kyudo - a arte de viver

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Outras obras de interesse:

A ARTE CAVALHEIRESCA DO ARQUEIRO ZEN Eugen Herrigel O CAMINHO ZEN Eugen Herrigel A DOUTRINA ZEN DA NO-MENTE D.T. Suzuki INTRODUO AO ZEN-BUDISMO D.T. Suzuki O ESPRITO DO ZEN Alan W. Watts ZEN E A EXPERINCIA MSTICA Alan W. Watts ZEN E REALIDADE Robert Powell ZEN E AS AVES DE RAPINA Thomas Merton O ZEN NA ARTE DA CERIMNIA DAS FLORES Gusty L. Herrigel O ZEN NA ARTE DA CERIMNIA DO CH Horst Hammitzsch O ZEN NA ARTE DA PINTURA Helmut Brinker O ARQUEIRO ZEN E A ARTE DE VIVER

KENNETH KUSHNER

O ARQUEIRO ZEN E A ARTE DE VIVER

Traduo PAULO CSAR DE OLIVEIRA Ilustraes JACKSON MORISAWA

Entrada do Kyudo doj em Chozen-Ji

EDITORA PENSAMENTO So Paulo

Ttulo do original: One Arrow, One Life Zen, Archery, And Daily Life Copyright 1988 Kenneth Kushner Publicado pela primeira vez por Routledge & Kegan Paul Ltd.

Sumrio

Agradecimentos .......................................................... Introduo: Iniciando-me na Arte............................... 1 2 3 4 5 6 7 8 9

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Tcnicas e Princpios .................................................. 17 Respirao, Postura e Concentrao ........................... 36 Mushin.............. ...................................................... 51 Koan Zen.................................................................... 60 O Caminho Naturalmente Correto .............................. 72 Zanshin ..................................................................... 84 Dor ............................................................................. 93 Kiai ............................. .......................................... 109 A Viagem Rumo ao Ocidente...................................... 122 Notas .......................................................................... 125

Glossrio ................................................................... 129Edio2-3-4-5-6-7-8-9-10

Ano92-93-94-95

Direitos de traduo para a lngua portuguesa adquiridos com exclusividade pela EDITORA PENSAMENTO LTDA. Rua Dr. Mrio Vicente, 374 - 04270 - So Paulo, SP - Fone: 272-1399 que se reserva a propriedade literria desta traduo. Impresso em nossas oficinas grficas.

http://groups.google.com/group/digitalsource

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Agradecimentos

Introduo INICIANDO-ME NA ARTE

Quero expressar o meu mais profundo reconhecimento s seguintes pessoas: Tanouye Tenshin Roshi, Jackson Morisawa e Suhara Koun Osho, que pacientemente se esforaram para colocar o Zen e os Caminhos ao alcance dos ocidentais. Chozen-Ji Kyud reflete e produto do kiai dessas pessoas. Alm disso, as habilidades artsticas de Jackson Morisawa, seus conheci-mentos de Kyud e da lngua japonesa muito contriburam para este livro. Mike Sayama e Gordon Greene, dois velhos amigos e companheiros de treinamento, que ao longo dos anos me ajudaram de muitas maneiras, tambm deram uma grande contribuio para este livro. Agradeo ainda a Steve Wallman, amigo e companheiro de treinamento, que me prestou uma valiosa assistncia editorial. Minha esposa, rica, que me acompanhou por metade do mundo e que tem tolerado as longas ausncias necessrias para que eu possa prosseguir no meu treinamento.

primeira vista, estabelecer uma relao entre algo to mundano como arco e flecha e o Zen (seja qual for o conceito que se tenha dele), parece uma intolervel depreciao deste ltimo. Eugen Herrigel1 Cheguei a Honolulu no fim de uma tarde de agosto de 1980. Tinha 31 anos de idade e vinha planejando essa viagem h um ano e meio. Havia acabado de pedir demisso do meu emprego no continente e, deixando minha esposa para trs, fui para o Hava a fim de estudar kyud, a Arte Zen do Arco e Flecha. Meu destino era Chozen-Ji, um templo Zen locali-zado no vale de Kalihi, a dez minutos de carro do centro de Honolulu. Eu havia mandado uma carta a Tanouye Roshi,2 o supe-rior de Chozen-Ji, para inform-lo do momento da minha chegada. Quando estudantes do continente chegam ao Hava, ele geralmente providencia para que algum os receba no aeroporto e os conduza at o templo. Eu, porm, havia es-crito que com prazer tomaria um txi, se isso fosse mais con-veniente. Depois de apanhar minha mala na rea de recebimento de bagagem, olhei em redor para ver se havia algum esperan-do por mim. Lamentavelmente, eu no sabia a quem procurar. O enviado de Chozen-Ji talvez no estivesse conseguindo me reconhecer. Comecei a me sentir pouco vontade. Quanto7

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tempo mais deveria esperar antes de tomar um txi? E se ao ir embora eu me desencontrasse da pessoa que fora me receber? Minha ansiedade por entrar num templo Zen crescia. O que significava aquilo? Seria alguma mensagem implcita? Os mestres Zen so conhecidos por tratarem ri-gidamente seus discpulos. Seria isso parte de meu treina-mento ou uma indicao de que no era bem-vindo? Aps cerca de duas horas de espera acabei pegando um txi. Dei o endereo ao motorista e fiquei aliviado ao saber que ele conhecia a rua onde se situava o templo. Ele seguiu pela rodovia que ligava o aeroporto ao centro de Honolulu, saindo pouco depois para Kalihi Street, a rua do templo. Comeamos a subir, e, ao faz-lo, o caminho ia se tornando cada vez mais estreito. O cenrio era mais o de uma floresta tropical chuvosa do que o de uma impor-tante rea metropolitana. O motorista me disse que jamais havia chegado to adentro daquele vale. Continuamos su-bindo at que ele diminuiu a marcha e virou direita, es-tacionando numa entrada para carros, e me disse que hava-mos chegado. - Que espcie de lugar esse? - perguntou ele. - Um templo Zen - respondi. - a primeira vez que o vejo - disse, aparentando es-tar intrigado. - Gostaria de voltar aqui algum dia e conhe-c-lo melhor. Paguei ao motorista, desci do txi e olhei ao redor. O lugar era sombrio e muito silencioso. Diante de mim esta-vam dois conjuntos de construes em estilo japons, sepa-rados por uma grande colina. Caminhei em direo aos pr-dios minha esquerda e vi um aviso que dizia: "Recepo de Visitantes no Escritrio." Abaixo dele, havia uma seta que supostamente deveria indicar o caminho para o escri-trio. Para minha infelicidade eu no conseguia perceber pa-ra qual dos dois conjuntos ela estava apontando. Ainda no havia nenhum sinal de atividade. Resolvi ve-rificar as construes minha esquerda. Subi vrios degraus e cheguei a uma varanda ao longo da parte externa do edi8

fcio. Senti um leve cheiro de incenso e prossegui. De sbi-to, Tanouye Roshi apareceu em uma porta. Silncio! Estamos fazendo zazen. E tire os sapa-tos! disse-me ele. (Mais tarde notei o aviso no topo da es-cada: "No usar sapatos alm deste ponto.") Ordenou-me por meio de gestos que voltasse escada e disse: Estvamos nos perguntando quando que voc che-garia. O senhor no recebeu minha carta? indaguei. Eu recebi a sua carta replicou ele Voc nos deu o nmero do vo e o horrio de chegada. Porm es-queceu de nos dizer o dia completou ele sacudindo a ca-bea lentamente de um lado para o outro em sinal de de-saprovao. Tirei os meus sapatos na escada e voltei para a varan-da. Tanouye Roshi, ento, fez com que eu entrasse na cozinha. Apresse-se e vista as roupas de treinamento disse-me ele. O treino de kyud comea dentro de meia hora e voc poder tomar parte. Sei que para voc no ser fcil. Troquei de roupa e fiquei esperando na cozinha. Um ancio japons, de cabea raspada e usando roupas de sacer-dote, passou pela varanda. Tanouye Roshi falou-lhe em ja-pons e trouxe-o at mim. Este disse Tanouye Suhara Osho. Disse-lhe que estava feliz por conhec-lo e Tanouye Roshi fez a traduo para o japons. Eu vinha aguardando ansiosamente esse encontro h um ano e meio. Suhara Koun Osho mestre em kuyd e sacer-dote Zen no templo de Engaku-Ji, em Kamakura, no Japo. Tanouye Roshi conhecera-o no ano anterior e o convidara para ir a Chozen-Ji a fim de ajudar a montar uma escola de kyud naquele templo. Sua segunda visita a Chozen-Ji estava terminando e ele deveria regressar ao Japo dentro de quatro dias. Eu havia programado minha viagem de modo a conhe-c-lo e poder treinar com ele ainda no Hava. Eu esperava que essa apresentao tornasse possvel a minha ida ao Japo no final daquele ano para estudar com ele. J havia at mesmo 9

arranjado um emprego l, estando assim em condies de me sustentar durante o perodo de treinamento. A seguir, Tanouye Roshi indicou-me a direo do kyud doj e determinou que eu fosse at l para praticar. Ainda confuso e embaraado pela acolhida que tivera em Chozen-Ji, caminhei em direo ao kyud doj para receber minha pri-meira lio na arte Zen do arco e flecha. Acima da entrada do doj havia quatro caracteres japoneses. Mais tarde, fiquei sabendo que significavam o que em nossa lngua poderia ser traduzido por "Uma flecha, uma vida". Assim como a maioria dos ocidentais, tudo o que eu sabia sobre kyud at aquele dia aprendera com o livro A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen, de Eugen Herrigel, um professor alemo de filosofia, que passou cinco anos no Japo durante a dcada de 30. Desejando estudar o Zen, foi aconse-lhado por amigos a dedicar-se a uma de suas artes. Em virtude da sua experincia anterior em atirar com pistola, Herrigel optou pelo kyud. Li o seu livro pela primeira vez quando era calouro na Universidade de Wisconsin; foi o primeiro livro que li na uni-versidade, tendo sido indicado pelo professor de redao, por razes de que no me recordo mais. Apesar de sua populari-dade, reagi-lhe com desdm. Eu no tinha interesse por ques-tes espirituais e me impacientava com o que me parecia ape-nas um nebuloso misticismo. Cinco anos mais tarde, j estudante de ps-graduao em Psicologia na Universidade de Michigan, comecei a estu-dar outra arte japonesa, o carat. Pratiquei-o diligentemente durante cinco anos, e conquistar a faixa preta acabou se tor-nando uma importante meta da minha vida. Antes que pudesse faz-lo, conclu meu doutorado na Universidade de Michigan, em 1977, e mudei-me para Toledo, Ohio, onde continuei a me preparar para os exames que iriam atestar se eu estava pronto para a faixa preta. Um ano antes de me mudar para Toledo, conheci Mike Sayama, colega do curso de ps-graduao. Descobri que ele havia estudado artes marciais num templo Zen chamado 10

