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JRR Tolkien - Os Filhos de Hurin

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Page 1: JRR Tolkien - Os Filhos de Hurin

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NARN I CHÎN HÚRINA História dos Filhos de Húrin

De

J. R. R. Tolkien

Editado por Christopher TolkienIlustrado por Alan LeeTítulo original: The Children of HúrinTradução de Fernanda Pinto RodriguesPublicações Europa-América, 2007Capa: estúdios P. E. A., sobre ilustração de Alan LeeMapa, Prefácio, Introdução, Nota Sobre a Pronúncia,Apêndices e Lista de Nomes Cristopher Reuel Tolkien,2007 The Tale of the Children of Húrin The JRR TolkienIlustrações Alan Lee, 2007TOLKIEN e o monograma JRR Tolkien são marcas re-gistradas, usadas aqui com autorização do JRR TolkienEstate Limited.

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NOTA DO EDITOR PORTUGUÊS

Foi em 1981 que, pelas mãos da Europa-América, oleitor português travou conhecimento com o fantásticouniverso de Tolkien. Nesse ano era publicado o primeirovolume da trilogia de O Senhor dos Anéis. Em 1985 foi avez de O Hobbit e seguiram-se Silmarillion, As Aventurasde Tom Bombadil, Contos Inacabados de Númenor e daTerra Média e, em 2006, Cartas do Pai Natal. Um projetoeditorial ambicioso, que tem já vinte e seis anos de exis-tência no nosso país e que teve desde o início a adesãodos portugueses.

E por isso com especial orgulho que publicamosagora Os Filhos de Húrin, o inédito de J. R. R. Tolkien,editado por seu filho Christopher Tolkien, num rigorosolançamento mundial em simultâneo com o editor originalinglês. Também a tradução nos mereceu especial cuidadoe, por essa razão, o trabalho foi feito por Fernanda PintoRodrigues — desde sempre a tradutora especialista deTolkien em Portugal.

Tolkien foi considerado o maior escritor do séculoXX e um dos maiores de todos os tempos. Com Os Fi-lhos de Húrin, entra no século XXI e perpetua-se na me-mória de novas gerações.

O Editor

ParaBaillie Tolkien

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ÍNDICE

PrefácioIntroduçãoNota Sobre a PronúnciaNARN I CHÎN HÚRINA História dos Filhos de HúrinI A Infância de TúrinII A Batalha das Lágrimas InumeráveisIII As Palavras de Húrin e MorgothIV A Partida de TúrinV Túrin em DoriathVI Túrin Entre os BandidosVII De Mîm, o AnãoVIII A Terra do Arco e do ElmoIX A Morte de BelegX Túrin em NargothrondXI A Queda de NargothrondXII O Regresso de Túrin a Dor-lóminXIII A Chegada de Túrin a BrethilXIV A Viagem de Morwen e Niënor para NargothrondXV Niënor em BrethilXVI A Chegada de GlaurungXVII A Morte de GlaurungXVIII A Morte de TúrinGENEALOGIASI A Casa de Hador e o Povo de HalethII A Casa de BeorIII Os Príncipes dos NoldorAPÊNDICES(I) A Evolução dos Grandes Contos(II) A Composição do TextoNota Sobre o Mapa

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PREFÁCIO

É inegável que há um grande número de leitores deO Senhor dos Anéis para quem as lendas dos TemposAntigos (como anteriormente editadas sob várias formasem O Silmarillion, Contos Inacabados e The History ofMiddle-earth) são totalmente desconhecidas, a não serpela fama de estranhas e inacessíveis em forma e estilo.Por esse motivo, há muito me tem parecido existir umaboa justificação para apresentar a versão extensa da lendade Os Filhos de Húrin de meu pai como obra indepen-dente, entre as suas próprias páginas, com um mínimo depresença editorial e, sobretudo, numa narrativa contínua,sem hiatos ou interrupções, se tal pudesse ser feito semdistorção ou invenção, apesar do estado inacabado em queele deixou algumas partes da narrativa.

Pareceu-me que se a narrativa do destino de Túrin eNiënor, os filhos de Húrin e Morwen, pudesse ser apre-sentada desta maneira, se abriria, porventura, uma janelapara um cenário e uma história situados numa desconhe-cida Terra Média que são intensos e imediatos, apesar deconcebidos como oriundos de eras remotas: as terras i-nundadas do ocidente, para lá das Montanhas Azuis, ondeBarbárvore caminhou na juventude, e a vida de Túrin Tu-rambar em Dor-lómin, Doriath, Nargothrond e na Flores-ta de Brethil.

Este livro é, pois, essencialmente destinado aos lei-tores que talvez ainda se lembrem de que a pele de Shelobera tão horrendamente dura que não podia ser trespassadapor qualquer «força de homens», nem «que elfo ou anão

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forjassem o aço da espada ou a mão de Beren ou Túrin aempunhasse», ou de que Elrond mencionou Túrin a Fro-do, em Rivendell, como «um dos poderosos amigos dosElfos de antigamente», mas que nada mais sabem dele.

Quando o meu pai era jovem, durante os anos daPrimeira Guerra Mundial e muito antes de haver indíciodas histórias que haveriam de constituir a narrativa de OHobbit ou O Senhor dos Anéis, começou a escrever umasérie de contos a que chamou The Book of Lost Tales.Essa foi a sua primeira obra de literatura imaginativa, e devulto, pois, embora tivesse ficado inacabada, catorze con-tos estão completos. Foi em The Book of Lost Tales queapareceram pela primeira vez numa narrativa os Deuses,ou Valar; Elfos e Homens como Filhos de Ilúvatar (o Cri-ador); Melkor-Morgoth, o grande inimigo; Balrogs e Orcs;e as terras em que os Contos decorrem, Valinor, «terra dosDeuses», para lá do oceano ocidental, e as «Grandes Ter-ras» (depois chamadas «Terra Média», entre os mares deleste e oeste).

Entre os Lost Tales, três eram de muito maior ex-tensão e amplitude, e todos os três se relacionam comHomens como com Elfos: são eles The Tale of Tinúviel(que aparece em forma reduzida em O Senhor dos Anéiscomo a história de Beren e Lúthien que Aragorn contouaos hobbits no Cume do Tempo, e que meu pai escreveuem 1917); Turambar and the Foalókë (Túrin Turambar eo Dragão, com certeza já existente em 1919, se não antes),e The Fall of Gondolin (1916-17). Numa passagem fre-qüentemente citada de uma longa carta descrevendo a suaobra, escrita em 1951, três anos antes da publicação de AIrmandade do Anel, meu pai falou da sua ambição inicial:«há muito, muito tempo (a minha crista já baixou, desde

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aí), era minha intenção criar um corpus de lendas mais oumenos relacionadas, indo do grande e cosmogônico até aonível do conto de fadas romântico — as maiores baseadasnas menores em contado com a Terra, as menores indobuscar o esplendor aos vastos panos de fundo [...] traçariaalguns dos contos maiores em amplitude e deixaria muitosapenas colocados no plano, e esboçados.»

Compreende-se desta reminiscência que há muitofazia parte da sua concepção do que veio a chamar-se OSilmarillion que alguns dos «Contos» seriam contados deforma muito mais extensa e, de fato, nessa mesma carta de1951, ele referia-se expressamente a esses três contos quemencionei acima como sendo de longe os mais extensosem The Book of Lost Tales. Aí ele chamou ao conto deBeren e Lúthien «o principal conto de O Silmarillion», edisse a seu respeito: «a história é (na minha opinião) umbelo e intenso romance heróico e de fadas, aceitável em simesmo apenas com um conhecimento geral muito vagodos antecedentes. Mas é também um elo fundamental dociclo, privado do seu pleno significado quando dele é reti-rado.» «Há outros contos quase igualmente plenos no tra-tamento», continuou, «e igualmente independentes, e, nãoobstante, ligados à história geral»: estes são Os Filhos deHúrin e A Queda de Gondolin.

Parece, pois, inquestionável, de acordo com as pró-prias palavras de meu pai, que se ele conseguisse elaborarnarrativas finais e definitivas na escala que desejava, con-sideraria os três «Grandes Contos» dos Tempos Antigos(Beren e Lúthien, Os Filhos de Húrin e a Queda de Gon-dolin) obras suficientemente completas em si mesmas pa-ra prescindirem do conhecimento do grande corpo delendas conhecido por O Silmarillion. Por outro lado, co-

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mo ele próprio observou no mesmo contexto, o conto deOs Filhos de Húrin integra a história dos Elfos e dosHomens nos Tempos Antigos e há necessariamente mui-tas referências a acontecimentos e circunstâncias nessahistória mais ampla.

Seria em absoluto contrário à concepção deste livrosobrecarregar a sua leitura com uma abundância de notascom informações acerca de pessoas e acontecimentos que,de qualquer modo, raras vezes têm verdadeira importânciapara a narrativa imediata. No entanto, aqui e ali, poderáser útil algum auxílio e, por isso, fiz na Introdução um es-boço muito breve de Beleriand e dos seus povos perto dofim dos Tempos Antigos, quando Túrin e Niënor nasce-ram; e, além de um mapa de Beleriand e das terras do nor-te, incluí uma lista de todos os nomes constantes do textocom indicações muito concisas a respeito de cada um egenealogias simplificadas.

No fim do livro há um apêndice em duas partes: aprimeira, respeitante às tentativas de meu pai para conse-guir uma forma final para os três contos; a segunda, rela-cionada com a composição do texto deste livro, que difereem muitos aspectos da dos Contos Inacabados.

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INTRODUÇÃO

A Terra Média nos Tempos Antigos

O caráter de Túrin era de um profundo significadopara meu pai, que, com diálogos claros e diretos, conse-guiu traçar um retrato pungente da sua meninice, essencialpara o todo: a sua severidade e falta de alegria, a sua noçãode justiça e a sua compaixão; de Húrin também, sagaz,alegre e otimista, e de Morwen, sua mãe, reservada, cora-josa e altiva; e da vida da família na fria região de Dor-lómin nos anos, já impregnados de medo, após Morgothter rompido o Cerco de Angband, antes de Túrin nascer.

Mas tudo isto foi nos Tempos Antigos, na PrimeiraEra do mundo, um tempo inimaginavelmente remoto. Aprofundidade no tempo a que esta história remonta foimemoravelmente transmitida numa passagem de O Se-nhor dos Anéis. No grande conselho reunido em Riven-dell, Elrond falou da última aliança de Homens e Elfos eda derrota de Sauron no fim da Segunda Era, mais de trêsmil anos antes.

Chegado a este ponto, Elrond fez uma pausae suspirou.

— Lembro-me bem do esplendor das suasbandeiras — disse. — Recordou-me a glória dosTempos Antigos e as hostes de Beleriand, tantos etão grandes príncipes e chefes guerreiros estavamreunidos.

No entanto, não eram tantos, nem tão belos,como quando Thangorodrim foi vencido e os Elfos

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julgaram que o mal terminara para sempre, mas nãoterminara.

— Lembra-se? — perguntou Frodo, dandovoz ao seu pensamento, tão grande era o seu espan-to. — Mas eu pensava... — gaguejou, quando El-rond se virou para ele. — Eu pensava que a quedade Gilgalad tinha sido uma há muito, muito tempo.

— E foi, realmente — respondeu Elrond,muito sério. — Mas a minha memória remonta atémesmo aos Tempos Antigos. Earendil foi o meuprogenitor, nascido em Gondolin antes de esta cair;e a minha mãe foi Elwing, filha de Dior, filho deLúthien de Doriath. Vi três eras no Ocidente domundo, como muitas derrotas e muitas vitórias in-frutíferas.

Cerca de seis mil e quinhentos anos antes de oConselho de Elrond ter reunido em Rivendell, Túrin nas-ceu em Dor-lómin, «no Inverno do ano», segundo constados Anais de Beleriand, «com presságios de infortúnio».

Mas a tragédia da sua vida não está de modo algumapenas no retrato do caráter, pois ele foi condenado a vi-ver prisioneiro de uma maldição de imenso e misteriosopoder, a praga de ódio lançada por Morgoth sobre Húrin,Morwen e os seus filhos, porque Húrin o desafiou e recu-sou a sua vontade. E Morgoth, o Inimigo Negro, comoveio a ser chamado, esteve na sua origem, como declaroua Húrin, trazido como cativo à sua presença: «Melkor, oprimeiro e mais poderoso dos Valar, que existia antes domundo.» Agora encarnado permanentemente com a for-ma de um rei gigantesco e majestoso, mas terrível, no no-roeste da Terra Média, estava fisicamente presente na sua

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imensa fortaleza de Angband, nos Infernos de Ferro: onegro vapor fétido que se exalava dos cumes das monta-nhas de Thangorodrim, as montanhas que ele empilharasobre Angband, podia ser visto de muito longe, manchan-do o céu setentrional. Consta dos Anais de Beleriand que«as portas de Morgoth ficavam apenas a cento e cinqüentaléguas de distância da ponte de Menegroth — longe e,contudo, demasiado perto». Estas palavras referem-se àponte que leva aos domínios do rei elfo Thingol, que aco-lhera Túrin como filho adotivo: chamavam-se Menegroth,as Mil Cavernas, bem a sul e a leste de Dor-lómin.

Mas, tendo encarnado, Morgoth passou a ter medo.O meu pai escreveu, a seu respeito: «Enquanto crescia emmaldade, e emanava de si o mal que concebia em mentirase criaturas perversas, o seu poder transferiu-se para elas edispersou-se, enquanto ele próprio ficava cada vez maispreso à terra, sem vontade de sair das suas negras fortale-zas.» Assim, quando Fingolfin, Rei Supremo dos Elfos deNoldorin, cavalgou sozinho para Angband a fim de desa-fiar Morgoth para combater, gritou às suas portas: «Mos-tra-te, rei covarde, para lutares com a tua própria mão!Habitante de cavernas, criador de escravidão, mentiroso eardiloso, inimigo de Deuses e Elfos, sai! Pois quero ver oteu covarde rosto.» Então (diz-se), «Morgoth saiu. Poisnão podia ignorar semelhante desafio perante os seus ca-pitães.» Lutou com o grande martelo Grond, que a cadapancada abria uma enorme cova, e lançou Fingolfin porterra. Mas, ao morrer, ele cravou o grande pé de Morgothno chão «e o sangue negro jorrou e encheu as covas aber-tas por Grond. Desde então, Morgoth ficou para semprecoxo.» Diz-se também que quando Beren e Lúthien, sobas formas de um lobo e um morcego, abriram caminho

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até à sala mais interior de Angband, onde Morgoth estavasentado, Lúthien lançou sobre ele um encantamento: e,«de súbito, ele caiu como um monte arrastado por umaavalancha e, arremessado como um trovão do seu trono,estatelou-se de borco no chão do Inferno. A coroa de fer-ro rolou, estrepitosamente, da sua cabeça.»

A maldição de semelhante ser, capaz de afirmar que«a sombra do meu desígnio se abate sobre Arda [a Terra] etudo quanto há nela se curva, lenta e seguramente, perantea minha vontade», é diferente das maldições ou impreca-ções de seres de muito menor poder. Morgoth não «invo-ca» o mal ou a calamidade sobre Húrin e os seus filhos, elenão «convida» um ser superior para ser o agente: pois ele,o «Senhor dos destinos de Arda», como se identificou pe-rante Húrin, tenciona provocar a ruína do seu inimigo pelaforça da sua própria vontade gigantesca. Assim, «concebe»o futuro daqueles a quem odeia, e por isso diz a Húrin: «Omeu pensamento pesará como uma nuvem de Condena-ção sobre todos os que amas e mergulhá-los-á nas trevas eno desespero.

O tormento que imaginava para Húrin era o de «vercom os olhos de Morgoth». O meu pai definiu o que istosignificava: se alguém fosse forçado a olhar nos olhos deMorgoth «veria» (ou receberia na sua mente, vinda damente de Morgoth), uma imagem irresistivelmente con-vincente de acontecimentos distorcidos pelo insondávelrancor de Morgoth. E se havia quem fosse capaz de recu-sar a ordem de Morgoth, isso não acontecia com Húrin.Segundo o meu pai, tal devia-se, em parte, ao seu amorpelos seus familiares e ao fato de a sua angustiada ansie-dade por eles o levar a desejar saber tudo quanto pudessea seu respeito, fosse qual fosse a fonte; e em parte ao or-

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gulho, por acreditar que derrotara Morgoth no debate epoderia «sustentar o olhar» dele, ou pelo menos conservaro seu discernimento crítico e distinguir entre fato e malí-cia.

Ao longo da vida de Túrin, desde o momento dasua partida de Dor-lómin e da vida da sua irmã Niënor,que nunca viu o pai, este foi o destino de Húrin, sentado,imóvel, num lugar alto das montanhas Thangorodrim epossuído por uma crescente amargura inspirada pelo seuatormentador.

Na narrativa de Túrin, que se auto-intitulava Tu-rambar «Mestre do Destino», a maldição de Morgoth pa-rece ser vista como um poder desencadeado para provo-car o mal, perseguindo as suas vítimas; por isso se diz queo próprio Vala caído temia que Túrin «alcançasse tal poderque a maldição que sobre ele lançara se tornasse nula e eleescapasse ao cruel destino que lhe fora reservado» (p.142). E depois, em Nargothrond, Túrin ocultou o seuverdadeiro nome, de modo que, quando Gwindor o reve-lou, se enfureceu: «Fizeste-me mal, amigo, denunciando omeu verdadeiro nome e atraindo sobre mim a minha mal-dição, da qual queria manter-me oculto.» Fora Gwindorquem falara a Túrin do rumor que corria por Angband,onde Gwindor estivera aprisionado, segundo o qual Mor-goth lançara uma maldição sobre Húrin e toda a sua famí-lia. Mas Gwindor respondeu à ira de Túrin com as pala-vras: «A maldição está em ti, não no teu nome.»

