juventude e pensamento conservador no brasil (1961-1980) · mobilizar um discurso panfletário em...
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Juventude e pensamento conservador no Brasil (1961-1980)
Introdução
Quando eu era jovem a crença corrente era a de que a juventude era progressista por índole.
Desde então isso revelou-se falso, pois aprendemos que movimentos reacionários e
conservadores também podem formar organizações juvenis... A juventude não é nem
conservadora, nem progressista por índole, porém é uma potencialidade pronta para qualquer
oportunidade.
Karl Mannheim. O problema sociológico da juventude
O trabalho apresenta as representações de juventude apreendidos em um
periódico educacional de alta circulação na época apontada, durante o período de cerco
e golpe do governo de João Goulart e os anos subsequentes da ditadura civil-militar no
Brasil.
Estudou-se a imagem que foi construída sobre a juventude entre os anos 1960 e
1980, a partir dos artigos produzidos e publicados na Revista da Editora do Brasil S/A
(EBSA). Este interesse surgiu, em primeiro lugar, porque esse periódico educacional se
apresentou notadamente favorável ao governo autoritário instituído em 1964.
Foi observado que tal periódico circulava como um clipping de notícias.
Filtrava-se o conteúdo produzido por outros veículos de comunicação em massa, tais
como os jornais O Estado de S.Paulo (OESP); O Estado de Minas (OEM); a Folha de
S.Paulo (FSP); o Correio da Manhã, o Diário de Notícias, O Globo, entre outros. Esses
jornais, estudados em paralelo ao produto da editora, se posicionavam contra as
manifestações estudantis de rua. Deixavam evidente o apoio aos militares; criaram
plataforma políticas em torno da “purificação dos jovens brasileiros”, de modo que se
evitasse o aumento de manifestações contrárias ao regime autoritário estabelecido.
Tratava-se de um periódico que tratava de uma gama variada de assuntos sobre a
educação brasileira. Mas, que durante os anos da ditadura civil-militar se esmerou em
mobilizar um discurso panfletário em torno da ideia de desenvolvimentismo
concentrando uma considerável parte de seu conteúdo moldando representações sobre a
juventude e os estudantes brasileiros. Tornou-se interessante estudá-la levando em
consideração que, pela sua tiragem, circulação e periodicidade foi possível detectar um
grupo considerável de professores brasileiros tendo-a em mãos, o que será apresentado
adiante.
À época, o que era chamada de “juventude” era o grupo que se mobilizava por
meio de uma variada gama de manifestações em vários locais do mundo. Tornou-se
interessante compreender como foi edificada uma ideia de juventude em uma revista
educacional, que não escondiam o seu apoio ao Estado militar. Diante dos manifestos
juvenis nos anos 1960-1980, um “projeto de juventude” foi organizado em suas páginas,
buscando um ideal de jovem que fosse mais “adequado” ao ajustamento social diante
daqueles que se mobilizavam politicamente em desacordo ao governo. O período
demarcado na pesquisa compreende de 1961, ano em que são publicados os primeiros
artigos sobre os jovens estudantes na revista, a 1980, ano em que se percebeu um
decréscimo de conteúdo sobre a juventude, coincidindo com a abertura política que se
iniciava no país.
O estímulo para a confecção dessa comunicação tem relação com os estudos de
Sarlo (2007) sobre a construção de uma historiografia sobre o período de ditadura
militar na Argentina. Sarlo (2007) apontou uma preocupação em torno das fontes
documentais como elemento fundamental para a identificação de traços significativos na
história da ditadura militar, no caso, argentina, a partir da necessidade de criação de um
sistema de hipóteses em que fossem captadas as contradições sociais. Para isso, pedia
por pesquisas que buscassem pela variação documental. No caso deste texto, buscou-se
outra possibilidade narrativa de história dos jovens e estudantes naquele período. Tenta-
se compreender que espécie de discursividade modelou as representações juvenis e, em
contrapartida, como aqueles jovens vivenciavam e respondiam às próprias
manifestações criadas para eles, num cenário autoritário que depositava no tempo futuro
as esperanças do país.
Isso significa dizer que, sobre os ombros dos jovens brasileiros pairaram
expectativas e promessas, por isso, entender como uma parcela dos grupos juvenis
urbanos assumia ou repudiavam tais planos, passou a ser interesse de pesquisa.
Reforçou ainda mais o interesse nesse tema a constatação de que havia uma “falta” de
estudos históricos sobre as representações da juventude no Brasil, como é o caso deste
estudo e de estudos históricos sobre a juventude em geral.1
Hilsdorf e Peres (2009) analisaram os estudos históricos sobre a juventude entre
1999-2006. Segundo esse levantamento, há uma concentração de estudos sobre a década
de 1960-1970, dando ênfase aos aspetos ligados ao movimento estudantil. O foco dos
trabalhos está centralizado na atuação política dos estudantes contra o autoritarismo
militar, desconsiderando tanto o aspecto “estudantil” do movimento, quanto à existência
de grupos juvenis que se posicionassem a favor do governo militar. Além disso, as
pesquisadoras apontam para um bloco de análises que formaliza uma imagem
monolítica dos estudantes, como se todos eles fossem rebeldes e militantes,
desconsiderando a existência de um contingente juvenil que não se manifestava nas ruas
ou, simplesmente, se comportava de outras maneiras, muitas vezes, contrariados com
as ações de seus pares etários. Mais claramente, o estudo apontou para um grupo juvenil
conservador e avesso aos atos praticados pelos demais.
Sanfelice (2008) nos adverte sobre a escrita da história que tem em vista
somente o recorte da União Nacional dos Estudantes (UNE), outro bloco substancial de
pesquisa que consolida a história da entidade como sendo a mais importante instituição
representativa dos estudantes. De acordo com o autor isso é como “contar uma parte da
história”, ainda que seja uma parte importante dela. O autor deixa claro que nem todos
os estudantes universitários dos anos 1960 participaram do movimento estudantil e que
1 Entre 2003 a 2016 o Banco de Dissertações e Teses da Capes 8 trabalhos com o descritor “história da
juventude”. Destes, 5 são análises historiográficas do passado, sendo contemplados os seguintes
assuntos: História da juventude católica na Diocese de Santa Cruz do Sul (SILVANO, 1996); A
construção da ameaça: juventude, delinqüência e educação nos primeiros tempos da república no Brasil
(1890-1940) (BERNARDO, 2008); Children of the revolution: o glitter rock de Elton John (a obra, os
artistas, o público) (SANTANA, 2002); Da contestação ao consumismo: a trajetória da cultura jovem nas
páginas da Revista Veja (1968 - 2006) (CALDAS, 2007); A invenção da juventude transviada no Brasil
(1950-1970) (SANTOS, 2013).
nem todos reconheciam a UNE como uma entidade representativa. Ao contrário, dentre
os estudantes havia quem se estabelecesse em outros grupos juvenis, de representação
política, ou não, mostrando uma gama amplificada de associações juvenis, apesar de
apagadas da história.
