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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO O PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM DO FRANCÊS LÍNGUA ESTRANGEIRA AO PÚBLICO SURDO BILÍNGUE BRASILEIRO A PARTIR DOS PRINCÍPIOS NORTEADORES DO LETRAMENTO JULIANA RODRIGUES DE CASTRO RIO DE JANEIRO 2016

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

O PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM DO FRANCÊS LÍNGUA

ESTRANGEIRA AO PÚBLICO SURDO BILÍNGUE BRASILEIRO A PARTIR

DOS PRINCÍPIOS NORTEADORES DO LETRAMENTO

JULIANA RODRIGUES DE CASTRO

RIO DE JANEIRO

2016

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JULIANA RODRIGUES DE CASTRO

O PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM DO FRANCÊS LÍNGUA

ESTRANGEIRA AO PÚBLICO SURDO BILÍNGUE BRASILEIRO A PARTIR

DOS PRINCÍPIOS NORTEADORES DO LETRAMENTO

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Letras Neolatinas, da Faculdade de

Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro,

como parte dos requisitos necessários para a obtenção

do título de Doutor em Letras Neolatinas (Estudos

Linguísticos Neolatinos – Opção Língua Francesa)

Orientadora: Profª. Drª. Angela Maria da Silva Corrêa.

RIO DE JANEIRO

2016

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Aos queridos jovens surdos: Anatólio,

Andressa, Camila, Carlos Vinícius, Caroline,

Daniel, Diego, Gabriela, Jéssica, Humberto,

Lohanny, Luciana, Rafaela, Ricardo, Tuane,

Vanessa, Vitor Hugo, Walter, Weslei, por

terem aberto meus olhos para além dos

horizontes visuais da vida.

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AGRADECIMENTOS

No desenvolvimento dessa pesquisa, pude contar com importantes contribuições

de pessoas e de instituições sem as quais sua realização não teria sido possível. Dentre

elas, gostaria de agradecer, de forma especial

A minha orientadora Profª Drª Angela Maria da Silva Corrêa, por ter aceitado me

orientar e ter depositado sua confiança em meu trabalho. Por sua disponibilidade, seu

incentivo e suas colocações esclarecedoras serei sempre grata.

Ao Colégio Pedro II, minha segunda casa, por ter permitido minha partida à Paris

para a realização de parte da investigação.

A todos os educandos surdos a quem tive o privilégio de lecionar, por seu exemplo

de coragem e de superação. Indubitavelmente, aprendi muito mais do que transmiti

através dessa experiência.

À Profª Drª Ivani Fusellier-Souza, pelas aulas dispensadas na Universidade Paris

VIII e pelas orientações, sempre elucidativas.

Ao Institut National des Jeunes Sourds de Paris, em especial, aos professores

Jerôme Melchior e Pascal Marie-Rose, pela acolhida durante a realização do estágio junto

aos educandos surdos do instituto.

A meus pais, José Cláudio Tavares de Castro e Irene Rodrigues de Castro, e a

meus irmãos, Dila Rodrigues de Castro e Daniel Rodrigues de Castro, pelo apoio, no mais

amplo sentido que essa palavra possa agregar, ao longo de todos esses anos.

A meu avô, José Farias de Castro (in memoriam), que não pôde ver a conclusão

desse trabalho, mas que muito me incentivou e ensinou em vida.

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RESUMO

Estudo sobre o processo de ensino-aprendizagem do Francês Língua Estrangeira ao

público surdo bilíngue brasileiro, praticante da LIBRAS como primeira língua, e do

português como segunda língua, partindo do desenvolvimento da competência de leitura

segundo os princípios norteadores do letramento. Sob uma perspectiva didático-

pedagógica, são abordadas as políticas públicas voltadas para a Educação Especial

analisando-se sua aplicabilidade e eficácia junto ao público surdo em classe de língua

estrangeira. A pesquisa empírica constituiu-se em um estudo de caso de caráter

qualitativo, a partir da realização de uma classe experimental de ensino do Francês Língua

Estrangeira a um grupo de surdos brasileiros universitários e pós-graduandos, cuja

análise, por meio da filmagem das aulas e da produção dos educandos, permitiu o

estabelecimento de uma relação entre a teoria e a prática do ensino. O estudo teórico

remeteu-se aos aportes da educação bilíngue para surdos, da abordagem comunicativa no

ensino do FLE e das práticas de letramentos no desenvolvimento da competência de

leitura, visando a constituição de uma didática das línguas adaptada às especificidades

linguísticas do público surdo.

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RÉSUMÉ

Étude sur le processus d'enseignement-apprentissage du Français Langue Étrangère au

public sourd brésilien, pratiquant de la LIBRAS comme langue première, et du portugais

comme langue seconde, sur la base du développement des compétences de lecture,

conformément aux principes directeurs de la littératie. Sous une perspective didactico-

pédagogique, sont abordées les politiques publiques pour l'Éducation Spéciale analysant

son applicabilité et son efficacité auprès du public sourd dans une classe de langue

étrangère. La recherche empirique a consisté en une étude de cas qualitative, à partir de

la réalisation d'une classe expérimentale de l’enseignement du Français Langue Étrangère

à un groupe de sourds brésiliens étudiants des cycles supérieurs, dont l'analyse, par

l'enregistrement vidéo des cours et la production des étudiants, a permis l'établissement

d'une relation entre la théorie et la pratique de l'enseignement. L'étude théorique a évoqué

les contributions de l'éducation bilingue pour les sourds, de l'approche communicative

dans l'enseignement du français et des pratiques de littératie dans le développement des

compétences de lecture, visant la constitution d'un enseignement des langues adaptées

spécificités du public sourd.

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ABSTRACT

This is a study on the teaching and learning process of French as a Foreign Language

(FFL) to the Brazilian bilingual deaf community, who has Brazilian Sign Language

(LIBRAS) as a first language and Portuguese as a second. The basis of this process is the

development of reading competence according to the guiding principles of literacy. From

a didactic and pedagogical perspective, this thesis addresses the public policies

concerning Special Education by analyzing their applicability and effectiveness among

deaf students in foreign language classes. The empirical research consisted of a qualitative

case study, based on an experimental course of FFL to a group of Brazilian deaf

undergraduate and graduate students. The analysis of classroom footage and students’

written contributed to the establishment of a relationship between theory and practice of

teaching. The theoretical study was supported by the contributions of bilingual education

for the deaf, the communicative approach to FFL teaching and literacy practices in the

development of reading competence, aiming at the construction of an approach to

language teaching which fits the linguistic specificities of the deaf community.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - Censo 2010 ..................................................................................................... 26

Figura 2 - Base comum das Línguas de Sinais ............................................................... 30

Figura 3 - Comunicação entre surdos.............................................................................. 37

Figura 4 - População brasileira portadora de deficiência ................................................ 53

Figura 5 - Matrículas da Educação Especial no Brasil ................................................... 58

Figura 6 - Transversalidade da Educação Especial ......................................................... 60

Figura 7 - Taxa de analfabetismo - Censo 2010 ............................................................. 89

Figura 8 - Verbo "aller" (a) ........................................................................................... 114

Figura 9 - Verbo "aller" (b) ........................................................................................... 115

Figura 10 - Verbo "falar" / "parler" ............................................................................... 125

Figura 11 - Advérbio de afirmação "sim" / "oui".......................................................... 126

Figura 12 - Preposição "com" / "avec" .......................................................................... 127

Figura 13 - A interação pedagógica em classe .............................................................. 132

Figura 14 - Les supermarchés ....................................................................................... 144

Figura 15 - Fruits et légumes - supermarché (a) ........................................................... 146

Figura 16 - Fruits et légumes - supermarché (b) ........................................................... 147

Figura 17 - Les fruits ..................................................................................................... 148

Figura 18 - Les fruits (identificação) ............................................................................ 148

Figura 19 - Exemplo – Orange ...................................................................................... 149

Figura 20 - Les fruits eta la santé .................................................................................. 151

Figura 21 - Les fruits - apontamento ............................................................................. 152

Figura 22 - Datilologia .................................................................................................. 153

Figura 23 - Les cerises .................................................................................................. 153

Figura 24 - Verbo "acalmar" ......................................................................................... 154

Figura 25 - Les raisins ................................................................................................... 154

Figura 26 - Os animais .................................................................................................. 155

Figura 27 - Hesitação .................................................................................................... 156

Figura 28 - Associação francês/português .................................................................... 157

Figura 29 - Os animais - identificação .......................................................................... 157

Figura 30 - apontamento ............................................................................................... 158

Figura 31 - Interferência................................................................................................ 159

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Figura 32 - Constatação do falso cognato ..................................................................... 159

Figura 33 – Sinais ......................................................................................................... 161

Figura 34 - Sinal "nunca" .............................................................................................. 161

Figura 35 - Sinais icônicos ............................................................................................ 162

Figura 36 - Dias da semana ........................................................................................... 164

Figura 37 - LSF - Les jours de la semaine .................................................................... 165

Figura 38 - Les jours de la semaine - apontamento ...................................................... 166

Figura 39 - Les jours de la semiane .............................................................................. 167

Figura 40 - Mardi / Mercredi ........................................................................................ 168

Figura 41 - Mardi - evolução do sinal ........................................................................... 169

Figura 42 - Mardi (a) ..................................................................................................... 169

Figura 43 - Mardi (b)..................................................................................................... 169

Figura 44 - Receita "bolo de chocolate" ....................................................................... 172

Figura 45 - Fermento (França X Brasil) ........................................................................ 174

Figura 46 - "Sachet de levure" ...................................................................................... 174

Figura 47 - Receita - preparação ................................................................................... 175

Figura 48 - Banho maria ............................................................................................... 175

Figura 49 - Leitura individual em sinais ....................................................................... 176

Figura 50 - Leitura individual ....................................................................................... 177

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ACERP Associação de Comunicação Educativa Roquette-Pinto

AEE Atendimento Educacional Especializado

APAE Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais

ASL American Sign Language

BIAP Bureau International d’Audiophonologie

BSL British Sign Language

CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

CARAP Cadre de Référence pour les Approches Plurielles

CDCC Centro de Divulgação Científica e Cultural

CEB Câmara de Educação Básica

CELV Centre Européen pour les Langues Vivantes

CIEP Centre International d’Études Pédagogiques

CNE Conselho Nacional de Educação

CPSAS Centre de Promotion Sociale des Adultes Sourds

dB Decibéis

DALF Diplôme Approfondi de Langue Française

DELF Diplôme d’Études en Langue Française

EJA Educação de Jovens e Adultos

EPT Educação para Todos

FENEIS Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos

FLE Francês Língua Estrangeira

FOS Francês com Objetivos Específicos

IBC Instituto Benjamin Constant

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira

INES Instituto Nacional de Educação de Surdos

INJS Institut National des Jeunes Sourds

INOSEL Instituto Nossa Senhora de Lourdes

IST Instituto Santa Teresinha

IVT International Visual Théâtre

LDBEN Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

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L1 Primeira língua

L2 Segunda língua

LE Língua Estrangeira

LIBRAS Língua Brasileira de Sinais

LM Língua Materna

LS Língua de Sinais

LSCB Língua de Sinais dos Centros Urbanos

LSF Langue des Signes Française / Língua de Sinais Francesa

LSKB Língua de Sinais Kaapor Brasileira

MEC Ministério da Educação

OMS Organização Mundial de Saúde

ONU Organização das Nações Unidas

PCNs Parâmetros Curriculares Nacionais

PNAES Programa Nacional de Apoio à Educação dos Surdos

PNE Plano Nacional de Educação

QECR Quadro Europeu Comum de Referência

SEESP Secretaria de Educação Especial

SRC Síndrome da Rubéola Congênita

UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro

UFSC Universidade Federal de Santa Catarina

USP Universidade de São Paulo

WFD World Federation of the Deaf

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................................... 16

2 PANORAMA DA SURDEZ E DA EDUCAÇÃO DOS SURDOS ........................................ 26

2.1 Aspectos gerais sobre surdez ................................................................................................ 26

2.2 A semiogênese das línguas de sinais ..................................................................................... 29

2.3 A institucionalização da língua de sinais no Brasil ............................................................... 32

2.4 As principais filosofias educacionais para surdos: Oralismo, Comunicação Total e

Bilinguismo ................................................................................................................................. 35

2.4.1 A três filosofias educacionais para surdos no Brasil – um breve relato ............................. 41

2.5 O bilinguismo do surdo e a educação bilíngue ..................................................................... 43

2.6 O professor surdo e sua contribuição para a educação da criança surda ............................... 49

3 POLÍTICAS EDUCACIONAIS NA EDUCAÇÃO ESPECIAL NO BRASIL ....................... 53

3.1 A surdez na Educação Especial ............................................................................................ 61

3.2 Educação Especial X Educação de Surdos ........................................................................... 68

3.3 O ensino das LE aos surdos – da legislação à efetivação ..................................................... 71

3.4 O ensino das línguas estrangeiras ao público surdo fora da escola ....................................... 78

4 POR UM ENSINO ADAPTADO DAS LÍNGUAS ESTRANGEIRAS AO PÚBLICO

SURDO – APORTES TEÓRICOS ............................................................................................. 84

4.1 O letramento na classe de LE com surdos ............................................................................ 84

4.1.1 A origem do termo no Brasil - um breve relato ................................................................. 85

4.1.2 Alfabetização e letramento – conceitos e empregos ......................................................... 87

4.1.3 Práticas e níveis de Letramento ......................................................................................... 95

4.1.4 Letramento e surdez ........................................................................................................... 96

4.1.5 Os aportes das práticas de letramento no ensino do português como L2 ......................... 100

4.1.6 Abordando a leitura em classe de FLE com surdos ......................................................... 104

4.1.7 A Avaliação da leitura ..................................................................................................... 107

4.2 Do ensino bilíngue à competência plurilíngue .................................................................... 110

4.2.2 Consciência Metalinguística ............................................................................................ 112

4.2.3 Abordagem bilíngue, trilíngue, plurilíngue: diferentes caminhos da consciência

metalinguística .......................................................................................................................... 118

4.3 FLE PARA SURDOS ......................................................................................................... 123

4.3.1 Por que ensinar o FLE ao surdo brasileiro? ..................................................................... 123

4.3.2 Francês Instrumental, Francês com Objetivos Específicos ou simplesmente FLE? ........ 128

4.3.3 O FLE a partir da Abordagem Comunicativa com surdos ............................................... 130

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5 UM OLHAR SOBRE A PRÁTICA DO ENSINO-APRENDIZAGEM DO FLE AO SURDOS

.................................................................................................................................................. 134

5.1 Curso de Extensão de FLE para Surdos – o contexto da experiência ................................. 134

5.1.1 Objetivos do curso ........................................................................................................... 134

5.1.2 Metodologia ..................................................................................................................... 134

5.1.3 Perfil do público alvo ....................................................................................................... 135

5.1.4 - Conteúdo programático ................................................................................................. 136

5.1.5 Estrutura física e suportes técnicos .................................................................................. 136

5.1.6 Material didático .............................................................................................................. 136

5.1.7 Referencial teórico ........................................................................................................... 137

5.1.8 Análise dos dados ............................................................................................................ 137

5.2 – Analisando a prática do ensino ........................................................................................ 137

5.2.1 Competência intercultural – a França, o francês e os surdos franceses ........................... 137

5.2.2 – Competência linguística ................................................................................................ 142

5.2.3 Do lúdico o texto autêntico .............................................................................................. 155

5.2.4 Sobre o uso da LSF .......................................................................................................... 160

5.2.5 Receita de bolo ................................................................................................................. 170

5.2.6 Leitura individual ............................................................................................................. 176

5.3 Conclusões sobre a experiência .......................................................................................... 179

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 181

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................................... 187

REFERÊNCIAS SITOGRÁFICAS .......................................................................................... 198

ANEXOS .................................................................................................................................. 199

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1 INTRODUÇÃO

A presente tese tem como objeto de interesse o processo de ensino-aprendizagem

das línguas estrangeiras, em especial, do Francês Língua Estrangeira (FLE), ao público

surdo brasileiro, sob uma perspectiva didático-pedagógica. Tal temática é ainda pouco

explorada não somente no Brasil, como também em outros países, caracterizando uma

escassez de material teórico-metodológico que poderia servir de auxílio prático aos

docentes que trabalham diretamente com esse público, o que justifica a necessidade do

desenvolvimento de pesquisas nesse campo de estudos.

Meu interesse inicial pela comunidade surda, sua língua e sua cultura, se deu no

ano de 1999, durante minha graduação em Letras (Português-Francês) na Universidade

Federal do Rio de Janeiro, quando tive a oportunidade de cursar a disciplina optativa

“Introdução à Língua Brasileira de Sinais” (LIBRAS), ministrada pela professora surda

Myrna Salerno Monteiro. O contato com essa professora e os aprendizados

proporcionados no decorrer do curso foram cruciais para minha sensibilização quanto às

questões que envolvem o uso da LIBRAS, a identidade e a educação dos surdos,

motivando-me a buscar um aprofundamento sobre esse assunto.

Já graduada e atuante na qualidade de professora de FLE em escolas e na Aliança

Francesa, tive a chance de retomar o aprendizado da LIBRAS através do curso oferecido

pelo Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES) à comunidade, onde pude estender

meus conhecimentos sobre essa língua, estabelecer um contato com a comunidade surda

local, além de conhecer melhor essa instituição de ensino tão importante para a história

da educação dos surdos no Brasil.

Como veremos detalhadamente no desdobramento desse trabalho, a França teve

uma importância histórica na fundação do INES e no processo de institucionalização da

língua de sinais no Brasil, contribuindo grandemente para a organização e agregação da

comunidade surda brasileira. Além disso, cabe destacarmos que a Língua de Sinais

Francesa (LSF) praticada na França no século XIX exerceu grande influência na

constituição da língua de sinais praticada pelos surdos brasileiros naquela época, de modo

que, apesar da evolução de ambas, ainda é possível detectar traços da LSF sobre a

LIBRAS praticada nos dias de hoje. Diante disso, enquanto professora de FLE, passei a

refletir sobre a relevância que esses elementos históricos poderiam ter no processo de

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ensino-aprendizagem dessa língua ao público surdo brasileiro, o que levou-me, há dez

anos atrás, a dar início à pesquisa sobre a didática do ensino do FLE a esse público.

Hoje, a investigação a que me proponho representa a continuidade e o

aprofundamento de meus estudos realizados em 2007/2008, durante o curso de Mestrado

em Ciências da Linguagem - Didática das Línguas Estrangeiras, na Universidade Paris

VIII, no qual obtive o título de Mestre em Ciências da Linguagem ao defender a

dissertação “L’enseignement du Français Langue Étrangère au public sourd brésilien:

enjeux et perspectives”. Nessa pesquisa, foi abordada a questão do acesso do público

surdo às línguas e às culturas estrangeiras em contexto escolar a partir da análise de uma

experiência prática do ensino desenvolvida com educandos surdos do primeiro segmento

do Ensino Fundamental no Instituto Nossa Senhora de Lourdes (INOSEL), no Rio de

Janeiro.

Tendo optado pelo uso da Abordagem Comunicativa como metodologia de

ensino, pude desenvolver com aquele grupo de adolescentes surdos um trabalho sobre

três competências de comunicação, a saber, a compreensão e a produção escritas, e a

produção oral em FLE. Através da documentação das atividades, compôs-se um corpus

de análise, a partir do qual observaram-se as estratégias didáticas propostas por Tagliante

(1994), Courtillon (2003) e Beacco (2007) para o ensino do FLE ao público ouvinte, e

suas adaptações em função das especificidades do público surdo. Discutiu-se também o

uso de uma abordagem bilíngue em sala de aula e a importância do uso da LIBRAS não

somente como um meio de comunicação, mas também como uma marca da identidade

do surdo.

Nessa nova etapa da pesquisa, com um olhar mais maduro e aprofundado, lanço-

me à discussão sobre o processo de ensino-aprendizagem do FLE ao surdo a partir dos

princípios norteadores do letramento, cujo foco principal está nas práticas sociais de

leitura e escrita. A questão do nível de letramento do surdo e sua influência na

aprendizagem da língua estrangeira são aspectos fundamentais em nosso estudo, pois

estão diretamente relacionadas a sua condição bilíngue e bicultural.

Com efeito, o surdo brasileiro é considerado um indivíduo bilíngue tendo como

primeira língua (L1), uma língua de modalidade viso-gestual, a LIBRAS, e como segunda

língua (L2), uma língua de modalidade áudio-oral, o português. Apesar dessa noção

generalizada, é preciso compreendermos que cada surdo tem um percurso e características

individuais distintas, de modo que essas duas línguas são adquiridas de formas diversas,

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em função de fatores determinantes para o desenvolvimento de seu bilinguismo, como o

seu grau de surdez (podendo ser leve, moderado, severo ou profundo), o contexto

linguístico no qual ele vive (família de ouvintes, mista ou de surdos), a existência ou não

de contato com a comunidade surda local, e a língua de comunicação e de educação

escolhida por seus pais.

Porém, o bilinguismo do surdo deve ser visto de forma diferente dos outros tipos

de bilinguismo devido a seu caráter bimodal e por tratar-se de um bilinguismo de minorias

no qual a língua que ele domina, a língua de sinais, não é a língua predominante no local

onde ele vive.

O termo “minorias” pode ser utilizado tanto para expressar uma classificação

numérica quanto para caracterizar determinados grupos sociais destituídos de poder. Na

concepção de Cavalcanti (1999) os grupos minoritários são aqueles marginalizados

socialmente, podendo ser identificados por sua situação linguística, seu país de origem,

suas características étnicas, religiosas, etc., sua situação econômica, entre outras

particularidades. Em seus estudos, a autora destaca o bilinguismo de minorias vivenciado

por determinados grupos, muitas vezes estigmatizados, dentre eles, os surdos. Tais

contextos “são (tornados) invisíveis, portanto naturalizados” (CAVALCANTI, op. cit, p.

387) na percepção da sociedade, seja pela predominância da ideia de que vivemos em um

país monolíngue, seja pelo desprestígio das línguas inerentes a esses grupos.

Estudos (Quadros, 1997) apontam que, devido ao impedimento auditivo, a

percepção visual do surdo é especialmente apurada e, por essa razão, seu acesso à língua

de sinais se dá de forma natural. Em contrapartida, a aprendizagem da língua áudio-oral

acontece em um processo longo e bastante complexo, de forma arbitrária e não genuína,

por meio de repetições e sistematizações centradas nas regras gramaticais e na estrutura

da língua. Diferentemente da criança ouvinte, o surdo não tem o estímulo auditivo,

precisando de um auxílio especial e adaptado para que esse aprendizado se desenvolva

em boas condições. Contudo, para alguns pesquisadores, a língua áudio-oral, apesar de

importante e necessária na vida do surdo, será sempre uma língua estranha e de uso

adverso.

Diante dessa complexidade no universo linguístico do indivíduo surdo bilíngue, o

ensino-aprendizagem de uma língua estrangeira (LE) de modalidade áudio-oral, revela-

se um processo ainda mais complexo e desafiador, seja em contexto escolar (como está

previsto nos Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN), seja em centros de idiomas (se é

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19

que existe oferta de ensino adaptado aos surdos nesse tipo de estabelecimento). Essa

tarefa requererá do educador saberes e competências relacionados às especificidades do

educando surdo, além da capacidade de promover uma série de adaptações que levem em

conta não somente sua realidade linguística, como também sua situação psicossocial,

cultural e histórica.

Em nossa experiência prática de ensino de FLE em classes com surdos pudemos

identificar alguns problemas específicos, os quais tratamos com destaque no presente

estudo. O primeiro, é a questão do letramento do surdo em L1 e em L2 no momento em

que ele começa a prender a LE. Diferentemente da alfabetização, que se refere à

capacidade de codificação e decodificação da produção gráfica textual (Soares, 1998), o

letramento está voltado para os aspectos sócio-históricos da aquisição da escrita e seu

foco está nas interações sociais por meio dessa prática. Como pontua Tfouni (1995), ser

alfabetizado não significa, necessariamente, que o indivíduo será capaz de apreender o

sentido de um texto após a sua leitura. Para isso, é preciso que ele coloque em prática

uma série de estratégias de abordagem textual já adquirida, mesmo que

inconscientemente, e relacione as situações de leitura com as quais se depara ao seu

conhecimento de mundo.

Acontece que muitos surdos apresentam um conhecimento de mundo bastante

restrito por estarem privados de acesso à informação de modo mais abrangente no seio da

comunidade ouvinte. Essa privação pode ocorrer de várias formas e em diferentes espaços

como, por exemplo, no ambiente familiar, quando a comunicação em LIBRAS é limitada;

na escola inclusiva, quando não há uma inclusão adequada por meio da educação

bilíngue; no contexto de acesso aos meios de comunicação, quando não há a transmissão

das informações em LIBRAS ou a opção de legendas em português; etc.. Tudo isso

dificulta o desenvolvimento do surdo e seu acesso à informação, o que, por conseguinte,

poderá prejudicar seu aprendizado da língua áudio-oral (seja a L2 ou uma LE) pelo

desconhecimento de certos assuntos abordados em documentos escritos.

Nessa perspectiva, entendemos que o letramento constitui uma prática em

desenvolvimento contínuo, que se aprimora com o tempo e com a experiência do

indivíduo em suas interações sociais por meio da escrita. E essa prática não se limita ao

ensino formal escolar, podendo desenvolver-se em instituições e espaços variados (na

família, na igreja, no trabalho, no bairro onde vive, etc.). Por fim, o nível de letramento

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do educando surdo tanto em L1, quanto em L2, terá um papel fundamental na

aprendizagem da LE, podendo favorecê-la (ou não) de forma considerável.

O segundo problema identificado nessa empreitada está diretamente relacionado

à inexistência de uma metodologia de ensino das LEs adaptada às especificidades do

surdo, o que poderá comprometer consideravelmente a prática do ensino e o aprendizado

do educando. A maioria dos professores de LE em atividade não possui formação

especializada para lidar com o educando surdo (ou com educandos portadores de outras

necessidades educacionais especiais), nem é praticante da LIBRAS.

Nesse contexto, o Ministério da Educação e a Secretaria de Educação Especial no

Brasil, através das políticas públicas voltadas para a Educação Especial na perspectiva da

Educação Inclusiva, preveem a promoção do acesso, da participação e da aprendizagem

dos educandos portadores de necessidades educacionais especiais nas escolas regulares

através de um atendimento educacional especializado que possibilite uma educação de

qualidade para todos (BRASIL, 2008). Entretanto, ao considerarmos o caso específico

dos surdos, percebemos que apesar dos esforços direcionados à difusão da LIBRAS, à

garantia da presença de intérpretes (Português-LIBRAS) em classe, e à capacitação dos

atuais estudantes em Pedagogia e em variadas Licenciaturas, existem, ainda, profundas

lacunas que dificultam o acesso do surdo ao aprendizado, especialmente quando trata-se

do ensino da LE. Por exemplo, ao refletirmos sobre o trabalho do intérprete na escola,

percebemos que, diferentemente das aulas de História, Matemática ou Geografia, sua

atuação nas aulas de LE pode se tornar confusa, visto que ele não é habilitado a interpretar

aquela terceira língua, mas somente o português e a LIBRAS. Como, então, o ensino pode

se desenvolver nesse contexto? Qual será o papel do intérprete (Português-LIBRAS) na

classe de LE com surdos?

A terceira dificuldade diz respeito à falta de material didático adaptado. Com o

progresso tecnológico, a maior parte dos manuais de LE que vemos hoje no mercado vem

acompanhados de dispositivos de mídia, como CD ou CD-ROM, contendo os diálogos

das lições ou exercícios de pronúncia, o que é totalmente inútil para o surdo. Assim, sem

um apoio teórico-metodológico e sem material didático adaptado, o educador terá pela

frente um laborioso e solitário trabalho de elaboração de aulas e de adaptação de materiais

didáticos. Tudo isso nos impulsiona a uma solidariedade para com os professores de LE

que atuam junto a esse público, e à busca de novos caminhos que possam contribuir tanto

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com a prática docente, quanto com a promoção do acesso adaptado dos surdos ao

aprendizado das línguas.

O quarto problema que destacamos nesse estudo é o contexto de ensino no qual a

classe de LE com surdos se realiza, podendo ser em escola especializada, onde o ensino

é oferecido somente a educandos surdos, ou em escola regular na perspectiva inclusiva,

onde o ensino se desenvolve em classes que integram surdos e ouvintes. Muitos

especialistas discutem sobre qual seria o melhor contexto para se instruir o surdo, porém,

não há um consenso. A decisão pelo tipo de ensino supostamente mais conveniente caberá

aos pais da criança surda no momento de matriculá-la em uma escola. Seja qual for a sua

escolha, o que se tem observado é que, seja em contexto especial, seja em inclusivo, as

lacunas existem e as discussões entre os profissionais da educação dos surdos têm

evoluído no sentido de saná-las, como veremos mais à frente.

Ao abordarmos tais problemas, não temos, em nenhuma hipótese, a pretensão de

trazer uma resposta certeira a todos os questionamentos levantados, até porque, num país

como o Brasil, onde as dimensões geográficas são continentais e as realidades de

contextos relacionados a surdez são discrepantes, dificilmente poderíamos trazer soluções

concretas que atendessem a sua totalidade. Ao invés disso, nossa intenção é promover

uma reflexão a respeito da complexidade que envolve o ensino da LE a esse público e

fomentar a discussão sobre a acessibilidade educacional, pois o surdo não aprende como

o ouvinte, e sem uma adaptação efetiva de todo o processo de ensino-aprendizagem, não

há aprendizado pleno.

Em busca de uma alternativa a esses impasses, recorremos à análise crítica de uma

experiência prática do ensino como recurso metodológico em nossa pesquisa. Tal

experiência se desenvolveu a partir da formação de uma classe de FLE para surdos,

realizada no âmbito de um curso de extensão na Faculdade de Letras da UFRJ. Com uma

carga horária de 30 horas, o curso teve como público alvo estudantes surdos bilíngues dos

cursos de Licenciatura em Letras-Libras, de Bacharelado em Letras-Libras: Tradução e

Interpretação, e de Especialização em LIBRAS: Ensino, Tradução e Interpretação.

A partir dos dados coletados por meio da filmagem das aulas, e da documentação

das produções dos educandos, compôs-se um corpus de análise, através do qual foi

possível investigar a forma como o surdo aprende e em que medida a adaptação das

metodologias de ensino usadas com o público ouvinte pode favorecer o aprendizado do

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educando surdo. Toda essa análise teve como base os pressupostos teóricos de

especialistas das áreas do ensino FLE e da educação dos surdos.

Em nossa análise, adotamos o conceito de bilinguismo segundo Grosjean (2010,

2008, 2004), que define como bilíngue aquele que faz uso de duas ou mais línguas em

sua vida diária sem ter, contudo, a obrigatoriedade de dominá-las uniformemente em

todas as competências de comunicação (oral, escrita e gestual). É o caso do surdo

brasileiro que, ao interagir nas comunidades surda e ouvinte, utiliza a LIBRAS ou o

português em função de seu interlocutor. Nesse contexto, o autor ressalta que, além de

bilíngues, os surdos são biculturais, pois interagem diariamente nas comunidades surda e

ouvinte, assimilando e sintetizando traços das duas culturas. Para Grosjean (2004), é de

suma importância que a criança surda tenha a possibilidade de aprender de forma ampla

sobre as duas comunidades às quais pertence e, para isso, a família, os educadores e os

membros das duas comunidades devem assegurar que esse conhecimento ocorra o mais

cedo possível e de forma harmoniosa.

No que concerne o ensino da LE ao público surdo, defendemos o uso da

abordagem bilíngue, na qual a LIBRAS tem seu lugar enquanto língua de comunicação e

de ensino, ao passo que o FLE será a língua alvo. Segundo as concepções de Quadros

(2005, 2004, 1997), Skliar (2001, 1999) e Fusellier-Souza (2003), a língua de sinais em

sala de aula é essencial não somente como ferramenta na transmissão dos conteúdos, mas

também como uma marca da identidade do surdo. Além disso, ela estabelece um elo de

proximidade e de cumplicidade na construção da relação educador/educando e educandos

entre si, proporcionando, também, uma maior segurança durante o aprendizado.

A propósito das competências de comunicação desenvolvidas no ensino das LE,

a saber, compreensão oral e escrita, produção oral e escrita, o surdo é perfeitamente capaz

de desenvolver ao menos duas: a compreensão e a produção escritas (Fusellier-Souza, op.

cit.). Ele também pode desenvolver a produção oral caso deseje e já seja oralizado em L2.

Em nosso estudo, a competência de comunicação privilegiada no ensino da LE ao público

surdo é a compreensão escrita a partir do desenvolvimento de variadas estratégias de

leitura e da exploração de diferentes gêneros textuais em conformidade com os aportes

da Abordagem Global, preconizada por Sophie Moirand (1979), e das estratégias de

leitura em FLE, segundo Christine Tagliante (1994). Diferentemente da abordagem linear

de um texto, cuja leitura se dá palavra por palavra, a Abordagem Global consiste na

percepção global das palavras, das frases, do conjunto do documento. Segundo Moirand

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(op.cit.), essas estratégias de leitura, já conhecidas e utilizadas naturalmente pelo leitor

em sua L1 (ou, adaptando para a situação do surdo, em sua L2), deverão ser transferidas

para o ato de leitura em LE. Assim, a partir da associação de tais estratégias a seus

conhecimentos extra-linguísticos, o leitor poderá construir o sentido do texto. Esse tipo

de abordagem em sala de aula permitirá o uso de documentos autênticos, ainda que o

educando seja iniciante na LE, pois o professor o conduzirá à compreensão global do

sentido do texto, encorajando-o a prosseguir mesmo diante de palavras desconhecidas.

Dialogando com essas autoras, tomamos como base os princípios do letramento

segundo Kleiman (2012, 1995), Soares (2009, 2004, 2003) e Tfouni (2010, 1995), as

quais abordam o uso da leitura e da escrita como prática social. A questão do letramento

está diretamente ligada ao aprendizado de uma LE, pois um indivíduo letrado em sua

língua materna (no caso do surdo em L2) poderá ter uma melhor desenvoltura ao abordar

um documento escrito em outra língua, sendo capaz de perceber nuances e informações

subentendidas em função de sua prática e maturidade leitora. Por conseguinte, sua gradual

experiência em LE poderá, também, influenciar suas práticas textuais em L1 e/ou L2.

Vygotsky já refletia sobre essa experiência, ressaltando que,

O êxito no aprendizado de uma língua estrangeira depende de um certo grau

de maturidade na língua materna. A criança pode transferir para a nova língua

o sistema de significados que já possui na sua própria. O oposto também é

verdadeiro - uma língua estrangeira facilita o domínio das formas mais

elevadas da língua materna. A criança aprende a ver a sua língua como um

sistema específico entre muitos, a conceber os seus fenômenos à luz de

categorias mais gerais, e isso leva à conscientização das suas operações

linguísticas. (VYGOTSKY, 2000, p.137)

Ao considerarmos o ensino bilíngue para surdos, entendemos a adaptação da

situação de ensino a suas especificidades está no centro dessa prática. Além da

valorização do uso da LIBRAS, consideram-se os aspectos sócio-culturais que envolvem

a surdez o que levará o educador à adequação de seu planejamento e de suas práticas ao

educando. Essa ação vai de encontro aos princípios da Abordagem Comunicativa,

segundo a qual o educando deve estar no centro do processo de ensino-aprendizagem.

Conforme Tagliante (2005, 1994) e Cuq (2003), um dos principais objetivos da

Abordagem Comunicativa no ensino da LE é o desenvolvimento das competências de

comunicação do educando levando-se em conta suas características bem como suas

necessidades específicas. Nesse processo, o perfil do educando influenciará o

planejamento do programa, a elaboração das atividades, a seleção do material didático e

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as formas de avaliação. Em nosso estudo, é esse aspecto flexível da Abordagem

Comunicativa associado à educação bilíngue para surdos que buscamos empregar no

processo de ensino-aprendizagem do FLE a esse público.

Nesse contexto, é importante que o professor tenha sensibilidade às questões que

envolvem o uso da LIBRAS. Por exemplo, é necessário o espaço seja adequado e que as

cadeiras/carteiras estejam dispostas em círculos ou semicírculos para que os educandos

possam se ver e interagir em LIBRAS. O material didático deve ser rico em recursos

imagéticos e os documentos devem ser autênticos, proporcionando ao educando a

experiência de uma situação real de comunicação.

Com respeito ao desenvolvimento da competência linguística, notadamente a

abordagem da gramática e do vocabulário, propomos que seja gradativa, a partir das

temáticas introduzidas nos documentos escritos. A fixação dos conteúdos poderá ser feita

por meio de atividades lúdicas ou, conforme a necessidade, de exercícios estruturais em

contexto tendo como objetivo o desenvolvimento de automatismos. Essa técnica, apesar

de não ser comunicativa, pode ajudar na compreensão do funcionamento da língua.

À Abordagem Global dos textos pretende-se associar algumas técnicas do ensino

sistemático de vocabulário proposto por Marzano (2010, 2004). Para o autor, ensinar

termos específicos assegura que o educando tenha os pré-requisitos necessários para

compreender os conteúdos que irão encontrar nos textos. Dessa maneira, quanto mais

termos ele souber acerca de um determinado assunto mais fácil será compreender e

apreender nova informação sobre esse tema. Em sua proposta, o ensino pode ser

introduzido em três fases: (1) fase introdutória, que consiste na descrição do léxico pelo

professor, seguida pela explanação do educando com suas próprias palavras; (2) fase

comparativa, na qual o educando cria uma representação não linguística do termo; (3)

fase de revisão e refinamento, na qual o termo é empregado em contexto. Essas fases

devem ser adaptadas à realidade linguística do surdo, através do uso da LIBRAS e de

recursos imagéticos. Acreditamos que o ensino sistemático de vocabulário em LE,

associado a sua retomada em contexto nos documentos escritos pode contribuir para o

aprendizado desta, como também para o desenvolvimento de seu letramento na L1 e na

L2.

Para, isso, organizamos nosso trabalho em seis capítulos. No primeiro,

apresentaremos um breve histórico sobre o início e a evolução da pesquisa; delinearemos

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o contexto de sua realização; delimitaremos os objetivos, os problemas e a hipóteses do

estudo; e apresentamos a organização geral em que a tese é desenvolvida.

No segundo capítulo, daremos início à reflexão sobre a condição do surdo através

da definição de alguns conceitos básicos relacionados à surdez, à língua de sinais e ao

bilinguismo do surdo. A partir de um panorama geral sobre a história da educação dos

surdos, exporemos as três filosofias educacionais utilizadas ao longo tempo, no mundo e,

também, no Brasil, ressaltando as características e contribuições de cada uma delas.

O terceiro capítulo será dedicado à discussão sobre o contexto da Educação

Especial no Brasil, a partir da abordagem de algumas leis e decretos importantes para

nossa análise. Partindo da legislação geral voltada para educação dos indivíduos

portadores de necessidades especiais até as leis e decretos que dizem respeito

especificamente aos surdos, refletiremos sobre seus aportes e limitações na prática do

ensino. Paralelamente, trataremos da legislação sobre o ensino das LEs, relacionando-a

ao contexto da classe com surdos, assim como o papel do intérprete nesse processo.

No quarto capítulo, traremos alguns conceitos teóricos de especialistas das áreas

da surdez e da educação dos surdos (Grosjean, 2004, 2008 ; Quadros, 1997, 2004, 2005;

Skliar 1998, 1999), da didática do FLE ou das LEs (Moirand, 1979; Tagliante, 1994;

Candelier et al., 2007) e do letramento (Soares, 1998, 2003; Tfouni, 1995, 2010 ;

Kleiman, 1995, 2005), observando em que medida e por meio de quais adaptações elas

podem contribuir para a construção de uma didática das línguas adequada à

especificidades do público surdo. Nosso objetivo nessa análise é buscar uma aplicação

prática desses conceitos teóricos, assim como avaliar sua eficácia.

No quinto capítulo, faremos uma abordagem metodológica qualitativa sobre uma

experiência prática do ensino do FLE a um grupo de educandos surdos. Primeiramente,

faremos uma breve descrição dos sujeitos envolvidos na experiência, do contexto de

ensino e das estratégias de recolhimento dos dados. Em seguida faremos um relato crítico

das situações selecionadas para análise, associando os aportes teóricos mencionados no

quarto capítulo à prática do ensino.

Finalmente, concluiremos esse trabalho a partir da apresentação de nossas

apreciações gerais sobre os resultados da investigação, enfatizando os aportes dessa

experiência para o diálogo acadêmico. Acima de tudo, esperamos poder contribuir para a

reflexão sobre construção de uma didática das línguas estrangeiras realmente adaptada

aos surdos.

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2 PANORAMA DA SURDEZ E DA EDUCAÇÃO DOS SURDOS

2.1 Aspectos gerais sobre surdez

Falar sobre a comunidade surda brasileira é um exercício bastante complexo tendo

em vista a pluralidade característica desse país e a vastidão de seu território. Um dos

maiores países do mundo, o Brasil é, também, um país de contrastes, marcado por uma

população diversificada nos planos social, econômico e cultural, seja ela ouvinte ou surda.

No quadro abaixo, apresentam-se importantes dados levantados no último censo

demográfico realizado no ano de 2010 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

- IBGE, os quais nos permitem ter uma noção quantitativa sobre a incidência da surdez

no Brasil.

Figura 1 - Censo 2010

País Superfície População População com

alguma deficiência

auditiva

População com

grande dificuldade

auditiva

População

com surdez

profunda

Brasil 8.515.767,049 km² 190.732.694 9.722.163 1.799.885 347.481

Fonte: http://censo2010.ibge.gov.br/

Como se pode observar, mais de 9,7 milhões de brasileiros se declararam

portadores de algum tipo de surdez (leve, moderada, severa ou profunda), seja congênita

ou adquirida, o que representa 5,1% da população. Dentre elas, 347.481 se declararam

completamente surdas.

Segundo a classificação do Bureau International d’Audiophonologie - BIAP1, o

grau de surdez do indivíduo é verificado a partir da perda auditiva em decibéis, podendo

ser leve (entre 21 e 40 dB), moderada (entre 41 e 70 dB), severa (entre 71 e 90 dB) e

profunda (mais de 91 dB), sendo que, essa última pode classificar-se em 1º grau (de 91 a

100 dB), 2º grau (de 101 a 110 dB) e 3º grau (acima de 111 dB).

1 O “BIAP - Bureau International d’Audiophonologie” é uma Sociedade Científica criada em 1967.

Composta por delegados de sociedades, comitês nacionais e regionais e representantes de associações

internacionais relacionadas à Audiofonologia, a instituição reúne especialistas internacionais e comissões

técnicas para discutir, elaborar e redigir recomendações a serem amplamente difundidas. Fonte:

http://www.biap.org

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Independentemente do grau da perda auditiva, é importante salientarmos que

diferentes termos são recorrentemente utilizados para caracterizar esse indivíduo. Do

ponto de vista clínico-patológico e conforme documentos oficiais da Organização

Mundial de Saúde (OMS) e do Ministério da Educação (MEC) no Brasil, tem-se usado o

termo “deficiente auditivo”. Entretanto, tal termo tem sido rejeitado pela comunidade

surda que, através de movimentos, protestos e eventos realizados nos últimos 20 anos,

tem manifestado a preferência pelo uso do termo “surdo”, simplesmente. Nessa

perspectiva, a surdez não é concebida como uma deficiência ou uma falta, mas como uma

condição que abrange questões linguísticas e culturais inerentes a essa comunidade.

A surdez pode ser congênita ou adquirida. No primeiro caso, ela ocorre por fatores

diversos como hereditariedade, infecções, contaminação do feto por vírus e bactérias

adquiridas no ventre materno, entre outros. No Brasil, as doenças mais recorrentes que

provocam a surdez são a rubéola gestacional, a sífilis e o sarampo, entre outras infecções

pré-natais. Já no caso da surdez adquirida, o indivíduo nasce com a audição normal e,

devido a algum fator patológico (como a ostoclerose ou infecções virais e bacteriológicas)

ou algum acidente (como explosões ou exposição a sons impactantes), pode perdê-la

inteira ou parcialmente. Contudo, em cerca de 33% dos casos de surdez no Brasil, não há

um diagnóstico preciso e não se consegue estabelecer uma etiologia exata para essa

afecção.

Cabe destacarmos que, entre 1999 e 2001, houve no país um surto de rubéola, o

que ocasionou um grande número de Síndrome da Rubéola Congênita (SRC), que diz

respeito às diversas complicações para o feto da gestante que contrai a rubéola, dentre as

quais, a possibilidade de surdez. A partir desse acontecimento, o Ministério da Saúde fez

grandes investimentos em campanhas de vacinação e de conscientização pelo país, de

maneira que a doença foi erradicada, não havendo qualquer caso registrado desde 2009.

Em reconhecimento, em dezembro de 2015 a OMS concedeu ao Brasil o Certificado de

Eliminação da Rubéola em território nacional, um importante documento que atesta

oficialmente que o país está livre dessa doença e, por conseguinte, da SRC.

Dentre as causas pós-natais, destaca-se a meningite como a principal doença

responsável pela perda auditiva profunda na criança. A partir de 1999, com a inclusão da

vacina contra a meningite no calendário básico de vacinação infantil, houve uma

expressiva redução dos casos da doença no Brasil.

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Seja qual for o tipo de surdez e sua causa, é de suma importância que haja um

diagnóstico preciso o mais cedo possível a fim de que a família dessa criança seja

orientada e que esta tenha acesso um atendimento adequado junto a profissionais

especializados.

A respeito do contexto familiar da incidência da surdez, Sacks (1998) afirma que

cerca de 95% das crianças surdas nascem de pais ouvintes e, por falta de conhecimento e

de orientação sobre a surdez e a língua de sinais, muitos desses pais não conseguem

estabelecer uma comunicação efetiva com a criança em seus primeiros anos de vida.

Quanto aos 5% correspondentes aos surdos filhos de pais surdos, ou seja, acometidos pela

surdez por fator hereditário, a comunicação e o contato com a cultura surda se

desenvolverão naturalmente no ambiente familiar desde seu nascimento, de forma

análoga ao desenvolvimento da criança ouvinte junto a seus pais ouvintes.

O diagnóstico precoce, assim como o reconhecimento e a aceitação da surdez da

criança pela família são fatores fundamentais em seus primeiros anos de vida, pois

contribuirão para a construção de uma comunicação visual e gestual na relação familiar

cotidiana, favorecendo seu desenvolvimento cognitivo, sua educação e sua integração

social. Para isso, é de suma importância que

Os profissionais que assumem a função de passarem as informações

necessárias aos pais devem estar preparados para explicar que existe uma

comunicação visual (a língua de sinais) que é adequada à criança surda, que

essa língua permite à criança ter um desenvolvimento da linguagem análogo

ao de crianças que ouvem, que essa criança pode ver, sentir, tocar e descobrir

o mundo a sua volta sem problemas, que existem comunidades de surdos;

enfim, devem estar preparados para explicar aos pais que eles não estão diante

de uma tragédia, mas diante de uma outra forma de comunicar que envolve

uma cultura e uma língua visual-espacial. Deve-se garantir à família a

oportunidade de aprender sobre a comunidade surda e a língua de sinais.