Esta complexa concepção é tão essencial à históriaque meu pai chegou mesmo a propor um título alternati-vo: Narn e’Rach Morgoth, A História da Maldição deMorgoth. E a sua opinião a tal respeito reflete-se nas se-guintes palavras: «Assim terminou o conto de Túrin, o

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Infortunado; o pior dos atos de Morgoth entre os Ho-mens no mundo antigo.

Quando Barbárvore atravessou a floresta de Fan-gorn transportando no côncavo de cada braço Merry ePippin, falou-lhes, cantando, de lugares que conhecera emtempos remotos e das árvores que lá cresciam:

Nos prados de Tasarinan passeei na Prima-vera.

Ah, o espetáculo e o perfume da Primaveraem Nan-tasa-rion!

E disse que era bom.Vagueei no Verão pelas florestas de olmos

de Ossiriand.Ah, a luz e a música no Verão junto aos Sete

Rios de Ossir!E pensei que era melhor.As faias de Neldoreth fui vê-las no Outono.Ah, o ouro e o vermelho e o suspiro das fo-

lhas no Outono, em Taur-na-Neldor!Foi superior ao meu desejo.Aos pinhais das terras altas de Dorthonion

subi no Inverno.Ah, o vento, a brancura e os ramos pretos do

Inverno em Orod-na-Thôn!A minha voz ergueu-se e cantou no céu.E agora todas essas terras estão submersasE eu caminho por Ambarona, Tauremorna e

Aldalómë,Na minha própria terra, no país de Fangorn,Onde as raízes são compridasE os anos se sobrepõem mais densos do que

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as folhasEm Tauremornalómë.

A memória de Barbárvore, «Ent, o nascido da terra,velho como as montanhas», era deveras longa. Ele recor-dava as florestas antigas do grande país de Beleriand, des-truído nos tumultos da Grande Batalha no fim dos Tem-pos Antigos. O Grande Mar avançou e inundou todas asterras a oeste das Montanhas Azuis, chamadas Ered Luine Ered Lindon: de modo que o mapa que acompanha OSilmarillion termina no leste com essa cadeia de monta-nhas, enquanto que o mapa que acompanha O Senhor dosAnéis termina no oeste com a mesma cordilheira; e as ter-ras costeiras para além das montanhas, chamadas nessemapa Forlindon e Harlindon (Lindon Setentrional e Lin-don Meridional) eram tudo quanto restava na Terceira Erado país chamado tanto Ossiriand, Terra dos Sete Rios,como Lindon, em cujas matas de ulmeiros Barbárvoreoutrora caminhara.

Caminhara também entre os grandes pinhais dasterras altas de Dorthonion («Terra de Pinheiros»), que de-pois veio a chamar-se Taur-nu-Fuin, «a Floresta sob aNoite», quando Morgoth a transformou numa «região depavor e negro encantamento, de vagueação e desespero»(p. 148). E chegara a Neldoreth, a floresta setentrional deDoriath, reino de Thingol.

Foi em Beleriand e nas terras a norte que o terríveldestino de Túrin se desenrolou; e, na verdade, tanto Dor-thonion como Doriah, por onde Barbárvore caminhou,foram cruciais na sua vida. Ele nasceu num mundo deguerra, embora fosse ainda criança quando a última e mai-or batalha das guerras de Beleriand foi travada. Um esbo-

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ço muito breve de como isto aconteceu responderá a per-guntas que surgem e a referências feitas no decorrer danarrativa.

À norte, as fronteiras de Beleriand parecem ter sidoformadas pelas Ered Wethrin, as Montanhas da Sombra,para lá das quais fica a região de Húrin, Dor-lómin, umaparte de Hithlun, enquanto que a leste Beleriand se esten-dia até ao sopé das Montanhas Azuis. Mais para leste fi-cam terras que quase não constam da história dos TemposAntigos, mas os povos que constituíram essa história vie-ram de leste pelos desfiladeiros das Montanhas Azuis.

Os Elfos apareceram na Terra muito longe, no dis-tante leste, ao lado de um lago a que foi dado o nome deCuiviénen, Água do Despertar; e daí foram convocadospelos Valar para deixarem a Terra Média e, passando peloGrande Mar, chegarem ao «Reino Abençoado» de Aman,no ocidente do mundo, a terra dos Deuses. Aqueles queaceitaram a convocação foram conduzidos numa grandemarcha através da Terra Média, a partir de Cuiviénen, peloVala Oromë, o Caçador, e todos têm o nome de Eldar, osElfos da Grande Viagem, os Elfos Superiores: distinguin-do-se assim daqueles que, recusando o chamamento, esco-lheram a Terra Média como sua terra e seu destino. São os«Elfos Inferiores», chamados Avari, os Relutantes.

Mas, apesar de terem atravessado as MontanhasAzuis, nem todos os Eldar partiram pelo Mar. E aquelesque permaneceram em Beleriand chamam-se Sindar, osElfos Cinzentos. O seu rei supremo era Thingol (que sig-nifica «Capa Cinzenta»), o qual reinou a partir de Mene-groth, as Mil Cavernas, em Doriath. E nem todos os Eldarque atravessaram o Grande Mar permaneceram na terrados Valar, pois um dos seus grandes ramos, os Noldor (os

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«Mestres da Tradição»), regressarou à Terra Média e pas-sou a chamar-se os Exilados. O principal instigador da suarebelião contra os Valar foi Fëanor, «Espírito do Fogo»:era o filho mais velho de Finwë, que conduzira a hostedos Noldor a partir de Cuiviénen, mas entretanto morrera.Este acontecimento fundamental da história dos Elfos foibrevemente exposto por meu pai no Apêndice A de OSenhor dos Anéis:

Fëanor foi o maior dos Eldar nas artes e natradição, mas também o mais orgulhoso e obstina-do. Fez as Três Gemas, os Silmarilli, e dotou-ascom a radiância das Duas Árvores, Telperion eLaurelin, que deram luz à terra dos Valar. As gemasforam cobiçadas por Morgoth, o Inimigo, que asroubou e, depois de destruir as Árvores, as levoupara a Terra Média e as guardou na sua grande for-taleza de Thangorodrim [as montanhas acima deAngband]. Contra a vontade dos Valar, Fëanor a-bandonou o Reino Abençoado e exilou-se na TerraMédia, para onde levou consigo grande parte doseu povo, pois, orgulhoso, propunha-se reaver pelaforça as Gemas roubadas por Morgoth. Seguiu-se aguerra sem esperança dos Eldar e dos Edain contraThangorodrim, na qual acabaram por ser comple-tamente derrotados.

Fëanor foi morto em combate, pouco depois doregresso dos Noldor à Terra Média, e os seus sete filhosocuparam vastas terras no leste de Beleriand, entre Dor-thonion (Taur-nu-Fuin) e as Montanhas Azuis; mas o seupoder foi destruído na terrível Batalha das Lágrimas Inu-

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meráveis, descrita em Os Filhos de Húrin, e a partir daí«os Filhos de Fëanor vaguearam como folhas sopradaspelo vento» (p. 57).

O segundo filho de Finwë foi Fingolfin (meio-irmão de Fëanor), tido como senhor de todos os Noldor;e ele e o seu filho Fingon dominaram Hithlum, que ficavaa norte e a oeste da grande cordilheira de Ered Wethrin, asMontanhas da Sombra. Fingolfin viveu em Mithrim, juntodo grande lago do mesmo nome, enquanto Fingon domi-nava Dor-lómin, no sul de Hithlum. A sua principal forta-leza era Barad Eithel (a Torre do Poço), em Eithel Sirion(Poço de Sirion), onde o rio Sirion subia na face leste dasMontanhas da Sombra: Sador, o velho criado coxo de Hú-rin e Morwen, serviu ali como soldado durante muitosanos, conforme contou a Túrin (p. 38-39). Depois damorte de Fingolfin em combate singular com Morgoth,Fingon tornou-se Rei Supremo dos Noldor no seu lugar.Túrin viu-o uma vez, quando ele «e muitos dos seus se-nhores tinham atravessado Dor-lómin e passado pela pon-te do Nen Lalaith, cintilantes de prata e branco», (p. 37).

O segundo filho de Fingolfin foi Turgon. Ao prin-cípio, após o regresso dos Noldor, viveu na casa chamadaVinyamar, perto do mar na região de Nevrast, a oeste deDor-lómin; mas construiu em segredo a cidade oculta deGondolin, que se erguia numa colina no meio da planíciechamada Tumladen, totalmente cercada pelas MontanhasCircundantes, a leste do rio Sirion. Quando Gondolin foiconstruída, após muitos anos de trabalho, Turgon saiu deVinyamar e residiu com o seu povo, tanto Noldor comoSindar, em Gondolin; e, durante séculos, este reduto élficode grande beleza foi guardado no mais profundo segredo,com a única entrada impossível de encontrar e fortemente

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guardada, para que nenhum desconhecido jamais lá en-trasse; e Morgoth foi incapaz de descobrir onde ela ficava.Só por altura da Batalha das Lágrimas Inumeráveis, decor-ridos mais de trezentos e cinqüenta anos desde que saírade Vinyamar, Turgon saiu de Gondolin com o seu grandeexército.

O terceiro filho de Finwë, irmão de Fingolfin emeio-irmão de Fëanor, foi Finarfin. Não regressou à TerraMédia, mas os seus filhos e filha vieram com as hostes deFingolfin e dos seus filhos. O filho mais velho de Finarfinera Finrod, o qual, inspirado pela magnificência e belezade Menegroth, em Doriath, fundou a cidade-fortaleza sub-terrânea de Nargothrond, pelo que passaram a chamar-lheFelagund, interpretado como significando «Senhor dasCavernas» ou «Escavador de Cavernas» na língua dos A-nões. As portas de Nargothrond abriam-se para os desfi-ladeiros do rio Narog, na Beleriand Ocidental, onde esserio passava pelos montes altos chamados Taur-en-Faroth,ou Alto Faroth. Mas o reino de Finrod expandia-se vas-tamente, a leste até ao rio Sirion e a oeste até ao rio Nen-ning, que desembocava no mar no porto de Eglarest. Fin-rod foi, no entanto, assassinado nas masmorras de Sauron,principal servidor de Morgoth, e Orodreth, o segundofilho de Finarfin, herdou a coroa de Nargothrond: istoocorreu no ano que se seguiu ao do nascimento de Túrin,em Dor-lómin.

Os outros filhos de Finarfin, Angrod e Aegnor,vassalos do seu irmão Finrod, habitavam em Dorthonion,virado para norte sobre a vasta planície de Ard-galen. Ga-ladriel, irmã de Finrod, viveu muito tempo em Doriathcom Melian, a rainha. Melian era uma maia, um espírito degrande poder que assumiu a forma humana e habitou nas

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florestas de Beleriand com o rei Thingol: era a mãe de Lú-thien e antepassada de Elrond. Não muito antes do re-gresso dos Noldor de Aman, quando grandes exércitosoriundos de Angband vieram para sul e entraram em Bele-riand, Melian (segundo as palavras de O Silmarillion),«serviu-se dos seus poderes e cercou todo o domínio [asflorestas de Neldoreth e Region] com uma parede invisívelde sombra e confusão, a Cerca de Melian, que ninguémjamais conseguiu transpor contra a vontade dela ou a von-tade do rei Thingol, a não ser que possuísse um podermaior do que o de Melian, a maia». Daí em diante, a terrachamou-se Doriath, «Terra da Cerca».

No sexagésimo ano após o regresso dos Noldor,pondo fim a muitos anos de paz, uma grande hoste deOrcs desceu de Angband, mas foi completamente derro-tada e destruída pelos Noldor. A isso se chamou DagorAglareb, a Batalha Gloriosa; mas os senhores élficos to-maram-na como um aviso e desencadearam o Cerco deAngband, que durou quase quatrocentos anos.

Diz-se que os Homens (a quem os Elfos chama-vam Atani, «o Segundo», e Hildor, «os Seguintes») surgi-ram muito para leste da Terra Média, perto do fim dosTempos Antigos. Mas, do início da sua história, os Ho-mens que entraram em Beleriand no tempo da Longa Paz,quando Angband foi cercada e as suas portas fechadas,nunca falavam. O chefe desses primeiros homens que a-travessaram as Montanhas Azuis chamava-se Beor, o Ve-lho, o qual declarou a Finrod Felagund, rei de Nargot-hrond, que os encontrou: «Existe um negrume atrás denós, e viramos-lhe as costas e não desejamos lá voltar,nem sequer em pensamento. Para ocidente se voltaram os

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nossos corações e cremos que lá encontraremos a luz».Sador, o velho criado de Húrin, falou de igual modo a Tú-rin na sua infância (p. 40). Mas diz-se que, quando soubedo surgimento dos Homens, Morgoth deixou Angbandpela última vez e foi para o Leste, e que os primeiros ho-mens que entraram em Beleriand «se tinham arrependidoe rebelado contra o Poder Negro e foram cruelmente per-seguidos e oprimidos por aqueles que o adoravam e pelosseus servos».

Estes homens pertenciam a três casas, conhecidascomo a Casa de Beor, a Casa de Hador e a Casa de Hale-th. O pai de Húrin, Galdor, o Alto, pertencia à Casa deHador, de quem era filho, mas a sua mãe era da Casa deHaleth. Enquanto Morwen, a sua mulher, era da Casa deBeor e aparentada com Beren.

Os povos das Três Casas eram agora os Edain(forma sindarin de Atani) e chamavam-lhes os Amigosdos Elfos. Hador vivia em Hithlun e o rei Fingolfin con-cedeu-lhe o senhorio de Dor-lómin; o povo de Beor insta-lou-se em Dorthonion, e o povo de Haleth vivia nessetempo na Floresta de Brethil. Após o fim do Cerco deAngband, vieram pelas montanhas Homens de uma espé-cie muito diferente, muitos deles referidos como Easter-lings, alguns dos quais desempenharam um papel impor-tante na história de Túrin.

O Cerco de Angband terminou de forma terrivel-mente inesperada (ainda que preparada durante muitotempo) numa noite de meados do Inverno, 395 anos de-pois de ter começado. Morgoth soltou rios de fogo quedesceram das Thangorodrim e a grande planície relvada deArd-galen, que ficava a norte das terras altas de Dorthoni-on, transformou-se num seco e árido ermo, que a partir de

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então passou a ser conhecido por um nome diferente, An-fauglith, a Poeira Sufocante.

Este ataque catastrófico recebeu o nome de DagorBragollach, a Batalha da Chama Súbita. Glaurung, pai deDragões, emergiu de Angband, pela primeira vez, comtodo o seu poderio; imensos exércitos de Orcs precipita-ram-se para sul; os Senhores Élficos de Dorthonion foramchacinados, assim como uma grande parte dos guerreirosdo povo de Beor. O Rei Fingolfin e o seu filho, Fingon,foram rechaçados com os guerreiros de Hithlum para afortaleza de Eithel Sirion, na face oriental das Montanhasda Sombra, e Hador Cabeça Dourada foi morto na suadefesa. Então, Galdor, pai de Húrin, tornou-se senhor deDor-lómin, pois as torrentes de fogo foram detidas pelabarreira das Montanhas da Sombra e Hithlum e Dor-lómin permaneceram invictas.

Foi um ano depois da Bragollach que Fingolfin, de-sesperado pela fúria, cavalgou para Angband e desafiouMorgoth. Dois anos volvidos, Húrin e Huor foram paraGondolin. Passados mais quatro anos, num novo ataque aHithlum, Galdor, pai de Húrin, foi morto na fortaleza deEithel Sirion: Sador estava lá, como disse a Túrin (p. 39), eviu Húrin (então um jovem de vinte e um anos) «assumiro seu domínio e o seu comando».

Todas estas coisas estavam frescas na memória emDor-lómin quando Túrin nasceu, nove anos depois daBatalha da Chama Súbita.

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NOTA SOBRE A PRONÚNCIA

A nota seguinte destina-se a esclarecer algumas ca-racterísticas principais da pronúncia dos nomes.

Consoantes

C tem sempre o valor de k, nunca o de s. Assim,Celebros é «Kelebros» e não «Selebros».

CH tem sempre o valor de ch como na palavra es-cocesa loch ou na alemã buch, e nunca o de ch da palavrainglesa church. Exemplos: Anach, Narn i Chîn Húrin.

DH é sempre usado para representar o som de umth sonoro («suave») em inglês, que é o th de then e não oth de thin. Exemplos: Glóredhel, Eledhwen, Maedhros.

G tem sempre o som do g inglês em get; assim, Re-gion não se pronuncia como a palavra inglesa region e aprimeira sílaba de Ginglith pronuncia-se como a palavrainglesa begin e não com gin.

Vogais

AI tem o som da palavra inglesa eye; assim, a se-gunda sílaba de Edain pronuncia-se como a palavra ingle-sa dine e não como Dane.

AU tem o valor do inglês ow em town; assim, aprimeira vogal de Sauron pronuncia-se como a palavrainglesa sour e não como sore.

