kergoat daniele adivisaosexualdotrabalho 0

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DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO E R ELAÇÕES SOCIAIS DE SEXO Danièle Kergoat As condi çõ es em que vi vem homens e mulh er es não são pr odutos de um destino biológico, mas são antes de tudo construções sociais. Homens e mulheres não são uma coleção – ou duas coleções – de indivíduos biologicamente distintos. Eles formam dois grupos sociais que estão engajados em uma relação social específica: as relações sociais de sexo. Estas, como todas as relações sociais, têm uma base material, no caso o traba lho, e se exprimem através da divisão social do trabalho entre os sexos , chama da, de maneira concisa: divisão sexual do trabalho. A Divisão Sexual do Trabalho Esta no çã o foi pr imeiro utilizado pelos etnólogos para designar uma repartição  “complementar” das tarefas entre os homens e as mulheres nas sociedades que eles estudavam; Levi-Strauss fez dela o mecanismo explicativo da estruturação da sociedade em família. Mas são as antr opólogas feministas, as primeiras, que lhes deram um conteúdo novo demonstrando que ela traduzia não uma complementaridade de tarefas, mas uma relação de poder dos homens sobre as mulheres (Mathieu, 1991 a ; Tabet, 1998). Utilizada em outras disciplinas como história e sociologia, a divisão sexual do trabalho tomou, durante os trabalhos, valor de conceito analítico. A divisão sexual do trabalho é a forma de divisão do trabalho social decorrente das relações sociais de sexo; esta forma é adaptada historicamente e a cada sociedade. Ela tem por características a destinação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mul her es à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a apreensão pelos homens das funções de forte valor social agregado (políticas, religiosas, militares, etc...) Esta forma de divisão social do trabalho tem dois princípios organizadores: o princípio de separação (e xistem tr abalhos de homens e tr abalhos de mulheres) e o  princípio de hierarquização (um trabalho de homem “vale” mais do que um trabalho de mulher). Eles são válidos para todas as sociedades conhecidas, no tempo e no espaço – o que permite segundo alguns e algumas (Héritier-Augé, 1984), mas não segundo outros (Peyre e Wiels, 1997) afirmar que elas existem desta forma desde o início da humanidade. Estes pr incí pi os po dem ser aplicados gr as a um pr ocesso es pec íf ico de legi timação, a ideologia naturalista. Este processo empurra o gênero para o sexo biológico, reduz as práticas sociais a “papéis sociais” sexuados, os quais remetem ao destino natural da espécie. No sentido oposto, a teorização em termos de divisão sexual do trabalho afirma que as práticas sexuadas são construções sociais, elas próprias resultado de relações sociais. Portanto, não mais que as outras formas de divisão do trabalho, a divisão sexual do trabalho não é um dado rígido e imutável. Se seus princípios organizadores permanecem os mesmos, suas modalidades (concepção de trabalho reprodutivo, lugar das mulheres

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  • DIVISO SEXUAL DO TRABALHO E RELAES SOCIAIS DE SEXO

    Danile Kergoat

    As condies em que vivem homens e mulheres no so produtos de um destinobiolgico, mas so antes de tudo construes sociais. Homens e mulheres no so umacoleo ou duas colees de indivduos biologicamente distintos. Eles formam doisgrupos sociais que esto engajados em uma relao social especfica: as relaes sociaisde sexo. Estas, como todas as relaes sociais, tm uma base material, no caso otrabalho, e se exprimem atravs da diviso social do trabalho entre os sexos, chamada,de maneira concisa: diviso sexual do trabalho.