(QUADROS, 1997, p.29)

Os surdos brasileiros inseridos em grandes centros urbanos podem ter acesso ao

aprendizado da LIBRAS com mais facilidade e, em função da escolha de seus pais, podem

beneficiar-se de uma educação especializada graças à existência de instituições de ensino

como o INES (Instituto Nacional de Educação dos Surdos), no Rio de Janeiro, o IST

(Instituto Santa Teresinha), em São Paulo, e o Colégio ULBRA Especial Concórdia, em

Porto Alegre, entre outras.

Entretanto, devido à vastidão geográfica do país, uma grande parte da população

surda encontra-se longe desses centros urbanos, ficando privada do acesso a uma

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educação especializada, ao aprendizado institucional da LIBRAS e à interação com seus

semelhantes dentro da comunidade surda. Essa situação poderá, por conseguinte, levar o

indivíduo surdo isolado à criação espontânea de sistemas de comunicação gestual no

intuito de estabelecer um contato com seu meio ouvinte imediato, a família. Esse processo

criativo representa a base para o surgimento de línguas de sinais emergentes, utilizadas

por famílias de surdos isolados e por microcomunidades de surdos para se comunicarem,

como veremos mais detalhadamente no tópico seguinte.

2.2 A semiogênese das línguas de sinais

Os estudos de Cuxac (2000) apresentam a teoria da semiogênese das línguas de

sinais, segundo a qual haveria uma origem comum a todas as LSs do mundo. Essa base

comum caracteriza-se pela existência de dois tipos de estruturas presentes nos discursos

em LS: as estruturas de grande iconicidade, que visam à ilustração, e as estruturas

chamadas standard ou sinais standard, de caráter convencional. Isso explicaria a relativa

facilidade com que as comunicações exolingues se realizam quando surdos estrangeiros,

que não compartilham a mesma LS, se encontram. Estes, num primeiro momento, deixam

de usar os sinais standard, próprios de sua LS, supondo que seu interlocutor estrangeiro

não os compreenderia. Ao invés disso, eles preferem recorrer às estruturas de grande

iconicidade e a uma gestualidade mais expressiva que fazem parte das experiências

perceptivas e das práticas compartilhadas transculturamente, o que permite a

intercompreensão nas interações. Corroborando essa hipótese, podemos mencionar nossa

experiência pessoal em encontros informais com surdos de diferentes nacionalidades

(italianos, gregos, cingaleses e tanzanianos), nos quais, mesmo sem termos uma LS

comum, pudemos nos comunicar sem grandes dificuldades por meio das estruturas de

grande iconicidade.

Na figura seguinte, Cuxac (2010) ilustra essa base comum a todas a LS, na qual

ocorre um “processo de iconicização da experiência perceptual e prática” do indivíduo

surdo, por meio do uso de estruturas gestuais de grande iconicidade ou “transferências”

que, a partir de sua evolução e do surgimento de sinais standard, darão origem a uma LS.

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Figura 2 - Base comum das Línguas de Sinais

Fonte: https://www.cairn.info/revue-langage-et-societe-2010-1-page-37.htm

Na ilustração, o autor menciona a LSF (Langue de Signes Française), a ASL

(American Sign Language) e a BSL (Britain Sign Langage), em português, LSF – Língua

Francesa de Sinais, LSA – Língua de Sinais Americana e LSB – Língua de Sinais

Britânica, respectivamente, como exemplos de LSs originárias dessa base comum.

As estruturas de grande iconicidade que compõem essa base foram definidas por

Cuxac (1985, 1996, 2000) como fenômenos de “transferências”, os quais subdividem-se

em três tipos: transferência de tamanho e de forma (usada pelo locutor para descrever

uma ação, uma pessoa, um animal, etc., sem que ele faça parte da enunciação),

transferência situacional (usada para descrever uma ação do ponto de vista do locutor) e

transferência de pessoa (usada para descrever uma pessoa, um animal, etc., em

determinada situação, ou seja, o locutor “incarna” a pessoa ou objeto descrito).

Tais estruturas foram observadas nos estudos de Fusellier-Souza (2004) sobre as

línguas de sinais chamadas emergentes ou primárias praticadas por surdos brasileiros. Tal

investigação, desenvolvida a partir da observação de surdos isolados, demonstra a

necessidade que o indivíduo surdo tem de comunicar-se com seu meio ouvinte, o que o

levará a um processo criativo de comunicação gestual. Como afirma Grosjean, o ser

humano é, por natureza, um ser de comunicação e “ele se comunicará com a ajuda de

apenas uma, duas ou várias línguas, se for preciso. Se não puder falar e ouvir, ele utilizará

uma língua de sinais. Na falta desta, ele inventará uma outra”. (GROSJEAN, 2004, p. 37,

tradução nossa)2

2 Il communiquera à l’aide d’une seule langue, de deux ou de plusieurs langues, s’il le faut. A défaut de

pouvoir parler et entendre, il utilisera une langue des signes. A défaut de celle-ci, il en inventera

une. (GROSJEAN, 2004, p.37).

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Em sua pesquisa, Fusellier-Souza (op. cit.) observou que os ouvintes que

convivem com esses indivíduos surdos têm uma influência muito importante no

desenvolvimento desse meio de comunicação. Quando uma criança surda inventa gestos

para se comunicar com seus pais ouvintes, estes podem retomá-los em contexto,

estabelecendo, assim, um feedback. De acordo com a resposta de seus interlocutores, a

criança surda poderá continuar esse processo criativo em cumplicidade com sua família,

possibilitando o desenvolvimento contínuo e evolutivo de uma língua de sinais

emergente. Como pontua a autora,

Um sistema gestual pode se estabelecer de forma eficaz quando os pais, ao se

preocuparem com o desenvolvimento cognitivo da criança e sem considerar a

surdez como um obstáculo intransponível, começam a utilizar, de forma

espontânea e regular, sua gestualidade coverbal associada aos gestos criados

pela criança. [...] à medida que a criança produz gestos, seu sistema gestual

passará por diferentes etapas de desenvolvimento. A evolução dos sinais

criados e utilizados cotidianamente conduzirá a um sistema linguisticamente

organizado. (FUSELLIER-SOUZA, 2001, p. 81, tradução nossa)3

Posto isto, a teoria sobre a semiogênese das LS nos permite supor a existência de

LSs emergentes bem antes de sua institucionalização e difusão formal. A esse respeito,

podemos mencionar o interessante cenário observado nos estudos de Ferreira Brito (1982,

1984) sobre a tribo indígena Urubu-Kaapor, localizada no interior do estado do

Maranhão. Composta por um grande número de índios portadores de surdez congênita,

essa tribo criou sua própria língua de sinais para que fosse possível a comunicação com

surdos e entre os surdos. É interessante observarmos que os índios ouvintes dessa tribo

praticavam a língua de sinais e / ou a língua áudio-oral de acordo seus interlocutores

(surdos ou ouvintes), tornando-se, assim, indivíduos bilíngues. Ferreira Brito distinguiu

a língua de sinais praticada nessa tribo da língua de sinais praticada nos centros urbanos

brasileiros através das siglas LSKB (Língua de Sinais Kaapor Brasileira) e LSCB (Língua

de Sinais dos Centros Urbanos).

Um outro exemplo desse processo criativo dentro de uma microcomunidade de

surdos brasileiros encontra-se em Fortalezinha, uma ilha localizada no arquipélago de

3 Un système gestuel peut s’établir efficacement lorsque les parents, se préoccupant du développement

cognitif de l’enfant et ne considérant pas la surdité comme un obstacle insurmontable, commencent à

utiliser, de façon spontanée et régulière, leur gestualité co-verbale associée aux gestes créés par l’enfant.

(...) Au fur et à mesure que l’enfant produit des gestes, son système gestuel passera par différentes étapes

de développement. L’évolution des signes crées et utilisés quotidiennement aboutira à un système gestuel

linguistiquement organisé. (FUSELLIER-SOUZA, 2001, p. 81)

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32

Maiandeua, município de Maracanã, no estado do Pará. Os recentes estudos de Chagas e

Neves (2016) apontam o raro fenômeno ocorrido nessa localidade, no qual um grupo de

surdos profundos congênitos criou um sistema gestual genuíno para comunicar-se entre

si e com os ouvintes de seu convívio, dando origem a uma língua de sinais emergente,

diferente da língua de sinais oficialmente reconhecida no país, a LIBRAS. No que tange

à funcionalidade dessa língua, as pesquisadoras ponderam que, numa primeira análise,

[...] a própria organização da sociedade e da cultura a que eles estão imersos

os faz não necessitar, recusar e descrer da “nova língua” (LIBRAS) que muitos

professores têm tentado ensinar, afinal de contas, a língua usada e falada por

eles sempre deu e dá conta de suas necessidades de interação entre si e com os

outros. (CHAGAS; NEVES, 2016, p. 30, grifo das autoras)

Compreender a história da LIBRAS é, também, apreender a maneira como ela se

constituiu através do tempo, pois é bem provável que línguas de sinais microcomunitárias

já existentes no Brasil antes de sua institucionalização, no século XIX, constituam a base

da LIBRAS que nós conhecemos hoje.

2.3 A institucionalização da língua de sinais no Brasil

A língua de sinais foi institucionalizada no Brasil no século XIX através da criação

da primeira escola para surdos na cidade do Rio de Janeiro. Em, 1857, a convite do

Imperador Dom Pedro II, o professor Ernest Huet4 veio ao Brasil e fundou o Imperial

Instituto dos Surdos-Mudos (atual INES), trazendo como base de ensino o modelo

educacional utilizado naquela época com os surdos na França.

Huet nasceu em Paris em 1822 e aos 12 anos ficou surdo. Estudou no Instituto dos

Surdos-Mudos de Paris, atual INJS (Institut National des Jeunes Sourds) e, mais tarde, se

tornou professor. Nos séculos XIX e XX, muitos professores formados no INJS partiram

para diversos países com a finalidade de difundir o método francês de educação de surdos

baseado no uso da língua de sinais.

4 Existem controvérsias quanto ao primeiro nome de Huet tendo em vista que sua assinatura em documentos

arquivados apresentava a abreviação de seu primeiro nome (E. Huet). Em todo caso, há duas referências

mais recorrentes sobre o nome do professor: Ernest Huet ou Edouard Huet.

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Segundo Perlin (2002), Huet teria desenvolvido no Brasil o mesmo método de

ensino usado pelo abade L’Eppé no Instituto dos Surdos de Paris, os “Sinais Metódicos”,

que combinava a língua de sinais com a gramática da língua francesa. Dessa maneira,

Huet teria introduzido no Rio de Janeiro os sinais da Língua de Sinais Francesa (LSF)

praticada em Paris no século XIX. Isso pode ser observado na obra “Iconographia dos

Signaes dos Surdos-Mudos”, publicada em 1873 por Flausino José da Gama, um

estudante brasileiro do Imperial Instituto dos Surdos-Mudos. Considerada a

documentação mais importante sobre a história da LIBRAS, ela apresenta sinais

classificados por categorias através de ilustrações desenhadas pelo próprio autor. Este,

teria se inspirado na obra “Iconicité des signes” de Pierre Pelissier (1856)5.

Ao considerarmos o modelo da semiogênese das línguas de sinais e a existência

de uma língua de sinais microcomunitária já praticada pela comunidade surda local,

acreditamos que muitos sinais já praticados pelos surdos brasileiros foram incorporados

à língua de sinais ensinada por Huet. Dessa maneira, apesar da influência da LSF sobre a

LIBRAS, especialmente na cidade do Rio de Janeiro, ambas as línguas evoluíram e

incorporaram novos sinais, tornando-se completamente diferentes nos dias de hoje.

A esse respeito, muitas pessoas questionam se a LS é universal e, ao tomarem

conhecimento de que cada país tem sua própria LS, ainda questionam o porquê dessa

diversidade, supondo que se houvesse uma única LS, a comunicação com e entre os

surdos seria mais fácil. Portanto, cabe salientar que, assim como as línguas áudio-orais,

as línguas de sinais apresentam suas especificidades linguísticas e seus traços culturais,

além de variações e regionalismos que representam a marca de uma identidade nas

diferentes localidades em que são praticadas, de modo que a convenção de uma única LS

a ser praticada por todos os surdos no mundo seria impossível.

Entretanto, podemos mencionar o Gestuno, língua de sinais internacional

difundida pela Federação Mundial de Surdos6 no ano de 1951. Em 1975, a Federação

Mundial de Surdos publicou um livro em inglês sobre o Gestuno contendo

aproximadamente 1500 sinais internacionais. Por não possuir uma gramática específica,

5 Pierre Pelissier (1814 – 1863) foi um surdo francês, escritor, poeta e professor. Lecionou no Instituto dos

Surdos de Paris por 20 anos e ficou conhecido como o maior poeta surdo. 6 A “World Federation of the Deaf” – WFD (ou Federação Mundial de Surdos) é o órgão de representação

máxima das comunidades Surdas em âmbito internacional. Com 130 países representados, a organização

luta pelos direitos dos Surdos de todo o mundo, também cumprindo funções consultivas em órgãos como a

ONU, Unesco e OMS. Site oficial: http://www.wfdeaf.org (Fonte:

http://culturasurda.net/2012/09/05/world-federation-of-the-deaf/).

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para muitos pesquisadores o Gestuno não pode ser considerado uma língua, mas sim uma

linguagem gestual auxiliar. Seu uso é bastante recorrente em congressos e encontros

internacionais de surdos.

As pesquisas sobre a história e a evolução da LIBRAS são, ainda, pouco

numerosas. Na verdade, descrever a evolução da LIBRAS é um grande desafio devido a

extensão territorial brasileira e às numerosas comunidades de surdos localizadas nas

diferentes regiões. Assim como a Língua Portuguesa, a LIBRAS apresenta regionalismos

e variações lexicais em suas diversas comunidades.

O primeiro dicionário de LIBRAS foi publicado em 1986 por Eugênio Oates, um

missionário americano que atuou na evangelização de surdos em vários estados

brasileiros. Intitulada “Linguagem das mãos”, essa obra apresenta 1300 sinais dos quais,

segundo Ferreira Brito (1993), apenas 50% é reconhecido pela comunidade surda.

Nas décadas seguintes, outros dicionários surgiram, mas as obras mais

importantes e mais completas foram publicadas em 2001 sob a direção do professor

Fernando Capovilla: o “Dicionário Enciclopédico Ilustrado da LIBRAS”, um dicionário

trilíngue (LIBRAS, inglês e Signwriting) em dois volumes; e a “Enciclopédia da Língua

de Sinais Brasileira: o mundo do surdo em LIBRAS”, contendo 19 volumes e 3 CD-

ROMs.

É importante mencionarmos, também, dois importantes dicionários produzidos

em CD-ROM, com distribuição gratuita: o “Dicionário de LIBRAS ilustrado” (2000),

realizado pelo Governo do Estado de São Paulo e o “Dicionário LIBRAS/Português”

(2002) realizado pelo INES e pelo Ministério da Educação, disponível também no site do

INES. Essas e outras obras tem um papel fundamental na difusão da LIBRAS não

somente nas comunidades surdas, mas também entre o público ouvinte que passa a ter

cada vez mais contato com essa língua viso-gestual.

Além desses relevantes dicionários, vimos, nos últimos anos, um expressivo

aumento da difusão da LIBRAS e de outras LSs por meio da Internet. Além de cursos de

LS disponíveis on-line, existem sites informativos com conteúdo inteiramente em LS ou

bilíngues (LS e língua áudio-oral) como, por exemplo, TV INES7 (http://tvines.com.br/),

7 TV INES é a primeira WebTV em LIBRAS, com legendas e locução em português, resultante de uma

parceria entre o Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES) e a Associação de Comunicação

Educativa Roquette-Pinto (ACERP).

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no Brasil; L’oeil et la main8 (http://www.france5.fr/emissions/l-oeil-et-la-main), na

França; entre outros. Essa propagação das LSs por meio da Internet tem permitido não

somente seu aprendizado e aprimoramento, mas também o acesso adaptado do surdo à

informação e o contato com/entre as comunidades surdas no mundo, beneficiando tanto

o surdo quanto o ouvinte interessado em aprender sobre essas línguas e essas culturas.

Todavia, o reconhecimento e o uso recorrente das LSs é algo relativamente

recente, especialmente no tocante à educação dos surdos. Ao longo do tempo, diferentes

filosofias educacionais determinaram a forma como o surdo deveria aprender e cada uma

delas entendia o uso das línguas de sinais de forma diferente, como veremos no tópico

seguinte.

2.4 As principais filosofias educacionais para surdos: Oralismo, Comunicação

Total e Bilinguismo

Na história da educação dos surdos podemos distinguir três filosofias educacionais

principais: o Oralismo, a Comunicação Total e o Bilinguismo.

Os primeiros relatos sobre a educação dos surdos datam do século XVI. Nesse

período, surgiu, na Espanha, o Oralismo a partir das experiências do monge beneditino

Pedro Ponce de León (1520 – 1584) com jovens surdos. Em sua metodologia de ensino,

Ponce de León teria desenvolvido um alfabeto manual, utilizado na prática da datilologia.

Esta consiste na representação das letras do alfabeto por meio das mãos, podendo ser

bimanual ou unimanual9. Assim, os educandos surdos eram ensinados a ler, escrever e

oralizar por meio da soletração manual das palavras, letra por letra.

Em 1620, aproveitando o trabalho iniciado por Ponce de León, o educador

espanhol Juan Pablo de Bonet10 publicou o importante livro “Reducción de las letras y

8 L’oeil et la main é um programa televisivo francófono bilíngue (LSF e francês) transmitido pela emissora

de TV France 5. Seu site na internet permite o acesso a todos os programas já transmitidos, além de conter

informações e links de instituições relacionadas à surdez, divulgar eventos sobre a comunidade surda e

possibilitar discussões em fóruns. 9 A datilologia bimanual consiste na classificação dos caracteres nas distintas falanges e juntas da mão

passiva (geralmente a esquerda), usando-se o indicador da outra mão (dominante) como ponteiro

sinalizador. Ela é utilizada em alguns países, como Reino Unido, Austrália, África do Sul, entre outros

(Vide ANEXO 13). Na datilologia unimanual, a mão dominante (geralmente a direita) representa

graficamente as letras impressas do alfabeto latino (Vide ANEXO 14). 10 Alguns historiadores apresentam Juan Pablo de Bonet como padre, outros, como educador. Em todo

caso, há um consenso quanto a seu pioneirismo na educação dos surdos.

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artes para enseñar a hablar a los mudos”, no qual apresentava um alfabeto unimanual.

Sua obra, considerada o primeiro tratado moderno de fonética e fonologia, constituiu a

base de um modelo teórico para a educação dos surdos, o qual utilizava os sinais do

alfabeto manual para o ensino da língua áudio-oral. Essa corrente ganhou força na França

no século XVIII, através dos trabalhos de Jacob Rodrigues Pereire e, na Alemanha, com

Samuel Heinick.

O Oralismo enquanto filosofia educacional consiste na rejeição total do uso da

língua de sinais, privilegiando somente o ensino da (e por meio da) língua áudio-oral.

Segundo Goldfeld, considerando o caso do surdo brasileiro,

O Oralismo percebe a surdez como uma deficiência que deve ser minimizada

pela estimulação auditiva. Essa estimulação possibilitaria a aprendizagem da

língua portuguesa e levaria a criança surda a integrar-se na comunidade ouvinte

e desenvolver uma personalidade como a de um ouvinte. Ou seja, o objetivo

do Oralismo é fazer uma reabilitação da criança surda em direção à

normalidade, à “não surdez”. (GOLDFELD, 1997, p. 34, grifo da autora)

Nessa proposta de ensino, diversos recursos são utilizados a fim de que o surdo se

aproxime da “normalidade” e se torne oralizado. Entende-se como surdo oralizado aquele

que se comunica através da língua áudio-oral nas modalidades oral (fala) e oro-facial

(leitura labial). Dentre esses recursos e terapias utilizados no desenvolvimento da

oralização, podemos mencionar as sessões especializadas com fonoaudiólogos, o

treinamento para a proficiência em leitura labial, o uso de aparelhos auditivos ou

auriculares (no caso de surdos não profundos), o implante coclear, entre outros.

Embora o aprendizado da oralização ocorra de forma sistemática e não natural,

essa filosofia educacional determina que a LS deve ser banida mesmo fora do ambiente

educacional e terapêutico, inclusive nas relações familiares e nas interações entre surdos.

A ilustração seguinte demonstra dois tipos de comunicação entre surdos. A primeira

imagem apresenta dois surdos comunicando-se por meio da LS, enquanto a segunda

ilustra dois surdos comunicando-se através da língua áudio-oral.

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Figura 3 - Comunicação entre surdos

Fonte: Secretaria Nacional de Justiça, 2009, p.8

Nota-se que, na segunda imagem, os surdos que interagem em língua áudio-oral

utilizam um aparelho auditivo, ou seja, trata-se de surdos não profundos. Contudo, a

pedagogia oralista determina que mesmo os surdos profundos devem se comunicar dessa

maneira.

Apesar de não ser considerada uma filosofia educacional para surdos, cabe

mencionarmos uma importante corrente de ensino que surgiu na França, no século XVIII,

a partir das experiências do abade Charles Michel de l'Epée (1712 – 1789), o Gestualismo.

L’Epée, considerado o “pai dos surdos”, foi o primeiro preceptor na França a reconhecer

a linguagem gestual praticada por esses indivíduos, desenvolvendo um método de ensino

chamado “sinais metódicos”. Seu método de ensino baseado em gestos e códigos manuais

teve grande repercussão. Porém, l’Epée não inventou a língua de sinais, mas um conjunto

de gestos relacionados à estrutura da língua francesa, diferentes dos sinais praticados pela

comunidade surda naquela época. Sua grande importância na educação dos surdos

consiste no agrupamento dos surdos que sua instituição proporcionou, em sua defesa pelo

ensino através da comunicação gestual e em suas demonstrações públicas com os surdos

de seu instituto, através das quais pôde atestar que o surdo é tão inteligente e capaz quanto

o ouvinte.

Mais tarde, Auguste Bébian (1789 – 1839), um pedagogo francês defensor do

ensino por meio dos sinais, aperfeiçoou a estrutura dessa linguagem gestual publicando,

em 1825, um importante ensaio sobre a escrita dos sinais: “Mimographie, ou Essai

d'écriture mimique propre à régulariser le langage des sourds-muets”. Posteriormente, em

um ensaio direcionado ao Institut Royal des Sourds-Muets de Paris, Bébian faz duras

críticas às práticas oralistas desenvolvidas no instituto, afirmando ser “[...] absurdo,

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ridículo, tirânico, querer basear o ensino aos surdos-mudos na fala; escolher diretamente

a faculdade que lhes falta como principal instrumento de sua instrução” (BÉBIAN, 1834,

p.16, tradução nossa)11.

Durante os séculos XVIII e XIX, o Oralismo e as abordagens gestualistas foram

utilizados na instrução dos surdos em diversos países da Europa e, paralelamente, muito

se discutia sobre qual das duas correntes seria mais apropriada para sua educação. Em

1880, tais discussões tomaram força durante um evento que marcou a história da educação

dos surdos em todo o mundo, o conhecido Congresso de Milão. Com a participação de

educadores de surdos de diversos países, houve uma votação nesse congresso

internacional, a qual determinou que a filosofia oralista seria a melhor maneira de se

instruir o surdo e que, a partir de então, a língua de sinais deveria ser abolida de todas as

instituições de ensino, passando-se à adoção do oralismo puro como filosofia

educacional. É importante salientarmos que os surdos presentes nesse congresso foram

privados de votar.

Dessa maneira, o oralismo puro, sem o uso de qualquer sistema gestual, passou a

predominar nas instituições de ensino de todo o mundo durante um longo período que

ficou conhecido como os “cem anos de silêncio”.

Em 1960, o linguista americano William Stokoe publicou a obra “Sign Language

Structure: An Outline of the Visual Communication System of the American Deaf”, que

apresenta a língua de sinais utilizada nos Estados Unidos, a American Sign Language –

ASL, como uma língua estruturada assim como uma língua áudio-oral. A partir dessa

publicação, várias pesquisas sobre a estrutura das línguas de sinais se desenvolveram e

sua utilização na educação dos surdos começou a ser vista de forma positiva. Assim,

muitos educadores insatisfeitos com os resultados da filosofia oralista passaram a rejeitar

a oralização e a utilizar os sinais em suas classes com surdos.

Em 1967, em meio a um contexto conflitante entre a oralização e o uso da LS,

surgiu, nos Estados Unidos, uma nova filosofia educacional denominada por Roy

Holcomb Comunicação Total. Caracterizada pela combinação de todos os meios que

permitam a comunicação entre / com surdos (sinais, gestos, mímica, datilologia, leitura

labial, etc.), a Comunicação Total privilegia a interação e não o canal de comunicação

11 « Il est absurde, ridicule, tyrannique, de vouloir baser l’enseignement des sourds-muets sur la parole ; de

choisir directement la faculté qui leur manque pour principal instrument de leur instruction. » (BÉBIAN,

1834, p. 16)

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adotado. Essa corrente foi muito difundida nos Estados Unidos, especialmente na

Universidade Gallaudet, maior referência do país na educação de surdos.

Apesar de seu grande sucesso inicial, muitos especialistas a criticaram, pois sua

prática permite o uso simultâneo dos códigos manuais e da produção oral, gerando uma

espécie de “língua oral sinalizada” (ou, como é chamada no Brasil, o “português

sinalizado”), conhecida também como bimodalismo.

O bimodalismo não é uma filosofia educacional, mas uma técnica que consiste na

produção de sinais e códigos manuais dentro da estrutura da língua áudio-oral, gerando

uma produção gestual artificial. Refletindo sobre essa prática na educação dos surdos na

França, Bouvet (2004) pontua que

O francês sinalizado não permite à criança surda entrar em uma manipulação

coerente: a sintaxe de uma língua que se desenrole apenas no tempo linear das

produções acústicas só pode ser bem diferente daquela de uma língua que se

desenrola não somente no tempo, mas também no espaço das produções

sinalizadas. Ao produzir sinais na ordem das palavras da língua áudio-oral,

esses perdem suas variações flexionais ligadas à lógica de uma sintaxe

estabelecida na modalidade espacial. (BOUVET, 2004, p. 77, tradução

nossa)12

Também em discordância com as práticas dessa filosofia educacional, Santana

(2007) comenta que

A comunicação total parece ser do tipo “vale tudo”. Assim não se questiona o

papel da linguagem oral, tampouco o da língua de sinais nesse contexto. Criou-

se uma língua “artificial” com o objetivo de ensinar a gramática da língua

falada ao surdo, como se a língua fosse um processo individual, e não social.

Como se pudesse ser “ensinada” como uma categoria sintática à parte das

outras funções linguísticas. (SANTANA, 2007, p.182)

Em concordância com Marchesi (1987), acreditamos que a Comunicação Total é

uma prática que favorece muito mais os pais e os professores ouvintes do que os próprios

educandos surdos. Se por um lado, ela possibilita a comunicação entre o surdo e o ouvinte,

por outro lado, ela não valoriza a língua de sinais, nem a cultura surda e, por essa razão,

não seria a forma mais adequada a ser empregada em sua educação.

12 Le français signé ne permet pas à l’enfant d’entrer dans une manipulation cohérente : la syntaxe d’une

langue qui se déroule dans le seul temps linéaire des productions acoustiques ne peut être que très différente

de celle d’une langue se déroulant dans le temps mais aussi dans l’espace de productions signées. En

produisant les signes dans l’ordre des mots de la langue vocale, ceux-ci perdent leurs variations

flexionnelles liées à la logique d’une syntaxe établie dans la modalité spatiale. (BOUVET, 2004, p. 77).

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Apesar disso, ao pensarmos na realidade da inserção do surdo em uma escola

regular, ou seja, não especializada, sabemos que esta nem sempre está devidamente

preparada com um quadro de profissionais formados para atendê-lo de forma adaptada.

Por isso, entendemos que o uso da Comunicação Total, apesar de seus inconvenientes,

pode ser uma alavanca inicial no trabalho de integração e de ensino a esse educando, pois,

nessa perspectiva, ela representa uma alternativa imediata a uma necessidade urgente de

comunicação. Diante de necessidades urgentes é preciso alternativas imediatas. Porém,

faz-se necessário um esforço por parte da instituição, no sentido de proporcionar a seus

educadores e demais profissionais o acesso ao aprendizado da LS, além da sua

capacitação pedagógica para que possam atuar junto a esse educando.

A partir dos anos 1970, movimentos de surdos em favor da língua de sinais

começaram a surgir em diversos países. Associações de surdos foram criadas favorecendo

o ajuntamento desses indivíduos que, até então, estavam separados sócio-culturalmente.

Estudos sobre o uso da língua de sinais na educação de surdos começaram a ser

desenvolvidos na França, na Inglaterra e na Suécia.

Nesse período, Danièlle Bouvet, fonoaudióloga francesa, pedagoga e

pesquisadora especialista na educação de surdos, desenvolveu as primeiras pesquisas

sobre a educação bilíngue dos surdos, defendendo o uso da língua de sinais

separadamente da língua áudio-oral. Segundo Mottez (1994), no final dos anos 1970,

Bouvet, juntamente com a professora surda Marie-Thérèse Abbou, realizou a primeira

classe bilíngue para surdos em Paris, na qual a LSF era ensinada aos surdos como língua

materna e a Língua Francesa como segunda língua. Tal classe recebeu muitas visitas e

observações de especialistas que, de forma entusiasta, percebiam que essa forma de se

ensinar era benéfica para o surdo. A partir de então, outras classes bilíngues foram

surgindo nas instituições de ensino francesas.

É nesse contexto “de insatisfação dos surdos com a proibição da língua de sinais

e a mobilização de diversas comunidades em prol do uso dessa língua, aliado aos estudos

linguísticos e comprovando o status das línguas de sinais enquanto verdadeiramente uma

língua” (GOLDFELD, 1997, p.108) que surge o Bilinguismo enquanto filosofia

educacional para o público surdo.

Para os defensores do Bilinguismo, essa proposta vai além da concepção de que o

indivíduo surdo deve receber uma educação bilíngue. Para eles, o surdo é percebido sob

uma perspectiva sócio-cultural e política, como praticante de uma língua viso-gestual e

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participante de uma comunidade com uma cultura própria, e tudo isso deve ser respeitado

e valorizado.

Em uma proposta de ensino bilíngue, a criança surda tem o acesso ao aprendizado

por meio da LS, a L1 do educando. Esta exerce o papel de língua de comunicação e de

ensino, e é por meio dela que o educando aprendera, também a língua portuguesa, além

das outras disciplinas contidas no currículo escolar. Corroborando essa ideia, Quadros

ressalta que

Se a língua de sinais é uma língua natural adquirida de forma espontânea pela

pessoa surda em contato com pessoas que usam essa língua e se a língua oral

é adquirida de forma sistematizada, então as pessoas surdas têm o direito de

ser ensinadas na língua de sinais. A proposta bilíngue busca captar esse direito.

(QUADROS, 1997, p.27)

2.4.1 A três filosofias educacionais para surdos no Brasil – um breve relato

No Brasil, a língua de sinais era utilizada no INES desde sua fundação, em 1857.

Porém, em 1911, o INES passou a seguir a tendência educacional oralista adotada em

diversos países após o Congresso de Milão, realizado em 1880. Assim, o oralismo puro

foi adotado no ensino de todas as disciplinas do currículo do instituto. Tal decisão

acarretou uma lentidão na progressão escolar dos educandos que, devido à ausência de

uma língua comum com seus professores, tinham dificuldades na compreensão dos

conteúdos. Como pontua Goldfeld (1997) sobre o ensino no INES,

No período oralista, as crianças cursavam obrigatoriamente dois anos para

cada série escolar, quando não havia repetência. Todos sabem que a criança

surda não possui nenhuma outra deficiência ou patologia, não sofre nenhum

tipo de retardo mental ou dificuldade de aprendizagem específica como a

dislexia. Logicamente, o que ocorria é que sem uma língua em comum entre o

professor e aluno não havia como transmitir o conteúdo escolar, o que levava

a uma grande demora e baixa de qualidade na escolarização. (GOLDFELD,

1997, p.99)

Para a autora, esse baixo rendimento dos educandos surdos era consequência do

foco majoritário na oralização, mais do que na própria transmissão dos conteúdos, além

de uma baixa expectativa por parte dos professores quanto à capacidade do surdo de

aprender.

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Nos anos 1970, a Comunicação Total chegou ao Brasil através da visita de Ivete

Vasconcelos, educadora de surdos da Univesidade Gallaudet, nos Estados Unidos.

Segundo Goldfeld (op. cit.), a Comunicação Total no Brasil pode combinar a LIBRAS, a

datilologia, o cued-speech (código constituído de sinais manuais que representam os sons

da língua áudio-oral e auxiliam a leitura labial), o português sinalizado (uso do léxico da

LIBRAS na estrutura sintática do português) e o pidging (simplificação da gramática das

duas línguas em contato: a LIBRAS e o português). Essas combinações podem variar de

acordo com os conhecimentos dos interlocutores.

O Bilinguismo começou a ser adotado em algumas instituições de ensino

brasileiras nos anos 1990. Essa filosofia educacional contribuiu para a revalorização da

língua de sinais, destacando sua importância para o desenvolvimento cognitivo e social

da criança surda. Através do ensino bilíngue, o surdo brasileiro passa a ter acesso ao

aprendizado da LIBRAS e do português ao longo de todo seu percurso escolar, podendo

utilizá-los nas interações da vida cotidiana de acordo com seus interlocutores.

Com efeito, essas diferentes filosofias educacionais nos permitem observar não

somente as variadas possibilidades de se instruir o surdo, mas principalmente, as

diferentes formas como a surdez, o indivíduo surdo e sua língua são percebidos.

No Oralismo, a surdez é considerada de um ponto de vista clínico, como uma

deficiência que deve ser superada através do estímulo auditivo, a fim de que o indivíduo

surdo consiga se integrar na comunidade ouvinte como se fosse um ouvinte.

Na Comunicação Total, a surdez não é concebida como uma patologia clínica,

mas como uma característica do indivíduo que influenciará suas relações sociais e seu

desenvolvimento cognitivo e afetivo (Ciccone, 1990). Seu foco principal está na

comunicação entre o ouvinte e o surdo e, para isso, todos os meios possíveis podem ser

utilizados.

Para os especialistas do Bilinguismo, a surdez é percebida do ponto de vista social,

cultural, político e linguístico, sendo uma particularidade fundamental na identidade do

indivíduo surdo. Este faz parte de uma comunidade minoritária que tem sua própria língua

e sua cultura e, ao mesmo tempo, está inserido em uma comunidade majoritária ouvinte

sem ter, contudo, a obrigação de viver e agir como os ouvintes. Essa concepção de ensino

é pautada, sobretudo, na surdez enquanto diferença, ao invés de deficiência, envolvendo

concepções ideológicas e políticas que norteiam os atuais movimentos da comunidade

surda em prol de sua emancipação.

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43

Por certo, essas três filosofias educacionais tiveram sua importância na história da

educação dos surdos no Brasil e no mundo e, embora a tendência atual seja o Bilinguismo,

todas elas ainda são utilizadas nos dias de hoje em diversos países.

2.5 O bilinguismo do surdo e a educação bilíngue

Em nossa investigação, utilizamos o termo bilinguismo aplicado a duas vertentes

diferentes. A primeira, como vimos no tópico anterior, diz respeito a uma filosofia

educacional voltada para a instrução do público surdo, na qual leva-se em conta suas

especificidades linguísticas, valorizando-se a língua de sinais e a cultura surda. A segunda

vertente, refere-se ao indivíduo, àquele que faz uso de duas ou mais línguas, sejam elas

áudio-orais ou viso-gestuais, como veremos mais detalhadamente a seguir.

Existem diversas definições para o termo bilinguismo aplicado ao indivíduo. Suas

variáveis podem ser bastante complexas, de modo que a delimitação de um conceito

preciso é essencial para determinarmos o caso específico dos surdos, ponto crucial em

nosso estudo. Conforme Mello (1999),

Para muitas pessoas, o bilinguismo é uma exceção e o falar bilíngue é

frequentemente, associado à noção de perfeição, ou seja, bilíngue seria uma

espécie rara que fala, lê, escreve e compreende duas ou mais línguas de

maneira igualmente fluente, sem sotaque e sem quaisquer outros traços que

permitam distingui-lo do monolíngue, quando fala uma de suas línguas. No

entanto, a realidade não é bem assim: estima-se que o bilinguismo está presente

em quase todas as nações do mundo, em todas as classes sociais e em todas as

faixas etárias e sua aquisição ocorre em diferentes fases da vida. (MELLO,

1999, p.18)

As primeiras definições de bilinguismo difundidas no século XX tinham tendência

a restringi-lo ao domínio pleno de duas línguas por um indivíduo como se este fosse um

usuário nativo de ambas, como precisou Bloomfield (1935). Em oposição à essa ideia,

Macnamara (1967), definiu o indivíduo bilíngue como aquele que possui uma

competência mínima em ao menos uma das quatro habilidades linguísticas, a saber,

compreensão oral e escrita, e produção oral e escrita, em uma língua diferente de sua

língua materna.

A partir dos estudos da sociolinguística, desenvolvidos especialmente a partir da

década de 1960, essas concepções foram se modificando. Passou-se a considerar não

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somente os interlocutores e suas competências linguísticas, mas também os usos das

línguas em questão e o contexto social no qual as interações ocorrem.

Em concordância com Grosjean (2004), entendemos que conceber como bilíngues

unicamente aqueles que poderiam se passar por monolíngues em duas (ou mais) línguas

é, na prática, uma visão pouco realista que deixaria de englobar muitos indivíduos que

fazem uso diário de duas ou mais línguas sem, contudo, dominá-las igualmente nas

diferentes habilidades de compreensão e de produção. Para o autor, o bilinguismo está

relacionado ao uso e não ao domínio das línguas, definindo, assim, como bilíngue aquele

que utiliza duas ou mais línguas (ou dialetos) nas suas interações sociais cotidianas.

Essa prática pode ser observada no caso do indivíduo surdo que interage

diariamente nas comunidades surda e ouvinte por meio da LS e da língua áudio-oral,

especialmente na modalidade escrita. Nesses contextos, o domínio dessas línguas não é

necessariamente “perfeito” em todas as competências de comunicação, podendo

apresentar variações, desenvolver-se em diferentes níveis, nas diferentes modalidades que

serão utilizadas de acordo com as necessidades do surdo face a seu interlocutor surdo ou

ouvinte.

Cabe ressaltarmos que o bilinguismo do surdo deve ser visto de forma diferente

dos outros tipos de bilinguismo por duas razões principais. Em primeiro lugar, como foi

mencionado, por seu caráter bimodal, ou seja, pelas diferentes modalidades de língua que

ele veicula, sendo uma viso-gestual e a outra áudio-oral. Em segundo lugar, por tratar-se

de um bilinguismo de minorias no qual sua língua materna, a LS, é a língua minoritária,

não predominante no local onde ele vive; e a língua áudio-oral é a língua majoritária, que

ele utiliza na forma escrita e, em alguns casos, na forma oral.

Vonen (1996) propôs o termo “bilinguismo surdo” para definir esse caso

específico de bilinguismo. Para o autor, além de ser bimodal, o bilinguismo surdo

caracteriza-se pela impossibilidade do acesso direto e natural do surdo à modalidade

áudio-oral. Burgat (2009) relaciona, ainda, outras especificidades que caracterizam o

bilinguismo surdo: as línguas de sinais são línguas dominadas em relação à línguas áudio-

orais, notadamente, devido ao número de praticantes dessas línguas; o bilinguismo surdo

não possui um espaço geográfico determinado, assim, as línguas de sinais são

consideradas línguas sem território; as línguas de sinais não tem registro escrito; para uma

grande maioria dos surdos, a língua de sinais não é praticada no meio familiar. Posto tudo

isso, como, na prática, o surdo se torna bilíngue?

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Ao longo de sua vida, o indivíduo surdo poderá ter acesso à LS e à língua áudio-

oral de maneiras diversas em função de fatores como o seu grau de surdez, o contexto no

qual ele vive (família de ouvintes, mista ou de surdos), a existência ou não de contato

com a comunidade surda local e a língua de comunicação e de educação escolhidas por

seus pais.

Fernandes aborda a condição da surdez, ressaltando que

[...] embora brasileiras, as crianças surdas necessitam de uma modalidade

linguística que atenda as suas necessidades visuais espaciais de aprendizagem,

o que significa ter acesso à Libras, assim que for diagnosticada a surdez, para

suprir as lacunas que a oralidade não preenche em seu processo de

desenvolvimento da linguagem e conhecimento de mundo. Essa situação

configura o bilinguismo dos surdos brasileiros: aprender a língua de sinais,

como primeira língua, preferencialmente de zero a três anos, seguida do

aprendizado do português, como segunda língua (FERNANDES, 2007, p.2).

Outros estudiosos concordam que o aprendizado precoce da LS é essencial para o

desenvolvimento cognitivo da criança surda. Os trabalhos de Petitto e Marentette (1991)

apontam que o balbucio manual do bebê surdo acontece naturalmente, de forma

semelhante ao balbucio oral do bebê ouvinte. Ambos poderão evoluir de acordo com os

estímulos, o input proporcionado pela família, seja ela surda ou ouvinte, favorecendo,

assim, o desenvolvimento de uma LS ou de uma língua áudio-oral.

Entretanto, observamos que, diferentemente da aquisição natural das línguas

áudio-orais pelos ouvintes, raramente as LSs são transmitidas de uma geração a outra

pois, como vimos anteriormente, a maioria dos surdos nascem de pais ouvintes, não

praticantes da LS. Soares chama a atenção para essa realidade levantando a seguinte

questão:

Como uma criança surda, filha de pais ouvintes que nunca viram a língua de

sinais, não conhecem pessoas surdas e nem imaginam o que fazer para

comunicarem-se com seu filho, vai adquirir uma primeira língua? Esse é um

grande obstáculo para o desenvolvimento psicossocial da criança surda e para

o ensino eficiente da língua portuguesa, pois a criança nem sequer nasce em

um ambiente que favoreça o desenvolvimento de sua primeira língua, no caso

do Brasil, a LIBRAS. Nota-se que não é um problema da criança por ela ser

surda, mas um problema social que pode gerar consequências irreversíveis no

desenvolvimento da criança caso não seja oferecido a ela o direito de ter acesso

à aquisição de uma língua de forma natural. (SOARES, 1997, p.29-31)

Muitos pesquisadores concordam que, caso a criança surda não tenha acesso à LS

nos seus primeiros anos de vida, seu desenvolvimento cognitivo e psicossocial pode estar

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comprometido. Mas para outros, tal situação pode ser remediada desde que essa criança

tenha tido contato com algum sistema gestual de comunicação, o que lhe permitiria o

acesso à internalização de conceitos, ainda que abstratos, semelhantemente à criança

surda que teve acesso precoce à LS. A esse respeito, Goldfeld ressalta que

A dificuldade ao acesso a uma língua que seja oferecida natural e

constantemente leva a criança surda a um tipo de pensamento mais concreto,

já que é pelo diálogo e aquisição do sistema conceitual que ela pode se

desvincular cada vez mais do concreto, internalizando conceitos abstratos. A

aprendizagem tardia de uma língua, como é o caso de muitos que aprendem a

Libras na adolescência ou na fase adulta, não possibilita a reversão total desse

quadro. (GOLDFELD, 2002, p. 57)

A autora comenta, ainda, sobre as dificuldades cotidianas enfrentadas pelo surdo

em decorrência do atraso de linguagem, destacando que

Em todas as situações cotidianas, o surdo que não adquire uma língua se

encontra em dificuldade e não consegue perceber as relações e o contexto mais

amplo da atividade em que se encontra, já que para tal seria necessário que seu

pensamento fosse orientado pela linguagem. Hoje, sabe-se que estas

dificuldades cognitivas são decorrentes do atraso de linguagem, mas a

comunidade geral ainda não tem esta compreensão e em muitas situações ainda

percebe-se o surdo sendo tratado como um incapaz. (Ibidem, p.58)

Por essas razões, os especialistas bilinguismo enquanto filosofia educacional

defendem o acesso do surdo à língua de sinais como L1, a qual lhe garantirá o

desenvolvimento da linguagem e do pensamento; e à língua áudio-oral como L2, por meio

da qual ele poderá fazer valer seus direitos enquanto cidadão na comunidade majoritária

ouvinte.

Quanto aos surdos que adquirem a LS tardiamente, cabe observarmos que, graças

a sua sensibilidade ao aspecto visual, ele tem uma propensão a adquiri-la rápida e

naturalmente. Por conseguinte, mesmo nos casos em que o surdo tenha sido exposto,

primeiramente, à língua áudio-oral, é a LS que lhe trará maior confiança para comunicar-

se com maior desenvoltura e eficácia, o que configura que esta deve ser considerada sua

L1. Já na concepção de bilinguismo do surdo para Anne Mahé (2000), existe uma

distinção entre primeira língua e língua materna. Para a autora, a LS deve ser considerada

uma língua materna (LM) somente para 5% dos surdos, aqueles nascidos de pais surdos,

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pois haveria entre eles uma aquisição genuína da LS transmitida naturalmente de pais

para filho. Quanto aos 95% restante, a LS deve ser considerada sua primeira língua (L1),

ainda que o acesso ao aprendizado desta seja tardio. Em ambos os casos, a língua áudio-

oral reafirma-se como sua L2.

Diferentemente dessa aquisição espontânea, o aprendizado da língua áudio-oral

pelo surdo se dá em um processo longo e bastante complexo. De forma arbitrária e não

natural, o surdo só poderá aprender a língua escrita por meio de repetições e

sistematizações centradas nas regras gramaticais e na estrutura da língua. De acordo com

Quadros, “qualquer língua oral exigirá procedimentos sistemáticos e formais para ser

adquirida por uma pessoa surda” (QUADROS, 1997, p.67). Por essas razões, a autora

reafirma que a LS deve ser considerada a L1 do surdo, ao passo que a língua áudio-oral

será sua L2.

