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2 JUÍZES DE TOGA, NOBREZA TOGADA: O JUDICIÁRIO NAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO IMPÉRIO Karine Cristinie da Silva Fontineles – Bolsista PIBIC/UESPI Professor Dr. Marcelo de Sousa Neto - UESPI Resumo: o presente artigo tem por escopo discutir a respeito da educação piauiense na primeira metade do século XIX, com ênfase no nível de instrução dos magistrados da província piauiense. A História do Direito no Brasil representa área ainda pouco explorada, visto que ainda são parcos os trabalhos publicados acerca dessa proposta temática. No caso do Piauí, em especial, pesquisas sobre a temática são ainda mais escassas, o que tem dificultado o desenvolvimento das Ciências Jurídicas, bem como o desenvolvimento da própria História. As dificuldades no acesso ao ensino formal, associadas à grande extensão territorial do Império corroboraram a deficiência da prática jurisdicional dos magistrados na província piauiense. Entender essa dimensão histórica contribui para entender o desenvolvimento das sociabilidades em dado período, uma vez que as decisões políticas do Brasil Império eram diretamente influenciadas pela formação jurídica dos membros de sua elite. Partindo dessa perspectiva, analisar o surgimento prematuro e desorganizado do judiciário piauiense em meio às tentativas de atender as exigências de Portugal e, posteriormente, do Império Brasileiro é o objetivo do presente estudo, bem como entender as disputas por poder e a utilização da educação formal como elemento diferenciador e legitimador dos detentores desse poder. No que concerne à metodologia utilizada na pesquisa, lançou-se mão de uma discussão analítico- interpretativa dos pronunciamentos oficiais do Visconde da Parnaíba, Manuel de Sousa Martins – à época presidente da província, endereçados à Assembléia Legislativa. Como referenciais teóricos para alicerçar a pesquisa foram utilizadas as discussões de Bevilaqua (1977), Bonavides (2002), Carvalho (2003) e Moraes (2003), que se debruçam sobre a história do Direito nas esferas nacional e local, além da análise da documentação oficial da época oriunda da Assembléia Legislativa do governo provincial. Considera-se que a formação judiciária dos jovens bacharéis, que em geral tiveram sua formação ligada à Faculdade de Direito de Recife, teve papel fulcral nos direcionamentos das decisões políticas da província piauiense. Palavras-chave: Educação. História. Direito 1. Introdução As pesquisas no ramo das Ciências Jurídicas pouco têm se direcionado para a História do Direito. Temáticas relativas a essa área são ainda escassas, o que proporciona dificuldades no desenvolvimento das Ciências Jurídicas e, conseqüentemente, no desenvolvimento da própria História, uma vez que a percepção da dimensão histórica auxilia a compreensão das relações de sociabilidades em dado período. José Murilo de Carvalho endossa esse entendimento quando expõe que as decisões políticas durante o Brasil Império estavam diretamente associadas à formação jurídica de muitos membros de sua elite. O Judiciário, como grande parte das instituições no Brasil, surge de forma prematura e desorganizada, como uma forma de se adequar às exigências portuguesas e posteriormente do Império brasileiro. Sem pessoal qualificado com formação específica,

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JUÍZES DE TOGA, NOBREZA TOGADA:O JUDICIÁRIO NAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO IMPÉRIO

Karine Cristinie da Silva Fontineles – Bolsista PIBIC/UESPIProfessor Dr. Marcelo de Sousa Neto - UESPI

Resumo: o presente artigo tem por escopo discutir a respeito da educação piauiense na primeira metade do século XIX, com ênfase no nível de instrução dos magistrados da província piauiense. A História do Direito no Brasil representa área ainda pouco explorada, visto que ainda são parcos os trabalhos publicados acerca dessa proposta temática. No caso do Piauí, em especial, pesquisas sobre a temática são ainda mais escassas, o que tem dificultado o desenvolvimento das Ciências Jurídicas, bem como o desenvolvimento da própria História. As dificuldades no acesso ao ensino formal, associadas à grande extensão territorial do Império corroboraram a deficiência da prática jurisdicional dos magistrados na província piauiense. Entender essa dimensão histórica contribui para entender o desenvolvimento das sociabilidades em dado período, uma vez que as decisões políticas do Brasil Império eram diretamente influenciadas pela formação jurídica dos membros de sua elite. Partindo dessa perspectiva, analisar o surgimento prematuro e desorganizado do judiciário piauiense em meio às tentativas de atender as exigências de Portugal e, posteriormente, do Império Brasileiro é o objetivo do presente estudo, bem como entender as disputas por poder e a utilização da educação formal como elemento diferenciador e legitimador dos detentores desse poder. No que concerne à metodologia utilizada na pesquisa, lançou-se mão de uma discussão analítico-interpretativa dos pronunciamentos oficiais do Visconde da Parnaíba, Manuel de Sousa Martins – à época presidente da província, endereçados à Assembléia Legislativa. Como referenciais teóricos para alicerçar a pesquisa foram utilizadas as discussões de Bevilaqua (1977), Bonavides (2002), Carvalho (2003) e Moraes (2003), que se debruçam sobre a história do Direito nas esferas nacional e local, além da análise da documentação oficial da época oriunda da Assembléia Legislativa do governo provincial. Considera-se que a formação judiciária dos jovens bacharéis, que em geral tiveram sua formação ligada à Faculdade de Direito de Recife, teve papel fulcral nos direcionamentos das decisões políticas da província piauiense.

Palavras-chave: Educação. História. Direito

1. Introdução

As pesquisas no ramo das Ciências Jurídicas pouco têm se direcionado para a

História do Direito. Temáticas relativas a essa área são ainda escassas, o que proporciona

dificuldades no desenvolvimento das Ciências Jurídicas e, conseqüentemente, no

desenvolvimento da própria História, uma vez que a percepção da dimensão histórica

auxilia a compreensão das relações de sociabilidades em dado período. José Murilo de

Carvalho endossa esse entendimento quando expõe que as decisões políticas durante o

Brasil Império estavam diretamente associadas à formação jurídica de muitos membros de

sua elite.