Chozen-Ji, no Hava. Mike convidou-me para praticar zazen com ele, mas eu preferi no aceitar, j que ainda no me in-teressava pelo Zen nem tampouco me sentia atrado pela idia de passar longos perodos sentado no cho com as pernas cruzadas. Pouco tempo depois de minha mudana para Toledo, vi Mike fazer uma demonstrao de uma forma de kend, tal como era praticada em Chozen-Ji. Eu jamais havia visto uma concentrao to profunda em artes marciais. Para mim, esse era um aspecto inteiramente novo das artes marciais. Quando ele renovou o convite para treinarmos juntos, eu acabei aceitando. Mike comeou a treinar um pequeno grupo de pessoas interessadas no Zen e nas artes marciais. Eu viajava cerca de 320 quilmetros todas as semanas para participar das sesses. Embora tivesse me juntado ao grupo por causa do treinamen-to em artes marciais, exigia-se que todos os participantes pra-ticassem zazen, de forma que, relutantemente, comecei a faz-lo. Por influncia do grupo, comecei a me interessar pelo Zen. Dez anos depois de t-lo desprezado como um nebuloso misticismo, voltei a ler A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen, vendo-o por um ngulo inteiramente novo. No Zen, costuma-se dizer que quando estamos prontos para um mestre ele nos encontra. Em 1977, eu estava pronto. Em retrospecto, vejo que estava atravessando uma crise. At onde me lembro, minhas energias sempre foram canalizadas no sentido de me firmar profissionalmente. Ao longo dos quatro anos do meu curso de graduao e dos seis do meu doutorado, eu imaginava que, aps concluir os estudos, minha vida entraria nos eixos e eu no teria mais preocupaes. Em 1977 consegui o meu PhD, arranjei um bom emprego, e es-tava comeando a ver os meus artigos serem aceitos por re-vistas especializadas. Entretanto, por algum motivo, meu su-cesso profissional no foi acompanhado pela satisfao que eu antecipava. Eu estava cada vez mais inquieto, tendo a sen-sao de que deveria haver algo mais na vida alm de con-quistar prestgio profissional. Pela primeira vez, o Zen des11

pertou-me o interesse. Eu encarava o Zen como uma maneira de encontrar a satisfao que me estava faltando. O Zen tor-nou-se a sada do meu dilema existencial. Minhas atitudes em relao s artes marciais iam se al-terando medida que eu prosseguia o meu treinamento no Zen. Antes, eu as encarava apenas como meio de defesa pessoal e de condicionamento fsico. Depois passei a entender que as artes marciais tambm nos proporcionam condies para o progresso espiritual. Em pouco tempo, conquistar a faixa preta tornou-se para mim uma meta sem significado. O progres-so na busca do nosso verdadeiro ser no pode ser medido por um pedao de pano colorido. Os japoneses pospem o sufixo "d" aos nomes das artes Zen. "D" um termo importante no Zen. a traduo para o japons da palavra chinesa "Tao". No existe um equi-valente exato em portugus, possivelmente por no haver um conceito anlogo na cultura ocidental. "D" geralmente traduzido por "Caminho", significando senda ou estrada rumo ao despertar espiritual. As artes Zen podem ser chamadas de "Caminhos" e no se restringem s artes marciais; kyud o Ca-minho do arco; kend o Caminho da espada; karate-d o Caminho do punho desarmado; shod o Caminho da escrita (caligrafia "espiritual"); e chad o Caminho do ch (cerimnia do ch). Leggett descreve os Caminhos da seguinte forma: representaes parciais do Zen em determinadas reas, tais como as artes guerreiras da espada ou da lana, as artes liter-rias da poesia ou da caligrafia, e as tarefas domsticas, como servir o ch, polir objetos e fazer arranjos florais. Essas ativi-dades tornam-se Caminhos quando praticadas no apenas pe-los seus resultados imediatos, mas tambm com o intuito de purificar, de tranqilizar e de regular o mecanismo psicofsico e de se alcanar um determinado grau de percepo Zen e ex-press-lo.3 Foi a minha procura por um Caminho que me levou a Tanouye Roshi e ao Chozen-Ji. Fui apresentado a Tanouye 12

Roshi por Mike Sayama, quando Roshi visitou Chicago, em 1978. Tanouye Roshi um americano de origem japonesa que foi professor de msica at receber o certificado de mes-tre Zen, em 1975. Chozen-Ji e o seu centro de treinamento, o Zen Doj internacional do Hava, foram fundados em 1972 pelo seu professor, Omori Sogen Rotaishi, que sucessor dharma direto da linhagem Tenryuji do Rinzai Zen. Essa es-cola enfatiza a integrao do zazen com as artes marciais e as belas-artes asiticas. Assim, todos os estudantes de Chozen-Ji praticam zazen e a maior parte deles dedica-se tambm a uma arte marcial e/ou a uma das belas-artes. O prprio Tanouye Roshi estudou artes marciais durante vrios anos, com nfase para o jud e o kend. Eu havia machucado o joelho pouco antes do meu se-gundo encontro com Tanouye Roshi, em 1979, tendo sido forado a interromper os meus treinos de carat. De qualquer forma, meu interesse pelo carat estava diminuindo, prin-cipalmente em razo dos meus primeiros contatos com o aikid em nosso grupo de treinamento. Perguntei a Tanouye Roshi qual era a arte marcial que mais se adequava a mim, esperando que propusesse o aikid. Fiquei surpreso quando ele me sugeriu o kyud. Foram vrios os seus motivos para tal recomendao. Em primeiro lugar, ele achava que o kyud no foraria os meus joelhos tanto quanto o carat. Segundo, disse que na minha idade (29 anos) eu era velho demais para dominar o carat, o aikid ou qualquer das artes marciais fisicamente mais ativas. E, por fim, ele achava que a prtica do kyud seria uma boa maneira de corrigir a minha m pos-tura. Poucas vezes na minha vida uma deciso foi to acertada. Embora eu jamais houvesse considerado a possibilidade de estudar kyud, tive subitamente a sensao de que esta no s era a coisa certa a fazer como tambm a escolha bvia. Lembrei-me do livro de Herrigel, e ele pareceu-me esboar o tipo de caminho espiritual que eu estava procurando. Uma vez que era praticamente impossvel conseguir lies de kyud na parte continental dos Estados Unidos, Tanouye Roshi

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sugeriu-me que fosse a Chozen-Ji. Imediatamente, iniciei os preparativos para uma prolongada permanncia nesse local. A prtica de kyud acabara de ser introduzida em Cho-zen-Ji. No ano anterior, Tanouye Roshi havia participado de uma excurso cultural pela Europa, patrocinada pelo go-verno japons. Nessa viagem, ele conhecera Suhara Koun Osho, que tambm estava participando do intercmbio cultural. Tanouye Roshi convidou-o para ir a Chozen-Ji, a fim de aju-dar Jackson Morisawa, um de seus alunos, a montar ali um ncleo de ensino de kyud. Ao retornar do Japo, em 1981, mudei-me para Madison, Wisconsin. Desde ento, tenho ido a Chozen-Ji uma ou duas vezes por ano, para continuar meu treinamento com o sr. Morisawa. Em minha terceira visita ao templo, em 1983, Ta-nouye Roshi sugeriu que eu escrevesse um livro que ajudasse os ocidentais a compreenderem melhor o kyud. o que espe-ro conseguir com este livro. Em que pese a imensa popularidade do A Arte Cava-lheiresca do Arqueiro Zen, um dos livros sobre o Zen de maior divulgao no mundo ocidental, pouco se sabe, atualmente, sobre kyud em nossa cultura. Embora jud e carat sejam termos de uso corrente, quase ningum capaz de reconhecer a palavra japonesa para o Caminho do arco. No h dvida de que isso se deve ao fato de Herrigel nunca ter usado o ter-mo kyud em seu livro. Em contraste com as milhares de escolas onde so ensinadas as outras artes marciais, prati-camente impossvel obter lies de ,kyud nos Estados Unidos. At h pouco tempo os americanos que se interessassem por kyud eram obrigados a viajar para o Japo em busca de conhe-cimentos. Neste livro, focalizarei primordialmente o relacionamento entre o kyud e o Zen. Ao faz-lo, tentarei pormenorizar a re-lao entre ele e o treinamento Zen tradicional, descrito por Herrigel. A beleza do A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen reside na sua simplicidade e na sua conciso. Herrigel no entrou em detalhes a respeito de muitas das questes tcnicas e filosficas s quais se referiu. Minha inteno esclarecer14

esses pontos para o leitor e coloc-los no contexto do treina-mento Zen. Meu entendimento do Zen e do kyud foi moldado pelas filosofias dos meus mestres. Nesse sentido, h uma dife-rena bsica no modo pelo qual a filosofia do treinamento em kyud oferecida em Chozen-Ji daquele descrito por Herrigel. Em Chozen-Ji, a prtica de kyud se faz de forma integrada prtica do zazen. O treinamento nos Caminhos e no zazen so processos complementares. O treinamento em kyud torna mais fcil nosso progresso no zazen, e este, por sua vez, facilita a prtica do kyud. Espero, neste livro, elucidar essa complementaridade entre o kyud e o zazen. O que irei dizer sobre o kyud apli-ca-se a qualquer das artes Zen. A maioria dos que estudam ar-tes marciais no praticam o zazen. Reciprocamente, a maior parte dos que praticam o zazen no estudam nenhuma das artes Zen. Eu desejo que este livro ajude a construir uma ponte que preencha o hiato entre o treinamento Zen e o treina-mento em todos os Caminhos. Este livro no pretende ser um manual de instrues sobre kyud ou sobre zazen. O leitor no deve alimentar a esperan-a de aprender kyud ou zazen atravs dele. Em vez disso, espero poder explicar por que algum desejaria estudar kyud e como algo to "mundano", como o manejo do arco, pode ser elevado ao nvel de uma sria experincia espiritual, quando estudado como um Caminho. A fim de encarar o kyud como um esforo verdadeiramente espiritual, devemos consider-lo um microcosmo da vida. Neste livro, tentarei explicar de que forma os princpios envolvidos no processo aparentemente simples de atirar uma flecha em direo a um alvo podem vir a ter profundas implicaes na maneira pela qual condu-zimos nossas vidas. H dois livros que recomendo aos leitores que tiveram o interesse de conhecer melhor as tradies do kyud de Cho-zen-Ji, em particular, e o aprendizado Zen, de maneira geral. Primeiramente, para aqueles que quiserem aprofundar seus conhecimentos em relao ao kyud, recomendo o livro Zen 15

kyudo, de autoria de meu professor, Jackson Morisawa.4 Trata-se de uma obra abrangente a respeito da escola de kyud de Chozen-Ji. Aborda os aspectos tcnicos, filosficos e es-pirituais do kyud de Chozen-Ji com profundidade muito maior do que este livro. Inclui explicaes detalhadas e diagra-mas das tcnicas e procedimentos do kyud. Os leitores que desejarem aprender mais sobre o zazen iro se interessar pelo livro Samadhi: Self Development in Zen, Swordsmanship, and Psychotherapy, de Mike Sayama,5 que contm tradues dos ensinamentos de Omori Sogen Rotaishi. O livro do Dr. Sayama deve despertar um interesse especial em toda pessoa que se interessa por conhecer melhor a filosofia e a origem dos ensinamentos Zen praticados em Chozen-Ji. Alm do mais, a obra de Sayama elucida os aspectos psicolgicos do Zen e do seu treinamento com profundidade muito maior do que a deste livro.

