kubitschek e o beijinho no ombro da sociedade

3
| multimídia | 40 ELEVADA AO PATAMAR DE GRANDE PENSADORA CONTEMPORÂNEA POR UM PROFESSOR DE BRASÍLIA, A FUNKEIRA VALESCA POPOZUDA CAIU DE PARAQUEDAS DENTRO DE UMA ACALORADA DISCUSSÃO QUE GEROU FUROR NA MÍDIA NACIONAL, MAS SAIU PELA TANGENTE, COM TODA A SIMPLICIDADE DE UMA MOÇA DESBOCADA POR JUNIOR BELLÉ ILUSTRAÇÕES MAURICIO PLANEL KUBITSCHEK E O BEIJINHO NO OMBRO DA SOCIEDADE P ode até não pare- cer, mas Antônio Kubitschek, 43 anos, é um nome composto, como Vitor Manuel ou João Henrique. O sobrenome é Braga Oliveira, pertencente à família do pai, que foi quem decidiu homenagear o presiden- te dando ao filho suas insígnias completas. Nosso Kubitschek não criou Brasília, se- quer nasceu nela, mas vive na capital fe- deral há 27 anos, 19 deles como professor da Secretaria de Educação. Contudo, com poucos minutos, tornou-se conhecido na- cionalmente ao carpir o atalho por onde a funkeira Valesca Popozuda escalaria até o panteão dos pensadores contemporâneos. Nada disso teria acontecido não fôsse- mos nós, jornalistas. Ou nossa ausência. Ou nosso faro desacostumado de boas novas e refém das carniças. Esta matéria é prova cabal disso. O fato, ou melhor, nos- so olfato é que não respondeu aos apelos factuais, a ponto de nenhum repórter, fo- tógrafo, sequer um estagiário ou estudan- te de comunicação ter sido avistado nas imediações do Centro de Ensino Médio 03 de Taguatinga (região do Distrito Fede- ral) nos últimos dias de março. Nesse mês teve início a exposição Olhares, com 1.200 fotos tiradas por alunos e cujo chamado à imprensa foi enviado diretamente pela di- reção da instituição. “Foi um ampliação do projeto que fizemos no ano anterior. Havia material de qualidade, além de ser uma atividade produtiva dentro de uma escola. Me parece um tema relevante para algum veículo de comunicação. Mas a imprensa não teve a mesma percepção e ninguém apareceu”, conta Antônio. Coincidentemente, como os acasos mais rebuscados e matreiros do destino, durante os dias em que o fracasso midiá- tico da exposição tomou seu lugar entre as conversas em sala de aula, Antônio debatia com seus alunos, como conteúdo letivo, a formação moral da sociedade. “Neste de- bate, sempre surgia a pergunta: quem in- terfere nessa formação? A partir disso, o papel da imprensa emerge como um dos mais importantes. Então, os assuntos casa- ram.” Havia uma espécie de consenso de que os veículos de comunicação estavam interessados em carniça, que privilegiam as notícias ruins, rodeiam as tragédias e têm potencial predileção por escândalos de qualquer gênero, tipo, tamanho ou nature- za, contanto que sejam verdadeiramente

Upload: junior-belle

Post on 25-Jul-2016

224 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

 

TRANSCRIPT

Page 1: Kubitschek e o beijinho no ombro da sociedade

| multimídia |

40

ElEvada ao patamar dE grandE pEnsadora

contEmporânEa por um profEssor dE

Brasília, a funkEira valEsca popozuda caiu dE paraquEdas dEntro

dE uma acalorada discussão quE gErou

furor na mídia nacional, mas saiu pEla tangEntE, com toda a simplicidadE dE uma moça dEsBocada

p o r J u n i o r B e l l é i l u s t r a ç õ E s M A u r i C i o P l A n e l

KubitscheK e o beijinho no ombro da sociedade

Pode até não pare-cer, mas Antônio Kubitschek, 43 anos, é um nome composto, como Vitor Manuel ou João Henrique. O sobrenome é Braga Oliveira, pertencente à família do pai, que

foi quem decidiu homenagear o presiden-te dando ao filho suas insígnias completas. Nosso Kubitschek não criou Brasília, se-quer nasceu nela, mas vive na capital fe-deral há 27 anos, 19 deles como professor da Secretaria de Educação. Contudo, com poucos minutos, tornou-se conhecido na-cionalmente ao carpir o atalho por onde a funkeira Valesca Popozuda escalaria até o panteão dos pensadores contemporâneos.