O Judiciário, como grande parte das instituições no Brasil, surge de forma

prematura e desorganizada, como uma forma de se adequar às exigências portuguesas e

posteriormente do Império brasileiro. Sem pessoal qualificado com formação específica,

3

considerando que o primeiro curso de Ciências Jurídicas do Brasil data do ano de 18271,

nossos primeiros juízes constituíram-se, principalmente, de leigos indicados por seus

colégios paroquiais eleitorais, nos quais o poder e prestígio de ricos senhores de terras

terminavam por indicar que conduziriam os caminhos da magistratura.

Esse grupo de juízes, ao assumir importantes atribuições no controle administrativo

da colônia e depois Império esculpirá os moldes em que se delineará toda a prática

jurisdicional de que se tem conhecimento no Brasil atualmente, apesar de que ao longo dos

anos, o judiciário sofreu profundas transformações. Analisar sua história, destacando a

relação entre o interesse privado e público e a autonomia do judiciário permite

aprofundarmos a discussão e o estudo sobre a independência do Poder Judiciário e a defesa

do interesse público, bem como da própria História do Direito, contribuindo para entender

a própria história do Brasil.

Na primeira metade do século XIX, com a Constituição de 1824 e com o Código de

Processo Criminal2, a esfera de atuação dos magistrados aumenta consideravelmente em

detrimento de grupos políticos que até então agiam quase de forma absoluta nas províncias.

Certamente que essas disputas entre o poder local gerariam conflitos, como é possível

notar na fala de Manuel de Sousa Martins, presidente da província do Piauí, segundo o

qual o judiciário piauiense era composto “por homens rudíssimos, presidido por juízes de

direito não letrados e igualmente ignorantes” 3.

A insatisfação quanto à influência da prática desses magistrados na organização

política do Império não se deu isoladamente na província piauiense. Referindo-se à

província de Goiás, Eliane Martins de Freitas aponta a “freqüente insatisfação por parte

dos Presidentes da Província com relação à atuação do Judiciário, são reclamações

relativas à falta de juízes letrados; à benevolência do júri; à falta de conhecimento das leis

por parte dos juízes municipais4”, o que instiga o desenvolvimento da pesquisa no intuito

1 BEVILAQUA, Clovis. História da Faculdade de Direito do Recife. – 2ª ed. – Brasília, INL, Conselho

Federal de Cultura, 1977. 2

BONAVIDES, Paulo & AMARAL, Roberto. Textos políticos da História do Brasil.3.ed. Brasília: Senado Federal, 2002.

3 PIAUÍ. APEP. Oficio da Assembléia Legislativa da Província do Piauí ao Governo da Província, deliberando sobre o numero de alunos nas aulas de Francês na cidade de Oeiras, em 12 de setembro de 1937. Registro de Correspondência da Assembléia Legislativa, com o Governo da Província, 1835-1843.

4 FREITAS, Eliane Martins de. Organização administrativa do Poder Judiciário no século XIX. OPSIS-Revista do NIESC. V. 5, 2005.

4

de analisar as ocorrências desses conflitos nos seus desdobramentos na efetivação da

prática do direito e conseqüências políticas.

O recorte temporal deste estudo contempla a primeira metade do século XIX, período

em que o Império buscava sua consolidação, utilizando-se da força do Poder Judiciário

para atingir a unificação territorial e legitimava os magistrados, a partir da Constituição e

do Código Criminal, a atribuições administrativas e políticas, até então exercidas por

outros grupos da elite.

2. Objetivos

2.1. Objetivo Geral

* Analisar a história do Poder Judiciário, na primeira metade do século XIX, sobretudo no Piauí, destacando seu processo de estruturação em um período de forte centralização administrativa, bem como sua relação com o Poder Executivo das províncias, visando a compreender como isso influenciou as alterações históricas vividas no Brasil nesse período histórico.

2.2. Objetivos Específicos

* Analisar a organização administrativa do judiciário e formação de seu corpo funcional, através de um estudo interdisciplinar entre História e Direito.

* Discutir a atuação do judiciário e sua independência em relação aos demais poderes, bem como refletir acerca dos limites do judiciário na primeira metade do século XIX.

* Investigar a relação entre o judiciário e os diversos interesses locais exercidos por lideranças políticas provinciais.

3 Metodologia

O projeto aqui apresentado objetiva investigar a história do judiciário brasileiro da

primeira metade do século XIX, especialmente no que concerne às disputas entre juízes e

presidentes de províncias e a respeito da formação acadêmica desses magistrados.

Em seu estudo, propõe-se a utilização de fontes bibliográfica elaborando-se as

análises a partir da associação destas. As fontes bibliográficas a serem utilizadas devem

compreender não somente especificamente a temática de estudo, mas obras específicas

sobre a sociedade brasileira da época, com o objetivo de perceber sua organização,

articulando-o com a realidade social, sem, contudo, prender-se exclusivamente a marcos

cronológicos delimitados pelo recorte temporal a serem utilizados pela pesquisa, como

sugere Eric Hobsbawm (1998).

5

Definiu-se como recorte temporal o período relativo aos cinqüenta primeiros anos do

século XIX, no qual o Brasil deixa de ser Colônia e busca efetivar-se como Império,

passando o Judiciário a ser grande ferramenta dos interesses imperiais.

É de grande relevância para o projeto seguir a orientação de Lopes (apud COSTA

FILHO, 2000), que sugere aos pesquisadores incorporar os saberes de outras áreas do

conhecimento e atenuar a rigidez do uso das fontes tradicionais, com a utilização de todo e

qual quer documento que guarde correspondência com o tema. Deve ser lembrado que aqui

se delineia uma proposta de trabalho, no entanto, somente ao longo da pesquisa, com as

respostas obtidas das fontes é que se avaliará a necessidade de correção de rota, pois, se

história é processo, sua pesquisa também o é.

4. Resultados ObtidosJuízes de Paz, Juízes Municipais e de Órfãos, Juízes de Direito Interino, todos leigos e rústicos, que mal assinam os seus nomes, circunscritos em si mesmos ou guiados pelos travessos e desconceituados escrivães, sem ter um advogado ao seu lado, e nem mesmo ao longe da Província, a quem possam consultar, como se há de desenvolver com acerto nas complicadas e difíceis matérias do foro judicial, que demandam conhecimentos privativos, sérios e circunspetos estudos?5.

