daniele dos reis crespo
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA
O COTIDIANO POLICIAL NO RIO DE JANEIRO DE PEREIRA
PASSOS. (1902-1906)
Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria como requisito parcial obteno do ttulo de mestre em Histria por DANIELE DOS REIS CRESPO sob orientao da professora Dra. Cludia Maria Ribeiro Viscardi.
Juiz de Fora
2007
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AGRADECIMENTOS
Durante o perodo em que estive dedicada s pesquisas que resultariam nessa
dissertao, adquiri muitas dvidas impagveis. Elas so impagveis porque no h como
pagar incentivo, compreenso, ajuda, carinho e amor. Nesse momento, no posso deixar de
tornar pblico o meu afeto, o meu apreo e o meu agradecimento especial a pessoas que tanto
me ajudaram.
A minha me, mulher sensacional, de fibra e de carter inabalvel; um exemplo a ser
seguido e luz que guia meus passos.
A minha adorvel irm, meu xod e meu brao direito, que pacientemente aturou
meus altos e baixos, minhas manias e minhas pressas.
A minha querida v Nina, que mesmo sem compreender o que eu tanto escrevia,
todos os dias me inclua em suas preces e se preocupava com meu bem-estar.
Aos amigos, Fernando e Ana Beatriz, que fazem parte dessa e de outras caminhadas.
Com carinho, mais que especial, a minha irmzinha Cris, que compartilhou comigo
dvidas, certezas, desnimos, alegrias, sua casa e sua famlia.
A minha orientadora, Claudia Viscardi, que tolerou os meus atrasos, minhas
ausncias e todos os problemas que s um orientando sabe dar!
A Marcos Bretas, que sempre esteve aberto a conversas sobre os mais variados
temas, mas que comigo sempre terminavam na DP!
Ao Sr. Novato, responsvel pelo setor de microfilmagem da Secretaria de Segurana
Pblica, que permitiu que eu invadisse o seu espao e efetuasse minha pesquisa.
Ao meu primeiro e eterno orientador, Ricardo Santa Rita Oliveira, responsvel inicial
por eu ter vontade de fazer um mestrado e por me fazer acreditar que eu podia.
Ao Moises, com todo carinho e amor, pelo seu apoio incondicional a tudo que fao,
sonho e desejo.
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Ao Programa de Ps-Graduao em Histria da UFJF e seus professores.
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E tu, filha minha, vai com a beno paterna e queira os cus que ditosa sejas; nem por seres traquinas te estimo menos, e, como prova, vou, em despedida, dar-te um precioso conselho: - recebe filha com gratido, a critica do homem instrudo; no chore se com unha marcarem o lugar em que tiveres mais notvel seno,e quando
te disserem que por esse erro ou aquela falta no s boa menina, jamais te arrepies; antes agradece e anima-te com as palavras do velho poeta:
Deixa-te repreender de quem bem te ama, Que, ou te aproveita ou quer aproveitar-te.
Joaquim Manuel de Macedo. A Moreninha. Barcelona: Editorial Sol 90, 2004, p. 8.
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SUMRIO
Resumo.........................................................................................................................7
Abstract........................................................................................................................8
Introduo...................................................................................................................9
1- A fonte.....................................................................................................9
2- O espao.................................................................................................10
3- O tempo.................................................................................................11
4- Os captulos...........................................................................................11
Captulo 1: Belle Epoque?!......................................................................................13
1.1- O Imprio da Picareta..............................................................................13
1.2- O Cdigo de Posturas..............................................................................21
1.3- O papel da polcia....................................................................................23
1.4- A polcia no Rio de Janeiro.....................................................................28
Captulo 2: O cotidiano policial...............................................................................33
2.1- Um dia de trabalho policial......................................................................33
2.2- Os nmeros..............................................................................................37
2.3- Bbados e desordeiros.............................................................................41
2.4- Agressores e agredidos............................................................................47
2.5- Atentados ao pudor e a moral .................................................................52
2.6- Queixosos................................................................................................57
2.7- Enfermos e indigentes..............................................................................63
2.8- Gatunos, suspeitos e vadios.....................................................................70
2.8.1- O Dr. Cornlio.............................................................................71
2.8.2- De vadio desconhecido a gatuno conhecido................................80
2.9- Polcia: autoridade mxima?.....................................................................82
Captulo 3: Os figurantes ganham os jornais.........................................................86
3.1- A Revolta da Vacina................................................................................86
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3.2- O cotidiano policial antes e depois da Revolta da Vacina.......................93
Concluso...................................................................................................................102
Bibliografia................................................................................................................103
Anexos........................................................................................................................110
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RESUMO
O presente trabalho analisa a relao entre os populares e o Estado atravs da
reconstruo do cotidiano policial na cidade do Rio de Janeiro. O perodo de estudo o
compreendido entre os anos de 1902-1906, poca em que, sob a gesto do prefeito Pereira
Passos, se processaram as reformas urbanas do Rio de Janeiro. Para efetuar essa anlise
utilizamos os livros de registro de ocorrncias da delegacia de So Jos.
Para a reconstruo do relacionamento entre populares e a polcia, a pesquisa foi
encaminhada visando as seguintes questes: como as ocorrncias chegavam ao conhecimento
policial; como essas ocorrncias se relacionavam (ou no) com as atribuies legais e formais
da polcia; que respostas eram dadas a partir de cada situao e como essas respostas eram
vivenciadas e entendidas pela populao.
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ABSTRACT
This work analyses the relationship between the people and the State, by trying to
reconstruct the polices daily life in the city of Rio de Janeiro. The period in study ranges
from 1902-1906, when, under the mayor Pereira Passos, Rio de Janeiro underwent urban
reforms. The materials employed for the aforesaid analysis were the registry books from So
Jos Police Department.
In order to reconstruct the relationship between the people and the police, this
research attempted to answer the following questions: how did the occurrences get known to
the police; how did the occurrences relate( or not) to the polices legal and formal
competence; what responses were elicited from each situation and how were these responses
experienced and understood by the population.
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INTRODUO
O trabalho aqui apresentado tem como objetivo principal observar o relacionamento
entre os populares e o Estado atravs da reconstruo do cotidiano policial no turbulento
perodo das reformas urbanas, promovidas na gesto de Rodrigues Alves enquanto presidente
da Repblica e de Pereira Passos enquanto prefeito da Capital Federal. As fontes de pesquisa
foram os livros de registros de ocorrncias das delegacias da cidade do Rio de Janeiro. Tais
livros se apresentam em conjuntos incompletos, volumosos e de difcil leitura. Isso nos
obrigou a fazer recortes que possibilitassem a pesquisa dentro do espao de tempo disponvel.
1- A fonte
A utilizao dos registros de ocorrncias como fonte de pesquisa ainda no algo
comum para os historiadores que tem como objeto a atuao da polcia no Rio de Janeiro1.
Isso decorre, principalmente, por eles estarem armazenados, em rolos de microfilme, na
Secretaria de Segurana Pblica. O local de difcil acesso aos pesquisadores, devido a sua
prpria estrutura fsica. L podem ser encontrados registros de ocorrncias do final do sculo
XIX at os dias de hoje. Porm, quanto mais afastados dos dias atuais, esses livros apresentam
seqncias temporais mais falhas, pois s foram microfilmados na dcada de 1980, quando
muitos j se encontravam dilacerados e destrudos2.
O livro de registros de ocorrncias era escrito por inspetores, que em plantes de 24
horas, nele deveriam relatar:
Tudo que ocorrer de mais importante, mencionando em relao a cada indivduo preso o nome, a nacionalidade, a naturalidade, a filiao, o estado, a idade, profisso e residncia, declarados pelo mesmo preso, a hora e o motivo da priso, ordem de quem foi preso e disposio de que autoridade se acha 3.
1 Marcos Luiz Bretas fez uso dessa documentao em sua tese de doutoramento, publicada com o ttulo Ordem na cidade. O exerccio do cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro. 1907-1930. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. Alm de Marcos Luiz Bretas, Leonardo Affonso de Miranda Pereira se aventurou na leitura dessa fonte, pesquisando, porm, apenas alguns dias da Revolta da Vacina, relatando seus resultados no livro As barricadas da sade. Vacina e protesto popular no Rio de Janeiro da Primeira Repblica. So Paulo: Editora Perseu Abramo, 2002. 2 Na Fundao Casa de Rui Barbosa podemos encontrar a cpia de alguns desses rolos de microfilmes, todos com data posterior a 1906, que foram usados por Marcos Luiz Bretas em sua tese de doutoramento. 3 Decreto n 4763 de 05/02/1903 Regulamento do Servio Policial do Distrito Federal.
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Grande parte do nmero de ocorrncias que chegava a delegacia resultavam das
atividades de patrulhamento dos policiais rondantes da Brigada Policial (atual Polcia
Militar)4. Eles eram responsveis pelo policiamento das ruas e precisam zelar pela paz e
ordem pblica. O inspetor, que fazia parte do Servio Policial (atual Polcia Civil) agia
posteriormente registrando no livro tudo (ou quase tudo) que o regulamento ordenava. O
registro era produzido, na maioria das vezes, a partir do entrelaamento do trabalho do
policial militar (em ronda) com o do policial civil (no registro).
Em nossa pesquisa consideramos, como pontos importantes a serem observados para
a construo de uma anlise acerca do relacionamento entre a polcia e os populares, os
seguintes aspectos:
- As situaes com que a polcia se deparava diariamente;
- Como essas situaes chegavam ao conhecimento policial;
- A resposta da polcia a cada uma dessas situaes;
- O posicionamento dos populares diante da resposta da polcia;
- Como os modos de vida dos setores populares influenciavam a
atividade policial e vice e versa;
- O que a polcia achou relevante deixar registrado e de que forma ela o
fez.
Atentos a esses aspectos, realizamos nossas pesquisas e inferncias e construmos
este trabalho.
2- O espao
Poucos so os livros de ocorrncias, escritos no perodo das reformas urbanas, que
conseguiram resistir at a dcada de 1980 para serem microfilmados. S temos exemplares,
em perodos seqenciais ou no, de livros de 14 das 28 circunscries existentes na poca. Foi
necessrio delimitar um recorte temporal e espacial que permitisse o estabelecimento de uma
metodologia que apresentasse resultados em curto prazo.
Nosso recorte espacial foi dado pela rea de abrangncia de uma circunscrio
policial, no caso, a 6 Circunscrio Urbana (C.U.) So Jos. Optamos por concentrar a
coleta sobre a referida circunscrio por ela estar localizada na freguesia de So Jos5, que
sofreu remodelaes apenas parcialmente, permitindo assim que o antigo convivesse com o
4 O que no chegava pelas atividades de ronda vinha atravs de chamadas feitas pelos populares polcia. 5 A freguesia de So Jos era dividida em dois distritos e seu policiamento era feito pela 6 C.U. e pela 7 C.U.