Paralelamente a essas particularidades individuais, Goldfeld (1997) destaca duas

diferentes maneiras possíveis para se adquirir a LS e a língua áudio-oral numa perspectiva

de ensino bilíngue. Na primeira, a criança surda deve adquirir a língua de sinais e a língua

áudio-oral na modalidade oral desde os primeiros anos de idade. Em função de seu

contexto econômico-social ela poderá ter o acompanhamento de um fonoaudiólogo e de

outros profissionais especializados. Mais tarde, essa criança acessa a escola onde é

alfabetizada na língua áudio-oral, aprendendo a escrita e aprimorando sua oralização. Na

segunda maneira, a criança adquire a língua de sinais e a língua áudio-oral somente na

modalidade escrita, não desenvolvendo a oralização.

Cabe ressaltarmos que nem todo surdo deseja oralizar. Em nossos encontros com

surdos adultos, tivemos a oportunidade de conhecer surdos brasileiros e franceses

bilíngues que se recusavam a “falar”. Estes, apesar de terem tido acesso ao

desenvolvimento da oralização e da leitura labial, concebiam a oralização como algo não

natural para o surdo e não se sentiam confortáveis em “falar”. Alguns nos relataram,

ainda, que a estranheza manifestada por certos ouvintes ao perceberem sua forma de

oralizar causava-lhes constrangimento.

Para muitos pesquisadores (Quadros, 1997; Sanches, 1993), a língua áudio-oral

na perspectiva da educação bilíngue deve ser adquirida somente na modalidade escrita,

pois o desenvolvimento da oralidade é um processo totalmente artificial para o surdo. A

esse respeito, Rocha-Coutinho pontua que

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Um deficiente auditivo não pode adquirir uma língua falada como língua nativa

porque ele não acesso a um sistema de monitoria que forneça um feedback

constante para sua fala. A língua falada sempre será um fenômeno estranho

para o surdo, nunca algo natural. Os deficientes auditivos, provavelmente

experimentam um grau considerável de ansiedade ao usar a língua oral porque

eles não têm nenhuma forma de controlar a propriedade técnica e social de sua

fala, exceto através de movimentos labiais e da relação de pessoas a sua fala.

O deficiente auditivo apesar de contar com expressões faciais e movimentos

corporais, não possui uma das fontes de informação mais rica da língua oral:

monitorar sua própria fala e elaborar sutilezas através da entonação, volume de

voz, etc. (ROCHA-COUTINHO, 1986, p.79-80)

Retomando nossa reflexão sobre os aspectos que uma proposta de ensino bilíngue

para surdos envolve, é importante observarmos, além das línguas em questão, as culturas

nas quais a criança surda está inserida. Quadros chama a atenção para essa realidade,

enfatizando que

A comunidade surda apresenta uma cultura própria que deve ser respeitada e

cultivada. Ao mesmo tempo, a comunidade ouvinte tem sua cultura. Por isso

uma proposta puramente bilíngue não é viável. Uma proposta educacional,

além de ser bilíngue, deve ser bicultural para permitir o acesso rápido e natural

da criança surda à comunidade ouvinte e para fazer com que ela se reconheça

como parte da comunidade surda. (QUADROS, 1997, p. 28)

A partir dessa reflexão tomamos as observações de Grosjean (2004) quanto à

situação linguística e cultural do surdo, segundo as quais, além de bilíngue, o surdo é,

também, um indivíduo bicultural. Existem várias definições para o termo “cultura”.

Segundo o autor, a cultura está relacionada a todos os aspectos da vida de um grupo como

a organização social e política, as regras, os comportamentos, as atitudes, as crenças, os

valores, os hábitos, as tradições, entre outros. Nessa perspectiva, todo indivíduo

pertenceria a um certo número de culturas ou de redes culturais, como as culturas maiores

(referentes à comunidade nacional, à comunidade linguística, à religião, etc.), e as culturas

menores (referentes ao trabalho, ao esporte, ao lazer, etc.).

Para o autor, os indivíduos podem ser considerados biculturais quando apresentam

três traços distintos: “eles participam da vida de duas ou várias culturas; se adaptam, ao

menos em parte, a essas culturas (no que se refere às atitudes, aos comportamentos, aos

valores, etc.); e combinam e sintetizam certos traços de cada uma delas” (GROSJEAN,

2004, p.65)13. Essas características podem ser observadas no caso do surdo que, ao

13 « [...] ils participent à la vie de deux ou plusieurs cultures, ils s’adaptent, du moins en partie, à ces cultures

(au niveau des atitudes, comportements, valeurs, etc.) et ils combinent et synthétisent certains traits de

chacune d’elles. » (GROSJEAN, 2004, p.65)

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envolver-se diariamente em situações dentro das comunidades surda e ouvinte, torna-se,

inevitavelmente, um indivíduo bicultural.

No próximo tópico, abordaremos a questão do trabalho pedagógico sobre o

bilinguismo e o biculturalismo do surdo a ser desenvolvido na escola a partir da

possibilidade do seu contato com professores não somente ouvintes, mas, também,

surdos.

2.6 O professor surdo e sua contribuição para a educação da criança surda

No que tange ao acesso precoce à LIBRAS e à cultura da comunidade surda,

Quadros (1997) aponta a importância da criança surda ter um modelo autêntico que só é

possível através de seu contato com adultos surdos. Porém, em muitos casos, esse contato

só acontece tardiamente, pois, como já foi mencionado sobre a incidência da surdez,

somente 5% das crianças surdas são filhas de pais surdos. Nesses casos, é importante que

os pais sejam orientados sobre a condição biológica do surdo e que se conscientizem de

que ele poderá não somente se comunicar através da LIBRAS, mas também desenvolver

plenamente suas capacidades cognitivas.

A presença de surdos adultos no contexto escolar da criança surda apresenta

grandes vantagens numa proposta de ensino bilíngue, pois ele se torna um modelo para

essa criança que passa a se identificar com essa comunidade. Para a autora (ibidem),

quando a criança chega na escola e é recebida por um membro de sua comunidade

cultural, social e linguística ela tem a chance de construir sua identidade enquanto surda.

Além disso, o contato com o adulto surdo lhe permitirá a aquisição espontânea e a

expansão de seus conhecimentos na língua que lhe é natural, a LS.

A esse respeito, mencionamos o trabalho da professora surda Mônica Lopes

Astuto Martins (2010) sobre a relação professor surdo / alunos surdos em sala de aula.

Para ela,

[...] um professor surdo, por possuir a especificidade de suas vivências, bem

como experiências comuns àquelas trazidas pelas crianças surdas, pode refletir

sobre as diferenças, captar as histórias de vida que se apresentam e se

comunicam com outras histórias (surdas e ouvintes), já que compartilha marcas

inerentes à singularidade da surdez, colaborando com a construção de seu

processo identitário como docente surdo. [...]. Assim, pode compreender que

se trata de um processo único e complexo, no qual nós nos apropriamos dos

sentidos da nossa história, de como reconhecemos e nos identificamos e de

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como somos reconhecidos no contexto social e educacional em que vivemos

ou trabalhamos como professores surdos. (MARTINS, 2010, p. 49)

Decerto, o contato da criança surda com adultos surdos no contexto escolar,

especialmente com professores surdos, pode resultar em muitos benefícios para seu

aprendizado. Em primeiro lugar, podemos destacar a cumplicidade que se estabelece na

relação educador/educando desde o primeiro contato, pois ambos compartilham a

situação da surdez. Em segundo lugar, por sua vivência na condição da surdez e, também,

por ser praticante da LS como L1, esse professor terá uma percepção similar a de seus

educandos surdos, podendo identificar elementos que causam dificuldades específicas ao

surdo, podendo, então, ativar estratégias de ensino autênticas que favorecerão a

aprendizagem. Em terceiro lugar, a presença do professor surdo na escola tem uma

importante representatividade no que se refere a sua inclusão profissional e social,

valorizando suas capacidades. E, finalmente, ressaltamos que o professor surdo

representa um elemento motivador e inspirador para o educando surdo, contribuindo para

a construção de sua identidade.

Por esse prisma, Mottez (1992) indaga sobre a existência de uma pedagogia surda.

Haveria uma forma de ensinar tipicamente surda? Os professores surdos seriam capazes

de transmitir certos conteúdos a educandos surdos de forma mais eficaz que os

professores ouvintes, ainda que estes dominem a LS? Existem conteúdos que somente um

surdo poderia transmitir de forma efetiva a seu semelhante? Para o sociólogo,

Qualificar certas habilidades como tipicamente surdas, não significa,

necessariamente, que estas faltem radicalmente aos ouvintes. Apenas parece

que, por funcionarem em outros termos e em outros contextos, os ouvintes não

as desenvolveram o bastante. Qualificar certas formas de atuação de

tipicamente surdas, não significa que os ouvintes não possam proceder

espontaneamente da mesma maneira ou a fortiori que eles não possam ser

inspirados por elas ou apropriar-se delas. Eles podem aprendê-las. Quando se

fala hoje em pedagogia sobre os interventores surdos, é bem verdade que

pensa-se, somente, naquela que os especialistas – ouvintes – deveriam lhes

ensinar para que se tonem bons educadores. É por isso que insisto sobre aquela

que eles também poderiam, talvez, ensinar aos ouvintes". (MOTTEZ de 1993

em 2006, p.175)14

14 Qualifer de typiquement sourdes certaines aptitudes, ne signifie pas nécessairement que celles-ci fassent

radicalement défaut aux entendants. Il se trouve seulement que, fonctionnant sous d’autres modalités et

d’autres contextes, les entendants ne les ont pas assez développées. Qualifier de typiquement sourdes

certaines façons de faire, ne signifie pas que les entendants ne puissent à l’occasion procéder spontanément

de la même manière ou a fortiori qu’ils ne puissent s’en inspirer ou se les approprier. Ils peuvent les

apprendre. Lorsqu’on parle aujourd’hui de pédagogie à propos des intervenants sourds, on ne pense il est

vrai qu’à celle que devraient leur enseigner des spécialistes – entendants - pour qu’ils deviennent de bons

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Trazendo um exemple prático, podemos mencionar nossa experiência no Institut

National des Jeunes Sourds (INJS) de Paris. No quadro de nossa pesquisa, tivemos a

oportunidade de realizar um estágio de observação no Centre de Promotion Sociale des

Adultes Sourds (CPSAS), um serviço do INJS criado em 1981, com o objetivo de

acompanhar as pessoas surdas, assim como alunos e ex-alunos do instituto em sua vida

sócio-profissional. Dentre os diversos serviços oferecidos pelo CPSAS (tradução e

interpretação, informação, cursos, etc.), pudemos acompanhar o curso de FLE

ministrados por professores surdos franceses a surdos adultos estrangeiros residentes em

Paris.

Nessas classes, compostas por surdos de variadas nacionalidades, as aulas de FLE

eram ministradas em LSF e, apesar de cada educando ter como L1 a LS de seu país, todos

conseguiam se comunicar com desenvoltura por meio da LSF. O fato de todos os

professores do CPSAS serem surdos, demonstrou, em nossa concepção, uma situação

extremamente favorável ao processo de ensino-aprendizagem por diversas razões. Por

compartilharem da mesma situação linguística e cultural, e por terem a mesma percepção

visual do mundo a sua volta, percebia-se: um elo de cumplicidade entre os professores e

os educandos; uma fluência e naturalidade tanto na maneira de comunicar os conteúdos

(por parte do professor), quanto na forma de expressar dúvidas e hesitações (por parte do

educando), proporcionando a intercompreensão; além de uma fluidez comunicacional

espontânea, que refletia na transmissão e na aquisição dos conteúdos. A partir dessas

observações, percebemos que a forma de ensinar do professor surdo é, de fato, diferente.

Inegavelmente, o professor surdo tem muito a contribuir para a área da educação

dos surdos. Sua especificidade linguística associada a sua vivência, a seus conhecimentos

socioculturais e a sua capacidade de atuação junto aos educandos surdos constituem uma

importante referência para a capacitação e o aperfeiçoamento das práticas do educador

ouvinte.

No Brasil, com as políticas públicas voltadas para a Educação Especial,

especialmente no que tange à educação do público surdo, percebe-se que o número de

profissionais surdos diplomados tem aumentado. E, graças à inserção obrigatória da

enseignants. C’est pourquoi j’insiste sur celle qu’ils pourraient peut-être, eux aussi, apprendre aux

entendants. » (Mottez, 1993 in 2006, p.175)

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LIBRAS por meio da presença do intérprete na educação básica e na educação superior,

o surdo passa a ter a possibilidade de se qualificar e de ocupar seu espaço no mercado de

trabalho, seja na área do ensino, seja em outras áreas de atuação. E por meio de sua

atuação, ele poderá trazer importantes contribuições tanto para seus pares surdos, quanto

para os ouvintes, como veremos no próximo capítulo.

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3 POLÍTICAS EDUCACIONAIS NA EDUCAÇÃO ESPECIAL NO BRASIL

Nas últimas décadas, a preocupação com a inclusão social e a educação das

pessoas portadoras de necessidades especiais tem mobilizado debates e ações políticas,

sociais, culturais e educacionais em todo o mundo, no intuito de erradicar práticas

discriminatórias e promover a integração. Tais debates têm se intensificado em diversos

países e gerado ações e investimentos voltados para a promoção da “Educação para

Todos” (EPT). A EPT constitui um compromisso internacional estabelecido em Dakar,

no ano de 2000, durante a reunião da Cúpula Mundial de Educação, na qual 164 governos

firmaram um Marco de Ação para promover, no espaço de quinze anos, ações que

viabilizem uma educação satisfatória para crianças, jovens e adultos, atendendo a suas

necessidades básicas de aprendizagem, incluindo o aprender a aprender, a fazer, a

conviver e a ser.

Segundo a UNESCO, responsável por coordenar as ações promovidas a partir do

Marco de Dakar, o Brasil está entre os 53 países que, até 2015, ainda não atingiram os

objetivos do Educação para Todos. Apesar disso, ocorreram grandes avanços nas duas

últimas décadas no campo da Educação Básica e, especialmente, da Educação Especial.

Tais avanços são de importante relevância para a sociedade, pois o número de pessoas

portadoras de necessidades abrange uma expressiva parcela da população.

De acordo com os dados do Censo demográfico de 2010, realizado pelo IBGE, as

pessoas com necessidades especiais correspondem a 24% da população brasileira, dentre

as quais figuram indivíduos cegos, surdos, portadores de deficiência física e de

deficiência mental, conforme podemos observar na ilustração abaixo.

Figura 4 - População brasileira portadora de deficiência

Fonte: http://www.crianca.mppr.mp.br/modules/noticias/article.php?storyid=751

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Há, ainda, aqueles que apresentam deficiência múltipla, ou seja, possuem,

concomitantemente, mais de uma deficiência. O termo “deficiência” se refere,

geralmente, a alguma ausência ou limitação de natureza psíquica, fisiológica ou

anatômica. Porém, existem discussões sobre uma definição precisa do termo, pois ele

engloba concepções médicas e sociais que divergem de acordo com a área de pesquisa

dos especialistas. Em nossa investigação, tomamos a definição conforme o Decreto nº

5.296 de 2 de dezembro de 2004, segundo o qual é considerado portador de deficiência o

indivíduo que

[...] possui limitação ou incapacidade para o desempenho de atividade e se

enquadra nas seguintes categorias: a) deficiência física: alteração completa ou

parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o

comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma de paraplegia,

paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia,

triparesia, hemiplegia, hemiparesia, ostomia, amputação ou ausência de

membro, paralisia cerebral, nanismo, membros com deformidade congênita ou

adquirida, exceto as deformidades estéticas e as que não produzam

dificuldades para o desempenho de funções; b) deficiência auditiva: perda

bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por

audiograma nas frequências de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e 3.000Hz;

c) deficiência visual: cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou menor que

0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; a baixa visão, que significa

acuidade visual entre 0,3 e 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica;

os casos nos quais a somatória da medida do campo visual em ambos os olhos

for igual ou menor que 60o; ou a ocorrência simultânea de quaisquer das

condições anteriores; d) deficiência mental: funcionamento intelectual

significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos

e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais

como: 1. comunicação; 2. cuidado pessoal; 3. habilidades sociais; 4. utilização

dos recursos da comunidade; 5. saúde e segurança; 6. habilidades acadêmicas;

7. lazer; e 8. trabalho; e) deficiência múltipla - associação de duas ou mais

deficiências. (BRASIL, Decreto nº 5296/04, 2004)

Ao retomarmos os dados da Figura 4, percebemos que o número de portadores de

necessidades especiais é bastante expressivo, o que nos leva a refletir sobre as medidas

tomadas pelo poder público a fim de assegurar a integração social e o pleno exercício dos

direitos individuais e coletivos desses indivíduos acometidos por alguma limitação, seja

visual, auditiva, mental, físico-motora ou múltipla. Tais medidas inscrevem-se nas

políticas públicas e abrangem resoluções nas áreas da saúde, do transporte e da educação,

entre outras. Neste capítulo, o foco será o contexto da educação.

Historicamente, o atendimento aos indivíduos com necessidades especiais no

Brasil teve início na época do Império, com a fundação de duas importantes instituições

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na cidade do Rio de Janeiro: o Imperial Instituto dos Meninos Cegos, em 1854, atual

Instituto Benjamin Constant (IBC), e o Instituto dos Surdos Mudos, em 1857, atual

Instituto Nacional da Educação dos Surdos (INES). Em 1926, foi criado o Instituto

Pestalozzi, voltado para o atendimento às pessoas com deficiência mental, o qual, nos

anos 1970, tornou-se Federação Nacional das Associações Pestalozzi com uma

abrangência de atuação em nível nacional. Em 1954, surgiu a Associação de Pais e

Amigos dos Excepcionais (APAE), uma rede de promoção e defesa de direitos das

pessoas com deficiência intelectual e múltipla.

A partir de 1961, as pessoas ditas “deficientes” passaram a ter um atendimento

educacional fundamentado pelas disposições da Lei de Diretrizes e Bases da Educação

Nacional – LDBEN, Lei nº 4.024/61, segundo a qual os “excepcionais” têm direito à

educação, preferencialmente dentro do sistema geral de ensino. Desde então, diversas leis

e decretos surgiram e novas políticas educacionais foram implementadas, contribuindo

para a efetivação da inclusão educacional desses indivíduos através de um atendimento

adaptado.

Apesar de estar presente em vários documentos, leis e decretos, o termo

“deficiente” agrega uma conotação negativa e estigmatizante que muitos estudiosos e os

próprios portadores de necessidades especiais, muitas vezes, rejeitam. Para os

especialistas de áreas como a educação e a sociologia, o uso de tal termo é inadequado,

preferindo-se que se diga “pessoa portadora de deficiência”, “pessoa com necessidades

especiais”, ou, ainda, “pessoa com necessidades específicas”, em vez de “deficiente”,

pois, nessa perspectiva, valoriza-se a pessoa e não a deficiência.

A viabilização da inclusão social e educacional da pessoa portadora de

necessidades especiais requer uma série de ações que atinjam a sociedade como um todo,

modificando sua visão do outro e promovendo a compreensão e a aceitação das

diferenças. De acordo com o Parecer nº 17/2001 que orienta quanto às Diretrizes

Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica,

Entende-se por inclusão a garantia, a todos, do acesso contínuo ao espaço

comum da vida em sociedade, sociedade essa que deve estar orientada por

relações de acolhimento à diversidade humana, de aceitação das diferenças

individuais, de esforço coletivo na equiparação de oportunidades de

desenvolvimento, com qualidade, em todas as dimensões da vida. Como parte

integrante desse processo e contribuição essencial para a determinação de seus

rumos, encontra-se a inclusão educacional (BRASIL, Parecer nº 17/01, 2001,

p. 08).

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Além de definir com clareza o termo inclusão, tal documento estabelece uma

relação entre inclusão social e inclusão educacional no desenvolvimento do indivíduo e

enfatiza, ainda, que “a construção de uma sociedade inclusiva é um processo de

fundamental importância para o desenvolvimento e a manutenção de um Estado

democrático” (Ibidem), onde o acesso à educação é um direito de todos e não pode ser

negado a nenhum indivíduo, independentemente de sua condição.

Nessa perspectiva, não se focalizam mais as deficiências, mas sim, o indivíduo. E

para proporcionar-lhe o acesso a um ensino adaptado, as instituições deverão acionar

diversos mecanismos a fim de acolhê-lo da melhor maneira possível. Com esse propósito,

as Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica, através da

Resolução CNE/CEB Nº 2/2001, artigo 2º, determinam que

Os sistemas de ensino devem matricular todos os estudantes, cabendo às

escolas organizarem-se para o atendimento aos educandos com necessidades

educacionais especiais, assegurando as condições necessárias para uma

educação de qualidade para todos. (MEC/SEESP, 2001).

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) Nº 9394/96 é a

legislação que regulamenta o sistema educacional público ou privado no Brasil. O

capítulo V, do artigo 58, diz respeito exclusivamente à Educação Especial, definindo-a

como “a modalidade de educação escolar, oferecida preferencialmente na rede regular de

ensino, para portadores de necessidades especiais” (BRASIL, 1996, grifo nosso).

A Educação Especial apresenta os mesmos objetivos da educação em geral, o que as

difere é a forma como o educando é acolhido e o atendimento que lhe será dispensado em

função de suas especificidades. De acordo com os princípios dessa modalidade de

educação escolar, as instituições de ensino devem incluir esse educando nas classes

regulares, oferecendo-lhe uma educação adaptada às suas necessidades e, quando essa

integração não pode ser realizada em razão das suas particularidades, ele tem o direito de

ser acolhido em uma instituição de educação especializada.

O termo “preferencialmente” é utilizado também no texto da Constituição da

República, artigo 208, inciso III, segundo o qual deve ser garantido “o atendimento

educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede

regular de ensino” (BRASIL, 1998, grifo nosso). De acordo com esse inciso, entendemos

que é permitida ao educando e/ou a seu responsável legal a possibilidade de optar entre o

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ensino na rede regular (em contexto de inclusão) e o ensino em uma instituição de

atendimento especializado, ou seja, há duas opções de ensino distintas.

Neste momento da discussão, é importante salientarmos que Educação Especial e

educação inclusiva não são a mesma coisa. Ao nos reportarmos à Educação Especial, em

letra maiúscula, nos referimos à uma modalidade de educação escolar organizada para

atender a todos os educandos com necessidades educativas especiais15 por meio de um

trabalho adaptado, seja em uma instituição especializada de ensino, seja em uma escola

regular (a qual inclui a educação inclusiva). Porém, o termo educação especial, ao qual

nos referimos em letra minúscula, é utilizado também com o mesmo sentido de educação

especializada, ou seja, aquela que promove um atendimento voltado única e

exclusivamente para a pessoa com necessidades especiais. Já a educação inclusiva,

presente no âmbito da Educação Especial, refere-se a uma abordagem educacional que

percebe as singularidades de cada indivíduo e defende a educação e a integração de todos

no ensino regular, independentemente de sua condição.

Muito se discute sobre qual dessas opções seria a mais adequada para se ensinar a

pessoa com necessidades especiais, porém não há um consenso entre os especialistas da

área da educação.

Ao longo da história, as instituições especializadas atestaram seu papel

fundamental no desenvolvimento do indivíduo com necessidades especiais, na agregação

daqueles que compartilham as mesmas especificidades e, principalmente, na valorização

e na difusão de uma cultura (e de uma língua, no caso dos surdos) específica ao público

que as frequentam. Contudo, nos últimos anos, o número de matrículas de crianças com

necessidades educacionais especiais em escolas regulares cresceu substancialmente em

relação ao número observado em escolas de atendimento especializado.

De acordo com os registros do Censo Escolar – Instituto Nacional de Estudos e

Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) / 2010, o índice de 69% das matrículas

dos alunos especiais nas classes comuns do ensino regular superou o número de

matrículas em escolas e/ou classes de especiais, registrado em 31%, como demonstra o

quadro a seguir.

15 De acordo com a Declaração de Salamanca de 1994, a expressão “necessidades educativas especiais”

refere-se a todas as crianças e jovens cujas carências se relacionam com deficiências ou dificuldades

escolares. Muitas crianças apresentam dificuldades escolares e, consequentemente, têm necessidades

educativas especiais, em determinado momento da sua escolaridade. As escolas terão de encontrar formas

de educar com sucesso estas crianças, incluindo aquelas que apresentam incapacidades graves.

(DECLARAÇÃO DE SALAMANCA, 1994, p. 6)

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Figura 5 - Matrículas da Educação Especial no Brasil

Fonte:http://portal.mec.gov.br

Tais dados, segundo o Relatório de Gestão do Ministério da Educação e da

Secretaria de Educação Especial (SEESP) do exercício 2010,

[...] demonstram os resultados efetivos da política nacional implementada pelo

MEC em parceria com os sistemas estaduais, municipais e do DF, com vistas

a garantir as condições de pleno acesso e participação dos alunos público alvo

da educação especial nas classes comuns do ensino regular. Nesse sentido, os

dados indicam a inversão da trajetória histórica da oferta de ensino especial

substitutivo à escolarização, com o crescente acesso ao ensino regular e a

diminuição das matrículas em classes e escolas especiais. (BRASIL, 2011, p.9)

Apesar dos dados estatísticos e dos pareceres favoráveis apontados nesse

documento, é importante destacarmos que, na prática, a implementação das políticas

educacionais para a Educação Especial não é algo simples e que, muitas vezes, não

corresponde ao que está previsto nos textos das leis e dos decretos. Isso ocorre devido às

dificuldades enfrentadas pelas instituições de ensino em promoverem ações face a

situações extremamente diversas, para as quais nem sempre estão preparadas.

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Com efeito, prevê-se a implementação de

[...] um conjunto de ações para a organização do atendimento educacional

especializado, que contemplam a formação continuada de professores, a

disponibilização de tecnologias educacionais, o desenvolvimento das práticas

educacionais e de gestão escolar, a distribuição de equipamentos, de materiais

didáticos e pedagógicos e recursos de acessibilidade, bem como o apoio à

adequação de prédios para acessibilidade. (BRASIL, 2011, p.9)

Contudo, percebemos que, na prática, essa realidade não está presente em todas

as escolas regulares. A educação inclusiva está relacionada a uma grande variedade de

público, com as mais diversas patologias e diagnósticos como, por exemplo, surdos,

cegos, surdo-cegos, cadeirantes, autistas, entre outros portadores de necessidades

educacionais especiais. Esse fato, por si só, já atesta a complexidade da elaboração dos

projetos de integração e inclusão escolar, pois a particularidade individual de cada

educando especial que chega à escola é crucial para o desenvolvimento de um trabalho

especializado. Diante disso, a escola precisa estar atenta às respostas do educando às

medidas de inclusão, pois uma inclusão malsucedida pode acarretar sérios danos para sua

aprendizagem e sua socialização. Estar na escola, simplesmente, não é inclusão. Esta se

dá a partir do oferecimento de uma educação adaptada e de qualidade.

Neste ponto, mencionamos o Atendimento Educacional Especializado (AEE),

definido na perspectiva da Educação Inclusiva através do Decreto nº 7.611, de 17 de

novembro de 2011. AEE é um serviço dispensado gratuitamente aos educandos

portadores de deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas

habilidades/superdotação, e deve ser oferecido de forma transversal em todos os níveis,

etapas e modalidades de ensino, compreendendo uma série de atividades pedagógicas

complementares sua formação, realizadas, geralmente, no turno oposto às aulas regulares.

A respeito da abrangência da educação inclusiva nas diferentes etapas da educação

do indivíduo, a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação

Inclusiva, que é implementada pela SEESP, tem o objetivo de garantir seu acesso,

participação e aprendizagem durante toda a sua escolaridade, promovendo:

Transversalidade da educação especial desde a educação infantil até a

educação superior; Atendimento educacional especializado; Continuidade da

escolarização nos níveis mais elevados do ensino; Formação de professores

para o atendimento educacional especializado e demais profissionais da

educação para a inclusão escolar; Participação da família e da comunidade;

Acessibilidade urbanística, arquitetônica, nos mobiliários e equipamentos, nos

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transportes, na comunicação e informação; e Articulação intersetorial na

implementação das políticas públicas. (BRASIL, 2010, p.20)

Diante disso, cabe destacarmos os benefícios que essa “transversalidade da

educação especial desde a educação infantil até a educação superior” tem trazido à nova

geração de educandos com necessidades educacionais especiais, garantindo sua inclusão

por meio do acesso adaptado aos estudos e à qualificação profissional até o nível que

desejarem cursar, conforme ilustra o quadro a seguir.

Figura 6 - Transversalidade da Educação Especial

Fonte: Brasil, 2001, p.38

Isso representa uma importante conquista para as novas gerações, pois, em outras

épocas, a maioria dos portadores das mais variadas necessidades especiais era fadada a

permanecer dentro de casa. Tal fato ocorria devido a diversos fatores que configuravam

o despreparo para o atendimento a esse público em diversos setores da sociedade, como,

por exemplo, a ausência de acessibilidade espacial16 (no caso dos portadores de

deficiência física), a inexistência de profissionais da educação especializados nas escolas,

o preconceito da sociedade - causado pelo desconhecimento e pela falta de

16 No Manual de Acessibilidade para escolas, Dischinger et al. declaram que “acessibilidade espacial

significa bem mais do que apenas poder chegar ou entrar num lugar desejado. É, também, necessário que a

pessoa possa situar-se, orientar-se no espaço e que compreenda o que acontece, a fim de encontrar os

diversos lugares e ambientes com suas diferentes atividades, sem precisar fazer perguntas. Deve ser possível

para qualquer 23 pessoa deslocar-se ou movimentar-se com facilidade e sem impedimentos. Além disso,

um lugar acessível deve permitir, através da maneira como está construído e das características de seu

mobiliário, que todos possam participar das atividades existentes e que utilizem os espaços e equipamentos

com igualdade e independência na medida de suas possibilidades”. (DISCHINGER et alii, 2009, p.22-23)

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conscientização sobre a aceitação das diferenças - entre tantos outros. Sassaki comenta

sobre as mudanças advindas da inclusão como um todo, caracterizando a inclusão social

como

[...] um processo que contribui para a construção de um novo tipo de sociedade

através de transformações, pequenas e grandes, nos ambientes físicos (espaços

internos e externos, equipamentos, aparelhos e utensílios, mobiliário e meios

de transporte) e na mentalidade de todas as pessoas, portanto, do próprio

portador de necessidades especiais. (SASSAKI, 1997, p. 42)

3.1 A surdez na Educação Especial

As políticas públicas voltadas para a Educação Especial no Brasil apresentam

importantes diretrizes voltadas especificamente para o trabalho com o público portador

de surdez. Contudo, tais políticas têm sido a base de inúmeras discussões e polêmicas

sobre a melhor maneira de se ensinar o surdo, pois o processo de ensino-aprendizagem

envolve questões de ordem sócio-política relacionadas às representações da surdez, às

línguas praticadas pelo surdo bilíngue e a sua cultura. Tais elementos são, de fato, de

extrema relevância ao pensarmos a educação dos surdos e, por isso, serão observados no

decorrer deste tópico.

A Declaração de Salamanca de 1994 sobre Princípios, Política e Prática na

Educação de Crianças com Necessidades Educativas Especiais estabelece os

procedimentos padrões das Nações Unidas para a equalização de oportunidades para

pessoas portadoras de deficiências, dispondo sobre princípios, políticas e práticas na área

das necessidades educacionais especiais. Esse documento teve uma extraordinária

importância para educação especial, contribuindo com colocações cruciais em prol da

inclusão educacional jamais mencionadas até aquele momento.

No que tange especificamente à educação do público surdo, tal Declaração

determina que as políticas educacionais devem levar em conta suas diferenças

individuais, especialmente sua situação linguística, destacando a importância da língua

de sinais como seu meio de comunicação, como pode-se observar neste trecho:

Políticas educacionais deveriam levar em total consideração as diferenças e

situações individuais. A importância da língua de sinais como meio de

comunicação entre os surdos, por exemplo, deveria ser reconhecida e provisão

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deveria ser feita no sentido de garantir que todas as pessoas surdas tenham

acesso à educação em sua língua nacional de sinais. Devido às necessidades

particulares de comunicação dos surdos e das pessoas surdas/cegas, a

educação deles pode ser mais adequadamente provida em escolas especiais

ou classes especiais e unidades em escolas regulares. (DECLARAÇÃO DE

SALAMANCA, 1994, p.18, grifo nosso)

Sobre importância dada à realidade linguística do indivíduo surdo, percebe-se que

a maneira de se ensinar a esse público no contexto da Educação Especial sofreu

significativas modificações na última década. Através da Lei Nº 10.436 de 2002, a

LIBRAS passou a ser reconhecida como meio legal de comunicação e expressão do surdo

brasileiro, constituindo um grande marco na história da sua educação. Tal

reconhecimento veio contribuir para o avanço da educação bilíngue para surdos, seja no

contexto da educação especializada ou da educação inclusiva. Em conformidade com

Quadros, ao considerarmos uma proposta de ensino bilíngue para surdos,

[...] a LIBRAS deve ser a L1(primeira língua) da criança surda brasileira e a

língua portuguesa deve ser sua L2 (segunda língua). As razões dessa afirmação

estão relacionadas com o processo de aquisição dessas línguas, considerando

a condição física das pessoas surdas: são surdas. Qualquer língua oral exigirá

procedimentos sistemáticos e formais para ser adquirida por uma pessoa surda.

(QUADROS, 1997, p.67, grifo da autora)

A questão da possibilidade da educação dos surdos se realizar em escolas especiais

e em escolas regulares tem gerado grandes discussões nos dias de hoje. Mas, afinal, qual

seria o melhor contexto para a escolarização dos surdos, especial ou inclusivo?

No Brasil, existem diversas escolas especializadas na educação de surdos, dentre

as quais, podemos destacar o INES, no Rio de Janeiro; a Escola Especial Ulbra Concórdia,

em Porto Alegre; o Instituto Santa Terezinha, em São Paulo; a Escola de Surdos, em

Vitória; a Escola Hellen Keller, em Caxias do Sul, entre outras. Tais escolas buscam

promover a inclusão social dos educandos surdos, a partir de uma proposta de ensino bilíngue, ou

seja, do ensino da/em LIBRAS e do/em português, na modalidade escrita.

Geralmente, os professores dessas instituições ministram suas aulas em LIBRAS,

porém, quando estes não a dominam, podem contar a atuação do intérprete (Português-

LIBRAS) para a transmissão dos conteúdos. A respeito do uso da LIBRAS nessas

instituições, cabe destacarmos que, a partir de uma visão do ensino bilíngue e bicultural,

muitas delas têm investido na contratação de professores e funcionários surdos,

oportunizando o contato do educando com adultos que partilham da mesma condição.

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Segundo Quadros (op.cit.), esse contato proporciona muitos benefícios para o educando,

contribuindo para o seu desenvolvimento sócio-emocional, a formação da sua

personalidade, a consolidação da sua identidade, além de sua identificação com a

comunidade surda. Muitas delas desenvolvem, também, projetos específicos que

abrangem um trabalho de acompanhamento e orientação junto às famílias, formações

profissionalizantes em diversas áreas, atendimento com profissionais especializados

(professores, psicólogos, pedagogos, fonoaudiólogos, etc.), além de estabelecerem

convênios e parcerias com diversas instituições privadas.

No que tange à legislação brasileira sobre o ofício do intérprete (Português-

LIBRAS), foi através da Lei nº 12.319 de 01/09/2010 que essa profissão foi

regulamentada no país. Além de ter domínio sobre a LIBRAS e sobre o português, o

intérprete deve ter uma formação específica nessa área (especialmente o certificado de

proficiência do Prolibras)17 e conhecer técnicas e estratégias referentes ao campo da

interpretação e da tradução.

De acordo com o Programa Nacional de Apoio à Educação dos Surdos, caberá ao

intérprete realizar a interpretação da língua falada para a língua sinalizada e vice-versa

observando os seguintes preceitos éticos:

a) confiabilidade (sigilo profissional); b) imparcialidade (o intérprete deve ser

neutro e não interferir com opiniões próprias); c) discrição (o intérprete deve

estabelecer limites no seu envolvimento durante a atuação); d) distância

profissional (o profissional intérprete e sua vida pessoal são separados); e)

fidelidade (a interpretação deve ser fiel, o intérprete não pode alterar a

informação por querer ajudar ou ter opiniões a respeito de algum assunto, o

objetivo da interpretação é passar o que realmente foi dito). (BRASIL/MEC,

2004, p. 28).

Na ausência de professores surdos, e nos casos em que o professor ouvinte não é

praticante da LIBRAS, a presença do intérprete na sala de aula torna-se imprescindível,

pois é através da sua atuação que o educando surdo poderá acessar os conteúdos

transmitidos durante a aula.

No caso da escola regular, o acesso do surdo a uma educação inclusiva se dá

através de uma classe bilíngue (Português / LIBRAS), na qual existe a presença de um

professor, que pode ser bilíngue ou não, e a de um intérprete. O decreto Nº 5.626 de 2005,

17 O Prolibras é o Exame Nacional para Certificação de Proficiência no Ensino da Língua Brasileira de

Sinais (Libras) e para Certificação de Proficiência na Tradução e Interpretação da Libras/Língua

Portuguesa. Fonte: http://www.ines.gov.br/

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que regulamenta a lei Nº 10.436 de 2002, artigo 22, prevê a classe bilíngue de duas

maneiras distintas, em função da série frequentada pelo educando. Segundo suas

disposições as instituições de ensino responsáveis pela educação básica devem garantir a

organização de:

I - escolas e classes de educação bilíngue, abertas a alunos surdos e

ouvintes, com professores bilíngues, na educação infantil e nos anos

iniciais do ensino fundamental; II - escolas bilíngues ou escolas comuns

da rede regular de ensino, abertas a alunos surdos e ouvintes, para os

anos finais do ensino fundamental, ensino médio ou educação

profissional, com docentes das diferentes áreas do conhecimento,

cientes da singularidade linguística dos alunos surdos, bem como com

a presença de tradutores e intérpretes de Libras - Língua Portuguesa. §

1º São denominadas escolas ou classes de educação bilíngue aquelas

em que a Libras e a modalidade escrita da Língua Portuguesa sejam

línguas de instrução utilizadas no desenvolvimento de todo o processo

educativo. (BRASIL, 2005, p.1)

Com base na determinação legal, a educação bilíngue deve realizar a inclusão de

alunos surdos no sistema educacional pela via linguístico-cultural surda, tendo a Libras

como língua de instrução. Porém, percebe-se que, de acordo com o inciso I, a presença

do intérprete na educação infantil e nos anos iniciais da rede regular de ensino na

perspectiva da inclusão não é obrigatória, bastando que o professor seja bilíngue

(Português-LIBRAS). A princípio, em se tratando de um professor praticante das duas

línguas, considera-se que ele poderá se comunicar diretamente com todos os educandos,

surdos e ouvintes, em ambas as línguas de forma eficaz. Mas como isso se dá, na prática,

em contexto de inclusão, no qual educandos surdos e ouvintes participam da mesma

classe? Como esse professor consegue, ao mesmo tempo, produzir enunciados em uma

língua áudio-oral e em outra viso-gestual? Seria por meio do bimodalismo?

Como mencionamos no capítulo 2, as línguas de sinais e as línguas áudio-orais

são dotadas de estruturas gramaticais distintas, o que inviabiliza o uso concomitante de

tais línguas pelo professor em suas aulas. Tal prática certamente descaracterizaria a

estrutura da LIBRAS, dando lugar ao português sinalizado (ou bimodalismo). O que

acontece, na verdade, é que o professor submetido a esse contexto de ensino acaba por

exercer duas funções diferentes, a de professor e a de intérprete e, nessa tentativa de

inclusão com apenas um professor bilíngue, todos acabam sendo prejudicados: o

educando surdo, por não receber o atendimento personalizado adequado; o educando

ouvinte, por estar exposto a um modo de comunicação bimodal que pode ser confuso por

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não fazer parte de sua vida cotidiana; e o professor, pelo desgaste físico, intelectual e

psicológico que essa experiência, certamente, lhe proporciona. É imprescindível uma

reflexão sobre as consequências dessa prática, sujeita a gerar dificuldades na

compreensão dos conteúdos tanto pelos educandos ouvintes quanto pelos surdos, e a

comprometer a qualidade do ensino, devido ao trabalho exaustivo ao qual o professor é

submetido nessa proposta.

Como destaca o Programa Nacional de Apoio à Educação dos Surdos,

[...] os professores são professores e os intérpretes são intérpretes. Cada

profissional desempenha sua função e papel que se diferenciam imensamente.

O professor de surdos deve saber e utilizar muito bem a língua de sinais, mas

isso não implica ser intérprete de língua de sinais. O professor tem o papel

fundamental associado ao ensino e, portanto, completamente inserido no

processo interativo social, cultural e linguístico. O intérprete, por outro lado, é

o mediador entre pessoas que não dominam a mesma língua abstendo-se, na

medida do possível, de interferir no processo comunicativo. (BRASIL, 2004,

p. 29-30)

Diferentemente dos anos iniciais do ensino fundamental, a partir do segundo

segmento, o professor não tem a obrigatoriedade de ser praticante da LIBRAS, pois o

intérprete surge como uma “solução” ao problema da comunicação entre o educando

surdo e os professores ouvintes. Porém, essa integração prevista pelas políticas

educacionais para a inclusão com surdos está longe de ser assegurada por diversas razões.

Dentre elas, podemos destacar o desconhecimento por parte do professor sobre a surdez

e a comunicação em classe por meio do intérprete (não adianta ter um intérprete se o

professor não entende a necessidade de se adotar certos procedimentos, como, por

exemplo, falar pausadamente em determinadas explanações) e a falta de capacitação não

somente dos professores, mas, também, dos demais profissionais da instituição para lidar

com o educando surdo.

É importante ressaltarmos que, quando um educando com necessidades especiais

adentra uma escola regular, é necessário que todos os profissionais que lidarão com ele

tenham uma prévia capacitação adequada. Muitos intérpretes já testemunharam situações

adversas devido ao despreparo dos próprios professores que, muitas vezes, pareciam

esquecer-se do surdo em sua classe, ou que viam o intérprete como o encarregado de

“explicar” a matéria a esse educando. É necessário que os profissionais dessas instituições

de ensino tenham acesso a uma formação pedagógica antes da chegada desse educando e

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que cada profissional entenda seu papel, além de esforçar-se para exercê-lo da melhor

forma possível.

Uma inclusão forçada, sem o preparo dos profissionais da escola para lidarem com

o educando, resulta no não atingimento dos objetivos da educação inclusiva. A lei se

cumpre no sentido de incluir fisicamente o educando dentro da sala de aula de aula, mas

a inclusão educacional em si, como descrita nos textos das leis da Educação Especial na

perspectiva da educação inclusiva, acaba por não acontecer. Machado (2008) aponta que

quando um surdo é inserido numa turma de ouvintes com trinta ou mais alunos, a

aquisição dos conhecimentos científicos não é garantida. Para o autor,

(...) nesse ambiente, o trabalho pedagógico com o surdo fica, quase que na sua

totalidade, inviabilizado, pois não considera sua língua, sua história de vida,

seu desenvolvimento real, seus conceitos cotidianos, capazes de atribuir

significação correspondente à do conceito científico em seu processo de

apropriação. (MACHADO, 2008, p. 95)

Com efeito, o discurso político da inclusão é voltado para a democratização do

ensino e da igualdade de oportunidade para todos, numa sociedade onde as diferenças

devem ser toleradas. Porém, o que se tem percebido, em muitos casos, é que a inclusão

promoveria a socialização e o convívio entre as diversidades em detrimento de um acesso

real ao aprendizado. É necessário observar atentamente como essa política de inclusão

com surdos tem se realizado nas instituições de ensino, pois ela não deve consistir na

simples permanência do educando na escola, mas sim no desenvolvimento de suas

potencialidades e no atendimento eficaz a suas necessidades educacionais específicas.

Um outro fator que gostaríamos de ressaltar em relação à Política Nacional de

Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, é a determinação do

oferecimento do ensino da LIBRAS para os alunos ouvintes em todas as escolas regulares

onde há surdos incluídos (Brasil, 2008). Essa prática tem uma importante representação

no processo de inclusão do surdo, pois além de proporcionar a descoberta de sua língua e

cultura pelos colegas ouvintes, permite a interação espontânea entre ouvintes e surdos

dentro e fora da sala de aula. Acontece que, na prática, poucas escolas recebem monitores

de LIBRAS e esse ensino acaba não se concretizando.

A respeito da especialização dos educadores para o trabalho com o público surdo,

o decreto nº 5626 de 2005, determina que a LIBRAS deve ser inserida como disciplina

curricular obrigatória nos cursos de formação de professores. Isso significa que todos os

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cursos de licenciatura, o curso normal de nível médio, o curso Normal Superior, o curso

de Pedagogia e o curso de Educação Especial, tanto nas universidades públicas, quanto

nas particulares, devem formar professores aptos a educar alunos com surdez.

Desde a publicação desse decreto, as instituições de ensino médio que oferecem

cursos de formação para o magistério na modalidade normal e as instituições de educação

superior que oferecem cursos de Fonoaudiologia ou de formação de professores foram

obrigadas a incluir a LIBRAS como disciplina curricular, nos seguintes prazos e

percentuais mínimos:

I - até três anos, em vinte por cento dos cursos da instituição; II - até cinco

anos, em sessenta por cento dos cursos da instituição; III - até sete anos, em

oitenta por cento dos cursos da instituição; e IV - dez anos, em cem por cento

dos cursos da instituição. (Decreto nº 5626/05, Art. 9º).

Após dez anos de implementação, seus resultados já podem ser percebidos nas

instituições de ensino brasileiras. O atendimento educacional adaptado tem evoluído de

forma gradativa, conforme a nova geração de profissionais devidamente capacitados

ingressa no mercado de trabalho.

Diante dessa evolução, não podemos deixar de mencionar alguns acontecimentos

importantes para a educação dos surdos, ocorridos no Rio de Janeiro, palco da

institucionalização da LIBRAS no Brasil, no século XIX. Em 2006, o INES passou a

oferecer o curso de Pedagogia Bilíngue (LIBRAS-Português), admitindo anualmente 60

candidatos, formando-os para a promoção de uma educação efetivamente bilíngue e

adaptada.

Em 2014, também no Rio de Janeiro, a Faculdade de Letras da UFRJ deu início a

sua primeira turma do curso de Licenciatura em Letras-Libras (que visa a formar

professores para atuar no ensino da LIBRAS e do Português como L2 nos anos finais do

Ensino Fundamental e no Ensino Médio), e do curso de Bacharelado em Letras-Libras:

Tradução e Interpretação (que visa a formar tradutores e intérpretes de LIBRAS-

Português). Tais cursos são apenas alguns exemplos de novas formações na área da

LIBRAS e da educação dos surdos, dentre tantos outros que surgiram nos últimos anos

pelas cinco regiões do país.