Durante o período colonial foi implantado no Brasil o direito português. Esta

modalidade de direito estabelecida na colônia era, tal como na metrópole, uma combinação

do direito consuetudinário, do direito romano e do direito canônico. A aplicação do sistema

jurídico na colônia sofria pequenas adaptações às condições locais, quando necessário. No

entanto, por ser um modelo importado de um país cuja estrutura sócio-cultural divergia

drasticamente, tornava-se muitas vezes ineficiente.

As primeiras leis feitas especificamente para o Brasil foram os regimentos dos

governadores gerais (dentre os quais o mais antigo data de 17 de dezembro de 1548, que

estabelecia as atribuições do governador-geral Tomé de Sousa), dos ouvidores gerais e dos

provedores, formando o início de uma estrutura administrativa própria da colônia.

5 PIAUÍ. APEP. Fala que recitou o Excelentíssimo Senhor Visconde da Parnaíba, Presidente desta Província

do Piauí, na ocasião da abertura da Assembléia Provincial em 7 de julho de 1843. Registro de Correspondência da Assembléia Legislativa, com o Governo da Província. 1835-1843.

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Eram legitimados a aplicar a ordem jurídica os juízes ordinários, membros das

Câmaras Municipais, que não tinham formação jurídica e, como requisito, deveriam

obrigatoriamente residir nas comarcas em que possuíam jurisdição; e os juízes de fora,

magistrados nomeados pela Coroa; os ouvidores de comarcas e os tribunais da Relação6,

que existia na Bahia e, posteriormente, no Rio de Janeiro e no Maranhão. A respeito da

atuação destes tribunais de Relação e da conduta dos juízes em suas esferas jurisdicionais,

o desembargador do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, Antonio Pessoa Cardoso,

destaca que:

um historiador da época comenta que ‘com mais Relação, porém, ou menos Relação, na Bahia ou no Rio de Janeiro, a justiça continua irregular e falha, pessoal e feroz, cera que se amolda à vontade pessoal do juiz, que quando não é arbitrária é ignorante e, quando não é ignorante é venal’ (Cardoso, 2008)

A denúncia quanto à parcialidade dos juízes está presente em muitos textos da época.

Nota-se na fala de pessoa Cardoso, os ecos da insatisfação da população do período diante

dos vícios incrustados no sistema judiciário colonial, uma vez que “ao fraco valia sempre

suportar os agravos dos portentosos, perdoando, esquecendo-os a articular qualquer

protesto” (Cardoso, 2008). É tentador atribuir a culpa das irregularidades e falhas aos

juízes ordinários, leigos, sem instrução jurídica, cujo conhecimento das leis se dava

exclusivamente por meio da prática da função jurisdicional adquirida.

Todavia, os tribunais de Relação eram compostos também por juízes de fora,

magistrados e, portanto, detentores do saber jurídico ministrado nos cursos de ciências

jurídicas. Se, de acordo com as críticas da época, os juízes ordinários não estavam aptos a

resolver as celeumas geradas em sua jurisdição, tomando atitudes grosseiras para com o

povo que deveriam representar, pode-se inferir que os juízes de fora, apesar de sua

formação acadêmica, em muitos casos, tendiam a não resolver satisfatoriamente todas as

querelas provenientes da realidade da Colônia, com ênfase àquelas decorrentes dos

arbítrios dos juízes ordinários.

Os magistrados coloniais formavam um grupo de burocratas elitizados, fiéis

servidores reais, movidos por generosas promoções e interesses pessoais. O cargo

representava prestígio, dinheiro e status. A magistratura não era apenas um ramo da

6 Tribunais de segunda instância, responsáveis pela fiscalização dos demais magistrados da colônia.

7

burocracia, mas tornava-se um setor social almejado pelas famílias abastadas. Era

sinônimo de distinção e abismo entre os grupos sociais.

Nesse cenário institucional, forjado sob a influência da matriz lusitana, é que o

Brasil torna-se politicamente independente em 1822. De súditos da Coroa portuguesa, os

brasileiros passam a ser cidadãos do novo Império. É mister ressaltar que um jugo de mais

de três séculos não se dissolve tão repentinamente, principalmente quando a nova nação

independente traz como imperador um membro da família real da ex-metrópole. Além

disso, como ressalta Bloch (1976), as estruturas políticas e sociais estão condicionadas

pelos laços da mentalidade, ou seja, novas conjunturas erguem-se sobre os alicerces de

suas predecessoras sem destruí-las por completo, mas sim, adaptando-as conforme novos

interesses. Daí a necessidade de estruturar fundamentos jurídicos ao novo Estado nacional

que emergia.

Em decorrência de tais transformações e adaptações, do ponto de vista da Ciência

Política, o Estado é visto como uma sociedade política juridicamente organizada. Era

necessário, após a declaração de independência, providenciar uma Constituição que

estruturasse o império, pois para Alexandre de Moraes, a

Constituição deve ser entendida como a lei fundamental e suprema de um Estado, que contém normas referentes à estruturação do Estado, à formação dos poderes públicos, forma de governo e aquisição do poder de governar, distribuição de competências, direitos, garantias e deveres dos cidadãos (MORAES, 2003).

Com o intuito de estruturar e regulamentar a formação do Estado brasileiro foi

elaborada a Constituição de 1824. O Brasil recebeu forte influência dos ideais iluministas,

que se traduziram no mundo jurídico pela idéia de uma Constituição que resguardasse os

direitos civis e políticos e organizasse o estado com base na lei. Predominou nesse

momento o constitucionalismo francês, embora houvesse também influências da

Constituição norte-americana.

Quanto à repartição dos poderes, a Constituição do Império merece destaque pela

implantação do Poder Moderador. O quarto poder seria exercido pela figura do imperador,

cujas atribuições seriam velar “sobre a manutenção da independência, pelo equilíbrio e

pela harmonia7” dos demais poderes. De acordo com o texto constitucional, estabeleceu-se

7 Constituição Política do Império.

8

que o Executivo competia ao imperador e ao conjunto de ministros por ele nomeados. O

Legislativo era representado pela Assembléia Geral, formada pela Câmara de Deputados e

pelo Senado, nomeados por D. Pedro I. O Poder Judiciário era formado pelo Supremo

Tribunal de Justiça, com magistrados escolhidos pelo imperador. Quando o monarca não

era o representante direto de um dos poderes, fazia-se representar por seus nomeados.