Dos levantamentos bibliográficos surgiram três imagens que abriram a
possibilidade de construção da pesquisa completa. Uma, que percebeu um foco muito
centralizado na atuação política dos estudantes contra o autoritarismo militar,
desconsiderando o aspecto “estudantil” do movimento. No caso, compreende-se que
parte do que se podia considerar como uma ação política eram reivindicações ligadas ao
cotidiano escolar e que denunciavam os problemas de ordem administrativa, legal, e de
planejamento do sistema educacional. A segunda, que constituiu uma imagem
monolítica destes jovens como se todos eles fossem rebeldes e ativistas, não percebendo
os movimentos não se manifestava ou que demonstrava a sua mobilização de outra
forma. No caso, a ideia era perseguir outras representações juvenis, inclusive buscando
compreender como seria a posição daquele jovem que se omitia das atividades políticas.
A terceira, que menospreza as histórias sobre a juventude que não fossem referentes às
manifestações políticas dos estudantes, principalmente àquelas caracterizadas como
estando à esquerda. Ao final, constatou-se que uma carga bastante grande das
representações de “boa juventude brasileira” estava ligada exatamente aos jovens que
não estavam nas ruas se manifestando e preferiam continuar nos bancos escolares,
demarcando esta ação como índice da boa conduta.
Precisamente porque se trata de um estudo de documentação que favorece o
estado autoritário, foi necessário fazer um estudo sobre o pensamento conservador, para,
finalmente, especificar como esse corpo documental apresentava a juventude no período
da ditadura militar.
O pensamento conservador foi pensado em torno da questão do “ativamento”
dos conservadores diante das manifestações juvenis. O “ativamento” do grupo
conservador foi objeto de discussão de Carvalho (2005), Hirschman (1997), Bobbio
(1987), Mayer (1977).
Todos esses pesquisadores consideram que, na visão conservadora, enquanto a
história está desprovida de inquietações, há uma estabilidade estacionária entre os
agentes da conservação. Como disse Bobbio (1987), o conservadorismo só se pode
explicar com base na história, tido em conta a sua relação com o seu alternativo
histórico (BOBBIO, 1987, p. 243). A análise de registros teóricos e a atuação de grupos
que se reconheçam como conservadores é mais bem interpretada a partir de sua reação a
conjunturas históricas específicas e que tal “reação” depende da entrada de forças
consideradas perturbadoras.
Compreender o funcionamento das forças de conservação é importante no
momento em que elas são atingidas em pontos de reação. Neste caso, os pontos de
reação foram abordados com a anunciação de manifestações juvenis políticas de vários
matizes naquele momento. O periódico educacional, seus editores, e o conglomerado de
mídia que era ali representado, era uma colagem de ideias conservadoras ao estilo da
“tese de perversidade” e a “tese do risco”, apresentadas por Hirschman (1997, p. 16).
Isto é, divulgavam que todo movimento social que buscasse uma alteração
brusca das características da sociedade, não podia ser levado a sério, porque, desta
forma, corria-se o risco de perda das conquistas já programadas e feitas de forma
paulatina. Essa ideia rebatia categoricamente todo movimento social, inclusive
estudantil ou juvenil, que sonhava com modificações abruptas do sistema político, fosse
por meio de reformas amplas, fosse através da revolução socialista, esta que, à época,
por sua carga utópica e real, levando em conta à Revolução Cubana, fazia parte da
mentalização e dos projetos de vida de parte dos jovens.
Sugerimos que os argumentos publicados na Revista eram conservadores
exatamente porque, diante da possibilidade de alterações no funcionamento das bases
sociais, a partir do foi proposto durante o governo de João Goulart, foram mobilizadas
as ideias que oscilaram entre a perversidade e o risco. Isto é, entre pensar que todos os
movimentos de modificações estruturais eram vistos como motivo para uma crise
generalizada de costumes; e o risco, por acreditar que nada devia ser modificado,
exatamente porque desestabilizaria as conquistas, sociais, políticas e econômicas
adquiridas até então, de forma “estabilizada” e “harmoniosa”, acreditando que tais
modificações poderiam perverter as conquistas já definidas.As mobilizações políticas
excessivas serviam apenas para evidenciar o baixo caráter daqueles que promoviam
inquietações na harmonia social.
É importante apontar que Mayer (1977) vê a condição de ser jovem, por si só,
por serem eles portadores de um novo tempo emergente, já causa desconfiança entre os
agentes da conservação.
Diante do conteúdo exposto, aparecem as seguintes perguntas: Se diante
agitações estudantis do início da década de 1960, os artigos de lançaram os jovens
estudantes à condição de diferentes, “alarmistas”, “iludidos” e “desprevenidos”, como
se manifestaram diante de estudantes que resistiram à ditadura após o Golpe? Eram
rebeldes apenas os estudantes? Como esses editores e os colaboradores traduziram o os
manifestos juvenis, além dos estudantis? Como foram observados os jovens não
engajados politicamente? Quais eram as manifestações juvenis que deveriam ser
valorizadas? Portanto, qual foi a ideia de juventude que esses sujeitos, notoriamente
conservadores, criaram pelas páginas do periódico educacional?
Portanto, a análise de registros teóricos e a atuação de grupos que se reconheçam
como conservadores é mais bem interpretada a partir de sua reação a conjunturas
históricas específicas e que tal “reação” depende da entrada de forças consideradas
conflitantes.
Diante da reação aos movimentos juvenis, os grupos apontados como
conservadores apresentariam um planejamento considerado por eles mais coerente e
harmonioso para a juventude brasileira, pensando-a como peça fundamental para o
desenvolvimento do “Brasil Grande”.