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moderno, fazendo com que essa freguesia vivenciasse a reforma diferentemente das outras
situadas nas reas centrais, recebendo inclusive em seus inmeros quartinhos e hospedarias
tambm se alojaram os moradores que foram expulsos da cidade reformada.
A 6 C.U. tinha em seu permetro ruas bastante movimentadas como a da
Misericrdia, Santa Luzia, Dom Manuel, So Jos, Cottovelo e Assemblia; sob sua tutela,
tambm estavam os morros do Castelo, do Pau da Bandeira e a ilha de Willegaignon. Nesse
permetro eram abrigadas importantes instituies como a Santa Casa de Misericrdia, a
Cmara de Deputados, a Escola de Medicina, o Arsenal de Guerra, o Arquivo Pblico, o
Necrotrio Pblico, a Caixa Econmica e de Monte Socorro, o Forte do Castelo, a Igreja de
So Sebastio, o Observatrio Astronmico, a Igreja de Santa Luzia e o Asilo para Mendigos.
3- O tempo
Para estabelecer o recorte temporal o primeiro quesito a ser cumprido era o da
uniformidade do perodo pesquisado. Planejvamos escolher um conjunto de registros da
delegacia de So Jos que tivesse uma seqncia ininterrupta de seis meses de registros. Aps
delimitar quais perodos poderiam ser estudados no espao de tempo compreendido entre
1902 e 1906, decidimos por um recorte que oferecesse a possibilidade de obteno de
diferentes olhares sobre a fonte. A opo feita foi a de analisar um perodo de seis meses que
tinha como marco central a Revolta da Vacina. Privilegiamos esse recorte por ter sido a
revolta um evento que expressava o pice da poltica reformista e pela possibilidade de
analisarmos o trabalho policial no cotidiano antes, durante e depois de uma revolta.
4- Os captulos
No primeiro captulo apresentaremos a cidade do Rio de Janeiro dos primeiros anos
do sculo XX, envolta na poeira das demolies e com a suntuosidade da Avenida Central
com seus homens de casaca; ladeada pela miserabilidade dos que viviam encortiados,
desempregados e famintos e observando, estupefatos, o espetculo reformista. Essas pessoas,
que desconheciam a parte terica do discurso sobre a modernidade, salubridade e a ordem,
eram diretamente atingidos pela sua prtica. Nesse primeiro captulo tambm situamos
historicamente a polcia, um importante agente ordenador dessa nova cidade, incumbida de
manter a paz pblica atravs da vigilncia, represso, disciplinarizao e assistncia s classes
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populares. Essas formas de ao eram mediadas por regulamentos e cdigos a partir dos quais
delimitamos o seu raio de atuao.
O mundo da ordem no existe sem o mundo da desordem e o que separa um do
outro uma linha tnue, constantemente cruzada pelas pessoas mais pobres, que precisavam
se adequar a padres que lhes eram extrnsecos . A no-adequao a esses padres pode ser
vista atravs das anlises das ocorrncias no segundo captulo deste trabalho, assim como o
tipo de legitimidade que essas pessoas conferiam a polcia. A forma com que os populares se
relacionavam com a polcia e vice-versa era composta de lgicas prprias, como poderemos
ver a partir das consideraes feitas em relao aos aspectos anteriormente mencionados.
O comportamento popular j foi importante objeto de pesquisa em outros trabalhos
referentes ao perodo das reformas urbanas, como por exemplo, os que tinham como temtica
a Revolta da Vacina. A Revolta da Vacina vem a ser o pano de fundo para o terceiro e ltimo
captulo, que versa sobre o cotidiano policial antes, durante e depois da revolta.
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CAPITULO 1: BELLE EPOQUE ? 6
1.1- O Imprio da Picareta
Quando leres isto, Sebastianoplis, no cubras com indignao a face, no ds punhadas de ira na cabea, no te rojes no cho aciomado de ingrato este pobre filho sincero! Ama-te ele assim mesmo, desleixada e feia; nem todas as avenidas e todos os boulevards da Europa e da Amrica podero jamais ter para ele o encanto daquela triste e esburacada rua da Valla que ouviu seus primeiro vagidos. Mas justamente porque tanto te amam, que teu filho deve ter o direito de te dizer, entre dois beijos, que a vizinhana de Buenos Aires uma vergonha para ti, adorada Sebastianoplis... Quem um dia te disse que s a primeira capital da Amrica do Sul zombou da tua ingenuidade e injuriou duramente os teus cabelos brancos; mais te ama e muito mais digno da tua gratido quem francamente te diz que s uma cidade de pardieiros, habitada por analfabetos. (...) No te zangues com a franqueza deste pobre filho! Quando um carioca volta da Europa, e pisa de novo no teu calamento remendado, e mira de novo os teus prdios sujos e tua gente em mangas de camisa e de ps no cho, - a revolta no grande: o viajante reconhece a inferioridade da sua terra, mas lembra-se de que o conforto e elegncia da Europa so produto de sculos e sculos de civilizao e trabalho. Essa considerao basta para consolar e diminuir o espanto e a vergonha. Mas reconhecer a gente que ali assim, a quatro dias de viagem, h uma cidade como Buenos Aires, - e que ns, filhos da mesma raa e do mesmo momento histrico, com muito mais vida, com muito mais riqueza, com muito mais proteo da natureza, ainda temos por capital da Repblica em 1900, a mesma capital de D. Joo VI em 1808, - isso o que doe como uma afronta, isso o que revolta como uma injustia.(...) 7.
As duras crticas de Olavo Bilac a ento Capital Federal do Brasil, a cidade do Rio de
Janeiro, expressam o sentimento de inferioridade que a mesma tinha em relao a catita e
moderna Buenos Aires. Se era aceitvel e quase uma conseqncia natural que a modernidade
se fizesse presente na Europa8, o mesmo no podia se conceber de nossa vizinha no mui
6 Belle Epoque: perodo que teve incio por volta de 1880, estendendo-se at a Primeira Guerra Mundial na Europa, e at meados da dcada de 20, no Brasil. Perodo de intenso progresso material, sob a gide do progresso e da cincia, com uma intensa produo artstica e cultural e com reafirmao de valores burgueses. ALMANAQUE HISTRICO Oswaldo Cruz, o mdico do Brasil, P. 11. Para mais informaes sobre a Belle Epoque no Brasil e no mundo confira: ngela Marques da COSTA &, Lilia Moritz SCHWARCZ. Virando sculos. 1890-1914. No tempo das certezas. So Paulo: Companhia das Letras, 2000. 7 Olavo BILAC . Chronica, Gazeta de Noticias, 18/11/1900. Crnica em ocasio da visita do presidente Campos Salles Argentina. 8 Por certo, as cidades, naquela poca, eram objeto de curiosidade e de estudo. As da Europa cresciam ao calor das transformaes econmicas, e a industrializao mudava os costumes, as condies de vida, os objetos de uso. A rapidez da transformao tcnica acentuava os contrastes. E tanto o observador estrangeiro quanto o nativo que havia visitado a Europa analisavam e consideravam as cidades segundo certos padres que evidenciavam a estagnao ou o progresso. A rigor, a cidade foi o indicador da mudana e todos a ela dirigiam o seu olhar para descobrir se a sociedade a qual pertenciam se havia incorporado ao processo desencadeado na Europa. Jos Luis ROMERO. Amrica Latina. As cidades e as idias. P. 254.
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querida. De fato, Buenos Aires, aps passar por grandes reformas e se transformar na Paris
Del Plata9 deixou o Rio de Janeiro com cara de estao de carvo, como diria Lima Barreto.
Ns passvamos ento por uma dessas crises de elegncia, que, de quando em quando, nos visita. Estvamos fatigados da nossa mediana, do nosso relaxamento; a viso de Buenos Aires, muito limpa, catita, elegante, provocava-nos e enchia-nos de loucos desejos de igual-la. Havia nisso uma grande questo de amor- prprio nacional e um estulto desejo de no permitir que os estrangeiros ao voltarem, enchessem de crticas a nossa cidade e a nossa civilizao. Ns invejvamos Buenos Aires imbecilmente. Era como se um literato tivesse inveja dos carros e dos cavalos de um banqueiro. Era o argumento apresentado logo contra os adversrios das leis sumpturias que aparecem pelo tempo: a Argentina no nos devia vencer; o Rio de Janeiro no podia continuar a ser uma estao de carvo, enquanto Buenos Aires era uma verdadeira capital europia. Como que no tnhamos largas avenidas, passeios de carruagens, hotis de casaca, clubes de jogo? 10
As reformas ocorridas em Buenos Aires datam do final do sculo XIX, na
presidncia de Julio A. Roca (12/10/1880 12/10/1886), que teve seu perodo administrativo
marcado pela prosperidade econmica, tranqilidade constitucional e pela realizao de um
grande nmero de obras pblicas, principalmente as relativas a salubridade e modernizao. A
condio de Capital Federal de Buenos Aires foi estabelecida poucos dias antes de Roca
assumir a presidncia, que junto ao Congresso Nacional seria responsvel pela administrao
da nova Capital. Roca nomeou assim, o primeiro intendente, Don Torcuato de Alvear, que de
forma desptica, contribuiu para a modernizao de Buenos Aires do qual falava Olavo Bilac
e Lima Barreto.
Assim se referiu Gonzles s reformas ocorridas na Argentina:
El embellecimiento de Buenos Aires debi mucho tambin a la presidencia de Roca. Puede decirse que fue entonces cuando comenz a presentar el aspecto de las ciudades modernas. Como la capital dependa ahora del Gobierno Nacional, Roca nombr un Intendente, que fue don Torcuato Alvear hombre emprendedor, resuelto, voluntarioso y con los mejores propsitos de convertir la grande aldea en una nueva Berln o cosa por el estilo -, estimulndole para que no se detuviese ante obstculos de menor cuanta para realizar la transformacin ideada. (...) El Intendente, don Torcuato Alvear, convirti aquellos potreros y aquella fea barriada en la parte ms bella y ms aristocrtica de Buenos Aires, abriendo calles, creando hermosos jardines, suprimiendo desniveles y fomentando la buena edificacin.(...)
9 Consideramos um ponto bastante interessante, a ser explorado em pesquisas posteriores, a relao entre as reformas urbanas de Buenos Aires e as realizadas no Rio de Janeiro, uma vez que a reforma argentina parece ter tido bastante repercusso no Brasil, como podemos depreender do testemunho desses dois escritores Lima Barreto e Olavo Bilac - que pertenciam a crculos sociais diversos. 10 Lima BARRETO. Recordaes do escrivo Isaas Caminha. P. 161.