Captulo 1 TCNICAS E PRINCPIOS Milhares de repeties, e a perfeio emerge a partir do nosso verdadeiro ser. Provrbio Zen Suhara Osho partiu de Chozen-Ji para o Japo quatro dias depois de minha chegada ao Hava. Quatro meses depois foi a minha vez de percorrer o mesmo caminho. Eu havia planejado minha estada no Japo de modo que pudesse treinar com Suhara Osho. Tanto eu como minha esposa havamos conseguido empregos de meio perodo como professores, atra-vs da Diviso do Extremo Oriente da Universidade de Mary-land. A fim de ficar mais perto do doj de Suhara Osho, em Kamakura, eu escolhera Yokosuka como local de trabalho. Muito embora eu tencionasse treinar com Suhara Osho, hesi-tei em lhe perguntar diretamente, antes que deixasse o Hava, se eu poderia estudar com ele no Japo. Achei que uma abor-dagem assim to direta por parte de um quase desconhecido seria uma violao dos costumes japoneses. Em vez disso, li-mitei-me a dizer-lhe que estava pretendendo passar algum tempo no Japo e que estaria trabalhando perto de Kama-kura. Ele me deu seu endereo e convidou-me para uma vi-sita. Telefonei para Suhara Osho no dia em que cheguei ao Japo. Com a ajuda de um intrprete, expliquei-lhe que havia treinado rapidamente com ele no Hava e que ele sugerira17

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que eu o procurasse quando fosse ao Japo. Eu no sabia se ele ainda se lembrava de mim. Para minha consternao, ele me disse que estava muito ocupado e que eu deveria te-lefonar-lhe dentro de duas semanas. Exatamente duas sema-nas depois, voltei a lhe telefonar e fui informado de que ele continuava muito ocupado e no poderia me receber seno dali a um ms. Eu estava ficando cada vez mais desapontado. Minha permanncia no Japo era por tempo limitado e eu comeava a me perguntar se, afinal de contas, teria a oportu-nidade de treinar com ele. Um ms depois telefonei-lhe no-vamente, e me disseram que ele poderia me receber naquela semana. Deram-me as instrues necessrias para eu chegar at l, bem como me disseram que haveria um intrprete. Kamakura ficava a duas horas de trem do lugar onde eu morava. Desci do trem na estao Kita-Kamakura e subi os degraus que levavam entrada de Engaku-Ji. Estvamos em meados de abril e a chuva caa torrencialmente. O cho estava lamacento e o ar, carregado com o aroma das cerejeiras em flor. O porteiro do templo, evidentemente, havia sido avisado da minha chegada. Olhou-me e foi perguntando: "Su-hara Osho?" Fiz um sinal afirmativo com a cabea e ambos rimos nervosamente. A seguir, ento, conduziu-me ao kyud doj. Adentrei sozinho ao recinto do doj. No avistando ningum, andei at o edifcio principal e examinei o seu in-terior. No havia ningum por l. Tencionando entrar e espe-rar l dentro, olhei ao redor procurando um lugar onde pu-desse tirar os sapatos. No pretendia repetir a minha entrada em Chozen-Ji. Nesse momento ouvi algum gritar: "Hallo." Voltei a cabea em direo ao som e vi Suhara Osho, vestido com as roupas pretas de trabalho, usadas no templo, acenando com os braos para mim. Acerquei-me e cumprimentei-o, inclinando o corpo. Por meio de gestos, ele conduziu-me ao interior de uma pequena construo de madeira (mais tarde eu viria a saber que a sra. Suhara tinha a concesso de um peque-no negcio de venda de ch a turistas nos arredores do doj e que era ali onde o preparava). 18

Depois que entrei, apareceu uma mulher japonesa. Ela apresentou-se em ingls como uma aluna de kyud a quem Suhara Osho havia pedido ajuda para encontrar um intrpre-te. Ela prosseguiu dizendo que o intrprete chegaria dentro em breve, pediu licena para se retirar e deixou-me a ss com Suhara Osho. Ele preparou duas chvenas de matcha, uma espcie de ch usado na cerimnia do ch. Sentamo-nos em silncio, enquanto eu o observava mexer o ch com um uten-slio de bambu. Bebemos ainda em silncio, impossibilitados que estvamos de conversar. Aps algum tempo a mulher chegou com o intrprete, um americano com quem tinha amizade. Suhara Osho e a mulher comearam a me fazer pergun-tas de forma muito polida. Primeiramente, queriam saber a natureza da minha visita. Respondi que era para dizer "Al" e para verificar se haveria possibilidade de eu treinar ali. Per-guntaram-me onde eu estava morando. Respondi que mo-rava em Zama (local que, conforme eu havia descoberto na-quele dia, ficava a duas horas de trem). Disseram-me que talvez fosse por demais cansativo fazer com freqncia o per-curso entre Zama e Kamakura. Respondi que no me impor-tava com a viagem de trem. Disseram-me que havia um kyud doj na cidade de Zama. Disse-lhes que iria verificar, mas que, mesmo assim, ainda preferia estudar em Kamakura. A conversao prosseguiu nessa linha durante algum tempo. No meu entender, eles estavam dando o melhor de si para me dissuadir de estudar l. No era raro os professo-res japoneses testarem seus futuros alunos procurando de-sencoraj-los. Eu esperava que fosse esse o motivo pelo qual Suhara Osho me fizera esperar seis semanas antes de concordar em me receber e que fosse tambm essa a razo pela qual eles pareciam to dispostos a me convencer a estudar em outro lugar. Resolvi esperar com pacincia at ser aceito ou rejeita-do de forma inequvoca. Em certo momento Suhara Osho retirou-se, deixando-me a ss com a mulher e com o intrprete. Ela continuou a in-terrogar-me. Perguntou-me sobre minhas experincias nos 19

treinamentos feitos em Chozen-Ji, querendo saber se eu havia praticado disparos de flecha em direo ao mat ou apenas contra o makiwara. O makiwara um alvo para exerccio feito de palha enfardada. Atira-se a flecha de mais ou menos um metro de distncia, ao contrrio do mat ou "alvo real", contra o qual se dispara de uma distncia de 28 metros. Na prtica tradicional de kyud, os estudantes poderiam passar anos atirando con-tra o makiwara antes de lhes ser permitido alvejar o mat. A maior parte do treinamento descrito por Herrigel em A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen diz respeito prtica do makiwara. Foi-me dito que Herrigel praticou makiwara durante quatro dos cinco anos que passou no Japo. Nesse pas, atualmente, a prtica do makiwara no to importan-te como foi no passado, permitindo-se freqentemente que os estudantes passem ao disparo da flecha contra o mat ape-nas algumas semanas aps o incio do aprendizado. Muitas vezes os estudantes mostram-se por demais impacientes em comear a atirar contra o mat, tendncia ainda mais acentuada entre os alunos de origem ocidental. Respondi que havia praticado disparos de flecha contra o mat no Hava. Disseram-me, ento, que naquele doj costu-mava-se atirar contra o makiwara durante um longo perodo. Citaram-me o exemplo de um ocidental que assim procedera durante muitas vezes. Repliquei que, quanto a isto, no haveria problemas para mim. Na verdade, nunca esperei que me fosse permitido atirar contra o mat no Japo. Conquanto eu j tivesse praticado dis-paros contra o mat no Hava, o exerccio do makiwara ainda era enfatizado em Chozen-Ji, e haviam-me dito que muito provavelmente eu continuaria a pratic-lo caso fosse estudar com Suhara Osho. No foi surpresa para mim quando me disseram que eu deveria contar apenas com a prtica do ma-kiwara. Depois das perguntas sobre esse assunto, a conversa ad-quiriu um tom menos solene. Suhara Osho voltou e disse que eu era bem-vindo para treinar ali. Conduziram-me num

passeio pelo doj, e a programao de meu treinamento foi organizada. Dois dias depois, retornei a Engaku-Ji para minha primeira aula com Suhara Osho. A primeira coisa que ele me pediu foi que atirasse contra o mat. Suhara Osho sugeriu que eu tambm estudasse com Onuma Sensei, no Toshima-ku doj, em Tquio. Para minha sorte, mais uma vez fui aceito como aluno. Onuma Sensei tambm me pediu que flechasse o mat. Analisando o que aconteceu, vejo que a questo de estar disposto ou no a treinar com o makiwara foi um teste para avaliar a minha seriedade como estudante. Nos dias de hoje, para o aluno de kyud, especialmente, talvez, para um ameri-cano, a capacidade de refrear a atrao pelo mat e de se concentrar na prtica do makiwara pode servir como um im-portante teste para se saber se ele tem ou no a disciplina exigida pelo kyud. No local do makiwara do kyud doj de Chozen-Ji encon-tra-se a frase japonesa: "Hyakuren Jitoku" em caligrafia feita por Omori Sogen Rotaishi. Jackson Morisawa traduz esse adgio por: "milhares de repeties, e a perfeio emerge a partir de nosso verdadeiro ser". Ele escreve, no seu livro Zen Kyud, ao explicar o significado dessa expresso: Para se fazer uma boa espada preciso aquecer, malhar e amolar o ferro repetidas vezes, o que exige uma extraordinria disciplina, organizao e perseverana. Quem instilar essa espcie de disciplina na prtica repetitiva, inovadora e observadora do kyud ser capaz de apreciar a satisfao do seu prprio esfor-o dentro de si mesmo.1 A colocao desse provrbio no local do makiwara ex-tremamente apropriada, visto que, tradicionalmente, esse treinamento tem sido a bigorna na qual o estudante de kyud forja a sua tcnica. Como o disparo feito de uma distncia inexpressiva, o makiwara proporciona uma maneira pela qual os estudantes podem praticar as tcnicas bsicas do kyud sem se deixarem distrair pela preocupao de acertar o alvo. 21

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As palavras escritas por Omori Rotaishi adverte-nos contra o perigo de se abandonar prematuramente o makiwara. No existe substituto para a prtica do makiwara, assim como no h nada que substitua o treinamento dedicado e repe-titivo da prpria arte. O treino do kyud, quer se atire contra o makiwara ou contra o mat, consiste num procedimento formal pa-ra se flechar. Esse procedimento chamado "hassetsu", o que geralmente se traduz como os oito passos ou estgios do kyud. Os aspectos especficos do hassetsu podem dife-rir ligeiramente entre vrias escolas de kyud. Embora haja alguma variao nos movimentos que precedem a execuo do hassetsu, conforme a escola de kyud e o grau de forma-lidade da ocasio, o estudante pratica os mesmos oito passos repetidas vezes durante anos. Para os no-iniciados pode pa-recer que as tcnicas do kyud so simples, pois certamente no haveria necessidade de muito tempo para se dominar uma seqncia de oito passos. Nada, contudo, poderia estar mais longe da verdade. As tcnicas do hassetsu so extrema-mente complexas. Todos os aspectos do disparo so padro-nizados, desde a distribuio do peso do corpo sobre os ps at o ritmo da respirao. Quanto mais praticamos o kyud, mais nos tornamos conscientes das sutilezas das tcnicas dos oito passos. Afirmam com freqncia que se leva no mnimo 30 anos para se dominar a maneira correta de segurar o arco e a flecha. Os oito estgios do kyud so descritos e ilustra-dos com desenhos no final deste captulo (pp. 27-35). A idia de ensinar uma arte atravs de um conjunto padro-nizado de tcnicas encontrada em todos os Caminhos. No kyud, essas tcnicas so em nmero relativamente pequeno e encontram-se no hassetsu. Nesse sentido, o kyud asseme-lha-se cerimnia do ch, que envolve a prtica repetitiva do mesmo ritual de preparo e bebida do ch. Outras artes Zen, especialmente as artes marciais, apresentam maior n-mero de tcnicas. O jud, o aikid e o kend, por exemplo, tm centenas, seno milhares, de tcnicas que precisam ser dominadas pelos alunos. Um estudante passar anos copiando 22