EI como em Teiglin, tem o som da palavra inglesagrey.

IE não deve ser pronunciado como na palavra in-glesa piece, mas como cada vogal, i e e, soam. Assim, pro-

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nuncia-se Ni-enor e não «Neenor».AE como em Aegnor, Nirnaetb é uma combinação

das vogais individuais a-e, mas deve ser pronunciada domesmo modo que AI.

EA e EO não se pronunciam juntas, mas constitu-em duas sílabas. Estas combinações ortografam-se ëa e ëo,como em Bëor ou no início de nomes como Ëa, Ëo:Eärendil.

Ú em nomes como Húrin e Túrin devem pronun-ciar-se como oo. Assim, lê-se «Toorin» e não «Tyoorin».

IR, UR antes de uma consoante (como em Círdan,Gurthang) não devem pronunciar-se como em inglêsfir,fur, mas como eer, oor

E No fim de palavras é sempre pronunciado comouma vogai distinta, e nessa posição escreve-se ë. É semprepronunciada no meio de palavras como Celebros, Mene-groth.

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NARN I CHÎN HÚRINA História dos Filhos de Húrin

CAPÍTULO I

A INFÂNCIA DE TÚRIN

Hador Cabeça Dourada era um senhor dos Edain emuito estimado pelos Eldar. Viveu, enquanto os seus diasduraram, sob o domínio de Fingolfin, que lhe deu vastasterras naquela região de Hithlum a que chamavam Dor-lómin. A sua filha Glóredhel casou com Haldir, filho deHalmir, senhor dos Homens de Brethil; e na mesma festao seu filho Galdor, o Alto, desposou Hareth, a filha deHalmir.

Galdor e Hareth tiveram dois filhos, Húrin e Huor.Húrin era três anos mais velho do que o irmão, mas maisbaixo em estatura do que outros homens da sua família;nisso saía à família da mãe, mas em tudo o mais era comoHador, o avô, forte de corpo e fogoso de temperamento.

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Mas o fogo ardia nele firmemente e era pertinaz a sua for-ça de vontade. De todos os homens do Norte, era o maisconhecedor dos conselhos dos Noldor. Huor, seu irmão,era alto, o mais alto de todos os Edain exceto o seu pró-prio filho, Tuor, e um corredor veloz, mas, se a corrida eralonga e difícil, Húrin era o primeiro a chegar, pois corriacom igual vigor tanto no fim da corrida como no princí-pio. Havia um grande amor entre os irmãos, que na juven-tude raramente se separavam.

Húrin desposou Morwen, a filha de Baragund, filhode Bregolas, da Casa de Beor, o que a tornava parentechegada de Beren Maneta. Morwen era alta, tinha cabeloescuro e, devido ao brilho do seu olhar e à beleza do seurosto, os homens chamavam-lhe Eledhwen, a fada élfica;mas ela era algo austera de temperamento e orgulhosa. Osinfortúnios da Casa de Beor entristeciam-lhe o coração,pois chegara a Dor-lómin como exilada de Dorthonion,após a ruína da Bragollach.

Túrin era o nome do filho mais velho de Húrin eMorwen e nasceu no ano em que Beren chegou a Doriathe conheceu Lúthien Tinúviel, filha de Thingol. Morwendeu também uma filha a Húrin, a qual se chamou Urwen;mas todos quantos a conheceram na sua curta vida cha-maram-lhe Lalaith, que significa Riso.

Huor desposou Rían, prima de Morwen, que era fi-lha de Belegund, filho de Bregolas. Quis o duro destinoque nascesse em tais tempos, ela que era afável de coraçãoe não gostava nem de caça nem de guerra. Devotava o seuamor às árvores e às flores silvestres e cantava e compu-nha canções. Estava casada com Huor havia apenas doismeses quando ele partiu com o irmão para a Nirnaeth Ar-noediad e nunca mais voltou a vê-lo.

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Mas agora a narrativa regressa a Húrin e Huor notempo da sua juventude. Diz-se que, durante algum tem-po, os filhos de Galdor viveram em Brethil como filhosadotivos de Haldir, seu tio, de acordo com o costume dosHomens do Norte daquele tempo. Batalhavam freqüen-temente com os Homens de Brethil contra os Orcs, queentão assolavam as fronteiras setentrionais da sua terra,pois Húrin, apesar de ter apenas dezessete anos, era forte,e Huor, o irmão mais novo, era já tão alto como a maioriados homens feitos daquele povo.

Numa ocasião, Húrin e Huor partiram com umacompanhia de batedores e os Orcs apanharam-nos numaemboscada e dispersaram-nos, tendo os irmãos sido per-seguidos para o vau do Brithiach. Aí teriam sido aprisio-nados ou chacinados não fora o poder de Ulmo, aindaforte nas águas do Sirion; e diz-se que uma neblina subiudo rio e os ocultou dos seus inimigos, e eles fugiram peloBrithiach para Dimbar. Vaguearam, então, atribuladamen-te entre os montes abaixo dos Crissaegrim, até serem de-sorientados pelos artifícios daquela terra e não saberemcomo prosseguir ou regressar. Thorondor, que os espiava,mandou duas das suas Águias em seu socorro. As Águiastransportaram-nos para lá das Montanhas Circundantes,até ao vale secreto de Tumladen e à cidade oculta deGondolin, que jamais Homem algum vira.

Aí foram bem recebidos por Turgon, o Rei, quandoeste teve conhecimento da família a que pertenciam, poisHador era um Amigo-dos-Elfos e, além disso, Ulmo a-conselhara Turgon a tratar com brandura os filhos daquelaCasa, de onde lhe chegaria auxílio, caso necessitasse. Hú-rin e Huor viveram como convidados na casa do Rei du-rante quase um ano e diz-se que, nesse tempo, Húrin, cuja

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mente era veloz e ávida, adquiriu muita da erudição dosElfos, além de ter aprendido alguma coisa com os conse-lhos e os propósitos do Rei. Pois Turgon ganhara grandeafeição pelos filhos de Galdor, com os quais falava muito.Era mesmo seu desejo mantê-los em Gondolin por amor,e não apenas por causa da sua lei, segundo a qual nenhumdesconhecido, fosse ele Elfo ou Homem, que descobrisseo caminho para o reino secreto ou estendesse o olhar so-bre a cidade jamais poderia partir de novo, até o Rei abriro cerco e o povo oculto poder avançar.

Mas Húrin e Huor desejavam regressar para juntodo seu povo e partilhar as guerras e sofrimentos que entãoo assediavam. E Húrin disse a Turgon: «Senhor, somosapenas homens mortais e diferentes dos Eldar. Estes po-dem permanecer longos anos à espera de batalharem comos seus inimigos num qualquer tempo distante, mas, paranós, o tempo é breve e a nossa esperança e a nossa forçanão tardarão a declinar. Além disso, não descobrimos ocaminho para Gondolin e, em verdade, não sabemos comcerteza onde a cidade se situa, pois fomos transportados,num estado de medo e espanto, pelos altos caminhos doar, e, por misericórdia, os nossos olhos foram velados».Então Turgon satisfez a sua súplica e disse: «Pelo caminhoque vieram estão autorizados a partir, desde que Thoron-dor a tal esteja disposto. Desgosta-me esta separação, em-bora, segundo os cálculos dos Eldar, em breve possamosreencontrar-nos».

Mas Maeglin, o filho da irmã do rei, que era pode-roso em Gondolin, não lamentou nada a partida deles,posto que lhes invejava o favor do Rei, não sentindo afetoalgum por qualquer dos aparentados com os Homens; edisse a Húrin: «A graça do Rei é maior do que imaginais, e

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haverá quem se pergunte por que motivo foi a rigorosa leimitigada em benefício de dois tratantes filhos dos Ho-mens. Seria mais seguro se lhes não restasse outra alterna-tiva senão aqui permanecerem como nossos servos até aofim dos seus dias.»

— A graça do Rei é deveras grande — respondeuHúrin —, mas, se a nossa palavra não é suficiente, entãofar-vos-emos juramentos.

E os irmãos juraram que nunca revelariam os inten-tos de Turgon e guardariam segredo de tudo quanto ti-nham visto no seu reino. Depois despediram-se e as Á-guias vieram e transportaram-nos de noite, deixando-osem Dor-lómin antes do alvorecer. Os seus familiares reju-bilaram ao vê-los, pois mensageiros de Brethil haviamcomunicado que estavam perdidos; mas nem ao própriopai eles disseram onde tinham estado, além de que tinhamsido salvos no deserto pelas Águias que os haviam trazidopara casa. Mas Galdor disse:

— Vivestes, então, um ano no deserto? Ou acolhe-ram-vos as Águias nos seus altos ninhos? Mas encontras-tes alimento e boas vestes, e regressastes como jovenspríncipes e não como perdidos na floresta.

— Contentai-vos, pai, por termos regressado —respondeu Húrin. — Pois somente sob jura de silêncio talnos foi permitido. A esse juramento continuamos obriga-dos.

Então Galdor não os interrogou mais, mas ele emuitos outros suspeitaram da verdade. Pois tanto o jura-mento de silêncio como as Águias apontavam para Tur-gon, pensavam os homens.

Os dias foram passando e a sombra do medo deMorgoth foi crescendo. Mas, no 469° ano após o regresso

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dos Noldor à Terra Média, houve um frêmito de esperan-ça entre Elfos e Homens, pois correu entre eles o rumordos feitos de Beren e Lúthien e da humilhação de Morgo-th no seu próprio trono, em Angband, e alguns diziamque Beren e Lúthien continuavam vivos ou tinham ressus-citado dos mortos. Nesse ano ficaram também quase con-cluídos os grandes intentos de Maedhros e, com a forçarevigorada dos Eldar e dos Edain, o avanço de Morgothfoi sustido e os Orcs rechaçados de Beleriand. Depois,alguns começaram a falar de vitórias vindouras e do desa-gravo da Batalha da Bragollach, quando Maedhros co-mandasse as hostes unidas, rechaçasse Morgoth para osubsolo e cerrasse as Portas de Angband.

Mas os mais sensatos continuavam inquietos, rece-ando que Maedhros revelasse a sua força crescente dema-siado cedo e Morgoth dispusesse de tempo suficiente parase precaver contra ele. «Será sempre maquinado em Ang-band algum novo mal que ultrapassa as conjecturas deElfos e Homens», diziam. E, no Outono desse ano, comoque a confirmar as suas palavras, soprou do Norte umvento doentio, sob céus de chumbo. O Bafo Maligno,chamaram-lhe, pois era pestilento. E muitos adoeceram emorreram, no Outono do ano, nas terras setentrionais queladeavam a Anfauglith, e foram na sua maioria as criançasou os jovens em crescimento das casas dos Homens.

Nesse ano, Túrin, filho de Húrin, ainda tinha ape-nas cinco anos de idade e Urwen, a sua irmã, fizera três noinício da Primavera. O seu cabelo era como os lírios ama-relos no prado, quando ela corria pelos campos, e o seuriso lembrava o som do regato alegre que descia, cantan-do, dos montes e passava pelas muralhas da casa do seupai. Nen Lalaith, assim se chamava o regato, e as pessoas

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da casa passaram a chamar Lalaith à menina e os seus co-rações sentiram-se felizes enquanto ela viveu entre elas.

Mas Túrin era menos amado do que ela. Tinha ca-belos escuros, como a mãe, e prometia ser também comoela em disposição, pois não era alegre e pouco falava, em-bora tivesse aprendido cedo a falar e sempre tivesse pare-cido mais velho do que na verdade era. Túrin demorava aesquecer a injustiça ou a zombaria, mas o fogo do seu paitambém ardia nele e tornava-o capaz de ser brusco e vio-lento. Todavia, depressa se apiedava e a mágoa ou a triste-za das coisas vivas comoviam-no até às lágrimas — e nis-so era também como o pai, pois Morwen era tão severapara com os outros como para consigo mesma. Túrin a-mava a mãe, pois ela falava-lhe de modo franco e claro;mas via pouco o pai, porque Húrin estava freqüentementemuito tempo longe de casa com a hoste de Fingon, queguardava as fronteiras orientais de Hithlum, e, quandoregressava, o seu falar apressado, cheio de palavras estra-nhas, gracejos e subentendidos, intrigava e constrangiaTúrin. Nesse tempo, todo o calor do seu coração ia paraLalaith, sua irmã; mas raramente brincava com ela e prefe-ria protegê-la sem ser visto e observá-la a caminhar sobrea relva ou sob as árvores, enquanto cantava canções comoas que eram feitas pelos filhos dos Edain havia muitotempo, quando a língua dos Elfos ainda estava fresca nosseus lábios.

— Lalaith é bela como uma criança élfica — diziaHúrin a Morwen —, mas, ai de nós, mais fugaz! E porisso ainda mais bela, talvez, ou mais querida.

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Túrin, ouvindo tais palavras, meditava nelas, masnão conseguia compreendê-las. Pois nunca vira nenhumacriança élfica. Naquele tempo, nenhum dos Eldar vivianas terras do seu pai, e apenas uma vez ele os vira, quandoo rei Fingon e muitos dos seus senhores tinham atraves-sado Dor-lómin e passado pela ponte do Nen Lalaith, cin-tilantes de prata e branco.

Mas, antes de findo o ano, a verdade das palavrasdo pai foi revelada, pois o Bafo Maligno chegou a Dor-lómin e Túrin adoeceu e passou muito tempo mergulhadoem febre e sonhos negros. E, quando sarou, pois tal era oseu destino e a força da vida que nele havia, perguntoupor Lalaith. Mas a ama respondeu: «Não faleis mais deLalaith, filho de Húrin; mas da vossa irmã Urwen podeispedir notícias a vossa mãe».

E, quando Morwen foi ter com ele, Túrin disse-lhe:— Já não estou doente e desejo ver a minha irmã

Urwen; mas porque não devo chamar-lhe mais Lalaith?— Porque Urwen morreu e o riso foi silenciado

nesta casa — respondeu-lhe ela. — Mas tu vives, filho deMorwen, assim como o Inimigo que nos fez isto.

Não procurou confortá-lo, do mesmo modo quenão se confortava a si mesma, pois acolhia a sua dor emsilêncio e de coração frio. Mas Húrin pranteou sem disfar-ces e pegou na sua harpa e quis compor uma canção delamento. Não conseguiu, porém, e quebrou a harpa e, sa-indo, ergueu a mão para o lado do Norte, gritando: «Des-figurador da Terra Média, pudera eu ver-te cara a cara edesfigurar-te como o meu senhor Fingolfin o fez!»

Mas, à noite, Túrin chorava amargamente, sozinho,embora nunca mais voltasse a dizer o nome da irmã aMorwen. A um amigo apenas recorreu nesse tempo e a ele

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falou do seu desgosto e do vazio da casa. Esse amigochamava-se Sador, um criado ao serviço de Húrin, coxo ede pouco valimento. Fora lenhador e, por má sorte oumau manejo do machado, cortara o pé direito. A perna,sem pé, mirrara, e Túrin chamava-lhe Labadal, que signifi-ca «Coxo», mas a alcunha não desagradava a Sador, poisfora-lhe dada por compaixão e não por desdém. Sadortrabalhava nos edifícios exteriores, fazendo ou consertan-do coisas de pouca monta que eram necessárias para a ca-sa, pois possuía alguma perícia na arte de trabalhar commadeira. E Túrin levava-lhe aquilo de que ele precisava,para lhe poupar a perna, e às vezes, às escondidas, algumaferramenta ou pedaço de madeira que encontrara ao a-bandono, se lhe parecia que podia ser útil ao amigo. EntãoSador sorria, mas mandava-o repor as dádivas onde asencontrara. «Dá com mão larga, mas dá apenas o que éteu», dizia-lhe. Recompensava como podia a gentileza dorapazinho e entalhava para ele figuras de homens e ani-mais; mas Túrin deliciava-se mais com as suas histórias,pois Sador tinha sido jovem nos tempos da Bragollach egostava agora de falar dos breves dias da sua plena mascu-linidade, antes da mutilação.

— Dizem que foi uma grande batalha, filho de Hú-rin. Eu fui chamado das minhas tarefas na floresta pelanecessidade surgida nesse ano, mas não estive na Bragol-lach, ou poderia ter recebido o meu ferimento com maishonra. Chegamos tarde de mais, a tempo apenas de trans-portar o féretro de Hador, o velho senhor, que tombouem defesa do Rei Fingolfin. Depois disso, fui para soldadoe estive na Eithel Sirion, a grande fortaleza dos Reis Élfi-cos, durante muitos anos; ou assim me parece agora, e osanos monótonos que se seguiram pouco têm que os assi-

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nale. Encontrava-me na Eithel Sirion quando o Rei Negroa atacou e Galdor, pai do teu pai, tornou-se comandanteno lugar do Rei. Foi morto nesse ataque; e eu vi o teu paiassumir o seu domínio e o seu comando, apesar de teratingido havia pouco a idade adulta. Havia nele um fogoque tornava a espada quente na sua mão, dizia-se. Atrásdele, empurramos os Orcs para a areia, e desde esse diaeles não se atreveram a aparecer à vista das muralhas. Mas,ai de mim, o meu amor pelo combate estava saciado, poisvira sangue vertido e feridas suficientes, e fui autorizado aregressar às florestas por que ansiava. E aí sofri o meuferimento, porque um homem que foge do seu medo po-de descobrir que, afinal, apenas enveredou por um atalhopara ir ao seu encontro.