    A Diviso Sexual do Trabalho

    Esta noo foi primeiro utilizado pelos etnlogos para designar uma repartiocomplementar das tarefas entre os homens e as mulheres nas sociedades que elesestudavam; Levi-Strauss fez dela o mecanismo explicativo da estruturao da sociedadeem famlia. Mas so as antroplogas feministas, as primeiras, que lhes deram umcontedo novo demonstrando que ela traduzia no uma complementaridade de tarefas,mas uma relao de poder dos homens sobre as mulheres (Mathieu, 1991a; Tabet,1998). Utilizada em outras disciplinas como histria e sociologia, a diviso sexual dotrabalho tomou, durante os trabalhos, valor de conceito analtico.A diviso sexual do trabalho a forma de diviso do trabalho social decorrente dasrelaes sociais de sexo; esta forma adaptada historicamente e a cada sociedade. Elatem por caractersticas a destinao prioritria dos homens esfera produtiva e dasmulheres esfera reprodutiva e, simultaneamente, a apreenso pelos homens dasfunes de forte valor social agregado (polticas, religiosas, militares, etc...)Esta forma de diviso social do trabalho tem dois princpios organizadores: o princpio deseparao (existem trabalhos de homens e trabalhos de mulheres) e o princpio dehierarquizao (um trabalho de homem vale mais do que um trabalho de mulher). Elesso vlidos para todas as sociedades conhecidas, no tempo e no espao o que permitesegundo alguns e algumas (Hritier-Aug, 1984), mas no segundo outros (Peyre eWiels, 1997) afirmar que elas existem desta forma desde o incio da humanidade. Estesprincpios podem ser aplicados graas a um processo especfico de legitimao, aideologia naturalista. Este processo empurra o gnero para o sexo biolgico, reduz asprticas sociais a papis sociais sexuados, os quais remetem ao destino natural daespcie. No sentido oposto, a teorizao em termos de diviso sexual do trabalho afirmaque as prticas sexuadas so construes sociais, elas prprias resultado de relaessociais.Portanto, no mais que as outras formas de diviso do trabalho, a diviso sexual dotrabalho no um dado rgido e imutvel. Se seus princpios organizadores permanecemos mesmos, suas modalidades (concepo de trabalho reprodutivo, lugar das mulheres

  • no trabalho mercantil, etc...) variam fortemente no tempo e no espao. Os aportes dahistria e da antropologia o demonstraram amplamente: uma mesma tarefa,especificamente feminina em uma sociedade ou em um ramo industrial, pode serconsiderada tipicamente masculina em outros (Milkman, 1987). Problematizar em termosde diviso sexual do trabalho no remete, portanto a um pensamento determinista; aocontrrio trata-se de pensar a dialtica entre invariantes e variaes, pois se esteraciocnio supe trazer tona os fenmenos da reproduo social, ele implica estudarsimultaneamente os deslocamentos e rupturas daquilo bem como a emergncia de novasconfiguraes que tendem a questionar a existncia mesma desta diviso.

    Da Opresso s Relaes Sociais de Sexo

    A diviso sexual do trabalho foi objeto de trabalhos precursores em vrios pases(Madeleine Guilbert, Andre Michel, Viviane Isambert-Jamati,...). Mas foi no comeo dosanos 1970 que houve na Frana, sob o impulso do movimento feminista, uma onda detrabalhos que dariam rapidamente as bases tericas deste conceito.Para comear, lembremos alguns fatos: no foi tratando a questo do aborto, comousualmente se diz, que o movimento feminista comeou. Foi a partir da tomada deconscincia de uma opresso especfica: tornou-se coletivamente evidente que umaenorme massa de trabalho era realizada gratuitamente pelas mulheres, que este trabalhoera invisvel, que era feito no para si, mas para os outros e sempre em nome danatureza, do amor e do dever maternal. E a denncia (pensemos no ttulo de um dosprimeiros jornais feministas franceses: Le torchon brle1) se desdobra em uma dupladimenso: basta2 de executar aquilo que se conviria chamar trabalho, e que tudo sepassa como se sua designao s mulheres, e somente a elas, fosse automtica e queno fosse visto nem reconhecido. Muito rapidamente as primeiras anlises desta forma de trabalho apareceram nascincias sociais. Para citar apenas dois corpos tericos temos o modo de produodomstico (Delphy, 1974-1998), e o trabalho domstico (Chabaud-Rychter et al.,1984). A conceitualizao marxista relaes de produo, classes sociais definidas peloantagonismo capital/trabalho, modo de produo era na poca preponderante pois nossituvamos em um ambiente de esquerda e sabemos que a maioria das feministasfazia parte da esquerda (Picq, 1993).Mas, pouco a pouco, as pesquisas se desligaram desta referncia obrigatria paraanalisar o trabalho domstico como atividade de trabalho com o mesmo peso que otrabalho profissional. Isto permitiu considerar simultaneamente a atividade realizada naesfera domstica e na esfera profissional, e pudemos raciocinar em termos de divisosexual do trabalho.Por uma espcie de efeito bumerangue, depois que a famlia, sob a forma de entidadenatural, biolgica ... desfez-se para aparecer prioritariamente como um lugar de exercciode um trabalho, foi em seguida a esfera do trabalho assalariado, pensada at o momento