e imitando as tcnicas ensinadas pelo professor. A modifica-o dessas tcnicas no encorajada e, provavelmente, seria reprovada pelo professor. Essa aceitao acrtica e a prtica de tcnicas padronizadas so difceis para muitos ocidentais, acos-tumados que esto a questionar e modificar o que lhes ensina-do, adequando s suas prprias necessidades o que foi aprendido. H uma palavra japonesa ji que se refere aos aspectos tcnicos das artes. No kyud, ji diz respeito s tcnicas do hassetsu, os oito estgios do kyud. Para ele, como para to-das as artes Zen, o mero domnio do ji ou das tcnicas no considerado o objetivo final. Para entender esse fato, preciso atentar para outra palavra japonesa estreitamente relacionada com o ji. o ri, para o qual no existe equivalente em nosso idioma. Ri pode ser entendido como as verdades universais ou princpios subjacentes ao Universo. O ri imutvel e no tem forma. O ri inefvel; impos-svel descrever adequadamente com palavras os princpios subjacentes ao Universo. Como os princpios no tm forma, o modo pelo qual se manifestam varia de acordo com a si-tuao. Manifestaes especficas do ri tambm so chamadas de ji. Assim, nos Caminhos, as tcnicas so vistas como ma-nifestaes especficas dos princpios subjacentes. O ji uma materializao do ri em situaes especficas, mas no o pr-prio ri, assim como uma determinada receita no por si s os princpios subjacentes arte culinria. Pode-se conquistar um elevado nvel de proficincia numa arte, por meio do domnio de suas tcnicas. Podemos, por exemplo, nos tornar peritos em defesa pessoal dominando as tcnicas do jud e do carat, da mesma forma como pode-ramos aprender a atirar flechas certeiras com as tcnicas do kyud. Mas no este o propsito dos Caminhos. O mero domnio das tcnicas no a verdadeira maestria. Depender das tcnicas significa nos limitarmos s tcnicas especficas nas quais somos habilidosos. A esse respeito, Leggett escreve: As tcnicas individuais aprendidas numa das artes nunca iro se ajustar perfeitamente s circunstncias. Mesmo com o jud, 23

que dispe de numerosas tcnicas, temos a tendncia de lanar mo daquelas que dominamos, mesmo que no sejam as mais apropriadas ocasio. H sempre maneiras de se forar um pouco as coisas de modo a possibilitar a execuo de um golpe favorito. Embora isso seja um habilidoso ji, no se pode dizer que seja ri.2 Adquirimos a verdadeira maestria quando passamos a compreender os princpios subjacentes arte. No ato de fazer pontaria contra o alvo pode-se encon-trar no kyud um exemplo de ji e ri, de tcnica e de prin-cpios subjacentes. Existem vrias tcnicas aceitas de se fazer pontaria. Numa delas, chamada de "lua ao romper da aurora",3 faz-se com que a rea do arco diretamente acima do local da empunhadura bloqueie o centro do alvo viso do kyudoca (o praticante de kyud).4 Uma vez que esta parte do arco acha-se envolta por um cordo fino, possvel contar ou esti-mar o nmero de voltas que se v abaixo do centro do alvo, quando este atingido por ocasio de um disparo certeiro. Atravs de tentativas e erros, o kyudoca poder utilizar os cordes como referncia para encontrar um ponto de viso com o qual ter maiores probabilidades de conseguir disparos cer-teiros, de forma semelhante ao procedimento usado para se en-quadrar um alvo na ala de mira de um fuzil. Essas tcnicas, to-davia, apresentam certas limitaes. Em primeiro lugar, o nvel do ponto de referncia ir variar de arco para arco, de acordo com a espessura dos cordes. Segundo, o impulso de um arco varia de acordo com a temperatura e com a umidade do ar. Assim, ser necessrio estabelecer diferentes pontos de viso de acordo com as condies climticas. Da mesma forma, a velocidade e a dire-o do vento influenciam a trajetria da flecha, devendo tambm ser levadas em conta. E, por fim, dizer que se pode realmente es-tabelecer com exatido um ponto de viso simplificar excessi-vamente os fatos. Nenhum kyudoca, por mais habilidoso que seja, consegue manter o arco e a flecha perfeitamente im-veis. Isto ainda mais verdadeiro para o disparo com arco praticado no Japo do que para o seu equivalente ocidental, em virtude das diferenas mecnicas entre os modernos arcos 24

ocidentais e o modelo japons tradicional. Mesmo nos dis-paros feitos por um mestre em kyud pode-se notar uma certa oscilao na ponta da flecha quando o arco est com-pletamente estirado. Embora o tremor seja muito pequeno, j o suficiente para significar a diferena entre acertar ou errar o alvo. O kyudoca precisa "decidir" de alguma maneira em que momento do ciclo de oscilaes ele deve soltar a fle-cha. impossvel descrever adequadamente como isso acon-tece, pois tudo feito por intuio. Qualquer tcnica, tal como o mtodo da lua ao romper da aurora, vem a ser ape-nas uma aproximao do que ocorre num disparo perfeito. Essas tcnicas podem levar o kyudoca apenas at um determi-nado ponto. Da em diante, a intuio precisa assumir o con-trole. Quando o aprendizado se d corretamente, as tcnicas especficas de disparo vo sendo superadas medida que o kyudoca transcende o ji e passa a agir de acordo com o ri. Nos Caminhos, o ji significa habilidade e o ri inspirao. Quando passamos a perceber os princpios fundamentais, nosso desem-penho torna-se inspirado. A compreenso dos princpios subjacentes a uma arte Zen no se baseia num entendimento cognitivo ou intelectual. Mais exatamente, fundamenta-se na percepo intuitiva dos princpios subjacentes ao Universo tal como eles se aplicam quela arte em particular. Trata-se de uma forma de intuio Zen aplicada a uma atividade em especial. Por essa razo, Leggett descreve os Caminhos como "representaes parciais do Zen em determinadas reas".5 Uma vez que so desprovidos de forma, os princpios subjacentes a uma arte no podem ser descritos por completo nem diretamente aprendidos. A filosofia do ensino das artes Zen consiste no aprendizado dos princpios fundamentais atravs da prtica repetitiva das tcnicas. Elas representam formalizaes da compreenso que os mestres tm dos prin-cpios; podem ser consideradas aproximaes dos princpios subjacentes. Assim, o hassetsu um conjunto de tcnicas que, na melhor das hipteses, so aproximaes da maneira naturalmente correta de disparar uma flecha. Essas tcnicas

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podem levar o estudante apenas at certo ponto. No fim das contas, cada estudante tem de enxergar os princpios subjacentes por si mesmo, e isto s pode ser alcanado atravs de interminveis repeties dos oito estgios do kyud. O que nos leva a uma explicao mais aprofundada do adgio "milhares de repeties, e a perfeio emerge a partir de nosso verdadeiro ser". No kyud, assim como nos outros Caminhos, a compreenso Zen a descoberta do nosso verdadeiro ser surge apenas a partir da prtica repetitiva e disciplinada.

HASSETSU Os Oito Estgios do Kyud

ESTGIO I Ashibumi (Posicionar os ps) O kyudoca fica de p, formando um ngulo reto em relao ao alvo, volta o p esquerdo para o alvo e desloca suavemente o direito na direo oposta. No final, os ps formam um ngulo de 60 e acham-se separados por uma distncia de cerca de uma a uma vez e meia a largura dos ombros do kyudoca. A postura cria condies para se passar etapa seguinte, o Dozukuri.

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ESTGIO II Dozukuri (Fir-mando o tronco) Os mscu-los das ndegas e da regio interior das pernas so re-tesados, empurrando a parte inferior do abdmen para a frente. Isto coloca o tanden (centro de energia abaixo do umbigo) acima da base cria-da pelos ps, dando estabili-dade postura.

ESTGIO III Yugamae (Se-gurando o arco) Seguram-se da maneira correta a corda e a flecha com a mo direita enluvada, e o arco com a mo esquerda. O kyudoca volta a cabea para o alvo e observa a rea onde ele est. A seguir, sua cabea volta posio original (de modo que ele fique olhando dire-tamente para a frente). An-tes de erguer o arco, o kyu-doca gira mais uma vez sua cabea di l

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ESTGIO IV Uchiokoshi (Erguendo o arco) Manten-do a flecha sempre paralela ao solo, eleva-se lentamente o arco at que a flecha fique acima do nvel da cabea; os braos erguidos formam um l d 45

ESTGIO V Hikiwake (Es-tirar) A primeira parte desse estgio conhecida por Dai-san, o "grande tero", por-que o arco retesado em um tero. O kyudoca faz avanar a mo esquerda na direo do alvo. A mo di-reita segue naturalmente o movimento da esquerda e o cotovelo direito curva-se for-mando um ngulo reto. 30 31

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ESTGIO V Hikiwake (con-tinuao) (Estirar) Aps uma ligeira pausa no Daisan, o estiramento prossegue. Ainda mantendo a flecha paralela ao cho, a mo esquerda avana na direo do alvo, enquanto o coto-velo direito puxado no sentido oposto com igual fora. No final, a flecha toca a bochecha do kyudoca na altura da boca.

ESTGIO VI Kai (O encon-tro) Mantm-se o hikiwake que acabou de ser comple-tado. Embora a flecha esteja totalmente esticada, a pres-so declinante da respirao e a elevao da nuca fazem com que o peito se expanda, aumentando firmemente a tenso de estiramento do arco. O kyudoca procura criar seu centro espiritual alinhando as foras horizon-tal e vertical do estiramento de modo que elas se encon-trem num ngulo reto e for-mem uma "cruz perfeita". 33

ESTGIO VII Hanare (Li-bertar) Quando os alinha-mentos do Kai so comple-tados, a tenso vai crescen-do at que a corda escape da mo enluvada e a flecha se liberte rumo ao alvo. A sbita liberao da tenso acumulada faz com que a mo direita seja atirada para trs em linha reta, girando em torno do cotovelo; o brao que empunha o arco impulsionado para a frente e para a esquerda ao mesmo tempo que o peito atinge sua mxima expanso.

ESTGIO VIII Zanshin (Per-manecendo corao ou men-te) A impulso dos braos para fora e com igual fora, ocorrida no hanare, faz com que o corpo adquira a forma de uma cruz. Essa po-sio mantida durante o tempo necessrio para se fazer uma inspirao breve e contnua; ento o arco abaixado. O equilbrio entre a respirao, a postura e a concentrao, estabelecido na seqncia do disparo, tem prosseguimento. O kyu-doca mantm a mente alerta e permanece sereno e tran-qilo.

Captulo 2 RESPIRAO, POSTURA E CONCENTRAO O Zen sem a percepo do corpo no passa de v meditao. Omori Sogen Rotaishi

cia um exerccio denominado zazen. Sem ele, o treinamen-to Zen no tem nenhum significado verdadeiro. O zazen tem sido dividido tradicionalmente em trs aspectos: o ajuste da postura, o ajuste da respirao e o ajus-te da atividade mental (concentrao). Essa diviso, na ver-dade, se faz apenas para efeito didtico. Na prtica, o zazen consiste na unificao da respirao, da postura e da concen-trao. Cada um desses aspectos influencia e influencia-do pelos outros dois. Nos Caminhos, os princpios da respi-rao, da postura e da concentrao so aplicados a ativida-des especficas. Passaremos agora a discutir cada um dos processos que constituem o zazen. RESPIRAO

Na primeira semana que passei em Chozen-Ji, Tanouye Roshi fez uma palestra especial sobre os princpios do zazen para quatro de ns, que ramos alunos internos. Foi ento que ouvi pela primeira vez a frase em epgrafe, de autoria de Omori Sogen Rotaishi. Ela expressa uma realidade fun-damental do Zen e serve de base para a filosofia do treina-mento oferecido em Chozen-Ji. A afirmao d realce ao fato de que o Zen no se resume numa filosofia ou num sis-tema intelectual; na verdade, a percepo Zen tanto fsi-ca quanto mental. Este um conceito dej difcil compreen-so para muitos ocidentais, especialmente para aqueles que s conhecem o Zen atravs de livros. Com efeito, no raro os livros sobre Zen se iniciam com advertncias contra o pe-rigo de se atribuir demasiado valor s palavras. Ao contr-rio de outras religies e de algumas seitas do budismo, o Zen no enfatiza o estudo de textos sagrados. Considera-se que a experincia direta e a ao sejam importantes para o es-tudante do Zen. No se espera que ele aceite a doutrina com base na f. Em vez disso, ele estimulado a prosseguir seu treinamento de modo que possa ter uma experincia pes-soal da Unidade do Universo. A chave para essa experin36