Após a outorga da primeira constituição brasileira, em 1824, procurou-se ordenar a

vida jurídica brasileira em função da nova realidade política e jurídica. Iniciava então a

busca por um ordenamento penal e processual penal próprio. A consciência nacional,

inspirada pelas dificuldades sociais e econômicas e ainda por ideais humanistas

revolucionários vindos da Europa e da América do Norte, estava em livre trâmite nos

meios intelectuais e de políticos no Brasil.

Como forma de buscar a homogeneidade social, buscava-se nos primeiros anos de

Império, uma estrutura institucional que articulasse a unidade e a consolidação nacional.

Nesse sentido, a magistratura preenchia as aspirações do governo. No dizer de José Murilo

de Carvalho

Partimos da suposição que o emprego público seria a ocupação que mais favorecia uma orientação estatista e que melhor treinava para as tarefas de construção do Estado na fase inicial de acumulação do poder. A suposição era particularmente válida em se tratando dos magistrados que apresentavam a mais perfeita combinação de elementos intelectuais, ideológicos e práticos favoráveis ao estatismo (2003, p.99).

Os artigos referentes ao poder judiciário da carta constitucional de 1824 estão

contidos no Título IV – Do Poder Judicial, mais especificamente do artigo 151 ao 164. As

bases jurídicas e institucionais do país são alteradas pelas inovações constitucionais que,

em sua maioria, favorecem a descentralização do poder e o fortalecimento das províncias.

Quanto às inovações trazidas pela Lei Maior de 1824, observa-se a abolição, para os

considerados cidadãos, de penas de açoites, torturas, marcas de ferro quente ou qualquer

pena cruel. Aos escravos, entretanto, a regra geral é que, se não fosse cominada a pena de

morte, seriam comutadas penas como açoites ou grilhões.

Como estipulado em disposição constitucional que previa a elaboração de um código

que disciplinasse questões penais, em 29 de novembro de 1830 é aprovado o Código do

Processo Criminal, que altera a organização do Poder Judiciário. A figura do juiz ordinário,

de acordo com os novos dispositivos legais, é substituída pela do juiz de paz,

9

permanecendo o critério de eleição de juízes leigos no âmbito municipal. Os juízes de paz,

eleitos diretamente sob o controle dos senhores locais, passam a acumular amplos poderes

nas localidades sob sua jurisdição.

Nesse sentido, insta observar o quão importantes eram essas eleições para juízes de

paz, também chamados juízes municipais, posto que galgar um cargo de magistrado

implicava também status, poder e uma série de vantagens políticas e administrativas em

âmbito local, como bem explana Graham:

Vencer as eleições era também a melhor maneira de garantir ou conservar cargos. Um juiz municipal, “um dos chefes mais influentes”, compreendeu isso claramente, desejando vencer uma eleição porque, como dizia, “uma eleição é o melhor meio para alcançar uma vara de Direito.

Martins Pena (1997), dramaturgo contemporâneo à aprovação e vigência do Código

do Processo Criminal, infligiu sua visão crítica e bem humorada a respeito da atuação das

autoridades públicas na comédia de costumes O juiz de paz na roça, de 1838. Na obra, o

juiz de paz, valendo-se de sua posição de destaque e da inocência da população roceira,

comete inúmeros abusos de poder durante a resolução dos casos. Apesar da pincelada de

comicidade, é interessante ressaltar que por ser uma comédia de costumes, Martins Pena

utilizou a realidade da aplicação da justiça nas províncias mais remotas e, portanto, mais

distantes da fiscalização do Império para desenvolver o enredo de sua obra. No trecho a

seguir, Martins Pena retrata, em certa medida, o cotidiano do gerenciamento da carta

constitucional:

Manuel André: Mas, Sr. Juiz, ele também está ocupado com uma plantação.Juiz: Você replica? Olha que o mando pra cadeia.Manuel André: Vossa Senhoria não pode prender-me à toa; a Constituição não manda.Juiz: A Constituição!...Está bem!...Eu, o juiz de paz, hei por bem derrogar a Constituição! Sr. escrivão, tome termo que a Constituição está derrogada, e mande prender-me este homem (1997, p.11).

As críticas tecidas ao Judiciário da época apontam um corpo de magistrados

detentores de amplos poderes no âmbito burocrático. No entanto, em função de seu caráter

de destaque na hierarquia do Estado, eram responsáveis por cometer deslizes durante o

10

exercício jurisdicional. A literatura da época põe em evidência tais práticas, permitindo a

íntima relação entre História, Literatura e o Direito.

No trecho supracitado da obra de Martins Pena, o juiz de paz, mesmo em face de

uma alegação de prática inconstitucional, considera-se em posição tão superior que ignora

os preceitos da Constituição vigente. Logicamente que a falta de conhecimento da lei por

parte do povo corroborava no sentido de que as decisões judiciais fossem pouco

contestadas.

Há que se observar que os juízes gozavam de uma vitaliciedade e não eram

beneficiados pelo princípio hoje aceito da inamovibilidade, o que pode ser observado no

artigo 153, da Constituição de 1824, “Os juízes de direito serão perpétuos, o que todavia

se não entende que não possam ser mudados de uns para outros lugares pelo tempo, e

maneira, que a lei determinar”8. Isso talvez explique muitas das críticas atribuídas a

desmandos desses magistrados. Todavia, isso não significa ausência de controle do Estado

em relação à sua atuação.

A Constituição do Império não foi omissa quanto à orientação da atividade dos

magistrados, chegando inclusive a prever punições e suspensões em casos de desvios da

conduta profissional adequada, restringindo ou pretendendo restringir arbitrariedades neste

campo.