Nada disso teria acontecido não fôsse-mos nós, jornalistas. Ou nossa ausência. Ou nosso faro desacostumado de boas novas e refém das carniças. Esta matéria é prova cabal disso. O fato, ou melhor, nos-so olfato é que não respondeu aos apelos factuais, a ponto de nenhum repórter, fo-tógrafo, sequer um estagiário ou estudan-te de comunicação ter sido avistado nas imediações do Centro de Ensino Médio 03 de Taguatinga (região do Distrito Fede-

ral) nos últimos dias de março. Nesse mês teve início a exposição Olhares, com 1.200 fotos tiradas por alunos e cujo chamado à imprensa foi enviado diretamente pela di-reção da instituição. “Foi um ampliação do projeto que fizemos no ano anterior. Havia material de qualidade, além de ser uma atividade produtiva dentro de uma escola. Me parece um tema relevante para algum veículo de comunicação. Mas a imprensa não teve a mesma percepção e ninguém apareceu”, conta Antônio.

Coincidentemente, como os acasos mais rebuscados e matreiros do destino, durante os dias em que o fracasso midiá-tico da exposição tomou seu lugar entre as conversas em sala de aula, Antônio debatia com seus alunos, como conteúdo letivo, a formação moral da sociedade. “Neste de-bate, sempre surgia a pergunta: quem in-terfere nessa formação? A partir disso, o papel da imprensa emerge como um dos mais importantes. Então, os assuntos casa-ram.” Havia uma espécie de consenso de que os veículos de comunicação estavam interessados em carniça, que privilegiam as notícias ruins, rodeiam as tragédias e têm potencial predileção por escândalos de qualquer gênero, tipo, tamanho ou nature-za, contanto que sejam verdadeiramente

Page 2: Kubitschek e o beijinho no ombro da sociedade

41rev is tadacul tura.com.br

escandalosos para os olhos comuns. Dian-te de tal conclusão, Antônio voltou-se para a turma do terceiro ano do ensino médio e perguntou, já com malandragens nas ideias: “Vamos provocar?”, já provocando.

Não somente a moral, mas também a cultura, essa manhosa parideira de artes, conquistava espaço na contenda escolar. “Nessa discussão, entrou o funk, pois há muito preconceito com o ritmo. Apesar dos meus alunos ouvirem, eles mesmos têm preconceito. Ou melhor, tinham, isso vem mudando bastante desde que essa história começou.” E ela só começou quando Antônio teve uma epifania capaz de conectar funk, imprensa e morali-dade em um bafafá de arrancar carapu-ças, que terminou por catapultá-lo para programas televisivos e radiofônicos de amplitude nacional, ainda que essa con-sequência não estivesse nos planos, tam-pouco seja, até hoje, benquista. Ele tinha uma questão extra a incluir na prova da próxima sexta-feira: “Segundo a grande pensadora contemporânea Valesca Po-pozuda, se bater de frente: (a) É só tiro, porrada e bomba / (b) É só beijinho no ombro / (c) É recalque / (d) É vida longa”.

Bem, digamos que a letra A não era exatamente a resposta correta. “Eu sabia

que isso podia ir para a mídia, os alunos postam tudo o que acontece nas redes so-ciais. Por isso, esperava que a mídia local aparecesse. Há programas jornalísticos por aqui que adoram esse tipo de cobertu-ra sensacionalista. Mas admito que jamais imaginei que pudesse acontecer algo de expressão nacional.” Meros três dias após armar a arapuca provocativa que faria in-veja até mesmo a Abujamra, do programa televisivo Provocações, a direção da esco-la telefonou para Antônio: queria saber o que diabos ele tinha feito com aquela pro-va. Repórteres de todos os cantos estavam ligando sem parar.

NÓS MORDEMOS A ISCAAntônio perdeu as contas de quantas

entrevistas deu durante aquela semana, mas lembra da primeira, para a Rádio Bandeirantes. “Quando percebi que a dis-cussão ganhou uma proporção enorme, pensei em como explicar aquilo tudo, me vi entrando em um inferno astral. E sozi-nho. Mas logo nessa primeira entrevista tive um bom apoio do [jornalista] Ricardo Boechat, o que me ajudou a me acalmar.”

O professor logo percebeu que se en-contrava em um quiproquó do qual já não era mais dono. De uma só vez, ele criou

um meme e uma discussão nova e acalora-da sobre quem poderia, e por que poderia, ser considerado um pensador. De quebra, alçou o funk novamente ao protagonis-mo da quimera sobre alta e baixa cultura, ainda que esse papo seja deveras démodé. De repente, flagrou a si mesmo cometen-do rigorosamente o mais grave dos peca-dos modernos: pensando. “‘Onde foi que me meti? Onde foi que mexi? Que caixa de abelha é essa capaz de causar tamanho rebuliço?’ Eu ficava pensando sobre essas coisas. Mas aí ficou evidente para mim: Eu falei que uma mulher, funkeira, que veio de uma comunidade pobre do Rio, é uma pensadora. Blasfêmia! Percebi como isso era gerador de preconceitos. A própria mídia, responsável por colocar a Valesca nas nossas casas, e não só ela, todo o funk, é que trouxe essa discussão, que reverbe-rou esse preconceito. Não faz sentido, eles vendem como cultura algo que não consi-deram cultura.”