No se pode exagerar a importncia do papel que a res-pirao apropriada desempenha no Zen. No entanto, a idia de que a respirao pode ser a chave da espiritualidade ain-da um conceito extico para a maior parte dos ocidentais. Embora no Ocidente as pessoas possam reconhecer a impor-tncia da respirao nos esforos atlticos ou nos exerccios de relaxamento, o controle da respirao geralmente no encarado como uma condio prvia para uma experincia espiritual. A respirao Zen difere em dois aspectos principais da-quilo que a maioria das pessoas considera ser a respirao "normal": muito mais lenta e os movimentos respiratrios so controlados pelos msculos do abdmen inferior e no pela musculatura do peito. Enquanto uma pessoa normal apresenta uma taxa mdia de 18 ciclos respiratrios por mi-nuto, j foram observados mestres Zen nos quais a freqn-cia respiratria cai para menos de quatro ciclos por minuto durante o zazen. Para que possamos compreender a natureza da respi-rao abdominal no zazen, seria proveitoso introduzir aqui37

dois importantes termos japoneses, em geral desconhecidos no Ocidente. O primeiro deles o hara. Fisicamente, o hara designa todo o abdmen inferior, a regio que fica abaixo do umbigo. O segundo termo o tanden, ponto situado a cerca de 2,5 a 3,5 cm abaixo do umbigo, constituindo o cen-tro do hara. Na tradio Zen o tanden visto como o centro fsico e psicolgico do indivduo. Fisicamente, o centro de gravidade do corpo humano. Psicologicamente, consi-derado o centro da personalidade. Afirmar que no Zen a respirao abdominal equivale a dizer que ela controlada pelos msculos do hara. A ins-pirao realiza-se atravs do relaxamento dos msculos do hara. Isto automaticamente relaxa o diafragma e, sem esforo, o ar levado para dentro dos pulmes, da mesma forma como fazemos a gua subir pela pipeta de um conta-gotas ao aliviarmos a presso sobre o bulbo. O resultado que o abdmen inferior projeta-se para a frente. Uma vez que os pulmes estejam cheios, o indivduo faz presso com os ms-culos do hara e comea a expirao. Esse procedimento chamado de "enrijecimento" do hara. A expirao se d de forma bem mais lenta do que a inspirao. A sensao a de que o ar est sendo forado diretamente para baixo, pa-ra dentro do hara. O que realmente ocorre que o retesa-mento dos msculos do hara gera a contrao do diafragma, forando o ar para fora dos pulmes. Os msculos so con-trados de tal forma que o hara permanece saliente e a rea imediatamente acima do umbigo torna-se cncava, com o umbigo voltado para cima. O baixo-ventre permanece protrado durante todo o ciclo respiratrio, donde a origem do termo "barriga de Buda". Aps uma prtica continuada, o perfil do estudante de Zen alterado. Seu baixo-ventre se man-tm ligeiramente protrado e a rea acima permanece cn-cava mesmo quando ele no est praticando o zazen. Os mo-vimentos respiratrios do estudante so constantemente monitorados durante o exerccio. Ao notar que a qualidade da sua respirao est se deteriorando, ele faz os ajustes neces-srios para corrigi-la. 38

Hara uma palavra que no possui equivalente em nos-so idioma. No apenas designa uma rea do corpo que corres-ponde grosseiramente ao "baixo-ventre", como tambm um termo repleto de conotaes psicolgicas e espirituais. Dizer que algum possui "hara" d a idia de que essa pessoa segura e equilibrada, tanto fsica como psicologicamente.1 Do ponto de vista fsico, a pessoa com hara tem seu centro de gravidade em posio inferior de um indivduo com a tradicional postura "barriga para dentro e peito para fora" que se costuma considerar ideal no Ocidente. literalmente mais difcil derrubar uma pessoa com hara, um princpio muito importante em todas as artes marciais e na luta do sum, praticada no Japo. Um indivduo com a tpica postu-ra ocidental mais pesado em cima, devido tenso muscu-lar na parte superior do corpo. Seu equilbrio fica, assim, prejudicado. Dizer que uma pessoa tem hara tambm transmite a idia de que emocionalmente equilibrada. Ela no perde o con-trole e aceita com calma os problemas que o destino lhe re-serva. Em japons, dizer que o hara de algum subiu ou que determinado indivduo "perdeu seu hara" significa que essa pessoa zangou-se. Dizer que algum tem hara tambm implica o sentimento de coragem e a capacidade de enfrentar a adversidade com segurana e dignidade. Com relao a isso, Von Durckheim nos d o seguinte relato sobre um acontecimento da II Guerra Mundial: Durante uma conferncia aps regressar de uma visi-ta Alemanha, a lder da Unio das Mulheres Japonesas men-cionou os impressionantes preparativos de contra-ataques areos que vira naquele pas, acrescentando: "Ns no te-mos nada daquilo, mas temos outra coisa: - temos Hara." O in-trprete ficou enormemente embaraado. Como iria tra-duzir aquilo? O que poderia fazer alm de simplesmente dizer "barriga"? Houve silncio seguido de risadas. Embo-ra apenas alguns poucos ocidentais tivessem entendido o 39

que ela tentara dizer, os japoneses sabiam que a conferencis-ta se referia quela fora que, apesar de no oferecer nenhu-ma proteo contra o poder de destruio das bombas, ain-da assim era capaz de produzir uma serenidade interior a partir da qual emana a maior capacidade de resistncia pos-svel.2 O hara tambm expressa a idia de generosidade. Ao passo que em nosso idioma dizemos que algum tem bom corao, no Japo diriam que ele tem um grande hara. Hara tambm implica a idia de fora. Fazer algo com hara signi-fica faz-lo com todas as nossas foras, dar o melhor de ns mesmos. A pessoa com hara considerada fsica e moralmente mais forte. Para o estudante do Zen, as ligaes entre os aspectos fsico e psicolgico do hara no constituem apenas uma metfora. Com a continuidade do treinamento ele acaba por compreender que seu estado psicolgico flutua de acordo com o modo como ele respira. Ele verifica que, ao ser arreba-tado pela clera ou dominado pelo medo ou pela ansiedade, sua respirao torna-se rpida e pouco profunda. A presso na parte inferior do abdmen se reduz e o seu centro de gra-vidade eleva-se na direo dos ombros. Ele se torna fisi-camente menos estvel. Ele tambm aprende a contro-lar suas reaes emocionais por meio do controle da res-pirao. Atravs da respirao adequada, ele passa a ser capaz de conservar o equilbrio emocional em meio adver-sidade. Vrios anos depois de iniciar meu treinamento no Zen, compareci pela primeira vez a um tribunal para testemunhar como autoridade em psicologia. No comeo, estava bastante ansioso, especialmente quando descobri o quanto era hostil o advogado da parte contrria. Enquanto estava no banco das testemunhas, pude verificar que, quando eu ficava nervo-so, minha respirao tornava-se mais rpida e menos profunda, e que eu passava a usar os msculos do peito em lugar da musculatura do abdmen inferior. Depois de ter feito essa 40

associao, enrijeci deliberadamente o meu hara, reduzi minha freqncia respiratria e consegui me acalmar. Durante as duas horas que fiquei no banco das testemunhas, eu enrijecia meu hara ao notar que minha respirao estava se acelerando. Embora tivesse de agir assim com grande freqncia, senti que isso foi de grande ajuda para melhorar meu desempenho ao depor. Foi esta a primeira vez que fui capaz de controlar minha ansiedade numa situao de nervosismo, aplicando os princpios da respirao zazen. A respirao com o hara a maneira natural de se res-pirar. Os bebs respiram com o abdmen e tm o hara nota-velmente desenvolvido. medida que a criana vai crescendo, entretanto, ela desenvolve o hbito de respirar com o peito e adquire uma tenso muscular crnica na parte superior do tronco. No treinamento Zen, procura-se reverter o hbito da respirao torcica. As pessoas que esto se iniciando no estudo do Zen, muitas vezes ficam frustradas por causa de sua incapacidade em res-pirar da maneira correta. Este foi certamente o meu caso. Por mais que eu tentasse, no conseguia relaxar a parte in-ferior do abdmen durante a inspirao. Ao expelir o ar, eu tentava for-lo para baixo, em direo ao meu tanden. No obstante, minha respirao continuava pouco profunda e o que se movia era mais o peito do que o abdmen. Cheguei at a acre-ditar que o conceito de hara fosse uma mistificao. Ento, certo dia, eu estava explicando a um amigo os meus motivos para estar zangado com uma outra pessoa. medida que eu relatava o ocorrido, podia sentir minha clera abrandar-se. Subitamente, notei que eu estava respirando de forma dife-rente. Pela primeira vez pude relaxar os msculos da parte inferior do abdmen. Finalmente, fui capaz de sentir o meu hara. Ao. se referir a essa experincia, s vezes se diz que o estmago da pessoa "caiu". O treinamento necessrio para que experimentemos pela primeira vez o nosso hara varia de pessoa para pessoa. Para alguns, como no meu caso, trata-se de um evento instantneo. Para outros, parece ser um processo mais gradual. De qualquer forma, medida que se prossegue 41

com o treinamento, a respirao vai ficando cada vez mais profunda e o estmago continua a "cair". A maneira de se respirar no kyud idntica do zazen. O ato de inspirar inicia-se com o relaxamento da musculatu-ra do baixo-ventre. Ao expirar, o kyudoca fora o ar para dentro do hara, fazendo com que ele se estenda. Durante a seqncia do disparo da flecha, a respirao deve ser man-tida profunda e em ritmo lento, e todos os movimentos so coordenados a esse ritmo. J est determinado para cada um dos movimentos se devem ser feitos durante a inspirao ou a expirao. Os que exigem maior fora, tais como estirar o arco e mant-lo completamente esticado, so executados durante a expirao. A energia para esses movimentos pro-vm do ar expirado. O kyudoca ajusta continuamente sua respirao de modo a conserv-la no ritmo adequado e a fazer com que ela seja produzida pelo hara, tal como no zazen. O disparo da flecha constitui um importante exemplo do poder da respirao no kyud. Quando o kyudoca segura a flecha com o arco na tenso mxima, ele pressiona o seu hara com o ar retido nos pulmes. Essa presso faz com que o peito e os ombros aumentem de volume. Isso empurra a mo esquerda, que segura o arco, na direo do alvo, ao mesmo tempo que impele o cotovelo direito na direo oposta, para longe do alvo. Durante todo o estgio do kai, a flecha conti-nua a ser sutilmente puxada pelos movimentos opostos dos braos. Chega um momento em que a tenso crescente faz com que a corda escape da mo direita enluvada do kyudoca, liberando a flecha. Apesar de incorreto, possvel soltar a flecha sem a fora do flego do arqueiro. Pode-se fazer isso simplesmente soltando a corda da mo direita, tal como na arte do mane-jo do arco praticada no Ocidente. Nesse caso, a flecha no ir muito longe. Ou, ento, o kyudoca poder usar os ms-culos do pulso e do brao para empurrar a mo esquerda na direo do alvo, ao mesmo tempo que puxa o cordo com a mo direita. Essa liberao mais sofisticada que o sim-ples ato de soltar a corda, sendo possvel disparar a flecha42

