juiz de fora e a arquitetura: um presente a caminho de um futuro incerto
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Reflexão sobre os rumos do desenvolvimento da arquitetura a partir da leitura das construções realizadas ao longo do processo de formação da cidade de Juiz de Fora - MG. Autor: Luiz Alberto do Prado Passaglia Publicado: Pampulha – Revista de Arquitetura, Design, Arte e Meio Ambiente; n° 10, Julho – Agosto de 1983.TRANSCRIPT
J U I Z DE FORA
JUIZ DE FORA E A ARQUITETURA: UM PRESENTE A CAMINHO DE UM FUTURO INCERTO
Textos, desenhos e fotos:
Luiz Alberto do Prado Passaglia *
Uma das particularidades que distingue Juiz de Fora das demais cidades brasileiras sao: pertencer ao restrito "club" das cidades consideradas como sendo de "porte médio" e, o fato de estar a meio caminho da antiga sede da monarquia e da república - a cidade do Rio de Janeiro - e de Belo Horizonte, a capital planejada e construída durante o final do século passado, situada em uma região na qual se desenvolvera e expandira a raiz do ser nacional, tâo bem expressos pela arte e no movimento político da Inconfidência. O processo de transformação do vale e da bacia de sedimentação do rio Paraibuna em área rural, rural-urbana e eminentemente urbana em nossos dias, tem no seu cerne, como um de seus paradigmas, o compromisso de abrigar diversos fluxos de influências - os de dependência e de independência cultural. A arquitetura, que é o objeto do presente artigo, também faz parte desta dinâmica. A cidade nasceu justamente por época em que se iniciava a consolidação da influência académica francesa sobre a nacional, que tivera o seu cadinho na região das "minas gerais". Neste sentido nâb poderíamos deixar de lembrar o pedido feito por Manuel da Costa Ataíde (1762/1830), datado de 1818, no sentido dele ministrar aulas de "Arte de Pintura e Arquitetura" na cidade de Mariana. Esta iniciativa pode ser considerada como integrante da proto-história do ensino da arquitetura no Brasil, desvinculada da tradi-
*Lu i z Alberto do Prado Passaglia, natural da cidade de São Paulo, Arquiteto pela FAU-USP, com cursos de especialização em Planejamento Regional e Preservação do Patrimônio Cultural, fez parte da equipe inicial do Departamento do Patrimônio Histórico da Secretaria
çâo das aulas de artilharia e arquitetura militar, sendo contemporânea à vinda da Missão Artística Francesa, expressão do modelo das Academias. Ataíde como professor de arquitetura e a- sua influência na formação de novos profissionais, nada sei. Talvez nâb tenha sido menos ou mais significativo de que o ensino feito por Grand-jean de Montgny (1776/1850) na Academia no Rio de Janeiro, isto porque fatos irredutíveis vieram a se sobrepujar a qualquer açâo de natureza individualizada e académica - a decadência da mineração e a alteraçâb étnica da composição da população brasileira pela imigração a partir da segunda metade do século XIX. Profissionais diversos, tais como mestres-de-obras, ènge-nheiros-arquitetos, oficiais e operários, foram incorporados à vida produtiva do país através da imigração, em uma proporção maior do que a nossa capacidade de formação local de mâb-de-obra especializada. Juiz de Fora tem como rfiarco de sua existência a época da retificaçáo do antigo "caminho novo", feita por Henrique Guilherme Fernando Halfeld (1797/1873) em 1836, um ex-engenheiro militar prus-siano que fora integrante da Guarda Nacional. A participação de Halfeld na história local nâb terminou com este fato, mas apenas aí teve o seu início. Casando-se com elementos da terra, proprietários da entâb denominada Fazenda do Juiz de Fora, se
Municipal de Cultura de São Pau lo, e desde 1981, em Juiz de Fora, Minas Gerais, foi um dos responsáveis pela implantação de semelhante serviço para a Prefeitura local; professor na Escola de Arquitetura da UFMG e artista plástico.
tornou no seu herdeiro direto, repartindo em glebas parte desta propriedade para que ali surgisse a povoação vislumbrada. A ereçâb da capela de Santo Antônio, santo este transportado da antiga capela existente no trecho de estrada desativada com a retificaçáo, se constituiu a primeira açâb efetiva de elevar aquele sítio ao interesse do coletivo. Da capela náo surgiu a tradicional praça e terras a serem cedidas àqueles que nâo tivessem posses, permitindo assim o concentrar de pessoas e profissões que pudessem enriquecer uma vida urbana. O próprio lugar onde se localizou a sede do governo municipal, que ainda é o mesmo até os nossos dias, e mais o Largo do Conselho, as terras foram adquiridas de Halfeld.