Deste modo falava Sador a Túrin, à medida que es-te ia crescendo, e Túrin começou a fazer muitas perguntasàs quais Sador tinha dificuldade em responder, pensandoque outros, mais chegados a ele, deviam ter-se encarrega-do de ensiná-lo. E um dia Túrin disse-lhe:

— Lalaith parecia, realmente, uma criança élfica,como o meu pai dizia? E o que significavam as palavrasdele quando disse que ela era mais fugaz?

— Parecia, e muito — respondeu Sador —, pois,na sua primeira juventude, os filhos dos Homens e dosElfos parecem muito semelhantes. Mas os filhos dos Ho-mens crescem mais depressa e a sua juventude em brevepassa. É esse o nosso destino.

Então Túrin perguntou-lhe:— O que é o destino?— Quanto ao destino dos Homens, deves pergun-

tar aos que são mais sábios do que Labadal. No entanto,como todos podem ver, nós definhamos depressa e mor-

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remos; e, por fatalidade, alguns encontram a morte aindamais cedo. Mas os Elfos não definham e não morrem anão ser por grande ferimento. De ferimentos e desgostosque matariam os Homens eles podem ser sarados; e háquem diga que, mesmo quando os seus corpos estão des-pedaçados, eles voltam. Tal não acontece conosco.

— Então a Lalaith não regressará? — perguntouTúrin. — Para onde foi ela?

— Não, ela não regressará. Mas para onde foi ne-nhum homem sabe; ou, pelo menos, eu não sei.

— Foi sempre assim? Ou sofremos a influência dealguma maldição do rei perverso, como o Bafo Maligno?

— Não sei. Há atrás de nós uma escuridão, da qualpoucas histórias surgiram. Os pais dos nossos pais podemter tido coisas para dizer, mas não as disseram. Até os seusnomes estão esquecidos. As Montanhas erguem-se entrenós e a vida de onde eles vieram, fugindo nenhum homemsabe do quê.

— Tinham medo? — perguntou Túrin.— Talvez. É possível que tenham fugido do medo

das Trevas, apenas para o encontrarem aqui antes de nós esem nenhum lugar para onde fugirem a não ser o Mar.

— Nós já não temos medo — disse Túrin —, nãotodos. O meu pai não tem medo e eu não terei. Ou, pelomenos, como a minha mãe, terei medo e não o demons-trarei.

Pareceu então a Sador que os olhos de Túrin nãoeram os de uma criança, e pensou: «O sofrimento é umapedra de afiar para uma mente forte.» Mas o que disse foi:

— Filho de Húrin e Morwen, Labadal não podeimaginar o que se passará com o teu coração, mas rara-mente e a poucos mostrarás o que nele se passa.

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E Túrin respondeu:— Talvez seja melhor não dizermos o que deseja-

mos, se não podemos tê-lo. Mas, Labadal, eu desejava serum dos Eldar. Então Lalaith poderia regressar e eu aindaaqui estaria, mesmo que ela tivesse estado muito tempoausente. Serei soldado de um rei élfico assim que for ca-paz, como tu fizeste, Labadal.

— Poderás aprender muito com eles — disse Sa-dor, e suspirou. — São um povo belo e maravilhoso e têmpoder sobre os corações dos Homens. E, no entanto, àsvezes penso que talvez tivesse sido melhor se nunca oshouvéssemos conhecido, mas seguido por caminhos maismodestos. Pois eles são já antigos em sabedoria e sãotambém orgulhosos e resistentes. A sua luz ofusca-nos ouentão ardemos numa chama demasiado rápida e o peso donosso destino pesa ainda mais sobre nós.

— Mas o meu pai ama-os — respondeu Túrin — enão se sente feliz sem eles. Diz que aprendemos com elesquase tudo quanto sabemos e assim nos tornamos um po-vo mais nobre; e diz também que os Homens vindos re-centemente pelas Montanhas pouco melhores são do queos Orcs.

— Isso é verdade — admitiu Sador —, é verdadepelo menos em relação a alguns de nós. Mas a subida édolorosa e dos lugares altos é fácil cair.

Nesse tempo, Túrin tinha quase oito anos de idade,que completaria no mês de Gwaeron do calendário dosEdain, no ano que não pode ser esquecido. Entre os maisvelhos corriam já rumores de uma grande recolha e con-centração de armas, dos quais Túrin nada ouvira, emborareparasse que, com freqüência, o pai o olhava firmemente,como um homem olha para qualquer coisa querida de que

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terá de separar-se.Ora, conhecedor da sua coragem e de quanto a sua

língua era cauta, Húrin falava muitas vezes com Morwen arespeito dos desígnios dos reis élficos e do que poderiaacontecer se eles corressem bem ou mal. O seu coraçãoestava pleno de esperança e pequeno era o seu receioquanto ao resultado da batalha, pois não lhe parecia queforça alguma da Terra Média conseguisse derrubar o po-der e o esplendor dos Eldar. «Eles viram a Luz no Oci-dente», dizia, «e no fim as Trevas deverão fugir dos seusrostos.» Morwen não o contradizia, pois na presença deHúrin a esperança parecia sempre o mais provável. Mas nasua família também havia conhecimento da tradição élficae ela dizia para consigo: «E, todavia, não deixaram eles aLuz e não estão agora excluídos dela? Pode ser que os Se-nhores do Ocidente os tenham afastado do seu pensa-mento; e, sendo assim, como poderão até mesmo os Fi-lhos dos Antigos vencer um dos Poderes?»

Nem sombra de semelhante dúvida parecia haverem Húrin Thalion. E, todavia, numa manhã de Primaveradaquele ano, ele acordou com o coração pesado, como setivesse tido um sono atribulado, e nesse dia pairou umasombra na luminosidade da sua disposição. Chegada anoite, disse, de súbito:

— Morwen Eledhwen, quando for convocado, dei-xarei a teu cargo o herdeiro da Casa de Hador. As vidasdos Homens são curtas e há nelas muitos riscos, mesmoem tempo de paz.

— Sempre assim foi — respondeu ela. — Mas oque inspira as tuas palavras?

— Prudência, sem dúvida — disse Húrin, emboraparecesse perturbado. — Mas quem olha em frente deve

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ver o seguinte: que as coisas não permanecerão como es-tão. Esta será uma grande jogada e um dos lados terá dedescer para mais baixo do que está agora. Se forem os reisélficos a cair, então correrá mal para os Edain, e nós so-mos quem se encontra mais perto do Inimigo. Esta terrapoderá passar para o seu domínio. Mas, se as coisas corre-rem mal, eu não te direi: Não tenhas medo! Pois tu temeso que deve ser temido, e apenas isso, e o medo não te des-falece. Mas digo-te: Não esperes! Voltarei para ti comopuder, mas não esperes! Parte para sul o mais depressaque puderes; se eu viver seguir-te-ei e encontrar-te-ei, nemque tenha de procurar em toda a Beleriand.

— Beleriand é vasta, e não tem abrigo para os exi-lados — respondeu Morwen. — Para onde fugirei, compoucos ou com muitos?

Húrin pensou um momento, em silêncio.— Há a família da minha mãe, em Brethil — res-

pondeu, por fim. — Fica a cerca de trinta léguas, seguindoo vôo da águia.

— Se tal tragédia ocorrer, de fato, que ajuda poderáser encontrada junto dos Homens? — perguntou Mor-wen. — A Casa de Beor caiu. Se a grande Casa de Hadorcair também, para que buracos se arrastará o pequeno po-vo de Haleth?

— Para aqueles que conseguir encontrar — disseHúrin. — Mas não duvides da sua coragem, embora sejampoucos e incultos. Onde mais haverá esperança?

— Não falas de Gondolin — lembrou Morwen.— Não, pois esse nome nunca passou dos meus lá-

bios. No entanto, é verdadeiro aquilo que ouviste: eu esti-ve lá. Mas digo-te agora sinceramente, como nunca dissenem direi a mais ninguém: não sei onde fica.

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— Mas fazes uma idéia, e uma idéia aproximada,segundo penso — disse Morwen.

— É possível que sim. Mas, a não ser que o próprioTurgon me libertasse do meu juramento, não poderia re-velar essa idéia, nem mesmo a ti, e portanto a tua buscaseria vã. Porém, ainda que, para vergonha minha, eu falas-se, chegarias quando muito a uma porta fechada; pois, anão ser que Turgon avance para a guerra (e disso nadaconstou e nem é esperado), ninguém entrará.

— Nesse caso, se a tua família não ajudar e os teusamigos te negarem, terei de decidir por mim mesma e ago-ra vem-me ao pensamento Doriath.

— O teu alvo é sempre muito alto — comentouHúrin.

— Excessivamente alto, dirias? Mas penso que, detodas as defesas, a Cerca de Melian será a última a serquebrada. E, além disso, a Casa de Beor não será despre-zada em Doriath. Não sou eu parente do rei? Pois Beren,filho de Barahir, era neto de Bregor, tal como o meu pai.

— O meu coração não se inclina para Thingol —disse Húrin. — Nenhum auxílio virá dele para o Rei Fin-gon, e não sei que sombra cai sobre o meu espírito quan-do ouço falar de Doriath.

— O nome de Brethil também ensombra o meucoração — confessou Morwen.

Inesperadamente, Húrin riu-se e disse:— Eis-nos aqui a discutir questões que ultrapassam

o nosso alcance e sombras que emanam de sonhos. Ascoisas não correrão assim tão mal; mas, se porventura cor-rerem, então a tua coragem e o teu discernimento empe-nhar-se-ão. Faz, pois, o que o teu coração ordenar, masnão tardes. E, se alcançarmos os nossos objetivos, os reis

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élficos estão resolvidos a restituir todos os feudos da Casade Beor ao seu herdeiro, e esse herdeiro és tu, Morwen,filha de Baragund. Grandes domínios deteremos, então, eelevada herança caberá ao nosso filho. Sem o rancor doNorte, ele adquirirá grande riqueza e será um rei entre osHomens.

— Húrin Thalion — disse Morwen —, acho maisverdadeiro dizer isto: tu olhas bem alto, mas eu temo cairbem baixo.

— Isso, na pior das hipóteses, não tens de recear.Nessa noite, Túrin, meio acordado, teve a sensação de queo seu pai e a sua mãe estavam de pé ao lado da sua cama eo olhavam à luz das velas que seguravam. Mas ele nãoconseguia ver-lhes os rostos.

Na manhã do aniversário de Túrin, Húrin presen-teou o filho com uma faca forjada por elfos, cujos punhoe bainha eram em prata e negro, e disse-lhe:

— Herdeiro da Casa de Hador, aqui tens um pre-sente de aniversário. Mas cautela! E uma lâmina penetran-te e o aço serve apenas aqueles que sabem brandi-lo. De-cepará a tua mão de tão bom grado como a de qualqueroutro. — E, pondo o filho em cima de uma mesa, beijou-o e acrescentou: — Assim já ficas mais alto do que eu,filho de Morwen, e em breve terás igual altura apoiadonos teus próprios pés. Nesse dia, muitos temerão a tualâmina.

Então, Túrin saiu a correr da sala e afastou-se paralonge, e no seu coração havia um calor igual ao do sol so-bre a terra fria que faz desabrochar as sementes. Repetiupara consigo as palavras do pai: Herdeiro da Casa de Ha-dor. Mas outras palavras lhe vieram igualmente ao pensa-mento: Dá com mão larga, mas dá o que é teu. E foi ter

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com Sador, e gritou:— Labadal, é o dia do meu aniversário, do aniver-

sário do herdeiro da Casa de Hador! E trouxe-te um pre-sente para assinalar a data. Aqui está uma faca, tal comoprecisas; cortará tudo o que desejares, fino como um ca-belo.

Sador sentiu-se perturbado, pois bem sabia que opróprio Túrin a recebera de presente naquele dia; mas oshomens consideravam ofensivo recusar uma oferta dadade livre vontade pela mão de alguém. Falou-lhe então emtom grave:

— Vens de uma família generosa, Túrin filho deHúrin. Eu não fiz nada que se compare com o teu presen-te e não tenho esperanças de poder fazer melhor nos diasque me restam; mas o que puder fazer, farei. — E quandoSador tirou a faca da bainha acrescentou: — É, deveras,uma grande dádiva: uma lâmina de aço élfico. Há quantotempo não sentia o seu contato.

Húrin não tardou a reparar que Túrin não usava afaca e perguntou-lhe se o seu aviso o fizera temê-la. EntãoTúrin respondeu:

— Não, mas eu dei a faca a Sador, o entalhador demadeira.

— Quer dizer que menosprezaste a prenda do teupai? — perguntou Morwen, e de novo Túrin respondeu:

— Não. Mas sou amigo de Sador e tenho pena de-le. Então Húrin disse:

— Todas as três prendas eram tuas e podias dá-las,Túrin: amor, compaixão e, a menos importante, a faca.

— No entanto, duvido que Sador as mereça — de-clarou Morwen. — Auto mutilou-se com a sua própriafalta de perícia e é vagaroso nas suas tarefas, pois perde

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muito tempo com bagatelas que lhe não são pedidas.— Dá-lhe, apesar de tudo, compaixão — disse Hú-

rin. — Uma mão honesta e um coração sincero podemfalhar o alvo do corte; e o dano pode ser mais difícil desuportar do que a obra de um inimigo.

— Mas agora terás de esperar por outra faca —lembrou Morwen. — Assim, a dádiva será uma verdadeiradádiva e a teu próprio custo.

No entanto, Túrin notou que Sador passou a sertratado mais bondosamente a partir daí, e estava agoraempenhado em fazer uma grande cadeira para o senhor sesentar no seu salão.

Chegou uma luminosa manhã do mês de Lothronem que Túrin foi despertado por súbitos toques de trom-pas; e, correndo para as portas, viu no pátio um grandeaglomerado de homens a pé e a cavalo e com armadurascompletas, como se fossem para a guerra. Lá se encontra-va também Húrin, que falava aos homens e dava ordens,pelo que Túrin ficou a saber que partiriam naquele dia pa-ra Barad Eithel. Aqueles eram os guardas de Húrin e genteda sua casa, mas todos os homens da sua terra que podi-am ser dispensados foram igualmente convocados. Algunsjá tinham partido com Huor, o irmão de seu pai, e muitosoutros juntar-se-iam na estrada ao senhor de Dor-lómin eseguiriam atrás da sua bandeira para a grande concentra-ção marcada pelo Rei.

Morwen despediu-se de Húrin sem lágrimas, e dis-se:

— Velarei pelo que deixas a meu cargo, tanto o quejá existe como o que existirá.

E Húrin respondeu-lhe:— Adeus, Senhora de Dor-lómin; partimos agora

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com maior esperança do que alguma vez sentimos. Pen-semos que a festa do solstício deste Inverno será mais ale-gre do que as de todos os anos que já tivemos, seguida poruma Primavera sem medo!

Depois ergueu Túrin à altura do seu ombro e gritouaos seus homens:

— Que o herdeiro da Casa de Hador veja a luz dasvossas espadas! — E o sol cintilou nas cinqüenta lâminasque se ergueram e no pátio ecoou o grito de combate dosEdain do Norte: Lacho calad! Drego morn! Flameja, Luz!Foge, Noite!

Depois, finalmente, Húrin saltou para a sela, a suabandeira dourada foi desfraldada e as trompas cantaramde novo na manhã; e deste modo partiu Húrin Thalionpara a Nirnaeth Arnoediad.

Mas Morwen e Túrin ficaram imóveis nos portões,até ouvirem, muito ao longe, o tênue grito de uma sótrombeta ao vento: Húrin transpusera a espalda do monte,para lá do qual já não podia ver a sua casa.

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CAPÍTULO II

A BATALHA DAS LÁGRIMAS INUMERÁVEIS

Muitas são as canções ainda cantadas e muitas ashistórias ainda contadas pelos Elfos acerca da NirnaethArnoediad, a Batalha das Lágrimas Inumeráveis, na qualtombou Fingon e a flor dos Eldar feneceu. Se voltassemtodas a ser contadas agora, a vida de um homem não che-garia para as ouvir. Aqui serão, portanto, recontados ape-nas os feitos que se relacionam com o destino da Casa deHador e dos filhos de Húrin, o Firme.

Tendo, finalmente, reunido toda a força que podia,Maedhros marcou um dia, a manhã do solstício de Verão.Nesse dia, as trombetas dos Eldar saudaram o nascer doSol, e no leste foi erguido o estandarte dos filhos deFëanor, e no oeste o estandarte de Fingon, Rei dos Nol-

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dor.Então Fingon olhou das muralhas de Eithel Sirion

e o seu exército estava disposto em ordem de batalha nosvales e nas florestas do leste das Ered Wethrin, bem es-condido dos olhos do Inimigo; mas ele sabia que era mui-to grande. Pois estavam ali reunidos todos os Noldor deHithlum, aos quais se tinham juntado muitos Elfos dasFalas e de Nargothrond; e tinha grande força de Homens.A direita estava estacionada a hoste de Dor-lómin e toda avalentia de Húrin e Huor, seu irmão, aos quais se juntaraHaldir de Brethil, membro da sua família, com muitoshomens das florestas.