    1 NT: O pano de prato queimado2 NT: ela utiliza aqui a expresso consagrada no movimento ras-le-bol

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  • em torno somente do trabalho produtivo e da figura do trabalhador masculino,qualificado, branco, que implode (Delphy e Kergoat, 1984)Este duplo movimento d lugar, em muitos pases, ao aparecimento de muitos trabalhosque utilizam a abordagem em termos de diviso sexual do trabalho para repensar otrabalho e suas categorias, suas formas histricas e geogrficas, inter-relao dasmltiplas divises do trabalho socialmente produzido. Estas reflexes permitiram trazer acampo conceitos como tempo social (Langevin, 1997), qualificao (Kergoat, 1982),produtividade (Hirata e Kergoat, 1988) ou, mais recentemente, competncia.A diviso sexual do trabalho tinha, no comeo, um status de articulao de duas esferas,como indica o sub-ttulo Estruturas familiares e sistemas produtivos do Sexo do trabalhopublicado em 1984. Mas esta noo de articulao se mostrou rapidamente insuficiente:os dois princpios separao e hierarquia se encontram em toda parte e se aplicamsempre no mesmo sentido, era necessrio passar a um segundo nvel de anlise: aconceitualizao desta relao social recorrente entre o grupo dos homens e o dasmulheres. Uma oficina, a APRE (Atelier production reproduction Oficina produo reproduo),funcionou regularmente a partir de 1985 desembocando em uma mesa redondainternacional: Relaes sociais de sexo: problemticas, metodologias, campos de anlise(Paris, 1987); paralelamente algumas das participantes publicaram em 1986 A propsitodas relaes sociais de sexo. Percursos epistemolgicos, no quadro da ATP do CNRSPesquisas feministas e pesquisas sobre as mulheres (Battagliola et al.).Entretanto, simultaneamente a este trabalho de construo terica se iniciava umdeclnio da fora subversiva do conceito de diviso sexual do trabalho. O termo agorausual no discurso acadmico das cincias humanas, e particularmente na sociologia. Masna maior parte das vezes ele espoliado de toda conotao conceitual e retorna a umaabordagem sociogrfica que descreve os fatos, constata desigualdades, mas no organizaestes dados de maneira coerente. O trabalho domstico, que havia sido objeto denumerosos estudos, era muito raramente analisado; mais precisamente, ao invs de seutilizar este conceito para reinterrogar a sociedade salarial (Fougeyrollas-Schwebel,1998) se fala em termos de dupla jornada, de acumulao ou de conciliao detarefas como se fosse somente um apndice do trabalho assalariado. Da um movimentode deslocamento e focalizao sobre este ltimo (as desigualdades no trabalho, nosalrio, trabalho em tempo parcial,...) e sobre o acesso poltica (cidadania,reivindicao de paridade,...). Por sua vez, o debate em termos de relaes sociais (desexo) bastante negligenciado.Podemos ver a os efeitos conjugados do desemprego em massa e das novas formas deemprego, do crescimento do neoliberalismo, do declnio numrico da classe operriatradicional, da queda do muro de Berlim com suas conseqncias polticas e ideolgicas:o esvaziamento da anlise em termos de relaes sociais acima da lgica econmica nopoupou nenhum setor das cincias sociais.