Art.154 O Imperador poderá suspendê-los por queixas contra eles feitas, precedendo audiência dos mesmos juízes, informação necessária, e ouvido o Conselho de Estado. Os papéis, que lhes são concernentes, serão remetidos à relação do respectivo distrito, para proceder na forma da lei.(...)Art. 156. Todos os juízes de direito e os oficiais de justiça são responsáveis pelos abusos de poder e prevaricações que cometerem no exercício de seus empregos; esta responsabilidade se fará efetiva por lei regulamentar.9

Um dos fatores que dificultava a aplicação desses artigos era a distância entre as

províncias e os respectivos tribunais a que eram subordinadas. Desde o fim do período

colonial havia quatro Tribunais de Relação que visavam à fiscalização da atividade

jurisdicional. De acordo com o texto constitucional, para julgar as causas em segunda e

última instância, haveria nas províncias do império as “relações que fossem necessárias

8 Constituição Política do Império.9 Constituição Política do Império do Brasil. 1824.

11

para a comodidade dos povos”. Acontece que durante o Primeiro Império, nenhum outro

Tribunal de Relação foi criado, o que dificultava a atividade de fiscalização, tendo em vista

a quantidade de províncias sob a jurisdição de cada Relação e a distância entre cada uma

delas.

Nesse sentido, tinha-se que o Tribunal do Rio de Janeiro abrangia as províncias do

Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Santa Catarina, Paraná, Rio Grande do Sul, Goiás

e Mato Grosso. O Tribunal de Salvador tinha sob sua jurisdição Bahia e Sergipe. As

províncias do Maranhão, Piauí, Amazonas e Pará eram subordinadas ao Tribunal de São

Luís do Maranhão. Por fim, o Tribunal de Recife compreendia as províncias de

Pernambuco, Alagoas, Ceará e Rio Grande do Norte.

A província do Piauí teve sua primeira comarca criada por ordem da Carta-régia de

18 de março de 1722. Até então os julgamentos da população piauiense eram feitos em

Pernambuco. O povoado da Mocha, que futuramente se tornaria a cidade Oeiras, primeira

capital do Piauí, tornou-se sede da comarca. No ano seguinte à Carta-régia, foi designado o

primeiro magistrado do Piauí, Vicente Leite Ripado.

Enquanto na Bahia, desde 1609, havia um Tribunal de Relação, somente no ano de

1773, mais se um século depois, a província do Piauí ganha seu primeiro magistrado. O

desenvolvimento da estrutura judicial no Brasil Colônia não se deu de maneira uniforme,

não se pode, portanto, esperar que os magistrados da Bahia, com uma maior tradição

jurisdicional, atuassem do mesmo modo que os juízes do Piauí, cuja história da

magistratura dava ainda seus primeiros passos para consolidar-se.

Com a Independência do Brasil, é válido destacar que a magistratura no Piauí, assim

como nas demais províncias, não foi unânime quanto à aceitação da emancipação política.

Segundo Antonio Carlos Wolkmer,

a Independência do país não encontrou adesão integral da antiga magistratura, pois enquanto alguns apoiavam a ruptura, muitos outros permaneceram fiéis à monarquia lusitana [...]não é fácil demarcar o número de juízes que, por lealdade, abandonaram o país e regressaram a Portugal, bem como os que, por conveniência, comprometeram-se com as novas condições políticas que se implantaram.

A província do Piauí, em especial, reflete essa dúvida quanto à adesão ao novo

regime. Por sua localização territorial, fazia parte do plano engendrado por Portugal para

manter o norte da ex-colônia sob seu domínio. A população piauiense ficou dividida

12

quanto a apoiar a emancipação, com sua nova forma de governo; ou manter-se fiel à

metrópole, sob pena de retaliações.

Na disputa contra a intervenção metropolitana, a magistratura ligada ao Império teve

desempenho importante. Eliane Martins de Freitas defende a tese de “que a estruturação

das comarcas no Norte tem a função de fazer sentir a presença do Estado e garantir a

defesa de seus interesses, bem como a unidade territorial” (2005, p.127).

Manuel de Sousa Martins teve papel preponderante na luta para tornar a Província do

Piauí livre das investidas portuguesas. Foi Presidente da Junta Governativa Piauiense de

1823 a 1824 e presidente da província em três oportunidades posteriores: de 1824 a 1828;

em breve período em 1829 e por fim, de 1831 a 1843. Neste último governo, Martins teceu

severas críticas ao Judiciário piauiense do século XIX, como na ocasião de instalação da

Assembléia Legislativa do Piauí em 1834, dizendo que

Pelo que toca a Administração da Justiça, dessa mola principal da tranqüilidade publica, tenho a revelar-vos que se acha inteiramente montada sobre o seu grande eixo Constitucional em conformidade do novo Código, e que como não é rigorosa, e ativa sua marcha, poucos são os réus que chegam a ser julgados no competente Tribunal do Júri, e que poucos são os Processos que não envolvam defeitos e nulidades que induzem regularmente a isentar os malvados das penas, que merecem pelas suas execrações [...]10

Para Manuel de Sousa Martins, à época Barão da Parnaíba, os vícios de

procedimento da magistratura piauiense eram responsáveis pela inaplicabilidade do

“castigo e severidade legal” previstos na Constituição e no código Criminal. Quando não

omissos, os magistrados incorriam em erros que culminariam em processos desprovidos

das formalidades prescritas pela lei e, portanto, ineficazes à justa sanção dos delitos

cometidos.

Segundo ele, era impossível garantir a tranqüilidade de tão “vasta província, aberta

por todos os lados” sem um comportamento mais enérgico por parte da Justiça. Desde

1833, a Província do Piauí passou a ter quatro comarcas: Oeiras, Parnaíba, Marvão e

Parnaguá.

Prossegue o pronunciamento atribuindo os possíveis motivos das eventuais

perturbações à ordem provincial, pois seriam 10 PIAUÍ. APEP. Fala, que dirigiu a Assembléia Legislativa no ato de sua instalação, o Presidente da

Província no dia 5 de maio de 1834. Registro de Correspondência da Assembléia Legislativa, com o Governo da Província, 1835-1843.

13

males estes provenientes da absoluta falta de Cadeias e Casas de Correção em todos os Municípios e Distritos do Piauí, onde possam ser seguros, e da pouca inteligência dos Magistrados leigos, que privados de consultarem pessoas versadas em as matérias do Foro, se deixam levar pelas insinuações dos seus próprios Escrivães, que de certo não acreditam muito o contencioso.11

Pelo exposto no trecho citado, a Província do Piauí era desprovida de

estabelecimentos de detenções destinadas ao abrigo de infratores das leis vigentes. Ainda

que o Judiciário chegasse efetivamente a punir os praticantes dos delitos, conclui-se que

grande seria a demanda de réus capturados que evadiriam para outras localidades tendo em

vista a falta de infra-estrutura necessária para recolhê-los com a devida segurança.