A posição conservadora do clipping educacional: editora e jornais
A Revista da Editora do Brasil S/A (EBSA) militava abertamente em nome da
escola particular, posicionou-se como anticomunista e partidária à intervenção do
exército no governo.2 Foi inteiramente favorável ao Golpe Militar de 1964, chamado de
“Revolução”. Nas páginas da Revista, era manifestada a indignação diante da
“desordem pública”, fato este que os editores simplesmente abominavam. Registrava-
se como editora que contribuía para o engrandecimento do Estado e o bem-estar social
da sua gente, “marchando paralela ao Governo” (EBSA, 1972, pp. 1-8).3
Em 1971, quando a imprensa sofria forte censura, a editora orgulhava-se de não
ter tido seus escritos bloqueados. Isso é um indicativo de que suas ideias não entravam
em choque com a ordem instituída ao ponto de passarem por uma censura. Mais do que
isso, seus editores enalteciam o senso de organização dos militares e a rápida condução
do país ao desenvolvimento (EBSA, 1971, pp. 1-6). A Revista se proclamava
“imparcial”. Em outras palavras, os responsáveis assumiam a posição de quem se
pretende influenciar os outros: a de neutralidade e fidelidade aos “fatos”.
Para reforçar essas posições articulavam-se conteúdos que circulavam na
imprensa periódica diária que pensava da mesma forma, se pronunciando através de
editoriais, reportagens, articulação intelectual feita por Gustavo Corção; Daniel Rops;
Nelson Rodrigues e diversos outros autores, às vezes autores didáticos; às vezes
membros de facções da Igreja Católica; outras tantas, por sujeitos de entidades civis e
militares.
Ao longo de suas páginas, a Revista divulgou a existência de uma “guerra
psicológica” no país, de forma que o vocabulário de guerra perpassou por todo o
trabalho e políticas educacionais criadas a partir de um ideário militar passaram a fazer
parte das discussões dos artigos.
2 O estudo introdutório sobre a imprensa (revista e jornais) foi feito a partir do roteiro que está implícito
no texto de Anne-Marie Chartier e Jean Hébrard (1996), quando estes analisaram a revista L´Educacion
Nationale. Os autores pautaram-se pelo posicionamento do “lugar da fala” dos responsáveis pelo
periódico: a apresentação de suas posições políticas e educacionais; suas crenças; parceiros; seus suportes
de produção, transmissão de ideias; como entra na arena dos discursos o tema de análise etc.. 3 A Revista EBSA era uma publicação mensal da Editora do Brasil. Foi lançada em 1947, quatro anos
após a fundação da própria Editora, e desativada nos anos 1990. Tratava-se de um periódico educacional
que foi intitulado “documentário de ensino”. Em novembro de 1947, os editores pensaram a publicação
como uma espécie de caderno de informações educacionais para os profissionais de ensino de todos os
segmentos, mas, especialmente, voltada para o Ensino Médio brasileiro e era tida como porta-voz dos
editores (EBSA 1957, p.1-4).
Quanto à distribuição de informações, EBSA funcionou como uma vitrine que
espelhava um “todo” construído por seus próprios editores a partir da convergência de
ideias que vinham de outros agentes. Isto é, o periódico educacional distribuía a ideia de
propagandistas, defensores de políticas golpistas e governistas, de acordo com a
ocasião, e ativistas de várias instituições: jornais, entidades civis etc., que variavam
entre publicar ideias ora profundamente conservadoras, ora reacionárias, e muitas vezes
uma combinação complexa em que essas duas atitudes estavam imbricadas.4
Com relação à estrutura política mais complexa, observamos que a Editora do
Brasil fez o esforço de ganhar à frente nos negócios do Estado no que concernia à
produção de livros didáticos e de leitura, mas que ela não estava sozinha nessa
empreitada. Neste sentido, ao tratar de políticas públicas voltadas para a produção de
livros, os membros da Editora demonstraram que, diante da possibilidade de tomar
proveito para a ampliação do mercado de livros, sempre havia a possibilidade de
alianças entre concorrentes mediante a probabilidade de interferência na política de
livros.
Pronunciavam-se como uma “elite do bem”, gente que não tinha intenções
outras senão aquelas que pensavam o bem do Brasil (BRAGHINI, 2015, p. 72)
Duas faces da juventude nos anos 1960: “subversivos” e “democráticos”
A primeira grande perturbação com os estudantes ditos “subversivos” era o fato
de eles se posicionarem contra o movimento em torno do “desenvolvimento do Brasil”.
Estudantes subversivos desaceleravam a marcha para o crescimento econômico no país.
As considerações publicadas também se voltaram aos aspectos educacionais, o que deu
luz aos seus significados implícitos a partir da atuação dos sujeitos na escola. O que
4 Foi possível dar conta da abrangência geográfica alcançada por EBSA por meio da confecção de uma
lista durante a pesquisa. A listagem contém o nome dos colégios cujas cartas foram indicadas na seção
correspondência de EBSA. Ao todo, foram contabilizados 318 colégios em todas as regiões do país. Essa
pequena amostra foi elaborada a partir da enumeração das escolas e as suas respectivas localidades
citadas em EBSA entre os números 11 (1947) e 15 (1948). Podem-se perceber cidades de todas as regiões
do país: Três Corações (MG), Blumenau (SC), São Leopoldo (RS), Sobral (CE), Porto Alegre (RS),
Recife (PE), São João Del Rey (MG), Manaus (AM).
sustentava a ideia de subversão, em primeiro lugar, eram ações tidas como
inconvenientes e que desestabilizavam a rotina das pessoas.
Os Revista atacavam os estudantes de esquerda que se mobilizaram em favor de
melhores condições de ensino. Posteriormente, o ataque foi voltado para os estudantes
que se organizaram em resistência ao golpe militar de 1964. Simultaneamente à
contrariedade expressada aos movimentos estudantis, também foram apresentadas
alternativas para o comportamento e a atuação de jovens. Mais tarde, os jovens
observados a partir de 1968 e, mais precisamente, nos anos 1970, foram mudando de
aspecto. Em duas décadas, foi possível apreender que as considerações feitas sobre a
juventude foram se modificando e que, portanto, a condição de juventude não se
encerrava nas manifestações estudantis de rua.