com velocidade suficiente para atingir o mat. E, por fim, o kyudoca pode simplesmente contrair os msculos do ombro, criando a tenso que ir soltar a flecha. Essa tcnica resulta-r num disparo ainda mais poderoso. Todos os exemplos de disparos de flecha incorretos aci-ma descritos saltariam aos olhos de um observador experimen-tado em kyud, visto que a tenso estaria localizada na parte superior do corpo em lugar de estar concentrada no hara. O centro de gravidade do kyudoca estaria situado no peito e ele daria a impresso de estar mais pesado na parte superior do corpo. Quando o disparo feito da maneira correta, o abdmen inferior protrai-se e a musculatura dos braos e dos ombros permanece relaxada. O centro de gravidade esta-ria no tanden. Minha compreenso do ato de disparar a flecha alterou-se com o aperfeioamento da minha respirao. Durante a minha primeira estada no Hava, eu costumava fazer o disparo sim-plesmente soltando a corda. Quando comecei a estudar no Japo, compreendi a idia de que a tenso causada pelo mo-vimento dos braos em sentidos opostos que libera a flecha. Eu, no entanto, comecei usando os msculos do pulso para criar a tenso. Usando ambos os pulsos eu conseguia dispa-ros mais potentes. Eu estava constantemente corrigindo minha maneira de disparar a flecha. Meu instrutor dizia-me para eu usar o hara, no os punhos. O mximo que eu conseguia, contudo, era produzir alguma tenso adicional, empurrando o brao esquerdo em direo ao alvo e puxando o cotovelo direito na direo oposta. Isso resultava num disparo mais poderoso. Minha respirao tambm me parecia melhor e meu centro de gra-vidade havia baixado. Fui, mais uma vez, corrigido pelo mes-tre: eu ainda estava recorrendo demasiadamente aos msculos dos braos e minha respirao continuava pouco profunda. medida que meu treinamento prosseguia, o foco da liberao da flecha ia se aproximando do meu tanden. A ten-so passou dos antebraos para os braos e, a seguir, para as omoplatas. A cada progresso, a respirao ia sendo feita43

numa regio mais baixa e aumentava o uso do hara na libe-rao da flecha. Essa progresso continua ao longo de todo o treinamento do kyudoca; por fim, o centro da liberao da flecha passa a ser o tanden. As diversas etapas do procedimento para se disparar uma flecha so antecedidas por movimentos preliminares. Eles incluem: curvar-se diante do alvo, andar at o marco que indica o ponto de disparo e pr a flecha na corda. Con-forme a formalidade da ocasio, pode-se ajoelhar diante do alvo e fazer-lhe uma reverncia. No sharei ou disparo cerimo-nial, esses movimentos preliminares envolvem diversos pas-sos, genuflexes e reverncias que chegam a se prolongar por cinco minutos at. Qualquer que seja o grau de formalidade, todos esses movimentos preliminares so executados com vagar, ponderadamente e no ritmo sincronizado com a res-pirao do kyudoca. Desse modo, a respirao correta deve ser estabelecida antes que o processo do disparo realmente se inicie. Movimentos semelhantes seguem-se ao disparo da flecha; e a respirao correta mais uma vez mantida durante todo o tempo. POSTURA A postura correta facilita por sua vez a respirao cor-reta. As posturas tradicionais adotadas no zazen, de ltus e de meio-ltus, facilitam enormemente a respirao abdo-minal. A Figura 1 mostra um indivduo fazendo zazen na posio de ltus. Existem diversos aspectos importantes re-lativos a essa postura. Em primeiro lugar, senta-se com fir-meza, e o peso do corpo distribudo uniformemente sobre o cho. A estabilidade da postura se deve a um tringulo for-mado pelos joelhos e pelo cccix. O tringulo mantm o corpo equilibrado e lhe d uma slida base contra a qual o indivduo pode pressionar o ar durante a expirao. O segundo aspecto importante da postura correta do zazen diz respeito aos quadris. Eles so projetados para a44

frente de modo que o tanden fique mais ou menos no centro de um tringulo imaginrio formado pelos joelhos e pelo cccix. Nessa posio, o hara fica desimpedido, e os msculos ab-dominais podem ser relaxados com mais facilidade. O terceiro aspecto da postura refere-se posio da es-pinha. Ela fica em sua posio natural, ligeiramente curvada nas partes inferior e superior das costas, e o pescoo reto. Nessa posio, os ossos da espinha sustentam a parte superior do tronco, enquanto os msculos do peito, das costas, dos ombros e do pescoo podem relaxar. Os msculos do peito, uma vez relaxados, no so mais necessrios respirao, permitindo que a musculatura do hara assuma o controle. Da mesma forma como a postura adequada facilita a respirao correta, esta tambm torna a primeira mais fcil.

Figura 1. Postura zazen 45

Quando se respira com o hara, o centro de gravidade fica mais baixo. A parte superior do tronco, por sua vez, fica bem equilibrada e endireita-se imediatamente por causa de seu baixo-ventre de gravidade, como naquele boneco inflvel usado nas brincadeiras infantis, que sempre volta a ficar de p depois de ser golpeado. Conseqentemente, os msculos da parte superior do tronco, que de outro modo seriam usa-dos para manter o corpo equilibrado, podem relaxar. O corpo fica mais estvel e torna-se mais fcil manter a espinha na sua posio natural. Isso facilita o relaxamento da parte su-perior do tronco ao mesmo tempo que se mantm a espinha corretamente posicionada. A postura que se assume ao disparar uma flecha no kyud est ilustrada pelos desenhos do hassetsu, no Captulo 1, e tambm pela Figura 2. Trata-se essencialmente da transposi-o dos princpios da postura no zazen para a posio de p. Estabelece-se uma base slida, fazendo com que os ps fiquem separados por uma distncia equivalente a aproximadamente uma ou uma vez e meia a largura dos ombros. Os ps giram para fora de maneira que o ngulo formado pelos dedes seja de apro-ximadamente 60. A bacia projetada para a frente, esten-dendo o tanden e forando o hara. A espinha conserva sua posi-o natural. Essa postura bastante estvel e, da mesma forma que a postura bsica do zazen, facilita a respirao correta. A respirao e a postura trabalham juntas para liberar a flecha. Quando o kyudoca faz presso com o ar retido nos pulmes ao mesmo tempo que mantm o arco bem esticado, sua nuca eleva-se. Esse movimento faz com que a fora da sua respirao endireite a espinha e aumente o volume do peito, aumentando, assim, a potncia com que a flecha disparada. Mantm-se tambm a postura correta durante todos os movimentos executados antes e depois dos oito estgios, do procedimento do disparo. O kyudoca conserva sempre uma base segura e equilibrada quando caminha, ajoelha-se ou faz reverncias na cerimnia que precede o disparo da flecha ou depois dele: a bacia projetada para a frente e a espinha permanece na sua posio natural. 46

Figura 2. Estgio do kyud (postura no dozukuri) 47

CONCENTRAO Na seita Rinzai do Zen, os estudantes novatos so ensi-nados a regular sua concentrao atravs de uma tcnica cha-mada susoku, que em japons significa "contar a respirao". Em Chozen-Ji, o estudante instrudo a contar cada expira-o. Quando chega ao dez, ele volta ao um e reinicia a con-tagem. Se perder a conta, recomea do um. Embora issp pos-sa parecer fcil, na verdade extremamente difcil. Muitos principiantes ficam deveras surpresos ao descobrir o quanto sua concentrao ruim. Pensamentos de todo o tipo encarre-gam-se de distrair o estudante que procura se concentrar na contagem da sua respirao. Pelo fato de estar continuamente dirigindo sua ateno para a tarefa bsica de contar a respi-rao, o estudante acaba aprendendo a no se deixar distrair na contagem. Por meio do susoku, o estudante tambm aprende que a respirao, a postura e a concentrao esto interligadas. Quando respirao e posturas so boas, torna-se mais fcil se concentrar na contagem. Se acaso a respirao ou a pos-tura se degenerarem, perde-se a concentrao. E se a concen-trao for perdida, a respirao e a postura tambm se de-terioram. Assim, mantemos a concentrao atravs do cuidado constante com a respirao e a postura. Da mesma forma, ao nos concentrarmos em contar nossa respirao, foramo-nos a manter uma boa postura e uma boa respirao. Na seita Rinzai, o principiante, depois de ter praticado o susoku durante certo tempo, comea a fazer outro tipo de exerccio de concentrao, o koan. Um koan uma per-gunta feita ao estudante por um mestre Zen e que no pode ser respondida racionalmente."Qual o som produzido quando se bate palmas com uma s mo? " - um exemplo de koan amplamente conhecido no Ocidente. Uma vez apresentado o koan, o ato de respond-lo fica sendo o foco de concen-trao de cada um durante o zazen. Para o estudante de kyud, o prprio processo de fazer o disparo da flecha um exerccio de concentrao. Durante48

todo o tempo ele se esfora para prestar total ateno na-quilo que est fazendo. Ele procura manter-se total e inin-terruptamente concentrado, desde a reverncia inicial at a liberao da flecha e a reverncia final. Assim como no su-soku, o estudante promove ajustes na sua respirao e pos-tura ao notar que est perdendo a concentrao e volta a dirigir a ateno para o que est fazendo. Por conseguinte, a mesma interao de respirao, postura e concentrao encontrada no zazen aplica-se tambm ao kyud. Expliquei anteriormente que a disciplina Zen acarreta alteraes fsicas: o abdmen protrai-se, a parte superior do tronco se descontrai e o centro de gravidade do corpo fica mais baixo. A disciplina Zen resulta igualmente em alteraes mentais. O estudante descobre que sua capacidade de con-centrao aumentou e torna-se capaz de evitar pensamentos dispersivos durante perodos de tempo mais prolongados. Por fim, sente um novo estado mental e ingressa no domnio da percepo Zen.

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Captulo 3 MUSHIN "Uma flecha, uma vida." Adgio do Kyud

Suhara Koun Osho executando o sharei no Museu da Sociedade de His-tria do Estado de Wisconsin (fotografia cedida gentilmente por Carolyn Pflasterer) 50

Em julho de 1983, participei de uma demonstrao de kyud no Museu da Sociedade de Histria do Estado de Wisconsin, junto com Suhara Osho e Jackson Morisawa. Eu havia organizado a demonstrao e estava apreensivo quanto maneira como ela seria recebida. Fiquei feliz ao ver que o recinto estava lotado, havendo lugar apenas em p. Suhara Osho deu incio demonstrao executando um sharei (dis-paro cerimonial), seguido de uma rpida palestra sobre o kyud. Depois, ns trs apresentamos uma seqncia na qual dis-parvamos flechas alternadamente contra um mesmo alvo. Comecei a ficar cada vez mais ansioso quando esperava o incio da demonstrao em grupo. Estava muito quente e eu tinha as mos molhadas de suor. Temia que estivessem midas demais para poderem segurar o arco. Eu o imaginava escapando de minhas mos no meio da demonstrao, en-vergonhando-me diante de minha famlia e de meus amigos. Iniciada a demonstrao, no entanto, algo aconteceu. Ao es-tabelecer meu ritmo respiratrio, apoderou-se de mim uma extraordinria calma. Vi-me livre de minhas preocupaes e no pensei mais no pblico, embora pudesse v-lo e sentir a sua presena. Vi-me executando os passos da seqncia 51

e colocando o p no lugar apropriado, sem precisar pensar no que deveria fazer. Podia sentir que tudo estava indo bem, apesar de no estar pensando exatamente no que estava fa-zendo. Senti que me entregara a uma fora superior que se encarregava de guiar meus movimentos. Esta foi a experincia mais profunda que tive no kyud. Constituiu para mim o exemplo mais claro do que considero ser o estado mental que se procura desenvolver no Zen e nos Caminhos. H um provrbio que enfatiza a importncia do estado mental apropriado no kyud. Em japons, escreve-se "Issha Zetsumei". Creio que esse provrbio capta a essncia do es-prito do kyud. Em Chozen-Ji, o adgio acha-se inscrito acima da entrada do kyud doj, estimulando-nos a refletir sobre ele cada vez que l entramos para treinar. Pode-se traduzir "issha" por disparo, como disparo de uma flecha. "Zetsumei" traduz-se por "exalar o ltimo suspi-ro" ou "expirar". Em seu livro, Zen Kyudo, Jackson Morisawa traduz o provrbio por: "Um disparo (flecha) e expirar." A frase invoca a imagem do ltimo ato de um homem agoni-zante: o arqueiro resumindo sua vida com uma flecha. Uma traduo mais coloquial do provrbio, e que escolhi para t-tulo deste livro (em ingls) seria: "Uma flecha, uma vida." Ao comentar a expresso "Issha Zetsumei", Mr. Mori-sawa escreve: "Cada flecha final e decisiva, assim como cada momento o ltimo."1 O tempo no pode ser trazido de volta. Uma vez que um momento tenha passado, ele no pode ser repetido. No Zen, reconhece-se que a vida no nos d uma segunda chance; esforamo-nos por prestar completa ateno a cada instante e a todas as atividades, por mais insigni-ficantes que estas possam parecer. Temos de nos entregar completamente ao que estivermos fazendo, qualquer que seja a atividade. Cada ao deve ser executada como se no houvesse outra coisa a fazer em toda a Terra. No kyud signi-fica concentrar-se em cada flecha como se fosse a nica que o kyudoca iria disparar em toda a sua vida. O estado mental que nos esforamos por atingir no Zen e nas artes Zen geralmente chamado de "mushin". Tra-