Esses novos cursos representam uma importante contribuição para a educação dos

surdos, que poderão contar, cada vez mais, com a presença de profissionais realmente

capacitados para desenvolverem um ensino adaptado a suas necessidades. E, graças à

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presença de intérpretes nas universidades, os surdos brasileiros têm circulado cada vez

mais em diferentes cursos de graduação e de pós-graduação, qualificando-se e

diplomando-se.

Diante do exposto, podemos dizer que as leis e decretos voltados para a inclusão

e educação dos surdos trouxeram-lhes mudanças sociais e educacionais significativas, as

quais não podemos negar. Dentre elas, Fernandes relaciona

a difusão da língua de sinais na sociedade e sua utilização no espaço escolar; a

disseminação de pesquisas e trabalhos acadêmicos que problematizam os

postulados teóricos e metodológicos vigentes nos últimos anos e viabilizam

caminhos para concretização da educação bilíngue; a formação de

profissionais bilíngues, como professores especializados e intérpretes de

línguas de sinais; o desenvolvimento de propostas de educação bilíngue,

incorporando a língua de sinais como primeira língua da aprendizagem da

língua portuguesa como segunda língua no currículo escolar; a potencialização

do aspecto pedagógico em detrimento do aspecto clínico no processo

educacional; o resgate dos educadores Surdos como mediadores fundamentais

em propostas de educação bilíngue para Surdos. (FERNANDES, 2012a, p. 65-

66).

Com efeito, muitos avanços foram alcançados na área da educação dos surdos no

Brasil, porém, ainda há muito trabalho pela frente, a fim de que a proposta de ensino

bilíngue seja uma realidade efetiva, em todas as suas vertentes, dentre as quais,

destacamos a oportunização do acesso precoce da criança surda à LIBRAS, o acesso à

educação por meio da LIBRAS como L1 e do português como L2, e o reconhecimento

não somente de sua língua, como também de sua cultura nos processos educacionais.

3.2 Educação Especial X Educação de Surdos

Partindo da política de inclusão na educação especial com surdos, na qual a

LIBRAS é inserida nas classes, seja por meio do professor bilíngue, seja por meio do

intérprete, seria possível afirmarmos que o quadro atual da educação especial para surdos

no Brasil corresponde efetivamente ao modelo de ensino bilíngue ou Bilinguismo,

enquanto filosofia educacional?

Como já foi mencionado, além da eficácia nas trocas comunicacionais

proporcionada pelo uso da LIBRAS em sala de aula, o modelo de ensino bilíngue para

surdos representa uma marca de sua identidade e cultura, que durante um longo período

da história de sua educação lhe foi negada. Isso nos leva a uma reflexão sobre as diferentes

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representações da surdez dos pontos de vista clínico e sócio-antropológico, que

delimitarão os procedimentos pedagógicos assumidos pela instituição de ensino e,

especialmente, pelo educador em sala de aula.

Ao consideramos a Educação Especial com surdos, é importante que todos os

aspectos que envolvem o contexto da surdez sejam observados, pois a Educação Especial

com surdos não pode ser encarada com um preenchimento das lacunas existentes no

ensino dito “normal”. Ao contrário, ela deve ser o espaço onde práticas efetivas se

desenvolvem no sentido de trazer ao público surdo um contexto de ensino inteiramente

adaptado, respeitando sua língua e sua cultura. A esse respeito, Skliar alerta que a

educação bilíngue pode,

(...) também, estar fixada ao discurso da deficiência, se as suas estratégias

pedagógicas e os seus discursos permanecem no âmbito da educação especial.

A separação entre educação especial e educação de surdos é imprescindível

para que a educação bilíngue desenvolva certa profundidade política. Nesta

direção, a educação bilíngue não pode ser conceitualizada como um novo

paradigma na educação especial, mas como um “paradigma oposicional”.

(Skliar, 1999, p.12)

Esse “paradigma oposicional” à educação especial estabelecerá um discurso

contrário às noções patológicas da surdez enquanto deficiência, falta ou ausência,

valorizando a efetivação de um projeto político-pedagógico centrado na especificidade

linguística do surdo e na sua cultura, pois “a surdez é uma experiência visual” e “constitui

uma diferença a ser politicamente reconhecida” (Ibidem, p.11).

As dificuldades enfrentadas pelos surdos ao longo da história da sua educação

decorrem de representações baseadas em uma ótica clínico-terapêutica. Sá aborda essa

questão destacando que “O problema, consequentemente, não é a surdez, não são os

surdos, não é a língua de sinais, mas sim as representações dominantes, hegemônicas e

“ouvintistas” sobre as identidades surdas, a língua de sinais, a surdez e os surdos” (SÁ,

2006, p.93).

O termo ouvintismo foi cunhado por Skliar, referindo-se a

Um conjunto de representações dos ouvintes, a partir do qual o surdo está

obrigado a olhar-se e narrar-se como se fosse ouvinte. Além disso, é nesse

olhar-se e narrar-se que acontecem as percepções do ser “deficiente”, do “não

ser ouvinte”; percepções que legitimam as práticas terapeutas habituais.

(SKLIAR, 1998, p.15)

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Nessa relação de poder, a surdez é percebida como um defeito a ser consertado e

o surdo como um deficiente a ser tratado para que possa assemelhar-se ao ouvinte. Dessa

maneira, sua língua e sua cultura são desvalorizadas, e a oralização torna-se uma meta

para que o surdo se aproxime da “normalidade”.

Ao considerarmos as filosofias educacionais para surdos, percebemos claramente

que o oralismo puro se identifica diretamente com a ideia de ouvintismo colocada por

Skliar (op. cit.), diferentemente da educação bilíngue, através da qual a língua e a cultura

do surdo são levadas em conta durante todo o processo de ensino-aprendizagem. Porém,

seus trabalhos trazem críticas severas também à educação bilíngue para surdos dentro da

perspectiva da Educação Especial, declarando que esta é

[...] um subproduto da educação, cujos componentes ideológicos, políticos,

teóricos, etc. são, no geral, de natureza discriminatória, descontínua e

anacrônica, conduzindo a uma prática permanente de exclusão e inclusão. A

educação especial para surdos parece não ser o marco adequado para uma

discussão significativa sobre a educação de surdos. Mas, ela é o espaço

habitual onde se produzem e se reproduzem táticas e estratégias de

naturalização dos surdos em ouvintes, e o local onde a surdez é disfarçada.

(Op. cit., p.11)

Para o autor, faz-se necessário um movimento de ruptura com a Educação

Especial, descentralizando a discussão sobre as representações da surdez e a educação

dos surdos para que se possa desenvolver um debate aprofundado em outras linhas de

estudos, como os Estudos Culturais, os Estudos Negros, os Estudos de Gênero,

Linguagem e Educação, entre outros. A partir de um olhar abrangente sobre a situação

linguística, social, comunitária, cultural e identitária, é possível refletir não somente sobre

a totalidade, como se os surdos formassem um grupo homogêneo, mas, também, sobre as

particularidades de grupos minoritários dentro da comunidade surda, como os surdos

negros, as mulheres surdas, os surdos de classes sociais distintas, os surdo-cegos, etc.

Para Skliar, essa quebra da dependência representacional com a Educação

Especial possibilitará o aprofundamento dos estudos e das práticas relacionadas à surdez

em diálogo com outras linhas de estudos dentro de um novo campo conceitual, os Estudos

Surdos, os quais

[...] se constituem enquanto um programa de pesquisa em educação, onde as

identidades, as línguas, os projetos educacionais, a história, a arte, as

comunidades e as culturas surdas são focalizadas e entendidas a partir da

diferença, a partir de seu reconhecimento político. (SKLIAR, 1998, p. 5)

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Essa percepção da diferença em oposição à deficiência encontra respaldo na

definição de surdez apresentada no Decreto nº 5.626 / 2005, Art. 2o, segundo o qual,

“considera-se pessoa surda aquela que, por ter perda auditiva, compreende e interage com

o mundo por meio de experiências visuais, manifestando sua cultura principalmente pelo

uso da Língua Brasileira de Sinais – Libras” (BRASIL, 2005).

Buscando trazer uma discussão mais aprofundada sobre a situação linguística,

sócio-cultural e histórica do surdo, esse novo campo de estudos apresenta várias

implicações em questões relacionadas à educação do surdo, às representações da surdez,

à questão linguística e cultural do indivíduo surdo, entre outras, tendo sempre em pauta

os discursos sobre a diferença em oposição à deficiência.

3.3 O ensino das LE aos surdos – da legislação à efetivação

Ensinar uma LE de modalidade áudio-oral ao público surdo é uma tarefa que

requererá do educador saberes e competências relacionados às especificidades do

educando, além da capacidade de promover uma série de adaptações que levem em conta

não somente sua realidade linguística, mas também sua situação psicossocial, cultural e

histórica.

A propósito do ensino das LEs em contexto escolar no Brasil, a Lei de Diretrizes

e Bases Nº 9.394/96, artigo 26, parágrafo 5º, determina o ensino obrigatório de pelo

menos uma língua estrangeira a partir do 6º ano do Segundo Segmento do Ensino

Fundamental. A escolha da língua a ser ensinada fica a cargo da escola, sendo

majoritariamente o inglês, o espanhol ou o francês. Essa lei compreende não somente as

instituições regulares de ensino, mas também as escolas de educação especializada, sejam

públicas ou privadas.

Diante dessa obrigatoriedade, consideramos oportuna a reflexão sobre como o

ensino das LEs ao público portador de necessidades educacionais especiais está previsto,

tanto em classe inclusiva, quanto em classe especial. Há alguma adaptação curricular em

função das especificidades desse público? Existe material didático adequado? No caso

das classes com surdos, como se dá esse processo?

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Apesar de sabermos que alguns portadores de necessidades educacionais

especiais, dependendo de sua especificidade, necessitam de um apoio específico no

processo de ensino, não há como nos apoiarmos na legislação no que se refere às LEs,

pois não existem leis voltadas especificamente para esse ensino. No caso dos surdos, essa

reflexão é bastante pertinente, tendo em vista sua situação linguística. Bilíngue, praticante

da LIBRAS como L1 e do português como L2, esse jovem, a partir do 6º ano, passará a

ter contato com uma nova língua áudio-oral. Porém, como diversos estudos têm

demonstrado, os surdos têm dificuldades com o aprendizado e a manipulação da língua

portuguesa. Isso acontece porque sua percepção de mundo é visual, não podendo apoiar-

se no estímulo auditivo para assimilar o português. Além disso, a LIBRAS e o português

possuem estruturas totalmente diferentes. Esta, por exemplo, contém artigos, preposições,

conjunções, flexões etc., às quais o surdo não pode acessar naturalmente, mas somente

por um ensino estrutural. Conforme Fernandes,

[...] essas omissões que ocorrem na Libras em relação aos artigos, preposições

e flexões verbais ou nominais (gênero, número) nos levam a pensar que a

gramática da Libras seria mais “simplificada” em relação ao português, mas

não se trata disso. Enquanto que no português há elementos conectivos

indicados com palavras, na Libras esses mecanismos são discursivos e

espaciais, estando incorporados ao movimento ou em referentes espaciais

(FERNANDES, 2012b, p.62).

Esses elementos inerentes à língua portuguesa, também presentes na língua

estrangeira, poderão dificultar o aprendizado do surdo. Por isso, é imprescindível que o

professor de LE conheça as características do bilinguismo do surdo e entenda que, devido

à sua condição linguística, suas práticas pedagógicas deverão basear-se nas trocas

comunicacionais em LIBRAS, no uso de recursos imagéticos e em estratégias de ensino

que explorem o canal viso-gestual. Contudo, sabemos que, na prática, muitos professores

desconhecem tanto as particularidades do surdo, quanto as possibilidades de estratégias

didático-pedagógicas para o desenvolvimento de um ensino adaptado, o que poderá

comprometer a aprendizagem.

Apesar da implementação de um ensino bilíngue, no qual a LIBRAS tem seu lugar

enquanto língua de comunicação e de ensino, o acesso ao aprendizado da LE se dará num

processo artificial, de maneira sistemática, baseada na estrutura da língua,

semelhantemente ao processo de aquisição formal do português. Nesse contexto, é

importante que o educador leve em conta as diferentes modalidades de língua em questão,

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pois o domínio de uma segunda ou demais línguas estará afetado por fatores de

semelhança e de diferença entre a estrutura das mesmas (Scliar-Cabral, 1988).

Ademais, é preciso salientarmos que, na prática, o ensino da LE ao público surdo

não acontece da mesma maneira que o ensino das outras disciplinas como Português,

Matemática, História ou Geografia, entre outras. Nessas matérias, a L2 dos educandos, o

português, representa a base de suas leituras e de sua produção escrita, enquanto a

LIBRAS é a língua da transmissão dos conteúdos e da comunicação em sala de aula. Para

essas matérias, a escola adota livros didáticos regulares em português, previstos para o

público em geral (surdo e ouvinte) e em conformidade com os programas definidos pelo

Ministério da Educação.

Diferentemente da situação observada nessas disciplinas, o ensino da LE trará para

dentro da sala de aula uma terceira língua de modalidade áudio-oral, o que representa uma

situação complexa para a qual as políticas educacionais voltadas para a Educação

Especial em classes com surdos parecem não ter previsto ações concretas de adaptação.

Levando em consideração as duas situações distintas de ensino na Educação

Especial, a saber, a classe especial e a classe inclusiva, podemos destacar algumas

questões relacionadas especificamente ao ensino das LEs ao público surdo. Em ambos os

contextos, caso o professor da LE não seja praticante da LIBRAS, será necessária a

presença de um intérprete de LIBRAS / Língua Portuguesa, conforme prevê a lei nº

12.319/2010, a qual regulamenta a profissão de Tradutor e Intérprete da LIBRAS.

Acontece que, ao exercer seu trabalho na classe de LE com surdos, o intérprete

estará diante de um impasse: a presença de uma terceira língua, a qual ele não foi

habilitado a interpretar. O que ocorre nesse caso? O professor deverá ministrar as aulas

em português para que o intérprete possa compreender o que é dito e, por conseguinte,

transmitir os conteúdos ao educando surdo? Ou caberá ao intérprete ter conhecimentos

na LE ministrada para que possa, assim, interpretá-la (mesmo sem ter habilitação oficial

para isso)?

Embora a lei nº 12.319/2010 não faça qualquer referência sobre a atuação do

intérprete nas aulas de LE, podemos mencionar uma observação do Programa Nacional

de Apoio à Educação dos Surdos (2004), a qual permite a interpretação da LE para a

LIBRAS, caso o intérprete a domine, independentemente de ter ou não formação

específica para interpretar tal língua. O texto determina que,

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No Brasil, o intérprete deve dominar a língua brasileira de sinais e língua

portuguesa. Ele também pode dominar outras línguas, como o inglês, o

espanhol, a língua de sinais americana e fazer a interpretação para a língua

brasileira de sinais ou vice-versa (por exemplo, conferências internacionais).

Além do domínio das línguas envolvidas no processo de tradução e

interpretação, o profissional precisa ter qualificação específica para atuar como

tal. Isso significa ter domínio dos processos, dos modelos, das estratégias e

técnicas de tradução e interpretação. O profissional intérprete também deve ter

formação específica na área de sua atuação (por exemplo, a área da educação)

(BRASIL/MEC, 2004, p. 27-28).

Observa-se no texto que a abrangência de contextos em que essa prática seria

legítima não está explicitada, sendo mencionada como exemplo somente a situação de

eventos, como “por exemplo, conferências internacionais”. Não há qualquer menção

quanto a essa prática na classe de LE.

Em nossa concepção, para que o intérprete pudesse atuar diretamente com a língua

alvo no ensino institucional de uma LE, seria necessário que, além das competências

concernentes à habilitação da interpretação Português-LIBRAS, esse intérprete possuísse

um domínio efetivo da LE, semelhante ao do professor dessa disciplina. Como a escola

poderá avaliar esse domínio do intérprete? E como assegurar a transmissão exata dos

conteúdos em LE?

Outro ponto complexo relacionado à classe de LE com surdos refere-se,

notadamente, ao contexto inclusivo, no qual educandos surdos e ouvintes participam da

mesma aula. Por apresentarem estruturas linguísticas diferentes, a LIBRAS e a LE a ser

ensinada, não podem ser utilizados concomitantemente pelo educador, caso este seja

praticante da LIBRAS. Tal prática, como enfatiza Quadros (1997), gera um sistema

linguístico artificial conhecido como bimodalismo, no qual os sinais são utilizados na

estrutura da língua oral.

Assim, ainda que o professor de LE seja praticante da LIBRAS, no contexto da

classe inclusiva a presença do intérprete torna-se indispensável, pois somente assim a

estruturas das duas línguas serão preservadas. Contudo, retornamos ao impasse da

atuação do intérprete frente à uma língua para a qual ele não foi formado.

Diante dessa situação, percebemos que o ensino da LE em classe inclusiva com

surdos poderá seguir dois caminhos distintos. No primeiro, o educador ministrará as aulas

de LE em português a fim de que o intérprete possa compreender e transmitir os conteúdos

ao educando surdo. Sabe-se, porém, que essa prática privará os educandos ouvintes de

desenvolverem a compreensão e a produção orais em LE. No segundo, o educador

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ministrará as aulas normalmente em LE e caberá ao intérprete, considerado conhecedor

dessa língua, interpretá-la ao educando surdo. Entretanto, o educador não terá como

avaliar se os conteúdos estão sendo transmitindo corretamente, e o surdo, ao depender

dos conhecimentos do intérprete sobre essa LE, poderá ter o aprendizado comprometido

caso esses conhecimentos não sejam condizentes com o nível que se espera.

Cabe lembramos que a atuação do intérprete na escola funciona nas duas direções,

ou seja, ele interpreta as falas do professor para o educando surdo, do português para a

LIBRAS, e, como em qualquer classe regular, o educando surdo pode fazer colocações,

indagações, etc., que o intérprete deverá transmitir ao professor e/ou à classe, da LIBRAS

para o português. No caso da aula de LE, como se dará a interpretação das falas do

educando surdo, da LIBRAS para a língua áudio-oral? Esse intérprete deverá “falar” em

português ou na LE?

Todos esses questionamentos devem ser pensados com seriedade, pois a educação

dos surdos não pode se submeter a ações paliativas e/ou duvidosas, mas sim, realistas e

eficazes, que favoreçam sempre a progressão do educando.

Nessa segunda opção, que, em parte, privilegia a maioria ouvinte, não há um

trabalho pedagógico comum a todos os educandos, ouvintes e surdos, que possa

desenvolver as competências de comunicação inerentes às especificidades de todos. As

atividades envolvendo exercícios de compreensão e de produção orais, por exemplo, são

de grande relevância para o aprendizado do educando ouvinte, porém, para o surdo, são

totalmente inúteis. De uma ou de outra forma, entendemos que, numa proposta inclusiva,

tanto os educandos surdos quanto os ouvintes terão o aprendizado da LE prejudicado por

não poder haver um desenvolvimento pleno das capacidades de todos os educandos.

A partir dessa constatação, entendemos que, a classe de LE com surdos necessita

de uma total adaptação do contexto de ensino-aprendizagem, que abranja diferentes

elementos como a metodologia de ensino, os procedimentos pedagógicos, o material

didático selecionado, além do importante trabalho do intérprete. Isso só é possível sob

duas condições.

Primeiramente, ainda que o educando surdo esteja matriculado em uma escola

inclusiva, é preciso que o ensino da LE se dê em classe especial, unicamente. Jamais em

classe inclusiva. Somente em uma classe de LE composta unicamente por educandos

surdos, cuja condição linguística não pode ser ignorada, o professor poderá desenvolver

técnicas de ensino realmente adaptadas.

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Como aponta Fusellier-Souza (2003, p.94), dentre as quatro competências de

comunicação abordadas no ensino das LEs (compreensão escrita e oral, e produção escrita

e oral), o surdo bilíngue, em função de suas motivações, é perfeitamente capaz de

desenvolver ao menos duas: a compreensão e a produção escritas. Ele também pode

desenvolver a produção oral, caso deseje e seja oralizado em português.

Por essas razões, é preciso separar o surdo do ouvinte na classe de LE pois,

somente dessa forma, as potencialidades de ambos podem ser exploradas de forma

adequada, valorizando o desenvolvimento de diferentes habilidades, otimizando os

resultados de um trabalho pedagógico adaptado e, principalmente, respeitando as

especificidades linguísticas de todos os educandos.

Em segundo lugar, uma vez separado (s) o (s) surdo (s) dos colegas ouvintes, o

ensino da LE em classe especial deve se dar por meio de uma abordagem bilíngue

(LIBRAS / LE) na qual a LIBRAS é a língua de comunicação e de ensino e a LE é a

língua ensinada. Para que isso seja possível, é de suma importância que o professor seja

praticante da LIBRAS tendo o auxílio do intérprete em função de sua proficiência e de

suas necessidades de comunicação com os educandos.

Os estudos de Formozo (2008) sobre a atuação do intérprete em classes inclusivas,

nos quais foram realizadas entrevistas junto a educandos surdos, demonstram a

preferência destes por uma comunicação direta com o professor, sem passar pelo

intérprete. Em um dos relatos colhidos, um determinado educando afirma que “o uso de

intérprete é ruim na educação, intérprete é bom na comunidade, para ajudar o surdo. Na

aula precisa um contato direto entre o professor e o aluno, com o intérprete fica indireto

(Entrevistado 2)” (Formozo, 2008, p.62).

Na concepção de um outro educando surdo entrevistado, “o uso do intérprete é

bem confuso porque o surdo não sabe pra quem vai direcionar o olhar, se vai olhar direto

para o professor, ou se vai olhar para o intérprete porque tem muitas coisas que o

intérprete perde (Entrevistado 3)” (Formozo, 2008, p.61).

Ter conhecimento da LIBRAS é, de fato, um elemento de grande valia na atuação

do professor do surdo. Entretanto, sabemos que, na prática, é raro que as escolas

disponham de um quadro de professores, tanto de LE quanto de outras disciplinas,

conhecedores da LIBRAS e da cultura surda. Por isso, caberá à escola tomar medidas

para se adaptar a essa nova realidade, promovendo a capacitação de seus profissionais, a

fim de suprir as necessidades educacionais especiais desses novos educandos. Quantos

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aos professores, é essencial que se conscientizem cada vez mais dessa necessidade,

buscando informar-se e aperfeiçoar-se, pois os educandos especiais já chegaram às

escolas e não podem mais esperar. A necessidade é imediata e as ações em prol da

promoção de um ensino adaptado devem acontecer já!

Além de um ensino adaptado das LEs ao público surdo, seria interessante

pensarmos na possibilidade da inclusão das línguas de sinais estrangeiras no currículo das

instituições de educação especializadas. Em nossa experiência no ensino do Francês

Língua Estrangeira aos surdos, tivemos a oportunidade de inserir a Língua de Sinais

Francesa (LSF) na abordagem de alguns conteúdos linguísticos. Nessas ocasiões, os

educandos se mostraram bastante interessados e entusiasmados diante da ideia de

poderem se comunicar em LSF com surdos franceses.

A esse respeito, Leeson (2006) menciona como exemplo a Suécia, onde essa

prática já existe há alguns anos. As escolas para surdos nesse país oferecem, a partir do

Ensino Médio, o ensino da Língua de Sinais Americana e da Língua de Sinais Britânica

como disciplinas optativas. A autora cita também, o exemplo da Irlanda do Norte, onde

centros de línguas oferecem cursos noturnos de Língua de Sinais Britânica e de Língua

de Sinais Irlandesa para a comunidade, abrangendo o aprendizado a surdos e ouvintes.

No Brasil, para que isso fosse possível, seria preciso investir na especialização de

professores, preferencialmente surdos, enviando-os para aprenderem as línguas de sinais

estrangeiras nos países onde são praticadas e habilitando-os para desenvolverem, aqui, o

ensino dessa língua e da cultura desse país. Os benefícios desse aprendizado seriam,

certamente, impactantes para o educando surdo, permitindo-lhe a possibilidade de

interagir com surdos estrangeiros, realizar intercâmbio estudantil e cultural e,

principalmente, desenvolver-se através da experiência que somente o contato com o outro

pode proporcionar. Através dessa oportunidade de aprendizado, o surdo brasileiro poderia

vislumbrar a possibilidade de estudar em universidades estrangeiras para surdos como,

por exemplo, a Gallaudet University, nos Estados Unidos, ou outras localidades onde o

acesso à formação se dá integralmente na língua de sinais praticada naquele país.

Até o presente momento, tratamos a questão do ensino das LEs ao público surdo

brasileiro somente em contexto escolar. Mas e se o surdo, seja qual for a sua idade, desejar

aprender uma LE em um curso de idiomas, como se dará esse processo? Existe a oferta

de ensino adaptado a esse público nos cursos privados de línguas estrangeiras?

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3.4 O ensino das línguas estrangeiras ao público surdo fora da escola

Os cursos ou escolas de idiomas são estabelecimentos de ensino onde é possível

aprender uma língua estrangeira fora do contexto escolar. Conforme a legislação

brasileira, tais estabelecimentos se enquadram na categoria de “curso livre”, cuja base

legal foi determinada pelo Decreto N° 5.154, de 23 de julho de 2004, Art. 1° e 3°, e pela

Portaria Nº 008, de 25 de junho de 2002 publicado no Diário Oficial – SC, Nº 16.935, em

27 de junho de 2002. Com a Lei Nº 9.394/96 – Diretrizes e Bases da Educação Nacional

os cursos livres passaram a integrar a modalidade de Educação Profissional, contudo, tais

formações não têm vínculo nem reconhecimento junto ao MEC.

No que diz respeito ao funcionamento dos cursos de idiomas, não há uma rigidez

ou obrigatoriedade em relação à carga horária do curso, ao tempo de duração, nem ao

diploma/certificado a ser expedido pela instituição. Esses elementos são definidos de

forma autônoma, podendo variar de um curso para o outro. Apesar disso, podemos

perceber que há, nesses cursos, uma tendência para o uso das pedagogias com enfoque

comunicativo e acional, que visa ao desenvolvimento das habilidades de compreensão

escrita e oral e de produção escrita e oral em conformidade com os parâmetros do Quadro

Europeu Comum de Referência (QECR) para as línguas.

Por não estarem enquadrados nas normas previstas para a Educação Especial, os

cursos livres não têm a obrigatoriedade de seguirem as leis voltadas para a inclusão

educacional das pessoas portadoras de necessidade especiais, nem as recomendações do

Programa Nacional de Apoio à Educação dos Surdos. Diante disso, as perspectivas para

o acesso do surdo ao aprendizado de idiomas fora da escola não são animadoras, pois a

promoção de um ensino adaptado e inclusivo nesse tipo de estabelecimento é algo raro.

Posto isto, onde o surdo pode aprender LEs fora da escola? Que resposta os centros

de idiomas dão ao cliente surdo que adentra suas dependências no intuito de se matricular

em um de seus cursos? Vislumbrar o ensino das LEs ao público surdo em cursos de

idiomas que ofereçam um ensino adaptado através de professor (es) bilíngue (s)

(LIBRAS-LE) seria uma utopia? A questão da acessibilidade está no centro das

discussões sobre a inclusão social das pessoas portadoras de deficiência, por isso, não

podemos ignorar que, em muitos estabelecimentos, as portas estão fechadas para o surdo.

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79

É bem verdade, que o oferecimento de classes especiais de LE para surdos nos

cursos privados requereria certo investimento por parte da instituição na contratação de

professor especializado e/ou de intérprete de LIBRAS, além da aquisição ou da

preparação de material didático adaptado. Como tudo isso geraria uma despesa

suplementar para o empreendedor, sem, contudo, trazer-lhe uma rentabilidade

substancial, este tende a não se interessar pelo oferecimento de tal formação.

Apesar disso, acreditamos que as escolas de idiomas não recusariam um educando

com necessidades especiais que adentrasse sua porta, mesmo porque isso denotaria

discriminação à pessoa portadora de deficiência, conforme a LEI Nº 13.146 - Lei

Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência),

de 6 de julho de 2015, a qual é “destinada a assegurar e a promover, em condições de

igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com

deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania” (BRASIL, 2015).

Ao supormos a inclusão de um surdo em uma classe regular de LE de uma escola

de idiomas brasileira, imaginamos como se daria sua adaptação, seu aprendizado e suas

interações tanto com o educador ouvinte, quanto com os colegas da classe, também

ouvintes. Nesse ponto, trazemos à nossa reflexão a questão da formação dos professores

dos cursos de idiomas.

Como é sabido, em muitos desses estabelecimentos, o ensino não é transmitido

por um professor portador de um diploma de Licenciatura em Letras, pois na legislação

não há essa obrigatoriedade para cursos livres. Nesses casos, são contratados instrutores

ou monitores de idiomas que tenham proficiência na língua a ser ensinada, sendo bastante

valorizados para esse cargo estrangeiros residentes no Brasil ou brasileiros que tiveram

experiências de viagem em países onde essas línguas são faladas.

Por não ter tido uma formação que fornecesse uma noção básica sobre educação

especial, inclusão, acessibilidade e necessidades educacionais especiais, como está

previsto nos cursos de licenciatura, esse professor poderá ter sérias dificuldades em

dispensar um ensino adaptada ao educando portador de qualquer deficiência. Ainda

assim, ele poderá buscar informações e estratégias para se comunicar com seu educando

tentar trazer-lhe um ensino adaptado.

Todavia, dentre as especificidades das diversas deficiências, sejam de natureza

física, mental, intelectual ou sensorial, nenhuma delas apresenta a barreira

comunicacional imediata característica do contato entre ouvinte o surdo. Mesmo no caso

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dos cegos ou dos portadores de síndromes que afetam a cognição, a comunicação se dará

pela fala desde o primeiro contato entre o professor e o aluno. Diferentemente, diante da

surdez, se o professor não for praticante da LIBRAS e o surdo não for oralizado, o entrave

comunicacional é iminente, não havendo possibilidade de comunicação nem, por

conseguinte, de aprendizado. É por isso que os surdos não procuram os cursos de idiomas.

Diante do exposto, entendemos que o acesso do surdo ao aprendizado da LE em

um curso de idiomas só seria possível a partir de uma prática semelhante à defendida no

caso do ensino em contexto escolar. Primeiramente, o ensino aconteceria em classe

especial (ainda que ele seja o único aluno) e não inclusiva. Em segundo lugar, o professor

deveria se praticante da LIBRAS ou, na ausência desse conhecimento, tivesse o suporte

de um intérprete (Português-LIBRAS). Assim, o professor teria plenas condições de

desenvolver suas habilidades de compreensão e produção escritas em LE.

Para que haja uma real inclusão da pessoa surda nos mais diversos setores da

sociedade, faz-se necessário um reconhecimento político-social da surdez e da condição

linguística do indivíduo surdo, que resulte em investimentos mais amplos, incluindo a

presença obrigatória da LIBRAS e de intérpretes não somente na Educação Especial, mas

também na Educação Profissional, na qual se inserem os cursos livres.

Atualmente, as propostas de ensino de idiomas adaptadas às especificidades dos

surdos têm acontecido em algumas universidades do Brasil, especialmente nas faculdades

de Letras, e em instituições dedicadas exclusivamente ao atendimento às pessoas com

surdez. A maioria delas é pontual, oferecendo uma formação básica com carga horária

definida. Dentre elas, podemos destacar alguns exemplos como os cursos de inglês para

surdos, oferecidos em diferentes instituições como: a Faculdade de Letras da

Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); o Curso de Línguas Aberto à

Comunidade (CLAC), na Faculdade de Letras da UFRJ; e a Federação Nacional de

Educação e Integração dos Surdos de São Paulo. Além do inglês, não podemos deixar de

mencionar o curso de francês para surdos oferecido, recentemente, no âmbito de um curso

de extensão na Faculdade de Letras da UFRJ, o qual foi objeto de nossa análise no

capítulo 4 da presente investigação.

No que tange à limitação do acesso ao aprendizado em cursos de idiomas, é

preciso mencionarmos que tal dificuldade não contempla somente os portadores de

necessidades especiais. Como pontua Paiva,

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Apesar de todos os setores da sociedade reconhecerem a importância do ensino

de língua estrangeira, as políticas educacionais nunca lhe asseguraram uma

inserção de qualidade em nossas escolas. Em busca dessa qualidade, as classes

privilegiadas sempre procuraram garantir a aprendizagem de línguas nas

escolas de idiomas ou com professores particulares, mas os menos favorecidos

continuaram à margem desse conhecimento. (PAIVA, 2003, p. 57)

De fato, o acesso dos “menos favorecidos” aos cursos de idiomas privados é

bastante restrito, notadamente, por serem dispendiosos. Porém, existem outros fatores que

restringem esse acesso, como a ausência de programas voltados para a inclusão e o ensino

adaptado, o que exclui, também, os portadores de necessidades especiais pertencentes às

“classes privilegiadas”. Assim, os indivíduos portadores de necessidades educacionais

especiais fazem parte desse grupo “menos favorecido” que fica “à margem desse

conhecimento”, tendo a escola como o único lugar onde se pode ter acesso ao aprendizado

da LE.

Cabe ressaltarmos que, no Brasil, o ensino dispensado em cursos de idiomas é

bastante valorizado e tem uma importante representação social. Muitas vezes, há a

veiculação de uma ideia distorcida “de que só em cursinho se aprende a língua, não na

escola (em uma nítida confusão dos papéis do ensino da língua estrangeira nesses dois

âmbitos)” (FREITAS, 2012, p.189).

Tal concepção pode, em parte, ser atribuída às recomendações dos Parâmetros

Curriculares Nacionais de língua estrangeira, no que se refere ao enfoque do ensino sobre

a competência leitora devido às adversidades presentes na escola. Tal situação, levaria os

estudantes à procura de cursos de idiomas como um meio de acessar às outras

competências de comunicação que a escola não poderia abranger. Conforme tal

documento,

Deve-se considerar também o fato de que as condições na sala de aula da

maioria das escolas brasileiras (carga horária reduzida, classes superlotadas,

pouco domínio das habilidades orais por parte da maioria dos professores,

material didático reduzido a giz e livro didático etc.) podem inviabilizar o

ensino das quatro habilidades comunicativas. Assim, o foco na leitura pode ser

justificado pela função social das línguas estrangeiras no país e também pelos

objetivos realizáveis tendo em vista as condições existentes. Isso não quer

dizer, contudo, que dependendo dessas condições, os objetivos não possam

incluir outras habilidades, tais como compreensão oral e produção oral e

escrita. (Brasil, 1998, p.21)

Essa colocação provocou grande polêmica e muitos educadores criticaram esse

enfoque sobre a leitura, caracterizando-o como uma proposta elitista, que inviabilizaria o

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acesso a um aprendizado completo que abrangesse todas as competências de

comunicação que podem ser exploradas no ensino das LEs. Tais discussões perduram até

os dias de hoje.

Observamos, contudo, que esse parecer não exclui o trabalho sobre as outras

habilidades na escola, como a compreensão oral e a produção oral e escrita. Ao contrário,

os PCNs ressaltam que tal desenvolvimento pode ocorrer em função das condições

existentes em sala de aula.

Em entrevista concedida à revista Nova Escola em 2009, a professora Antonieta

Celani, coautora dos PCNs comenta tal interpretação:

Nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) de Língua Estrangeira

lançados em 1998, do qual sou co-autora, recomendamos a ênfase em leitura e

escrita, considerando as situações do contexto brasileiro. Fomos massacrados.

Diziam que a proposta era elitista, pois excluía a possibilidade de acesso do

estudante ao desenvolvimento das quatro habilidades - ler, falar, escrever e

compreender. Mas como, sem preparo, o professor pode desenvolver a

habilidade da fala com cinquenta crianças por classe em duas horas semanais?

Agora, justamente as práticas de leitura e escrita aparecem como uma

necessidade social. (CELANI, 2009)

Parte das críticas ao favorecimento da competência leitora enfatizado nos PCNs

estão voltadas para a defesa de um aprendizado da LE que permita ao educando o

desenvolvimento de todas as competências de comunicação. Contrapondo essa ideia, ao

considerarmos o conceito de bilinguismo abordado no capítulo 2, percebemos que a

proficiência em uma língua estrangeira não deve ser atestada somente pelo domínio das

quatro habilidades, mas sim pelo uso prático e social dessa língua de acordo com as

necessidades de comunicação do indivíduo.

Entretanto, não se pode negar que o desenvolvimento da competência leitora é, de

fato, um aspecto essencial no percurso escolar e isso abrange o aprendizado da LE.

Conforme apontado nos PCN,

(...) a leitura atende, por um lado, às necessidades da educação formal, e, por

outro, é a habilidade que o aluno pode usar em seu contexto social imediato.

Além disso, a aprendizagem de leitura em Língua Estrangeira pode ajudar o

desenvolvimento integral do letramento do aluno. A leitura tem função

primordial na escola e aprender a ler em outra língua pode colaborar no

desempenho do aluno como leitor em sua língua materna. (BRASIL, 1998,

p.20)

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Essa noção vai de encontro com os princípios norteadores do letramento, que leva

em conta a trajetória do indivíduo, seu conhecimento de mundo e suas experiências

anteriores no momento da realização de novas interações sociais por meio da leitura.

Assim, em concordância com o exposto acima, a aprendizagem da LE pode ter uma

relevante contribuição no desenvolvimento do letramento do educando, assim como a L1

(e no caso dos surdos, a L2) terá influência no processo de ensino-aprendizagem da LE e

nas práticas de letramento realizadas nessa língua.

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4 POR UM ENSINO ADAPTADO DAS LÍNGUAS ESTRANGEIRAS AO

PÚBLICO SURDO – APORTES TEÓRICOS

[...] o conhecimento sem compreensão não serve, na

verdade, para muita coisa. Não se tem só que saber

algo por sabê-lo; também se precisa saber o porquê

desse saber, o porquê que o conhecimento faz

“sentido”, no duplo significado do termo, o do

‘sentido’ que inclui a “direção”.

(Jacob L. Mey, 1998)

Neste capítulo, temos como objeto de interesse os aportes teóricos de especialistas

da área no letramento, da didática do FLE e da educação dos surdos, os quais nos serviram

de embasamento para a elaboração de estratégias didático-pedagógicas que

possibilitassem, além da implementação de uma prática de ensino realmente adaptada às

especificidades do educando surdo, a enumeração de repertórios didáticos que

favorecessem o processo de ensino-aprendizagem.

4.1 O letramento na classe de LE com surdos

A busca de um caminho didático-pedagógico que permita um ensino-

aprendizagem das LEs ao público surdo de modo eficaz tem representado grande parte de

nossos esforços nesta investigação. Embora não haja uma metodologia de ensino

específica para esse contexto, podemos nos apoiar, em parte, nos estudos voltados para o

ensino da Língua Portuguesa como L2 para o surdo brasileiro, especialmente aqueles que

abordam o desenvolvimento das práticas de letramento em classes com surdos.

Semelhantemente ao português, a LE com a qual o surdo terá contato em contexto

escolar ou em cursos de idiomas é de modalidade áudio-oral. Por essa razão, entendemos

que algumas estratégias de ensino que vêm sendo propostas por alguns professores de

Língua Portuguesa e pesquisadores da área do letramento e da surdez podem ser

adaptadas para a classe de LE com surdos, servindo de norteamento para as estratégias

didático-pedagógicas elaboradas pelo professor e contribuindo para o aprendizado desse

público.

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Como nosso foco principal para o ensino do FLE ao público surdo é o

desenvolvimento da competência de leitura e o seu uso nas interações sociais, a

compreensão dos princípios norteadores do letramento são essenciais para nosso estudo.

Sendo assim, traçaremos, primeiramente, um breve relato sobre o surgimento e a evolução

do termo no Brasil e, em seguida, abordaremos os desdobramentos e os desafios das

práticas de letramento em classes com surdos.

4.1.1 A origem do termo no Brasil - um breve relato

Letramento é um termo relativamente recente sobre o qual tem-se desenvolvido

pesquisas e discussões em diversas áreas de conhecimento como a educação, a linguística,

a psicolinguística, a sociologia, entre outros.

De acordo com Soares (1998), a palavra letramento teria surgido pela primeira

vez no Brasil nos anos 1980, através de uma publicação da professora linguista Mary

Kato (1986) denominada “No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística”. Mais

tarde, na obra “Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso” (1988), a linguista Leda

V. Tfouni viria a distinguir alfabetização de letramento. Na década seguinte, viu-se a

publicação de duas importantes obras nas quais o termo letramento já figurava como parte

do título, a saber, “Os significados do letramento” (Kleiman, 1995) e “Letramento: um

tema em três gêneros” (Soares, 1998). Tais obras trouxeram grande contribuição para a

fomentação e a reflexão sobre o tema na área da educação no Brasil.

Com efeito, o surgimento de um novo termo em determinada área de estudo

denota a necessidade de se caracterizar um evento ou fenômeno que, devido a suas

particularidades, não pode mais der definido de modo satisfatório pelos termos já

existentes. Assim, a respeito do termo em questão, Tfouni (2010) assinala que “A

necessidade de se começar a falar em letramento surgiu (...) da tomada de consciência

que se deu, principalmente entre os linguistas, de que havia alguma coisa além da

alfabetização, que era mais ampla, e até determinante desta” (TFOUNI, 2010, p. 32).

Até esse momento, os termos alfabetismo e analfabetismo bastavam para

caracterizar um indivíduo quanto a sua condição de saber ler ou não, saber escrever ou

não. Porém, as demandas sociais dos usos da leitura e da escrita evoluíram, de modo que,

dizer que um indivíduo é alfabetizado ou analfabeto passaram a não ser suficientes para

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qualificar suas capacidades de agir socialmente por meio da leitura e da escrita. É em

meio a discussões sobre esses saberes que surge o termo letramento.

Quanto a sua etimologia, Soares (op. cit.) explica que a palavra letramento, em

português, é uma tradução do inglês literacy (do latim littera [letra] + cy [condição ou

estado de]) que significaria, segundo a autora, a condição de ser letrado. Nesse ponto, a

autora destaca a importância de se diferenciar o termo “letrado” utilizado em inglês com

o sentido de “educado; especificamente, que tem a habilidade de ler e escrever”

(SOARES, op. cit., p.35), daquele que é comumente utilizado no Brasil, com o sentido

de erudito ou versado em letras. Apesar desses dois entendimentos sobre o termo serem

bastante recorrentes, existem outras definições mais profundas e abrangentes e as

pesquisas têm demonstrado que os especialistas estão longe de estabelecer um senso

comum quanto a sua definição.

Por isso, é essencial que delimitemos, primeiramente, o conceito de letramento

com o qual trabalhamos na presente investigação e, em segundo lugar, que delineemos o

letramento que se espera encontrar e desenvolver no início e durante o processo de ensino-

aprendizagem das LE ao público surdo.

Antes de passarmos a tópico que abordará as conceituações, cabe ressaltarmos

que, além da variação dos sentidos empregados para o termo letramento, existe, também,

uma diversificação quanto à escolha da palavra adotada em alguns países. Enquanto no

Brasil, utiliza-se o termo letramento, em Portugal, optou-se pelo emprego de literacia,

que mais se aproxima da palavra em inglês literacy. Nos países francófonos, por sua vez,

percebe-se uma maior variação ortográfica do termo, podendo ser referido como:

littératie (termo utilizado com maior frequência), littéracie (com “c”), litéracie (com um

“t”), lecturisation ou, ainda, litéracité, em função da concepção de diferentes

pesquisadores. A obra “La Littératie – conceptions théoriques et pratiques

d’enseignement de la lecture-écriture”, organizada por Miniac, Brissaud e Rispail (2004),

apresenta uma coletânea de textos de diversos autores sobre a noção de letramento, na

qual podem-se observar diferentes grafias do termo. Como destacam os organizadores no

prefácio, “a aceitação da variação ortográfica nos parece constituir a maior garantia da

aceitação de uma pesquisa aberta às evoluções, que não cristaliza de imediato as regras e

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as normas de seu avanço”18. (MINIAC; BRISSAUD; RISPAIL, 2004, p.13, tradução

nossa).

No próximo tópico abordaremos alguns conceitos sobre alfabetização, letramento

e outros termos a estes relacionados. Entretanto, não temos a intenção de esgotar a análise

de suas evoluções e abrangências práticas, pois, como veremos, esses termos apresentam

entendimentos e aplicações bastante complexas que variam segundo a percepção dos

especialistas em diversos países.

4.1.2 Alfabetização e letramento – conceitos e empregos

Desde o surgimento do termo letramento, muito se tem discutido sobre seu

conceito, sua correlação com o termo alfabetização e os impactos dessa nova definição

sobre a prática do ensino da leitura e da escrita no contexto escolar. Paralelamente, muitas

dúvidas permeiam o entendimento dos educadores sobre sua abrangência. Como assinala

Grando,

Alguns professores pensam que o letramento é um método didático que veio

substituir a alfabetização, outros consideram que alfabetização e letramento

são processos iguais, outros ainda possuem dúvidas sobre como promover uma

proposta voltada para o letramento. (GRANDO, 2012, p. 1)

Para esclarecermos essas oscilações, tomaremos, primeiramente, alguns conceitos

básicos no que se refere à alfabetização. Embora seu conceito tenha evoluído ao longo do

tempo, ela é entendida, geralmente, como a capacidade de ler e de escrever, rementendo-

se à codificação e à decodificação da produção gráfica textual.

A respeito da evolução do entendimento do termo, Rojo (2009) comenta que o

conceito de alfabetismo tende a sofrer alterações de uma época para outra a fim de

acompanhar as mudanças sociais em que se insere. Os formulários do Censo demográfico

do IBGE, por exemplo, até os anos 1940, definiam como alfabetizado aquele que sabia

assinar o próprio nome. Naquela época, as exigências sociais dos usos da leitura e da

escrita não eram tão abrangentes, de modo que, saber assinar o próprio nome atendia às

18 “L’acceptation de la variation orthografique nous a paru constituer le meilleur gage de l’acceptation d’une

recherche ouverte aux évolutions, qui ne fige pas d’emblée les règles et les normes de son avancée”.

(MINIAC, BRISSAUD, RISPAIL, 2004, p.13)

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demandas básicas para que o sujeito pudesse votar, assinar um contrato de trabalho e/ou

realizar outras formalidades que requeriam uma assinatura. A partir da década de 1950, o

IBGE ampliou esse conceito, acordando que “alfabetizada é a pessoa capaz de ler e

escrever pelo menos um bilhete simples no idioma que conhece” (IBGE, 2013, p. 322).