Os ataques ao movimento estudantil tiveram três grandes focos. Primeiro, tinha-
se em mente o tempo de preparação de um sujeito político. Isto é, um sujeito
verdadeiramente político necessitava de um tempo de maturação, não nascia de forma
espontânea em movimentos de rua. Depois, criticavam-se os estudantes que
desrespeitavam as posições de domínio dos mais velhos dentro das instituições de
ensino, fazendo púlpito político, piquetes, em horário de aulas. Por fim, atacavam-se os
jovens militantes que não percebiam o quão precoce era a sua ação política, já que, um
político verdadeiro fazia carreira na escola e, preferivelmente, tinha um diploma do
ensino superior.
Mercenários; gatuno, patife; politiqueiros, demagogos; sem escrúpulos; torpes;
desonestos, assafadados; maliciosos, mascarados, corruptos, mercenários; sub-reptícios,
"lobos em pele de cordeiros"; tristes, feios, foram adjetivos, xingamentos públicos,
usados para apontar o mesmo tipo de estudantes em diversos jornais brasileiros do
período de modo a qualificá-los negativamente diante da opinião pública e justificar o
avanço da força repressiva sobre eles (BRAGHINI, 2015, p. 118, 127, 130).
A principal agressão para com os estudantes mobilizados ficou concentrada em
uma suposta precocidade dos jovens em participar da política sem ter um devido
preparo, feito à época, convencionalmente, por vias escolarizadas. A ideia de boa
preparação política estava vinculada ao tempo de permanência do estudante nos bancos
escolares e, mais ainda, ao tipo de ensino que ele recebia em sua trajetória, que deveria
estar centrado, preferencialmente, no ensino secundário, depois, no ensino universitário.
Fazer política era uma prática social de sujeitos adultos que tinham passado pelo
processo de escolarização seriada, de preferência completa, e não estava aberta a todos.
No entanto, parte dos estudantes nos anos 1960 opinava sobre os critérios que
demarcavam a posição dos sujeitos de autoridade e transformavam tribunas
improvisadas em postos de comando político, o que aguçou a raiva dos discursos da
imprensa.
O que os editores e parte da imprensa diária mais temiam era o potencial
estudantil para a agremiação em torno do ato político principalmente por meio das
incursões intra e extra-escolares. Havia um descontentamento sobre a obtenção de
conhecimentos teóricos, pouco aprofundados, fora do ambiente escolar. O que os artigos
julgavam como “precocidade” parecia advertir que, para alguns jovens, o espaço
acadêmico não seria usado para formar os condutores políticos por meio do sistema
“clássico”. Lastimosamente, os editores diziam: “homens de amanhã” estavam
frustrando-se com “os homens de hoje” (EBSA, 1964, p. 2).
Segundo a proposta juvenil, era possível se destacar como sujeito político sem a
necessidade de permanência nos bancos acadêmicos nem da ajuda dos mais velhos. Isso
significa dizer que tais estudantes, brincavam com a ideia de que as “personalidades
condutoras” seriam apenas aquelas que empunhavam uma titulação de nível superior.
Tratava-se de burlar uma condição histórica, escolarizada, de formação de uma elite
condutora que levasse a massa governada por “imitação”. As “individualidades
condutoras” eram a apresentação de homens maiores que, formados pela escolarização
serial, processual, de elite e patriótica davam poder a esses sujeitos para assumirem as
maiores responsabilidades na condução do país (DECRETO-LEI n. 4.244 - de 9 de abril
de 1942). Portanto, a contrariedade dos jovens e a sua suposta precocidade política
parecia apontar um distúrbio no sistema escolar do tipo clássico, que tinha exato
objetivo de produzir a elite política brasileira. O potencial estudantil para agremiação
feita a partir de incursões extraescolares era odiado, porque era vistos como pouco
aprofundados.
Os estudantes renegavam a juventude como sendo um período de espera para a
vida adulta. A vontade de ser guerrilheiro e lutar pela revolução socialista no Brasil
apareciam como alternativas de trajetória de vida e, nos artigos, eram configurações
esdrúxulas ou atos desviantes de vida. Dentro dos artigos, os estudantes eram agentes de
dois “desvios”: um que era relacionado ao trânsito e outro à trajetória de vida. Os
estudantes demonstravam que havia um descontentamento na sequência de vida que era
proposta para eles. Entre o momento de heteronomia do mundo infantil e de autonomia
do mundo adulto, os estudantes já estavam agindo como adultos. Os estudantes, dentro
da estrutura social oferecida e vivenciando a sua própria experiência de tempo,
demonstravam a coordenação de suas escolhas e comportamentos “como adultos” e isso
não foi bem aceito.
Em contrapartida, dentro do plano de saneamento dessa juventude rebelde foi
apresentado outro grupo que se mostrava pouco à vontade com o governo de João
Goulart; ficava incomodado com as manifestações estudantis de rua; eram
compreendidos como uma boa juventude que se comprometia com o trabalho e com os
estudos. Eles também atuavam politicamente, mas não seguiam os mesmos caminhos
dos seus semelhantes “revoltados”. Ficaram conhecidos como “estudantes
democráticos” na imprensa diária de então.5
A “vanguarda brasileira” ou “estudantes democráticos”: Contraface do
movimento estudantil vilipendiado
Diferentes ondas de antagonismo juvenil foram observadas em vinte anos de
análise, com a participação de atores variados, demonstrando que o caráter das
5 O termo “estudantes democráticos” já tinha sido usado pela imprensa paulista em outras ocasiões. Para
designar os estudantes que se manifestavam a favor da candidatura de João Pessoa à Presidência da
República. (OESP, 07/09/1929, p. 7) Depois, para os jovens que marcharam contra o mercado negro e a
carestia fazendo coro com a União Democrática Nacional (UDN). (OESP, 18/09/1946, p. 3) O termo
também foi utilizado em contraposição aos estudantes “comunistas” na União Nacional dos Estudantes
(UNE). (OESP, 10/08/1954, p. 15) Isso quer dizer que essa expressão circulava pela imprensa há tempos,
sendo usada de acordo com as conveniências políticas. Desde a década de 1950, foi usado como sujeitos
contrários às mobilizações comunistas (BRAGHINI e CAMESKI, 2015, p. 959).
mobilizações não era estanque, unívoco, não se encerrava no manifesto estudantil e,
muito menos exclusivamente, no ideário político. Foi característico da juventude, na
construção da sua experiência, apresentar outras e novas dimensões humanas de vida,
que podia, ou não, colidir com forma de organização social proposta pela geração
precedente.
