nasceram com greves deformidades, que em muitos casos acarretavam a ausência ou a atrofia das extremidades superiores e inferiores. Houve vários processos, alguns deles dramáticos (como o de Liège, Bélgica, no qual quatro membros de uma família e seu médico foram acusados e absolvidos da eutanásia praticada em um recém-nascido com anomalias desse tipo). De qualquer maneira, as questões jurídico-penais mais importantes ao se discutir o caso na Alemanha foram estabelecer a relação de causalidade, ou seja, provar que o referido medicamento foi a causa real das malformações apresentadas pelos recém-nascidos (...) e a tipicidade dessas condutas, isto é, se eram suscetíveis de pena por algum dos delitos existentes no Código Penal alemão. O Tribunal de Aquisgran, na

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República Federal da Alemanha, ocupou-se do assunto e determinou a condenação pelo delito de homicídio culposo (§222 do CP alemão) das ações pré-natais imprudentes com resultado de morte pós-natal, e pelo delito de lesões corporais culposas (§230 do CP) das lesões pré-natais causadas ao feto com efeitos pós-natais subsistentes. Como facilmente se pode deduzir das anteriores reflexões, esse pronunciamento foi muito criticado pelos juristas. Todavia, em uma sentença muito posterior (22 de abril de 1983) do Supremo Tribunal Federal desse país, chegou-se à conclusão, em um caso semelhante, de que os autores deveriam ser absolvidos, em razão da existência de uma lacuna legal, sanável unicamente por uma intervenção do legislador. Ao final, o assunto foi resolvido extrajudicialmente, através da concessão de indenizações e pensões às vítimas" (ROMEO CASABONA, C. M., op. cit., p.449).

[52] Vide, nessa trilha, BENÍTEZ ORTUZAR, I. F., op. cit., p.435; FLORES MENDOZA, F., op. cit., p.195; GRACIA MARTÍN, L.; ESCUCHURI AISA, E., op. cit., p.59 e CUERDA RIEZU, A., op. cit., p.420, nota 24. Favorável à aplicação exclusiva do delito de lesões dolosas ao concebido, RAMÓN RIBAS, E., op. cit., p.466. Para ROMEO CASABONA, o dolo de agredir o embrião ou feto leva consigo ao menos o risco (dolo eventual) de provocar o aborto, pois, dada a delicadeza de uma gravidez, o risco de morte será quase sempre inerente à causação das lesões dolosas, razão pela qual este autor opta por sancionar este comportamento como um aborto tentado, como solução de lege lata, naqueles ordenamentos que não contemplam o crime de lesões ao concebido (op. cit., p.403, nota 87).

[53] Como assevera BENÍTEZ ORTUZAR, I. F., op. cit., p.435.

[54] Independentemente, portanto, do fato de que se atribua ou não a esses seres humanos a condição jurídica de pessoa, pois, como já salientado, a existência de um bem jurídico digno de proteção pelo Direito Penal não depende do reconhecimento desta condição (vide supra, item 2). Nessa linha, vide GRACIA MARTÍN, L.; ESCUCHURI AISA, E., op. cit., p.26 e RAMÓN RIBAS, E., op. cit., p.392.

[55] Nessa linha, vide GRACIA MARTÍN, L.; ESCUCHURI AISA, E., op. cit., p.75. Entendem, porém, que se trata de uma causa de exclusão da culpabilidade, por não ser exigível à gestante, durante a gravidez, a observância de cuidados que limitariam consideravelmente sua liberdade ação, FLORES MENDOZA, F., op. cit., p.189; VALLE MUÑIZ, J. M.; GONZÁLEZ GONZÁLEZ, M., op. cit., p.144.

[56] Nos mesmos moldes do perdão judicial aplicável ao homicídio culposo (art.121, §5º) e às lesões corporais culposas (art.129, §8º), em que o juiz poderá deixar de aplicar a pena, se comprovado que as consequências da infração atingiram o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torna desnecessária.

[57] Vide, nesse sentido, CUERDA RIEZU, A., op. cit., p.422; GRACIA MARTÍN, L.; ESCUCHURI AISA, E., op. cit., p.66 e HERNÁNDEZ PLASENCIA, J. U. La protección penal del embrión preimplantatorio. In: ROMEO CASABONA, C. R. (Ed.). Genética y Derecho Penal: previsiones en el Código Penal español de 1995, p.119. Contrário a esse entendimento, ROMEO CASABONA, C. M. Genética y Derecho Penal: los delitos de lesiones al feto y relativos a las manipulaciones genéticas, cit., p.40.