Depois Fingon olhou para leste e a sua visão élficadistinguiu, muito ao longe, uma poeira e o refulgir de açocomo estrelas numa neblina, e ele soube que Maedhrosavançara; e com isso rejubilou. Em seguida olhou na dire-ção das Thangorodrim, viu uma nuvem escura e um fumopreto a subir; e ficou a saber que a ira de Morgoth foraateada e que o desafio deles seria aceite. Uma sombra dedúvida toldou-lhe o coração. Mas nesse momento soouum grito, transportado pelo vento do sul e passando devale para vale, e Elfos e Homens ergueram as suas vozes,maravilhados e jubilosos. Pois, sem ser solicitado nem a-guardado, Turgon abrira o cerco de Gondolin e vinhacom um exército de dez mil soldados, com resplandecen-tes cotas de malha, e longas espadas, e uma floresta delanças. Depois, quando Fingon ouviu, ao longe, a grandetrompa de Turgon, a sombra desvaneceu-se, o seu coraçãoanimou-se e ele gritou fortemente: «Utúlie’n aurë! AiyaEldalië ar Atanatami, utúlie’n aurë! O dia chegou! Olhai,povo dos Eldar e Pais dos Homens, o dia chegou!» E to-dos quantos ouviram a sua voz poderosa ecoar nos mon-

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tes responderam, gritando: «Auta i lómë! A noite está afindar!»

Não tardava muito para a grande batalha começar,pois Morgoth sabia grande parte do que faziam e planeja-vam os seus inimigos e gizara os seus planos contra a horado seu ataque. Uma grande força saída de Angband apro-ximava-se já de Hithlum, enquanto outra ainda maior ia aoencontro de Maedhros para impedir a união das potênciasdos reis. E aqueles que vinham contra Fingon vestiam to-dos de tom pardo e não mostravam qualquer aço desem-bainhado, o que lhes permitiu estarem já avançados nasareias da Anfauglith antes de a sua aproximação se tornarnotada.

Então os corações dos Noldor enfureceram-se e osseus capitães quiseram atacar os inimigos na planície, masFingon mostrou-se contrário a isso.

— Cuidado com a perfídia de Morgoth, senhores!— aconselhou. — A sua força é sempre maior do que pa-rece e o seu objetivo diferente do que aparenta. Não reve-leis a vossa própria força, mas deixai o inimigo esgotar oseu primeiro ataque contra os montes.

Pois era desígnio dos reis que Maedhros marchasseabertamente sobre a Anfauglith com toda a sua força deElfos, e de Homens, e de Anões; e quando, como espera-vam, ele tivesse levado os principais exércitos de Morgotha ripostar, Fingon avançaria do Ocidente e o poderio deMorgoth ficaria como que apanhado entre martelo e bi-gorna e seria destroçado. O sinal para isso seria o acenderde um grande feixe de luz em Dorthonion.

Mas o comandante de Morgoth a ocidente receberaordens para atrair Fingon para fora dos seus montes portodos os meios que pudesse. Ele avançou, portanto, até a

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frente da sua hoste ser detida diante da corrente do Sirion,das muralhas da Barad Eithel até ao Pântano de Serech; eos postos avançados de Fingon podiam ver os olhos dosseus inimigos. Mas o seu desafio não recebeu nenhumaresposta e as provocações dos seus Orcs vacilaram ao de-pararem com as muralhas silenciosas e a ameaça ocultaatrás dos montes.

Então o comandante de Morgoth enviou cavaleiroscom ofertas de negociações e eles chegaram às própriasmuralhas exteriores da Barad Eithel. Levavam consigoGelmir, filho de Guilin, um senhor de Nargothrond, aquem tinham aprisionado na Bragollach e cegado, e osseus arautos mostraram-no, gritando: «Temos muitos maisassim na nossa terra, mas tereis de vos apressar se quiser-des encontrá-los. Pois, quando regressarmos, trataremostodos eles de igual modo.» E deceparam os braços e aspernas de Gelmir e deixaram-no ali.

Por pouca sorte, naquele ponto das fortalezas exte-riores encontrava-se Gwindor, filho de Guilin, com muitagente de Nargothrond; e ele marchara, de fato, para aguerra com todas as forças que conseguira reunir, levadopelo desgosto causado pelo aprisionamento do irmão.Agora a sua ira era como uma labareda e ele saltou para ocavalo, e com ele muitos cavaleiros, e perseguiram e mata-ram os arautos de Angband. Seguidos por toda a gente deNargothrond, penetraram profundamente nas fileiras deAngband. E, vendo isto, a hoste dos Noldor como que seincendiou e Fingon pôs o seu elmo branco, fez soar assuas trombetas e toda a sua gente irrompeu dos montesnuma investida súbita.

A luz do desembainhar das espadas dos Noldor eracomo um fogo num caniçal, e tão terrível e veloz foi o seu

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ataque que os desígnios de Morgoth quase baquearam.Antes que pudesse ser reforçado, o exército-armadilha queenviara para oeste foi destroçado e destruído e os estan-dartes de Fingon passaram pela Anfauglith e foram ergui-dos defronte das muralhas de Angband.

Na dianteira desse combate esteve sempre Gwindore a gente de Nargothrond, e nem mesmo então puderamser contidos. Irromperam pelas portas exteriores e chaci-naram os guardas no interior dos próprios pátios de Ang-band; e Morgoth tremeu no seu trono, ouvindo-os bateràs suas portas. Mas Gwindor caiu numa armadilha e foiaprisionado vivo e a sua gente chacinada, pois Fingon nãopôde ir em seu socorro. Através das muitas portas secretasdas Thangorodrim, Morgoth fez avançar a sua força prin-cipal, que mantivera de reserva, e Fingon foi rechaçadocom grandes perdas das muralhas de Angband.

Depois, foi na planície de Anfauglith, no quarto diada guerra, que começou a Nirnaeth Arnoediad, cuja triste-za história alguma pode relatar. De tudo o que aconteceuna batalha travada a leste: da derrota de Glaurung, o Dra-gão, pelos Anões de Belegost, da traição dos Easterlings,do destroçar da hoste de Maedhros e da fuga dos filhos deFëanor, nada mais é aqui acrescentado. A oeste, a hoste deFingon bateu em retirada pelas areias e aí morreram Hal-dir, filho de Halmir, e a maioria dos Homens de Brethil.Mas no quinto dia, quando a noite caía e ainda se encon-travam longe das Ered Wethrin, os exércitos de Angbandcercaram o exército de Fingon, lutaram até ser dia e avan-çaram cada vez mais. Com a manhã chegou a esperança,pois ouviram-se as trombetas de Turgon, enquanto elemarchava com a hoste principal de Gondolin; pois Tur-gon estivera estacionado a sul, guardando as passagens do

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Sirion, e evitara que a maioria da sua gente participasse naprecipitada investida. Agora apressava-se a ir ao encontrodo irmão. Os Noldor de Gondolin eram fortes e as suasfileiras cintilavam como um rio de aço ao sol, pois as es-padas e os arneses dos mais modestos guerreiros de Tur-gon valiam mais do que o resgate de qualquer rei entre osHomens.

A falange da guarda do Rei penetrou nas fileiras dosOrcs e Turgon abriu caminho até junto do irmão. E diz-seque o encontro de Turgon com Húrin, que estava ao ladode Fingon, foi ditoso no meio da batalha. Então, durantealgum tempo, as hostes de Angband foram forçadas a re-cuar e Fingon reatou a sua retirada. Mas, depois de ter re-chaçado Maedhros a oriente, Morgoth dispunha agora degrandes forças e, antes de conseguirem chegar ao abrigodos montes, Fingon e Turgon foram atacados por umamaré de inimigos três vezes superior ao total da força quelhes restava. Gothmog, capitão-mor de Angband, chegarae abriu uma cunha negra entre as hostes élficas, cercandoo rei Fingon e repelindo Turgon e Húrin na direção dogrande pântano do Serech. Depois voltou-se para Fingon.Foi um embate sinistro. Por fim, Fingon ficou só, com asua guarda morta em seu redor, e lutou contra Gothmog,até um Balrog vir por trás dele e o envolver numa faixa deaço. Então Gothmog abateu-o com o seu machado negroe uma chama branca irrompeu do elmo de Fingon, quan-do ele se fendeu. Assim caiu o rei dos Noldor; e, já nochão, foi espancado com clavas e o seu estandarte azul eprata espezinhado no charco do seu sangue. A batalhaestava perdida, mas ainda Húrin, e Huor, e o que restavada Casa de Hador permaneciam firmes com Turgon deGondolin, e as hostes de Morgoth não conseguiam con-

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quistar as passagens do Sirion. Então, Húrin falou a Tur-gon, dizendo:

— Ide agora, Senhor, enquanto é tempo! Pois soiso último da Casa de Fingolfin e em vós reside a derradeiraesperança dos Eldar. Enquanto Gondolin existir, Morgothcontinuará a conhecer o medo no seu coração.

— Agora Gondolin não pode permanecer ocultapor muito tempo e, se for descoberta, cairá — respondeuTurgon.

— No entanto, se resistir durante um pouco mais,da vossa casa virá a esperança para Elfos e Homens —disse Huor. — Uma coisa vos digo, Senhor, com os olhosda morte: embora nos separemos aqui para sempre, e eunão volte a ver as vossas muralhas brancas, de vós e demim uma nova estrela nascerá. Adeus!

Maeglin, filho da irmã de Turgon, que se encontra-va perto, ouviu estas palavras e não as esqueceu.

Então Turgon acatou o conselho de Húrin e Huore deu ordens para que a sua hoste iniciasse a retirada paraas passagens do Sirion, e os seus capitães Ecthelion eGlorfindel guardaram os flancos à direita e à esquerda pa-ra que ninguém do inimigo pudesse ultrapassá-los, porquea única estrada daquela região era estreita e passava pertoda margem ocidental da crescente corrente do Sirion. Masos Homens de Dor-lómin guardavam a retaguarda, comoHúrin e Huor queriam; pois, nos seus corações, não dese-javam sair das Terras Setentrionais e, se não conseguissemregressar vitoriosos às suas casas, ali permaneceriam até aofim. Foi deste modo que Turgon abriu caminho para sul,até que, chegado atrás da guarda de Húrin e Huor, passouo Sirion e escapou. Desapareceu então nas montanhas eficou oculto dos olhos de Morgoth. Mas os irmãos reuni-

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ram à sua volta o que restava dos homens fortes da Casade Hador e, passo a passo, recuaram até ficarem atrás doPântano de Serech e terem a corrente do Rivil à sua fren-te. Aí permaneceram e não avançaram mais.

Então todas as hostes de Angband se precipitarampara eles, cortaram a corrente com os seus mortos e cerca-ram o remanescente de Hithlum como uma maré alta àvolta de um rochedo. Aí, quando o Sol se dirigia para oes-te e as sombras da Ered Wethrin escureciam, Huor caiu,trespassado por uma seta envenenada num olho, e todosos valentes homens de Hador tombaram chacinados à suavolta. Os Orcs deceparam-lhes as cabeças e empilharam-nas como um monte de ouro no Sol poente.

Por fim, Húrin ficou sozinho. Então largou o escu-do, pegou no machado de um capitão orc e brandiu-ocom as duas mãos. Canta-se que o machado fumegou nosangue negro da guarda troll de Gothmog até ela definhare que, cada vez que o brandia, Húrin gritava bem alto:«Aure entuluva! O dia voltará.» Setenta vezes soltou eleesse grito, mas, por fim, apanharam-no vivo por ordem deMorgoth, que pensava causar-lhe assim mais mal do quecom a morte. Por isso, os Orcs agarraram Húrin com asmãos, que continuaram agarradas a ele apesar de lhes de-cepar os braços; e o seu número não parava de ser reno-vado, até que Húrin caiu enterrado debaixo deles. EntãoGothmog amarrou-o e arrastou-o para Angband, escarne-cendo-o.

Assim terminou a Nirnaeth Arnoediad, quando oSol descia para além do mar. A noite caiu em Hithlum esoprou do Ocidente uma forte tempestade de vento.

Grande foi o triunfo de Morgoth, embora nem to-dos os objetivos do seu rancor tivessem sido concretiza-

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dos. Um pensamento o transtornava profundamente eturvava a sua vitória com inquietação: Turgon escapara àsua rede, ele que fora, de todos os seus inimigos, aqueleque mais desejara aprisionar ou destruir. Pois Turgon, dagrande Casa de Fingolfin, era agora, por direito, rei de to-dos os Noldor, e Morgoth temia e odiava a Casa de Fin-golfin, porque escarnecera dele em Valinor e desfrutava daamizade de Ulmo, seu inimigo, e também por causa dosferimentos que Fingolfin lhe infligira em combate. Acimade tudo, Morgoth temia Turgon, pois de longa data, emValinor, o seu olhar brilhara sobre ele e, sempre que Tur-gon se aproximava, uma sombra negra descia sobre o seuespírito, prenunciando que, algures no futuro ainda ocultopelo destino, sobre ele se abateria a ruína vinda de Tur-gon.

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CAPÍTULO III

AS PALAVRAS DE HÚRIN E MORGOTH

Por ordem de Morgoth, os Orcs reuniram então,com grande trabalho, todos os corpos dos seus inimigos,assim como todos os seus arneses e armas, e empilharam-nos no meio da planície de Anfauglith num enorme mon-te que podia ser visto de longe e a que os Eldar chamaramHaudh-en-Nirnaeth. Mas a erva irrompeu ali e cresceu denovo, alta e verde, apenas sobre aquele monte em todo odeserto, e desde então nenhum servo de Morgoth pisou aterra sob a qual as espadas dos Eldar e dos Edain eramconsumidas pela ferrugem. O reino de Fingor já não exis-tia e os Filhos de Fëanor vagueavam como folhas sopra-das pelo vento. Nenhum dos Homens da Casa de Hadorregressou a Hithlum, nem notícia alguma da batalha e dodestino dos seus senhores. Mas Morgoth enviou para láHomens que estavam sob o seu domínio, os escuros Eas-terlings, e encerrou-os nessa terra e proibiu-os de lá saí-rem. Isto foi tudo quanto lhes deu das fartas recompensas

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que lhes prometera se atraiçoassem Maedhros: perseguir epilhar os velhos, as crianças e as mulheres do povo deHador. Aos restantes Eldar de Hithlum, todos aqueles quenão escaparam para os ermos e as montanhas, levou-ospara as minas de Angband, onde se tornaram seus escra-vos. Mas os Orcs andavam livremente por todo o Norte eavançaram resolutamente para sul, até Beleriand. Aí per-manecia ainda Doriath, e também Nargothrond; Morgoth,porém, pouca atenção lhes prestava, quer porque poucosabia a seu respeito, quer porque a hora deles ainda estavapara chegar nos desígnios da sua perversidade. Mas o seupensamento não deixava de regressar a Turgon.

Por conseguinte, Húrin foi conduzido à presençade Morgoth, pois este sabia, graças aos seus poderes e aosseus espiões, que ele tinha a amizade do Rei; e tentou in-timidá-lo com o olhar. Mas Húrin ainda não podia ser in-timidado, e desafiou Morgoth. Em conseqüência disso,Morgoth mandou acorrentá-lo e submetê-lo a tortura len-ta. Passado algum tempo, porém, veio a ele e ofereceu-lhea escolha entre partir livre para onde quisesse e receberpoder e hierarquia como o mais elevado de todos os capi-tães de Morgoth, bastando-lhe para isso revelar onde Tur-gon tinha a sua fortaleza e tudo o mais que soubesse dasintenções do Rei. Mas Húrin, o Firme, zombou dele, di-zendo:

— Cego és, Morgoth Bauglir, e cego serás sempre,capaz de ver apenas as trevas. Desconheces o que rege oscorações dos Homens e, mesmo que o conhecesses, nãosaberias usá-lo. Mas tolo é aquele que aceita o que Morgo-th oferece. Receberás primeiro o preço e negarás depois apromessa, e eu receberia apenas a morte se te dissesse oque queres saber.

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Então Morgoth riu-se e disse:— A morte virás ainda a suplicar de mim como

uma dádiva.Depois levou Húrin para o Haudh-en-Nirnaeth,

que tinha sido recentemente erigido e fedia a morte. EMorgoth colocou Húrin no seu topo e disse-lhe que o-lhasse para oeste, na direção de Hithlum, e pensasse namulher, no filho e nos outros familiares.

— Pois eles vivem agora no meu reino — declarou— e dependem da minha clemência.

— Clemência é coisa que não tens — respondeuHúrin. — Mas não chegarás a Turgon através deles, por-que desconhecem os segredos dele.

Então a ira dominou Morgoth, que disse:— E todavia posso chegar a ti e a toda a tua amal-

diçoada casa, e dobrar-se-ão à minha vontade, ainda quesejam todos feitos de aço.

Pegou numa longa espada que se encontrava à mãoe quebrou-a perante os olhos de Húrin, cuja face foi atin-gida por um fragmento; mas ele nem estremeceu. Então,Morgoth, estendendo o longo braço na direção de Dor-lómin, amaldiçoou Húrin e Morwen e a sua descendência,dizendo:

— Vê! A sombra do meu pensamento abater-se-ásobre eles aonde quer que vão e o meu ódio persegui-los-áaté aos confins do mundo.

Mas Húrin rebateu:— Falas em vão. Pois não podes vê-los nem domi-

ná-los de longe; não enquanto mantiveres essa forma econtinuares a desejar ser um rei visível na Terra.

Então Morgoth virou-se para Húrin e disse:— Tolo, insignificante entre os Homens, que já de

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si são os menos importantes entre todos os que falam!Acaso viste os Valar ou mediste o poder de Manwë eVarda? Conheces o alcance do seu pensamento ? Ou pen-sas, porventura, que o pensamento deles está em ti e po-dem proteger-te de longe?