Foi observado que os artigos da revista atacavam os estudantes de esquerda que
se mobilizaram em favor de melhores condições de ensino. Posteriormente, o ataque foi
voltado para os estudantes que se organizaram em resistência ao golpe militar de 1964.
Simultaneamente à contrariedade expressada aos movimentos estudantis, também foram
apresentadas “alternativas” para o comportamento e a atuação de jovens. Essas
alternativas celebravam o dinamismo juvenil, mas, julgavam que o jovem era uma
categoria etária dependente das gerações mais velhas, e que diante dessa dependência,
havia a necessidade de autorização dos adultos para que se desse cabo a determinados
atos.
Mais tarde, os jovens observados a partir de 1968 e, mais precisamente, nos anos
1970, foram mudando de aspecto. Julgava-se que o grupo estudantil, do período de
1968, era mais acionado e mais propenso a atos que, ainda que corajosos, eram tidos
como ilegítimos. Percebeu-se que o grupo estudantil advindo da escola após 1968 era
mais arredios e tinha convicções advindas de teorias marxistas e outras consideradas
fora do cânone aceitável, tal como Marcuse, Freud, Mao Tsé-Tung etc., fossem elas
lidas de forma aprofundadas ou não. Já na década de 1970, as discussões circulavam
em torno dos jovens despreocupados e sem motivação para o estudo, dentro das escolas,
jovens de classe média que passaram a fumar maconha e o desdobramento do
movimento estudantil de 1977. Da parte dos registros ficou estampada uma raiva porque
os estudantes repudiavam uma herança educacional simbólica e material vinda dos mais
velhos.
E a raiva dos autores passou a ser condicionada pelas seguintes características
juvenis: a) os jovens instituíram uma cultura autofágica em que eram tanto
estimuladores de tendências da moda, da literatura, temas da imprensa; quanto
consumidores dos produtos produzidos por essas mesmas tendências; b) os meios de
comunicação passaram a privilegiar os jovens: eles eram um dos seus temas
preferenciais exatamente porque cometiam atos que repercutiam nos veículos de
comunicação. Os jovens pareciam ter identificado uma forma de se autoproduzirem
usando as técnicas dadas em seu tempo. Por isso, esses jovens eram atacados por tinham
os seus “sentidos comercializados” (BRAGHINI, 2015, p. 260).
Ao se depararem com os estudantes rebeldes, os artigos passaram a julgá-los
seres com ideias utópicas que necessitavam de uma depuração. Foi constatado que os
jovens se inspiravam em outros jovens; que eles também buscavam inspiração para os
seus atos em livros; por meio do contato com professores; entre os colegas; e, por fim,
também nas páginas dos magazines e jornais. Nas documentações, paulatinamente, se
apresentou um plano que cercava de vigilância os estudantes e os “veículos” de onde
surgiam as suas inspirações.
O jovem, visto como um receptáculo de experiências dadas na escola mediante
um processo evolutivo teria os seus hábitos acelerados, voltados para o benefício do
Brasil. Essa foi uma das justificativas para a necessidade da disciplina de EMC nas
escolas: imprimir uma rotina cívica. O civismo proposto aos jovens era a condensação
da ideia de “espírito da nação”, ou seja, uma concepção grandiosa em que o Estado e a
Família estavam unidos por laços espirituais. Espírito dado ao jovem como uma nova
herança da qual a escola seria a guardiã. A partir dos atos estudantis de “esquerda” foi
proposto uma readequação dos potenciais estudantis, transformados no “equivalente
puro” daquilo que essa categoria já fazia como movimento político e estudantil. Todas
as boas qualidades observadas nos estudantes foram lançadas para uma juventude
prestativa e boa; idealizada e globalizante.
Dos jovens em geral e dos estudantes em particular foram retirados os valores e
características consideradas convenientes e parte da essência espiritual de todos os
jovens: a força transformadora, a bondade inerente, a energia etc. Da realidade brasileira
foram retiradas as características mais saudáveis. Os jovens eram “democráticos”,
“espontâneos”, “solidários” e “cooperativos”. Portanto, tratava de repassar a todos os
jovens do país, uma “maioria silenciosa”, de que eles, verdadeiros herdeiros do presente
e do futuro, aplacariam a “sanha” dos jovens, estudantes maus, minoria “teleguiada”.
O jovem, visto como um receptáculo de experiências dadas na escola mediante
um processo evolutivo teria os seus hábitos acelerados, voltados para o benefício do
Brasil.
Ficou evidente nos artigos que, os defensores da inclusão da disciplina no
currículo, ao fazer uso das “tradições”, tão caras à Editora, demonstraram que junto a
ela havia toda uma gama nostálgica de interesses e de raiva sumária em que estavam em
jogo, a saudade da educação segregadora em forma de “pirâmide selecionadora”; a
melancolia pela falta das cerimônias cívicas escolares do passado; a gratificação
psicológica de preencher as próximas gerações com uma história conveniente, de forma
que elas não sentissem o “hiato” do civismo, apresentado na discussão como um
sentimento correspondente ao ajuizamento da idade madura.
Ao cooptar uma parcela da juventude para trabalhos práticos, com vistas ao
serviço social assistencialista, foi possível criar uma retórica cuja carga ideológica, ao
circular pela opinião pública, buscava desmoralizar o movimento estudantil
politicamente engajado nas universidades e escolas. O plano de desmobilização de um
tipo de juventude passou pelo enaltecimento da atuação de outra parcela juvenil, que
muitas vezes, respondeu positivamente.6 Portanto, o projeto de juventude purificada
apresentado não tinha somente o interesse em desmobilizar os estudantes engajados,
mas, antes, mobilizar favoravelmente a maioria silenciosa e englobar todos os jovens na
condição de seres bons e trabalhadores.