Semelhantemente, a normatização da UNESCO sobre o alfabetismo apresentou

diferentes definições em épocas distintas. Em 1958, acordou-se que “uma pessoa é

alfabetizada quando consegue, com compreensão, tanto ler quanto escrever uma breve

declaração simples sobre sua vida cotidiana” (UNESCO-UIL, 2014, p. 23). Contudo, não

houve uma especificação sobre o que seria uma “declaração simples”, nem a abrangência

do conteúdo sobre a “vida cotidiana” a ser relatado pelo indivíduo. Mais tarde, em 1978,

esse conceito se estendeu, passando-se a considerar a ideia de funcionalidade e de

integração dentro de uma comunidade:

[...] uma pessoa é funcionalmente alfabetizada quando consegue participar de

todas as atividades em que a alfabetização é necessária para o funcionamento

eficaz do seu grupo e de sua comunidade, e também para permitir que ele ou

ela continue a usar a leitura, a escrita e os cálculos para o próprio

desenvolvimento e o de sua comunidade. (Ibidem)

Nesse sentido, os usos da leitura e da escrita não se limitam mais às habilidades

simples propostas na definição anterior, mas estão relacionados às funções

desempenhadas no contexto sociocultural do indivíduo e podem demandar competências

mais abrangentes de acordo com as demandas específicas de seu meio.

Essas mudanças conceituais acompanham, de fato, as evoluções da sociedade.

Conforme a afirmação de Soares,

À medida que o analfabetismo vai sendo superado, que um número cada vez

maior de pessoas aprende a ler e a escrever, e à medida que,

concomitantemente, a sociedade vai se tornando cada vez mais centrada na

escrita (cada vez mais grafocêntrica), um novo fenômeno se evidencia: não

basta aprender a ler e a escrever. As pessoas se alfabetizam, aprendem a ler e

a escrever, mas não necessariamente incorporam a prática de leitura e da

escrita, não necessariamente adquirem competência para usar a leitura e a

escrita, para envolver-se com as práticas sociais de escrita. (SOARES, 1998,

p. 45-46)

No Brasil, essa situação pôde ser observada a partir da superação dos índices

oficiais sobre o analfabetismo. De acordo com os dados do IBGE, houve um importante

decréscimo nesses índices nas últimas décadas. Como ilustra o gráfico abaixo, entre 1940

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e 2010, o número de brasileiros analfabetos acima dos quinze anos de idade passou de

56% a 9,6% da população, ou seja, uma redução de 46.4% no período de 50 anos.

Figura 7 - Taxa de analfabetismo - Censo 2010

IBGE, Censo Demográfico, 1940 – 2010

Fonte: http://g1.globo.com/brasil/noticia/2011/11/ibge-indica-que-analfabetismo-cai-menos-

entre-maiores-de-15-anos.html

Paralelamente à diminuição do analfabetismo, muitas lacunas nos usos de leitura

e escrita na sociedade passaram a se evidenciar. Um número maior de indivíduos é

considerado alfabetizado, porém, percebe-se que muitos deles não conseguem se

apropriar das práticas da leitura e da escrita em seus diversos contextos sociais. Na

prática, encontram grande dificuldade em preencher um formulário, em escrever uma

declaração ou outros tipos de documento, em acessar informações em sites, catálogos,

quadros informativos, em entender o conteúdo das bulas de medicamentos, etc.. Isso

ocorre, pois, como esclarece Rojo (2009),

Para ler não basta conhecer o alfabeto e decodificar letras e sons da fala. É

preciso compreender o que se lê, isto é, acionar o conhecimento de mundo para

relacioná-lo com os temas do texto, inclusive o conhecimento de outros

textos/discursos (intertextualizar), prever, hipotetizar, inferir, comparar

informações, generalizar. (ROJO, 2019, p.11)

Esses sujeitos são chamados por alguns estudiosos de analfabetos funcionais.

Conforme definição da UNESCO, o analfabeto funcional é aquele que sabe ler e escrever

algo simples, sabe fazer cálculos simples, contudo, não possui as habilidades básicas

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necessárias para se desenvolver pessoal e profissionalmente por meio do uso dos cálculos

e das práticas de leitura e escrita cotidianas, ou seja, a pessoa não consegue “funcionar”

nas práticas letradas do meio onde convive. Já na visão de Foucambert (1994), o

analfabetismo funcional “envolve pessoas com vários anos de escolaridade que

dominaram essas técnicas de correspondência grafo-fonética em um certo período de sua

vida, mas perderam esse domínio por falta de uso e de exercício com elas”

(FOUCAMBERT, 1994, p. 118).

Se por um lado os índices de analfabetismos têm diminuído e um número cada

vez maior de pessoas aprende a ler e a escrever, por outro, as dificuldades percebidas nas

práticas socais da leitura e da escrita de muitos indivíduos, inclusive dentro da escola, se

sobressaem. Soares sublinha que

Esse novo fenômeno só ganha visibilidade depois que é minimamente

resolvido o problema do analfabetismo e que o desenvolvimento social,

cultural, econômico e político traz novas, intensas e variadas práticas de leitura

e de escrita, fazendo emergirem novas necessidades, além de novas

alternativas de lazer. Aflorando o novo fenômeno, foi preciso dar um nome a

ele: quando uma nova palavra surge na língua, é que um novo fenômeno surgiu

e teve de ser nomeado. Por isso, e para nomear esse novo fenômeno, surgiu a

palavra letramento. (SOARES, 2001, p. 46)

Com efeito, alfabetização e letramento não podem ser consideradas a mesma

coisa. Dotado de maior complexidade, o letramento envolve um contexto sócio-histórico

e abrange variadas capacidades de leitura e de escrita que se desenvolvem num processo

contínuo, dentro e fora da escola. Já a alfabetização se refere à aquisição da tecnologia de

ler e escrever, à ação de ler e escrever. A esse respeito, Tfouni releva o papel fundamental

da escola como principal agenciador desse processo:

A alfabetização refere-se à aquisição da escrita enquanto aprendizagem de

habilidades para leitura, escrita e as chamadas práticas de linguagem. Isso é

levado a efeito, em geral, por meio do processo de escolarização e, portanto,

da instrução formal. A alfabetização pertence, assim, ao âmbito do individual.

(TFOUNI, 2006, p. 12)

“Individual”, pois, trata-se da aquisição de uma tecnologia e da prática

individualizada desenvolvidas, geralmente, no processo de instrução formal escolar.

Nesse contexto, o indivíduo é levado à realização de tarefas sistemáticas de leitura e de

escrita ligadas às práticas escolares que diferem das mais amplas e variadas práticas

sociais da vida cotidiana.

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Em contraponto a essas práticas individualizadas delineadas no processo de

alfabetização, encontra-se o letramento, definido por Soares como o “estado ou condição

de quem não apenas sabe ler e escrever, mas cultiva e exerce as práticas sociais que usam

a escrita” (SOARES, Op. cit., p. 47). Enquanto a alfabetização se refere ao processo de

aquisição da língua, o letramento envolve o processo de desenvolvimento da mesma, que

evolui numa sequência contínua e se prolonga através dos usos cotidianos de leitura e

escrita do indivíduo ao longo de sua vida.

Ao comparar alfabetização e letramento, Costa (2004, p. 27) ressalta que letrar-se

vai além de alfabetizar-se, salientando que o letramento é complexo e heterogêneo, pois

possui duas dimensões distintas: uma individual, que diz respeito à posse de tecnologias

mentais de ler e escrever, e outra social, que se refere a um fenômeno cultural por se tratar

de atividades sociais por meio da escrita. Essas atividades são manifestadas através da

prática da leitura e / ou da escrita como um instrumento, uma ferramenta para que se possa

atingir um objetivo. Partindo dessa premissa, e em concordância com Soares, entendemos

que

[...] um indivíduo alfabetizado não é necessariamente um indivíduo letrado;

alfabetizado é aquele indivíduo que sabe ler e escrever; já o indivíduo letrado,

o indivíduo que vive em estado de letramento, é não só aquele que sabe ler e

escrever, mas aquele que usa socialmente a leitura e a escrita, pratica a leitura

e a escrita, responde adequadamente às demandas sociais de leitura e escrita.

(SOARES, Op. cit., p. 39)

Esse sujeito, ao desenvolver socialmente o processo de compreensão e de

produção escritas, estabelece relações sociais cujas características vão muito além da

simples capacidade de codificação e decodificação.

Na concepção de Leal (2004), o ato de ler não é algo mecânico, mas sim dinâmico,

através do qual as relações se estabelecem dando lugar a um processo de humanização do

indivíduo leitor. Assim, do individual ao social, esse indivíduo passa a realizar trocas

comunicativas significativas, modificando e sendo modificado, pois “(...) aprender a ler

e a escrever e, além disso, fazer uso da leitura e da escrita transformam o indivíduo, levam

o indivíduo a um outro estado ou condição sob vários aspectos: social, cultural, cognitivo,

linguístico, entre outros” (SOARES, Op. cit., p.38).

Por esse prisma, é interessante observarmos a contribuição dos estudos sobre o

letramento no tocante às práticas de linguagem que ocorrem tanto dentro quanto fora da

escola. Como afirma Tfouni,

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O grande ganho advindo do surgimento das pesquisas sobre o letramento está

no fato de que finalmente passamos a contar com um referencial diferente do

da psicologia e da sociologia, e, deste modo, pôde-se começar a investigar

alfabetizados e não-alfabetizados, escolarizados e não-escolarizados, através

de uma visão que não leva mais em conta o ponto de vista individual ou sócio-

econômico. O foco passou a ser as práticas de linguagem que circulam na

sociedade, sejam elas dentro da escola ou fora dela. (TFOUNI, 2010, p.218-

219)

A esse respeito, Soares (op. cit.) assinala que um indivíduo pode ser analfabeto

por viver social e economicamente à margem da sociedade, porém, se ele vive em um

meio onde a leitura está presente, se ele se interessa em saber o que está reportado em

jornais, revistas e livros, se ele pede para que outros leiam avisos ou informativos em

geral, etc., esse analfabeto pode ser considerado letrado, de certa maneira, pois, mesmo

sem ser aquele que lê, ele está inserido em práticas sociais de leitura e escrita.

Semelhantemente, uma criança que ainda não está na escola e ainda não foi

alfabetizada, pode ser considerada letrada caso seus pais leiam histórias para ela, ou caso

se ela folheie livros, brinque de escrever, etc.. A partir desses exemplos, é possível

percebermos que o letramento abrange práticas diversificadas de leitura e escrita, ainda

que estas se realizem oralmente. Essas vivências de letramento podem se desenvolver

em diferentes espaços, chamados agências de letramento. Por esse prisma, o fenômeno

do letramento

[...] extrapola o mundo da escrita tal qual ele é concebido pelas instituições que

se encarregam de introduzir formalmente os sujeitos no mundo da escrita.

Pode-se afirmar que a escola, a mais importante das agências de Letramento,

preocupa-se não com o letramento prática social, mas com apenas um tipo de

prática de letramento, qual seja, a alfabetização, o processo de aquisição de

códigos (alfabético, numérico) processo geralmente concebido em termos de

uma competência individual necessária para o sucesso e promoção na escola.

Já outras agências de letramento, como a família, a igreja, a rua - como lugar

de trabalho -, mostram orientações de letramento muito diferentes.

(KLEIMAN, 1995, p. 20)

Consideram-se agências de letramento as instituições ou grupos sociais onde o

indivíduo desenvolve as mais variadas práticas de letramento como, por exemplo, a

escola, a família, o trabalho, o bairro e a igreja, entre outras. Nesses diferentes contextos

realizam-se as mais variadas práticas sociais e culturais de leitura e escrita pertinentes ao

tempo e ao espaço em que ocorrem, de modo que, para além de letramento, cabe falarmos

de letramentos.

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Em 1983, o professor Denny Taylor cunhou o termo “letramento familiar” para

abordar as práticas de letramento ocorridas na família. Seus estudos sobre o papel da

família no processo de aprendizagem da leitura e da escrita pela criança evidenciam que

esta é fortemente influenciada pelas práticas diárias de letramento desenvolvidas pelos

membros da família, desempenhando, assim, um papel fundamental para seu sucesso

escolar. Essas práticas de letramento familiar podem ser espontâneas ou ter um objetivo

determinado. Para os pesquisadores Frier, Pons e Grossmann (2004), os momentos

informais em que o pai ou a mãe leem para a criança não alfabetizada, interagem,

comentam e instigam o diálogo a partir dessas leituras, possibilitam que a criança tenha

acesso amplo à língua escrita mesmo antes da escolarização. Tais práticas são

heterogêneas podendo haver diferentes estilos de leitura, teatralizações, abordagens

didáticas (com descrições e explicações sobre determinado elemento), exploração dos

recursos imagéticos, reflexões, etc.. Entende-se, com isso, que a família é, de fato, uma

agência de letramento de peso para o desenvolvimento da criança, influenciando

diretamente suas práticas e progressão na principal agência de letramento para o

indivíduo, a escola.

Kleiman comenta sobre as diversas práticas de letramento em contextos

específicos, notadamente, na escola. Segundo a autora,

Podemos definir hoje o letramento como um conjunto de práticas sociais que

usam a escrita, como sistema simbólico e como tecnologia, em contextos

específicos, para objetivos específicos. [...] As práticas específicas da escola,

que forneciam o parâmetro de prática social segundo a qual o letramento era

definido, e segundo a qual os sujeitos eram classificados ao longo da dicotomia

alfabetizado ou não‐alfabetizado, passam a ser, em função dessa definição,

apenas um tipo de prática – de fato, dominante – que desenvolve alguns tipos

de habilidades, mas não outros, e que determina uma forma de utilizar o

conhecimento sobre a escrita. (KLEIMAN, 1995,

p. 18-19)

De fato, é na escola que se aprende a ler e a escrever, ou seja, que se é alfabetizado.

Contudo, alfabetizar na escola significa, muitas vezes, desenvolver junto à criança

unicamente as práticas de leitura e escrita artificiais, treinando-a apenas para a realização

das atividades escolares e das avaliações. Acontece que isso não basta para que ela tome

gosto pela leitura e crie o hábito de ler quando está fora do contexto escolar. Ao

observarmos as práticas comuns de leitura e escrita na escola, percebemos que o modelo

de ensino está mais voltado para o desenvolvimento de competências individuais do que

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das sociais, e que a centralização do processo de ensino-aprendizagem encontra-se no

sucesso escolar, ou seja, na aprovação no ano letivo. Assim, os exercícios visam ao

desenvolvimento da capacidade do educando em realizar tarefas artificiais que em nada

se assemelham às interações sociais cotidianas.

Um exemplo disso é o uso de material didático não autêntico, ou seja, fabricado

especialmente para a sala de aula. Embora o uso desse tipo de material vise à facilitação

da apreensão do conteúdo pelo educando, sua não autenticidade o distancia da prática de

uma situação real de comunicação por meio da leitura e da escrita. Mesmo sem fazer

referência ao termo letramento, os PCN fazem essa recomendação, salientando que

Ensinar a escrever textos torna-se uma tarefa muito difícil fora do convívio

com textos verdadeiros, com leitores e escritores verdadeiros e com situações

de comunicação que os tornem necessários. Fora da escola escrevem-se textos

dirigidos a interlocutores de fato. Todo texto pertence a um determinado

gênero, com uma forma própria, que se pode aprender. Quando entram na

escola, os textos que circulam socialmente cumprem um papel modelizador,

servindo como fonte de referência, repertório textual, suporte da atividade

intertextual. A diversidade textual que existe fora da escola pode e deve estar

a serviço da expansão do conhecimento letrado do aluno (BRASIL, 1997, p.

28).

A partir dessas reflexões, entendemos que os esforços da escola devem estar

voltados para o desenvolvimento do letramento da criança desde a fase da alfabetização,

trazendo para dentro da sala de aula situações reais dos usos da leitura e da escrita. Na

verdade, alfabetização e letramento devem ser vistos como elementos que se

complementam e, por isso, a aprendizagem não deve ser separada do uso. O ideal é que

o educador alfabetize letrando, ou seja, que ele desenvolva no educando a tecnologia de

ler e escrever, associada aos usos sociais da leitura e da escrita.

A construção da condição do ser letrado, capaz de lidar com as exigências sociais

dos usos da leitura e da escrita presentes no dia a dia é, de fato, uma responsabilidade da

escola. A esse respeito, os PCN de Língua Portuguesa trazem uma importante observação:

[...] um projeto educativo comprometido com a democratização social e

cultural atribui à escola a função e a responsabilidade de garantir a todos os

seus alunos o acesso aos saberes linguísticos necessários para o exercício da

cidadania, direito inalienável de todos (BRASIL, 1997, p. 21).

E, considerando que o letramento é um processo contínuo, essa prática deve se

estender durante toda a educação básica, promovendo a transformação do educando e a

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progressão de suas competências em leitura e escrita, e reforçando o papel da escola

enquanto agência de letramento, formadora de cidadãos autônomos, críticos e atuantes na

sociedade. Como enfatiza Soares (1998), o letramento tem um efeito transformador na

vida do indivíduo.

Socialmente e culturalmente, a pessoa letrada já não é a mesma que era quando

analfabeta ou iletrada, ela passa a ter uma outra condição social e cultural - não

se trata propriamente de mudar de nível ou de classe social, cultural, mas de

mudar seu lugar social, seu modo de viver na sociedade, sua inserção na cultura

- sua relação com os outros, com o contexto, com os bens culturais torna-se

diferente. (SOARES, 1998, p.37)

4.1.3 Práticas e níveis de Letramento

Como vimos anteriormente, a definição do termo letramento é bastante ampla e

nem sempre encontra um consenso entre os especialistas das diversas áreas de estudo

como a sociologia, a educação, a linguística, entre outras. Se definir letramento já não é

uma tarefa fácil, determinar sua abrangência e enquadrar as habilidades de interação do

indivíduo por meio da leitura e da escrita em níveis de letramento revela-se um exercício

ainda mais complexo.

Segundo Tfouni (1995), nas sociedades modernas e caracterizadas pelo progresso

tecnológico não existiria um “grau zero” de letramento, de modo que os termos “iletrado”

ou “iletramento” não poderiam ser utilizados como antônimos de “letrado” ou

“letramento”, respectivamente, sobretudo se consideramos que estes não possuem um

único sentido. Essa impossibilidade se daria ao fato de que, as sociedades modernas são

grafocêntricas e, ainda que o indivíduo seja analfabeto ou analfabeto funcional,

dificilmente ele não estaria inserido em alguma prática de letramento em suas interações

sociais diárias. Contudo, essas práticas acontecem em diferentes níveis os quais

delinearão uma maior ou menor interação por meio da leitura e da escrita e determinarão

a inserção social do indivíduo. Conforme a elucidação de Di Nucci,

As diferentes práticas de letramento presentes no cotidiano do indivíduo

contribuem para que ele possa desenvolver as habilidades de codificar e

decodificar a língua escrita e de compreendê-la em seu contexto, sendo que

tais habilidades variam de intensidade, em função dos usos. Essa variação é

decorrente da familiaridade que ele tem com as práticas sociais e escolares da

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escrita no cotidiano, o que determina os diferentes níveis de letramento. (DI

NUCCI, 2002, p.2)

As chamadas práticas de letramento se referem aos variados usos de leitura e de

escrita, ainda que esses ocorram oralmente (ou gestualmente, no caso dos surdos). Rojo

(2009) aborda a ideia de uma pedagogia do multiletramento ou dos letramentos múltiplos,

que permite o uso de linguagens variadas e de diferentes formas de significação que vão

além do uso das letras, podendo envolver, sons, imagens, gestos, sinais, desenhos,

tecnologia, etc..

Na perspectiva do multiletramento, não são considerados apenas os letramentos

institucionais, ou seja, aqueles desenvolvidos na escola, na igreja, no cartório, entre outras

instituições, mas também os letramentos ligados a outros modos de linguagem, ainda que

vistos com menos prestígio face aos letramentos institucionais. Em conformidade com

Rojo,

Podemos dizer que trabalhar com a leitura e escrita, na escola hoje é muito

mais que trabalhar com a alfabetização ou alfabetismos é trabalhar com os

letramentos múltiplos, com as leituras múltiplas – a leitura na vida e a leitura

na escola – [...] Trata-se, então de garantir que o ensino desenvolva as

diferentes formas de uso das linguagens (verbal, corporal, plástica, musical,

gráfica etc.) e das línguas (falar em diversas variedades e línguas, ouvir, ler e

escrever). Para participar de tais práticas com proficiência e consciência

cidadã, é preciso também que o aluno desenvolva certas competências básicas

para o trato com as línguas, as linguagens, as mídias e as múltiplas práticas

letradas, de maneira crítica, ética, democrática e protagonista. (ROJO, 2009,

p.118-119)

Nessa perspectiva, o multiletramento amplia a noção de letramento da escrita

alfabética, estendendo-se às mais variadas práticas de letramento, inclusive as práticas

gestuais, ligadas às línguas de sinais.

No próximo tópico, abordaremos as questões que envolvem o letramento do

surdo, seu desempenho escolar, assim como seu acesso ao aprendizado da língua

estrangeira.

4.1.4 Letramento e surdez

Para muitos pesquisadores da área da surdez, o surdo passa por sérias dificuldades

ao longo de sua vida. Tais problemas decorrem, em grande parte, de sua situação

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linguística que dificulta suas interações no seio da comunidade ouvinte majoritária.

Conhecer as particularidades que envolvem o bilinguismo do surdo, o processo de

aquisição da L1 e da L2, assim como o papel das diferentes línguas que ele utiliza

diariamente, é essencial para compreendermos os problemas vivenciados por esse

indivíduo tanto na escola, quanto fora dela.

Segundo os defensores da filosofia oralista, essas dificuldades seriam sanadas ou

reduzidas por meio da supressão do uso da LS, dando prioridade ao aprendizado

sistemático da língua áudio-oral, especialmente da oralização. Nessa concepção, a surdez

é concebida como uma deficiência a ser transposta por meio de práticas terapêuticas e do

ensino sistemático da língua áudio-oral, tornando o surdo semelhante ao ouvinte. Porém,

como vimos no capítulo 2, esse modo de ensino fracassou, pois suas práticas arbitrárias

desconsideram a condição do surdo, sua percepção visual do mundo, sua língua e sua

cultura.

Em seus primeiros anos de vida, é essencial que a criança surda tenha a

oportunidade de interagir com sua família através dos sinais pois, devido à

impossibilidade de receber estímulo auditivo, ela não tem como reagir às interações

sonoras de seus pais, caso estes sejam ouvintes. Além disso, a ausência de estímulo

gestual por parte da família, pode provocar a privação do acesso à linguagem nessa fase

inicial da vida, o que resultaria em sérias consequências. Autores como Goldfeld (1997),

Quadros (1997) e Ciccone (1990), apontam os riscos do acesso tardio à linguagem pela

criança surda, podendo resultar em danos não somente cognitivos, mas também sociais e

emocionais. Isto porque a linguagem é percebida muito além da função comunicativa nas

interações sociais, mas também com a função da organização do pensamento e da

capacidade de abstração. Goldfeld (op.cit.) critica a visão de ensino oralista, pois ao

priorizar o trabalho sobre a oralização, muitos outros elementos essenciais para o

desenvolvimento do indivíduo são desconsiderados. Para a autora,

Apenas profissionais que igualam o conceito de língua oral com o conceito de

linguagem podem acreditar que os anos em que a criança surda sofre atraso de

linguagem e bloqueio de comunicação (o que é inevitável quando lhe oferecem

apenas a língua oral como recurso comunicativo) não prejudicam o seu

desenvolvimento. Se, ao contrário utilizarmos um conceito mais amplo de

linguagem e se analisarmos a sua importância na constituição do indivíduo,

como ferramenta do pensamento e como a forma mais eficaz de transmitir

informações e cultura, perceberemos que somente aprender a falar (oralizar)

por meio de um processo que leva tantos é muito pouco em relação às

necessidades que a criança surda, como qualquer outra criança, tem.

(GOLDFELD, 1997, p.38)

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Por essas razões, é de suma importância que a criança surda possa ter acesso a

uma língua que lhe seja transmitida naturalmente desde os primeiros anos de vida.

Quanto à aquisição da L2, a autora (Quadros, 1997, p. 83) aponta três formas

distintas: (a) a aquisição simultânea da L1 e da L2 como, por exemplo, no caso de uma

criança filha de pais que usam línguas diferentes ou que usam uma língua diferente

daquela usada pela comunidade onde vivem, ou ainda, no contexto de uma escola

bilíngue; (b) a aquisição espontânea e não simultânea da L2, como quando a pessoa passa

a morar em outro país; e (c) a aprendizagem da L2 de forma sistemática, como acontece

em escolas de língua estrangeira.

No caso da criança surda, as duas primeiras formas só seriam possíveis se

tratássemos da aquisição de duas línguas de sinais diferentes, supondo seu contato com

comunidades surdas de outros países. Descartando essa suposição, dentre as três formas

de acesso ao aprendizado da L2, de modalidade áudio-oral, somente a terceira se aplica à

situação do surdo.

Conforme vimos no capítulo 3, a LIBRAS é adquiria pelo surdo de maneira

natural, sem ser ensinada, por meio do contato com outros sinalizadores sejam eles surdos

ou ouvintes. Por essa razão, essa deve ser sua L1. Mais tarde, no contexto do ensino

formal, a criança surda terá acesso ao aprendizado da L2 por meio da L1, enquanto língua

de comunicação. Quadros (1997) aponta que “a necessidade formal do ensino da língua

portuguesa evidencia que essa língua é, por excelência, uma segunda língua para a pessoa

surda”.

Os estudos sobre o ensino do português com L2 apontam uma série de problemas

cultivados ao longo da história, o que trouxe ao surdo uma certa resistência e, em muitos

casos, a antipatia frente ao uso dessa língua. Isso ocorre devido a razões diversas, dentre

as quais destacamos as práticas pedagógicas inadequadas. A esse respeito, Quadros

enfatiza que

[...] A aquisição do português escrito por crianças surdas ainda é baseada no

ensino do português para crianças ouvintes que adquirem o português falado.

A criança surda é colocada em contato com a escrita do português para ser

alfabetizada em português seguindo os mesmos passos e materiais utilizados

nas escolas com as crianças falantes de português. Várias tentativas de

alfabetizar a criança surda por meio do português já foram realizadas, desde a

utilização de métodos artificiais de estruturação de linguagem até o uso do

português sinalizado (QUADROS, 2006, p.23)

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É preciso que se entenda que o surdo não aprende da mesma maneira que ouvinte,

que sua percepção do mundo é visual, que a língua que lhe permitirá uma comunicação

plena e efetiva é a LS, sua L1, e que, se não houver uma adaptação total do processo de

ensino-aprendizagem da língua áudio-oral (e das outras disciplinas presentes no currículo

escolar) à suas especificidades, o aprendizado nunca será eficaz.

Botelho (2002) enfatiza essa ideia, defendendo um ensino bilíngue de fato, que

promova ações dentro da escola e mobilize os professores quanto a elaboração de práticas

adaptadas. Para a autora,

O surdo se torna “atrasado” não porque não ouve ou porque usa a língua de

sinais e, sim, porque a escola e as políticas educacionais não levam em conta

a necessidade de um ensino baseado na percepção visual. Houvesse escolas de

fato bilíngues, com professores preocupados com a aquisição da língua

materna e da língua escrita pelo surdo, como língua estrangeira19, investimento

na produção de recursos didáticos visuais, oferta plena de programas

televisivos legendados, entre outras condições, e nenhuma informação seria

perdida. (BOTELHO, 2002, p. 94)

Para que isso ocorra realmente, é preciso enfatizar a língua de sinais como L1,

colocando-a efetivamente como a base para o ensino da língua portuguesa. Para Quadros

(1997),

[...]a língua de sinais é o meio de trocas informações com pessoas surdas. Cabe

observar que, com muita frequência, os professores reclamam que os

conteúdos escolares são difíceis de serem transmitidos para os alunos.

Certamente, a dificuldade reside na limitação dos próprios professores em

relação à LIBRAS e nas limitações dos alunos decorridas da falta de

oportunidade de terem um desenvolvimento linguístico, cognitivo e social

adequado. (QUADROS, 1997, p. 110)

Como é sabido, o português constitui a base dos conteúdos formais escritos e da

maior parte das avaliações na escola. Entretanto, por terem dificuldades com a estrutura

formal dessa língua, muitos surdos não conseguem compreender os conteúdos abordados

em português nos livros didáticos, enfrentando barreiras, também, na produção escrita em

L2, especialmente nas avaliações escritas formais. Esses problemas são enfrentados pelo

19 Concordamos como a reflexão da autora, contudo, entendemos que a língua escrita praticada no país

deve ser ensinada ao surdo como segunda língua (L2) e não como “língua estrangeira” (LE).

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surdo desde a alfabetização em L2, acompanhando-o no decorrer de sua escolaridade e,

também, fora da escola. Para Lima et al.,

O aspecto mais flagrante na aquisição de uma língua oral como L2 pela criança

surda é que ela deve adquirir propriedades no nível fonológico e prosódico que

seu aparato sensorial auditivo está impedido (ou parcialmente impedido) de

apreender. No entanto, a criança surda pode ter acesso à representação gráfica

dessas propriedades, que é a modalidade escrita da língua oral. (LIMA et al.,

2004, p.77)

Esse acesso se dará por meio de um ensino formal estrutural da língua áudio-oral,

que, pautado na proposta de ensino bilíngue, terá a LS como língua de comunicação e de

ensino e, com o apoio desta, o educador proporá estratégias de exposição do educando

surdo ao input da L2. Mas para que o surdo aprenda, de fato, a L2, não basta,

simplesmente, trazer a LS para a sala de aula. É preciso que, desde a alfabetização, o

professor implemente uma pedagogia voltada para o letramento, que possibilite à criança

surda a uma visão prática dos usos sociais da leitura e da escrita. Corroborando essa ideia,

Shimazaki pontua que “o ensino de leitura para estudantes surdos (...) deve preocupar-se

não somente com a apropriação do código, ou seja, com a dimensão linguística; deve

voltar-se à dimensão social” (SHIMAZAKI, 2008, p. 91).

No próximo tópico refletiremos sobre essas questões a partir das dos princípios

norteadores do letramento enquanto base para o ensino das línguas áudio-orais ao público

surdo.

4.1.5 Os aportes das práticas de letramento no ensino do português como L2

A temática do letramento do educando surdo tem levantado discussões entre os

profissionais que trabalham com esse público, especialmente a partir do Ensino

Fundamental, pois tem-se percebido que grande parte desses educandos possuem

habilidades de codificação e decodificação, ou seja, são alfabetizados, porém apresentam

muita dificuldade em apreender o sentido dos textos que leem e em produzir textos coesos

e coerentes. Para Karnopp e Pereira, “essa dificuldade pode ser atribuída não só às

concepções de leitura e de escrita que embasam as práticas pedagógicas utilizadas na

escola, mas também ao pouco conhecimento do português que quase a totalidade dos

surdos apresenta quando chega à escola” (KARNOPP, PEREIRA, 2012, p. 126).

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Em relação às concepções de leitura e escrita, é necessário que retomemos a

distinção entre alfabetização e letramento, refletindo sobre o desenvolvimento de ambos

na escola. Interessada no ensino da codificação e da decodificação, a alfabetização

percebe a leitura como um código de transcrição gráfica das unidades sonoras,

correspondendo à ação de ensinar a ler e a escrever. Já o letramento, grosso modo, observa

os usos sociais da leitura e da escrita, correspondendo à condição daquele que não

somente sabe ler e escrever, mas exerce as práticas sociais da escrita.

Retomando, também, a questão do bilinguismo do surdo e da educação bilíngue

abordada no capítulo 2, entende-se que a forma como a surdez é percebida tem uma

implicância fundamental no processo de ensino-aprendizagem. Em uma proposta de

ensino bilíngue, na qual os aspectos linguísticos, culturais e sócio-históricos do surdo

devem ser levados em conta, é essencial que o educador conheça a LIBRAS e tenha a

capacidade de adaptar suas práticas às especificidades do educando.

O ensino da língua portuguesa como L2 para surdos pode representar uma

importante contribuição para nossa investigação sobre as abordagens didático-

pedagógicas no ensino do FLE para surdos. Essa concepção se deve a dois fatores

principais. O primeiro, diz respeito à modalidade áudio-oral do português, semelhante ao

francês. O segundo, corresponde ao fato de ambas as línguas terem a mesma origem, ou

seja, são línguas neolatinas.

Partindo dessa premissa, tomamos alguns aspectos metodológicos que têm sido

propostos por professores de português no ensino dessa língua como L2 ao público surdo,

a partir dos quais poderemos observar seu desenvolvimento e propor adaptações para

contexto do FLE para surdos.

Levando em conta os aspectos culturais do surdo, Quadros e Schmiedt (2006)

apontam algumas práticas recorrentes no seio dessa comunidade como a produção de

estórias espontâneas, o relato de casos, e a contação de piadas em LIBRAS,

compartilhadas entre os surdos em encontros informais. Ao considerarem esse elemento

comum no dia a dia do surdo, as autoras propõem um ensino do português para crianças

surdas pautado no relato e na produção de estórias em LIBRAS. As estórias produzidas e

transmitidas pelos surdos de uma geração a outra constituem uma importante literatura

em sinais, a qual a criança surda observa, aprende e reproduz. Isso constitui uma etapa

importante para a alfabetização da criança surda, pois “os alunos surdos precisam tornar-

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se leitores na língua de sinais para se tornarem leitores na língua portuguesa”

(QUADROS, SCHMIEDT, 2006, p.26).

A partir do trabalho sobre estórias e literatura em LIBRAS, o professor, praticante

da LIBRAS, poderá explorar os aspectos sintáticos e semânticos dessa língua, a expressão

facial, as configurações de mãos, entre tantas outras particularidades estruturais referentes

às LSs, levando a criança a perceber a riqueza e a complexidade desse sistema linguístico,

preparando-a para o aprendizado da L2 e levando-o à conscientização de que esta é

igualmente rica e complexa, embora de outra modalidade. Como afirmam as autoras,

O ensino da língua de sinais é um processo de reflexão sobre a própria a língua

que sustenta a passagem do processo de leitura e escrita elementar para um

processo mais consciente. Esse processo dará sustentação para o ensino da

língua portuguesa que pode estar acontecendo paralelamente. (Op. cit., p.32)

Por esse prisma, entendemos que o conhecimento, ou melhor, o domínio da

LIBRAS pelo educando é de suma importância para que ele aceda de forma plena ao

aprendizado do português. Acontece que, em muitos casos, os surdos chegam à escola

sem uma LS bem estruturada, sendo necessário um trabalho específico sobre a LS

paralelamente ao ensino da L2. A respeito disso, estudos apontam que a qualidade das

produções escritas e a compreensão leitora em L2 pelas crianças surdas, filhas de pais

surdos, ou seja, aquelas que tiveram o input da LS naturalmente nas interações familiares,

foi superior ao desempenho das produções e leituras dos surdos que não tiveram acesso

precoce à LS.

Nesse ponto, poderíamos falar em letramento gestual/em sinais? Mesmo tratando-

se de uma língua viso-gestual, seria possível dizer que alguém é letrado ou iletrado em

LIBRAS? Seria possível, ainda, caracterizar o nível de letramento gestual/em sinais do

indivíduo, surdo ou ouvinte? Quadros e Shmiedt (op.cit.) comentam sobre as

contribuições que o letramento em língua materna podem trazer ao aprendizado de uma

L2, porém, destacam que, no caso do surdo, o letramento em língua materna é impossível,

por tratar-se de uma língua viso-gestual e por não haver uma representação escrita

reconhecida desta.

Os surdos não são letrados na sua língua quando se deparam com o português

escrito [...] Existe a língua escrita da língua de sinais, um sistema não-

alfabético que representa as unidades espaciais-visuais dessa língua. No

entanto, ela não é difundida ainda. Caso o fosse, os surdos poderiam ser

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letrados na sua própria língua, o que favoreceria, provavelmente, a aquisição

da escrita do português. (QUADROS, SCHMIEDT, 2006, p.33).

Nessa colocação, as autoras se referem ao SignWriting, sistema de escrita das

línguas de sinais. Contudo, embora seja utilizado algumas escolas no sul do Brasil, e

figure no currículo enquanto disciplina integrante do curso de Licenciatura em Letras-

LIBRAS da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), esse sistema não é

reconhecido oficialmente no país e sua difusão entre as comunidades surdas do país ainda

é muito restrita.

Sob um outro de ponto de vista, ao retomarmos o conceito de multiletramentos

apresentado por Rojo (2009), segundo o qual o ato de ler envolveria a articulação de

diferentes modalidades de linguagem além da escrita (dentre elas, a imagem estática e em

movimento, a fala, a música, os gestos, os sinais, etc.), entendemos que o surdo pode ser

considerado um indivíduo letrado em sua LM, ou L1, a língua de sinais. E esse letramento

gestual/em sinais poderá evoluir em diversos níveis ao longo de sua trajetória linguística,

contribuindo para o aprendizado do português como L2, assim como das línguas

estrangeiras.

Ao basear-se nos princípios do letramento para nortear o processo de ensino do

português como L2 ao público surdo, o educador deverá implementar práticas

metodológicas que, além de acionar e desenvolver estratégias de leitura, conscientizem o

educando quanto aos usos sociais da leitura e da escrita nos mais variados contextos.

Dessa forma, o educando poderá desenvolver uma empatia com língua-áudio-oral,

tão importante para suas interações cotidianas, em oposição à visão pessimista que tem

se propagado entre os surdos há tanto tempo. A esse respeito, Ribeiro e Silva comentam

que

Atualmente, a língua de sinais representa a língua do surdo, devido ao

reconhecimento do status linguístico da LIBRAS e do espaço que ela vem

ocupando nos últimos anos. Para muitos surdos que tiveram sua educação

baseada em uma metodologia oralista e foram torturados por uma proposta que

por décadas, foi o terror da comunidade surda, a Língua Portuguesa vai

continuar sendo tratada como uma “obrigação”. No entanto, negar a Língua

Portuguesa já não é uma regra absoluta entre os surdos; pelo contrário, para

alguns, ela já é vista com uma segunda língua que tem muito mais a contribuir

do que atrapalhar. (RIBEIRO, SILVA, 2015, p.148)

Para que haja uma real motivação do educando surdo face ao aprendizado do

português é necessário que, primeiramente, a LIBRAS esteja no centro das interações na

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sala de aula, pois é por meio dela que o surdo lê e apreende o sentido. Em segundo lugar,

o educador deverá abandonar as técnicas de leitura trabalhadas com o público ouvinte

pois o surdo NÃO aprende como o ouvinte. Ao invés disso, ele deverá conhecer seu

educando e adaptar suas práticas pedagógicas à suas necessidades. Em terceiro lugar, o

ensino deve estar voltado para o desenvolvimento do letramento, o que constituirá um

elemento de motivação para o educando, pois este perceberá que seu aprendizado está

diretamente relacionado aos seus usos cotidianos reais de leitura e escrita.

4.1.6 Abordando a leitura em classe de FLE com surdos

A metodologia de ensino, propriamente dita, a ser adaptada em nossa proposta de

exploração textual será a Abordagem Global, segundo os aportes de Moirand (1979). Para

a autora, o indivíduo letrado em sua língua materna aborda um texto de forma global, e

não palavra por palavra. Diante de um texto em língua estrangeira, esse leitor irá transferir

suas habilidades de leitura em língua materna, como a percepção global das frases e a

construção do sentido, em função de seus conhecimentos extralinguísticos e de seus

objetivos de leitura.

Dessa maneira, a Abordagem Global permite o trabalho sobre a leitura em língua

estrangeira a partir do uso de documentos autênticos mesmo no nível iniciante, pois, ainda

que não conheça todo o vocabulário contido no documento, o educando será conduzido à

apreensão do sentido geral do texto. Nesse processo, ele fará uso de outras competências:

a competência linguística, a competência discursiva e a competência referencial ou

cultural.

Para Moirand (op.cit.), é essencial que os objetivos de leitura sejam bem definidos,

pois eles determinarão a escolha dos textos e as estratégias de leitura a serem utilizadas.

Em classe de língua estrangeira, esses objetivos podem ser definidos através de

enunciados e diretivas que antecedem a exploração do documento e, a partir dos objetivos

traçados, o educando será conduzido ao uso de diferentes estratégias de leitura.

Esse processo se desenvolverá em duas fases. Na primeira, serão observados os

aspectos icônicos, a tipografia, o título, o subtítulo, as fotos, etc., que permitirão a

familiarização do leitor com o documento. Na segunda fase, o leitor identificará as

palavras chave, a organização do texto e os elementos de coesão e coerência. Após essas

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etapas, ele deverá ser capaz de responder as perguntas “quem?”, “o que?”, “como?”,

“quando?”, “por que?”, que denotam a construção do sentido geral do texto.

Ao desenvolver variadas técnicas de leitura em sala de aula, o educador permite

ao educando novas possibilidades de abordagem dos documentos escritos que lhe

ajudarão não somente em seu percurso escolar, mas também enquanto cidadão nas

práticas de leitura da vida cotidiana. As diferentes práticas de letramento que o indivíduo

desenvolve em seu percurso escolar e social compõem uma bagagem linguística e

sociocultural que ele carregará sempre consigo. Dessa maneira, sua vivência, interações

e conhecimentos em língua e em cultura maternas (e, no caso dos surdos, também em L2)

têm uma importância fundamental no processo de aprendizagem de uma língua e de uma

cultura estrangeiras.

Em outras palavras, o letramento é uma prática que se desenvolve e se aperfeiçoa

continuamente e, ser letrado em L1 (e em L2), poderá favorecer o desenvolvimento das

capacidades de interagir socialmente em LE. Esse aspecto deve ser levado em conta na

sala de aula pois as experiências anteriores do educando nas práticas de leitura e de escrita

poderão ativar diferentes estratégias para o cumprimento de tarefas específicas em língua

estrangeira. Essa observação está presente nos PCNs:

No que se refere ao ensino da compreensão escrita em Língua Estrangeira, para

facilitar o engajamento discursivo do leitor-aluno, cabe privilegiar o

conhecimento de mundo e textual que ele tem como usuário de sua língua

materna, para se ir pouco a pouco introduzindo o conhecimento sistêmico.

(BRASIL, 1998, p. 90)

Segundo Cuq (2005), esse processo resulta, ao mesmo tempo, da transferência dos

conhecimentos na língua materna (considerando que o educando já sabe ler em sua L1,

ou no caso do surdo, em sua L2), e do desenvolvimento das competências lexicais,

sintáticas e textuais próprias à língua estrangeira.

Além desses aspectos linguísticos e discursivos, deve-se também considerar os

conhecimentos prévios do leitor, sua experiência de mundo e sua bagagem sociocultural.

Nesse sentido, a análise textual encontra-se subordinada à compreensão do sentido e

busca enriquecer a interação texto-leitor, considerando três fatores determinantes: o

contexto em que o texto se insere, as características textuais, os conhecimentos e

experiências do educando enquanto leitor.

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No contexto escolar, o trabalho sobre a compreensão escrita exige que os projetos

de leitura e os documentos escritos se diversifiquem, com o objetivo de estimular o

interesse e o prazer pelo ato de ler. Nesse processo, é importante também que sejam

usados documentos autênticos ao invés de documentos “fabricados” para a compreensão

textual, pois, dessa maneira, o educando se encontrará numa situação real de

comunicação. Esse é um aspecto fundamental do desenvolvimento do letramento na

escola. Como afirma Xavier (2005, p. 133), “Sem dúvida, a escola, com o auxílio dos

meios de comunicação tradicionais (rádio, TV, jornais, revistas etc.) e agora modernos

(Internet, CD, CD-ROM, DVD), ajuda a consolidar a cultura da escrita” e, por meio do

uso desses recursos autênticos nas propostas didático-pedagógicas, ela contribuirá para a

formação do educando e suas práticas sociais de leitura em diferentes contextos.

O desenvolvimento dessa competência na escola se dará a partir de uma

organização do processo em várias fases como a pré-leitura, a leitura em si e a pós-leitura,

aumentando-se gradativamente a variedade dos tipos de textos bem como a sua

complexidade.

Como já foi salientado, ler não é apenas poder decodificar signos e componentes

gráficos, mas é ser capaz de construir um sentindo, de formular hipóteses sobre o

conteúdo do texto ao longo da leitura. Cuq (idem, p. 166) afirma que a leitura é, por

definição, uma interação entre o texto e o leitor e que o educador tem um papel

fundamental no que diz respeito à motivação e ao encorajamento do educando, através da

criação de estratégias de leitura apropriadas. É ele quem conduz o educando nesse

processo.

Tagliante (1994, p. 124) propõe cinco estratégias de leitura para o

desenvolvimento da competência de compreensão escrita em língua estrangeira: a leitura

preditiva, a leitura global, a leitura seletiva, a leitura analítica e a leitura pelo prazer. Todas

elas podem ser adaptadas à realidade linguística do surdo.

A leitura preditiva permite a inferência de sentidos a partir de indícios recolhidos

na observação da imagem textual. Nessa estratégia, o leitor é levado a uma sensibilização

antes da abordagem do texto através da observação da tipografia, de possíveis imagens,

percorrendo o conjunto do texto com os olhos, antes de começar a lê-lo.

A leitura global (ou skimming) permite a captação da ideia principal, a partir de

um percurso rápido do texto. Ela pode ser desenvolvida a partir da leitura de textos como

panfletos, manuais de instrução, formulários, bibliografias, dicionários, sumários e

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artigos impressos. Essa estratégia se desenvolve por meio de “sobrevoos” sucessivos

sobre o texto, primeiramente na diagonal e na vertical. Posteriormente, a localização da

informação precisa é verificada por uma retomada, desta vez na horizontal.

A leitura seletiva (ou scanning) permite a seleção de informações precisas e

pontuais no documento escrito. Essa estratégia leva o leitor a buscar o essencial, a

encontrar palavras chaves significativas. Ela permite também a definição do tipo de texto

abordado e sua função. Em documentos relativamente curtos como artigos, por exemplo,

o leitor fará a identificação do texto, a antecipação do conteúdo por meio de hipóteses (a

partir do título, subtítulo, parágrafo e tipografia do texto) e sua verificação através de

reformulações das palavras chaves e da reconstituição do sentido global.

A leitura analítica visa à construção pormenorizada da significação dos textos

(semântica, pragmática, discursiva, linguística), bem como a capacidade de análise crítica

e autônoma. Essa estratégia pode ser desenvolvida a partir de textos longos e de obras

literárias integrais. Num primeiro momento o leitor pode ser conduzido a um “sobrevoo”

sobre o todo, buscando as passagens a serem aprofundadas. Pode-se também trabalhar a

reformulação do tema, possibilitando questionamentos e uma análise mais fina e

detalhada do texto.

A leitura pelo prazer visa a levar o educando à leitura de obras integrais (curtas

ou longas) de maneira espontânea, mais lúdica e autônoma. Este pode seguir uma leitura

linear ou até mesmo abandoná-la de acordo com seu interesse.

4.1.7 A Avaliação da leitura

O trabalho sobre a avaliação da compreensão escrita em classe é pode ser

desenvolvido através de exercícios propostos pelo educador. Eles podem ser elaborados

de diferentes maneiras em função do nível de leitura dos educandos. Bentolila (1991)

aponta diferentes estratégias de avaliação da leitura, organizadas em questões do tipo

orais e escritas que podem ser adaptadas para o público surdo. As questões de tipo “orais”,

por exemplo, podem ser propostas em LIBRAS.