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  • As Relaes Sociais de Sexo

    A noo de relaes sociais foi, salvo notveis excees (Godelier, 1984; Zarifian, 1997),pouco trabalhada como tal pelas cincias sociais na Frana.A relao social , no incio, uma tenso que atravessa o campo social. No algumacoisa passvel de reificao. Esta tenso produz certos fenmenos sociais e, em torno doque est em jogo neles se constituem grupos de interesses antagnicos. Em nosso caso,trata-se do grupo social homens e do grupo social mulheres os quais no so em nadapassveis de serem confundidos com a bicategorizao biologizante machos/fmeas.Estes grupos esto em tenso permanente em torno de uma questo, o trabalho e suasdivises. Por isto podemos avanar as seguintes proposies: relaes sociais de sexo ediviso sexual do trabalho so dois termos indissociveis e que formamepistemologicamente um sistema; a diviso sexual do trabalho tem o status de enjeu3

    das relaes sociais de sexo.Estas ltimas so caracterizadas pelas seguintes dimenses:- a relao entre os grupos assim definidos antagnica;- as diferenas constatadas entre as prticas dos homens e das mulheres so

    construes sociais e no provenientes de uma causalidade biolgica;- esta construo social tem uma base material e no unicamente ideolgica em

    outros termos, a mudana de mentalidades jamais acontecer espontaneamente seestiver desconectada da diviso de trabalho concreta podemos fazer umaabordagem histrica e periodiza-la;

    - estas relaes sociais se baseiam antes de tudo em uma relao hierrquica entre ossexos, trata-se de uma relao de poder, de dominao.

    Esta relao social tem, alm disso, caractersticas singulares: ela se encontra, j vimos,em todas as sociedades conhecidas, e mais, ela estruturante para o conjunto do camposocial e transversal totalidade deste campo o que no o caso do conjunto dasrelaes sociais. Podemos ento considera-la como um paradigma das relaes dedominao.

    Do Campo Epistemolgico ao Espao do Poltico

    J vimos, a expresso diviso sexual do trabalho tem sentidos muitos diferentes emuitas vezes se remete a uma abordagem descritiva. Isto foi e permanece indispensvel(por exemplo, a construo de indicadores confiveis para medir a (des)igualdadeprofissional homens/mulheres um verdadeiro desafio poltico na Frana). Mas falar emtermos de diviso sexual do trabalho ir mais alm de uma simples constatao dedesigualdades: articular esta descrio do real com uma reflexo sobre os processospelos quais a sociedade utiliza esta diferenciao para hierarquizar estas atividades.H debate sobre o contedo da expresso relaes sociais de sexo. Para tornar precisoos termos, lembremos que o idioma francs tem a vantagem de propor duas palavras:

    3 NT: o que est em jogo, em disputa, o desafio.

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  • rapport e relation4. Uma e outra recobrem dois nveis de apreenso da sexuation dosocial (tornar o social sexuado). A noo de rapport social d conta da tenso antagnicaque se desenrola em particular em torno da questo diviso sexual do trabalho e quetermina na criao de grupos sociais que tm interesses contraditrios. A denominaorelations sociais remete s relaes concretas que mantm os grupos e indivduos.Assim, as formas sociais casal ou famlia tal como podemos observar em nossassociedades so de uma s vez expresso das relaes (rapports) sociais de sexoconfigurados por um sistema patriarcal, e ao mesmo tempo elas so consideradas comoespaos de interao social que vo eles mesmos recriar o social e dinamizarparcialmente o processo de como se torna sexuado o social.Insistir sobre o antagonismo ou sobre o vnculo corresponde ento a duas posturas depesquisa que tornam-se contraditrias quando deixamos o plano da observao parapassar ao da epistemologia: so as relaes sociais que pr-configuram a sociedade.Versus: a multiplicidade de interaes que, no seio de um universo browniano, criapouco a pouco as normas, as regras... que podemos observar em uma sociedade dada. Enesta ltima perspectiva, relativamente hegemnica nas cincias sociais atualmente, quesomos levadas a falar, por exemplo, de complementaridade de tarefas e porconseqncia de designar prioritariamente s mulheres e com toda legitimidade otrabalho em tempo parcial.Como podemos ver, o que est em jogo neste debate no somente de ordemepistemolgica. tambm de ordem poltica. Trata-se: 1) de compreenderhistoricamente como as relaes sociais tomaram corpo nas instituies e legislaes (ocasal, a famlia, a filiao, o trabalho, o Cdigo Civil, etc.) que tm por funo cristalizartudo, legitimando o estado das relaes de fora entre os grupos em um momento dado(Scott, 1990) e 2) desvelar novas tenses geradas na sociedade e procurar compreendercomo elas deslocam as questes e permitem potencialmente deslegitimar as regras,normas e representaes que apresentam os grupos sociais constitudos em tornosdestas questes como grupos naturais. Em sntese, poder pensar a utopia ao mesmotempo em que se analisa o funcionamento do social.Portanto, os grupos de sexo no sendo mais categorias imutveis, fixas, a-histricas ea-sociais, podemos periodizar a relao que os constitui um pelo outro (graas anliseda evoluo das modalidades das questes sociais) e podemos ento abordar o problemada mudana e no somente do rearranjo do social.Este ponto de vista, minoritrio nas cincias sociais, permanece, no entanto, amplamentecompartilhado por aquelas e aqueles que trabalham sobre a sexuation do social ereconhecem a opresso de um sexo pelo outro. E isto desde o incio dos anos 1970 naFrana. Entretanto, duas questes permanecem em debate:- necessrio centrar a reflexo somente sobre as relaes sociais de sexo ou, ao

    contrrio, tentar pensar o conjunto das relaes sociais em sua simultaneidade? Atentao de hegemonizar uma s relao social no caso a relao social de sexo grande, mesmo que fosse s para tentar preencher o vazio quase total na matria.Estes trabalhos, geralmente brilhantes (pensemos por exemplo nos de Delphy,Guillaumin, Mathieu,...), oferecem instrumentos poderosos, novos e explicativos. Mas

    4 NT: em portugus ambas se traduzem por relao.

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  • considerar somente a relao de dominao homem/mulher, e as lutas contra ela, insuficiente para tornar inteligveis a diversidade e a complexidade das prticas sociaismasculinas e femininas.

    - O segundo debate e passamos a da construo do objeto de pesquisa interpretao dos fatos observados retorna caracterizao da relao socialde sexo. Em O Sexo do trabalho e nos trabalhos

    - coletivos e individuais que se seguiram se exprimiu um amplo consenso sobre atransversalidade das relaes sociais de sexo. Mas esta caracterizao insuficientese no se soma a ela uma outra dimenso: a interpenetrao constante das relaessociais. Tomemos o exemplo do modo de produo capitalista: ele construdo sobrea separao dos lugares e tempos da produo e da reproduo; quanto ao quechamamos trabalho domstico uma forma histrica particular do trabalhoreprodutivo, forma inseparvel da sociedade salarial. Em outros termos, as relaessociais so consubstanciais.

    Este debate no se reduz a uma querela escolstica: ele remete a posies analticasmuito diferentes tanto do ponto de vista cientfico quanto do ponto de vista poltico.Assim torna-se impossvel isolar o trabalho ou o emprego das mulheres, trata-se aocontrrio de operar simultaneamente, como elementos centrais explicativos, com aevoluo das relaes de sexo, de classe e norte/sul; o mesmo para a famlia, a explosodestas formas sociais e tentativas de enquadramento jurdico; ou a evoluo de formasde virilidade, paternidade/maternidade, ou os debates atuais sobre imigrao eagrupamento familiar.Esta consubstancialidade das relaes sociais permite compreender a natureza das fortesturbulncias que atravessam atualmente a diviso sexual do trabalho. Dois exemplos:- A apario e o desenvolvimento, com a precarizao e a flexibilizao do emprego,