— Não sei — respondeu Húrin. — Mas assim po-deria acontecer, se fosse essa a sua vontade. Pois o Gran-de Rei não será destronado enquanto Arda perdurar.

— Tu o dizes — replicou Morgoth. — Eu sou oGrande Rei: Melkor, o primeiro e o mais poderoso de to-dos os Valar, que existia antes do mundo e o fez. A som-bra do meu desígnio pesa sobre Arda e tudo quanto nelahá se verga, lenta e seguramente, à minha vontade. Massobre todos a quem amas o meu pensamento pesará comouma nuvem de Condenação e mergulhá-los-á nas trevas eno desespero. Aonde quer que vão, o mal surgirá. Quandoquer que falem, as suas palavras transmitirão maus conse-lhos. O que quer que façam, voltar-se-á contra eles. Mor-rerão sem esperança, amaldiçoando tanto a vida como amorte.

Mas Húrin respondeu:— Esqueces com quem estás a falar? As coisas que

dizes já as disseste há muito tempo aos nossos pais, masnós escapamos da tua sombra. E agora sabemos a teu res-peito, pois olhamos para os rostos que viram a Luz e ou-vimos as vozes que falaram com Manwë. Antes de Ardaexistias, mas outros também existiam e não foste tu que afizeste. Nem és o mais poderoso de todos, pois consumis-te a tua força em ti mesmo e desperdiçaste-a no teu pró-prio vazio. Agora não és mais do que um escravo fugidodos Valar, cujas correntes ainda te esperam.

— Aprendeste de cor as lições dos teus mestres —

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disse Morgoth. — Mas essa tradição infantil não te ajuda-rá, agora que todos eles debandaram.

— Uma última coisa te direi então, escravo Morgo-th — continuou —, e não é ditada pela tradição dos El-dar, mas chegou ao meu coração nesta hora. Não és o se-nhor dos Homens, e nunca serás, mesmo que toda a Ardae Menel fiquem sob o teu domínio. Para além dos Círcu-los do Mundo não perseguirás aqueles que te renegam.

— Para além dos Círculos do Mundo não os perse-guirei — respondeu Morgoth. — Pois para além dos Cír-culos do Mundo só há o Nada. Mas dentro deles não meescaparão, até no Nada entrarem.

— Mentes — disse Húrin.— Tu verás e confessarás que não minto — afir-

mou Morgoth. E, levando Húrin de novo para Angband,sentou-o numa cadeira de pedra num lugar alto das Than-gorodrim, de onde ele podia ver de longe a terra de Hit-hlum, a ocidente, e as terras de Beleriand, ao sul. Aí ficouaprisionado pelo poder de Morgoth, o qual, de pé ao ladodele, o amaldiçoou de novo e sobre ele lançou o seu po-der, para que não pudesse sair daquele lugar, nem morrer,enquanto Morgoth o não libertasse.

— Fica aí sentado — disse Morgoth —, e olha paraas terras onde o mal e o desespero se abaterão sobre aque-les que me entregaste. Pois Ousaste zombar de mim equestionaste o poder de Melkor, Senhor dos destinos deArda. Doravante, com os meus olhos verás e com osmeus ouvidos ouvirás, e nada te será ocultado.

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CAPÍTULO IV

A PARTIDA DE TÚRIN

Três homens apenas encontraram finalmente o ca-minho de regresso a Brethil através da Taur-nur-Fuin, umcaminho maléfico. E quando Glóredhel, filha de Hador,soube da queda de Haldir, a dor foi grande e ela morreu.

A Dor-lómin não chegavam notícias. Rían, mulherde Huor, fugiu, angustiada, para os ermos; mas foi ajudadapelos Elfos Cinzentos de Mithrim e, quando Tuor, seufilho, nasceu, eles adotaram-no. Mas Rían foi para o Hau-dh-en-Nirnaeth, onde se deitou e morreu.

Morwen Eledhwen permaneceu em Hithlum, silen-ciosa na sua dor. Seu filho Túrin tinha apenas nove anos eela estava de novo grávida. Os seus dias eram cruéis. OsEasterlings chegaram à região em grande número, trata-ram cruelmente o povo de Hador, roubaram-lhe todas as

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suas posses e escravizaram-no. Levaram todas as pessoasdas terras de Húrin capazes de trabalhar ou ter algumautilidade, mesmo jovens raparigas e rapazes, e aos velhosmataram-nos ou expulsaram-nos para morrerem à fome.Mas ainda não ousavam pôr as mãos na Senhora de Dor-lómin, ou expulsá-la da sua casa, pois corria entre eles oboato de que ela era perigosa, e uma bruxa que tinha tratocom os demônios brancos: pois era assim que conheciamos Elfos, a quem detestavam e temiam ainda mais. Pelamesma razão, temiam e evitavam as montanhas, nas quaismuitos dos Eldar tinham procurado refúgio, sobretudo nosul da terra. E depois de saquearem e atormentarem, osEasterlings recuaram para norte. Pois a casa de Húrin fi-cava no sudeste de Dor-lómin e as montanhas estavamperto; na verdade, o Nen Lalaith descia de uma nascentesob a sombra do Amon Darthir, sobre cuja espalda haviaum desfiladeiro íngreme. Por aí podiam os intrépidos a-travessar as Ered Wethrin e descer pelos poços de Glithuipara Beleriand. Mas tal não era do conhecimento dos Eas-terlings e tão-pouco, ainda, de Morgoth; pois toda essaregião, enquanto a Casa de Fingolfin existiu, esteve prote-gida contra ele e nenhum dos seus servidores aí entrara.Ele confiava que as Ered Wethrin eram uma barreira in-transponível, tanto contra a fuga do norte como contraum ataque vindo do sul. E não havia, de fato, nenhumaoutra passagem, para os desprovidos de asas, entre Sereche, muito para oeste, o sítio onde Dor-lómin tinha Nevrastcomo vizinha.

Assim aconteceu que, depois das primeiras incur-sões, Morwen foi deixada em paz, embora houvesse ho-mens emboscados nas florestas próximas e fosse perigosoafastar-se para longe. Sob o teto de Morwen permaneciam

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ainda Sador, o carpinteiro, alguns homens e mulheres ido-sos e Túrin, a quem ela mantinha perto, no interior dacerca. Mas a propriedade de Húrin não tardou a entrar emdecadência e, embora trabalhasse duramente, Morwen erapobre e teria passado fome não fora a ajuda que lhe eraenviada secretamente por Aerin, parente de Húrin, a quemum certo Brodda, um dos Easterlings, tomara à força co-mo esposa. As esmolas eram amargas para Morwen, masela aceitava essa ajuda para o bem de Túrin e do seu filhoainda não nascido, e também porque, como dizia, vinhado que era seu. Pois fora o tal Brodda que se apoderaradas pessoas, dos bens e do gado das terras de Húrin e oslevara para o seu próprio domínio. Era um homem ousa-do, mas de pouca importância entre os seus antes de vi-rem para Hithlum. Por isso, ávido de riqueza, estava dis-posto a apoderar-se de terras que outros da sua espécienão cobiçavam. Vira uma vez Morwen, quando cavalgavapara a sua casa para uma pilhagem, mas fora tomado porum grande pavor dela. Pensava que fitara os olhos terrí-veis de um demônio branco e tomara-o um pavor mortalde que alguma desgraça se abatesse sobre ele. Por isso,não pilhara a casa dela nem descobrira Túrin, pois, decontrário, a vida do herdeiro do legítimo senhor teria sidocurta.

Brodda escravizou os Cabeças de Palha, comochamava ao povo de Hador, e pô-los a construir um palá-cio de madeira na terra a norte da casa de Húrin. E osseus escravos eram reunidos como gado numa vacaria,mas mal guardados. Entre eles ainda se encontravam al-guns que não se tinham deixado intimidar e estavam pron-tos para ajudar a Senhora de Dor-lómin, mesmo correndoperigo. E deles chegavam secretamente notícias a Mor-

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wen, embora nelas houvesse pouca esperança. Mas Brod-da tomou Aerin como esposa e não como escrava, poishavia poucas mulheres entre os seus seguidores e nenhu-ma que se comparasse com as filhas dos Edain. E ele es-perava fazer para si um senhorio daquela região e ter umherdeiro para a governar depois dele.

Do que acontecera e do que poderia acontecer emdias futuros Morwen pouco disse a Túrin, que por seulado receava quebrar o silêncio da mãe com perguntas.Quando os Easterlings chegaram pela primeira vez a Dor-lómin, ele perguntara à mãe:

— Quando regressará o meu pai, para expulsar es-tes horrendos ladrões? Porque não vem ele?

E Morwen respondera:— Não sei. É possível que tenha sido morto ou

que esteja cativo; mas também é possível que tenha sidorepelido para muito longe e não possa ainda regressar pelomeio dos inimigos que nos cercam.

— Então penso que morreu — disse Túrin, e napresença da mãe conteve as suas lágrimas —, pois nin-guém seria capaz de o impedir de regressar para nos aju-dar, se estivesse vivo.

— Não creio que nenhuma dessas coisas seja ver-dade, meu filho — respondeu Morwen.

À medida que o tempo passava, o coração de Mor-wen ia entristecendo por causa do seu filho Túrin, herdei-ro de Dor-lómin e Ladros; pois não via para ele esperançamelhor do que a de tornar-se escravo dos Easterlings, an-tes de ficar muito mais crescido. Por isso, lembrou-se daspalavras que trocara com Húrin e o seu pensamento vol-tou-se de novo para Doriath. Por fim, resolveu mandarTúrin embora em segredo, se conseguisse, e rogar ao rei

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Thingol que o acolhesse. E, enquanto estava sentada ameditar nisso, ouviu claramente, no seu pensamento, avoz de Húrin dizer-lhe: Vai sem demora! Não esperes pormim! Mas o nascimento do seu filho aproximava-se e aestrada seria difícil e perigosa. Quanto mais demorasse,menor seria a esperança de fuga. E o seu coração continu-ava a iludi-la com não admitida esperança; o seu pensa-mento mais profundo pressentia que Húrin não estavamorto, e ela ficava à espera de ouvir os seus passos nashoras insones da noite, ou acordava a pensar que ouvirano pátio o relinchar de Arroch, o seu cavalo. Além disso,embora quisesse que o filho fosse acolhido nos salões deoutrem, conforme era costume daquele tempo, ainda nãoestava pronta para humilhar o seu orgulho e ser uma hós-pede por esmola, nem mesmo de um rei. Por isso, a vozde Húrin, ou a recordação da sua voz, foi ignorada e oprimeiro fio do destino de Túrin foi urdido.

O Outono do Ano da Lamentação aproximava-sesem que Morwen se tivesse decidido, e depois foi acome-tida pela pressa; pois o tempo para viajar era curto, masela temia que Túrin fosse levado se esperasse pelo Inver-no. Easterlings rondavam à volta da cerca e espiavam acasa. Por conseguinte, disse subitamente a Túrin:

— O teu pai não vem. Tens, pois, de partir, e de-pressa. Ele assim o desejaria.

— Partir? — gritou Túrin. — Para onde iremos?Para além das Montanhas?

— Sim, para além das montanhas, muito para sul.Para sul: aí poderá haver alguma esperança. Mas eu nãodisse que nós tínhamos de partir, meu filho. Tu tens departir, mas eu devo ficar.

— Não posso ir sozinho! — protestou Túrin. —

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Não vos deixarei. Porque não havemos de ir juntos?— Eu não posso ir — disse Morwen. — Mas não

irás sozinho. Mandarei Gethron contigo e Grithnir tam-bém, talvez.

— Não mandareis Labadal?— Não, pois Sador é coxo — respondeu Morwen

— e a estrada será difícil. E como és meu filho e os tem-pos estão sinistros, não suavizarei as palavras: podes mor-rer nessa estrada. O ano está a terminar. Mas, se ficares,esperar-te-á um fim pior: ser um escravo. Se queres serum homem, quando chegares à idade de o ser, farás comote mando, corajosamente.

— Mas deixar-vos-ei só com Sador, o cego Ragnir eas mulheres idosas — protestou Túrin. — Não disse meupai que sou o herdeiro de Hador? O herdeiro deveria ficarna casa de Hador para a defender. Quem me dera agorater ainda a minha faca!

— O herdeiro deveria ficar, porém não pode —respondeu Morwen. — Mas poderá regressar um dia. Co-ragem! Seguir-te-ei, se as coisas piorarem; se puder.

— Mas como me encontrareis, perdido no deserto?— perguntou Túrin e, de súbito, o coração não lhe obe-deceu e ele chorou abertamente.

— Se choras, outras coisas te encontrarão primeiro— avisou Morwen. — Mas eu sei para onde vais e, se láchegares e lá permaneceres, aí te encontrarei, se puder.Pois vou enviar-te ao Rei Thingol de Doriath. Não prefe-res ser hóspede de um rei a ser um escravo?

— Não sei. Não sei o que é um escravo.— Vou mandar-te embora daqui para que não pre-

cises de aprender o que é — respondeu Morwen. Depoiscolocou Túrin à sua frente e fitou-o nos olhos, como se

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tentasse deslindar algum enigma neles. — É difícil, Túrin,meu filho — disse, por fim. — E não apenas para ti. Mui-to me custa decidir, em dias tão cruéis, qual é o melhorprocedimento. Mas procedo como penso que é certo, poispor que outro motivo haveria de me separar daquilo queme é mais querido em tudo o que me resta?

Não voltaram a falar do assunto um com o outro eTúrin sentia-se magoado e confuso. De manhã foi procu-rar Sador, que estivera a partir galhos secos para o lume.Era escassa a reserva de que dispunham, pois não se atre-viam a embrenhar-se pelas florestas. Sador apoiou-se nasua muleta e olhou para a grande cadeira de Húrin, quefora atirada, por acabar, para um canto.

— Ela terá de ir — disse. — Pois nos tempos quecorrem só é possível satisfazer as necessidades mais ínfi-mas.

— Não a quebres ainda — pediu Túrin. — Talvezele volte para casa e depois fique satisfeito ao ver o quefizeste para ele, na sua ausência.

— Falsas esperanças são mais perigosas do que te-mores — disse Sador —, e não nos aquecerão neste In-verno. — Passou a mão pelos entalhes da cadeira e suspi-rou. — Desperdicei o meu tempo, embora as horas te-nham parecido agradáveis. Mas estas coisas têm vida curtae a alegria de as fazer é o seu único e verdadeiro fim, pare-ce-me. E agora acho melhor devolver-te o teu presente.

Túrin estendeu a mão, mas logo a recuou.— Um homem não volta a receber o que deu.— Mas, se ela é agora minha, não poderei dá-la a

quem quiser?— Sim — disse Túrin —, a qualquer homem me-

nos a mim. Mas porque desejarias dá-la?

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— Não me resta esperança de a usar em tarefasdignas. Não haverá trabalho para Labadal nos dias vin-douros, a não ser trabalho de escravo.

— O que é um escravo? — quis saber Túrin.— É um homem que foi um homem mas é tratado

como um animal — respondeu Sador. — Alimentado a-penas para se manter vivo, mantido vivo apenas para labu-tar, labutando apenas por medo da dor ou da morte. Edestes ladrões pode receber dor ou morte apenas por purodivertimento. Ouvi dizer que escolhem alguns dos pés-ligeiros e os perseguem com cães de caça. Aprenderammais depressa com os Orcs do que nós com o Povo Belo.

— Agora compreendo melhor as coisas — disseTúrin.

— É uma pena que tenhas de compreender taiscoisas tão cedo — disse Sador. Depois, vendo a expressãoestranha do rosto de Túrin, perguntou-lhe: — O que éque compreendes agora?

— O motivo por que a minha mãe me vai mandarembora — respondeu Túrin, e os seus olhos encheram-sede lágrimas.

— Ah! — disse Sador, e murmurou para consigo:«Mas porque demorou tanto?» Depois, voltando-se paraTúrin, acrescentou: — Essa não me parece uma notíciapara lágrimas. Mas não deves repetir as decisões da tuamãe em voz alta a Labadal, nem a ninguém. Hoje em dia,todas as paredes e cercas têm orelhas, orelhas que nãocrescem em cabeças claras.

— Mas preciso de falar com alguém! Sempre tecontei coisas, Labadal. Não quero deixar-te. Não querodeixar esta casa ou a minha mãe.

— Mas, se não o fizeres, em breve haverá um fim

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definitivo para a Casa de Hador, como deves compreen-der. Labadal não quer que partas; mas Sador, servo de Hú-rin, sentir-se-á mais feliz quando o filho de Húrin estiverfora do alcance dos Easterlings. Bem, bem, não há remé-dio, temos de nos despedir. Agora não aceitas a minhafaca como presente de despedida?

— Não! A minha mãe diz que vou para os Elfos,para o Rei de Doriath. Lá posso obter outras coisas comoa faca. Mas não poderei mandar-te quaisquer presentes,Labadal. Estarei muito longe e sozinho.

E então Túrin chorou, mas Sador disse-lhe:— Então? Onde está o filho de Húrin? Pois ouvi-o

dizer, não há muito tempo: Partirei como soldado comum rei élfico, assim que for capaz.

Túrin conteve as lágrimas e respondeu:— Está bem: se essas foram as palavras do filho de

Húrin, ele deve honrá-las e partir. Mas, sempre que digoque farei isto ou aquilo, as coisas parecem muito diferen-tes quando chega a altura de o fazer. Agora estou relutan-te. Preciso de ter cuidado e não voltar a dizer tais coisas.