Quanto à instrução dos juízes piauienses, tem-se que em 1834 a magistratura era

composta exclusivamente por juízes leigos, característica comum aos juízes de paz de todo

o Império. Devido à falta de conhecimento específico das leis, cometiam deslizes no

exercício da prática jurídica. A ignorância quanto aos procedimentos adequados, levavam

muitos desses juízes a se guiarem por métodos imprecisos. Por tal declaração do Barão da

Parnaíba depreende-se que até aquela data os juízes letrados, com formação acadêmica,

ainda não exerciam atividade jurisdicional no Piauí.

No rol de comentários tecidos à magistratura e ao sistema judiciário da província do

Piauí por Manuel de Sousa Martins, são recorrentes suas críticas quanto à falta de

advogados nas extensões provinciais, ocasionando maior morosidade ao ritmo da Justiça.

No dizer do Visconde da Parnaíba, argumentando mais uma vez sobre o excesso de

atribuições que deixavam os juízes abarrotados de processos estagnados:

Por desgraça nossa, em toda a Província, não há um advogado que os possa guiar no confuso labirinto das controvérsias judiciais. [...] Deveis ponderar, senhores, que um só magistrado hoje não pode arrastar os encargos que lhe são atribuídos12.

O discurso do Visconde da Parnaíba, datado do ano 1837, evidencia a ausência de

profissionais habilitados a exercer a advocacia na província. Diante de tal comentário,

percebe-se que passados exatos dez anos desde a fundação das primeiras faculdades de 11 Será mantida a escrita de época dos documentos consultados.12 PAUÍ. APEP. Fala com que o Excelentíssimo Presidente da Província abriu a Sessão Ordinária da

Assembléia Provincial em 13 de julho de 1837. Registro de Correspondência da Assembléia Legislativa, com o Governo da Província, 1835-1843.

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Direito em São Paulo e em Recife, pelo menos uma província do Império estava

desprovida da atividade deste profissional do Direito.

Em relação ao ensino acadêmico de matérias jurídicas, deve-se levar em conta que

até a criação das faculdades de Direito no ano de 1827 (tardiamente se comparado com as

primeiras universidades do México e do Peru datadas de 1551), os advogados e bacharéis

brasileiros recebiam formação prioritariamente na Universidade de Coimbra, na qual a

disciplina Cânones e Leis sempre apresentou o maior número de matrículas ofertadas.

Fora das classes privilegiadas, poucos conseguem diploma de doutor. Por

conseguinte, poucos membros pertencentes a outras classes alcançam os degraus mais altos

da carreira política. A formação mais freqüente, decerto também por influência das

tradições ibéricas, é a jurídica.

Partindo do fato de que salvo raras exceções apenas os estudantes abastados das

capitanias e províncias poderiam custear os gastos oriundos de uma educação superior na

Europa, tem-se como conseqüência que isso contribuiu para uma unificação ideológica

entre os representantes da elite imperial, como bem explana José Murilo de Carvalho:

A concentração temática e geográfica promovia contatos pessoais entre estudantes das várias capitanias e províncias e incutia neles uma ideologia homogênea dentro do estrito controle a que as escolas superiores eram submetidas pelos governos tanto de Portugal como do Brasil (2003, p. 65).

À época da independência, tal unificação ideológica serviu como propagadora dos

ideais separatistas, posto que em contato com pensamentos liberais na Europa, essa elite

tratou de difundi-los na Colônia, adaptando-os aos seus interesses.

Quanto à participação dos estudantes piauienses nos quadros discentes de Coimbra,

Carvalho aponta que entre os anos de 1772 a 1872 há registros de que apenas 0,08% dos

alunos eram oriundos do Piauí, o que correspondia a uma parcela de 2,84% da população.

Número expressivo, se considerada a distância e as dificuldades de acesso ao ensino

primário e secundário na província. Numa abordagem sobre a Instrução Pública do Piauí,

Marcelo de Sousa Neto destaca que:

Vale ressaltar que em 1824 os gastos com a Instrução Pública no Piauí foram irrisórios, considerando ainda que todas as atenções se voltavam para as Lutas de Independência e seu desenrolar na Província. Existiam, então, apenas três escolas de Primeiras Letras, instaladas nas cidades de Oeiras, Campo Maior e Parnaíba, e duas Cadeiras Secundárias de latim, em Oeiras. Assim, a Instrução Pública no Piauí

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continuava esbarrando em dois entraves já citados: falta de recursos financeiros e de pessoas qualificadas para o magistério.

Pelo exposto por Sousa, os obstáculos ao alcance de uma formação superior se

davam não só pela inexistência de universidades em solo pátrio, como também pela difícil

tarefa de se conseguir formação básica que tornasse os estudantes piauienses aptos a

pleitear vaga em Coimbra.

Os dados referentes às matrículas de piauienses na universidade portuguesa suscitam

o questionamento a respeito do que acontecia com os bacharéis piauienses formados em

Coimbra. Pelo já exposto por esta pesquisa, no que concerne à magistratura havia a figura

do juiz de fora, magistrado nomeado pela Coroa, com formação acadêmica.

Nesse sentido, constata-se que o efetivo de alunos egressos de Coimbra dificilmente

passava a exercer prática jurisdicional em terras piauienses. Como exemplo dessa

tendência de evasão de bacharéis para outras províncias pode-se citar Ovídio Saraiva de

Carvalho e Silva, nascido na Vila de São João da Parnaíba. Após formação jurídica em

Portugal, foi nomeado juiz de fora em Mariana, em Minas Gerais (1812), posteriormente

exerceu o cargo de segundo juiz de fora em Nossa Senhora do Desterro, em Santa Catarina

(1816 a 1819).

Havia ainda os profissionais que exerciam a carreira jurídica com vistas a ingressar

na política, algo que não necessariamente se dava em terra natal, posto que a visibilidade

política fosse mais eficaz nas terras com maior tradicional jurisdicional. Evidenciam-se

também os advogados que exerciam simultaneamente a carreira de jornalista.