O objetivo para a mobilização da juventude universitária em torno de ações
comunitárias pragmáticas estava explícito nos objetivos do Projeto Rondon, por
6 Respondeu positivamente porque havia atuação estudantil de direita no Brasil. Há poucas pesquisas
sobre a atuação desses grupos na história política do movimento estudantil. Em primeiro lugar há uma
preferência da historiografia em apontar a atuação dos estudantes que resistiram à ação do Estado.
Depois, parte dessa lacuna pode ser explicada pela forma de atuação dos “estudantes democráticos” à
época, que funcionava, um tanto silencioso, junto às entidades da sociedade civil de caráter conservador,
como a Liga das Senhoras Católicas, por exemplo. Eram grupos estudantis de direita registrados à época:
Grupo de Ação Patriótica (GAP), patrocinado pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES); a
Vanguarda Universitária Católica; Associação dos Estudantes Democratas; Movimento de
Arregimentação dos Estudantes Democráticos (MAED); Frente Estudantil de São Paulo; Movimento
Estudantil Democrático; Movimento Estudantil de São Paulo; Frente da Juventude Democrática;
Associação de Estudantes Democratas; Associação Cristã de Moços (São Paulo e Rio de Janeiro); Frente
da Juventude Democrática (Rio de Janeiro) (BRAGHINI e CAMESKI, 2015, pp. 955-956).
exemplo. O fato era que tais objetivos tinham um ideal de juventude engajada, pensando
que os seus atos pudessem interferir nos “problemas nacionais” por vias mais diretas. O
Projeto Rondon salientava que a "realidade brasileira" era mais abrangente do que
aquilo que era pregado nos discursos políticos dos estudantes rebeldes. Mas tornou-se
necessário salientar que a condição do trabalho extra-escolar direcionado pelo governo
não tinha o objetivo exclusivo de apaziguar ou purificar o movimento estudantil. Essas
atividades de ação comunitária faziam parte de um planejamento maior no âmbito
governamental e tinha relação direta com as atividades empreendidas pelo Exército,
agente dinamizador das ideias objetivadas na Escola Superior de Guerra (ESG).
Serviços de apoio às comunidades carentes proliferavam nessa época e estavam
previstos em planejamentos propostos pela UNESCO, como forma de intervenção
social para a aceleração do desenvolvimento.
Esse pensamento, publicado pelo clipping, diante da sua relação com as diversas
manifestações juvenis de seu tempo, julgavam que a juventude brasileira era numerosa e
bastante dinâmica. Por conta disso, bastava apartar as boas atitudes juvenis em
detrimento daqueles que eram qualificados como indolentes, preguiçosos e “filhos de
papai”. Julgavam que, sendo para o bem, valia a pena apresentar um plano para a
juventude que reforçasse a criminalização do movimento estudantil.
Pensava-se um tipo de juventude forte e atuante, que podia voltar os seus
esforços, seu potencial, para causas que valessem à pena: para o bem do país, para a
possibilidade de um futuro individual promissor, para que fosse refreada a
“precocidade” daqueles que se julgavam adultos antes de sê-lo.
Juventude e pensamento conservador: 1968-1980
Os jovens apontados na Revista da Editora do Brasil foram observados, em
primeiro lugar, a partir da sua condição de estudantes. Entre 1961 a 1972, a posição dos
jovens no sistema escolar tornou-se o principal eixo de discussão dos artigos, sendo que
estes privilegiavam o ataque ao movimento estudantil de “esquerda” acontecido em
algumas das principais capitais do país.
Os ataques ao movimento estudantil, estudantes “maus”, tiveram três grandes
focos. O primeiro tipo de agressão foi concentrado em uma suposta “precocidade” dos
estudantes em participarem da política sem um devido preparo, como o já apontado
acima.
Por um lado, os estudantes denunciaram um entrave educacional no período:
havia um acúmulo de jovens que partiam do ensino médio, lotavam as escolas de ensino
secundário e faziam pressão por vagas às portas da Universidade. Esses três eventos
somados, associados às más condições das escolas superiores foram apontados como
catalisadores das revoltas estudantis. A “questão dos excedentes" parece ter sido apenas
uma faceta do problema, já que a falta de vagas diante daqueles que queriam seguir pela
carreira universitária apontou para um desespero dos responsáveis por EBSA em
apontar soluções ou alguns subterfúgios poderiam resolver o problema.7
Entre 1968 a 1980, foram percebidas pela sequência dos artigos da Revista duas
discussões diferentes envolvendo os jovens. A primeira discussão foi a percepção de
que havia no mundo não só um movimento estudantil organizado, mas um movimento
de juventude mundial.
Essa percepção vai ao encontro do que foi discutido por Foracchi (1972) quando
a pesquisadora fez uma distinção entre o “movimento estudantil” e o “movimento de
juventude”, que parecia se processar com “nitidez” (FORACCHI, 1972, p. 13). De
acordo com a autora, o primeiro, radicalizava “a sua vinculação à universidade,
pretendendo nela ativar a criação de uma contracultura e tentando explorar as
perspectivas do jogo político institucionalizado”. Já o segundo, se apoiava “na
7 Excedentes eram os candidatos que obtinham a média nos vestibulares, mas não conseguiam se
matricular nas escolas de nível superior, pois o número de aprovados extrapolava ao número de vagas
disponíveis. Não raro, nos anos 1960, as manifestações juvenis tocavam nesse assunto e parte das
reivindicações estudantis daquele período estava diretamente relacionada a esse “ponto de
estrangulamento” na trajetória escolar dos estudantes brasileiros: havia jovens buscando o ensino
superior, eles atingiam as médias pedidas nos vestibulares e, ao final, por conta da insuficiência de postos
universitários, não assumiam a vaga requerida. Para saber mais sobre a história dos excedentes, ver:
BRAGHINI, Katya M. Z. (2014).
improvisação e na espontaneidade, pretendendo implantar um estilo de vida”
(FORACCHI, 1972, pp. 13-14). Segundo a pesquisadora, embora fossem movimentos
de contestação e os seus membros às vezes agissem de formas similares, foram eventos
sociais bastante diferentes em seus propósitos.8
Foi possível apreender que, pelos artigos, que os dois movimentos foram
tratados de formas diferenciadas. Os artigos evidenciavam as más atitudes dos
estudantes de uma forma diversa das más atitudes dos hippies, por exemplo. No entanto,
pelas acepções aos dois movimentos eram semelhantes pela condição de anomalia. Para
os artigos, os jovens passaram a ser “impactantes”, pois além das manifestações
contestatórias, eles estavam criando efeitos estéticos comuns fosse dentro ou fora da
escola.