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Cuando el Intendente, don Torcuato Alvear, resolvi demoler aquel adefesio porcin de inconvenientes con que no haba contado, los que tenan su origen en los intereses diversos que hera la demolicin. Como la cosa se demorase mucho, por haber pasado a los tribunales, el seor Alvear, que era hombre demasiado expeditivo, no se anduvo por las ranas, y una noche se present con una cuadrilla de obreros a quienes orden que empezasen, tropez con una a echar abajo la recova, cuyos moradores fueron despertados el sueo por los golpes de las piquetas11.
Em contrapartida, o Rio de Janeiro no incio do sculo XX, ainda se mantinha com a
mesma estrutura colonial: com suas ruas tortuosas, as valas correndo a cu aberto, os cortios,
a mistura tnica e social, os ps descalos, a venda descoordenada dos mais diversos produtos
em quiosques ou tabuleiros de baianas, as epidemias... Tudo isso compunha um cenrio que
no condizia com a imagem que a Repblica gostaria de ter e de ser lembrada. Nesse
momentofoi reforado o discurso que validava e transformava em essencial as reformas
urbanas12 na cidade naquele momento. Os argumentos desse discurso iam desde a necessidade
de se combater as epidemias que grassavam todos os anos durante a estao calmosa13 e
assustavam os estrangeiros imigrantes e investidores14, at a necessidade de dar mais
funcionalidade ao centro - que com suas ruas estreitas e um porto em condies precrias -
prejudicava o crescimento econmico. Alm disso, imaginava-se que a cidade do Rio de
Janeiro, enquanto capital federal, emanaria o progresso para o resto do pas.
Somente aps a gesto de Campos Salles, que conseguiu equilibrar financeiramente
o pas a custa de um arrocho na economia interna, atravs de uma poltica recessiva com
elevao geral dos impostos federais, estaduais e municipais, aumento do custo de vida e
falncias, que o sonho da reforma pde ser consolidado. 15 O saneamento das finanas gerou
11 E. Vera y GONZLES. Historia de la Republica Argentina. Su origen. Su revolucin y su desarrollo poltico. Continuada. Desde el gobierno del general Viamonte hasta nuestros das. P. 718. 12 A soluo do problema de saneamento no Rio de Janeiro sempre esteve atrelada necessidade de uma remodelao arquitetnica. Necessidade de abertura de vias duplas e arejadas, com rvores e prdios higinicos; avenidas como principal instrumento de remodelao da cidade e que atendiam a trs objetivos: sade publica, circulao urbana e transformao das formas sociais de ocupao. Jaime Larry BENCHIMOL. Reforma urbana e Revolta da Vacina na cidade do Rio de Janeiro. P. 259. 13 Estao calmosa: longa temporada de calor e chuvas, que comeava em novembro e s terminava em maro/abril. Essa era a estao com maior nmero de casos de febre amarela. As epidemias de varola geralmente aconteciam no inverno. Ibid. P. 239. 14 Os estrangeiros eram atingidos em maior intensidade pela febre amarela e tuberculose. No final do sculo XIX o Brasil ficou conhecido como tmulo de estrangeiros devido alta taxa de mortalidade apresentada por esses indivduos. Um episdio trgico em 1895 contribuiu para a afirmao dessa idia: Em 1895 o navio italiano Lombardia atracou no porto do Rio para uma visita de cortesia. A tripulao foi recebida pelo presidente da Repblica, Prudente de Morais, numa grande festividade. (...) Dos 340 tripulantes, 333 pegaram febre amarela. Morreram 234 doentes e o fato teve pssima repercusso no exterior ALMANAQUE HISTRICO Oswaldo Cruz, o mdico do Brasil, P. 15. 15 Sobre a administrao de Campos Salles confira Nicolau SEVCENKO. Mentes insanas em corpos rebeldes. P. 41-46. Cludia Maria Ribeiro VISCARDI. O teatro das oligarquias. Uma reviso da poltica caf - com leite.P. 31-72.
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recursos e ampliou crditos, viabilizando inmeros projetos reformistas no territrio nacional.
Seu sucessor, Rodrigues Alves (1902-1906), tinha entre seus projetos mais urgentes:
A manuteno da salubridade monetria e o investimento no desenvolvimento agrcola, visando aumento da produo. Para este fim ltimo, buscaria resolver o problema crnico da falta de trabalhadores, incentivando a poltica imigratria. Tal incentivo s seria vivel, porm, se as condies sanitrias do Brasil sofressem considerveis melhorias. Em vista disso, fazia parte tambm de seu plano de governo medidas que viessem melhorar as condies de sade do Brasil, essencialmente as do Rio de Janeiro que, na condio de capital, apresentava-se como vitrine internacional. Estava prevista uma srie de reformas urbanas na capital nacional, que inclua a remodelao do Porto do Rio de Janeiro e a higienizao completa da cidade. Alm do j citado, o objetivo maior do saneamento do Rio relacionava-se diretamente salubridade econmica brasileira. O Brasil queria evitar a propaganda internacional contra os seus produtos, especialmente o caf, em funo das pssimas condies sanitrias do pas (...). E precisava facilitar a prpria circulao interna do produto, dificultada pela arquitetura colonial da antiga corte16.
Para executar os melhoramentos na capital nomeou o engenheiro Francisco Pereira
Passos como prefeito, em 30 de dezembro de 1902. Um dia antes, o Conselho Municipal foi
suspenso, por seis meses, para que ele pudesse legislar livremente.
As reformas no foram efetuadas somente pela municipalidade. A cargo do prprio
governo federal ficou a remodelao, modernizao e extenso do porto, o prolongamento do
canal do Mangue e a abertura das avenidas Francisco Bicalho (ou do Mangue), Rodrigues
Alves (ou do Cais) e a Central 17. A cargo da municipalidade ficou a abertura das avenidas
Mem de S, Salvador de S e a Beira-Mar 18, alm de outros itens dispostos no Plano de
Melhoramentos da Prefeitura, que tinha por objetivos:
16 Cludia Maria Ribeiro VISCARDI. O teatro das oligarquias. Uma reviso da poltica caf - com leite. P. 81. 17 A modernizao do Porto, iniciada em 1904, consistiu na edificao de um cais de corrido com 3.500 metros de extenso. A retificao da linha irregular do litoral implicou na demolio de fevilhantes quarteires martimos e no aterro de suas numerosas enseadas com o entulho proveniente do arrasamento do morro do Senado (...) A energia eltrica passou a mover todas as engrenagens do porto. A faixa aterrada era percorrida por trilhos e por uma avenida ladeada por 17 armazns e outras construes mercantis e industriais. Jaime BENCHIMOL. Reforma urbana e Revolta da Vacina na cidade do Rio de Janeiro. P. 257. 18 Andr Azevedo considerou as reformas realizadas pelo governo federal como de ordem mecanicista e as realizadas pela municipalidade como de ordem organicista. Confira: Andr Nunes AZEVEDO. A reforma de Pereira Passos: uma tentativa de integrao urbana.P. 35-87. Para maiores detalhes sobre a execuo das reformas federais e municipais ocorridas na cidade do Rio de Janeiro confira: Oswaldo Porto ROCHA. A era das demolies: Cidade do Rio de Janeiro, 1870-1920. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentao e Informao Cultural, 1986 e Jaime Larry BENCHIMOL. Pereira Passos: Um Haussmann tropical. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, Departamento Geral de Documentao e Informao Cultural, Diviso de Editorao, 1992.
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Dar mais franqueza ao trfego crescente das ruas da cidade, iniciar a substituio das nossas mais ignbeis vielas por largas ruas arborizadas, promover melhores condies estticas e higinicas para as construes urbanas, proporcionar aos grandes coletores das canalizaes subterrneas mais facilidade de colocao e visita, encurtar as distncias a percorrer na cidade, substituir os infectos rios da parte baixa dos arrabaldes por galerias estanques, sanear, embelezar, melhorar enfim a nossa maltratada capital 19.
A reforma, sem dvida, deixou o Rio de Janeiro mais salubre, mais moderno, mais
funcional e com melhor aparncia. Porm, as benesses advindas da modernidade e do
progresso tinham como alvo uma parcela bem seleta da populao da cidade, os que podiam
pagar pelos servios e pelo conforto. Os populares vivenciaram a reforma como mais um
problema numa vida j to cheia de sacrifcios, que os deixava em situao bem pior que a
anterior, pois a reforma era responsvel por uma grande desestruturao nos seus modos de
vida, uma vez que eliminava diversas prticas que lhes garantiam a sobrevivncia. Essas
pessoas representavam uma parcela essa bem significativa da populao e poderiam ser
representada na ampla base de uma pirmide social.
O Rio de Janeiro era um plo de atrao para pessoas de todo pas e do exterior,
todas seduzidas por promessas de melhores condies de vida. Em 1890, a populao carioca
representava menos da metade do total geral da cidade apenas 45%. O restante era
composto em 28,7% de estrangeiros (em sua maioria portugueses) e 26,5% de pessoas
provenientes de outras regies do Brasil20. O crescimento demogrfico da cidade, desde o
final do sculo XIX, foi incentivado pela abolio, imigrao21 e migrao interna, eventos
que alteraram o nmero, a etnia e a estrutura ocupacional da populao. Esse crescimento
contribuiu para o agravamento tambm dos problemas j existentes na cidade, como a falta de
moradias, gua, saneamento, higiene e empregos22. Restava a essa massa humana aglomerar-
19 Jaime Larry BENCHIMOL. Pereira Passos: Um Haussmann tropical. P. 235. 20 Jos Murilo de CARVALHO. Os Bestilizados: O Rio de Janeiro e a Repblica que no foi. P. 16. 21 Aps a abolio do trfico ficou patente que a escravido estava a um passo do fim. Os fazendeiros comearam a se preocupar com a manuteno da mo-de-obra, que significava a substituio do trabalhador escravo, que havia maculado o trabalho manual com a marca da inferioridade. Construo da ideologia sobre o trabalho que liberta e propicia riquezas para atrair imigrantes, que em sua maioria, ao chegar no Brasil, se juntaram a massa subempregada. Jos Miguel Arias NETO. Primeira Repblica: economia cafeeira, urbanizao e industrializao. P. 205. 22Alguns autores como Oswaldo Porto Rocha e Jos Murilo de Carvalho sinalizam para um crescimento no nmero de empregos na cidade com a reforma. Essa gerao de emprego, porm, no pode ser confundida com a melhoria nas condies de vida, uma vez que a subida alucinante dos preos de aluguis e a proibio de formas de comrcio que privilegiavam os populares haviam sido proibidas e as condies de higiene agravadas. Confira Jos Murilo CARVALHO. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a Repblica que no foi. P. 129 e Oswaldo Porto ROCHA. A era das demolies: Cidade do Rio de Janeiro, 1870-1920. P. 84
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se em habitaes coletivas23 nas reas centrais devido necessidade de se manter prxima das
oportunidades de emprego ou de qualquer atividade, ainda que mal-remunerada ou ilegal. O
nmero de pessoas em ocupaes mal remuneradas ou sem ocupao fixa chegou, em 1890, a
mais de 100 mil (19%) e em 1906, a mais de 200 mil (24%)24. Joo do Rio, em sua clebre
obra A alma encantadora das ruas, falava das profisses da misria, que so resumidas por
Sevcenko da seguinte forma:
Os trapeiros, divididos em duas linhagens nitidamente distintas as dos que coletavam trapos limpos e a dos trapos sujos; os papeleiros; os cavaqueiros, que revolviam os montes de lixo em busca de objetos e materiais vendveis; os chumbeiros, apanhadores de restos de chumbo; os caadores de gatos, comprados pelos restaurantes onde eram revendidos como coelhos; os coletores de botas e sapatos; os apanha-rtulos e selistas, que buscavam rtulos de artigos importados para vend-los aos falsificadores; os ratoeiros, que compravam os ratos vivos ou mortos de particulares para revend-los a Diretoria de Sade; as ledoras de mo, os tatuadores; os vendedores ambulantes de oraes e de literatura de cordel e os compositores de modinhas25.