— Será, de fato, melhor — disse Sador. — E issoque muitos homens ensinam e poucos homens aprendem.Não penses nos dias invisíveis. O de hoje é mais do quesuficiente.

Túrin foi preparado para a viagem, despediu-se damãe e partiu em segredo com os seus dois acompanhan-tes. Mas quando eles lhe disseram que se voltasse e olhas-se para trás, para a casa de seu pai, então a angústia da se-paração dilacerou-o como uma espada, e ele gritou:«Morwen, Morwen, quando voltarei a ver-vos?» MasMorwen, parada no limiar da casa, ouviu o eco desse gritonos montes arborizados e agarrou-se com tanta força à

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trave da porta que os seus dedos ficaram dilacerados. Esteera

O primeiro dos infortúnios de Túrin.No início do ano, depois de Túrin ter partido,

Morwen deu à luz a filha, a quem chamou Niënor, quesignifica Luto; mas Túrin já estava muito longe quando elanasceu. Extensa e terrível era a sua estrada, pois o alcancedo poder de Morgoth chegava muito longe; mas ele tinhacomo guias Gethron e Grithnir, que tinham sido jovensno tempo de Hador e, apesar de serem agora idosos, eramvalentes e conheciam bem as terras, pois tinham viajadocom freqüência por Beleriand em tempos anteriores. As-sim, mercê do destino e da coragem, atravessaram asMontanhas Sombrias e, descendo ao Vale de Sirion, pene-traram na Floresta de Brethil; e por fim, fatigados e enfra-quecidos, atingiram os limites de Doriath. Mas aí senti-ram-se confusos, ficaram enredados nos labirintos da Rai-nha e vaguearam, perdidos, por entre a floresta ínvia, atétodos os seus mantimentos se esgotarem. Estavam à beirada morte, pois o Inverno avançava, frio, do Norte; masnão seria tão leve o tormento de Túrin. No momento emque se deitavam, entregues ao desespero, ouviram soaruma trompa. Beleg, o Arco Forte, andava a caçar naquelaregião, pois residia sempre nos pântanos de Doriath e erao mais importante habitante das florestas daquele tempo.Ao ouvir os gritos deles, veio ao seu encontro e, depois delhes dar de comer e beber, ficou a saber os seus nomes ede onde vinham, e o espanto e a compaixão apoderaram-se dele. Olhou com simpatia para Túrin, pois ele tinha abeleza da mãe e os olhos do pai, e era resoluto e forte.

— Que mercê gostarias de receber do rei Thingol?— perguntou Beleg ao rapaz.

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— Gostaria de ser um dos seus cavaleiros, paracombater contra Morgoth e vingar o meu pai.

— Pode ser que isso venha a acontecer, quando onúmero dos teus anos for maior. Pois, embora sejas aindapequeno, possuis os predicados de um homem valente,digno de ser filho de Húrin, o Firme, se tal fosse possível.— Pois o nome de Húrin era honrado em todas as terrasdos Elfos.

Assim, Beleg tornou-se de bom grado guia dos via-jantes e conduziu-os a um pavilhão onde vivia naqueletempo com outros caçadores e aí ficaram instalados en-quanto um mensageiro ia a Menegroth. E quando chegoua notícia de que Thingol e Melian receberiam o filho deHúrin e os seus guardiões, Beleg conduziu-os por cami-nhos secretos ao Reino Escondido.

Assim chegou Túrin à grande ponte sobre o Esgal-duin e transpôs as portas dos palácios de Thingol; e, comocriança que era, olhou para as maravilhas de Menegroth,que nenhum Homem mortal antes vira, com a única exce-ção de Beren. Então Gethron pronunciou a mensagem deMorwen perante Thingol e Melian; e Thingol recebeu-osamavelmente e sentou Túrin no seu joelho em honra deHúrin, o mais poderoso dos Homens, e de Beren, seu fa-miliar. E aqueles que tal viram ficaram maravilhados, poisera sinal de que Thingol aceitava Túrin como filho adoti-vo; e isso não era, naquela altura, coisa feita por reis, emuito menos uma coisa que um rei Elfo fizesse por umHomem. Depois Thingol disse-lhe:

— Aqui, filho de Húrin, será a tua casa; e em toda atua vida serás tido como meu filho, embora Homem sejas.Receberás sabedoria para além da medida dos Homensmortais e as armas dos Elfos serão colocadas nas tuas

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mãos. Talvez venha o dia em que recuperarás as terras deteu pai em Hithlum, mas por agora vive aqui com amor.

Assim começou a estada de Túrin em Doriath.Com ele permaneceram durante algum tempo Gethron eGrithnir, seus acompanhantes, apesar de ansiarem porregressar para junto da sua senhora, em Dor-lómin. De-pois, a idade e a doença abateram-se sobre Grithnir, queficou junto de Túrin até à morte; mas Gethron partiu eThingol mandou uma escolta guiá-lo e protegê-lo, além delevar notícias de Thingol para Morwen. Chegaram final-mente a casa de Húrin e, ao saber que o filho fora recebi-do com honra nos palácios de Thingol, Morwen sentiualiviado o peso da sua dor. Os Elfos levavam tambémprendas valiosas de Melian e uma mensagem convidando-a a regressar com os homens de Thingol a Doriath. PoisMelian era sensata e previdente e esperava evitar assim omal que estava preparado no pensamento de Morgoth.Mas Morwen recusava-se a sair da sua casa, porque o seucoração não mudara e o seu orgulho continuava elevado;além disso, Niënor era uma bebê de colo. Por conseguin-te, ela despediu-se dos Elfos de Doriath com agradeci-mentos e presenteou-os com as últimas pequenas coisasde ouro que lhe restavam, ocultando assim a sua pobreza;e pediu-lhes que levassem a Thingol o Elmo de Hador.Mas Túrin ficara sempre à espera dos mensageiros deThingol e, quando eles regressaram sozinhos, fugiu para asflorestas e chorou, pois tinha conhecimento do convite deMelian e esperara que Morwen viesse. Este foi o segundoinfortúnio de Túrin. Quando os mensageiros comunica-ram a resposta de Morwen, Melian encheu-se de compai-xão, compreendendo o estado de espírito dela; e compre-endeu também que o destino que pressagiara não podia

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ser facilmente afastado.O Elmo de Hador foi depositado nas mãos de

Thingol. Era feito de aço cinzento adornado com ouro etinha gravadas runas de vitória. Havia nele um poder queprotegia quem o usasse de ferimento ou morte, pois a es-pada que o atacasse quebrar-se-ia e o dardo que o atingissesaltaria para o lado. Tinha sido forjado por Telchar, o fer-reiro de Nogrod, cujos trabalhos eram famosos. Tinhauma viseira (no estilo das usadas pelos Anões nas suasforjas para protegerem os olhos) e o rosto de quem a u-sasse infundiria medo nos corações de todos quanto oobservassem, mas estava protegido contra dardo e fogo.No seu cimo erguia-se, desafiadora, a imagem de Glau-rung, o dragão, pois fora feito pouco depois de ele ter saí-do dos portões de Morgoth. Hador, e depois dele Galdor,haviam-no usado com freqüência na guerra, e os coraçõesda hoste de Hithlum elevavam-se quando o viam erguido,bem alto, no meio da batalha, e gritavam: «Tem mais me-recimento o Dragão de Dor-lómin do que o verme de ou-ro de Angband!» Mas Húrin não usava o Elmo do Dragãocom facilidade, e de qualquer modo não o usaria, pois cos-tumava dizer: «Prefiro olhar para os meus inimigos com omeu verdadeiro rosto.» Apesar disso, contava o elmo en-tre os bens mais valiosos da sua casa.

Ora, Thingol tinha em Menegroth enormes armei-ros cheios de grande abundância de armas: metal lavradocomo carapaças de peixes que brilhavam como água aoluar; espadas e machados, escudos e elmos forjados pelopróprio Telchar ou pelo seu mestre Gamil Zirak, o Velho,ou por ferreiros élficos ainda mais hábeis. Pois algumascoisas recebera como dádiva vinda de Valinor e tinhamsido trabalhadas por Fëanor com a mestria que nenhum

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outro artesão superara em todos os dias do mundo. Noentanto, Thingol segurou o Elmo de Hador como se o seupróprio acervo oculto fosse de pouca monta, e referiu-se-lhe com palavras corteses, dizendo:

— Altiva a cabeça que usou este elmo, que os ante-passados de Húrin carregaram.

Depois ocorreu-lhe um pensamento e mandouchamar Túrin, a quem disse que Morwen mandara para oseu filho uma coisa muito poderosa, a herança dos seusantepassados. «Aceita agora a Cabeça de Dragão do Nor-te», disse-lhe, «e usa-a bem quando o tempo chegar.» MasHúrin era ainda demasiado novo para erguer o elmo e nãofez caso, por causa da mágoa do seu coração.

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CAPÍTULO V

TÚRIN EM DORIATH

Nos anos da sua infância no reino de Doriath, Tú-rin foi observado por Melian, embora raramente a visse.Mas havia uma donzela chamada Nellas que vivia nas flo-restas; e, a mando de Melian, seguia Túrin se este se em-brenhava pela floresta e muitas vezes lá se encontravacom ele, como que por acaso. Então brincavam juntos, oucaminhavam de mãos dadas; pois ele crescia rapidamente,ao passo que ela não parecia mais do que uma jovem daidade dele, como era no seu coração, apesar de todos osseus anos élficos. Com Nellas, Túrin aprendeu muito a-cerca dos hábitos e das coisas selvagens de Doriath. Elaensinou-o também a falar a língua Sindarin ao modo doreino antigo, mais velha, mais cortês e mais rica de belaspalavras. Assim, durante pouco tempo, a disposição dele

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animava-se, até a sombra pairar de novo sobre Túrin eessa amizade passar como uma manhã de Primavera. PoisNellas não ia para Menegroth e nunca estava disposta aencontrar-se sob telhados de pedra. Assim, à medida que aadolescência passava e Túrin dirigia os seus pensamentospara feitos de homens, passou a vê-la cada vez menos fre-qüentemente e, por fim, deixou de a chamar. Mesmo as-sim, ela continuava a observá-lo, apesar de agora se man-ter oculta.

Nove anos viveu Túrin nos salões de Menegroth. Oseu coração e o seu pensamento estavam sempre com asua família e, de vez em quando, recebia notícias que oconfortavam. Pois, sempre que podia, Thingol enviavamensageiros a Morwen e ela respondia com palavras parao seu filho; foi assim que Túrin ficou a saber que a situa-ção da mãe melhorara e que a sua irmã, Niënor, cresciaem beleza, uma flor no cinzento Norte. E Túrin cresceuem estatura até se tornar alto entre os Homens e ultrapas-sar a dos Elfos de Doriath, e a sua força e intrepidez tor-naram-se famosas no reino de Thingol. Nesses anos ad-quiriu muita sabedoria, ouvindo atentamente as históriasde tempos antigos e de grandes feitos passados, e tornou-se pensativo e parco de palavras. Beleg Arco Forte vinhacom freqüência a Menegroth, procurá-lo, e levava-o paralonge, ensinando-lhe artes de trabalhar madeira, do uso doarco e da flecha e (do que ele mais gostava) do manejo deespadas; mas nas artes de fazer coisas Túrin era menoseficiente, pois mostrava lentidão para adquirir consciênciada própria força e, não raro, deformava o que fazia comalgum golpe violento. Noutros aspectos também pareciaser-lhe a fortuna adversa, de modo que aquilo que preten-dia corria mal e o que desejava não alcançava; tão-pouco

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fazia amizades facilmente, pois não era alegre, pouco ria euma sombra toldava a sua mocidade. Apesar disso, eraamado e estimado por aqueles que o conheciam bem erecebia honras como filho adotivo do Rei.

No entanto, havia em Doriath alguém que lhe inve-java tudo isso, com uma inveja que aumentava à medidaque Túrin se aproximava da idade adulta: Saeros se cha-mava. Ele era orgulhoso e lidava altivamente com aquelesque considerava de menor estatuto e merecimento do queele. Tornou-se amigo de Daeron, o menestrel, pois tam-bém era talentoso no canto. Não tinha simpatia algumapelos Homens e menos ainda por qualquer parente de Be-ren Maneta. «Não é estranho», dizia, «que esta terra se a-bra para mais outro membro dessa desgraçada raça? Nãocausou o outro mal suficiente em Doriath?» Por isso, o-lhava de lado para Túrin e para tudo quanto ele fazia, di-zendo todo o mal que podia a esse respeito. Mas as suaspalavras eram astutas e o seu rancor velado. Se encontravaTúrin sozinho, falava-lhe altivamente e mostrava sem dis-farces o seu desprezo. E Túrin fartou-se dele, embora du-rante muito tempo tivesse respondido com silêncio às máspalavras, pois Saeros era poderoso entre o povo de Doria-th e um dos conselheiros do Rei. Mas o silêncio de Túrindesagradava tanto a Saeros como as suas palavras.

No ano em que Túrin completou dezessete anos, oseu sofrimento agravou-se, pois nessa altura deixaram dechegar quaisquer notícias da sua casa. O poder de Morgo-th crescera de ano para ano e Hithlum inteira estava agorasob a sua sombra. Ele sabia, sem dúvida, muito do quefaziam o povo e a família de Húrin e, durante algum tem-po, não os molestara, para que o seu objetivo pudesse seralcançado; mas agora, para conseguir o que pretendia, co-

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locara sob estreita vigilância todos os desfiladeiros dasMontanhas da Sombra, para que ninguém pudesse sair deHithlum nem entrar, a não ser com grande perigo, e osOrcs concentravam-se em grande número perto das nas-centes do Narog e do Teiglin e das águas mais para o inte-rior do Sirion. Em conseqüência disso, chegou uma alturaem que os mensageiros de Thingol não regressaram e eleresolveu não enviar mais nenhum. Detestava sempre quealguém se afastasse para além das fronteiras protegidas eem nada mostrara maior boa vontade para com Húrin e asua família do que enviando a sua gente por estradas peri-gosas, para visitar Morwen em Dor-lómin.

O coração de Túrin inquietou-se, não sabendo quenova desgraça se abatera sobre Morwen e Niënor; e pormuitos dias ficou sentado em silêncio, cismando na ruínada Casa de Hador e dos Homens do Norte. Depois levan-tou-se e foi procurar Thingol, que encontrou sentado comMelian sob a Hirilorn, a grande faia de Menegroth.

Thingol olhou-o com espanto, ao ver de súbito àsua frente, em vez do seu filho adotivo, um Homem e umdesconhecido, alto e de cabelo preto, que o olhava comolhos profundos num rosto pálido, austero e orgulhoso;mas sem dizer nada.

— Que desejas, filho adotivo? — perguntou Thin-gol, calculando que ele não iria pedir nada de pouca mon-ta.

— Cota de malha, espada e escudo condizentescom a minha estatura, Senhor — respondeu Túrin. — E,com vossa licença, reclamarei agora, também, o Elmo doDragão dos meus antepassados.

— Tê-los-ás. Mas que necessidade tens, já, de se-melhantes armas?

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— A necessidade de um homem — disse Túrin —,e de um filho que tem família para recordar. E precisoigualmente de companheiros valorosos e com armas.

— Dar-te-ei um lugar entre os meus cavaleiros daespada, pois a espada será sempre a tua arma — respon-deu Thingol. — Com eles poderás fazer treino de guerranas fronteiras, se for esse o teu desejo.

— O coração impele-me para além das fronteirasde Doriath. Pois anseio mais por atacar o nosso inimigodo que por defender-me.

— Então deves fazê-lo sozinho — disse Thingol.— A participação do meu povo na guerra com Angband écontrolada por mim de acordo com o meu critério, Túrin,filho de Húrin. Nenhuma força de armas de Doriathmandarei para combate, nesta altura; nem em qualqueroutra que possa prever.

— No entanto, és livre para partir quando deseja-res, filho de Morwen — acrescentou a rainha. — A Cercade Melian não impede a partida daqueles que entraramcom a nossa autorização.

— A não ser que conselho sensato te contenha —disse Thingol.

— Qual é o vosso conselho, Senhor?— Um Homem pareces em estatura, e de fato és já

mais alto do que muitos. No entanto, ainda não atingiste aplenitude da idade viril que chegará. Até isso ser alcança-do, deves ser paciente, pôr à prova e treinar a tua força.Depois, talvez possas lembrar-te da tua família; é, porém,pouca a esperança de que um Homem só possa fazer maiscontra o Senhor Negro do que ajudar os Senhores Élficosa defender-se, por muito tempo que isso possa durar.

Túrin respondeu:

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— Beren, meu familiar, fez mais.— Beren e Lúthien — corrigiu Melian. — Mas és

por demais ousado ao falar assim ao pai de Lúthien. Não étão alto o teu destino, julgo, Túrin, filho de Morwen, em-bora haja grandeza em ti e a tua sorte esteja entrelaçadacom a do povo élfico, para o bem ou para o mal. Temcautela, se for para o mal. — Depois, após uma pausa,voltou a falar: — Agora vai, filho adotivo, e segue o con-selho do Rei. Esse será sempre mais sensato do que o teupróprio. Todavia, não creio que habites muito tempo co-nosco em Doriath após atingires a idade adulta. Se em diasfuturos te lembrares das palavras de Melian, será para teupróprio bem: receia sempre o calor e o frio do teu coraçãoe, se puderes, esforça-te para seres paciente.