ta-se de uma palavra composta: "mu" significa vazio ou nulo, e "shin" quer dizer corao ou mente. Em geral "mu" tra-duzido por mente vazia ou nenhuma-mente. O conceito mais prximo na nossa lngua seria provavelmente inconscincia, que no uma traduo realmente exata, visto que no mushin o indivduo continua ciente do que est se passando. Susuki descreve o mushin como um estado em que se est inconsci-entemente cnscio ou conscientemente inconsciente.2 Todavia, a indivisibilidade da mente e do corpo significa que ilus-rio considerar o mushin como sendo um fenmeno exclusiva-mente mental. No se pode atingir o mushin atravs da razo; no h mente vazia sem postura e sem respirao adequadas. Um termo estreitamente relacionado ao mushin samadhi. Originalmente uma palavra do snscrito, samadhi designa uma forma de intensa concentrao, durante a qual perdemos o senso de ns mesmos e dos outros. Na verdade, provavel-mente mais correto encarar o mushin e o samadhi como dois aspectos diferentes do mesmo fenmeno. No existe mushin sem concentrao, e a concentrao profunda favorece o mushin. Os termos samadhi e mushin freqentemente so usados de forma mais ou menos intercambivel. Pode-se entender melhor o mushin, considerando-se o fluxo da conscincia humana. A maioria de ns mantm um constante dilogo interior que se perpetua atravs de uma ininterrupta corrente de associaes. Esse dilogo nos distrai, impedindo-nos de nos concentrarmos completamente no que estamos fazendo. Suponha, por exemplo, 'que voc est des-cendo a rua e ouve um barulho. Imediatamente, voc se pergun-ta o que o ter causado e, a seguir, imagina algo especfico: talvez tenha havido um acidente. Esses pensamentos levam a outros, tal como se lembra do acidente que voc viu no noticirio da televiso na noite anterior, o que o leva a pensar nas outras not-cias desse dia. Cada pensamento nos leva a outros pensamentos, obscurecendo a percepo que temos do mundo. No Zen, refe-rimo-nos a esses pensamentos como iluses. Caso voc se deixe levar por eles, diz-se que voc est "preso" a iluses ou que sua mente "se demora" nelas ou, ainda, que por elas "obstruda". 53

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No mushin, a mente no distrada por pensamentos ilusrios. Os pensamentos vo e vm, mas a mente no se pren-de a eles. O som da sirene da ambulncia no seguido pelas notcias da noite passada. Este o estado natural da consci-ncia e uma das metas do treinamento Zen. Tanouye Roshi compara o mushin capacidade de ver atravs dos nossos pensamentos da mesma forma como enxergamos atravs de uma hlice em movimento. Vemos as coisas na sua forma pura, no obscurecida por pensamentos ilusrios. A consci-ncia, ento, passa a fluir livremente; move-se de objeto para objeto, de acontecimento para acontecimento, sem ser obstru-da por pensamentos ilusrios. S assim ser possvel tratar cada momento como se fosse o ltimo. O desapego aos pensamentos e a concentrao dirigi-da para as aes do momento so ilustrados jocosamente pela seguinte histria sobre o mestre Zen Tanzan e seu disc-pulo Ekido: Certa vez Tanzan e Ekido estavam viajando juntos por uma estrada lamacenta. Chovia torrencialmente. Ao se aproximarem de uma curva, depararam-se com uma linda jovem usando um quimono de seda cingido por uma faixa. A moa no sabia como atravessar o caminho. Venha, menina disse-lhe Tanzan, sem titubear. E erguendo-a em seus braos, carregou-a por sobre a lama. Ekido conservou-se calado at a noite, quando chegaram ao templo onde iriam pernoitar. L, ento, no conseguiu mais se conter. Ns, monges, no devemos nos aproximar das mulhe-res declarou a Tanzan -, especialmente se forem jovens e atraentes. perigoso. Por que o senhor fez aquilo?

Eu deixei a garota l respondeu Tanzan. - Voc ainda a est carregando?3 A idia de nos concentrarmos completamente no que estivermos fazendo muitas vezes mal interpretada por pessoas 54

sem experincia no Zen. Isso no significa nos concentrarmos numa determinada atividade com a excluso de todo o resto. No ficamos to absorvidos pelo que estamos fazendo a ponto de no tomarmos conhecimento do que se passa nos arredores. No correto comparar o samadhi situao de uma pessoa entretida com um bom livro ou de uma criana com os olhos fixos num televisor. Pelo contrrio, o tipo de concentrao ou sa-madhi desenvolvido no Zen faz com que tenhamos uma per-cepo mais intensa do que se passa nossa volta. Existem relatos de monges que so capazes de ouvir a cinza caindo da vareta de incenso quando esto fazendo zazen. Quando se tem a disposio de esprito apropriada, a viso perifrica fica bem maior; obtm-se uma viso panormica. Tanouye Roshi descreve-a como uma viso de 180. Percebemos vi-vamente o que se passa nos arredores mas no nos fixamos em nada. Nas palavras de Suzuki, ficamos conscientemente inconscientes ou inconscientemente conscientes. Boa parte do nosso dilogo interior envolve pensamentos sobre ns mesmos. No mushin, perde-se esse senso de auto-conscincia e de auto-reflexo. Quando estamos fazendo alguma coisa, observando um pr-do-sol, por exemplo, perdemos o senso de que somos "ns" que o estamos observando, da mesma forma que perdemos o dilogo interior que nos diz o quanto ele belo. No mushin, simplesmente sentimos o pr-do-sol. A prtica do zazen proporciona um contexto no qual o estudante tem mais facilidade para perceber quando distrado por seu dilogo interior. O zazen geralmente prati-cado em ambientes silenciosos, nos quais os estmulos exter-nos dispersivos so mantidos tanto quanto possvel em seus nveis mnimos. Contudo, mesmo sendo distraes de origem ex-terna, o estudante tem sua ateno facilmente desviada pela cadeia de associaes que flui na sua mente. A tranqilidade do cenrio torna-lhe mais fcil perceber quando se prende a iluses. Depois de o estudante se sentar, sua mente even-tualmente ir se apegar a pensamentos exteriores. A certa altura, porm, ele notar que esses pensamentos esto toldando

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a sua percepo. Eles iro se destacar como imagens desne-cessrias sobre a tela maior da percepo. O reconhecimento de que est se detendo nesses pensamentos o sinal para ajus-tar a respirao e a postura e para se concentrar na contagem das respiraes. O estudante, ento, torna-se capaz de se con-centrar completamente em cada respirao, sendo-lhe poss-vel trat-la como se fosse uma entidade parte. O zazen, nesse sentido, transforma-se num meio para se atingir o mushin. O processo do kyud tambm pode ser visto como um mtodo para se chegar ao mushin atravs da integrao da respirao, da postura e da concentrao. No kyud, a fixao em pensamentos ilusrios uma tentao constante. Qual-quer pensamento ilusrio pode nos afastar do estado de ple-na concentrao necessria no kyud. Eventos ou proble-mas de nossas vidas relativos ao emprego, situao fi-nanceira ao famlia podem invadir nossa mente e preju-dicar nossa concentrao. Ao disparar uma flecha, no entanto, o mais difcil evitar que sigamos os pensamentos relaciona-dos com o nosso prprio desempenho no kyud. Cada flecha deve ser disparada sem que levemos em considerao nos-sos desempenhos passados ou futuros, da mesma forma como Tanzan foi capaz de no se deixar distrair pela viso de uma bela mulher. Para consegui-lo precisamos ajustar nossa pos-tura e nossa respirao de modo a recuperarmos a concen-trao. Aplicar ao kyud o princpio: "Uma flecha, uma vi-da" significa dar ateno contnua a cada flecha que se dispa-ra e a cada passo do processo de disparo. Concentrar-se em qualquer outra coisa seria enganoso. Embora esse conceito possa ser facilmente compreendido num nvel intelectual, coloc-lo realmente em prtica diferente, exigindo anos de condiciona-mento fsico e mental. No kyud os disparos so praticados de forma exausti-va. Os mesmos oito passos do disparo so repetidos milha-res de vezes. Existem outras atividades que exigem um grau semelhante de repetio. Os praticantes de qualquer arte ou esporte tambm precisam exercitar-se intensamente. Jogado56

res de golfe ou de tnis repetem milhares de vezes suas ta-cadas. No kyud, porm, no se faz distino entre a sim-ples prtica e o desempenho "real". A meta fazer com que cada flecha seja importante. Isto , cada flecha deve ser dis-parada como se fosse a nica flecha da Terra; como se a vida do arqueiro dependesse dela. A utilizao do mat, onde um disparo certeiro ou um erro podem ser vistos facilmente, faz com que seja ainda mais difcil para o kyudoca no pensar em seu desempenho. Su-ponha, por exemplo, que eu tenha feito um mau disparo. Pen-samentos de autocensura, de desnimo ou de constrangimen-to poderiam continuar junto a mim quando eu estivesse ati-rando a prxima flecha. Ou, ento, eu poderia estar tentando imaginar o que havia acontecido de errado no disparo anterior ao fazer o disparo seguinte. Da mesma forma, digamos que eu tenha me sado bem no disparo anterior atingindo o centro do alvo e fazendo um rudo retumbante, ouvido por todos. Minha mente poderia ser invadida por sentimentos de exul-tao ou de superioridade em relao pessoa que atirou antes de mim. Ao atirar novamente, eu poderia ainda estar pensando em como fui estupendo no disparo anterior. Con-sideraes a respeito dos prximos disparos tambm poderiam vir mente. Eu poderia notar, por exemplo, que estava se-gurando o arco de modo incorreto, resolver no cometer o mesmo erro na vez seguinte e comear a planejar o prximo disparo. No kyud, cada rodada geralmente feita com duas flechas, fato que tem claras implicaes psicolgicas. Com efeito, isso torna mais difcil a manuteno do mushin. Se-gurar a prxima flecha enquanto se atira a primeira aumenta a tentao de pensar no prximo disparo. Da mesma forma, tendo acertado ou errado o alvo com a primeira flecha, e sen-do isso claramente visvel, torna-se ainda mais difcil no pensar no primeiro disparo. Pode-se ficar distrado mesmo quando se est atirando uma nica flecha. Os aspectos tcnicos do kyud so extre-mamente complexos; todos os passos so estabelecidos com57