Era nos cortios, nas casas de cmodos e nas habitaes coletivas que vivia
aglomerada a maior parte da populao da cidade. Para se ter uma idia do contingente
populacional que utilizava as habitaes coletivas, podemos observar os dados referentes ao
final do sculo XIX: as freguesias centrais de So Jos, Sacramento e Santa Rita j contavam
com 214 estalagens, num total de 4.401 quartos e 8.586 habitantes. A freguesia de SantAnna
tinha sozinha 329 estalagens, 4.949 quartos e 13.055 habitantes. A insalubridade desse tipo de
moradia contribua, imensamente, para propagao de epidemias. A peste bubnica, a febre
amarela, a varola e a tuberculose eram pragas constantes na vida dessas pessoas e acabavam
por infestar as demais por todo o centro da cidade.
Assim reunida, aglomerada, essa gente - trabalhadores, carroceiros, homens ao ganho, catraeiros, caixeiros de bodegas, lavadeiras, costureiras de baixa freguesia, mulheres de vida reles, entopem as casas de cmodos, velhos casares de muitos andares, divididos e subdivididos por um sem numero de tapumes de madeira, at nos vos dos telhados entre a abertura carcomida e o forro carunchoso. s vezes, nem divises de madeiras: nada mais que sacos de aniagem estendidos
23 Habitaes coletivas: aquelas que dentro do mesmo terreno ou sob o mesmo teto abrigam famlias distintas que se constituem em unidades sociais independentes. Poderiam assim ser consideradas habitaes coletivas cortios, estalagens, avenidas, casa de cmodos, vilas operrias e favelas. Para diferenciao entre essas habitaes, confira Lia de AQUINO. Habitaes populares. Contribuio ao estudo das habitaes populares. Rio de Janeiro, 1886-1906. P. 133-139. Confira tambm Sidney CHALHOUB. Cidade febril: cortios e epidemias na corte imperial. P. 38-40. 24 Jos Murilo de CARVALHO. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a Repblica que no foi. P. 17. 25 Nicolau SEVCENKO. Literatura como misso. Tenses sociais e criao cultural na Primeira Repblica. P. 84. Em nossa pesquisa, das 1852 pessoas que estiveram na Delegacia e declararam profisses, encontramos mais de 75 categorias. Veja, no anexo 1, o quadro completo das profisses declaradas nas ocorrncias.
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verticalmente em septos, permitindo quase a vida comum, numa promiscuidade de horrorizar. A existncia ali, como se pode imaginar, detestvel26.
Atravs desse breve panorama, percebemos que a cidade no se encontrava
preparada para o crescimento populacional e comeamos tambm a compreender a razo pela
qual essas habitaes coletivas foram o alvo principal das picaretas. Varrer a rea central do
torvelinho humano misturado junto com os escombros da demolio era o desejo latente dos
que sonhavam com a cidade europeizada. A destruio desses antros de promiscuidade e
doenas j aparecia no discurso de polticos, ao final do sculo XIX, como se percebe por esta
citao:
Falando das habitaes, foroso atender para estas sentinas sociais a que a linguagem do povo apelidou de cortio. Todos sabem o que um cortio. (...) No cortio acha-se de tudo: o mendigo que atravessa as ruas como monturo ambulante; a meretriz impudica, que se compraz em degradar o corpo e alma, os tipos de todos os vcios e at (...) o representante do trabalho (...). Compreende-se desde logo o papel que representam na insalubridade da cidade estas habitaes, quando nos lembramos que alm de todas as funes orgnicas dos seres que o povoam, no cortio lava-se, engoma-se, cozinha-se, criam-se aves, etc. S vemos um conselho a dar a respeito dos cortios: a demolio de todos eles, de modo que no fique nenhum para atestar aos vindouros e ao estrangeiro, onde existiam as nossas sentinas sociais e a sua substituio por casas em boas condies higinicas27.
Com a execuo das reformas urbanas, o sonho dos higienistas se tornava realidade e
a maior parte da rea central ficava livre daquele espetculo de horror. Mas, para onde
foram os moradores expulsos dessas reas? Para onde foram os sem dinheiro, sem abrigo,
sem parentes? No quadro a seguir, onde consideramos apenas as freguesias urbanas28,
podemos observar o movimento e o crescimento populacional das freguesias antes e depois
das reformas:
26 REVISTA RENASCENA, ano II, n13, mar abr. P.89. 27 Barata RIBEIRO em sua tese, no ano de 1877. Em 1892, Barata Ribeiro foi nomeado prefeito da Capital Federal e tratou de providenciar a demolio do famoso cortio Cabea de Porco, localizado a rua Baro de So Flix, 154. Confira Sidney CHALHOUB. Cidade febril; cortios e epidemias na corte imperial. P.15-20 /51. Confira no anexo 2, a divertida e rica ilustrao do ano de 1924, intitulada Cenas Cariocas que mostra como era uma habitao coletiva. 28 As freguesias eram divididas em urbanas e rurais. As freguesias rurais eram: Iraj, Jacarepagu, Inhama, Guaratiba, Ilha do Governador, Ilha de Paquet, Campo Grande e Santa Cruz, somando em 1890, 92.906 habitantes e em 1906, 185.687 habitantes. Maurcio de Almeida ABREU. Evoluo urbana do Rio de Janeiro. P. 67.
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QUADRO NMERO 1
CRESCIMENTO POPULACIONAL ANTES E DEPOIS DAS REFORMAS
Freguesias 1890 1906 Percentual de crescimento
So Jos 42017 44878 7
Santa Rita 46161 45929 -1
Sacramento 30663 24612 -19
SantAnna 67533 79315 17
Candelria 9701 4454 -54
Gloria 44105 59102 34
Santo Antonio 37660 42009 12
Engenho Velho 36988 91494 147
Esprito Santo 31389 59117 88
Lagoa 28741 47992 67
So Cristvo 22202 45098 103
Gvea 4712 12750 171
Engenho Novo 27873 62898 126
TOTAL 429745 619648 44 Fonte:ABREU, Maurcio de Almeida. Evoluo urbana do Rio de Janeiro. 2 edio. Rio de Janeiro: IPLAN RIO/ Jorge Zahar, 1988. P. 67.
Observando o quadro acima, percebemos que o decrscimo populacional ocorreu em
todas as freguesias que sofreram reformas. A nica delas que no apresenta esse decrscimo
a de So Jos. Tal fato pode ser explicado em razo da existncia de morros j habitados
naquela rea, como o Morro do Castelo, alm da existncia de alguma oferta remanescente de
quartos. A freguesia de SantAnna, vizinha das que foram reformadas, escapou das picaretas
e, tendo a maior rea desocupada da regio, recebeu um grande nmero de pessoas. Nesse
perodo, tambm foram intensificadas as construes nas reas elevadas da cidade, que mais
tarde dariam origem ao que hoje conhecemos como favela29. O crescimento de freguesias
29 O tipo de habitao popular que hoje conhecemos como favela, segundo estudiosos, surgiu aps a Campanha de Canudos. Os soldados que ficaram instalados num morro daquela regio, chamado da Favela, provavelmente pela existncia de grande quantidade da planta do mesmo nome. Ao voltarem para o Rio de Janeiro, pediram licena ao Ministrio da Guerra para se estabelecerem com suas famlias no alto do morro da Providncia e passaram a cham-lo de morro da Favela, transferindo o nome de Canudos por lembrana ou semelhana. Tambm em 1893, esse mesmo morro abrigaria os desterrados do cortio Cabea de Porco, que recolheram os escombros da demolio do cortio para construir suas casinhas no morro. Antonio HOUAISS & Mauro de Salles VILLAR. Dicionrio Houaiss da Lngua Portuguesa. P.2.327.
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mais distantes, como Engenho Velho, Esprito Santo, Engenho Novo, Gvea e So Cristvo
se deu pela migrao da classe mdia30 para essa rea, atrados pelos meios de transporte
modernos e espao ocupveis. Os que permaneceram no corao da cidade so aqueles cujas
condies econmicas no permitiram o seu deslocamento para locais distantes do trabalho.
As demolies de Passos obrigam a mudana dos proprietrios do Centro, mas no
necessariamente, da mudana dos trabalhadores para reas suburbanas 31.
Sem dvida, a reforma de Passos foi um elemento transformador do Rio de Janeiro.
A vida de toda populao foi marcada pela metamorfose urbana sofrida pela cidade, que agora
exigia uma nova forma de convivncia social. Ao menos favorecidos, que desfrutaria muito
pouco ou quase nada das reformas realizadas, tiveram sua vida profundamente dificultada ao
mesmo tempo em que tinham que aprender os novos modos de conviver naquela Paris dos
Trpicos.
1.2- O Cdigo de Posturas
Para as elites brasileiras, os excludos, os rebeldes, os imigrantes, os trabalhadores que resistiam ou se opunham eram classificados como incapazes e ignorantes, pois no sabiam reconhecer os benefcios da civilizao. Eram, conseqentemente, brbaros e, quando se manifestavam, perigosos. A questo social uma questo de polcia (...). Em outras palavras, na medida em que havia resistncia ao projeto e que as classes perigosas demonstravam muito bem saber que determinados benefcios da civilizao no eram para todos, a poltica foi a represso32.