Todo espaço público de seu núcleo histórico, teve a sua origem vinculada a fatos eminentemente económicos, e nâb a qualquer coisa que se aproximasse ao comunitário e urbanístico. As praças da Catedral e Halfeld, talvez sejam as duas únicas ex-cessões, na medida em que elas atenderam às necessidades religiosas e de instalação do poder público local. Este pragmatismo de certa forma sempre foi contraposto porações individualizadas, que agiram acima dos estreitos limites de uma visâb especulativa, abrindo brechas para a arte e a arquitetura: Mariano Pro-cópio Ferreira Lage (1821/1872) com a construção da estrada Uniâb e Indústria, responsável pela introdução do imigrante alemão na região e, Bernardo Mascarenhas (1847/1899) que de uma forma tupiniquim, introduziu a produção de energia elétrica em escala, possibilitando a localização da indústria concentrada no setor urbano. O rompimento gradativo com os padrões e segmentos tradicionais agrários, nâo chegou a se efetivar, apesar do alento industrial que caracterizou a sua história recente, e de sua função de entreposto comercial de uma vasta área definida pela região da Mata Mineira, nâb foram suficientes para alterar a sua condição marginal dentro do processo de desenvolvimento económico e cultural que se concentrou no eixo Rio-Sâb Paulo, principalmente a partir da década de 1950. Se olharmos esta dinâmica através da arquitetura local, observamos a presença de características que podem ser agrupadas em dois períodos: um que iria de 1850 à década de 1930, cujos parâmetros correspondem à introdução do imigrante alemão até o Estado Novo, quando ocorreu as alterações mais significativas do quadro político e económico brasileiro, e, o subsequente que abrange o período de 1940 à década de 1970. Presenciamos, em termos culturais, o seu rompimento com o mundo serra acima, a da Mantiqueira, perdendo o elo com o
nacional das "gerais", consolidando a sua dependência para com o mar aberto, capitaneada pela cidade maravilhosa do Rio de Janeiro. O ecletismo prepondera, inclusive o arquitetônico, que no caso de Juiz de Fora foi assimilado e recriado no âmbito local, tendo como um de seus exemplos mais significativos o arquiteto Rafael Arcuri (1891/1969), enviado a Itália pelo seu pai, Pantaleone Arcuri (1867/ /1958), para estudar arquitetura nos inúmeros ateliês livres entâb lá existentes. A sua sensibilidade artística e a ausência de um comportamento dogmático para com a profissão, fizeram com que ele vivesse e participasse integralmente de todo um período tumultuado e de profundas transformações após a guerra de 1914. Do neoclássico ao art-deco, ele se adaptou e expressou com inteligência e sensibilidade o problema da ornamentação na arquitetura, mas, nada veio a permitir que as principais proposições do movimento moderno da arquitetura viessem aqui encontrar um resguardo ou impulso. Apesar do esforço pessoal de Arthur Arcuri (1913), engenheiro formado no Rio de Janeiro, a estética deste movimento nâo recebeu o apoio necessário, dele ficando apenas o despojamento tâb procurado para o barateamento da construção a caminho da ocupação integral do solo urbano. Mas isto é uma história que tem o seu início durante a década de 1940 para a de 1950, quando as taxas de migração cresceram no sentido do campo para a cidade e da pequena cidade para a de maiores proporções. No caso de Juiz de Fora esta dinâmica teve o seu auge em meados da década de 1960 até a de 1970. Este movimento e alteraçâb da natureza das cidades, foi fruto das mudanças de ordem política e económica do país aonde, por exemplo, a criação do BNH se encontra inserido. Sem deixar margens de dúvida, esta instituição agiu de forma enfática sobre os padrões de ocupação do espaço urbano e de produção do edifício. Ao contrário das- grandes metrópoles, o processo de verticalizaçao e de maximização da ocupação do solo, muito deve a criação de um sistema económico que garantisse um procedimento que não seria tangível pelo capital local, não só em função de seu numerário, mas também, pela ausência de tradição de corporação, cons
trutiva e de mercado para que tal modelo fosse implantado de forma independente. Bancos e Caixas Económicas passaram a aprovar empreendimentos mobiliários dentro da lógica económica monetária, cuja eficiência e objetivos, a partir de uma óti-ca de arquitetura social, deixaram algumas dúvidas. Na medida em que o sistema económico voltou-se para uma dimensão essencialmente financeira, em nosso caso acelerou ações especulativas do solo e do