As questões em LIBRAS podem ser abordadas de maneira formal (como num

teste “oral” para ouvintes sobre o documento escrito – nesse caso as respostas devem ser

bem elaboradas) ou informal, logo após a leitura do texto (como se faz mais

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frequentemente em contexto escolar). Questões de base permitem a retomada do sentido

global do documento, como: Quem? O que? Onde? Quando? Como? Por quê? Esse

exercício constante treina o educando de forma a automatizá-lo a observar essas

informações nos textos a serem abordados, fazendo com que ele progrida gradativamente

em sua competência de leitura.

Na abordagem textual, as questões em LIBRAS podem também preceder as

questões escritas, funcionando como um aquecimento ou uma rápida retomada do sentido

global do texto. Conforme propõe Bentolila (idem), as questões escritas podem ser:

abertas, semi-abertas ou fechadas.

As questões abertas, do tipo “qual é a sua opinião sobre o tema abordado?”, levam

o educando a uma reflexão particular sobre o texto e a dar seu próprio ponto de vista. Ele

tem abertura para elaborar livremente sua resposta. Esse tipo de questão exige uma boa

compreensão geral do tema proposto, bem como um certo nível de conhecimento e de

qualidade de produção escrita.

As questões semi-abertas também permitem respostas formuladas pelo próprio

educando, porém elas são delimitadas dentro de um contexto específico. É o caso, por

exemplo, das questões com preenchimento de lacunas em frases isoladas ou textos.

Já as questões fechadas requerem que o educando faça uma escolha dentre as

possibilidades de respostas apresentadas. É o caso das questões de múltipla escolha e das

questões do tipo “verdadeiro e falso”.

Independentemente das atividades de compreensão escrita, é importante que o

educador conscientize o educando em relação aos objetivos de leitura e à utilidade que

essa prática pode representar em sua vida cotidiana.

Segundo Tagliante (1994), o educando decidirá desenvolver uma ou várias dessas

estratégias, sucessivamente, em função dos objetivos de leitura que se deseja atingir. A

partir do momento em que elas forem compreendidas e dominadas, o educando será capaz

de escolher autonomamente a estratégia que melhor lhe convém de acordo com o tipo de

texto a ser abordado e com as tarefas ou os objetivos de leitura que lhe são propostos.

A respeito das práticas de leitura que fazem parte do cotidiano de todo indivíduo

como, por exemplo, a leitura de uma ficha de inscrição, de uma fatura, da bula de um

medicamento ou de um manual de instruções, etc., Kleiman (1995) pontua que existe um

propósito para cada uma dessas atividades, que exigirão do leitor um certo nível de

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letramento (elementar ou avançado) conforme o tipo de documento explorado, tanto em

língua materna quanto em língua estrangeira.

Nesse ponto, abordamos a questão do nível de letramento do educando. Como

esse nível pode ser medido? No caso do educando surdo, é possível medir seu nível de

letramento em L1 e L2 antes do início do processo de aprendizagem da LE? Soares

comenta que essa medição pode ser feita em conformidade com os anos de escolaridade

completados pelo indivíduo. Para a autora,

[...] o critério baseado em número de anos de escolaridades, embora tenha

também o objetivo, no caso dos levantamentos censitários, de distinguir

alfabetizado, letrado, de analfabeto, iletrado, traz em si, intrinsicamente, o

reconhecimento de que o letramento é uma série ou um contínuo de

competências e práticas, de certa forma escapando, assim, à dicotomia artificial

letramento versus analfabetismo. Na verdade, avaliar e medir o letramento com

base no número de anos de escola fundamental concluídos é reconhecer que é

gradualmente que as pessoas passam do analfabetismo, do não letramento, ao

letramento, e que isso ocorre ao longo de um certo período de tempo e através

de vários estágios. (SOARES, 1998, p.96)

Porém, no caso do educando surdo, entendemos que a medição do nível de

letramento é mais complexa devido ao fato de sua L1 ser de modalidade viso-gestual, e

às dificuldades nos usos da L2 observadas em diversos estudos. Desse modo, o nível de

letramento de um educando ouvinte (que tem a língua áudio-oral como L1) ao término de

determinada série escolar nem sempre deve ser equiparado ao do educando surdo, pois

este se insere em um outro contexto linguístico, no qual o êxito nas trocas

comunicacionais em LS é muito mais amplo do que na língua áudio-oral.

Nesse ponto, podemos mencionar nossas diferentes experiências no ensino do

FLE a dois grupos de educandos surdos distintos. O primeiro, era composto por uma

classe de 13 adolescentes surdos, no contexto do Segundo Segmento do Ensino

Fundamental. O segundo, grupo era composto por estudantes surdos universitários e/ou

pós-graduandos. Obviamente o primeiro grupo apresentava mais dificuldades em abordar

os textos escritos, a fazer inferências e a estabelecer um diálogo com sua experiência de

mundo se comparado ao segundo grupo. O mesmo aconteceria se fizéssemos uma

comparação semelhante com o público ouvinte.

O que devemos ressaltar, é que caberá ao educador adaptar suas propostas de

ensino em função do nível de letramento dos educandos, observando que, no caso dos

surdos, deve-se considerar o nível de letramento tanto em L1 quanto L2.

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Retomando nossa reflexão sobre a competência de leitura em língua estrangeira,

Tagliante (op. cit, p. 125) ressalta a relevância do hábito de leitura do indivíduo em L1,

tanto em relação aos mecanismos de leitura já adquiridos, quanto aos aspectos culturais

que os documentos escritos podem veicular. Essa experiência anterior poderá possibilitar

o distanciamento quanto à compreensão de diferentes valores em relação à sua cultura

materna, permitindo reflexões, questionamentos e o desenvolvimento de um olhar crítico

sobre o outro e sobre si mesmo. No caso do surdo, podemos comparar esses mecanismos

a seus hábitos de leitura em L2 e a suas experiências enquanto indivíduo bicultural.

4.2 Do ensino bilíngue à competência plurilíngue

No presente tópico abordaremos a questão do ensino bilíngue na classe de LE com

surdos, dando ênfase às possibilidades de abordagem linguística e ao papel que cada

língua ocupa no processo de ensino-aprendizagem. Traremos, também, uma reflexão

sobre os aportes da consciência metalinguística enquanto mecanismo de análise e de

construção de novos conhecimentos.

4.2.1 Ensino bilíngue: à LE por meio da L1

Dando continuidade a nossa reflexão sobre o desenvolvimento da competência de

leitura em LE junto ao público surdo, faz-se necessário que enfatizemos a importância da

implementação de uma proposta de ensino bilíngue, conforme os aportes teóricos de

Goldfeld (1997) e de Quadros (1997, 2005).

Como vimos no capítulo 2, o bilinguismo do surdo é bimodal, ou seja, é

caracterizado por veicular duas modalidades distintas de língua, sendo uma viso-gestual,

e a outra, áudio-oral, através das quais o surdo se comunicará com seu interlocutor, surdo

ou ouvinte, em função da língua em comum que estes compartilham. Vimos também que,

apesar das LS serem adquiridas (ou geradas, segundo a teoria da semiogênese das LS –

Cuxac, 2000) pelo surdo de forma natural, cada indivíduo surdo terá um percurso

linguístico individual, que dependerá de diversos fatores como o seu grau de surdez, o

acesso precoce à LIBRAS, a presença ou não de outros surdos na família, a língua

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escolhida por seus pais para sua educação e sua participação ou não na comunidade surda

em sua localidade.

Face a essa complexidade e variedade de contextos, delimitaremos o perfil dos

surdos aos quais nos referimos nesta investigação como surdos brasileiros bilíngues de

fato, usuários da LIBRAS como L1 e do português como L2. Estes, ainda que oriundos

de percursos linguísticos distintos desde seu nascimento, filhos de pais ouvintes ou

surdos, tiveram acesso à Educação Básica (seja em contexto regular, seja em contexto

especial), ou seja, são considerados sujeitos letrados, e, por interagirem diariamente nas

comunidades surda e ouvinte são, considerados, além de bilíngues, biculturais.

O ensino do FLE (ou de qualquer outra língua estrangeira áudio-oral) a esse

público deve acontecer num contexto educacional bilíngue, porém, diferente do ensino

bilíngue desenvolvido durante a educação básica, no qual a LIBRAS é a língua de ensino

e o português é base das leituras e da escrita. Nesse novo contexto, o ensino bilíngue

envolverá a LIBRAS e a LE (no nosso caso, o FLE), no qual a LIBRAS tem seu lugar

enquanto língua de comunicação e de ensino e o FLE será a língua ensinada ou a língua

alvo.

A importância dada ao lugar que a LIBRAS ocupa em classe, se deve à concepção

de que “a língua de sinais seria a única língua que o surdo poderia dominar plenamente e

que serviria para todas as suas necessidades de comunicação e cognitivas” (GOLDFELD,

1997, P.45).

Durante o processo de ensino, a LIBRAS desempenha papéis fundamentais nas

trocas comunicacionais realizadas em sala de aula, tanto entre o educador ouvinte e os

educandos surdos, quanto entre os próprios educandos. Ela lhes traz segurança,

permitindo que compreendam com clareza os enunciados, as explanações, as explicações,

as tarefas, etc.; favorece a verificação da compreensão do educando que, podendo se

expressar em LIBRAS, não corre o risco de ser mal compreendido através de uma

expressão escrita “mal desenvolvida” em português ou “sem sentido” para o leitor

ouvinte, como se pode observar em diversos relatos sobre a dificuldade do surdo na escrita

em L2; possibilita uma relação de cumplicidade entre o educador ouvinte e o educando

surdo em um ambiente motivador e seguro, favorável ao aprendizado.

Essa relação de proximidade entre o educador ouvinte e os educandos surdos

estabelecida por meio da LIBRAS é especialmente benéfica para o aprendizado e bastante

valorizada pelos surdos, pois estes, ao longo de sua trajetória escolar, foram habituados a

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lidar com educadores não praticantes da LIBRAS (ou seja, por intermédio do intérprete)

ou, ainda, com aqueles com conhecimentos bem básicos sobre a língua. Quando há a

mediação do intérprete, dificilmente o educador consegue estabelecer uma boa

proximidade com seu educando, comparável àquela construída quando ambos interagem

diretamente em LIBRAS. Por essas razões, é de suma importância que o professor de LE

do surdo aprenda a LIBRAS e busque se informar sobre essa língua, essa comunidade,

essa cultura.

Em uma proposta de ensino bilíngue do FLE para surdos, é importante, também,

que o educador leve em conta que seus educandos são biculturais, e, por isso, faz-se

necessária uma abordagem bicultural, que abranja elementos da cultura francófona surda

e ouvinte. Tagliante (1994) pontua que ensinar uma língua estrangeira não é apenas

ensinar a se comunicar, mas é, também, transmitir uma série de elementos culturais e

históricos por ela veiculados. Além disso, a elaboração de conteúdo, materiais e

abordagens que remetam à cultura surda francesa/francófona constituirá, certamente, um

grande elemento de motivação para os educandos.

Enfim, muitos estudos apontam os benefícios de um ensino bilíngue ao público

surdo, que lhe possibilite a transmissão dos conteúdos, a expressão plena do que ele deseja

transmitir, além da valorização de sua língua e de sua cultura. Acima de tudo, a prática

efetiva da proposta bilíngue de ensino na classe de LE com surdos, seja através do

professor praticante da LIBRAS (situação preferível) ou através do não praticante desta,

mas com o auxílio do intérprete (Português-LIBRAS), representa a reafirmação de um

direito garantido por lei e conquistado pela comunidade surda ao longo de sua história.

4.2.2 Consciência Metalinguística

Neste tópico abordaremos a questão da manipulação das diferentes línguas

presentes no contexto de ensino do FLE aos surdos.

A língua francesa, especificamente, por sua origem neolatina semelhante à língua

portuguesa (L2 do surdo), possibilitará ao professor a implementação de diversas

abordagens pautadas nas similitudes e diferenças entre essas línguas. Tais abordagens

podem abranger a sensibilização do educando surdo à consciência metalinguística, o

trabalho sobre a análise contrastiva da estrutura das línguas, a observação dos fenômenos

de inferência e de interferência, entre outros elementos. Na concepção de Castro,

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[...] a língua materna é um importante determinante da aquisição de uma

segunda língua. É a fonte de conhecimento à qual os aprendizes se reportam,

consciente ou inconscientemente, para ajudá-los no entendimento dos

elementos presentes no “input” [...], para que possam atuar da melhor forma

possível na segunda língua. (CASTRO, 2000, p. 7)

Sem se referir propriamente ao termo letramento, Vygotsky, ainda na década de

1930, já apontava essa importância dada ao domínio dos usos da língua materna e sua

influência no aprendizado da LE. Para o autor,

O êxito no aprendizado de uma língua estrangeira depende de um certo grau

de maturidade na língua materna. A criança pode transferir para a nova língua

o sistema de significados que já possui na sua própria. O oposto também é

verdadeiro - uma língua estrangeira facilita o domínio das formas mais

elevadas da língua materna. A criança aprende a ver a sua língua como um

sistema específico entre muitos, a conceber os seus fenômenos à luz de

categorias mais gerais, e isso leva à conscientização das suas operações

linguísticas. (Vygotsky, [1934] 2000b, p.137)

Quando um educando chega ao sexto ano do Segundo Segmento do Ensino

Fundamental, ano escolar no qual se deparará com o aprendizado obrigatório de uma

língua estrangeira, subentende-se que ele já tenha atingido um certo grau de letramento

em sua L1. No caso dos educandos surdos bilíngues, seus conhecimentos em L1 e,

especialmente, em L2 (por ser de modalidade áudio-oral, assim como a LE), terão um

papel fundamental na ativação de reflexões metalinguísticas sobre o funcionamento dessa

nova língua.

A função metalinguística corresponde ao uso do código para explicar o próprio

código. Ao desenvolver sua capacidade de pensar sobre a linguagem de forma consciente,

expressando seu pensamento através da própria linguagem, o indivíduo está colocando

em prática sua consciência metalinguística. Segundo Barreira e Maluf,

A consciência metalinguística é um termo genérico que envolve diferentes

tipos de habilidades, tais como: segmentar e manipular a fala em suas diversas

unidades (palavras, sílabas, fonemas); separar as palavras de seus referentes

(ou seja, estabelecer diferenças entre significados e significantes); perceber

semelhanças sonoras entre palavras; julgar a coerência semântica e sintática de

enunciados. (BARRERA; MALUF, 2003, 492)

No caso dos surdos, a consciência metalinguística se desenvolverá, notadamente

nos níveis semântico, sintático e morfológico. Ela poderá ser estimulada pelo professor

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através de propostas de atividades elaboradas com essa finalidade, porém, muitas vezes,

ela acontece naturalmente, por iniciativa do próprio educando que, a partir de reflexões e

de comparações entre o que ele observa na língua estrangeira e sua experiência anterior

em LIBRAS e em português, poderá compreender a estrutura dessa língua e atribuir

sentido ao que lê.

Para ilustrarmos esse tipo de atividade, trazemos um exemplo do relato de nossa

experiência do ensino do FLE a adolescentes surdos, desenvolvida no ano de 2007 no

Instituto Nossa Senhora de Lourdes, no Rio de Janeiro (CASTRO, J.R., 2008). Em uma

das aulas, realizada no dia 30 de abril, introduzimos um texto curto em francês, cujo tema

era atividades de lazer. Após a leitura, trabalharíamos como conteúdo gramatical, o

emprego do verbo aller + preposição à. Antes da leitura, nós fizemos alusão ao fato de

que no dia seguinte não haveria aula, pois seria o feriado do Dia do Trabalho (1º de maio)

e, nessa ocasião, pediu-se que cada educando contasse, em LIBRAS, o que faria nesse

dia. Praia, futebol, cinema, assistir televisão..., várias atividades foram mencionadas por

eles. Após esse aquecimento, começamos, então, a abordagem do texto. Nessa proposta,

eles deveriam, num primeiro momento, ler o texto individualmente e, num segundo

momento, faríamos uma leitura coletiva, na qual cada educando interpretaria uma frase

em LIBRAS. Concluída a exploração do texto e a verificação da compreensão,

introduzimos o conteúdo gramatical, utilizando como suporte uma ficha explicativa da

Grammaire Progressive du Français (Grégoire, 1997), conforme o ANEXO 1. Tal

documento apresenta a conjugação do verbo aller ao lado de uma imagem na qual as

pessoas vão na praia, uma das atividades favoritas do adolescente carioca.

Figura 8 - Verbo "aller" (a)

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115

Fonte: Grammaire Progressive du Français, Niveau Débutant

As frases acompanhadas da imagem e a conjugação do verbo foram bem

compreendidas, porém, ao passarmos para o segundo item da ficha, as preposições, uma

educanda manifestou uma dúvida.

Figura 9 - Verbo "aller" (b)

Fonte: Ibidem

Na frase “je vais au cinéma”, a educando questionou o emprego de “au”. Como

em LIBRAS não existem artigos marcadores do gênero masculino e feminino, nem

contração da preposição com o artigo definido, esse aspecto da língua áudio-oral presente

tanto no português, quanto no francês, pode gerar dificuldades para o surdo menos

experiente em leitura e em gramática. Nesse momento, antes que pudéssemos dar-lhe uma

resposta, um colega surdo pediu a palavra e, em LIBRAS, respondeu: “é fácil”, “é igual

português”, “eu vou ao cinema”. E, em datilologia, ele soletrou bem expressivamente

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116

“ao”, reforçando a contração da preposição “a” + artigo definido “o”, seguido do sinal de

“cinema”, em LIBRAS.

Ao relatar esse exemplo, Castro (op.cit) ressalta a capacidade metalinguística (no

nível sintático) desse educando de acionar conscientemente seus conhecimentos sobre a

L2, relacioná-los à estrutura da LE e, ainda por cima, transmitir sua reflexão a sua colega.

A autora salienta, ainda, que o uso do português na classe de FLE com surdos pode ser

benéfico para o aprendizado, favorecendo a reflexão metalinguística e possibilitando um

trabalho contrastivo sobre a estruturas dessas línguas. Concluindo, após essa explicação

do educando, todos os seus colegas demonstraram ter compreendido o emprego da

preposição + artigo em francês. Foi o momento, então, de sistematizar a regra gramatical

e de realizar exercícios e atividades de reemprego.

Para diversos estudiosos do campo da metalinguagem (Gombert, 2003; Marec-

Breton e Gombert, 2004; Perfetti e Rieben, 1989) a consciência metalinguística é um

elemento de grande relevância para o aprendizado da leitura e da escrita. Sobre a ativação

da consciência, especialmente nos níveis sintático e semântico, Diniz menciona os

estudos de Tunmer, Nesdale e Wright (1987), segundo os quais as crianças que

demonstram maior sensibilidade em relação à estrutura sintático-semântica das frases têm

mais facilidade para compreender palavras desconhecidas e apreender o sentido do texto

a partir do contexto.

Com efeito, todo indivíduo, seja ouvinte ou surdo, carrega consigo uma bagagem

linguística e cultural que abrange a aquisição e os usos da L1 (e da L2, no caso dos surdos)

que poderá exercer influências significativas no aprendizado de uma ou mais línguas

estrangeiras, seja na escola, em centros de línguas, ou em um contexto não

institucionalizado. A esse respeito, Gombert destaca que

O indivíduo dotado de conhecimentos metalinguísticos os utilizará, de um jeito

ou de outro, em sua tentativa de aprendizado de uma segunda língua. A

verdadeira questão consiste [...] em diferenciar os indivíduos com base em seus

conhecimentos metalinguísticos (se eles são letrados ou não na sua primeira

língua) e, com base no nível desejado de domínio para L2 (domínio ou não da

escrita) [...]. (GOMBERT, 1996, p.54, tradução nossa)20

20 L’individu pourvu de connaissances métalinguistiques les utilisera, qu’on le veuille ou non, dans sa

tentative d’apprentissage d’une seconde langue. La vraie question est [...] de différencier les individus en

fonction de leurs connaissances métalinguistiques (selon qu’ils sont lettrés ou non dans leur langue

première) et en fonction du niveau de maîtrise souhaité pour L2 (maîtrise ou non de l’écrit) [...].

(GOMBERT, 1996, p. 54)

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Para Lelièvre e Dubuisson (1998, p.56), a consciência metalinguística do

educando surdo é ativada no momento em que este tenta decompor a complexidade das

regras gramaticais de cada uma das línguas que ele pratica, reorganizando, modificando

e ajustando sua própria gramática interiorizada. Os professores do surdo devem

desenvolver estratégias que ativem essa consciência metalinguística desde os primeiros

anos escolares, aprimorando-a progressivamente a partir das práticas de leitura dos

educandos, levando-os a analisar e a comparar os elementos da(s) língua(s) em uso e, com

isso, a compreender seu funcionamento em contexto. Seguindo essa mesma concepção,

Spinillo et alii, afirmam que,

Do ponto de vista educacional, parece ser evidente a importância de se

desenvolver nos alunos do ensino fundamental, que iniciam a aprendizagem

da leitura, uma consciência metalinguística, seja em termos de capacidade de

refletir sobre os fonemas de modo a, apoiado no contexto, ser capaz de ler

palavras e atribuir-lhes significados; seja em termos de uma consciência a

respeito dos morfemas que constituem uma palavra sendo capaz de, ao

identificar a palavra que a originou (ou o seu radical, por exemplo), fazer

generalizações que permitam ler mais palavras do que aquelas com as quais já

tem familiaridade. Essas são, sem dúvida, aquisições relevantes que precisam

ser valorizadas e exploradas pela escola [...]. (SPINILLO et alii, 2010, p.10)

No caso dos surdos face à prática da leitura em língua áudio-oral (L2), esse

processo se dará de forma adaptada, através de uma abordagem bilíngue, na qual a análise

e as observações sobre a língua alvo acontecerão em LIBRAS.

À medida em que o educando surdo avança nos anos escolares e desenvolve essa

consciência metalinguística, ele estará melhor preparado para o aprendizado da LE.

Segundo Duverger (1996, p.33), o bilinguismo do surdo favorece o desenvolvimento de

uma “[...] consciência precoce e mais ampla sobre o aspecto arbitrário de uma língua, que

dizer, especialmente, sobre o caráter arbitrário da relação significante/significado”

(tradução nossa)21, o que contribui para o desenvolvimento de suas capacidades de

abstração. O autor também ressalta que o bilinguismo pode trazer benefícios do ponto de

vista cultural, pois a língua está intimamente ligada a uma cultura e, por isso, ao acessar

essa língua, o educando terá também contato com valores culturais diferentes.

21 “[...] une conscience précoce et plus large de l’aspect arbitraire d’une langue, c’est à dire notamment du

caractère arbitraire du rapport signifiant/signifié” (DUVERGER, 1996, p.33).

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118

4.2.3 Abordagem bilíngue, trilíngue, plurilíngue: diferentes caminhos da

consciência metalinguística

No contexto de globalização em que vivemos, a comunicação entre os seres

humanos tem se realizado de maneira cada vez mais rápida graças ao desenvolvimento

dos recursos tecnológicos, permitindo o estreitamento das fronteiras linguísticas e

culturais. Através desses novos recursos (escritos, visuais e orais), o indivíduo passa a ter

amplo contato com outras realidades socioculturais e outras línguas (áudio-orais e viso-

gestuais), o que pode representar um cruzamento bastante complexo. Ribeiro (2004)

aponta a questão das diferenças culturais na comunicação intercultural, bem como os

diferentes aspectos que envolvem uma cultura, como:

(...) aspectos históricos, representacionais, materiais, comunicacionais,

crenças, etnocentrismo, comportamento verbal e não verbal e relações

espaciais... uma cultura constitui um corpo complexo de normas, símbolos,

mitos e imagens que penetram o indivíduo, estruturam os seus instintos,

orientam suas emoções. (RIBEIRO, 2004, p.76)

O interesse nas interações interculturais, assim como na competência de

comunicação entre os indivíduos, pode ser observado nos trabalhos do Conselho da

Europa ao criar um Quadro Europeu Comum de Referência (QECR)22 para as línguas que

visa, grosso modo, a harmonizar os níveis de aprendizagem das línguas e fomentar o

plurilinguismo e o multiculturalismo. As competências desenvolvidas e observadas no

QECR inscrevem-se na especificidade da língua na sua dimensão comunicativa e na

dimensão transversal do saber aprender, do saber fazer e do saber ser, considerando as

necessidades prováveis de utilização da mesma no contexto social e profissional.

Seguindo os preceitos do QECR, é preciso que a aprendizagem das LE abranja o

desenvolvimento da competência plurilíngue e pluricultural, necessária no contexto de

mobilidade social, presente especialmente na Europa (onde o conhecimento de mais de

22 O Quadro Europeu Comum de Referência (QECR) fornece uma base comum para elaboração de

programas de línguas, linhas de orientação curriculares, exames, manuais, etc., na Europa. Descreve

exaustivamente aquilo que os aprendentes de uma língua têm de aprender para serem capazes de comunicar

nessa língua e quais os conhecimentos e capacidades que têm de desenvolver para serem eficazes na sua

atuação. A descrição abrange também o contexto cultural dessa mesma língua. O QECR define, ainda, os

níveis de proficiência que permitem medir os progressos dos aprendentes em todas as etapas da

aprendizagem e ao longo da vida. (Conselho da Europa, 2001)

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uma língua estrangeira é de grande utilidade), e no diálogo entre as culturas. Essa

competência é, de fato,

[...] complexa mas una, resultado do desenvolvimento simultâneo, em graus

diferentes, da competência global de comunicação em várias línguas e da

experiência em culturas diversificadas. Esta competência permite que cada

indivíduo, enquanto ator social, possa interagir linguística e culturalmente em

diversos contextos linguísticos. (CONSELHO DA EUROPA, 2001, p.231)

Apesar de nossa prática não estar inserida no contexto europeu, não podemos

negar que as interações e as experiências estão cada vez mais influenciadas pela

proximidade com outras realidades. Através das novas tecnologias, os indivíduos podem

comunicar-se, conectar-se, informar-se, consumir os mais variados produtos, das mais

variadas origens. Esse inevitável contato com o outro, ou, ao menos, a visibilidade do

outro, influencia a sua trajetória linguística e cultural. Com os surdos, essa experiência

não poderia ser diferente.

Neste ponto, abordamos a noção de competência plurilíngue como uma das

possibilidades de trabalho sobre o ensino da língua estrangeira ao público surdo, tendo

em vista que todo indivíduo, inclusive o surdo, possui um repertório linguístico variado

que, certamente, influenciará o aprendizado de uma nova língua e, por seguinte, sua forma

de se comunicar com o outro. Segundo a definição do QECR,

A competência plurilíngue e pluricultural é a capacidade para utilizar as

línguas para comunicar na interação cultural, na qual o indivíduo, na sua

qualidade de ator social, possui proficiência em várias línguas, em diferentes

níveis, bem como experiência de várias culturas. Considera-se que não se trata

da sobreposição ou da justaposição de competências distintas, mas sim de uma

competência complexa ou até compósita à qual o utilizador pode recorrer.

(Ibidem)

No caso dos surdos, essa competência compreende todas as línguas, nas

modalidades viso-gestual e áudio-oral com a quais ele já tenha vivenciado uma

experiência, independentemente do nível de proficiência nas diferentes habilidades

(compreensão e/ou produção, seja oral, escrita ou em sinais).

Trazendo essa concepção para a prática de ensino, entendemos que o professor do

surdo pode traçar inúmeros caminhos que visem o desenvolvimento da competência

pluricultural. Após os primeiros contatos com seus educandos surdos, ele passa a

conhecê-los melhor e, ao tomar ciência do percurso linguístico individual de cada um (o

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grau de surdez, se são filhos de pais surdos ou não, etc.) e perceber o nível de letramento

do grupo em L1 e L2, ele poderá traçar uma abordagem linguística específica, associada

a estratégias didáticas que enriqueçam as aulas e contribuam para transmissão dos

conteúdos.

Ao considerarmos as ideias expostas no tópico anterior, sobre a importância do

letramento dos educandos em L1 e em L2 na ativação de mecanismos metalinguísticos,

percebemos que, no caso do ensino da LE ao público surdo, a abordagem bilíngue

extrapola o uso de apenas duas línguas (L1 e LE). Na prática, em se tratando de surdos

letrados, essa abordagem é, no mínimo, trilíngue, pois, além da LIBRAS e do FLE, ela

envolverá também o português, especialmente nos momentos em que o educando fizer

associações entre a estrutura deste e a o francês, associando as três línguas (L1, L2 e LE)

em uma rica reflexão metalinguística.

A partir da avaliação do nível de letramento, associada à valorização das

capacidades do educando, o professor de LE poderá ousar propor atividades que ativem

sua consciência metalinguística não somente a partir de conhecimentos já adquiridos, mas

através da inserção explícita de novas estruturas linguísticas, que visem à construção de

novos saberes, de novos significados. Isso poderá ser feito através de uma abordagem ora

bilíngue, ora trilíngue, por vezes quadrilíngue ou, até mesmo, plurilíngue, dentro de uma

proposta de ensino previamente elaborada, como detalharemos mais à frente.

Referindo-se ao público ouvinte, Bizarro e Braga sustentam que “quantas mais

línguas vivas um indivíduo tiver aprendido, mais apto estará a aprender nomeadamente

outras línguas, mais capaz será de se conhecer e conhecer os outros, de se respeitar e

respeitar os outros” (BIZARRO; BRAGA, 2004, p.61). Acreditamos que essa concepção

se aplica igualmente ao público surdo, tanto em relação às línguas de sinais quanto às

línguas áudio-orais.

Na contramão dessa noção, algumas escolas regulares, especialmente no sistema

de Educação de Jovens e Adultos (EJA)23, os educandos surdos são dispensados das aulas

de língua estrangeira. Isso ocorre, pois há uma visão limitada sobre a capacidade do surdo

de aprender, privando-o do acesso a uma rica descoberta linguística e cultural. Ademais,

entendemos que tal privação reflete a ausência da elaboração de uma proposta pedagógica

23 A Educação de Jovens e Adultos (EJA) é uma modalidade de ensino da rede pública no Brasil, com o

objetivo de desenvolver o ensino fundamental e médio com qualidade, para as pessoas que já passaram da

idade escolar e que não tiveram a oportunidade de estudar.

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121

adaptada, incongruente com os reais valores da educação bilíngue, a qual deveria prever

adaptações condizentes com as especificidades desse público. Eliminar a LE do currículo

do surdo não é facilitar-lhe a progressão escolar, mas sim, privá-lo, excluí-lo. Ao invés

disso, a escola deveria construir uma pedagogia baseada na diferença, e não na

deficiência, buscando conhecer melhor o surdo, sua cultura e sua língua.

Tal concepção nos remete às considerações de Melo-Pfeifer et al. (2011), a

respeito do ensino das LE na escola, e da veiculação da convicção de que as línguas

seriam objetos, quase exclusivamente, escolares, adquiridos e avaliados somente no

contexto formal de ensino. Essa visão do aprendizado da LE acaba por restringir as

possibilidades de aproveitamento e uso consciente desses aprendizados em outras

situações, tanto dentro como fora da escola.

Ao pensarmos na bagagem linguística que o surdo bilíngue carrega consigo,

associada ao aprendizado das línguas estrangeiras, sejam elas áudio-orais ou viso-

gestuais, percebemos sua interessante propensão ao plurilinguismo, entendido aqui como

um “[...] repertório de línguas utilizadas por um indivíduo [...]. Esse repertório engloba a

variedade de língua considerada como ‘língua materna’ ou ‘primeira língua”, assim como

qualquer outra língua ou variedade de língua, cujo número pode ser ilimitado” (ESCUDÉ;

JANIN, 2010, p.11, tradução nossa)24.

Em nossas experiências anteriores do ensino de FLE aos surdos, o contato inicial

por meio de entrevistas informais em LIBRAS foi de suma importância para que

conhecêssemos o perfil linguístico dos educandos, individualmente e como grupo. Essa

avaliação é, sem dúvidas, crucial para a elaboração de um programa adaptado que leve

em conta não somente as especificidades referentes à surdez, mas, principalmente, as

características daquele grupo e sua bagagem linguística. Em um dos grupos, além de

serem bilíngues, praticantes da LIBRAS como L1 e do português como L2, eles já tinham

tido contato com a língua inglesa, no contexto do ensino do Inglês Língua Estrangeira na

escola. Considerando sua experiência de aprendizado e uso de mais de uma língua, e nos

apoiando nas contribuições teóricas da abordagem plural, concluímos que esses

conhecimentos deveriam ser aproveitados em nossas atividades pedagógicas no ensino

24 « […] répertoire de langues utilisées par un individu […]. Ce répertoire englobe la variété de langue

considérée comme “langue maternelle” ou “première langue”, ainsi que toute autre langue ou variété de

langue, dont le nombre peut être illimité. » (ESCUDÉ; JANIN, 2010, p.11)

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do FLE, que, naquele momento, representava segunda LE de modalidade áudio-oral com

a qual eles tinham contato.

As abordagens plurais das línguas e das culturas correspondem a procedimentos

didáticos que colocam em prática atividades de ensino-aprendizagem que implicam mais

de uma variedade de línguas e culturas ao mesmo tempo. Assim sendo, uma abordagem

plural se distingue de uma abordagem singular, na qual o único objeto de atenção é uma

língua e uma cultura particular, tomada isoladamente (Candelier, 2007).

De acordo com a especificações do Quadro de Referência para Abordagens

Plurais (CARAP)25 (Ibidem), existem quatro tipos de abordagens plurais: a

intercompreensão entre as línguas aparentadas, a sensibilização às línguas, a didática

integrada das línguas e a abordagem intercultural. Em nosso estudo nos deteremos,

especificamente, na aplicação dos princípios da intercompreensão entre as línguas

aparentadas, a qual propõe um trabalho paralelo sobre várias línguas de uma mesma

família, seja da família à qual pertence a língua materna do educando (ou a língua da

escola) ou da família de uma língua aprendida. Na concepção do CARAP, o professor

deve tirar proveito das particularidades que aproximam essas línguas de uma mesma

família (sejam de ordem fonológica, morfológica, sintática ou semântica), possibilitando

um trabalho comparativo entre elas e ativando as capacidades metalinguísticas dos

educandos que, além de reforçarem um maior domínio das línguas já conhecidas,

favorecerão o aprendizado da nova língua.

Ao discorrer sobre formação plurilíngue dos educandos na escola, Carola e

Albuquerque Costa (2014) apontam duas maneiras diferentes em que o ensino da LE

estrangeira pode se efetivar:

[...] de forma desarticulada, por meio de abordagens compartimentadas, nas

quais as línguas são aprendidas do “zero” (sem consideração dos

conhecimentos prévios), o modelo ideal é o falante nativo e as “interferências”

da língua primeira na aprendizagem são indesejáveis; ou de maneira articulada,

por meio de abordagens plurais que valorizam a relação entre as línguas

estrangeiras e entre elas e a língua primeira. (CAROLA; ALBUQUERQUE

COSTA, 2014, p.109)

25 O Quadro de Referência para as Abordagens Plurais, em francês, Cadre de Référence pour les Approches

Plurielles (CARAP), é um documento concebido pelo Centre Européen pour les Langues Vivantes (CELV)

do Conselho da Europa. O CARAP foi publicado em 2007, em francês, e em 2008, em espanhol, chamado

MAREP (Marco de Referencia para los Enfoques Plurales de las Lenguas y de las Culturas). Como ainda

não houve uma tradução do documento para o português, os textos em português têm utilizado a sigla em

francês, CARAP, para a ele se referir.

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No próximo capítulo, traremos alguns exemplos de nossa prática do ensino do

FLE a jovens surdos brasileiros, na qual foi possível aplicarmos atividades pautadas na

abordagem plural para o desenvolvimento de alguns conteúdos. Por se tratarem de

educandos surdos num contexto de ensino bilíngue do FLE, as línguas principais

utilizadas em classe eram a LIBRAS (L1 dos educandos) e do FLE (língua alvo). Além

delas, foi possível desenvolver atividades que englobassem três outras línguas: o

português, L1 da professora e L2 dos educandos, o inglês, LE com a qual todos os

educandos do grupo já haviam tido contado anteriormente em seu percurso escolar, e a

LSF (Língua de Sinais Francesa), língua viso-gestual praticada pela professora e

conhecida por um dos educandos graças a suas viagens à França e a seu contato com

surdos franceses. Tais línguas foram abordadas durante as aulas, ora evocadas pelos

próprios educandos surdos, ora inseridas propositadamente pela professora com objetivos

pedagógicos específicos, ativando reflexões metalinguísticos bastante diversificadas.

Nessa experiência, percebemos que ao proporcionarmos atividades que envolvam

outras línguas e que ativem a consciência metalinguística dos educandos surdos, pode

contribuir para seu amadurecimento enquanto leitor, que passar a manipular as

possiblidades de abordagens de forma mais autônoma. Além disso, essa prática constitui

um importante elemento de motivação. Como pontua Melo-Pfeifer,

Promover outras línguas na aula de uma LE em particular poderá, assim,

motivar os alunos para a aprendizagem de línguas em geral [...], aumentando

a sua cultura e os seus projectos linguísticos [...]. Essa motivação pode reverter

para a aprendizagem da Língua em questão, assim consiga o professor

promover a articulação entre as diferentes línguas e levar os alunos a

aperceberem-se das potenciais melhorias no seu desempenho. (MELO-

PFEIFER et al., 2011, p.48)

4.3 FLE PARA SURDOS

4.3.1 Por que ensinar o FLE ao surdo brasileiro?

Ao observarmos a história da educação dos surdos no Brasil, constatamos que a

França teve uma importante contribuição nesse processo. Como mencionamos

rapidamente no início desse trabalho, a língua de sinais foi introduzida no Brasil em 1857

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por E. Huet, um professor surdo francês que, a convite do Imperador Dom Pedro II,

fundou a primeira instituição de ensino para surdos no país, o atual INES, no Rio de

Janeiro.

Segundo Perlin et al. (2002), Huet teria desenvolvido no Brasil o mesmo método

de ensino utilizado pelo abade Épée no Instituto dos Surdos de Paris, os “Sinais

Metódicos”, um método que combinava a língua de sinais e a gramática da língua

francesa. Acredita-se, também, que Huet tenha introduzido no Rio de Janeiro os mesmos

sinais da LSF praticada pelos surdos de Paris naquela época. Isso pode ser observado na

obra “Iconographia dos Signaes dos Surdos-Mudos”, publicada no Brasil em 1873 por

Flausino José da Gama, um estudante do INES. Essa obra é considerada a mais importante

documentação sobre a língua de sinais praticada no Brasil naquela época. Nela, o autor

representa a língua de sinais por meio de ilustrações desenhadas por ele próprio e

classificadas por categorias. A inspiração para esse trabalho provém da obra “Iconicité

des signes”, publicada pelo professor surdo francês Pierre Pelissier, em 1856.

Ao considerarmos o modelo da semiogênese das línguas de sinais (Cuxac, 2000),

é possível supor que a comunidade surda brasileira já possuía uma língua de sinais micro-

comunitária comportando uma estrutura própria e sinais lexicalizados que,

provavelmente, foram incorporados à língua de sinais ensinada por Huet e sua equipe.

Dessa maneira, entendemos que a LSF teve uma considerável influência sobre a

constituição da LIBRAS, porém, ambas evoluíram e se modificaram desde então.

Essa influência pode ser observada nos dias de hoje através de traços do francês

escritos em alguns sinais em LIBRAS. Em nossa pesquisa inicial, pudemos estabelecer

uma análise comparativa desses sinais, os quais remetem ao francês através da

configuração de mãos equivalente à primeira letra da palavra correspondente em francês,

como, por exemplo, o verbo “falar”. Em LIBRAS, tal sinal é realizado a partir da

configuração da letra “P” (como podemos observar na figura abaixo), remetendo ao verbo

“parler” em francês.

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Figura 10 - Verbo "falar" / "parler"

Letra “P” “falar” – LIBRAS

Dicionário de LIBRAS - INES

“parler” - LSF

Dicionário do IVT

(Moody, 1994)

De acordo com a Iconographie des signes (1853-1854) de Frères de Saint-Gabriel

(2006), no século XIX, o sinal do verbo “falar”, em LSF, era configurado por um “P”,

remetendo à letra inicial do verbo “parler”, em francês, conforme a descrição: “a mão

direita formando a letra ‘P’, faz um pequeno movimento de vai e vem diante dos lábios,

que se agitam como se a pessoa estivesse falando” (ibidem, p.113)26. Porém, esse sinal

evoluiu com tempo na França, de modo que, na LSF praticada hoje, a configuração de

mãos é bem diferente, como podemos ver na terceira foto. Já no Brasil, não houve essa

evolução, permanecendo a configuração em “P”.

Um outro exemplo de influência da LSF praticada no século XIX sobre a LIBRAS

seria o sinal de “certo” ou “certamente”, representado em LIBRAS pela configuração da

mão direita na horizontal com a palma para dentro, e o polegar e o dedo indicador unidos

pelas pontas, que remeteria a uma das representações da letra “O” na LSF praticada no

século XIX, conforme Brouland (1855) e Pelissier (1856). Tal sinal seria similar ao sinal

de “sim” em LSF (“oui”, em francês) utilizado naquela época, como podemos observar

na figura abaixo.

26 « La main droite formant la lettre ‘P’, fait un petit mouvement de va et vient devant les lèvres qui

s’agitent comme si l’on parlait ». (ibidem. : 113).

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Figura 11 - Advérbio de afirmação "sim" / "oui"

“certo”, “certamente”

Enciclopédia Ilustrada

Trilíngue

(Capovilla; Raphael, 2001a)

« oui »

LSF – século XIX

Spécimen d’un dictionnaire

des signes (Brouland, 1855)

« oui »

LSF – atualmente

Le Poche : Dictionnaire Bilingue

(Galant, 2009)

Diferentemente da evolução em LSF observada no exemplo do verbo “parler”, o

sinal do advérbio e afirmação “oui” permanece o mesmo na França atualmente, conforme

podemos observar na terceira foto.

Além desses exemplos, em nossas observações pessoais pudemos perceber vários

sinais em LIBRAS cuja configuração de mãos coincidem com a primeira letra da palavra

correspondente em francês, como, por exemplo, o verbo “trabalhar” (configurado em “L”,

que poderia remeter a “labourer”, em francês), o verbo perguntar (configurado em “D”,

podendo remeter ao verbo “demander”, em francês), o adjetivo “feio” (configurado em

“L”, podendo remeter a “laid”, em francês), a preposição “com” (configurada em “A”,

podendo remeter a “avec”, em francês) entre outros.

Como o foco principal de nosso trabalho é a questão da didática do ensino do FLE,

não nos dedicamos a essa análise. Porém, consideramos que a evolução dos sinais da

LIBRAS a partir da LSF praticada em Paris no século XIX merece um estudo

comparativo aprofundado através da análise de dicionários etimológicos e históricos da

LIBRAS e da LSF. Alguns pesquisadores mencionam a importância histórica da LSF

enquanto a base para a composição da LIBRAS (Capovilla, 2001; Goldfeld, 1997) e a

história da educação dos surdos no Brasil a partir da vinda do professor Huet ao Rio de

no século XIX. Entretanto, nenhum estudo efetivo foi realizado no sentido de documentar

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127

a influência que a língua francesa e a LSF exerceram de fato sobre a LIBRAS, nem, tão

pouco, sobre os resquícios do francês que ela apresenta nos dias de hoje.

No que tange ao ensino do FLE ao público surdo brasileiro, entendemos que a

compreensão e a reflexão da evolução da LIBRAS podem gerar uma motivação

suplementar no educando para o aprendizado dessa língua. Em nossa experiência prática

do ensino do FLE aos surdos, observamos que a maioria dos educandos empregavam a

LIBRAS sem perceber e/ou sem questionar sobre esses sinais influenciados pela

LIBRAS. Por exemplo, ao fazer o sinal da preposição “com”, em LIBRAS, cuja

configuração se realiza em “A”, o surdo, habituado a tal sinal, nem se questiona sobre a

razão do “A”, ao invés do “C”, já que, em português, “com” se escreve com “C”. Porém,

ao tomar conhecimento de que essa configuração corresponde à primeira letra da palavra

“avec”, em francês, ele passa a fazer um uso consciente dos sinais de sua própria L1.

Figura 12 - Preposição "com" / "avec"

Configuração de “A” em

LIBRAS e em LSF

« avec »

LSF – século XIX

Iconographie des signes

faisant partie de

l’enseignement des sourds-

muets. (Pélissier, 1856)

“com”

LIBRAS – atualmente

(configuração em “A”)

Enciclopédia Ilustrada

Trilíngue

(Capovilla; Raphael, 2001a)

Por essas razões, entendemos que o ensino do FLE ao público surdo brasileiro é

bastante pertinente, podendo representar não somente seu acesso a uma nova língua e

uma nova cultura, mas, principalmente, a redescoberta e a compreensão de sua própria

L1, a LIBRAS.

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128

4.3.2 Francês Instrumental, Francês com Objetivos Específicos ou simplesmente

FLE?

Ao elaborarmos nosso projeto de ensino de FLE para surdos, já tínhamos em

mente que a leitura voltada para o letramento seria o foco principal de nossa empreitada,

porém, ainda hesitávamos quanto à metodologia de ensino mais adequada a ser

desenvolvida dentre as opções vigentes para aquele contexto, a saber, Francês

Instrumental, Francês com Objetivos Específicos (FOS) ou simplesmente FLE.

Na primeira semana do curso, ao questionarmos os educandos sobre suas

motivações para o aprendizado da língua francesa, percebemos que suas expectativas não

se resumiam ao caráter unicamente instrumental da língua, mas, também, comunicacional

e interacional. Poder viajar para a França, interagir com os franceses e, principalmente,

aprender sobre a cultura desse país foram razões mencionadas pela maioria dos

educandos. Alguns deles mencionaram o interesse em, futuramente, prestar exames de

proficiência a fim de poderem ingressar nos cursos de mestrado e doutorado.

A partir dessa consulta inicial, descartamos a linha metodológica do FOS pois esta

está voltada para públicos específicos, geralmente acadêmicos ou profissionais atuantes,

interessados em aprender um determinado conteúdo ou termos técnicos em língua

estrangeira para alcançarem objetivos precisos e imediatos. As áreas que demandam

formações com objetivos específicos são bastante variadas, dentre as quais, podemos

mencionar o Francês para negócios, o Francês para turismo e hotelaria, o Francês jurídico,

entre outras. Em concordância com Lehmann, “[...] esses públicos aprendem UMA

PARTE DO francês e não O francês” (LEHMANN, 1993, p. 115, grifo do autor, tradução

nossa)27, e, considerando nossa visão de ensino da leitura voltada para as interações

sociais e as motivações dos educandos concluímos que as restrições e limitações

temáticas características do FOS não condiziam exatamente com o nosso contexto.