As demolies e as construes promovidas na gesto Alves/Passos marcaram
profundamente a histria e a historiografia. Porm, no podemos ignorar que os costumes,
hbitos e usanas tambm deveriam ser modificados e que quase tudo que deveria ser
eliminado se relacionava diretamente aos populares, que alm de serem obrigados a sair de
suas casas insalubres para outras, em piores condies, deveriam se transformar em figurantes
adequados para a nova cidade que nascia. Era necessrio incutir nessas pessoas os novos
30 Entendemos por classe mdia os funcionrios pblicos, militares, empregados do comrcio, trabalhadores especializados, enfim, pessoas de renda estvel o suficiente para o aumento de gastos com transporte, mas incapaz de se manterem nas reas reformadas da cidade. Jaime Larry BENCHIMOL. Reforma urbana e Revolta da Vacina na cidade do Rio de Janeiro. P. 265. 31 Oswaldo Porto ROCHA. A era das demolies: Cidade do Rio de Janeiro, 1870-1920. P. 76. Andr Azevedo trata as reformas urbanas como uma proposta integrao da cidade e defende que os pobres continuaram no centro da cidade, em vilas operrias. Confira em Andr Nunes AZEVEDO. A reforma de Pereira Passos: uma tentativa de integrao urbana. P. 35-63. 32 Jos Miguel Arias NETO. Primeira Repblica: economia cafeeira, urbanizao e industrializao. P. 227.
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modos de conviver e viver. Isso significava criar um mundo de ordens e proibies, que
atingiam diretamente seus modos de lazer, hbitos e sua sobrevivncia.
Algumas proibies estavam descritas no Cdigo de Posturas33, reunidas sob o ttulo
legislao distrital. Para a fiscalizao, foi criada a Polcia Municipal, composta por agentes
da prpria prefeitura, os quais deveriam observar o cumprimento das posturas, podendo
aplicar multas e fazer intimaes. Se fosse necessria uma coero mais convincente,
podiam recorrer a polcia civil. O no cumprimento dos itens dispostos na legislao distrital
era punido com multas, que em alguns casos, poderiam ser convertidas em priso, a exemplo
da prtica do pedido de esmolas sem licena e dos ajuntamentos em tocatas. Segundo as
posturas, ficava proibida a exposio de quaisquer artigos ou objetos em janelas ou umbrais,
seja em casas particulares ou de comrcio; o arremesso de slidos ou lquidos que pudessem
prejudicar os transeuntes; o depsito de objetos na via pblica; o atar de cavalos ou quaisquer
outros animais nas ruas; o trnsito de cargueiros atrelados; o montar animais em plo ou traz-
los soltos pela cidade; a propriedade de animais bravios soltos; a posse de cabras, cabritos,
galinhas e outras aves pelas ruas e praas; a inscrio de coisas desonestas nas paredes; a
prtica de qualquer espcie de jogo em locais pblicos; o entrudo; o transporte de pipas e
tonis e barris rolando pelas ruas; o lanamento de lixo de varredura, animais mortos ou
qualquer outra imundcie nas ruas; a lavagem de animais antes das nove horas; o urinar fora
dos mijadouros; o uso de brinquedos ou jogos que pudessem embaraar as linhas telefnicas;
a venda de alimentos fora dos locais prprios; a venda de bebidas espirituosas para
embriagados; a venda de plvora e armas sem habilitao policial. A lista seguia ainda com a
proibio de estabelecimento de fbricas de fumo nas freguesias urbanas; a venda de po que
no fosse a peso; o apregoamento de coisas que fossem vendidas ou distribudas
gratuitamente; a ordenhagem de vacas pelas ruas, etc. Para se ter uma idia da especificidade
de algumas proibies, podemos citar que para se ter um co era necessrio matricul-lo e
pagar taxa anual de 10 mil ris. Os ces apanhados na rua ou doentes tinham como destino a
morte. A lavagem de roupas, forma de trabalho de grande nmero de mulheres, tambm foi
proibida em casas que no tivessem quintal, no podendo ser feita em telhados e nem em
ptios internos. At o estabelecimento das lavanderias pblicas, a nica roupa que poderia ser
lavada nas estalagens era a dos prprios habitantes34.
33 preciso esclarecer que os cdigos de posturas no foram criaes republicanas ou da gesto Pereira Passos. Eles existiam desde tempos anteriores. O que pode ter havido foi uma intensificao de sua fiscalizao e cumprimento. 34 Consolidao das Leis e Posturas Municipais. P. 236.
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Observando essa imensa lista de proibies, podemos depreender que muitas delas se
relacionavam ordenao mnima do mundo urbano e serviam para manter e confirmar a
imagem de uma cidade civilizada e moderna, a Paris dos Trpicos, que no poderia suportar
mais o espetculo da barbrie contido em vacas sendo ordenhadas em praa pblica ou
animais sendo montados em plo. Muitas dessas posturas, como j havamos dito,
dificultavam ainda mais a existncia dos populares, a exemplo da criao de animais,da venda
de leite nas ruas e da lavagem de roupas.
Assistia-se a transformao do espao pblico do modo de vida e da mentalidade carioca, segundo padres totalmente originais; e no havia quem pudesse se opor a ela. Quatro princpios fundamentais regeram o transcurso dessa metamorfose, (...) a condenao dos hbitos e costumes ligados pela memria a sociedade tradicional; a negao de todo e qualquer elemento de cultura popular que pudesse macular a imagem civilizada da sociedade dominante; uma poltica rigorosa de expulso dos grupos populares da rea central da cidade, que ser praticamente isolada para desfrute exclusivo das camadas aburguesadas; e um cosmopolitismo agressivo, profundamente identificado com a vida parisiense 35.
O que se deu foi a construo de uma nova cidade36 e de novos costumes,
civilizados, modernos e limpos, ao mesmo tempo em que era expurgada a barbrie,
num cerceamento dos setores populares que perdiam suas casas e seus meios de
sobrevivncia. E para esses no bastava somente cumprir as disposies do Cdigo de
Posturas; era preciso tambm estar atento as disposies policiais.
1.3 - O papel da polcia
No perodo administrativo de Alves/Passos o policiamento teve seu efetivo
aumentado e sua atuao intensificada. Isso pode ser explicado, como j foi dito, devido a
necessidade de ordenar e fiscalizar o novo espao social constitudo, que tinha regras bem
claras de como viver. Em 1905, o efetivo policial tinha crescido quase 97%, se comparado ao
ano de 1901, enquanto a populao havia crescido aproximadamente 12% em relao ao
mesmo ano. Na poca das reformas, a cidade contava assim com um policial para cada 172
35 Nicolau SEVCENKO. Literatura como misso. Tenses sociais e criao cultural na Primeira Repblica. P. 43. 36 No foi a cidade velha que desapareceu; foi uma outra, totalmente nova que foi imposta no meio dela;cidade de prazeres, luxos e abundncia, composta de palcios refinados, recobertos de verniz, mrmore e cristal, cujo acesso era vedado aos membros da comunidade primitiva. IDEM. A revolta da vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. P.67.
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pessoas37. Observaremos que essa atuao se dava em todas as esferas da vida social, a
comear como j foi sinalizado, pelo apoio dado aos agentes da prefeitura na fiscalizao dos
Cdigos de Posturas. Era a necessidade de se controlar aquele que no se podia eliminar.
Embora fosse previsto que a polcia s deveria atuar na fiscalizao das posturas se
solicitada por agentes da prefeitura, no era isso que acontecia no cotidiano, pois o prprio
regulamento policial, em alguns de seus artigos, dava autonomia para polcia agir, uma vez
que tal regulamento se referia a situaes semelhantes. Como um exemplo, podemos citar os
jogos. O cdigo de posturas proibia a prtica de qualquer jogo em local pblico. O
regulamento policial, igualmente previa a deteno de todos que estivessem praticando jogos
proibidos em locais pblicos. Desta forma, a polcia, ao efetuar uma deteno, cumpria seu
regulamento e fiscalizava uma postura. E foi isso que aconteceu no dia em que nove
indivduos foram presos por estarem jogando em um botequim na rua Clapp38. Em outras
ocasies, a polcia nos deixa dvida do que seria um local pblico, ao prender os martimos
Thom Marques, Avelino Jos de Souza, Alfredo Mendes da Rosa e Arthur Ribeiro por
estarem jogando cartas no interior do quarto da casa n21 da rua da Misericrdia39.
Ao mesmo tempo, atravs da pesquisa nas fontes, percebemos que a polcia atuava
na fiscalizao das posturas, mesmo que no houvesse nenhuma referncia (pelo menos
direta) a tal situao em seu regulamento pois isso tambm facilitava suas aes.. Isso fica
bastante evidente quando observamos casos como o de Ricardo da Cruz, indivduo de 29
anos, estrangeiro e empregado do comrcio, que incapaz ou sem a menor vontade de conter
sua necessidade de verter gua, ainda o fez em frente delegacia40.
O que mais interessante em tais situaes atuao da polcia nesse espao em
ebulio, que fervilhava de obras e pessoas. Pessoas essas, que precisavam aprender a viver e
a conviver num novo espao, que deveria ser freqentado por elas apenas para o fornecimento
de mo-de-obra. A impossibilidade de uma expulso completa, uma eliminao daquela
gentalha feia, desnutrida, descala e em mangas de camisa exigia um grande esforo, por
parte daqueles que vislumbravam uma cidade moderna e bela, em tentar controlar, o mais de
perto possvel, essa gente, que precisava se integrar como figurante mas como um belo
figurante- no que Sevcenko chamou de teatro da Belle Epoque41. E o agente capaz de ordenar
37 Marcos Luiz BRETAS. Ordem na cidade. O exerccio do cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro. 1907-1930. P. 145. 38 Ocorrncias, 6 C.U./ So Jos, 04 - 05/12/1904. 39Ocorrncias, 6 C.U./ So Jos, 03 - 04/09/1904. 40 Ocorrncias, 6 C.U./ So Jos, 11 -12/10/1904. 41 Nicolau SEVCENKO. Literatura como misso. Tenses sociais e criao cultural na Primeira Repblica. P. 47.
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de perto esse submundo, sem dvida, era o policial, por possuir autoridade de fazer cumprir
as regras.