A esse respeito, discutindo a atuação dos jornalistas piauienses no século XIX,

Lavina Ribeiro Prado descreve que a “maioria dos jornalistas do período imperial (os quais

posteriormente seguem carreiras políticas) e dos políticos que se lançam no mundo do

jornalismo são formados em direito”. Mais um relato de que apesar de o Piauí não contar

com advogados em seu território, havia um razoável número de piauienses exercendo a

advocacia em outras províncias.

Prado prossegue sua explanação a respeito do efetivo de advogados-jornalistas

piauienses do século XIX e a utilização da profissão como vitrine política:

No jornalismo piauiense [...] exercem advocacia e têm o jornalismo como fonte secundária de sustentação, assumindo-o como profissão paralela a de advogado, encontrando-se, assim, aptos tanto a concorrerem a posições junto à burocracia estatal e ao Parlamento

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quanto a opinarem sobre suas deliberações, seja a partir do instituto partidário ou do jornalístico (Prado, 2009).

Nesse sentido, pode-se observar que os profissionais que exerciam a advocacia e o

jornalismo ansiavam por conseguir prestígio político tanto por deter o conhecimento

técnico das leis, quanto pela legitimidade conferida a eles para propagar as notícias que,

dependendo dos interesses políticos e econômicos dos grupos a que essas notícias

pertenciam, poderiam render-lhes vultosa evidência.

Em relação ao ensino de Ciências Jurídicas em território brasileiro, têm-se as duas

primeiras faculdades do Brasil Império, criadas por meio da Carta de lei de 11 de agosto de

1827, cujo teor instituía taxativamente a implantação de cursos jurídicos nas cidades de

São Paulo, com instalação em 01 de maio de 1828 e de Olinda, instalado em 15 de maio do

mesmo ano.

Pela proximidade com a província do Piauí, a maioria dos estudantes que daqui

migraram em busca de estudos acadêmicos destinava-se a Faculdade de Olinda. A respeito

da importância dessa faculdade para a propagação do ensino jurídico, Bevilqua reflete que

a instituição:

Enviou, aos recantos mais distantes do país, as idéias e doutrinas, que assimilou ou produziu, sendo assim fator poderoso do levantamento do nível intelectual do país. Contribuiu, consideravelmente, para dar ao povo brasileiro a consciência da sua unidade, porque não somente estabeleceu vínculos espirituais entre as populações dispersas.

Reproduz-se em Olinda/Recife o que durante muito tempo se configurou em

Coimbra: por ser destino de formação acadêmica de muitos jovens destituídos de ensino

superior em seu próprio território, tornou-se centro de homogeneidade ideológica e de

propagação de tendências culturais, sociais e políticas.

Em consonância com o que explicita Clovis Bevilaqua, entre os piauienses que

ocuparam as cadeiras da Faculdade de Direito de Olinda vindo a se formar juristas, pode-se

listar Francisco de Sousa Martins (em 1832), Casimiro José de Morais Sarmento, Marcos

Antônio de Macedo (ambos em 1836), Antonio Borges Leal Castelo Branco (em 1838). No

ano seguinte, Antonio Francisco de Sales e Joaquim Augusto de Holanda Costa Freire.

O rol de filhos do Piauí pertencentes ao corpo discente da Faculdade de Olinda e

posteriormente da Faculdade de Recife é imenso, listá-los na íntegra não é objetivo desta

pesquisa, o que se pretende a partir de agora é seguir o rastro da atuação desses nomes em

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território nacional, principalmente no que concerne a pratica jurisdicional em território

piauiense nos anos referentes ao recorte de 1835 a 1843, ampliando-o, caso os registros

apontem para fatos que suscitem explanação mais específica.

É mister enfatizar que os juízes de paz, que ganharam amplos poderes com as

reformas constitucionais, não eram muito bem quistos pelos políticos mais conservadores,

que viam na autonomia da magistratura e na descentralização do poder uma ameaça ao

controle social do vasto Império. Portanto, é possível que o Barão da Parnaíba, criticasse o

Judiciário não apenas pelas imperícias cometidas durante a práxis jurídica, mas porque a

magistratura poderia representar perigo ao desenvolvimento de seu governo,

marcadamente fiel às aspirações imperiais.

No decorrer dos anos, o anseio do Barão da Parnaíba pela resolução dos casos de

desordem à tranqüilidade pública da província continua a ir de encontro à atividade da

magistratura. A esse respeito alertava os deputados provinciais

Acerca da Administração da Justiça continua a ser irregular e pouco profícua, como vos anunciei no meu Relatório passado por existir ainda as mesmas coisas que produzem tais defeitos: o Júri, esse grande conselho, donde depende a sorte, e o destino dos Réus, que parece dever sustentar no equilíbrio reto o fiel da balança para seus julgamentos, por isso mesmo que é composto por homens rudíssimos presididos por Juízes de Direito não Letrados, e igualmente ignorantes, calcados pela maior parte das vezes as precisas circunstancias das Leis, deixando impunes os mais execrandos criminosos, que na força de todas as luzes ousaram cometer os seus delitos em agravo das mesmas Leis da Razão, e da Natureza13.

O relato contido na mensagem do presidente da província à Assembléia deixa claro

sua insatisfação quanto à inércia do Poder Judiciário, composto por juízes e pelo tribunal

do júri, diante das resoluções das contendas. E mais uma vez evidencia a falta de formação

de ensino superior por parte dos magistrados piauienses, que aliada à ignorância dos

jurados fomentava a impunidade nos territórios da província.

Essa exígua formação não se restringia ao Piauí, pois no Brasil da época era muito

reduzida a escolaridade formal, sobretudo em nível superior, o que credencia José Murilo

de Carvalho a afirmar que o “Brasil era uma ilha de letrados em um mar de analfabetos”

13 PIAUÍ. APEP. Fala com que o Excelentíssimo Senhor Presidente da Província abriu a Sessão Ordinária da

Assembléia Provincial de 1836. Registro de Correspondência da Assembléia Legislativa, com o Governo da Província, 1835-1843.

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(2003, p.65). No campo jurídico, a maioria abastada seguia para Portugal, para obter

formação em Coimbra ou dirigia-se a Pernambuco ou a São Paulo, que abrigavam as

únicas faculdades de Direito do país.