No início dos anos 1970, surgiram outros fenômenos sociais e educacionais nos
artigos. Tais acontecimentos, classificados de modo embrionário, acusavam o
aparecimento de novos “perigos” que não necessariamente tinham relação com a
política, mas inventariavam os jovens a partir de sua condição de alunos, como sujeitos
que recebiam um aprendizado escolar. Portanto, os artigos captaram os estudantes
dentro da escola, “posta em seu devido caminho”, e não tratava mais do estudante
agitado nas ruas. É importante apontar que essa percepção dada pelas fontes coincide
com o período mais violento de perseguição aos movimentos sociais após a implantação
do Ato Institucional nº 5 (AI-5) em 1968.
Uma parcela dos estudantes estava usando tóxicos. Outra parte deles perdia a
capacidade de falar e de se comunicar, e quando o faziam, pronunciavam-se por uma
“língua bunda” repleta de gírias, palavreado “do povo” etc. Da mesma forma, ao
adquirir drogas nas “portas das escolas”, os jovens estariam entrando em contato com
“marginais”, novos algozes da juventude. Por fim, tratou a Revista, por meio da
idealização de militares, estimular o tratamento psicológico preventivo às crianças de
8 Para a autora, tanto o movimento estudantil, quanto o movimento de juventude eram contestatórios e
como tal foram lançados para o palco da “contracultura”, ou seja, uma “representação intelectual
incipiente, sem estrutura definida, sem ideologia clara, a não ser a contida na afirmação de antiideologia”
(FORACCHI, 1972, p. 13).
forma que fosse “evitado”, mais tarde, um comportamento juvenil passível de
tratamento psicológico na prisão.
O hábito de usar drogas, a mudança na forma de falar e assunção da Psicologia
como forma de tratamento, também foram apontadas por Martins (2004) como as três
formas reativas da sociedade diante da ditadura militar. De acordo com o autor, o
“culto à droga”, a “desarticulação do discurso”, e o modismo psicanalítico (MARTINS,
2004, p. 40, 59, 74) foram sintomas de uma “síndrome alienante” pela qual passavam os
sujeitos, alguns mais, outros menos, diante do poder do AI-5. Para o autor, por causa da
ditadura, alguns grupos “localizados” passaram a usufruir do sistema de gratificação
imediata diante das seguintes privações: falta de direitos e falta do conhecimento da
lógica dessa falta (MARTINS, 2004, p. 30).
Para Risério (2005), esses mesmos acontecimentos não necessariamente
surgiram “por causa” da ditadura, mas apesar dela. Segundo o autor, teria havido um
“encontro” entre os jovens “economicamente privilegiados” das grandes cidades do país
e os meios “marginais”, que foi manifestado por meio do consumo de maconha e de
uma “comunicação direta e simétrica” pelo uso do “léxico candomblezeiro”, em forma
de gíria, vindo dos aglomerados periféricos (RISÉRIO, 2005, p. 28).
De acordo com o autor, nos anos 1970, os jovens identificados no Brasil como
“desbundados” estiveram mais “próximos das clínicas psiquiátricas do que da câmara
de tortura” e que os “desvios de norma” tinham a ver com uma posição “alternativa”,
“marginal”, “fora do sistema”, “puro”. Segundo o pesquisador havia uma “novíssima
fantasia utópica da juventude mundial” da qual não resistiu o jovem brasileiro abastado
(RISÉRIO, 2005, p. 27).
No caso da modificação na forma de falar, partes das queixas delimitavam a
responsabilidade por uma possível dissolução da língua a uma também possível má
comunicação empreendida dentro da sala de aula. Essa má comunicação aconteceria na
ordem da transmissão dos conhecimentos - professores falavam ou ensinavam mal - ou
na ordem de uma nova dinâmica na forma de falar, da qual a escola não escapou, já que,
como evento linguístico, foi relacionado aos discursos que circulavam na comunicação
em massa.
Em 1979, no final da década, houve um empenho da Revista em fazer uma
associação mais direta dos jovens com a “vida alternativa” por meio do comentário do
intelectual norte-americano Clifton Fadiman. De acordo com o autor, os jovens nos
EUA ainda "obedeciam às autoridades de ensino", mas sem que houvesse o
comprometimento com eles (EBSA, 1979, p. 35).9 Isso porque, segundo o autor, os
jovens se envolviam com a "vida alternativa", uma vida que visava a "gratificação e o
consumo instantâneos", "não era hobby", "não era divertimento", era um "estilo". Esse
dado, segundo o autor, causava uma "transformação profunda na psique nacional". Era
uma alternativa "profundamente oposta à educação tradicional" e tinham uma
mensagem que contradizia a "mensagem da sala de aula" (EBSA, 1979, p. 34).
Por fim, foi possível apreender que no novo movimento estudantil surgido em
1977, os artigos da Revista resvalavam para a condição “alternativa” dos manifestos,
como a única forma possível e correta de movimento estudantil. Afinal, a mobilização
política de massa, intra e extra-escolar, além de proibida, foi vista como um ato
nostálgico de jovens saudosos por um tempo que não voltava mais. Simultaneamente,
vê-se uma modificação de comportamento do próprio movimento estudantil
universitário nos anos 1970.10
Não se tratava mais de uma mobilização em massa feita a partir de grandes
movimentos de rua ou atos unificados da UNE, entidade que tinha sido dissolvida em
1968. Tratava-se de um movimento ativo que agia por células, cujas manifestações se
concentravam em atos, muitas vezes com caráter cultura e artístico de contestação,
acontecidos nos seios das instituições. Portanto, não se tratava exatamente de uma
“retração” do movimento estudantil, mas da ação de uma nova coorte, atuando em
diferentes tipos de manifesto, feito dentro das possibilidades possíveis de envolvimento,
mediante o fechamento do regime, da ação da censura, da caça e desaparecimento dos
pares.
9 Transcrito do Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 29/06/1979.
Os estudantes só retornam à condição de “cidadão” em 1979, quando se vê a
transposição da ideia de perigo social de suas mãos para os operários concentrados nas
grandes greves trabalhistas na região industrial do ABC em São Paulo.