Segundo Pechman, desde o nascimento do servio policial no Brasil, com a chegada
da corte no ano de 1808 42, a polcia esteve ligada (re)ordenao do espao social:
Estetizar o cotidiano, impor uma ordem minuciosa que regulasse todas as esferas da existncia e forjar o decoro pblico se tornou o projeto civilizatrio daquela corte que, da noite para o dia, espanou o brilho dos pirilampos da mata tropical, substituindo-o pelo luzir de seus oiros e sedas. Polir, assear, adornar, em vez de castigar e expulsar, era o novo caminho da submisso dos sditos de uma sociedade que experimentava as douras da civilidade. Assim, a linguagem do carrasco (pena de morte, mutilao, tortura, confisco, exlio) vai sendo substituda pela linguagem dos novos arautos da ordem a Intendncia Geral de Polcia - (razo, preveno,civilizao, moralidade pblica)43.
No trecho acima, Pechman, ao referir-se sobre o processo civilizatrio, nos remete a
Nobert Elias e ao conceito de processo civilizador, que consiste em uma encenao do bem-
viver, onde todos se comportam de acordo com normas previamente estabelecidas,
independente de seus sentimentos e com controle de suas pulses. Nele ocorre uma
padronizao do comportamento para que todos tenham a sensao de viver em um lugar
pacificado e civilizado. Aquele que no se submete s normas e no tem controle de suas
pulses dever ento ser controlado pelo Estado, uma vez que cabe a este o monoplio
legtimo da fora44.
Esse monoplio legtimo da fora, do qual o Estado detentor, apresenta
desdobramentos. O monoplio precisa adquirir uma corporeidade; a fora precisa ser
delegada a agentes que sero capazes de utiliz-la, quando necessrio. A legitimidade do
monoplio baseada no direito de distribuio do poder de fora, onde o direito de usar a
fora fsica atribudo a outras instituies ou pessoas apenas na medida em que o Estado o
permite. O Estado considerado como nica fonte do direito de usar a violncia45. Atravs
da legitimidade do poder e do uso da fora que se constri o mundo da ordem e da
desordem, embora na prtica, um no exclua o outro e sim mantenham uma relao de
interdependncia.
Nas palavras de um estudioso do assunto, todo poder deve se impor, no somente como poderoso mas, tambm, como legtimo. Essa nova legitimidade do poder
42 Sobre o servio policial na Corte confira tambm Thomas HOLLOWAY. Polcia no Rio de Janeiro. Represso e resistncia numa cidade do sculo XX. Rio de Janeiro: FGV, 1993. 43 Robert Moses PECHMAN. Cidades estreitamente vigiadas. O detetive e o urbanista. P. 15. 44 Nobert ELIAS. O Processo Civilizador. Formao do Estado e Civilizao. P. 197. 45 Max WEBER. Ensaios de Sociologia. P. 98.
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tributria de sua capacidade de construir uma representao do mundo, que o divide entre ordem e desordem, fazendo com que, a partir dessa definio, todas sejam da deduzidas. O poder estabelece a fronteira, cabe aos sditos escolherem entre lcito e ilcito, o moral e o imoral, o verdadeiro e o falso etc., com todas as conseqncias derivadas dessa escolha (...). Pode-se, portanto, atravs da polcia, enxergar os nexos entre sociedade e Estado em processo de constituio e se entender melhor seu papel repressor/civilizatrio nesse momento crucial de reordenao da sociedade brasileira. Esses nexos transparecem na noo de ordem, fabricada ali na polcia- onde se constroem clivagens que iro dar os parmetros da sociedade que se forma46.
No podemos fazer uma anlise equivocada desse uso do monoplio legtimo da
fora, supondo que ele se resume numa coao baseada somente em uma violncia
caracterizada pelo que entendemos como agresses fsicas. Tanto a fora quanto a violncia
sofrida podem apresentar variadas gradaes e clivagens. O poder de coao e os vrios tipos
de violncia so vivenciados cotidianamente, embora muitas vezes no sejam vistos como
tais, por no implicarem diretamente em sofrimento do corpo.
Uma presso continua, uniforme, se exerce sobre a vida individual pela violncia fsica armazenada por trs das cenas da vida diria, uma presso muito conhecida e quase despercebida, tendo as condutas e as paixes se ajustado desde a tenra mocidade a essa estrutura social. (...) A organizao monopolista da violncia fsica geralmente no controla o indivduo por ameaa direta. Uma compulso ou presso altamente previsveis exercidas de grande variedade de maneiras, so constantemente aplicadas sobre o indivduo. Em grau considervel, elas operam tendo por meio as reflexes dele prprio47.
O trabalho policial cotidiano se inicia a partir do Estado enquanto um grupo de
indivduos com determinados interesses que, para conseguir se manter no poder e executar
seus projetos, manipula aparelhos administrativos como o aparelho policial, que recebe
atribuio do uso da fora para enquadrar, tornar adequados ou excluir aqueles que no
conseguem viver no mundo estabelecido, como o mundo da ordem e da civilizao.
Ao se formar um monoplio de fora, criam-se espaos sociais pacificados, que normalmente esto livres de atos de violncia. As presses que atuam sobre as pessoas nesses espaos so diferentes das que existiam antes. Formas de violncia no-fsica que sempre existiram mas que at ento sempre estiveram misturadas ou fundidas com a fora fsica, so agora separadas destas ltimas (...) Na realidade, contudo, h um conjunto inteiro de meios cuja monopolizao permite ao homem, como grupo ou indivduo, impor sua vontade aos demais48.
46 Robert Moses PECHMAN. Cidades estreitamente vigiadas. O detetive e o urbanista. P. 93. 47 Nobert ELIAS. O Processo Civilizador. Formao do Estado e Civilizao. P.201. 48 Ibid. P.198.
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A polcia um aparelho estatal, utilizado para fazer valer a poltica prescrita pelos
que esto no poder. Atravs da polcia, o Estado entra no pblico e no privado, legisla a vida
das pessoas, seus hbitos, seus lazeres, diz o que pode ou no pode ser feito e pune aqueles
que no cumprem os preceitos de bem viver. Bayley nos esclarece que por polcia devemos
compreender um conjunto de pessoas autorizadas a regular as relaes atravs da fora
fsica49.
A nica caracterstica exclusiva da polcia que ela est autorizada a usar a fora fsica para regular as relaes interpessoais nas comunidades. Essa uma definio; ela ensina como reconhecer minimamente a polcia. Mas no uma descrio de tudo que a polcia faz. A polcia freqentemente recebe outras responsabilidades. Alm disso, nem sempre emprega a fora para regular as relaes interpessoais, ainda que esteja autorizada a isso (...). A fim de entender o que a polcia faz, portanto, necessrio ir alm das definies, leis e responsabilidades percebidas, para examinar seu comportamento50.
Esse ir alm que Bayley fala, nos remete necessidade de olhar a atuao da polcia
mais de perto, ou seja, possuir um olhar cotidiano sobre a polcia do Rio de Janeiro.
Iniciamos essa discusso considerando que a polcia no Brasil havia sido instituda
como elemento de ordenao, coao e integrao. Ordenao quando seus agentes eram
responsveis por no permitir que nenhuma situao atrapalhasse o bom andamento da ordem
e, se tal ocorresse, poderiam se valer da coao. O sentido da integrao, que tambm se
relaciona com o de coao, visava o controle das formas de conduta, fazendo com que todos
pudessem estar juntos e, ao mesmo tempo, separados.
Temos clareza que essa atuao da polcia no se dava apenas em uma nica direo,
qual seja, elite versus populares. Embora tenhamos discutido anteriormente algumas questes
que poderiam levar crena numa polcia que age somente enquanto elemento
repressor/ordenador de um mundo popular, a sua atuao extrapola a esse simplismo, pois ela
dirigia-se a qualquer indivduo que estivesse fora da ordem instituda ou extrapolasse os seus
reduzidos direitos. claro que, ao agir contra a elite, era possvel que houvesse um
relaxamento nas formas de represso ou que sua ao pudesse comportar atitudes de maior
deferncia51. Segundo Bretas, as classes superiores deveriam ser protegidas e no policiadas,
aparecendo nos registros como vtimas (em sua maioria de crimes contra propriedade), como
patrocinadores de terceiros e em alguns raros incidentes de desordem. O relacionamento entre
49 David H. BAYLEY. Padres de policiamento. Uma anlise comparativa internacional. P. 20. 50 Ibid. P. 117 51 Marcos Luiz BRETAS . Ordem na cidade. O exerccio do cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro. 1907-1930. P. 164-172.
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a elite e a polcia teria sido intensificado com o surgimento do automvel, onde estes
apareciam como vtimas ou se queixando de avarias em seus carros causadas por terceiros. A
pretensa autoridade possuda por alguns membros da elite tambm deixava poucas escolhas
para polcia, que deveria se render a tal superioridade.
De modo bastante superficial, podemos concluir que a polcia protegia ricos e pobres
uns dos outros. A questo maior que esse monoplio legitimo da coao transformava a
polcia em um instrumento de ordenao e de justia utilizado por toda a sociedade. Ainda
que a atitude de represso se dirigisse com maior incidncia em direo aos populares, ela
tambm poderia ser aplicada contra a elite, ainda que de forma mais branda. Sendo assim,
preciso pensar a atuao da polcia como uma interferncia do Estado na vida da populao de
modo a regul-la e orden-la, dentro de padres previamente estabelecidos, com autoridade
legtima para o uso da fora.
1.4- A polcia no Rio de Janeiro
No perodo pesquisado, percebemos que as reformas urbanas promoveram a
desarticulao de diversas prticas populares relacionadas a alimentao, vestimentas,
diverso, moradia, etc. A imposio de novos hbitos no foi um processo tranqilo; a no-
aceitao dos novos modos de viver e conviver na nova cidade fez com que se lanasse mo
da polcia, que deveria assim, impor pela fora fsica, pelo convencimento ou pelo medo, os
novos hbitos. Durante todo o perodo de reforma, ela se configurou como um importante
instrumento contra tudo que se opunha, conscientemente ou no, aos ideais de modernidade e
civilidade.
O controle do mundo urbano revela a no-aceitao por diversos grupos do conjunto de servios e procedimentos oferecidos ou necessrios para o funcionamento da cidade moderna. Emergem como problemas a administrao do trfego e da limpeza e sade pblica (...). A viso administrativa de como deve ser uma cidade moderna esbarrava nas prticas estabelecidas, que exigiam o recurso polcia para serem transformadas. Assim a polcia era chamada para intervir em questes como as malhaes dos Judas na Semana Santa ou para proteger os funcionrios municipais encarregados do extermnio de ces vadios, figuras detestadas que eram apedrejadas e agredidas pelos populares, solidrios com os ces e seu direito de ir e vir. Costumes deviam ser alterados, como a prtica dos vendedores de leite que tocavam ruidosas campainhas na madrugada ou a brincadeira de soltar papagaios que interferia no servio telefnico (...) e para isso recorria-se a polcia 52.