todos os pormenores da posio dos braos ao ritmo da respirao e ao modo de segurar o arco. A mente detm-se com facilidade em qualquer dos aspectos da seqncia de disparo. Ao levantar o arco, por exemplo, eu poderia notar que no o erguera de modo suficiente. Se a minha mente se detiver nisso, continuarei pensando nesse erro durante todos os outros passos da seqncia do disparo. no mushin que nos tornamos capazes de compreender os princpios subjacentes ao Universo, isto , o ri. A tranqili-zao da mente e a libertao dos pensamentos ilusrios capa-citam-nos a conhecer o mundo de maneira diferente. Essa compreenso surge na forma de uma exploso da intuio. Como se diz em japons, o myo, o assombroso mecanismo de funcionamento do Universo, revelado. O fato de estar em mushin permite que o kyudoca aja de acordo com os prin-cpios subjacentes sua arte. A compreenso proveniente do mushin no se limita ao entendimento cognitivo ou intelectual. No Zen, qualquer entendimento que no esteja ligado ao considerado incompleto. Retornando ao exemplo da pontaria no kyud, apresentado no primeiro captulo, no basta o mero conheci-mento ou a mera percepo do momento exato do ciclo de oscilaes em que a flecha deve ser disparada. preciso, ao mesmo tempo, ter esse conhecimento e disparar a flecha. No mushin, agimos de maneira naturalmente correta; ou seja, em consonncia com os princpios subjacentes ao Universo. Para podermos agir de acordo com os princpios subjacentes, precisamos perder o sentimento de que somos ns os plane-jadores ou os criadores das nossas aes. Boa parte do dilo-go interior que se trava em nossa mente gira em torno de pensar ou de planejar o que iremos fazer. Tais pensamentos, contudo, so na verdade ilusrios. Eles envolvem o planeja-mento do futuro, impedindo-nos, portanto, de nos concen-trarmos plenamente no presente. Isto pode ser melhor com-preendido recorrendo mais uma vez ao exemplo da pontaria no kyud. Se no momento correto do ciclo de oscilaes precisarmos dizer a ns mesmos algo como: "Vou atirar 58

agora" quando a flecha for efetivamente disparada ser tarde demais. No mushin, no estamos presos a pensamentos acerca de nossas aes. Assim como poderemos ver um pr-do-sol sem que um dilogo interior nos diga o quanto lindo, tambm podemos agir sem que um dilogo interior nos diga o que fazer e quando. Nesse caso, ento, a percepo intuitiva do momento apropriado para lanar a flecha ir coincidir com a sua efetiva liberao. No livro A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen, Herri-gel descreve um estado no qual: No se pensa em nada de definido, quando nada se projeta, aspira, deseja ou espera, e que no se aponta em nenhuma di-reo determinada e, nato obstante, pela plenitude da sua ener-gia, se sabe que capaz do possvel e do impossvel... esse estado, fundamentalmente livre de inteno e do eu, o que o mestre chama de espiritual.4 bvio que Herrigel estava se referindo ao estado men-tal conhecido como mushin. No mushin estamos livres para agir de acordo com os princpios subjacentes ao Universo. Tal como o jogador de beisebol que ergue automaticamente a luva para apanhar uma bola sibilante, no existe intervalo entre pensamento e ao. A respeito do mushin, Suzuki escreve: Em termos psicolgicos, a mente nesse estado entrega-se sem limites a uma "fora" que no vem de lugar algum e que, apesar disso, parece ser forte o bastante para apossar-se de toda a conscincia e p-la a servio do desconhecido. Tornamo-nos uma espcie de autmatos, por assim dizer, no que diz respeito conscincia.s Esta descrio bem que poderia ter sido aplicada expe-rincia que tive durante a demonstrao no Museu da Socieda-de de Histria do Estado de Wisconsin. 59

Captulo 4 KOAN ZEN Ao ver uma erva daninha, arranque-a. Suhara Koun Osho

elevada. Em outras palavras no devemos fazer alguma coisa simplesmente porque sentimos que esse o nosso dever. Agir assim implicaria uma deliberao consciente. Se ao ver uma erva daninha, por exemplo, eu pensasse comigo mesmo: "L est uma erva daninha. Devo arranc-la." esta ao seria incompleta. Estaria faltando o estado mental apropriado. Muito embora eu pudesse ter feito a "coisa certa", esta teria procedido do ego, visto que houve deliberao. Fazer o que certo sem qualquer deliberao consciente, faz-lo do mushin este o ponto principal da frase de Suhara Osho. H uma expresso japonesa ("ma o shimeru") que signi-fica "eliminar o espao entre". A respeito dela, Jackson Mo-risawa escreve o seguinte: Quando a mente e o corpo agem de forma simultnea, quando o intervalo entre o pensamento e a ao eliminado, de forma que as duas coisas ocorram em perfeito unssono; ento pode-remos considerar esse momento como sendo o presente.1 Este o significado mais profundo da frase de Suhara Osho: fazer o que deve ser feito sem nenhum intervalo entre pensamento e ao. Na arte japonesa comum encontrar-se a representao da imagem da lua refletida na gua. Penso que isto simboliza o "ma o shimeru". Nossos pensamentos e aes devem estar to unidos quanto a lua em seu reflexo na gua. A pessoa que vive dessa maneira est integrada no seu meio. Ela arranca a erva daninha assim que a v, sem ponderaes, tal como o reflexo que se forma quando a luz da lua atinge a gua. Ela a personificao da frase: no preciso pensar para arrancar uma erva daninha; arranque-a simplesmente. A diferena existente entre os dois nveis de interpretao do comentrio de Suhara Osho sobre arrancar ervas daninhas aplica-se tambm compreenso dos koans Zen. Lembrarei aqui que um koan uma pergunta feita por um mestre Zen e que no pode ser respondida de forma racional. A pergunta torna-se o foco da concentrao do estudante. Embora os

Os estudantes que residem em Chozen-Ji so responsveis pela boa conservao das construes e dos jardins. Durante o tempo em que l morei, sempre me diziam que eu estava passando por locais que precisavam de cuidados e que nenhuma providncia era tomada. Certa ocasio, Jackson Morisawa viu trs de ns descansando num ptio, indiferentes ao estado de desordem do local. Recebemos uma reprimenda: "Suhara Osho diz: 'Ao ver uma erva daninha, arranque-a.' Isto talvez seja excessivamente avanado para vocs." Foi um comentrio contundente. Tratava-se de uma t-pica afirmao Zen, aparentemente simples e, no entanto, extremamente profunda. Superficialmente, ressaltava a impor-tncia de se manter as coisas em ordem. Quando algo se que-bra ou se estraga, preciso consert-lo. Por conseguinte, temos o dever de arrumar a cama, de lavar a loua, de cortar a grama e de pintar a casa. Essas so as coisas naturalmente certas para se fazer. Em suma, a frase constitui uma boa regra de vida. O comentrio, entretanto, tem um significado mais pro-fundo. Fazer a "coisa certa" no em si e por si o objetivo final do Zen. Para ser mais exato, fazer a coisa certa imediata-mente, sem qualquer deliberao, uma meta muito mais 60

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koans possam ser abordados racionalmente, visto que ilustram importantes conceitos do Zen, respostas intelectuais a um koan no so consideradas aceitveis. Na verdade, um dos objetivos do treino com os koans o de fazer com que o estudante perca o hbito de confiar no seu intelecto. Permitam-me exemplificar. Um dos koans mais conhecidos no Ocidente o "Mu de Joshu". Como muitos outros koans, originou-se a partir de um dilogo real entre um mestre Zen e seu discpulo. O inciden-te foi bastante simples. "Certa vez, um monge perguntou ao mestre Joshu: 'Um cachorro tem ou no a natureza de Buda?' Joshu respondeu: Mu."2 O mu da resposta de Joshu o mesmo mu de mushin, significando nulo ou vazio. Nesse senti-do, Joshu parece ter dado uma resposta negativa pergunta. Kadowaki Kakichi, um jesuta que se tornou mestre Zen aps estudar com Omori Rotaishi, d a seguinte expli-cao para o mu de Joshu: 0 budismo ensina que todos os seres tm a natureza de Buda. No obstante, muito embora em termos doutrinrios o co tenha a natureza de Buda, no nvel do entendimento geral ou do conhecimento prtico no achamos que isso seja verdade. Talvez o monge tivesse feito a pergunta por ter ficado num dilema entre a doutrina budista e a sabedoria emprica. Joshu simplesmente respondeu: "Mu!" 0 que isto significa? "Mu" pode ser traduzido por "nenhum" ou "nada". Mas Joshu no estava dizendo que um cachorro no possui a natureza de Buda. Se o fizesse, estaria contrariando os ensinamentos budistas e negando um de seus principais dogmas, coisa que seria quase impossvel a um mestre Zen to proeminente. Quando uma pergunta idntica lhe foi apresentada em outra ocasio, o mesmo Joshu respondeu: "U" (sim). Por conseguinte, podemos inferir que aquele "Mu" transcende o sim e o no.3 Kadowaki Roshi chama essa interpretao de "teoria de poltrona" em oposio "sabedoria da vida". Ele prossegue explicando que: 62

Mu nos tornarmos um com os outros e nos concentrarmos de tal forma no samadhi que nos atiramos de corpo e alma ao que quer que faamos no nosso dia-a-dia. este o signifi-cado de entender o mu com hara e pratic-lo na nossa vida cotidiana.4 Apenas falar sobre o koan no constitui uma verdadeira resposta a ele. No se responde a um koan com explicaes; a resposta tem de ser uma exemplificao. A diferena entre as duas coisas a mesma que existe entre explicar a expresso: "Ao ver uma erva daninha, arranque-a" e viver em conso-nncia com ela. Demonstrar o mu, estar em mushin, esta seria uma resposta viva ao koan de Joshu. Ns, na verdade, no res-pondemos a um koan; o que de fato ocorre que ns nos "transformamos na resposta". Portanto, a resposta a um koan tem uma dimenso fsica. Numa resposta adequada preciso que haja percepo do corpo e da mente; essa integrao f-sica e mental encontrada no mushin. As palavras que efeti-vamente saem de nossa boca quando estamos respondendo a um koan tm importncia apenas secundria. Ns que devemos nos tornar a resposta, com o corpo, com a mente e com a ao. Por esse motivo, as mais famosas respostas a koans so totalmente no verbais. Para determinar, por exem-plo, qual entre dois ajudantes estava mais qualificado para se tornar o superior do mosteiro, mestre Hyakujo colocou um vaso sobre o cho e disse: Esse objeto no pode ser chamado de vaso. Como vocs o chamariam? No se pode dizer que seja uma sandlia de madeira re-plicou o primeiro monge. O segundo monge deu um pontap no vaso e retirou-se. Foi o escolhido.5 Quando um adepto do Zen est se ocupando de um koan, ele se torna o centro da sua ateno durante o zazen. No caso do koan mu, o estudante ir repetir o "mu" a cada ciclo respiratrio. Se notar que perdeu a concentrao, ele ajusta a respirao e a postura e volta a se ocupar com o koan, 63

do mesmo modo que o faria, caso estivesse contando a res-pirao. Por esse processo pode-se desenvolver um intenso samadhi, capacitando o estudante a entrar no mushin. No nos limitamos a trabalhar com um koan apenas quando nos sentamos para fazer zazen. A mesma concentra-o conquistada pelo koan e os mesmos princpios de res-pirao e de postura devem ser aplicados a todos os nossos esforos. Assim, devemos nos esforar por manter o mushin em tudo o que fazemos. por isso que Kadowaki Roshi fala em "praticar o mu em nossa vida cotidiana". Trabalhar um koan tem sido freqentemente descrito como um processo no qual se deve transcender um paradoxo. Muitos koans exigem de forma manifesta que o estudante d uma resposta que transcenda o raciocnio dualista. Em certo koan, por exemplo, um mestre Zen mostra seu basto aos discpulos e diz: "Caso vocs, mon-ges, chamem isto de basto, ficaro presos a um nome. Se chamarem isto de no-basto, estaro negando um fato. Di-gam-me, monges, como vocs o chamariam?"6 Ao se ocupar de um koan, o estudante precisa trans-cender as dualidades do pensamento e do