    dos nomadismos sexuais (Kergoat, 1998): nomadismos no tempo para as mulheres( o grande aumento do trabalho em tempo parcial geralmente associado concentrao de horas de trabalho dispersas na jornada ou na semana); nomadismosde espao para os homens (interinos, canteiros de BTP e nucelares para os operrios,banalizao e multiplicao dos deslocamentos profissionais na Europa e no mundopara os executivos superiores). Aqui se v bem como a diviso sexual do trabalho edo emprego e, de maneira recproca, como a flexibilizao podem reforar as formasmais estereotipadas das relaes sociais de sexo.

    - O segundo exemplo a dualizao do emprego feminino, o que ilustra bem ocruzamento das relaes sociais. Desde o comeo dos anos 1980 o nmero demulheres contabilizadas pelo INSEE (pesquisas emprego) como executivas eprofissionais intelectuais superiores mais do que dobrou: cerca de 10% das mulheresativas esto atualmente nesta categoria. Simultaneamente precarizao e pobrezade um nmero crescente de mulheres (elas representam 46% da populao ativa,mas 52% dos desempregados e 79% dos baixos salrios), assistimos a um aumentodos capitais econmicos, culturais e sociais de uma proporo de mulheres ativas queno pode ser desconsiderada. Vemos surgir assim pela primeira vez na histria docapitalismo uma camada de mulheres cujos interesses diretos (no mediados como

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  • antes pelos homens: pais, esposos, amantes...) se opem frontalmente aos interessesdaquelas tocadas pela generalizao do tempo parcial, dos empregos de servio muitomal remunerados e no reconhecidos socialmente e, usualmente mais atingidas pelaprecariedade.

    Podemos assim trabalhar de conjunto sobre a totalidade do social sem se apressar embuscar a boa relao social ou a boa identidade individual ou coletiva. Considerar queestas relaes sociais no evoluem no mesmo ritmo no tempo e no espao no permiteperceber de uma s vez a complexidade e a mudana. E assim, as categorias sociais evidentemente sempre definidas pelos dominantes explodiro deixando espao a umconjunto mvel de configuraes nas quais os grupos sociais se fazem e desfazem, osindivduos construindo sua vida por meio de prticas sociais muitas vezes ambguas econtraditrias.

    Bibliografia

    - Collectif, Le sexe du travail. Structures familiales et systme productif, Grenoble, PUG,1984,320 p.- Daune-Richard Anne-Marie, Devreux Anne-Marie, Rapports sociaux de sexe etconceptualisation sociologique, Recherches fministes, 1992, vol. 5, n 2, p. 7-30.- Kergoat Danile, A propos des rapports sociaux de sexe, Revue M, avril-mai 1992c, n53-54, p. 16-20.- Kergoat Danile, La division du travail entre les sexes, in Jacques Kergoat et al., Lemonde du travail, Paris, La Dcouverte, 1998, p. 319-329. - Mathieu Nicole-Claude, Critiques pistmologiques de la problmatique des sexes dansle discours ethno-anthropologique [1985a], in N.-C.Mathieu, Lanatomie politique.Catgorisations et idologies du sexe, Paris Ct femmes Recherches, 1991a, p. 75-127. - Scott Joan, Genre: une catgorie utile danalyse historique, Les Cahiers du GRIFLe Genre de lhistoire,1988b, n 37-38, p. 125-153.- Tabet Paola, La construction sociale de lingalit des sexes: des outils et des corps,Paris, LHarmattan Bibliothque du fminisme, 1998, 206 p. [textes de 1979 et 1985].

    Este artigo foi publicado no Dictionnaire critique du fminisme, organizado por HelenaHirata, Franoise Laborie, Hlne Le Doar, Danile Senotier. Ed. Presses Universitairesde France. Paris, novembro de 2000. Traduzido por Miriam Nobre em agosto de 2003.

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