52 IDEM. A guerra das ruas. Povo e polcia na cidade do Rio de Janeiro. P. 100-101.
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Foi na cidade do Rio de Janeiro que se deu a primeira estruturao da fora policial
no Brasil e data, como j foi dito, da transferncia da Corte, quando foi institudo o Alvar
Rgio de 10/05/1808. Com ele foi criada a figura do Intendente Geral de Polcia do Brasil,
que tinha entre suas atribuies a administrao da cidade e a de justia53. Essas atribuies j
nos mostram que, desde seus primrdios, o trabalho da polcia ia alm das atribuies
meramente criminais, tendo inclusive, maior incidncia em tarefas ligadas ao bom
funcionamento do mundo urbano54. Para auxiliar o intendente foi criada a Diviso Militar da
Guarda Real de Polcia, em 13/05/1889, incumbida do patrulhamento e do fornecimento de
homens para manter a ordem55. Por ocasio da Proclamao da Repblica, a polcia j havia
passado por algumas reformulaes estruturais e organizacionais56 e j se chamava Corpo
Militar da Polcia da Corte. Com a Proclamao em 1889 (e at 1905) passou a se chamar
Brigada Policial da Capital Federal.
No perodo compreendido entre os anos de 1902 e 1906, na cidade do Rio de Janeiro,
o policiamento era feito preponderantemente por policiais civis e militares57. A Brigada
Policial da Capital Federal, criada em 1889, era regulada pelo decreto 4.272 de 11 de
dezembro de 1901 e atuava em conjunto com a polcia civil - regulada pelo decreto 4.763 de 5
de fevereiro de 1903. Ambas eram responsveis pela ordem na cidade58.
53 IDEM. Ordem na cidade. O exerccio do cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro. 1907-1930. P.41. 54 Atribuies do Intendente: arruamento, abertura de estradas e conservao das mesmas e demais locais pblicos; fiscalizao e auxlio a edificao pblica e particular; licenciamento e fiscalizao dos transportes de mar e terra; licenciamento e fiscalizao de teatros e divertimentos pblicos, botequins, estalagens; coibio de delitos da imprensa com censura; expedio de passaportes e provimento de servios de colonizao e legitimao de estrangeiros; fiscalizao do contrato de arrematao da iluminao da corte; tratamento do registro de material da cadeia e do calabouo; represo a mendicidade e a vadiagem; elaborao da estatstica da populao; represso ao contrabando; auxlio a extino de incndios; zelo pela conservao do Passeio Pblico; zelo pelo abastecimento de gua, fontes e chafarizes. Robert Moses PECHMAN. Cidades estreitamente vigiadas. O detetive e o urbanista, p. 72. Confira tambm Thomas HOLLOWAY. Polcia no Rio de Janeiro. Represso e resistncia numa cidade do sculo XX. P. 46. 55 Marcos Luiz BRETAS. Ordem na cidade. O exerccio do cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro. 1907-1930. P.41. 56 Para maiores informaes sobre as reformulaes sofridas pelo servio policial na Capital Federal durante o perodo colonial e perodo imperial confira Marcos BRETAS. Ordem na cidade. O exerccio do cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro. 1907-1930. P. 41-45 e Thomas HOLLOWAY. Polcia no Rio de Janeiro. Represso e resistncia numa cidade do sculo XX. Rio de Janeiro: FGV, 1993. 57 Segundo Marcos Luiz Bretas, a polcia civil foi originada na administrao local, com pequenas funes judicirias. Com o tempo, teve suas funes restringidas. J a polcia militar nasceu com o papel de patrulhamento uniformizado de rua. Sofria criticas freqentes o que motivou a criao de outras polcias uniformizadas, que jamais conseguiram substitu-la. Marcos Luiz BRETAS. Ordem na cidade. O exerccio do cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro. 1907-1930. P.40. 58 O policiamento da cidade era feito tambm pela Guarda Civil (composta de 1500 homens) e pela Guarda Noturna (organizada e patrocinada por particulares). Decreto 4763 de 05/02/1903. Regulamento do Servio Policial do Distrito Federal, art. 7.
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A Brigada Policial da Capital Federal contava com um efetivo de aproximadamente
2.420 homens, distribudos em um Estado Maior, um Regimento de Cavalaria, que se
subdividia em 4 esquadres e 3 Batalhes de Infantaria, que contavam com 4 Companhias
cada um59. Segundo os artigos 593 e 594 do Regulamento da Brigada Policial, era ela quem
deveria fornecer homens para estaes e postos policiais, para guarda de edifcios pblicos e
outros servios externos. Alm disso, deveria disponibilizar, diariamente, todo o pessoal
disponvel para o policiamento da cidade, ficando de prontido no quartel central uma fora
de infantaria e, no quartel do regimento, uma outra de cavalaria para situaes de emergncia.
Esse quantitativo destinado ao policiamento da cidade e guarda de seus postos e estaes
no poderia ser reduzido ou empregado em outros servios em nenhuma hiptese,
excetuando-se as ocasies em que havia autorizao do Ministro da Justia ou aquiescncia
do Chefe de Polcia60. O Servio Policial do Distrito Federal (Polcia Civil) no tinha em seu
regulamento designado minuciosamente o nmero de homens que a compunham61. Em que
pese este fato, acredita-se que tenha existido, no mnimo, um total de 300 homens, incluindo-
se entre eles delegados de circunscries, auxiliares e inspetores, entre outros.
Segundo o artigo 1 do Regulamento do Servio Policial, a polcia se organizava
como a constituio sistemtica dos agentes indispensveis para a proteo dos direitos
individuais e a manuteno da ordem pblica62. Para alcanar tal objetivo, estavam dispostas
nos regulamentos, instrues para todos os envolvidos no policiamento, desde o chefe de
polcia at o rondante. Faremos um recorte nesses regulamentos para observar, com mais
ateno, as atribuies daqueles que estavam mais prximos dos policiados, aqueles que eram
responsveis pela produo da nossa fonte de pesquisa (o registro de ocorrncia): os
inspetores de seo e os rondantes. As atribuies dos inspetores estavam arroladas no
Regulamento do Servio Policial, do artigo 35 ao 36. As atribuies do rondante estavam
dispostas no artigo 624 do Regulamento da Brigada Policial.
As atribuies dos inspetores de seo eram descritas em linhas bem gerais,
permitindo um flexvel enquadramento de tudo que necessitasse ser coibido. Dentre suas
atribuies destacava-se a obrigao de velar constantemente e com assiduidade sobre tudo
que pudesse interessar a preveno de delitos e contravenes; dar parte ao delegado do que
ocorresse na seo e os delitos e contravenes que nela fossem cometidos; fazer prender os 59 Decreto 4272 de 11/12/1901.Regulamento da Brigada Policial da Capital Federal, art. 593. Confira no anexo 3, o quadro completo da diviso de homens da brigada. 60 Decreto 4272 de 11/12/1901.Regulamento da Brigada Policial da Capital Federal, art. 593-594. 61Decreto 4763 de 05/02/1903. Regulamento do Servio Policial do Distrito Federal, art. 5 e 6. Confira no anexo 4 o mapa da fora do servio policial. 62 Decreto 4763 de 05/02/1903. Regulamento do Servio Policial do Distrito Federal, art. 1.
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criminosos em flagrante, aqueles contra quem houver ordem de priso preventiva, os
pronunciados no afianados e os condenados priso. O inspetor era tambm o responsvel
pela tarefa de registrar tudo que ocorresse de mais importante e devia se mostrar conhecedor
das pessoas residentes em sua seo, do movimento das casas de penso, hospedarias, hotis,
etc. e ainda morar na sua respectiva seo63.
As atribuies do rondante eram bem mais pormenorizadas e incluam a deteno de
pessoas na prtica de crimes ou em fuga, em atitudes suspeitas, perseguidas pelo clamor
pblico, armados, jogadores, perturbadores do sossego pblico, portadores de embrulhos
suspeitos, vadios, mendigos, loucos, crianas perdidas e pessoas vestidas inadequadamente.
Deveriam recolher indcios de crimes e participar s autoridades policiais se nas praas e ruas
havia algum tipo de imundcie ou animal morto; verificar se a iluminao encontrava-se em
perfeito funcionamento. Deveriam tambm comunicar sobre a existncia de ajuntamentos
ilcitos; de casos de molstias contagiosas e de fatos que pudessem perturbar a ordem; acudir
em caso de incndios, tomar nota dos que infringiam as posturas municipais, prestar auxlio a
quem quer que solicitasse e prender desertores 64, estando tambm sempre atentos para a
prtica de crimes e contravenes previstos no Cdigo Penal 65.
Podemos observar, por essas atribuies, que o trabalho policial era muito mais
amplo do que se poderia supor. Diante de atribuies to diversas, se fez necessrio em nossa
pesquisa, estabelecer o que, de acordo com o previsto na legislao, era a principal esfera de
atuao da polcia. Bittner, ao tratar de tal questo, esclarece que, antes de tudo, precisamos
encarar a polcia enquanto uma instituio social que responde s exigncias e s necessidades
dos costumes sociais, sendo tal funo apropriada ou no para o trabalho policial, ficando este
ligado estreitamente atividades de manuteno da paz e da ordem e desviado da aplicao da
lei66. Sugere, ento, que o policiamento pode ser dividido em trs domnios: o criminal
(combate ao crime), o do controle regulador (controle do trfego, superviso de algumas
atividades licenciadas) e o da manuteno da paz (solues permanentes ou provisrias para
problemas que requerem ateno apenas da prpria polcia)67.
Para saber em que domnio a polcia da cidade do Rio de Janeiro atuava com maior
incidncia elaboramos um quadro (que se encontra no anexo 5) onde dispusemos as 63 Decreto 4763 de 05/02/1903. Regulamento do Servio Policial do Distrito Federal, art. 35 e 36. 64 Decreto 4272 de 11/12/1901.Regulamento da Brigada Policial da Capital Federal, art. 593. 65 De acordo com os artigos 7 e 8 do Cdigo Penal de 1890, consistia em crime a violao imputvel e culposa da lei penal. J a contraveno consistia em fato voluntrio punvel, expresso unicamente na violao ou na falta de observncia das disposies preventivas das leis e regulamentos. Oscar de Macedo SOARES. Cdigo Penal da Republica dos Estados Unidos do Brasil Comentado. P. 26-27. 66 Egon BITTNER. Aspectos do trabalho policial. P. 16-17. 67 Ibid. P. 30 34.