Nesse momento, o Francês Instrumental pareceu-nos uma abordagem interessante

a ser desenvolvida naquela turma composta inteiramente por jovens surdos universitários,

graduandos e pós-graduandos. De curta duração, esse tipo de curso evidencia estratégias

facilitadoras para a apreensão do conteúdo escrito, preparando também para os exames

de proficiência, que são pré-requisitos para o ingresso na pós-graduação stricto sensu.

27 « [...] ces publics apprennent DU français et non pas LE français». (LEHMANN, 1993, p. 115)

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129

Muito procurados no Brasil, os cursos de língua instrumental surgiram na década

de 1970 nas universidades brasileiras e tinham como objetivo principal o

desenvolvimento das habilidades de leitura de textos científicos por estudantes,

profissionais especializados e pesquisadores. Uma característica desta abordagem é que

a língua não é ensinada com um fim em si mesma, mas como um meio para se alcançar

uma finalidade específica.

Porém o ensino da LE na perspectiva instrumental envolveria, em princípio, o uso

frequente do português como língua de comunicação oral e de expressão escrita, como

nas avaliações, por exemplo. Mas conforme vimos no capítulo 2, muitos surdos têm

dificuldades na escrita em língua portuguesa e, submetê-los à produção escrita em

português para avaliar sua compreensão textual em LE poderia desviar o foco e os

esforços que deveriam ser empregados no aprendizado da língua alvo. Além disso, caso

sua compreensão em LE seja avaliada por meio da escrita em L2, suas eventuais

produções “mal escritas” poderiam levar o professor a entender, erroneamente, que sua

compreensão textual em LE foi malsucedida. A esse respeito, Siqueira pontua que

[...] o professor/avaliador precisa ter a sensibilidade e o conhecimento de

perceber se a informação contida no texto escrito pelo surdo está coerente e

adequada ao tema, embora a estrutura frasal se afaste da norma padrão da

Língua Portuguesa, utilizada pelo ouvinte. (SIQUEIRA, 2008, p.32).

Contudo, na prática, nem todo educador tem essa percepção diante das produções

escritas do surdo em L2, de modo que não é incomum ouvir comentários de certos

professores a respeito das produções “mal escritas” de seus educandos surdos.

Decerto, poderíamos solucionar a questão do português através da sua substituição

pela LIBRAS enquanto língua de comunicação, de ensino e de avaliação. Nesse ponto,

contudo, ainda haveria o inconveniente da ausência de um registro escrito das avaliações,

tendo em vista que não existe a forma escrita da LIBRAS. O uso do SignWriting28,

sistema de escrita das línguas de sinais, poderia ser uma alternativa para que houvesse

traços escritos nas avaliações, porém, para que isso fosse possível, seria necessário que

28 Segundo Quadros (2001), o SignWriting é um sistema de escrita para escrever línguas de sinais,

expressando os movimentos, as formas das mãos, as marcas não-manuais e os pontos de articulação. Criado

em 1974 por Valerie Sutton, para descrever os movimentos das danças, esse sistema despertou a curiosidade

de pesquisadores da Língua de Sinais Dinamarquesa que, na época, buscavam uma forma de escrever os

sinais. Ao longo dos anos, o SignWriting evoluiu, sendo bem aceito pela comunidade surda e por

pesquisadores em diversos países. Fonte: http://www.signwriting.org/archive/docs1/sw0065-BR-Historia-

SW.pdf

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130

todos os integrantes da classe, educador e educandos, conhecem e dominassem esse

sistema de escrita. Mas não era o caso.

Ademais, em nosso programa de ensino, previmos desenvolver, além da

competência leitora, a competência intercultural e a competência linguística, que abrange

o ensino da gramática e do vocabulário acompanhado de exercícios de fixação e de

reemprego das estruturas em contexto através de curtas produções escritas em LE.

A partir dessas reflexões, concluímos que nem o FOS, nem o Francês Instrumental

seriam a maneira mais adequada para a condução desse curso, especificamente. Em nosso

entendimento, seria necessário o emprego de uma didática do FLE mais flexível às

adaptações pedagógicas que a educação de surdos demanda e que pudesse englobar,

também, o desenvolvimento de outras competências de comunicação, conforme os

interesses manifestados pelos educandos. Sendo assim, optamos pelo uso da abordagem

comunicativa, com foco no desenvolvimento da competência leitora dos educandos e de

práticas de letramento, podendo, contudo, ser flexível à integração de elementos de outras

metodologias de ensino, como o ensino sistemático de vocabulário com fins específicos.

4.3.3 O FLE a partir da Abordagem Comunicativa com surdos

Antigamente, o ensino das LEs (assim como o de outras disciplinas) era

caracterizado por uma visível rigidez em sala de aula, na qual a relação entre o educador

e o educando se construía com uma certa distância, numa perspectiva vertical. Nesse

processo, o educador era colocado em uma posição superior de “dominação”,

representando o detentor do saber, enquanto o educando ocupava uma posição inferior de

“sujeição”, representando a parte ignorante (Tagliante, 1994).

Entretanto, a maneira de se ensinar as LEs mudou e essa rigidez deu lugar a uma

relação mais dinâmica e interativa não somente entre o educador e o educando, mas

também entre os próprios educandos, estabelecendo-se, assim, uma relação do tipo

“igualitária” (Galisson, 1980, p. 51). Nessa perspectiva, a relação pedagógica passou da

verticalidade à horizontalidade, na qual o educador não é mais apenas aquele que

transmite os conteúdos, mas aquele que dá as ferramentas e a motivação para que o

educando construa o seu próprio saber. Dessa forma, esse indivíduo “aprende a aprender”

e passa a desenvolver sua autonomia no contexto escolar.

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131

Essa nova concepção do ensino das línguas estrangeiras é uma das características

da abordagem comunicativa, que tem por objetivo principal o desenvolvimento das

competências de comunicação do educando, colocando-o no centro do processo de ensino

/ aprendizagem, considerando suas características bem como suas necessidades

específicas. Tudo isso será levado em conta durante o planejamento do programa, na

elaboração das atividades, na seleção do material didático e nas formas de avaliação, a

fim de que o educando tenha acesso de forma ativa ao aprendizado através da

contextualização e da adaptação das práticas pedagógicas à sua realidade.

Tal corrente surgiu no início dos anos 1970 e se difundiu a partir dos trabalhos do

Conselho da Europa, especialmente do Niveau Seuil (1976), em português, Nível Limiar,

obra que visa a fornecer repertórios de funções (de ordem pragmática) e de noções (de

ordem semântica) a serem ensinadas em classe, com a finalidade de garantir o

aprendizado de um nível de base comum da língua estrangeira estudada.

Segundo Tagliante (op. cit., p.21), o educador do tipo “comunicativo” é aquele

que coloca sua competência linguística, cultural e pedagógica em favor dos interesses do

educando. Em suas práticas, esse profissional é capaz de desempenhar simultaneamente

diversos papéis, sendo o organizador da aprendizagem, o expert que auxiliará o educando,

o animador das atividades da classe, aquele que guia o educando em suas descobertas e

que sistematiza suas aquisições, o que transmite confiança ao seu grupo com interesse,

dedicação e, principalmente, com muita paciência.

Um dos princípios básicos da abordagem comunicativa é a promoção da interação

entre os educandos através de diversos tipos de atividades, proporcionando um

intercâmbio de ideias e a sociabilização da classe em toda a sua diversidade. Para isso,

podem-se propor projetos, trabalhos em pequenos grupos, variações na disposição

espacial da mobília da sala (quando isso é possível) em função da atividade a ser

realizada, através da formação de círculos, semicírculos ou fileiras, incentivando o

educando a intervir ativamente ora sentado, ora em pé. Esse encorajamento,

acompanhado da valorização das produções do educando contribui para a sua autoestima,

motivando-o na sua progressão escolar.

Galisson (op. cit.) propôs dois esquemas que representam bem os dois tipos de

interação pedagógica existentes em uma classe de língua estrangeira. No esquema 1

(ilustrado na figura abaixo), as setas indicam uma relação do tipo tradicional, rígido, que

acontece principalmente no sentido educador educando. O esquema 2 representa um

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132

grupo numa atividade para a qual a turma foi dividida em vários grupos. Nesse modelo,

as trocas são realizadas em todas as direções, a partir de interações entre o educador e os

educandos (nos dois sentidos) e também entre os próprios educandos.

Figura 13 - A interação pedagógica em classe

Fonte: Galisson (1980, p.51), apud Tagliante (1994, p. 15)

Com efeito, as atividades realizadas em subgrupos contribuem para o

desenvolvimento de uma relação do tipo horizontal em sala de aula e favorecem a

construção de um saber coletivo. Contudo, para que esse tipo de relação se estabeleça e

para que os objetivos de aprendizagem sejam atingidos, é necessário que o educador

supervisione atentamente o desenvolvimento das atividades propostas, circulando entre

os grupos e guiando os educandos, especialmente quando estes não estão habituados a

trabalhar dessa maneira.

Uma outra característica importante na abordagem comunicativa na classe de LE

é o uso de documentos autênticos, ou seja, de materiais não concebidos com finalidade

pedagógica. O contato do educando com esse tipo de documento lhe permitirá a vivência

de uma situação da vida real. Nessas abordagens, o professor pode propor documentos

como fichas cadastrais, poemas, publicidades e textos extraídos de diversas fontes como

livros, revistas, jornais e internet, vídeos, etc..

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O uso de documentos autênticos em classe de línguas, seja de L1, L2 ou LE, vai

de encontro às práticas voltadas para o desenvolvimento do letramento do educando,

constituindo um preparo do educando para lidar com situações comunicativas da vida

real. Nesse processo, ele deverá ativar estratégias de leitura, além de seu conhecimento

de mundo para construir o sentido do texto.

Dentre todas as características marcantes na abordagem comunicativa, a que

apresenta maior relevância em nosso ponto de vista é a total centralização do processo de

ensino-aprendizagem sobre o educando, levando-se em conta suas especificidades, suas

necessidades e seus objetivos de aprendizagem. Nesse sentido, podemos afirmar que as

palavras de ordem dessa prática são flexibilização e adaptação.

Trazendo esse aspecto para o contexto do ensino do FLE ao público surdo,

percebemos que essa metodologia de ensino permitirá um trabalho inteiramente adaptado

à sua situação linguística, considerando-se, também, sua cultura e seus interesses. Nessa

perspectiva, haverá duas adaptações principais no processo de ensino-aprendizagem a

esse público. A primeira refere-se à realização de um ensino bilíngue, no qual a LIBRAS

tem seu lugar enquanto língua de ensino e marca da identidade do surdo, e o FLE será a

língua alvo. Por conseguinte, outras adaptações relacionadas a essa prática deverão

ocorrer como, por exemplo, a organização das carteiras em círculo ou semicírculo para

que todos os educandos possam se ver e interagir em boa condição visual. A segunda diz

respeito à seleção de material didático-pedagógico que leve em conta a sensibilidade do

surdo ao aspecto visual, de modo a favorecer sua abordagem dos documentos propostos

em classe.

No próximo capítulo, veremos algumas situações vivenciadas durante a prática do

ensino do FLE a esse público, nas quais esses elementos puderam ser aplicados e

avaliados.

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134

5 UM OLHAR SOBRE A PRÁTICA DO ENSINO-APRENDIZAGEM DO FLE

AO SURDOS

No presente capítulo descrevemos os procedimentos metodológicos que

nortearam nossa investigação. De caráter exploratório-descritivo e qualitativo, esta

pesquisa se propõe a abordar as questões de ordem prática que envolvem o processo de

ensino-aprendizagem do FLE ao público surdo. Por essa razão, lançamo-nos à prática do

ensino, visando coletar informações e propor sugestões que possam contribuir para as

reflexões sobre a adaptação da didática das LEs a esse público. Nesse contexto, buscamos

aplicar os pressupostos teóricos sobre o ensino das LEs, adaptando os procedimentos

didático-pedagógicos às especificidades do público em questão e observando seu impacto

real no processo de ensino-aprendizagem.

5.1 Curso de Extensão de FLE para Surdos – o contexto da experiência

A prática do ensino descrita neste capítulo, foi realizada a partir de um projeto

elaborado no âmbito da disciplina “Capacitação Didática”, integrante do nosso programa

de estudos na universidade. A partir de tal projeto, propôs-se um curso de extensão de

FLE para surdos, desenvolvido na Faculdade de Letras da UFRJ.

5.1.1 Objetivos do curso

A realização desse curso tinha dois objetivos principais. O primeiro era

oportunizar o acesso ao aprendizado adaptado do FLE a um grupo de surdos. O segundo

diz respeito a esta investigação, que visa a geração de um corpus para análise e, a partir

dos resultados, esperamos poder contribuir para a delimitação de novos caminhos

pedagógicos em busca de um ensino realmente adaptado e eficaz.

5.1.2 Metodologia

No decorrer do curso, foram testadas diferentes estratégias didáticas propostas

para educandos ouvintes, sempre com ênfase nas adaptações necessárias às

especificidades sociolinguísticas do público surdo. A partir dos resultados e

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135

particularidades aqui reportadas, estabelecemos uma relação entre a teoria e a prática,

tendo como base os conceitos teóricos sobre o ensino do FLE, sobre a Educação Bilíngue

para surdos e sobre o Letramento.

O registro das aulas por meio de filmagens, o recolhimento das produções

desenvolvidas em classe pelos educandos e a realização de entrevistas com os mesmos

permitiram a coleta de dados importantes para nossa análise, compondo, assim, o corpus

para a nossa investigação.

Salientamos que, ao participarem dessa formação, todos educandos assinaram um

Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, conforme o ANEXO 12, autorizando a

realização de fotografias e filmagens, assim como a utilização das mesmas para fins

acadêmico-científicos.

5.1.3 Perfil do público alvo

O curso teve como público alvo estudantes surdos dos cursos de Licenciatura em

Letras-Libras, de Bacharelado em Letras-Libras: Tradução e Interpretação, e de

Especialização em LIBRAS: Ensino, Tradução e Interpretação da Faculdade de Letras da

UFRJ. Inicialmente, o grupo foi composto por oito surdos, todavia, por razões

particulares, dois deles não puderam prosseguir até a conclusão do curso.

Com idades que variavam entre 22 e 35 anos, todos eram surdos severos ou

profundos, bilíngues, praticantes da LIBRAS como L1 e do português como L2.

Decerto, independentemente de serem surdos ou ouvintes, é comum que os

aprendentes de uma língua estrangeira reconheçam o enriquecimento linguístico e

cultural que essa descoberta proporciona. Porém, além desse fator, os estudantes surdos

participantes dessa experiência manifestaram seu interesse pela França enquanto berço

dos estudos sobre as línguas de sinais e sobre o ensino bilíngue para surdos e, também,

por ser terra de Abbé de L’Epée, uma das personalidades mais importantes na história da

educação dos surdos no mundo. Ademais, enquanto estudantes universitários, alguns

desses surdos manifestaram o interesse em pesquisas acadêmicas em nível stricto sensu,

reconhecendo que, para isso, o conhecimento de línguas estrangeiras faz-se necessário.

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5.1.4 - Conteúdo programático

O conteúdo programático do curso foi elaborado a partir das competências de

comunicação presentes no nível A1 do QECR. Levando-se em conta a realidade

linguística do surdo, o ensino se desenvolveu em torno da competência de leitura nas

práticas sociais, a partir dos princípios norteadores do letramento. Paralelamente ao

trabalho sobre a competência de leitura, desenvolvemos a competência linguística por

meio do ensino da gramática e do vocabulário conforme as demandas e o conteúdo dos

textos abordados em classe.

5.1.5 Estrutura física e suportes técnicos

As aulas do curso foram realizadas em salas de aula ou auditórios da Faculdade

de Letras, onde tínhamos à disposição quadro negro ou branco, giz ou caneta para quadro

branco, um computador e um projetor datashow.

5.1.6 Material didático

Atualmente, o mercado de edições de manuais de FLE oferece diversos materiais

didáticos voltados para públicos variados, dentre os quais podemos destacar os manuais

para crianças (de todas as idades), adolescentes, adultos, profissionais com objetivos

específicos (francês para negócios, turismo e hotelaria, francês jurídico, etc.).

Apesar dessa variedade, ainda não existe um manual universal29 de FLE voltado

para o público surdo. Além dessa inexistência, dificilmente um manual voltado para

ouvintes poderia ser usado com surdos sem modificações significativas, visto que a

maioria é acompanhada de suportes audiovisuais como CD, CD-ROM, DVD, que

objetivam o desenvolvimento da compreensão e da produção orais, sem nenhuma

utilidade para o surdo.

Por essas razões, não adotamos um manual de FLE. Ao invés disso, optamos pelo

uso de documentos escritos autênticos, preferencialmente, e também de alguns

documentos fabricados com fins didáticos.

29 Entende-se por manual universal de FLE os livros didáticos concebidos na França, geralmente por

franceses, podendo ser utilizados em diversos países e com públicos de variadas nacionalidades.

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Destacamos que, durante a seleção dos documentos a serem apresentados à turma,

consideramos o fato dos surdos serem bastante sensíveis ao aspecto visual, o que levou-

nos a priorizar o uso de documentos ricos em recursos imagéticos.

5.1.7 Referencial teórico

Considerando as características do bilinguismo do indivíduo surdo sob a ótica de

Grosjean (2004) e de Vonen (1996), entendemos, em concordância com Quadros (2004,

1997), que o surdo não pode aprender como o ouvinte.

Sendo assim, traçamos o desenvolvimento da competência de leitura voltada para

o letramento conforme Soares (2009, 2003) Tfouni (2010, 1995) e Kleiman (2012) a partir

de estratégias de leitura propostas por Tagliante (1994) e Moirand (1979) para o público

ouvinte, com ênfase nas adaptações necessárias às especificidades linguísticas e culturais

do surdo, por meio do ensine bilíngue.

5.1.8 Análise dos dados

Com base nos aportes dos teóricos acima citados e discutidos no capítulo 3,

fazemos, gradativamente, uma análise qualitativa das diversas situações registradas em

sala de aula, buscando ressaltar as práticas que favorecem e que desfavorecem o

aprendizado da LE pelo surdo.

5.2 – Analisando a prática do ensino

5.2.1 Competência intercultural – a França, o francês e os surdos franceses

No ensino-aprendizagem do FLE a abordagem da interculturalidade é de suma

importância, especialmente numa perspectiva de ensino voltada para o letramento, pois a

cultura de uma determinada sociedade está diretamente associada ao seu sistema

linguístico. Como aponta Tagliante, “ensinar uma língua não é somente ensinar a se

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comunicar: por sua história e sua etimologia, as próprias palavras que empregamos, as

estruturas, as expressões, veiculam um passado, uma cultura, uma civilização”

(TAGLIANTE, 1994, p.68, tradução nossa)30. Por essa razão, o desenvolvimento da

competência leitora e da competência intercultural não podem ser dissociados e devem

ter a mesma importância no ensino da LE.

Nos manuais de FLE, os autores denominam como “cultura” ou “civilização” a

parte dedicada ao desenvolvimento dos conhecimentos sobre a França (ou outros países

francófonos), abordando temas sobre a sociedade, a geografia, a literatura, as artes, os

modos e costumes, a política, assim como elementos ligados ao comportamento como,

por exemplo, a gestualidade e a distância entre os interlocutores no momento em que as

interações acontecem. Essas descobertas culturais levarão o educando não somente ao

conhecimento do outro, mas também à reflexão e à comparação entre seu modo de vida

e outras realidades.

Nesse processo o educador tem um importante papel enquanto organizador das

informações a serem difundidas, veiculador de documentos, preferencialmente

autênticos, e intermediador do diálogo. A esse respeito, Tagliante postula que

A descoberta da cultura alvo se dará, então, por um trabalho permanente de

reflexão apreciativa e comentada, onde a expressão oral intervirá

continuamente, em tomadas de posição que não somente relatarão os

conhecimentos sobre a língua estrangeira, mas que permitirão ao educando

comunicar o que ele pensa a respeito do que sabe sobre essa cultura nova para

ele e em que ela difere ou se aproxima da sua. (Ibidem, p.69, tradução nossa)31

No caso da classe com surdos, essa intervenção contínua por meio da expressão

oral se dará através da LIBRAS e, a partir das interações sobre a cultura em questão, os

educandos serão capazes de conhecê-la, de compreendê-la e de respeitá-la.

Decerto, antes do aprendizado institucional de uma LE (e, portanto, de uma

cultura estrangeira), todo educando já chega em classe munido de um determinado fundo

cultural adquirido na própria cultura materna. Esses conhecimentos abrangem sua visão

30 «Enseigner une langue, ce n'est pas seulement apprendre à communiquer: par leur histoire et leur

étymologie, les mots mêmes que l'on emploie, les structures, les expressions, véhiculent un passé, une

culture, une civilisation». (TAGLIANTE, 1994, p.68) 31 La découverte de la culture cible se fera alors par un travail permanent de réflexion appréciative et

commentée, où interviendra sans cesse l’expression orale, dans des prises de position qui ne feront pas

simplement état de connaissances sur la culture étrangère, mais permettront à l’apprenant de communiquer

ce qu’il pense de ce qu’il sait de cette culture nouvelle pour lui et en quoi elle diffère ou se rapproche de la

sienne. (TAGLIANTE, 1994, p.69)

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de mundo, sua forma de viver, as regras das interações sociais, sua identidade e

sentimento de pertencimento a uma comunidade, e determinarão sua atitude e a forma

como ele apreenderá a cultura do outro (Zarate, 1986).

Em nossa prática, o trabalho sobre a competência intercultural começou desde a

Aula Zero, na qual traçamos dois objetivos principais: propor uma apresentação geral

sobre a França e o mundo francófono, e sensibilizar os educandos surdos quanto a

importância da França para o desenvolvimento da comunidade surda no mundo. Nesse

primeiro encontro, o FLE propriamente dito não foi introduzido, pois optamos por

privilegiar o uso da LIBRAS, como língua de comunicação, e do português escrito,

presente nos títulos e nas legendas dos diapositivos transmitidos através da visualização

em Power Point.

O primeiro documento explorado em classe, cujo título era Le français dans le

monde (em português, “O francês no mundo”), apresentava um mapa do mundo

francófono (ANEXO 2), destacando os países onde o francês é a língua materna, língua

oficial ou administrativa e língua de ensino. Antes de apresentá-lo aos alunos, a professora

perguntou-lhes em LIBRAS se sabiam em que países no mundo a língua francesa era

utilizada, pedindo-lhes que dessem alguns exemplos. Após algumas manifestações, umas

acertadas, outras não, os alunos puderam observar e tecer comentários sobre o mapa.

Muitos ficaram surpresos ao tomarem conhecimento da quantidade de países francófonos,

o que reforçou positivamente suas motivações para o aprendizado dessa língua, tão

difundida.

Em nossa experiência do ensino do FLE ao longo dos anos, tanto com educando

surdos, quanto com ouvintes, percebemos que os conhecimentos sobre a divisão

administrativa dos países e sobre a incidência das línguas no mundo não é algo evidente

para todos, de modo que, embora a turma em questão fosse formada por jovens

universitários, pareceu-nos importante situá-los sobre esse aspecto.

Em seguida, foi-lhes apresentado o mapa da Europa (ANEXO 3) com destaque

para a França (país citado por todos os educandos na atividade anterior) e para todos os

países com os quais ela faz fronteira, assim como para suas respectivas capitais. Nesse

momento, a professora pediu aos educandos que fizessem o sinal em LIBRAS daqueles

países e de suas capitais, mencionando, também, a língua oficial ali praticada. Tal

atividade deu lugar a uma curta, porém interessante, discussão sobre a incidência das

variadas línguas na Europa. Alguns alunos que já haviam visitado o continente

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aproveitaram a ocasião para mencionar os países que tiveram a oportunidade de conhecer

e comentar sobre suas impressões gerais e seus encontros com surdos nativos nessas

localidades.

Após essa discussão, chegou o momento de incitar manifestações referentes a seus

conhecimentos gerais sobre a França, a cidade de Paris e seus monumentos históricos

como a Torre Eiffel, o Arco do Triunfo, o Museu do Louvre, a Catedral de Notre Dame,

etc.. Como a França é um país mundialmente reputado pelo turismo, estima-se que os

surdos tenham ciência dessa realidade, e conheçam um pouco das imagens turísticas

veiculadas nos meios de comunicação. Assim, uma interação se deu a partir da projeção

de imagens, ilustradas no ANEXO 4, através das quais os próprios alunos puderam,

segundo seus conhecimentos, se manifestar sobre esses monumentos franceses e ensinar

o sinal correspondente em LIBRAS aos colegas que não o conheciam.

Prosseguindo com a sensibilização dos educandos quanto aos diversos aspectos

relacionados à França, à língua e à cultura francesas, abordamos um slide que apresentava

a foto de personalidades francesas e francófonas famosas, a saber, o atual presidente

francês, François Hollande, o jogador de futebol campeão da Copa do Mundo de 1998,

Zinedine Zidane, o ator Jean Reno, os personagens dos quadrinhos Astérix e Obélix,

assim como a cantora quebequense, Céline Dion, conforme pode ser observado no

ANEXO 5. Nessa atividade, pediu-se que os educandos apresentassem essas

personalidades em LIBRAS, dizendo o que conheciam a respeito delas.

Graças às experiências anteriores e ao conhecimento de mundo dos educandos em

questão, todas essas personalidades foram identificadas por alguns educandos, mas não

por todos. Assim, após a apresentação dessas personalidades pelos educandos que as

conheciam de alguma forma, a professora pôde complementar as informações a respeito

de cada uma delas. Nesse ponto, cabe mencionarmos que, devido a carência de intérpretes

de LS e da dificuldade de acesso à informação em L2, muitos surdos ficam privados de

discussões e informações veiculadas na língua falada tendo, assim, o acesso a

conhecimentos sociais culturais e políticos prejudicados. Os conhecimentos de mundo

que parecem ser evidentes para um jovem ouvinte nem sempre são acessíveis a um jovem

surdo.

Em um outro contexto de ensino do FLE em uma classe composta por

adolescentes no primeiro segmento do Ensino Fundamental, pudemos desenvolver uma

atividade semelhante. Porém, o reconhecimento das personalidades famosas apresentadas

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141

naquela ocasião, a saber, Jacques Chirac, Céline Dion e Obélix, foi restrito a menos da

metade dos educandos daquela turma (Castro J. R., 2008, p. 83). Atribuímos tal

desconhecimento às limitações do acesso adaptado às informações. Devido à falta de

interpretações em LIBRAS e da ausência de legendas nas mídias, muitos adolescentes

surdos acabam privados de conhecer certos assuntos sobre a atualidade social, política,

etc.. Mesmo diante dessa realidade, essa atividade nos proporcionou uma interessante

surpresa. Ao projetarmos a foto da cantora Céline Dion, alguns educandos afirmaram já

tê-la visto na televisão, mas não sabiam seu nome, nem sua nacionalidade. Porém, um

dos surdos pediu a palavra e, dirigindo-se à classe em LIBRAS, disse que Céline Dion

era a cantora do Titanic, filme muito difundido no Brasil (e no mundo) naquele ano.

Apesar de ser surdo profundo, e de não ter tido a chance de ouvir a canção “My heart will

go on”, tema do filme Titanic, aquele educando sabia, de alguma maneira, que o filme

veiculava uma canção interpretada por Céline Dion e que era bastante conhecida entre

ouvintes. A questão do acesso do surdo aos conhecimentos gerais está diretamente

relacionada às políticas de inclusão social, que nem sempre se efetivam de forma eficaz.

Por isso, é importante que o professor de LE conheça bem seus educandos e esteja atento

a esse aspecto no momento do trabalho sobre a interculturalidade.

Tomando as contribuições dos Estudos Surdos no que se refere à difusão da

cultura surda e à valorização dos interesses dos educandos surdos no processo de ensino-

aprendizagem, entendemos que, a exemplo da atividade anterior, seria interessante

apresentar-lhes personalidades surdas francesas que tiveram notoriedade na história da

educação dos surdos ou na mídia contemporânea. (ANEXO 6)

A simples projeção das imagens já gerou manifestações entusiastas dos educandos

que reconheceram, prontamente, algumas dessas personalidades francesas: Abbé de

l’Épée, considerado o “pai dos surdos”; Abbé Sicard, eclesiástico dedicado à educação

dos surdos; E. Huet, professor surdo francês, fundador do atual INES, no Rio de Janeiro;

Emanuelle Laborit, atriz e escritora de grande notoriedade na França, Jean-Claude

Poulain, ator; e Sophie Vouzelaud, Miss França 2007. Diferentemente dos comentários

tecidos sobre as personalidades francesas ouvintes, o tempo de discussão sobre as surdas

foi consideravelmente maior, pois os educandos as conheciam melhor, tinham mais

comentários a fazer a seu respeito e conheciam o sinal referente a quase todas elas.

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Com efeito, o fator “motivação” deve estar no centro das propostas pedagógicas

em uma abordagem comunicativa, pois ele terá um peso crucial na eficácia das atividades

que o educador desenvolve em classe. A esse respeito, o Conselho da Europa sustenta

[...] que os métodos a serem usados na aprendizagem, ensino e investigação

das línguas são aqueles que são considerados mais eficazes no alcançar dos

objetivos combinados em função das necessidades dos aprendentes individuais

no seu contexto social. A eficácia é subordinada às motivações e características

dos aprendentes, assim como à natureza dos recursos humanos e materiais que

podem ser ativados. (CONSELHO DA EUROPA, 2001, p. 200)

Com base nisso, entendemos que, ao introduzirmos elementos da cultura surda e

temas de seu interesse, o educando surdo se sentirá mais motivado a aprender o FLE e

participará das atividades com maior entusiasmo. Essa atmosfera é, sem dúvidas, benéfica

para o aprendizado.

5.2.2 – Competência linguística

Para alguns pesquisadores, o ensino sistemático de vocabulário está, atualmente,

fora do que se espera em uma abordagem voltada para o desenvolvimento do letramento

do educando, seja ele surdo ou ouvinte. Para esses especialistas, as listas de vocabulário

não representam documentos reais com os quais o educando se deparará em suas

interações sociais e, por isso, as práticas pedagógicas que privilegiam esse conteúdo não

contribuem para o progresso de suas habilidades de compreensão e produção textual.

Concordamos, em parte, com essa ideia. De fato, listas de vocabulário não são

muito comuns nas leituras do dia a dia, contudo, não se pode negar que esse tipo de

documento existe e que ele está presente em situações específicas da vida real, como em

encartes de supermercados, em listas de compras ou de material escolar, por exemplo. O

caráter real ou artificial da abordagem do vocabulário em classe dependerá do formato do

documento (autêntico ou não) e da proposta de exploração do mesmo pelo educador.

Em se tratando do desenvolvimento da leitura em LE em classe com surdos, o

trabalho sobre o vocabulário requer ainda mais atenção. Dubuisson e Bastien (1998)

mencionam as investigações de Moores (1967) sobre o assunto, destacando que crianças

surdas submetidas a testes de vocabulário obtiveram resultados consideravelmente

inferiores em relação aos de crianças ouvintes. Semelhantemente, os autores mencionam

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os estudos de Kretschmer & Kretschmer (1978) e de Tweney et al. (1975) sobre a

associação e a classificação de palavras, que resultam na atestação de que crianças surdas

possuem um vocabulário menos extenso e menos organizado do que o de crianças

ouvintes. Essa carência irá interferir diretamente na leitura, pois conhecer o vocabulário

do texto, não necessariamente sua totalidade, mas uma boa parte, é de suma relevância

para a compreensão.

Diante dessa realidade, caberá ao educador a busca de estratégias didáticas para

remediar esse déficit e melhor conduzir o educando surdo na aquisição do vocabulário

relacionado ao assunto a ser abordado, o que, certamente, contribuirá para que ele se torne

um leitor cada vez mais confiante. Mas, na prática, qual é a melhor maneira de se abordar

o ensino de vocabulário em classe de FLE com surdos de modo que ele consiga atribuir

sentido às palavras em contexto?

Atualmente, com as pedagogias comunicativas e acionais, preconiza-se que o

contato do educando com um novo vocabulário deve dar-se “naturalmente”, através dos

documentos e das atividades de recepção, produção e interação desenvolvidas em classe.

Por esse prisma, o uso de listas de vocabulário, tradução e fichas, presentes em

metodologias tradicionais, não se enquadraria nesse modelo de desenvolvimento de uma

comunicação autêntica e, por isso, deve ser rejeitado.

Nesse ponto, levantamos uma discussão sobre a aplicação de múltiplas estratégias

didático-pedagógicas, características de diferentes metodologias de ensino em prol do

aprendizado. O que, de fato, impede um educador do tipo comunicativo de optar por uma

abordagem mais sistemática e estrutural para o ensino e a fixação de um vocabulário

específico? O que determina a maior ou menor eficácia de sua escolha no aprendizado do

educando? É possível trabalhar com listas de vocabulário nos moldes pedagógicos

tradicionais dialogando com uma abordagem comunicativa voltada para o letramento?

Por que uma dada metodologia de ensino não pode agregar práticas de outras

metodologias que, em conjunto, resultariam em um ensino eficaz?

Apesar de praticarmos os aspectos da abordagem comunicativa, entendemos,

como Fernandez (2003), que é possível integrar elementos de diferentes metodologias de

ensino em prol do aprendizado. Para a autora (op.cit.), nenhuma teoria, por si só, tem

condições de abranger todos os aspectos envolvidos nesse processo nem de resolver todos

os problemas.

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Acontece que algumas instituições de ensino e, muitas vezes, os próprios

educadores, se definem como praticantes ou militantes de determinadas metodologias de

ensino e acabam por limitar suas possibilidades de desenvolvimento de certos

procedimentos didáticos. Em nossa experiência em classe com surdos, reconhecemos a

importância do trabalho sobre o vocabulário e fizemos uso de diferentes estratégias

características de diversas metodologias de ensino das LEs. Contudo, nosso objetivo final

visava sempre oferecer ferramentas para que o educando aprimorasse suas práticas de

letramento e fosse capaz de abordar os textos em FLE de forma comunicativa e, cada vez

mais, autônoma.

Dubuisson e Bastien (1998) afirmam que o déficit de vocabulário, tanto do

indivíduo surdo quanto do ouvinte, resulta em sérias dificuldades para se atingir um bom

nível de leitura. Para os autores, é necessário que, no momento da leitura, o vocabulário

familiar seja reconhecido quase que automaticamente.

Os estudos de Marzano (2010) apresentam uma proposta de ensino com base na

exploração de listas de vocabulário que agrupam palavras organizadas semanticamente,

o que permitiria ao professor o desenvolvimento de atividades a partir de um determinado

tema. Alguns estudos (Graves, 2006; Marzano, 2004; Marzano & Marzano, 1988)

demonstram que esse tipo de abordagem do vocabulário pode ser eficiente no aprendizado

da LE, especialmente quando os conteúdos são reaplicados em contexto.

Em nossa prática, esse tipo de abordagem foi utilizado algumas vezes. Citamos

como exemplo nosso trabalho sobre o tema “alimentação”, através do qual introduzimos

o vocabulário de alimentos, especialmente, frutas e legumes. Para isso, propomos

diferentes documentos autênticos, com graus de dificuldade distintos, que foram

explorados progressivamente. A sensibilização inicial ao tema foi feita a partir dos nomes

e logotipos dos supermercados mais conhecidos na França como demonstra abaixo.

Figura 14 - Les supermarchés

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Ao visualizarem os nomes projetados, os educandos logo identificaram os

supermercados Carrefour e Champion, existentes também no Brasil. A partir daí, iniciou-

se uma interação em LIBRAS, na qual os educandos foram questionados sobre suas

experiências em supermercados no Brasil, a frequência com que fazem suas compras, o

supermercado onde costumam consumir e como/se realizam pesquisa de preços dos

produtos. A discussão sobre este último item nos levou à introdução de dois documentos

autênticos, a saber, dois encartes de supermercados, explorados a partir de uma leitura do

tipo Global.

Como pontua Moirand (1979), a Abordagem Global da leitura permite a

exploração de documentos autênticos até mesmo em classe iniciante, pois objetiva a

compreensão do sentido global do texto. Ainda que o educando não compreenda todas as

palavras, outras competências serão acionadas para que haja a apreensão do sentido global

do documento. Para a autora, a competência de leitura representa a capacidade de se

encontrar a informação procurada no texto, compreendê-la e interpretá-la de modo

autônomo.

A escolha dos encartes como documentos introdutórios da temática dos alimentos

foi motivada por dois elementos principais. O primeiro diz respeito às imagens neles

contidas. Conforme a atestação de diversos especialistas da área da surdez (Goldfeld,

1997; Quadros, 1997), os surdos são extremamente sensíveis ao aspecto visual, de modo

que a exploração de recursos imagéticos representa uma importante estratégia didática no

trabalho com esse público. Em segundo lugar, visto que estamos diante de uma classe de

adultos, o universo das compras em supermercados faz parte do cotidiano da maioria ou

da totalidade do grupo, o que nos faz supor que os encartes são, para eles, documentos

bastante familiares. Além disso, em uma futura viagem a algum país francófono, esses

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educandos adultos terão grande probabilidade de se encontrarem diante desse tipo de

documento em uma situação real de compra em supermercado.

Figura 15 - Fruits et légumes - supermarché (a)

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Figura 16 - Fruits et légumes - supermarché (b)

A exploração desses documentos se deu pela interação em LIBRAS, a partir de

comentários sobre o tipo de documentos, a fonte, os produtos expostos, o horário de

funcionamento, etc.. Como o encarte é rico em imagens, mesmo diante de palavras

desconhecidas, os educandos puderam compreendê-las graças ao suporte visual. Um

momento interessante nessa abordagem foi a comparação dos preços dos alimentos na

França com os preços no Brasil.

Em seguida, apresentamos dois documetos a partir dos quais foi explorada a

temática das frutas. A primeira visava à descoberta do vocabulário e a segunda, o seu uso

em contexto.

A lista de vocabulário das frutas foi apresentada através de um jogo de

identificação que tinha como objetivos “aquecer” a turma quanto ao tema e,

principalmente, sensibilizar e encorajar os educandos ao reconhecimento de palavras

cognatas em francês.

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Figura 17 - Les fruits

Nessa atividade lúdica, pediu-se qua cada educando fosse ao quadro e escolhesse

duas frutas de que gostassem, seguindo a seguinte recomendação: primeiramente,

deveriam apontar a imagem da fruta de sua preferência, em seguida, fazer o sinal desta

em LIBRAS e, por fim, indicar/circular a palavra correspodente em francês na lista abaixo

da imagens.

As imagens a seguir, demonstram o decorrer dessa atividade.

Figura 18 - Les fruits (identificação)

Gosto de

abacaxi / ananas

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apontamento da imagem correspondente

apontamento - un ananas

Datilologia em LIBRAS

A N A N AS

No exemplo demonstrado acima, o educando observa o quadro e, em LIBRAS,

sinaliza que gosta de abacaxi. Em seguida, ele aponta a imagem do abacaxi e a palavra

correspondente em francês, ananas. Para finalizar, ele ainda “soletra” a palavra em

francês por meio da datilologia.

E dessa forma, foram escolhidas, gradativamente, as palavras que tinham

semelhança com o português e até mesmo com o inglês, como no caso da fruta laranja,

em francês, orange. Como demonstra a figura seguinte, o educando diz gostar de laranja,

em seguida, aponta para o nome da fruta em francês, envolvendo-o com a caneta e,

finalmente, aponta para a imagem correspondente.

Figura 19 - Exemplo – Orange

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Gosto de laranja.

Apontamento e envolvimento com a caneta – une orange

Apontamento da imagem correspondente a “laranja”.

Com efeito, entendemos que o simples ensino de vocabulário fora de um contexto

significativo não garante a compreensão da leitura. Contudo, não podemos negar a

importância do vocabulário na aquisição de uma LE e que o mesmo requer uma especial

atenção por parte do educador. A esse respeito, Leffa faz uma interessante colocação:

Se alguém, ao estudar uma língua estrangeira, fosse obrigado a optar entre o

léxico e a sintaxe, certamente escolheria o léxico: compreenderia mais um

texto identificando seu vocabulário do que conhecendo sua sintaxe. Da mesma

maneira, se alguém tiver que escolher entre um dicionário e uma gramática

para ler um texto numa língua estrangeira, certamente escolherá o dicionário.

Língua não é só léxico, mas o léxico é o elemento que melhor a caracteriza e a

distingue das outras. (LEFFA, 2000, p.3)

Ao decidir trabalhar o vocabulário isoladamente, o educador deve ter em mente

um percurso elaborado que conduzirá ao seu uso em contexto. Em nossa participação no

Congresso Internacional do INES, realizado em 2014 no Rio de Janeiro, tivemos a

oportunidade de assistir a uma conferência ministrada por Paulo Vaz de Carvalho,

professor de História no Centro Educação e Desenvolvimento Jacob Rodrigues Pereira

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em Lisboa, Portugal. Na ocasião, o professor e pesquisador compartilhou sua experiência

no ensino de História ao público surdo, ressaltando a grande dificuldade de leitura dos

educandos em L2, especialmente face ao vocabulário específico à sua disciplina. Termos

como “despotismo”, “capitanias”, etc., desconhecidos pelos educandos, causavam um

total entrave nas leituras. A partir dessa observação, o professor encontrou apoio na

metodologia proposta por Marzano (2010), segundo a qual o ensino sistemático de

vocabulário anterior à abordagem dos textos, facilita a leitura, traz maior confiança aos

educandos e permite uma melhor compreensão dos textos.

Além disso, é importante destacarmos que grande parte desses educandos, apesar

de serem praticantes da LGP (Língua Gestual Portuguesa) desconheciam tais sinais e,

assim como acontece com educandos ouvintes diante de uma nova palavra como, no

exemplo, “despotismo”, não basta ensinar aos surdos o novo sinal. É preciso toda uma

explicação do termo em LGP para que se compreenda seu sentido em contexto.

Essa situação relatada no ensino de História difere da nossa realidade no ensino

da LE, tanto no contexto de aprendizagem quanto na língua abordada que, no caso, trata-

se de sua L2. Entretanto, consideramos igualmente importante o ensino e a ampliação de

vocabulário em LE visando ao seu uso em contexto.

No documento seguinte (extraído da coluna Santé do site www.jesuiselle.com),

sobre os benefícios das frutas para a saúde, foi possível retomar parte do vocabulário

introduzido no documento anterior. A partir de sua projeção no quadro, pediu-se que

alguns educandos o interpretassem em LIBRAS, apoiando-se nas imagens, nos cognatos

e em seus próprios conhecimentos sobre os benefícios das frutas para a saúde.

Figura 20 - Les fruits et la santé

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Fonte: http://www.jesuiselle.com/sante/les-bienfaits-manger-fruits

Para iniciar a atividade, a educanda aponta e olha para a primeira imagem, as

cerejas.

Figura 21 - Les fruits - apontamento

Les cerises - apontamento com o dedo indicador

Em seguida, como demonstra, ela traduz o nome da fruta correspondente, les cerises, do

francês para o português através da datilologia em LIBRAS.

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Figura 22 - Datilologia

Datilologia em LIBRAS da palavra em português : cereja

C E R E J A

Finalmente, ela interpreta a frase Les cerises calment les nerfs através de apenas dois

sinais:

Figura 23 - Les cerises

Les cerises calment les nerfs

cereja calma

Essa tradução, se comparada à tradução literal do francês, les cerises calment les

nerfs, para o português, “as cerejas acalmam os nervos”, poderia causar certo desacordo

pela ausência do termo “nervos” em LIBRAS. Contudo, devemos lembrar que, além do

sinal propriamente dito, a LIBRAS possui outros elementos como a expressão facial, a

intensidade dos movimentos, o espaço de sinalização, etc., que complementam,

contextualizam e caracterizam o que está sendo transmitido. A sinalização de “calma /

acalmar”, como pode-se observar na figura 24, se deu lentamente, com ênfase no

movimento junto ao peito e expressão facial demonstrando tranquilidade, além da

oralização da palavra, o que, para a professora, demonstrou a compreensão da frase por

parte da educanda e tornou irrelevante a omissão do sinal do termo “nervos”.

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Figura 24 - Verbo "acalmar"

Acalmar

Como pontua Courtillon (2003), nem todas as palavras tem a mesma importância

para a compreensão geral do sentido de um texto. É o que podemos observar no exemplo

seguinte. Na frase Les raisins aident à la circulation du sang, o desconhecimento do

signifidado do verbo aident, em francês, não impediu a compreensão geral da frase, o que

levou a educanda a compensar esse desconhecimento com o sinal “é bom” ou “faz bem”,

como demonstra a figura 25. Da LIBRAS para o português, poderíamos traduzir sua frase

como “as uvas fazem bem à circulação sanguínea”.

Figura 25 - Les raisins

Les raisins aident à la circulation du sang.

uva bom/faz bem circulação sangue

Para Courtillon, diante de uma palavra desconhecida,

[...] é preciso, primeiramente, tentar adivinhar o sentido, perguntando-se se ele

se parece com alguma palavra de sua língua materna ou com alguma palavra

de outra língua conhecida, caso o contexto possa ajudar a compreender. Caso

não se consiga encontrar um sentido satisfatório, e a palavra seja importante

para a compreensão da frase, então, utiliza-se o dicionário. (COURTILLON,

2003, p.89, tradução nossa)32

32 […] il faut d'abord essayer de deviner le sens en se demandant s'il ressemble à un mot de sa langue

maternelle ou à un mot d'une autre langue que l'on connaît, si le contexte peut aider à comprendre. Si on

ne réussit pas à trouver un sens satisfaisant, et que le mot est important pour comprendre la phrase alors

on utilise le dictionnaire. (COURTILLON, 2003, p.89)

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5.2.3 Do lúdico o texto autêntico

As atividades que relataremos a seguir, tinham como objetivo principal a

preparação dos educandos para a abordagem de um texto autêntico extraído do site

internet do Jardim de Zoológico da cidade de Beauval (ANEXO 8), renomado por abrigar

a maior diversidade de animais dentre todos os zoológicos da França.

Antes de trabalharmos com o texto, achamos por bem sensibilizar os educandos

quanto à temática a partir de uma atividade dinâmica, realizada no quadro, que envolvia

o aprendizado do vocabulário a ser abordado posteriormente no texto. Para isso,

projetamos um documento contendo imagens numeradas de vários animais,

acompanhado de uma lista de nomes de animais, em francês (ANEXO 9). Foi solicitado

que cada educando viesse ao quadro, escolhesse uma imagem, fizesse seu sinal em

LIBRAS e, em seguida, apontasse a palavra correspondente em francês, marcando sua

numeração.