Antônio fala especialmente de certa matilha rábica de blogueiros acoxinha-dos e mancos da perna da esquerda, cujo mais espumante à época, Reinaldo Aze-vedo, decretou: “A escola brasileira aca-bou, morreu, foi para o ralo. Virou lixo”. O artigo era intitulado Valesca Popozuda

Page 3: Kubitschek e o beijinho no ombro da sociedade

42

| multimídia |

numa prova de filosofia e o fim da escola. Ou: Popozuda é a nossa Schopenhauer. Quem diria, justamente o filósofo ale-mão que escreveu a máxima machista “A mulher é um animal de cabelos longos e ideias curtas” era agora ombreado a uma linda loira rebolante por um colunista infle-xível. É claro que humor não é a praia, nem a montanha, de Azevedo – o mesmo para a filosofia, o funk e, sobretudo, o jornalismo – mas o fato é que ele precedeu uma espécie alienígena de reação que logo se mostrou aborrecidamente previsível. “Eu vejo esses colunistas mais conservadores como pes-soas muito raivosas, eles têm um proble-ma sério para discutir novidades, por isso, deles, eu só esperava mais e mais ataques.”

No fundo, certo sentimento de culpa transpassou o coração de Antônio, e é cer-to que, mesmo sem a intenção objetiva, ele havia tirado uma onda com uma artista que sequer conhecia e que acabou acachapada junto com ele por um furacão de abutres preconceituosos. “Mas a Valesca entendeu o processo e ficou com medo até de que a imprensa me destruísse. Achei que ela fez uma boa defesa da educação. Ela entendeu a amplitude que tomou aquilo, quando se começou a questionar coisas como funk é cultura? Há algum problema em se consi-derar funk como um produto cultural? Por que há essa rejeição a considerar o funk uma expressão cultural legítima? Por que alguém que saia de uma comunidade pobre não pode ser considerado um pensador? Por que alguém que canta uma música po-pular não pode ser chamado de pensador?”

TUTANO POPOzUDO“Os fãs começaram a me marcar nas re-

des sociais, mas eu não dei muita importân-cia, achei que fosse brincadeira. Na verdade, achei legal. Mais do que isso, achei corajoso da parte do professor e acabei levando na es-portiva”, lembra Valesca. Ela estava em Forta-leza, correndo de um lado para o outro a fim de divulgar seu hit Beijinho no ombro. Quan-do teve uma brecha, seu empresário reco-mendou seriamente que ela se posicionasse.

A artista conta que sua reação foi es-pontânea. Não houve um debate para que pudessem gerenciar aquela crise inédita e insólita. Ela simplesmente sentou-se diante do computador e exprimiu o que pensava. “Não respondi no sentido de dar satisfação”, pontua, ao mesmo tempo em que admite que, em certo sentido, sentiu-se lisonjeada com a citação – afinal não é sempre que sua música protagoniza uma prova de filosofia, tampouco que uma funkeira é alavancada ao panteão dos grandes pensadores. Apesar disso, ressaltou: “Ainda não estou nesse pata-mar. Ainda não sou uma grande pensadora”.

O fato é que Valesca parecia uma dou-tora em marketing pessoal, ou quem sabe

uma grande pensadora contemporânea, cujos dotes diplomáticos transcendem as notas mentais de nós, mortais. Ela rebolou, rebolou e saiu lentamente desse aperto ca-beçudo com toda a simplicidade de uma moça desbocada. Para além disso, a canto-ra adotou o fronte literário como trinchei-ra e recentemente fez jus à fama sapecando uma selfie nas redes sociais em que segura-va um clássico nas mãos: Madame Bovary.

“Postei a foto porque achei engraçada, mas não foi na intenção de chamar atenção pra nada, nem tomei conhecimento da re-percussão”, esquiva-se, pois há um burbu-rinho que seu próximo clipe será baseado na obra-mestra de Gustave Flaubert: “Tem um projeto de fazer um clipe com o livro, um fã me emprestou e eu dei uma olhada bem rápida, disse que ainda vou parar e ler. Pelo que me contaram, vai valer a pena”. Antes dele, há dois outros em sua lista, “não consegui terminar de ler A menina que roubava livros e fiquei sabendo do fil-me, quero assistir, pois assim eu termino. E eu queria muito ler o 50 tons de cinza, mas também vou esperar o filme”, e sorri como quem não tem nenhuma satisfação a dar. c