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atribuies dos rondantes e as correlacionamos aos artigos do Cdigo Penal e do Cdigo de
Posturas (pois a polcia se utilizava tambm desses dois instrumentos reguladores no seu dia-
a-dia) para que pudssemos ter uma viso mais ampla das normas que vigoravam na poca e
influenciavam o cotidiano da populao68. Esse quadro apresenta, em sua ltima coluna, a que
domnio pertencia cada atribuio. Foi necessrio, porm, a criao de mais um domnio, que
denominamos de prestao de servios, onde inclumos algumas atividades previstas pela
polcia que no se enquadravam de forma satisfatria nos propostos por Bittner. De acordo
com esse quadro, vemos que a atuao da polcia se dava prioritariamente no domnio da
manuteno da ordem urbana, reforando as aes polticas da poca, que pretendiam, entre
outras coisas, enquadrar a cidade do Rio de Janeiro no rol das cidades modernas e civilizadas.
Se at o presente momento nos detivemos a contribuir com os estudos acerca do
trabalho policial, passaremos agora a observar como se processava, na prtica, o policiamento
cotidiano e como os populares reagiam a todas a essas leis e proibies que cerceavam seus
poucos direitos e sua prpria sobrevivncia.
68 Clarissa Nunes Maia em sua tese analisa os trs nveis de atuao do Estado no disciplinamento urbano a partir das leis municipais (reguladoras da vida da populao na cidade), da polcia (encarregada de fazer os cidados cumprirem as leis) e da casa de Deteno (punidora e redisciplinadora de quem de quem fugisse as normas). Confira em Clarissa Nunes MAIA. Policiados: controle e disciplinamento das classes populares na cidade do Recife, 1865-1915. Tese de doutorado, Universidade Federal de Pernambuco, 2001.
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CAPTULO 2: O COTIDIANO POLICIAL
O cotidiano policial sempre foi tema de sucesso em romances e folhetins. Os
principais personagens desses contos eram o inspetor ou delegado, o detetive (tambm
chamado de secreta), a vtima displicente e o criminoso (que poderia ser feroz, extremamente
sagaz ou dotado de pouqussima esperteza). Esses papis estavam sempre envolvidos num
grande caso, solucionado com louvor nas ltimas pginas.
Depois de nossa pesquisa nos livros de registros de ocorrncias das delegacias da
cidade do Rio de Janeiro do incio do sculo XX, podemos dizer que, nesta poca, esse tipo de
caso policial era pouco comum. No dia-a-dia, a polcia enfrentava situaes bem mais triviais
e bastante repetitivas, que exigiam uma atuao imediata, mas que no tinham carter de
soluo permanente do caso.
Neste captulo examinaremos o cotidiano policial, no o que compunha os folhetins e
romances e sim as pginas dos jornais cariocas, para que possamos produzir uma anlise
acerca do relacionamento da polcia com a classe popular da cidade, que era a capital da
jovem Repblica Brasileira.
2.1- Um dia de trabalho policial
O planto, que foi iniciado s 12 horas do dia 30 de agosto e que terminaria s 12
horas do dia seguinte, foi de bastante trabalho para o inspetor: ele registrou 17 ocorrncias e
fez a ficha de 25 pessoas que foram parar na delegacia. O primeiro registro do dia nos conta
da priso em flagrante do espanhol Antnio Vasques, por ter ofendido fisicamente e
produzido diversos ferimentos no austraco Floriano Perallo, em um dos botequins da rua da
Misericrdia. Ainda na rua da Misericrdia foram efetuadas a priso de Maria Pereira da
Silva, por promover desordens na porta da hospedaria n 55 e de Jlia Maria da Conceio,
por estar assentada na porta da hospedaria n 21. Tambm foram detidos, por estarem
assentados na porta da hospedaria vizinha, no n 19, Maria Diamantina Fernandes Pereira,
Francisca Teixeira de Jesus, Aureliano Augusto Baluano, Jos da Silva Pedreira. Logo em
seguida, ainda na rua da Misericrdia, foram detidas Anglica Maria da Conceio e
Furtunata Maria da Conceio, por estarem provocando desordens e perturbando a ordem
pblica. Foram tambm recolhidos nove indivduos que estavam vagando ou dormindo ao
relento.
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Se o trabalho da polcia nesse dia se resumisse a recolher desordeiros, vadios e
pessoas que dormiam ao relento, ele teria findado aqui. Porm, alm disso tudo, ainda tiveram
que atuar contra aqueles que os desrespeitavam: Belmiro Rosa da Silva foi preso por estar
menoscabando da ronda feita pelos inspetores; Jos Lanzi, por ter faltado com respeito aos
soldados quando foi admoestado por estar na porta de uma estalagem e Jos Madu e
Jaccomo Hevato, por tentar agredir as praas. A polcia teve ainda que deter Porfrio Arruda
de Vasconcelos, que embriagado, apalpou os seios da menor Maria Nunes, quando esta
passava pela rua de Santa Luzia.
Para encerrar o atribulado dia de trabalho, o inspetor, aps registrar todas essas
ocorrncias, ainda expediu duas guias para Santa Casa de Misericrdia, tendo um dos
enfermos vindo do longnquo bairro de Bangu69.
* * * * *
Narramos longamente as situaes com que a polcia se deparou, a partir do registro
feito pelo inspetor em 24 horas de trabalho, para que o leitor, que nunca manteve contato com
uma documento policial desse tipo, compreenda melhor a fonte de nosso trabalho e algumas
das dificuldades que iremos enfrentar. Com esse exemplo, j podemos ver como eram
diversas e muitas vezes numerosas as situaes com as quais a polcia se deparava70 sendo por
isso, muito difcil, utilizar esse tipo de fonte sem produzir tabulaes que nos permitam
observar a repetio, ou no, de um determinado tipo de situao e assim esboar algumas
concluses acerca do trabalho policial e da relao entre setores populares e polcia.
A tabulao de resultados, porm, dificultada pela forma com que as ocorrncias
foram registradas. Os livros, manuscritos e muitas vezes ilegveis, no seguiam rigorosamente
o que o regulamento policial especificava e apresentavam muitos dados incipientes, duvidosos
e incompletos. A ausncia de uma padronizao no registro e a falta de uma referncia ou
especificao clara, obriga o pesquisador a acomodar o registro nas categorias, segundo suas
prprias convenes. O registro fica assim reclassificado pelo pesquisador e talvez afastado
do objetivo e da realidade em que o mesmo se processou. O problema de classificao
reclassificao do registro porm ampliado quando percebemos que o prprio inspetor j
69 Ocorrncias, 6 C.U./ So Jos , 30 31/08/1904. 70 Nem todos os dias apresentavam esse nmero de ocorrncias. No perodo pesquisado a mdia de ocorrncia diria varia em 11,02.
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pode ter re-classificado determinada situao, por ocasio do registro da ocorrncia71. Isso nos
deixa cientes de que, mesmo que se empreenda grande esforo na tabulao e na interpretao
de tais registros, eles podem nos levar a concluses extremamente diversas do que realmente
teria acontecido.
Produzir tabulaes sobre a natureza das chamadas de servio a partir de registros manuscritos, como requerido na maioria dos lugares do mundo, trabalhoso. Significa folhear volumosos arquivos e registros. Mesmo quando os registros so razoavelmente completos podem no fornecer um retrato acurado do que a polcia encontra devido a caracterizao usada na hora do registro72.
O regulamento orientava que o inspetor registrasse tudo que ocorresse de mais
importante. Isso possibilitava que o inspetor fizesse suas prprias selees, deixando uma
brecha para que muitas situaes no fossem registradas ou registradas de forma parcial,
havendo assim uma certa facilidade em manipular registros, seja para facilitar o trabalho
posteriormente, seja para amenizar alguma situao.
Registros de atividades e dirios mantidos por oficiais individuais fornecem informao de primeira mo sobre as situaes, mas eles no so disponveis uniformemente em todas as foras policiais. Mesmo quando esto disponveis, a qualidade dos relatrios individuais varia consideravelmente (...).Qualquer que seja o nvel no qual a atividade registrada - individualmente ou nas unidades de comando - os arquivos refletem decises de pessoas sobre o que importante registrar. Nenhum sistema de registro automtico. Registrar trabalho para alguma pessoa. Assim, sempre existe a tentao de omitir eventos triviais, transitrios ou sem repercusso para polcia73.
Fica conferido como um trao marcante dessa fonte a maleabilidade e fluidez. Em
nossa pesquisa nos deparamos com uma ocorrncia interessante, que exemplifica como o
inspetor podia manipular o registro, seja pela omisso ou pela minimizao do ocorrido.
As 10 horas da noite pelo Sargento Comandante da estao tive conhecimento que as patrulhas da rua D. Manoel e da Travessa do Pao achavam de ser agredidos por praas de Infantaria de Marinha pelo que mandei que a patrulha regressassem a esta estao. As 11 horas da noite ouvi gritos de Morra a Polcia
71 Exemplo dessa problemtica se apresenta nas prises efetuadas das mulheres no dia citado (30/31 de agosto) : elas estavam assentadas na porta de hospedarias e tudo nos leva a crer que se tratavam de prostitutas, porm no registro de ocorrncia no h nenhuma referncia a isso. Por no ser crime a prtica de lenocnio, mas estando previsto no regulamento da polcia que deveriam ter sob sua vigilncia as prostitutas, a opo do inspetor era de registrar como motivo da priso o ato de estar assentada na porta de uma hospedaria, que no era crime e nem contraveno, encerrando o assunto por a. Optamos por classificar essas prises como vadiagem uma vez que o Cdigo Penal no artigo 399 considerava vadio aquele que provesse sua vida por meio de ocupao ofensiva a moral e aos bons costumes. 72 David H BAYLEY. Padres de policiamento. Uma anlise comparativa internacional. P. 134. 73 Ibid. P. 128-129.
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pelo que me dirigia, digo, dirigi a porta da rua onde vi que se aproximavam da estao cerca de 50 praas de infantaria de Marinha precedidas de grande massa popular. O Sargento a vista do que se passava preparou a fora de que dispunha distribuindo munio, acontecendo, porm que uma praa na ocasio de carregar a carabina, esta disparou, no atingindo, porm o projtil em pessoa alguma74.
Pelo relato contido no registro, tem-se a impresso de que esse grupo, formado por
infantes da Marinha e pelos populares, tinha decidido tomar a delegacia em assalto, sem
nenhum motivo aparente relatado. Buscamos nos jornais da poca alguma aluso a esse fato e
encontramos a explicao para esse registro quase dramtico do inspetor. Foi no jornal
Correio da Manh que encontramos o melhor relato do acontecido75. Os problemas se
iniciaram no final dos festejos da igreja da Lapa dos Mercadores, comem