Nessa fase inicial, percebeu-se que os educandos se apoiaram, naturalmente, à

semelhança entre o francês e o português, pois grande parte das primeiras palavras

escolhidas eram transparentes, como podemos observar na figura abaixo.

Figura 26 - Os animais

rinoceronte gato canguru vaca

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elefante serpente zebra

Com exceção da palavra “gato” (em francês, “chat”), quase todas as palavras

apontadas inicialmente pelos educandos apresentavam semelhanças entre o português e

o francês, como: rinoceronte – rhinoceros, zebra – zèbre, elefante – éléphant, serpente –

serpente, vaca – vache, entre outras.

Em um dado momento, quando praticamente todas as palavras transparentes já

haviam sido escolhidas, os educandos começaram a manifestar hesitações, quanto à

associação das imagens à palavra corresponde em francês:

Figura 27 - Hesitação

dúvida / não saber

Diante dessas hesitações, a professora insistiu que ainda havia palavras parecidas

com o português as quais eles poderiam associar à uma imagem:

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Figura 28 - Associação francês/português

É parecido com o português.

Após novas observações, alguns alunos conseguiram associar, ainda, dois

animais, que apesar de não apresentarem semelhanças não tão evidentes quanto nos casos

de serpente – serpent, ou canguru – kangourou, mas que lhes possibilitaram alguma

assimilação:

Figura 29 - Os animais - identificação

Identificação – fourmi Sinal: formiga

Apontamento – l’ âne Sinal: asno, burro

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As interações em LIBRAS entre os educandos, favoreceu a realização do exercício

coletivamente, o que é muito positivo para o aprendizado em uma proposta comunicativa.

Tal atividade não foi demorada, possibilitando a introdução do texto sobre o Zoopark de

Beauval, na mesma aula.

A exploração desse documento (ANEXO 8) se deu a partir de três etapas. A

primeira consistiu na observação geral do documento, comentando-se alguns elementos

como as imagens, o título, a fonte, etc.. Após essa sensibilização, os educandos deveriam

fazer uma leitura silenciosa, individualmente. Em um terceiro momento, passou-se à

leitura coletiva, realizada em LIBRAS a partir da projeção do texto no quadro.

Para essa abordagem no quadro, não houve uma recomendação específica por

parte da professora, que deixou que cada educando lesse o texto conforme desejasse. Na

exploração do primeiro parágrafo, notou-se que o educando optou por uma leitura quase

que bimodal, traduzindo palavra por palavra o texto do francês para a LIBRAS.

Esse tipo de leitura é muito comum quando se começa a aprender uma língua

estrangeira, porém ela apresenta alguns inconvenientes como, por exemplo, a pausa da

leitura diante do vocabulário desconhecido. Nas figuras seguintes, a educando se depara

com a palavra “très” (em português, muito), um falso cognato e hesita quanto a sua

tradução.

Figura 30 - apontamento

Apontamento de “très”

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Figura 31 - Interferência

Parece com o português “três”.

É “três”?

Nesse momento, um colega interfere e lhe diz a tradução exata em LIBRAS, e a

aluna percebe, então, que se tratava de um falso cognato.

Figura 32 - Constatação do falso cognato

Me confundi

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Sobre a leitura bimodal da língua áudio-oral, Botelho comenta que

Em muitas ocasiões, ler bimodalmente constitui uma astúcia usada pelos

surdos, para evitar o constrangimento de admitir para o professor que houve

compreensão da leitura, já que verbalizar e fazer sinais é entendido como

oferecer uma resposta em relação ao texto. A astúcia, por sua vez, cria no

professor a ilusão da ausência de problemas, já que ele aceita a enunciação

bimodal e a toma como satisfatória e indicativa de leitura. (BOTELHO, 2002,

p. 143)

A tradução palavra por palavra é, de fato, um caminho incerto, sujeito muitas

vezes a resultados não coesos e sem sentido, especialmente entre uma língua áudio-oral

e outra viso-gestual, cujas estruturas sintáticas são totalmente diferentes. Para Courtillon,

Nunca se deve traduzir sistematicamente um texto que se lê em uma língua

estrangeira. É preciso ler uma frase de uma ponta à outra tentando encontrar o

sentido a partir das palavras reconhecidas. Se esse sentido for impreciso, mas

der uma certa ideia do texto, deve-se prosseguir a leitura até o fim do parágrafo

ou de um grupo de frases que pareçam formar um conjunto. E, a partir dessa

primeira configuração de sentidos estabelecida, volta-se atrás, relê-se cada

frase até que o sentido seja quase satisfatório. (COURTILLON, 2003, p.88,

tradução nossa)33

Para evitar que isso ocorra, é essencial que o professor conheça seus educandos e

esteja atento a seus enunciados, podendo por meio de perguntas em LIBRAS, conferir se

o conteúdo do texto foi, de fato, apreendido. Ele deve, também, adverti-los sobre os

inconvenientes desse tipo de leitura de fornecer-lhes ferramentas para abordar os

documentos escritos de forma variadas.

5.2.4 Sobre o uso da LSF

De um modo geral, as línguas de sinais sofreram uma grande influência da língua

áudio-oral oficial do país onde é praticada. Isso pode ser observado na composição de

vários sinais standard que, representados a partir da configuração de mãos referente à

33 Il ne faut jamais traduire systématiquement un texte que l'on lit dans une langue étrangère. Il faut lire une

phrase d'un bout à l'autre en essayant de dégager le sens à partir des mots que l'on reconnaît. Si ce sens est

imprécis, mais donne une certaine idée du texte, on poursuit la lecture jusqu'à la fin du paragraphe ou d'un

groupe de phrases qui semblent former un tout. Et à partir de cette première configuration de sens qui s'est

mise en place on revient en arrière, on relit chaque phrase jusqu'à ce que le sens soit presque satisfaisant.

(COURTILLON, 2003, p.88)

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161

primeira letra do alfabeto da palavra correspondente. Ao tomarmos o português e a

LIBRAS, podemos mencionar alguns exemplos, como o substantivo “curso”, o verbo

“ver”, o adjetivo “importante”, a conjunção “ou”, entre outros, como podemos observar

na figura abaixo.

Figura 33 – Sinais

curso

ver

importante

ou

Configuração em “C” Configuração em “V” Configuração em “i” Datilologia “ou”

Fonte: Veloso; Maia, 2009

Há, ainda, sinais cuja constituição expressa a soletração de toda a palavra por meio

da datilologia, como é o caso do sinal referente ao advérbio “nunca”, ilustrado de duas

formas na figura seguinte.

Figura 34 - Sinal "nunca"

Nunca (1) – Soletra-se N, U, N, C, A, rapidamente

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Nunca (2) – Soletra-se N, U, N, rapidamente

Fonte: Dicionário Enciclopédico Ilustrado Trilíngue - LIBRAS (CAPOVILLA; RAPHAEL, 2001)

Diferentemente dessa constituição apoiada no português escrito, muitos outros

sinais são representados de forma icônica, como, por exemplo os verbos “chorar” e

“dormir”, o substantivo “casa”, entre outros:

Figura 35 - Sinais icônicos

chorar

dormir

casa

Fonte: Veloso; Maia, 2009

Geralmente, os sinais constituídos com base no português escrito não retratam

uma representação icônica para o surdo. Dessa maneira, este os aprende e os emprega de

forma sistemática, sem qualquer assimilação prática. Porém, ao associar determinado

sinal à língua portuguesa, ele poderá compreender sua origem, e empregá-lo de forma

consciente.

Trazendo essa prática para o ensino do FLE aos surdos, entendemos que a

associação da língua francesa a certos sinais standard da LSF pode contribuir para a

compreensão de um vocabulário específico, favorecendo a abordagem textual. Com base

nesse entendimento, trabalhamos a temática dos dias da semana e dos membros da família

através dessa associação FLE/LSF, como a seguir.

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163

A abordagem dos dias da semana em francês foi uma ocasião interessante para

comentarmos, ainda que rapidamente, sobre a origem desses nomes nas línguas neolatinas

e germânicas, e sobre a grande diferença entre os termos utilizados em português e no

restante das línguas da Europa.

De acordo com um documento explicativo do Centro de Divulgação Científica e

Cultural (CDCC) da Universidade de São Paulo (USP), os dias da semana estão

associados aos sete astros que os antigos conheciam como planetas: o Sol, a Lua,

Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno. Tais planetas deram origem aos nomes dos

dias da semana nas diversas línguas neolatinas e germânicas, inclusive, a língua

portuguesa. Porém, por influência da liturgia católica, passou-se a adotar uma nova

nomenclatura baseada na semana da Páscoa: em latim, Feria Prima (ou Dies Domini, dia

do Senhor), Feria Secunda, Feria Tertia, Feria Quarta, Feria Quinta, Feria Sexta e Feria

Septma (ou Sabbatum). O Sabbatum, dia de descanso para os judeus, deu origem à palavra

sábado; Dies Domini tornou-se domingo, assim como os outros nomes evoluíram para

formas atuais: segunda-feira, terça-feira etc. O termo “feira”, do latim, Feria (descanso),

era utilizado, pois na semana da Páscoa, todos os dias eram feriados (férias ou feiras) e

os mercados funcionavam ao ar livre. Aplicados, inicialmente, somente na semana da

Páscoa, esses nomes se consolidaram e passaram a ser utilizados para todas as semanas

do ano.

Essa singularidade caracterizada na língua portuguesa se reflete, também, na

LIBRAS. Ao observarmos os sinais utilizados para representação dos dias da semana em

LIBRAS, percebemos que estes estão fundamentados no uso da língua portuguesa, e não

nos nomes dos astros. Por exemplo, de segunda-feira a quinta-feira, cada dia é

representado por meio do sinal de um numeral ordinal, posicionado ao lado da testa, sendo

“2”, para segunda-feira; “3”, para terça-feira, e, assim, sucessivamente, como se pode

conferir na figura abaixo.

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Figura 36 - Dias da semana

Fonte: http://ildetefips2.blogspot.com.br

Ainda na figura, observamos que a sexta-feira é representada pelo sinal de “peixe”

(dedo indicador passando ao lado da bochecha, para trás – como se um peixe estivesse

sendo fisgado), em referência à sexta-feira da Paixão de Cristo. Já o sábado e o domingo,

são representados através do sinal da consoante do alfabeto referente à primeira letra de

tais palavras, sendo “s”, para sábado, e “d”, para domingo.

Diferentemente do português, os dias da semana, em francês, conservaram sua

origem sobre os nomes dos astros, com exceção dos dias sábado e domingo, que passaram

ao uso segundo a liturgia cristã, ficando estabelecidos como: lundi, mardi, mercredi,

jeudi, vendredi, samedi, dimanche.

Assim como em LIBRAS, os sinais dos dias da semana se relacionam ao

português, em LSF, os sinais estão intimamente ligados à língua francesa. Por exemplo,

o sinal referente a cada dia é representado através da configuração de primeira letra do

alfabeto referente a cada palavra, sendo “L” para lundi, “J”, para jeudi, “V”, para

vendredi, “S”, para samedi e “D”, para dimanche, de acordo com a ilustração seguinte.

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Figura 37 - LSF - Les jours de la semaine

Fonte: La Langue des Signes – International Visual Théâtre (Moody, 1998)

Já os dias mardi e mercredi, apresentam uma configuração de mãos diferenciada,

conforme veremos detalhadamente mais à frente.

Diante do que foi exposto, decidimos propor um trabalho sobre a temática dos

dias da semana baseado na abordagem plural, segundo a qual, variadas línguas podem ser

utilizadas no ensino da língua estrangeira. De acordo com as concepções descritas no

Quadro de Referência para as Abordagens Plurais - CARAP,

Chamamos “abordagens plurais das línguas e das culturas” as abordagens

didáticas que põem em prática atividades de ensino-aprendizagem que

implicam, ao mesmo tempo, várias (= mais de uma) variedades linguísticas e

culturais. Nós as opomos às abordagens que poderíamos chamar “singulares”

nas quais o único objeto de atenção levado em conta no procedimento didático

é uma língua ou uma cultura particular, tomada isoladamente. Tais abordagens

singulares foram particularmente valorizadas quando os métodos estruturais,

depois “comunicativos” se desenvolveram e toda tradução, todo recurso à

primeira língua foram banidos do ensino. (CANDELIER, 2007, p.5, grifos do

autor, tradução nossa)34

Segundo Carola e Albuquerque Costa (2014), as abordagens plurais contemplam

duas dimensões: a alternância de línguas e o trabalho comparativo com mais de uma

língua. Englobando a intercompreensão, a sensibilização às línguas, a didática integrada

e a abordagem intercultural, as abordagens plurais “se diferenciam das abordagens

singulares (compartimentadas) também pela natureza reflexiva do trabalho com as

34 Nous appelons «approches plurielles des langues et des cultures» des approches didactiques qui mettent

en œuvre des activités d’enseignement-apprentissage qui impliquent à la fois plusieurs (= plus d’une)

variétés linguistiques et culturelles. Nous les opposons aux approches que l’on pourrait appeler

«singulières» dans lesquelles le seul objet d’attention pris en compte dans la démarche didactique est une

langue ou une culture particulière, prise isolément. Ces approches singulières ont été tout particulièrement

valorisées lorsque les méthodes structurales puis «communicatives» se sont développées et que toute

traduction, 2 tout recours à la langue première étaient bannis de l’enseignement. (CANDELIER, 2007, p.6)

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línguas e as culturas, pelo papel que a língua primeira desempenha neste processo e por

despertar nos aprendentes a consciência dos próprios modelos de aprendizagem”

(CAROLA; ALBUQUERQUE COSTA, 2014, p. 104).

Partindo dessa concepção, introduzimos o vocabulário dos dias da semana em

francês, com apoio nos sinais equivalentes em LSF. Como pode-se observar nas fotos

abaixo, a professora aponta para o título do suporte projetado em imagem, explicando,

em LIBRAS, que os dias da semana serão vistos em francês e em LSF, simultaneamente.

Figura 38 - Les jours de la semaine – apontamento

Como os surdos não tem o suporte auditivo, mas são particularmente atentos ao

aspecto visual, decidiu-se introduzir os dias da semana a partir da ênfase sobre a relação

entre o sinal em LSF e a primeira letra de cada palavra, o que contribuiu para a

compreensão daqueles sinais e uma melhor fixação da ortografia dos nomes em francês.

A figura abaixo ilustra parte dessa abordagem.

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Figura 39 - Les jours de la semaine

Lundi

Ênfase sobre a letra “L” da palavra

lundi, seguida do sinal em LSF, cuja

configuração de mãos representa o

sinal de “L”.

Jeudi

Ênfase sobre a letra “J” da palavra

jeudi, seguida do sinal em LSF, cuja

configuração de mãos representa o

sinal de “J”.

Vendredi

Ênfase sobre a letra “V” da palavra

vendredi, seguida do sinal em LSF,

cuja configuração de mãos representa

o sinal de “V”.

Samedi

Ênfase sobre a letra “S” da palavra

samedi, seguida do sinal em LSF,

cuja configuração de mãos representa

o sinal de “S”.

Dimanche

Ênfase sobre a letra “D” da palavra

dimanche, seguida do sinal em LSF,

cuja configuração de mãos representa

o sinal de “D”.

A propósito dos dias mardi e mercredi, a configuração de mãos em LSF não

poderia seguir a mesma lógica de representação dos outros dias da semana (baseada na

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primeira letra das palavras), pois, no caso desses dois dias, ambos começam com a letra

“M”. Diante disso, a professora explicou ao edudandos que, para diferenciá-los, a

configuração de mãos deve representar a segunda letra de cada palavra, ao invés da

primeira, ou seja, “a”, para mardi, e “e”, para mercredi, como ilustrado na figura abaixo.

Figura 40 - Mardi / Mercredi

Mardi

Apontamento da vogal “A”, segunda

letra de mardi, seguido do sinal em

LSF, cuja configuração de mãos

representa o sinal de “A” invertido,

sobre o qual comentaremos em

seguida.

Mercredi

Apontamento da vogal “E”, segunda

letra de mercredi, seguido do sinal

em LSF, cuja configuração de mãos

representa o sinal de “E”.

Como foi mencionado na ilustração sobre mardi, o sinal da vogal “A”, referente

a segunda letra da palavra em questão, apresenta-se invertido. Nessa ocasião, a professora

pôde comentar com os alunos a respeito da evolução que as línguas sofrem ao longo do

tempo, além de suas variações regionais. E isso se aplica tanto às línguas áudio-orais,

quanto às línguas de sinais.

A partir desse comentário a professora explicou aos educandos que o sinal para

mardi apresentado no dicionário ilustrado da LSF, do qual essa imagem foi extraída, era

diferente do sinal que ela havia aprendido na prática, com os surdos de Paris, conforme a

ilustração:

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Figura 41 - Mardi - evolução do sinal

1

2

3

4

Nessa sequência de imagens, a professora faz o sinal de mardi, com a configuração

referente “A” invertido (foto 1), conforme o documento ilustrado à turma. Em seguida,

ela faz o sinal de “não” (foto 2), explicando que conheceu um sinal diferente na França

(foto 3 - “França”, “lá”), e que esse sinal se era representado pela configuração de “A”

(não invertido), com um pequeno movimento circular para a esquerda. Esse sinal pode

ser visto outros dicionários ilustrados da LSF, como nas figuras seguintes:

Figura 42 - Mardi (a)

Fonte: Dictionnaire Visuel Bilingue (Companys, 2006, p.137)

Figura 43 - Mardi (b)

Fonte: Le Poche - Dictionnaire Bilingue LSF/Français (Galant, 2009, p.188)

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Essas comparações deram sequência a comentários sobre as variações regionais

comuns em qualquer língua, permitindo um momento de reflexão e de observações dos

educandos sobre as variações existentes dentro da própria LIBRAS. Essa capacidade de

análise das línguas em questão, assim como a percepção das semelhanças e diferenças

entre elas, refletem uma consciência metalinguística ativa e em evolução. Nesse ponto,

percebemos que o desenvolvimento dessa consciência metalinguística torna o surdo cada

vez mais experiente em suas abordagens linguísticas, e, com isso, mais preparado para o

aprendizado de outras línguas.

Todo esse trabalho sobre os dias da semana em língua francesa associados à LSF,

assim como a comparação dos mesmos com o português e a LIBRAS, mostrou-se

bastante positivo, permitindo: o aprendizado consciente e a fixação do novo vocabulário

em francês, o aprendizado de alguns sinais da LSF (ressaltando que os surdos sempre se

interessam em conhecer sinais de outras LSs), a reflexão sobre a origem e a evolução dos

nomes dos dias da semana em diferentes línguas (áudio-orais e viso-gestuais), o

desenvolvimento de atividades metalinguísticas e o “despertar” de um interesse sobre a

LSF.

Cabe ressaltar que a realização dessa abordagem só foi possível pelo fato de

conhecermos a LSF e de termos em mente um percurso traçado para o desenvolvimento

de um conteúdo preciso. Nesse sentido, acreditamos que uma proposta pautada na

abordagem plural deve ter estratégias e objetivos bem delineados, para evitar que o uso

de mais de uma língua em classe confunda o educando. Dessa maneira, concluímos que

o da abordagem plural na transmissão de conteúdos específicos pode ser bastante

enriquecedor para a bagagem linguística e cultural do educando surdo, trazendo

benefícios para o aprendizado da LE.

Após o trabalho sobre o vocabulário dos dias da semana, passamos ao

desenvolvimento da compreensão escrita, a partir da exploração de alguns textos

autênticos (ou com formato autêntico), os quais continham tal vocabulário.

5.2.5 Receita de bolo

A propósito dos gêneros textuais trabalhados em classe de língua estrangeira, os

PCN recomendam a utilização de variados tipos de texto, pois “além de contribuir para o

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aumento do conhecimento intertextual do aluno, pode mostrar claramente que os textos

são usados para propósitos diferentes na sociedade” (Brasil, 1998, p.45).

Um dos gêneros textuais propostos em nosso curso foi a receita culinária. Para

essa abordagem, selecionamos uma receita de bolo de chocolate, extraída do site internet

www.marmiton.org, como pode-se observar no ANEXO 7.

A escolha dessa receita, especificamente, se deu por dois motivos. Primeiramente,

porque esse tipo de documento é bastante conhecido pelos brasileiros, o que permitiria

uma maior facilidade de acesso dos educandos a sua estrutura (lista de ingredientes, modo

de preparo, tempo de preparo, etc.). Como pontua Moirand (1979, p.23), é importante que

o educador proponha textos que, de certa forma, remetam às experiências de leitura dos

educandos em sua L1 (ou, no caso dos surdos, em L2). Nessa prática, o educador poderá

conduzi-los a uma conscientização sobre as próprias estratégias de leitura utilizadas em

L1, favorecendo a transposição destas para a abordagem da leitura em LE. A outra razão

pela qual escolhemos tal documento, refere-se à simplicidade de seu formato e ao

vocabulário razoavelmente transparente, pois levamos em conta que o grupo em questão

é de nível iniciante em FLE.

Inicialmente, houve um momento de sensibilização quanto à temática das receitas

culinárias. Em LIBRAS, a professora perguntou aos educandos se eles tinham o hábito

de cozinhar e se costumavam guiar-se por livros ou sites de receitas. Nessa ocasião, cada

um falou um pouco sobre suas práticas culinárias e os pratos que sabem ou que costumam

preparar. Houve, também, aqueles que disseram não saber cozinhar.

Em seguida, foi-lhes distribuída a receita impressa, além da projeção da imagem

correspondente no suporte datashow. A partir de uma abordagem global de leitura,

propomos a exploração do texto em três etapas. Na primeira, percorremos o conjunto do

documento coletivamente, observando a fonte, as imagens, o título, etc.. Em seguida, os

educandos realizaram uma leitura individual silenciosa. A cada dúvida de vocabulário

manifestada, a professora escrevia a palavra no quadro e fazia o sinal correspondente em

LIBRAS. Na terceira etapa, alguns educandos foram convidados a virem diante da classe

para que pudéssemos realizar uma leitura coletiva e averiguar sua compreensão.

A próxima figura abaixo ilustra a leitura do título Gâteau au chocolat des écoliers

por um dos educandos. É interessante comentarmos que, durante a leitura individual,

alguns surdos perguntaram sobre o significado de écolier. Nesse momento, a professora

expôs-lhes a nomenclatura e a progressão do sistema educacional na França, comparando-

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as com o contexto brasileiro, sendo École, (do jardim de infância ao primeiro segmento

do Ensino Fundamental), Collège (segundo segmento do Ensino Fundamental), Lycée

(Ensino Médio), e Université (Universidade). Paralelamente a essa comparação, foi-lhes

transmitida a forma como os educandos são chamados em cada nível de formação, sendo,

conforme a ordem apresenta na frase anterior, écolier, collégien, lycéen e étudiant.

Assim, considerando que os alunos da escola primária e do primeiro segmento do

Ensino Fundamental (École) são crianças, o educando surdo traduziu o título Gâteau au

chocolat des écoliers como “Bolo de chocolate das crianças”, conforme a ilustração

abaixo.

Figura 44 - Receita "bolo de chocolate"

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bolo chocolate crianças

Como a professora já havia auxiliado os educandos quanto a vocabulário

desconhecido durante a leitura individual, a releitura coletiva dos ingredientes da receita

transcorreu facilmente. Somente um elemento causou dúvida aos educandos: sachet de

levure, em português, envelope de fermento.

Apesar de terem compreendido sua tradução, por meio do sinal em LIBRAS para

“fermento”, percebemos que a ideia de “envelope”, suscitava estranheza para alguns

alunos. Diante disso, a professora esclareceu que a maneira como esse ingrediente é

comercializado na França é diferente da forma conhecida no Brasil. Lá, são vendidos

pequenos envelopes (ou sachês) de 11 gramas e, como essa medida de fermento costuma

ser o padrão utilizado na preparação de bolos, é comum a indicação de un sachet de

levure, nas listas de ingredientes das receitas francesas, ao invés de 11 grammes de levure.

Diferentemente desse formato, no Brasil, o fermento costuma ser vendido em pequenos

potes de 100 gramas, como ilustram as imagens a seguir.

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Figura 45 - Fermento (França X Brasil)

envelopes de fermento de 11g (França)

Potes de fermento de 100g (Brasil)

A partir da compreensão dessas diferenças, o educando expôs, em LIBRAS, sua

percepção de sachet de levure da seguinte forma:

Figura 46 - "Sachet de levure"

“abrindo” o envelope

“despejando”

crescimento / fermento

Apesar de não ter sido prevista no momento da preparação dessa aula, a

exploração da situação referente à forma de comercialização do fermento na França e no

Brasil permitiu que os educandos reconhecessem que a compreensão do vocabulário em

si nem sempre permite a apreensão de seu sentido em determinado contexto. Além do

conhecimento de língua, é necessário conhecer os aspectos culturais que envolvem os

usos dessa língua.

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Ao prosseguirmos com a exploração do documento, passamos à etapa do “modo

de preparo”. Como os verbos presentes na receita já haviam sido elucidados, uma das

alunas da classe conduziu a leitura em LIBRAS com bastante fluidez e riqueza de

detalhes.

O que nos chamou a atenção nessa etapa, foi a sua elucidação em LIBRAS sobre

um termo que alguns educandos desconheciam, mesmo em português: banho maria, no

texto, em francês, bain-marie, conforme o trecho seguinte.

Figura 47 - Receita - preparação

Fonte: www.marmiton.org

Como em LIBRAS, não há um único sinal para representar esse termo, é preciso

combinar uma sequência de sinais, expressões faciais e movimentos da boca que

permitirão a demonstração desse modo de cozimento dos alimentos. E essa educanda o

fez com maestria, como podemos observar na sequência de imagens a seguir.

Figura 48 - Banho maria

Representação icônica do “banho maria”

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Através dessa explanação, mesmo os educandos que não tem o hábito de cozinhar

e que não conheciam a técnica do banho maria, puderam compreender como ela acontece.

Tal demonstração nos remeteu a uma reflexão compartilhada por Bernard Mottez (1992)

sobre a existência de uma pedagogia tipicamente surda, uma forma de transmissão de

determinadas mensagens por meio da LS, que um ouvinte, ainda que praticante dessa

língua, não seria capaz de transmitir com a mesma clareza, riqueza de detalhes e

desenvoltura do surdo.

O que podemos reter sobre essa aula, é que os episódios mais marcantes durante

a abordagem da receita culinária não foram as estratégias de leitura previstas, nem o

trabalho sobre o vocabulário em si, mas os aspectos interculturais suscitados pelos

educandos durante a leitura. Muitas vezes, o educador elabora um plano de aula, com um

tempo aproximado para a realização de cada atividade, condicionando-se a não “desviar-

se” da sua programação. Contudo, em uma prática de ensino voltada para o letramento, é

preciso que o educador e sua metodologia sejam flexíveis às demandas manifestadas

pelos educandos, pois as novas questões, trocas ou discussões que um texto venha a

fomentar de forma espontânea em classe, caracterizam uma prática genuína do

letramento. E o professor deve estar atento a essa espontaneidade, permitindo-se certos

“desvios” em prol de ganhos e outros aspectos.

5.2.6 Leitura individual

Em nossa experiência, foi possível observar diversas situações de leitura

individual em que os educandos liam os textos em francês e, ao mesmo tempo,

sinalizavam em LIBRAS para si próprios, como pode-se observar na figura abaixo.

Figura 49 - Leitura individual em sinais

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Esse recurso metalinguístico funciona como uma interpretação paralela que

favorece a reflexão e a compreensão do texto. Como diversos estudos já evidenciaram, a

língua portuguesa e, no caso de nosso estudo, a língua francesa, apresentam diferenças

cruciais nos níveis sintático, morfológico, fonológico e semântico quando comparadas à

LIBRAS. Na medida em que o educando surdo tem condições de identificar as diferenças

e as semelhanças entre a L1, a L2 e a LE, ele poderá monitorar seu próprio aprendizado

(Quadros, 1997).

No exemplo seguinte (figura 8), observa-se que a educanda surda realiza uma

individual e silenciosa em francês e, durante sua leitura, percebe-se que ela sinaliza em

LIBRAS e ainda labializa, simultaneamente, em português.

Figura 50 - Leitura individual

França café da manhã almoço Jantar

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Esse uso espontâneo da LIBRAS e do português, por meio da labialização,

evidencia um mecanismo plurilíngue de reflexão no qual a educanda surda busca apoio

durante sua leitura individual do texto. Por outro lado, é importante destacarmos que

alguns surdos, ao interagir com ouvintes, tem o hábito de labializar algumas palavras na

língua áudio-oral, mesmo que esse ouvinte seja praticante da Língua de Sinais. No caso

em questão, a professora, apesar de ser praticante da LIBRAS, é ouvinte, o que pode

impulsionar os educados a labializar em português enquanto fazem uso da LIBRAS.

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5.3 Conclusões sobre a experiência

Elaborar um curso de FLE para iniciantes, com 30 horas de duração, não é uma

tarefa fácil, pois o tempo é relativamente curto diante de tantas possibilidades de conteúdo

a serem selecionados para proporcionar uma formação básica satisfatória. Em se tratando

de um público com necessidades educacionais especiais, essa tarefa se torna ainda mais

desafiadora, pois ela requererá do educador uma série de competências e saberes

fundamentais para a implementação de um ensino adaptado às especificidades do público

em questão e o atingimento dos objetivos do curso. No caso do público surdo, esses

saberes extrapolam o simples conhecimento da LIBRAS, sendo necessário que o

professor tenha noção da dimensão visual pela qual o surdo percebe o mundo a sua volta,

e conheça os aspectos sócio-culturais da comunidade surda.

De um modo geral nossa experiência prática foi bastante enriquecedora para todos

os envolvidos. Dentre os pontos fortes observados no decorrer do curso, podemos

destacar, em primeiro lugar, o desenvolvimento da consciência metalinguística dos

educandos diante do FLE. Durante as abordagens textuais, pudemos perceber as

frequentes associações de vocabulário e de estruturas gramaticais entre o francês e o

português. Algumas dessas associações foram facilitadas por meio de pistas e indicações

dadas pela professora, mas a maioria das percepções foram ativadas espontaneamente

pelos próprios educandos. Nessas ocasiões, foi possível constatar a influência do nível de

letramento de cada educando em L1 e em L2 sobre o aprendizado da LE. Como esse

grupo era composto por surdos universitários ou pós-graduandos, todos apresentavam um

bom nível de letramento, de modo que as atividades metalinguísticas fluíam

naturalmente, favorecendo o aprendizado.

O segundo elemento interessante que podemos destacar foi a contribuição gerada

pelo uso de uma abordagem plural, a qual envolveu diferentes línguas, em diferentes

momentos, em função dos conteúdos trabalhados, como o FLE (língua alvo), o português

(L2 dos educandos surdos), o inglês (LE estrangeira com a qual todos já haviam tido

contato na escola) e a LSF. Através de atividades específicas, os educandos puderam

ativar sua consciência metalinguística, estabelecer associações entre as línguas e,

finalmente, apreender o sentido das palavras, das frases, dos textos abordados. No

contexto globalizado em que vivemos, as trocas comunicacionais estão cada vez mais

diversificadas e os contatos envolvem cada vez mais realidades linguísticas e culturais

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variadas. Em decorrência disso, as interações tendem a se tornar plurilíngues e

pluriculturais, e os educandos surdos, assim como os ouvintes, estão expostos a essa

realidade. Por essa razão, entendemos que o professor de LE deve acionar essa percepção

nos educandos, conduzindo-os ao desenvolvimento de uma ampla visão sobre a

importância das línguas enquanto ferramentas de comunicação, podendo facilitar sua

mobilidade, aproximá-los de outras culturas, qualificá-los profissionalmente, trazer-lhes

um enriquecimento pessoal, entre tantas outras vantagens.

No caso do uso da LSF associada ao francês escrito para trabalharmos com um

vocabulário específico, percebemos que essa abordagem foi bastante facilitadora do

aprendizado. Como acontece em muitas LSs, a língua áudio-oral oficial do país onde ela

é praticada exerceu uma grande influência na composição de alguns sinais standard. Em

nossa prática, achamos que isso deveria ser colocado de forma explícita em favor da

fixação do vocabulário e da ortografia, como fizemos na abordagem dos dias da semana

e dos membros da família. Além de compreenderem a configuração de mãos utilizadas

nos sinais, os educandos demonstraram uma grande satisfação em aprender um pouco da

LSF.

Por outro lado, gostaríamos de destacar as dificuldades relativas à coleta dos

dados. Como não havia uma pessoa responsável pela filmagem das aulas, muitas

interações e situações interessantes a serem relatadas não foram captadas em imagem,

pois a câmera era ligada posicionada em determinado local no início da aula, não sendo

mais manipulada.

Ao final do curso alguns educandos se mostraram bastante motivados a darem

prosseguimento ao aprendizado do FLE, pedindo que fosse oferecido o nível 2 no

semestre seguinte.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo aqui apresentado teve como finalidade trazer uma reflexão sobre os

aspectos que envolvem o processo de ensino-aprendizagem do FLE ao público surdo

bilíngue, buscando detectar os obstáculos inerentes a essa prática e trazer sugestões para

a implementação de um ensino adaptado e eficaz. Nesse segmento, abordamos, ao longo

do trabalho, a situação geral da educação dos surdos, sua evolução histórica, as principais

filosofias educacionais praticadas em diferentes épocas e contextos, as práticas

exclusivistas de ensino e os principais acontecimentos que favoreceram o progresso da

escolarização do surdo.

Ao tratarmos as políticas educacionais voltadas para a Educação Especial no

Brasil, observamos que muitas leis e decretos postos em prática nos últimos quinze anos

contribuíram de forma inegável para a inclusão educacional e social dos sujeitos

portadores de necessidades especiais. No que se refere especificamente à educação dos

surdos, a “lei de LIBRAS” e a “lei do intérprete”, como são popularmente chamadas pela

comunidade surda, representam, a priori, garantia do acesso dos surdos a um ensino

adequado, na perspectiva bilíngue.

Contudo, a presença do intérprete na sala de aula não deve ser encarada como uma

solução aos problemas de comunicação entre o surdo e o professor. Como foi apontado

no capítulo 3, muitas escolas que promovem a inclusão com surdos demonstram

dificuldades mais profundas, que a presença do intérprete não pode sanar. Nesses casos,

é preciso que o intérprete oriente o professor, caso ele não tenha experiência anterior com

esse público, e que a direção da instituição, em diálogo com o professor e com o

intérprete, promova ações específicas a fim de melhor atender esse educando.

Acreditamos que a obrigatoriedade do ensino da LIBRAS, e a inserção de disciplinas que

envolvem o tema da Educação Especial nos cursos de licenciatura, pedagogia e outros

cursos formadores de profissionais passíveis de trabalharem com o público “especial”,

trará, em breve, uma nova geração de profissionais ao mercado de trabalho, melhor

preparados para lidarem com essas necessidades educacionais específicas.

Nesse momento da discussão, abordamos a questão dos diferentes contextos de

ensino aos quais o surdo é submetido, podendo ser em escola especializada (unicamente

para surdos), ou em escola regular (em classe inclusiva ou em classe especial). Em nosso

entendimento, não há uma regra geral que possa definir qual o melhor contexto para que

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o surdo seja instruído. Os bons resultados na aprendizagem dependerão da forma como a

educação bilíngue é aplicada. Indubitavelmente, o ensino bilíngue para surdos, quando

empregado com seriedade, responsabilidade e compromisso por parte da instituição, dos

professores, do intérprete, enfim, de todos os profissionais que lidam com o educando

surdo, as chances de êxito em seus resultados são praticamente certas.

Diante do exposto, não nos posicionamos contra, nem a favor desse ou daquele

contexto de ensino, mas ponderamos que o ensino dispensado deve ser efetivamente

bilíngue, levando-se em conta a importância e a função de cada língua no processo de

ensino-aprendizagem, sendo a LIBRAS, a L1 do educando surdo, empregada como a

língua de comunicação e de ensino, e o português, sua L2, trabalhada na modalidade

escrita, enquanto língua ensinada e base das leituras de apoio no aprendizado das demais

disciplinas. Nesse ponto, destacamos a colocação de Quadros a respeito das três formas

como a LS deve ser apreendida da escola que emprega a filosofia da educação bilíngue:

“a língua de sinais como uma disciplina independente; a língua de sinais usada para

ensinar a língua oral-auditiva e a língua de sinais como a língua usada para trabalhar com

as demais disciplinas escolares” (QUADROS, 1997, p. 109).

Com efeito, a LIBRAS, em toda sua riqueza e particularidades, deve ser ensinada

ao surdo, especialmente na educação infantil, pois quanto mais ele dominar sua L1,

melhor se desenvolverá, e mais preparado estará para abordar não somente a língua

portuguesa, mas, também, as línguas estrangeiras (sejam viso-gestuais ou áudio-orais).

Apesar de nos colocarmos de forma neutra quanto à preferência pelo contexto de

educação do surdo, ao pensarmos no ensino das LEs, entendemos que este deve realizar-

se em classe especial, unicamente. Como discutimos no capítulo 3, o ensino da língua

estrangeira envolve o desenvolvimento de quatro competências de comunicação e as

habilidades desenvolvidas em classe, assim como as estratégias didáticas empregadas,

deverão ser condicionadas às características do público em questão.

Ao pensarmos a abordagem comunicativa, na qual o ensino está centrado no

educando (atentando-se para suas características, necessidades e objetivos de

aprendizagem específicos), o ensino da LE em classe com surdos jamais poderia ocorrer

em contexto inclusivo, pois os surdos e os ouvintes apresentam diferenças cruciais no que

tange a seu canal de comunicação, o que inviabiliza um ensino efetivo para ambos os

públicos num mesmo espaço. Nessa tentativa de inclusão, um dos dois grupos acabaria

prejudicado. Assim, caso o educando esteja inserido em uma escola inclusiva, é

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imprescindível que, durante a aula de LE, ele tenha acesso à classe especial, desenvolvida

inteiramente em LIBRAS, onde poderá haver um trabalho específico, voltado para a

compreensão e produção textuais, com riqueza de recursos imagéticos, enfim, adaptada a

suas necessidades educacionais específicas.

Nos valendo dessa premissa, pudemos realizar uma classe experimental de FLE

para surdos, composta por educandos surdos bilíngues, todos universitários ou pós-

graduandos, ou seja, letrados em L1 e L2. No decorrer dessa prática, percebemos, em

concordância com Soares (1998) que o nível de letramento do educando está intimamente

relacionado ao tipo de trabalho desenvolvimento ao longo de sua escolaridade e às

práticas de leitura e de escrita experimentadas nas diferentes agências de letramento com

as quais ele interagiu em seu percurso. Pudemos observar, também, que o indivíduo surdo

letrado em sua língua materna (ainda que ela seja de modalidade viso-gestual) tem, de

fato, mais facilidade para abordar um documento escrito em outra língua, podendo até

mesmo perceber nuances e informações subentendidas em função de sua prática e

maturidade textual.

Quanto à prática do professor de línguas do surdo, é essencial que ele conheça

seus educandos através de uma avaliação diagnóstica inicial, que norteará toda a

preparação do curso, os objetivos a serem atingidos, as atividades a serem propostas e o

material didático a ser explorado em sala de aula, atentando para a seleção de materiais

que despertem o interesse do educando, que agucem a sua curiosidade e que motivem a

prosseguir. Além disso, ele precisa ser praticante da LIBRAS (ou buscar seu aprendizado)

e conhecer os aspectos que envolvem a surdez, pois, somente assim, ele poderá dispensar

um ensino que vá de encontro à condição de seu educando.

No decorrer da pesquisa, algumas novas ideias e hipóteses sobre um ensino

adaptado e eficaz das LEs ao surdo foram surgindo e, também, sendo refutadas. Outras

não puderam ser aplicadas naquele momento devido à ausência de meios para isso. A

despeito das possibilidades de ensino das línguas estrangeiras ao público surdo brasileiro

em contexto escolar, seria interessante pensarmos na inclusão das línguas de sinais

estrangeiras no currículo das instituições de educação especializada para surdos. Em

nossa experiência no ensino do FLE a esse público, tivemos a oportunidade de introduzir

alguns sinais da LSF em nossas aulas e, nesses momentos, percebemos que os surdos

demonstraram um grande interesse nesse aprendizado. Pareceu-nos que a ideia de

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poderem se comunicar em LSF com surdos franceses era muito mais motivadora do que

em francês escrito com franceses ouvintes.

Para que isso fosse possível, seria preciso a promoção de intercâmbios ou acordos

internacionais que possibilitassem a vinda de professores nativos de LS

(preferencialmente surdos) ao Brasil, para ministrar esse ensino. Outra possibilidade seria

o envio de professores de LIBRAS brasileiros ao país onde a LS estrangeira é praticada,

a fim de que ele aprendesse aquela LS, assim como os aspectos inerentes àquela cultura

e, quando do seu retorno, pudesse compartilhar seus novos conhecimentos com seus

educandos surdos. O aprendizado de outras LS pode representar uma maior mobilidade

dos surdos, que passariam a vislumbrar viagens e encontros com surdos estrangeiros,

além da possibilidade de estudos no exterior, especialmente nos países onde há

instituições de ensino especialmente direcionadas ao atendimento ao público surdo, como

a Gallaudet University, nos Estados Unidos, por exemplo.

Retomando a temática do ensino do FLE aos surdos, constatamos que materiais

didáticos adaptados são praticamente inexistentes, o que nos levou a pensar sobre a

elaboração de um manual didático universal como uma solução ao laborioso trabalho do

professor na seleção e adaptação constantes de documentos escritos durante todo o curso.

Teoricamente, quando se tem um manual didático, o professor pode segui-lo, explorar os

textos e exercícios nele contidos e acrescentar outros documentos extra conforme achar

necessário ou pertinente à temática abordada naquele momento. Contudo, a prática diária

do ensino com surdos nos mostrou que, dificilmente, um manual didático dito universal

conseguiria atender às demandas desse contexto.

Além disso, como o ensino a esse público enfatiza o desenvolvimento da

compreensão escrita, os textos presentes nos supostos manuais de LE para surdos se

tornariam rapidamente defasados. De maneira oposta, em uma prática voltada para

letramento do surdo, faz-se necessário o uso de variados tipos de documentos, e de

variadas temáticas (atuais e não atuais) que lhe possibilitem, além do aprendizado da

língua, sua reflexão sobre assuntos gerais, que contribuirão para o desenvolvimento de

seu conhecimento de mundo, o qual para muitos surdos é restrito.

Por essas razões, entendemos que a constante elaboração de material didático-

pedagógico, embora seja uma tarefa bastante laboriosa, deve fazer parte das práticas do

professor do surdo. Sabemos que o cotidiano do professor brasileiro é caracterizado por

contextos bastante adversos, abrangendo realidades de ensino difíceis, como classes

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superlotadas, falta de recursos, entre tantos outros problemas. Contudo, é preciso que ele

conserve sua visão otimista do ensino, mantendo a chama de sua vocação acesa, se

esforçando, apesar das inúmeras dificuldades presentes no dia a dia escolar. Agindo

assim, ele perceberá que vale a pena investir um pouco mais do seu tempo em prol da

construção de um ensino adaptado e, mais à frente ele poderá contemplar os resultados

dessa empreitada.

Caminhando para a conclusão de nosso estudo, gostaríamos de suscitar uma nova

temática que possa fomentar reflexões após essa leitura: a proposta de uma adaptação dos

diplomas DELF (Diplôme d’Études en Langue Française) e DALF (Diplôme Approfondi

de Langue Française) para o público surdo. Tais documentos são diplomas oficiais do

Ministério da Educação Nacional francês para certificar as competências dos candidatos

estrangeiros nessa língua. De acordo com as informações do CIEP (Centre International

d’Études Pédagogiques), o DELF apresenta quatro diplomas independentes, que

correspondem aos quatro níveis do Quadro Europeu Comum de Referência para as

Línguas, a saber A1 e A2, correspondente a um utilizador elementar da língua; e B1 e B2,

para um utilizador independente. Para cada nível, é necessário que as quatro competências

sejam avaliadas por meio de quatro exames distintos: compreensão oral e escrita,

produção oral e escrita. Considerando essa premissa, os surdos jamais poderão ter acesso

a esse diploma devido a sua impossibilidade de realizar o exame de compreensão oral. A

respeito da produção oral, eles podem passar pela avaliação caso sejam oralizados em L2

e tenham aprendido a oralizar e a fazer leitura labial também em francês.

Na atual conjuntura, em que a temática da inclusão social e educacional dos

sujeitos portadores de necessidades especiais está em voga pelo mundo, acreditamos que

a adaptação desses exames é imperativa. Privar o surdo da obtenção desses diplomas,

ainda que ele seja capaz de realizar as avaliações escritas configura, de fato, a perpetuação

das inúmeras práticas exclusivistas comuns na sociedade, porém, percebidas por poucos.

É preciso que os olhos se abram para essa realidade e que novas discussões em favor da

efetiva inclusão dos surdos se realizem, até o dia em que as adaptações e o uso da LS

serão elementares, e não haverá mais qualquer impedimento de acesso desses sujeitos aos

variados setores da sociedade.

Por fim, através deste estudo, buscamos contribuir para o ensino-aprendizagem

das LEs aos educandos surdos, notadamente no que concerne às práticas pedagógicas do

professor que atua junto a esse público. Sabemos que seu trabalho é, muitas vezes,

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solitário e que há pouco material de apoio que o auxilie nessa tarefa. Assim, nosso ensejo

é que, a partir das considerações aqui apresentadas, cada professor de LE envolvido na

Educação Especial tenha a oportunidade de reavaliar suas próprias práticas docentes, e de

refletir sobre o seu papel enquanto mediador (no sentido mais amplo que essa palavra

possa abranger) do conhecimento e veiculador de toda a riqueza que envolve o ensino de

uma língua e de uma cultura estrangeiras. Ademais, esperamos que esta pesquisa colabore

para o desenvolvimento de novos trabalhos da comunidade acadêmica sobre a temática

do ensino das línguas estrangeiras ao público surdo.

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ANEXOS

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ANEXO 1

Fonte: Grammaire Progressive du Français, Niveau Débutant (Grégoire M., p.104)

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ANEXO 2

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ANEXO 3

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ANEXO 4

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ANEXO 5

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ANEXO 6

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ANEXO 7

Fonte: http://www.marmiton.org/

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ANEXO 8

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ANEXO 9

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ANEXO 10

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ANEXO 11

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ANEXO 12

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ANEXO 13

Alfabeto Bimanual - Língua de Sinais Britânica (British Sign Language - BSL)

Fonte: http://www.deafsign.com/

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ANEXO 14

Alfabeto Manual e Números – LIBRAS

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ANEXO 15

Fonte: http://www.cdcc.usp.br/cda/jct/semana/G_Semana_7dias_80x40cm.pdf