As reclamações do Barão da Parnaíba não eram as únicas entre os presidentes das

províncias. Ao falar da estrutura judiciária de Goiás no século XIX, Eliane Martins de

Freitas aponta:

No que tange propriamente às questões relativas à Justiça, a documentação apresenta uma freqüente insatisfação por parte dos Presidentes da Província com relação à atuação do Judiciário, são reclamações relativas à falta de juízes letrados; à benevolência do júri; à falta de conhecimento das leis por parte dos juízes municipais; à polícia desaparelhada e em número insuficiente; a pouca ou nenhuma segurança das cadeias; dentre outros. (2005, p.128)

Sob o ponto de vista dos presidentes das províncias do Piauí e de Goiás, como

conseqüência direta dessas falhas no sistema judiciário, é possível elencar um aumento no

índice de criminalidade, favorecido em grande parte pela vastidão territorial, uma vez que

a vigilância permanente e integral das fronteiras era uma tarefa impossível, o que

proporcionava rotas de entrada e evasão dos possíveis desordeiros.

As críticas tecidas pelos governadores de províncias são dirigidas principalmente à

formação leiga dos magistrados. Havia previsão legal para o exercício jurisdicional pelos

juízes de paz, que eram eleitos pela população local. A lei de 15 de outubro de 1827

estabeleceu a criação dos juizados de paz, cujas atribuições eram judiciais, políticas e

administrativas. No dizer de Evandro de Andrade Vellasco

O juiz de paz, eleito, acumulava amplos poderes, até então distribuídos por diferentes autoridades (juízes ordinários, almotacés, juízes de vintena) ou reservados aos juízes letrados (tais como julgamentos de pequenas contendas, feitura do corpo de delito, formação de culpa, prisão, etc.). (2003, p. 4)

Importante observar que a atividade do juiz de paz abrangia áreas de atuação

anteriormente exercidas por cargos já arraigados na burocracia colonial e do recente

Império, portanto, o que suscitou descontentamentos, principalmente das partes que foram

preteridas face à nova organização judiciária proposta pela lei de criação dos juizados de

paz.

Por fim, em meio aos questionamentos suscitados ao longo desta pesquisa, pode-se

concluir que a organização da estrutura administrativa do Judiciário durante o Brasil, no

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século XIX, esteve articulada à defesa da unidade territorial, ao monopólio político e,

sobretudo, para incutir na população a idéia de um Estado forte cujo poder era perceptível

através da atuação dos juízes. Tal articulação deve ser compreendida, a nosso ver, dentro

do processo de construção do Estado imperial e das exigências desse processo de expansão

da capacidade reguladora do Estado por meio da ação dos mais variados agentes

administrativos.

5. Considerações Finais

A crítica quanto à formação leiga dos magistrados e seus desvios ao longo da

atividade jurisdicional encontram respaldo uma vez que estes julgadores eram legitimados

por uma legislação que permitia cargos de juízes não versados nas Ciências Jurídicas,

sobretudo pela dificuldade de acesso ao ensino formal e universitário, ainda mais quando

se considera como opções a Universidade de Coimbra e, só tardiamente, a criação de

Faculdades de Direito no Brasil

No entanto, a constância e homogeneidade dessas críticas, tecidas em sua maioria

pelos presidentes das Províncias também encontram arrimo numa disputa pelo poder

interno, uma vez que esses magistrados faziam parte da elite política local, assim como os

presidentes, o que, ocasionalmente gerava atritos quando os interesses destes colidiam com

as atividades daqueles. É também o entendimento de Carvalho (2003, p. 138) ao citar que

“a tarefa do juiz era importante para o controle da mão-de-obra e para a competição com

fazendeiros rivais. Ser capaz de oprimir ou proteger os próprios trabalhadores ou de

perseguir os trabalhadores dos rivais, fazendo uso da política, era um trunfo importante na

luta econômica”.

A presente pesquisa, essencialmente bibliográfica, conseguiu também catalogar

alguns documentos inéditos nos estudos acerca do Judiciário no período imperial. Foram

feitos estudos bibliográficos de obras de referência nacionais do funcionamento do

judiciário no recorte contemplado pela pesquisa, além de ter encontrado preciosas fontes,

que ainda necessitam de mais análises uma vez que nenhuma pesquisa basta a si mesma

nem jamais encerra o leque de possibilidades de se estudar um assunto. Para tanto, faz-se

um convite a todos que queiram enveredar por este recorte histórico e abordar a temática

da estruturação do Judiciário brasileiro.

6. Referências Bibliográficas

20

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PENA, Martins. O juiz de paz na roça. São Paulo: Publifolha, 1997.

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PIAUÍ, APEP. Fala que dirigiu a Assembléia Legislativa no ato de sua instalação, o Presidente da Província no dia 5 de maio de 1834. Registro de correspondência da Assembléia Legislativa, com o Governo da Província, 1835-1843.

PIAUÍ. APEP. Fala que o Excelentíssimo Senhor Presidente desta Província abriu a sessão ordinária Assembléia Provincial em 13 de julho de 1837. Registro de Correspondência da Assembléia Legislativa, com o Governo da Província, 1835-1843.

PIAUÍ. APEP. Fala que recitou o Excelentíssimo Senhor Visconde da Parnaíba, Presidente desta Província do Piauí, na ocasião da abertura da Assembléia Provincial em 7 de julho de 1843. Registro de Correspondência da Assembléia Legislativa, com o Governo da Província. 1835-1843.

PIAUÍ. APEP. Fala, que recitou o Excelentíssimo Senhor Barão da Parnaíba, Presidente da Província do Piauí, na ocasião da abertura da Assembléia Legislativa Provincial, no 9° de julho do corrente ano de 1838. Registro de Correspondência da Assembléia Legislativa, com o Governo da Província, 1835-1843.

PIAUÍ. APEP. Oficio da Assembléia Legislativa da Província do Piauí ao Governo da Província, deliberando sobre o numero de alunos nas aulas de Francês na cidade de Oeiras, em 12 de setembro de 1937. Registro de Correspondência da Assembléia Legislativa, com o Governo da Província, 1835-1843.

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