edifício, caminhando em direção oposta ao incentivo real da expansão do sistema produtivo e das condições salariais do trabalhador, trazendo assim profundas consequências para a arquitetura e para a funçâb social do arquiteto. A estratificação social, a irrealidade do sa-lário-mínimo; a marginalização do significativo contingente da população brasileira e a nâb difusão de formas alternativas de organização, tais como cooperativas, autogestão da empresa pelo trabalhador, etc, tudo isto a arquitetura expressa. Daí
18 a dificuldade de se poder distinguir qual o limite existente entre o que ela é daquilo que pensamos que ela poderia vir a ser. Retomando, aquele quadro que vigorou em Juiz de Fora até o limiar da década de 1940, malogrou. Ele era caracterizado por uma composição social de escala e natureza menos estratificadas; a produção industrial local dos principais componentes aplicados à construção civ i l ; a presença de mestres e operários extremamente habilitados através de um procedimento rígido e ético do ato de construir; a presença do engenheiro-arquiteto ou do arquiteto propriamente d i to , formado por uma didática académica tão combatida pelo movimento moderno da arquitetura que, no entanto, não apresentou um modelo alternativo que garantisse a instrução e o comportamento sócio-profissional não elitista para com o conjunto da realidade brasileira. Tudo isto f icou perfeitamente claro e perceptível em uma cidade como Juiz de Fora, que não tem o gigantismo das metrópoles que chegam a ofuscar. Não será o fato de não se ter uma escola de arquitetura local ou regional que possibilitará alterar este quadro mas, sim uma abordagem diferente da função do proje-to . Na medida em que transpomos e assimilamos padrões com os seus correspondentes objetos culturais já elaborados, fica-nos muito pouco, em termos de criação, de tudo aquilo que consumimos. Daí a insignificância do papel e da função do projeto, e mais do que isto, o seu limitado poder de auto-afirmar uma identidade e de gerar um proceder participativo, só possível com a elaboração de produtos de efetivo interesse social. Uma conduta contrária ao que acabamos de colocar, é aquela em que o arquiteto procura impor um determinado modelo ao seu cliente, com isto, ele não deixa de fazer mais nada do que reproduzir o sistema de imposições exalados pelo sistema educacional, e este, por sua vez, refletir uma orientação política imprimida ao conjunto formado pela educação e cultura no país. A dissociação da arquitetura e do arquiteto das bases populares, máxima incondicional do ''modernismo brasileiro", incon-
dicional devido as próprias condições da organização sócio-econômica e política da nação, vem se constituindo em um dos desafios mais amplos para a classe. Exemplos típicos da fragilidade das proposições teóricas da arquitetura moderna para um contexto não metropoli tano, nos são fornecidos pela sua própria prática. Foi o caso do edifício do Club de Juiz de
Fora, projeto de autoria do arquiteto carioca Francisco Bolonha (1923), que uti l izou os principais elementos formais caracterizadores do modernismo, além de painéis idealizados por Cândido Portinari (1903/1962). No entanto, não foram suficientes para superar os limites impostos pelo mercado do solo urbano — uma
taxa de ocupação da ordem de 100%. Praticamente é o primeiro edifício que abandonou a antiga tradição local de resolver a esquina em curva, mantido no caso do projeto de Oscar Niemeyer (1907) para o Banco do Brasil, passando a avançar em ângulo reto sobre o alinhamento, jogando toda a sua massa construtiva sobre o logradouro. A arquitetura dos poços de iluminação, de compartimentos precariamente iluminados e ventilados, a diminuição das áreas até o limite dé aturação; as crianças enclausuradas em cubículos, sem o contato com o sol, com a água da chuva, a terra e as plantas; somem os quintais, expressão e reduto da parcela da natureza compartimentada pelo homem, local aonde poderia sentir a sua cor, seu gosto e cheiro. E eis que a contradição surge — enquanto estes elementos ainda permanecem nas periferias das cidades, eles escasseiam nas áreas mais centrais; enquanto na primeira predomina a morada das classes que cada vez mais tendem a ficar marginalizadas pelo sistema produtivo, as da área central, tendem a se alienar não questionando o significado deste sistema.
com a roupa encharcada, a alma repleta de chio
todo artista tem de ir aonde o povo está se foi assim, sempre será.
(Milton Nascimento, in "Nos Bailes da Vida")
A arquitetura de um povo espelha com clareza o nível de sua cultura e, neste sentido, as cidades que não foram palco de uma ação concentrada do oficialismo ou de uma ação mecânica por parte da burguesia para com o modernismo, elas tendem refletir com maior nitidez o quanto de fato avançamos na arquitetura. Eis Juiz de Fora ajudando-nos a voltar a pisar o chão, como em um ancoradouro depois de uma viagem que ficou no passado, mas que nos alerta sobre um presente parte de um futuro questionável.