O planejamento da crise ou um mapeamento de regras?
Para os registros publicados na Revista, os estudantes “maus” eram uma
“disfunção generalizada” e foi tornado um “inimigo interno”. Foi instituída a
“anormalidade” do estudante como um fenômeno estético em que eram destacados os
aspectos negativos. A estratégia discursiva da Revista se voltou para convencer os
leitores que os estudantes eram “monstruosos”, por meio da difusão de “senso comum”
e evidenciando os adjetivos negativos.
Tendo sido criada uma “anomia”, deve-se pensar que, como estratégia retórica
ela mostrou as seguintes demarcações: a) apresentou um campo de lutas ético-estético-
político, pois o “desvio” foi criado a partir de relações sociais; b) foi construído um
significado negativo que deveria ser compartilhado com outros; c) um desvio, no caso
da Revista, desencadeou uma resposta a ele. Portanto, ficou evidenciado tanto a reação
ao comportamento dos estudantes, quanto o estabelecimento de regras para que o
problema fosse solucionado. Em outras palavras, a “anormalidade” foi tornada pública
de forma que a imposição de regras se transformou em uma necessidade.
Os artigos passaram a julgar que os atos estudantis considerados inapropriados
eram uma perda de tempo e de dinheiro. Portanto, jogaram luz para a condição prática
da vida do estudante: transitória, voltada para a rotina de estudo, de preparação para a
vida, preferencialmente para o trabalho.
De acordo com o editorial da Revista a juventude deveria ser enaltecida, se
desprovida de todos os malefícios. Os jovens eram ao mesmo tempo um potencial
guardado e um capital: capital em que após um investimento, devesse haver o “retorno”
por meio de atividades práticas, livres da “subversão” e que ao mesmo tempo
glorificasse o passado brasileiro, preenchido por grandes líderes e com uma história
calma. (BRAGHINI, 2015, p. 264)
A escola, no período compreendido por este trabalho, pensando na formação dos
jovens, foi tornada ambiente que fomentava crimes políticos; ativava a vontade dos
estudantes em envolvimentos extra-escolares; foi lugar de prevenção, primeiro contra os
tais crimes políticos, depois contra as drogas; local de vigilância ostensiva, local de
salvaguarda dos jovens, a partir da ampliação dos horizontes da escola para outras
instituições (clubes, associações esportivas etc.), e por fim, local de aprendizagem, mas
de passagem acelerada.
De forma simples, podemos dizer que o periódico era uma disseminadora de
ideias que selaram a sua opção teórica no caso do resguardo dos jovens “bons”, por
exemplo. Neste caso, fez circular dois pensamentos fundamentais para as políticas
públicas voltadas para a juventude: o sentido de “previsão”, caro ao ideário militar
elaborado na Escola Superior de Guerra por meio da Doutrina de Segurança Nacional; e
o princípio de solidariedade, formulado pela Ação Católica a partir da Doutrina Social
da Igreja.
A Revista demonstrou a sua teoria. Dirigiu as vistas dos leitores para a crise e
para o desvio. Ao mesmo tempo, foi organizado por meio de fragmentos dispersos e
encadeados um planejamento que nortearia todos aqueles que eram responsáveis pela
educação a partir de uma figura ideal de jovem, que seria um dos pilares de sustentação
da Pátria, a qual, naquele momento, estava em construção.
Podemos dizer que a Editora do Brasil, todo o seu aparato de publicação e os
parceiros de ocasião, podem ser localizados em uma posição intermediária se
considerarmos uma escala de poder entre um Estado autoritário-militar e a sociedade.
Ainda que não tivessem o poder de determinar as leis, estavam nos limites de seus
interesses e possibilidades, mobilizados pela “causa”. E com relação à sua área de
trabalho, puderam estabelecer uma rede de comunicação em que as suas ideias foram
distribuídas em larga escala e de forma simultânea, dois pontos importantes para quem
pretendia ver a sua vontade prevalecer.
Aos leitores, com quem, como vimos, parece ter sido selada uma dependência
recíproca, a Editora enviava artigos que seguiam as “tendências” de formação de
opinião. Dentro dos resultados do trabalho, foi percebido que nos anos 1960, os artigos
sobre os jovens se concentravam em sua posição de estudantes dentro das
universidades. Isso pode ser um vestígio de que, naquela década, o interesse de alunos
de ensino médio estava concentrado em dar continuidade à carreira acadêmica. Já nos
anos 1970, salvo o período em que o movimento estudantil foi reativado nas ruas, os
artigos ficaram concentrados na escola média, talvez, por hipótese, dando ênfase às
determinações expedidas a partir da Lei nº 5692/1971.
No entanto, pensando especificamente no mercado de livros, percebeu-se que a
Editora do Brasil e os seus parceiros comerciais, ao difundir a anormalidade dos jovens,
abriram a possibilidade de estabelecer uma frente comercial em que eles se
posicionavam como sujeitos probos, já que, justificavam a produção e venda de livros a
partir da ideia que era necessário pensar e agir em benefício dos jovens. Essa é uma
demarcação a respeito do pensamento conservador nessa circunstância: ele se apegou à
bondade inerente, à harmonia do belo, buscou ser encantador distribuindo os bons
sentimentos, auxiliando na educação dos bons jovens. O conservadorismo, neste caso,
apelou ao bem.
Podemos indicar, entretanto, imposturas nessa prática de fazer “o bem”. A
primeira é a de que a rebeldia juvenil, ao final vendeu livros; depois que, fazendo o
bem, neste caso, foi trazida à tona os subterfúgios usados para que os outros interesses,
inclusive os financeiros, não ficassem aparentes. Por fim, para consolidar “o bem” os
artigos fizeram usos e desusos da História, de modo que, controlando-a, ela pudesse
lhes favorecer.
Por fim, é válido pensar, à custa de que foi mantida essa ética de uma “elite de
bem”? Pois é necessário avaliar os interesses de quem prega “fazer o bem”. Pois ao
final, todo esse empreendimento colaborou para transformar em fraco aquele jovem,
estudante ou não, tornado nos discursos um infrator das leis. Ao infrator, “caso de
polícia”, restou ser vigiado, detido, preso, exilado, desaparecido e morto.
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