Então, Túrin inclinou-se diante deles e saiu. E pou-co depois pôs o Elmo do Dragão, pegou em armas e par-tiu para as fronteiras setentrionais, onde se juntou aosguerreiros élficos que aí travavam guerra incessante contraos Orcs e todos os servos e criaturas de Morgoth. Assim,embora fosse pouco mais que um rapaz, a sua força e asua coragem foram provadas; e, lembrando-se dos errosdos seus familiares, esteve sempre à frente em atos de ou-sadia e recebeu muitos ferimentos de lança ou flecha, oudas lâminas perversas dos Orcs.

Mas o seu destino poupava-o à morte e correu apalavra pelas florestas, e constou para além de Doriath,que o Elmo do Dragão de Dor-lómin voltara a ser visto.Muitos foram os que se surpreenderam, e disseram: «Podeo espírito de algum homem regressar da morte? Ou teráHúrin de Hithlum escapado, de fato, dos abismos do In-ferno?»

Um apenas, entre os guardas das fronteiras de

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Thingol, era, nesse tempo, mais poderoso com as armasdo que Túrin: Beleg, Arco Forte. E Beleg e Túrin eramcompanheiros em todos os perigos e juntos penetravamfundo nas florestas selvagens.

Assim se passaram três anos e, durante esse tempo,Túrin raramente foi aos palácios de Thingol. Deixara de sepreocupar com o seu aspecto ou com o seu vestuário, maso seu cabelo estava revolto e a cota de armas coberta poruma capa cinzenta manchada pelo tempo. Mas sucedeuque, no terceiro Verão após a sua partida, quando tinhavinte anos, por desejar algum repouso e necessitar de al-guns arranjos nas suas armas, dirigiu-se sem ser visto aMenegroth e, uma noite, entrou no palácio. Thingol nãose encontrava lá, pois ausentara-se para a Floresta Verdecom

Melian, como por vezes lhe aprazia no pino do Ve-rão. Túrin procurou um assento descuidadamente, poisestava cansado do caminho e com a cabeça cheia de pen-samentos, e por pouca sorte sentou-se numa mesa entreos anciãos do reino e no lugar onde Saeros tinha por hábi-to sentar-se. Saeros, entrando atrasado, enfureceu-se, con-vencido de que Túrin procedera inspirado pelo orgulho ecom a intenção de o afrontar. E a sua cólera não abrandouquando viu que Túrin não era repreendido pelos que aliestavam sentados, mas antes bem-vindo como alguémdigno de se sentar entre eles. Por momentos, assim, Sae-ros fingiu partilhar o mesmo sentimento e sentou-se nou-tro lugar, defronte de Túrin.

— É raro o guarda das marcas honrar-nos com asua companhia — disse — e de bom grado cedo o meulugar habitual em troca da oportunidade de falar com ele.

Mas Túrin, que conversava com Mablung, o Caça-

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dor, não se levantou e limitou-se a responder com um se-co «Obrigado».

Então Saeros crivou-o com perguntas a respeitodas notícias das fronteiras e o que fazia ele na floresta;mas embora as suas palavras parecessem amáveis, não po-dia haver equívoco quanto ao escárnio da sua voz. Húrinimpacientou-se, olhou em seu redor, e sentiu a amargurado exílio; e, apesar de toda a luz e riso dos salões élficos,os seus pensamentos voltaram-se para Beleg e a vida deambos nas florestas, e depois para mais longe ainda, paraMorwen em Dor-lómin, na casa do seu pai. Franziu a tes-ta, levado pela tristeza dos seus pensamentos, e não res-pondeu a Saeros. Convencido de que o franzir de testa lheera destinado, Saeros deixou de conter a cólera e, pegandonum pente de ouro, atirou-o para o outro lado da mesa, àfrente de Túrin, e gritou:

— Homem de Hithlum, viestes sem dúvida apres-sado para esta mesa e podeis ser desculpado pela vossacapa esfarrapada; mas aqui não há necessidade de deixar acabeça desgrenhada como um matagal de silvas. E é pos-sível que, tendo as orelhas descobertas, ouvísseis melhor oque vos é dito.

Túrin não respondeu, mas havia um brilho nas tre-vas do olhar que lançou a Saeros. Este, porém, ignorou aadvertência e devolveu o olhar com desdém, dizendo, demodo que todos ouvissem:

— Se os Homens de Hithlum são tão selvagens edesgrenhados, de que espécie serão as mulheres dessa ter-ra? Correm como gamos envoltas apenas nos seus cabe-los?

Então Túrin pegou numa taça e arremessou-a aorosto de Saeros, que caiu para trás com grande dor; e de-

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sembainhou a espada e teria avançado para ele se Mablungo não detivesse. Saeros levantou-se, cuspiu sangue para amesa e falou o melhor que foi capaz com a boca ferida:

— Quanto tempo abrigaremos este selvagem dafloresta? Quem manda aqui esta noite ? A lei do Rei é pe-sada sobre aqueles que ferem os seus vassalos no palácioe, para aqueles que aí desembainham a espada, o mínimodos castigos é serem declarados bandidos. Fora do paláciopoderia responder-te, selvagem da floresta!

Mas a ira de Túrin esfriou quando viu sangue emcima da mesa e, com um encolher de ombros, soltou-se deMablung e saiu sem dizer palavra.

Então Mablung disse a Saeros:— Que bicho vos mordeu esta noite? Do mal que

aconteceu vos considero culpado e talvez a lei do Rei con-sidere uma boca ferida a retribuição justa pelo vosso es-cárnio.

— Se o fedelho se considera agravado, que expo-nha a queixa ao critério do Rei. Mas desembainhar espa-das, aqui, não é desculpado por semelhante causa. Fora dopalácio, se o selvagem desembainhar a espada contra mim,matá-lo-ei.

— Poderia acontecer o contrário — rebateu Ma-blung. — Mas, se qualquer de vós for morto, será uma máação mais própria de Angband do que de Doriath e malmaior daí resultará. Em verdade, sinto que alguma sombrado Norte se estendeu para nos tocar esta noite. Cuidai,Saeros, não acabeis por fazer a vontade a Morgoth, novosso orgulho, e lembrai-vos de que pertenceis aos Eldar.

— Não o esqueço — respondeu Saeros, mas a suaira não acalmou e, durante a noite, o seu rancor cresceu,aumentando-lhe o orgulho ferido.

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De manhã, saiu ao caminho de Túrin, quando estepartia de Menegroth com a intenção de regressar às mar-cas. Túrin percorrera apenas uma curta distância quandoSaeros correu para ele, nas suas costas, de espada desem-bainhada e escudo no braço. Mas, treinado na selva paraser prudente, Túrin viu-o pelo canto do olho e, saltandopara o lado, empunhou rapidamente a espada e voltou-separa o inimigo. «Morwen!», gritou, «agora o vosso zomba-dor pagará pelo seu escárnio!» E fendeu o escudo de Sae-ros e depois lutaram ambos com lâminas velozes. MasTúrin passara muito tempo numa dura escola e tornara-setão ágil como qualquer elfo, porém mais forte. Não tardoua levar vantagem e, ferindo o braço de Saeros que empu-nhava a espada, deixou-o à sua mercê. Depois pisou a es-pada que o adversário deixara cair e disse:

— Saeros, há uma longa corrida à vossa frente e asroupas serão um obstáculo; o cabelo terá de vos bastar.

E, atirando-o subitamente para o chão, despiu-o eSaeros sentiu a grande força de Túrin e teve medo. MasTúrin deixou-o levantar-se e depois gritou:

— Correi, correi, zombador de mulheres! Correi!Pois a não ser que sejais veloz como os gamos, picar-vos-ei pela retaguarda.

Encostou a ponta da espada às nádegas de Saerosque, aterrorizado, fugiu para a floresta gritando desespera-damente por socorro. Mas Túrin seguiu-o como um cãode caça e, por muito que ele corresse, ou se esquivasse, aespada estava atrás, para o incitar.

Os gritos de Saeros atraíram muitos outros para aperseguição, os quais o seguiram, mas somente os maisvelozes conseguiam acompanhar o ritmo dos corredores.Mablung ia à frente dos que tinham acorrido e sentia a

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mente perturbada, pois embora a provocação lhe tivesseparecido má, «a maldade que desperta de manhã é o júbilode Morgoth antes da noite»; e era considerado ofensivosujeitar qualquer elfo à vergonha, de livre vontade, sem oassunto ser levado a julgamento. Ninguém sabia, nessaaltura, que Húrin fora atacado primeiro por Saeros, que oteria morto.

— Parai, parai, Túrin — gritou. — Isso é trabalhode Orc nas florestas!

— Trabalho de Orc houve antes; isto é apenasbrincadeira de Orc — gritou Túrin em resposta.

Antes de Mablung falar, ele estivera prestes a soltarSaeros, mas agora, com um grito, correu de novo atrásdele; e Saeros, por fim sem esperança de ajuda e julgandoa morte bem perto atrás de si, continuou a correr desvai-radamente até chegar, de súbito, a um rebordo onde umacorrente que alimentava o Esgalduin passava numa fendaprofunda entre rochedos altos, com largura para um saltode veado. No seu terror, Saeros tentou o salto, mas per-deu o pé no lado oposto, caiu para trás com um grito edespedaçou-se numa grande pedra, na água. Assim termi-nou a sua vida em Doriath e por muito tempo Mandos oreteria.

Túrin olhou para baixo, viu o corpo caído na cor-rente, e pensou: «Infeliz idiota! Daqui o teria deixado re-gressar a Menegroth. Agora fez abater-se sobre mim umaculpa imerecida.» Voltou-se e olhou sombriamente paraMablung e para os seus companheiros, que se tinham a-proximado e estavam agora perto dele, no rebordo. Apósum silêncio, Mablung disse, em tom grave:

— Que tragédia! Regressai agora conosco, Túrin,pois o Rei deve julgar estes atos.

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Mas Túrin respondeu:— Se o Rei fosse justo, considerar-me-ia inocente.

Mas não era este um dos seus conselheiros? Porque have-ria um rei justo de escolher para amigo um coração per-verso? Renego a sua lei e o seu julgamento.

— As vossas palavras são por demais altivas — ob-servou Mablung, embora se compadecesse do jovem. —Aprendei a ser sensato! Não vos torneis um fugitivo. Ro-go-vos que regresseis comigo, como amigo. E há outrastestemunhas. Quando o Rei souber a verdade, podereiscontar com o seu perdão.

Mas Túrin estava cansado dos salões élficos e temiaser feito cativo; por isso, disse a Mablung:

— Recuso o vosso convite. Não pedirei o perdãodo Rei Thingol por nada, e parto agora para onde a suacondenação não poderá alcançar-me. Tendes apenas duasescolhas: deixar-me partir livre ou matar-me, se isso esti-ver de acordo com a vossa lei. Sois muito poucos para meapanhardes vivo.

Viram, pelo fogo do seu olhar, que as suas palavraseram verdadeiras e deixaram-no ir.

— Uma morte é suficiente — disse Mablung.— Eu não a quis, mas não a lamentarei — respon-

deu Túrin. — Que Mandos o julgue com justiça e que, sealguma vez regressar às terras dos vivos, ele saiba mostrar-se mais sensato. Ficai bem!

— Ficai livre! — disse Mablung. — Pois esse é ovosso desejo. Dizer bem seria inútil, se seguis neste cami-nho. Há uma sombra sobre vós. Que ela não seja maisescura, quando voltarmos a encontrar-nos.

Túrin não respondeu, mas deixou-os e afastou-serapidamente, sozinho, ninguém sabia para onde.

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Diz-se que, quando Túrin não regressou às marcasdo Norte nem dele chegaram quaisquer notícias, BelegArco Forte foi pessoalmente procurá-lo a Menegroth e,com o coração pesado, tomou conhecimento dos atos eda fuga de Túrin. Pouco depois, Thingol e Melian regres-saram aos seus palácios, pois o Verão ia no fim, e quandoo Rei ouviu o que acontecera disse: «Este é um assuntograve que preciso de conhecer no seu todo. Embora Sae-ros, meu conselheiro, tenha sido morto, e Túrin, meu fi-lho adotivo tenha fugido, amanhã sentar-me-ei no tronodo julgamento e ouvirei de novo tudo, pela devida ordem,antes de pronunciar a minha sentença.»

No dia seguinte, o Rei sentou-se no trono, na suacorte, rodeado por todos os chefes e anciãos de Doriath.Então foram ouvidas muitas testemunhas e, destas, Ma-blung foi quem mais falou e com maior clareza. E quandoreferiu a discussão havida à mesa, pareceu ao Rei que ocoração de Mablung pendia para Túrin.

— Falais como amigo de Túrin filho de Húrin? —perguntou Thingol.

— Amigo fui, mas amo mais, e há mais tempo, averdade. Ouvi-me até ao fim, Senhor!

Depois de tudo dito até às palavras de despedida deTúrin, Thingol suspirou, olhou para os que estavam sen-tados diante dele e disse:

— Ai de mim, vejo uma sombra nos vossos rostos.Como se insinuou ela no meu reino? A maldade está aatuar aqui. Considerava Saeros fiel e sensato, mas se eleestivesse vivo sentiria a minha cólera, pois o seu escárniofoi maldoso e considero-o culpado de tudo quanto acon-teceu no palácio. Até aqui, Túrin tem o meu perdão. Masnão posso ignorar os seus atos posteriores, quando a ira

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deveria ter arrefecido. A humilhação de Saeros e a suaperseguição até à morte foram males maiores do que aofensa. Revelam um coração duro e orgulhoso.

Thingol ficou um momento sentado, a pensar, epor fim disse, tristemente:

— Este é um filho adotivo ingrato e na verdade umHomem demasiado orgulhoso para a sua condição. Comopoderei continuar a albergar alguém que desdenha da mi-nha lei ou perdoar a quem não se arrependerá? Eis a mi-nha sentença: banirei Túrin de Doriath. Se ele procurarentrar, será levado a julgamento perante mim e enquantonão rogar por perdão a meus pés não voltará a ser meufilho. Se algum dos presentes considera injusta a sentença,que o diga agora!

Reinou o silêncio no salão e Thingol levantou amão para pronunciar a sua sentença. Mas, nesse momen-to, Beleg entrou apressadamente e gritou:

— Senhor, posso falar?— Chegais atrasado. Não fostes convocado como

os outros?— Na verdade fui, Senhor, mas sofri um atraso en-

quanto procurava alguém que conhecia. Agora trago-vos,finalmente, uma testemunha que deve ser ouvida, antesque a vossa sentença seja proclamada.

— Foram convocados todos quantos tinham algu-ma coisa a dizer. — respondeu o Rei. — Que pode a tes-temunha dizer agora de mais peso do que aqueles a quemescutei?

— Julgareis quando ouvirdes. Concedei-me essamercê, se alguma vez mereci o vosso favor.

— Concedida está — respondeu Thingol.Então Beleg saiu e voltou trazendo pela mão a jo-

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vem Nellas, que vivia nas florestas e nunca entrava emMenegroth. E ela sentiu-se receosa, tanto do grande salãocheio de colunas e do telhado de pedra como da presençados muitos olhos que a observavam. E quando Thingollhe pediu que falasse, disse:

— Senhor, eu estava sentada numa árvore... — masdepois hesitou, temerosa do Rei, e não conseguiu dizermais nada.

Perante isto, o Rei sorriu e disse:— Já outros o fizeram também, mas não sentiram

necessidade de mo dizer.— Sim, de fato — concordou ela, encorajada pelo

sorriso.— Até Lúthien! E nela estava eu a pensar naquela

manhã, assim como em Beren, o Homem.Thingol não deu resposta e deixou de sorrir, mas

esperou que Nellas voltasse a falar.— Pois Túrin lembrava-me de Beren — disse ela,

por fim.— São parentes, segundo me disseram, e alguns

conseguem ver esse parentesco: alguns que olhem de per-to.

Thingol impacientou-se.— E possível que assim seja. Mas Túrin, filho de

Húrin, partiu, desfeiteando-me, e não mais o verás paraavaliar o seu parentesco. Pois agora proferirei a minhasentença.

— Senhor Rei! — exclamou a rapariga. — Tendepaciência comigo e deixai-me falar primeiro. Eu estavasentada numa árvore, a ver Túrin afastar-se, e foi entãoque vi Saeros sair da floresta com espada e escudo e lan-çar-se de surpresa contra ele.

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Soou um murmúrio no salão e o Rei ergueu a mãoe disse:

— Trazes aos meus ouvidos notícias mais gravesdo que pareciam prováveis. Tem tento agora em tudo oque disseres, pois este é um tribunal de condenação.

— Assim me disse Beleg — respondeu ela —, e sópor isso ousei vir aqui, para que Túrin não seja errada-mente julgado. Ele é valente, mas também é misericordio-so. Eles lutaram, Senhor, esses dois, até que Túrin despo-jou Saeros de escudo e espada, mas não o matou. Nãocreio, por isso, que ele desejasse a sua morte, no fim. SeSaeros foi humilhado, foi humilhação que mereceu.

— Quem julga sou eu — lembrou Thingol. — Maso que disseste influenciará o meu julgamento. — Depoisinterrogou-a minuciosamente e por fim voltou-se paraMablung, dizendo:

— É estranho que Túrin não vos tenha dito nadadisto.

— E, todavia, não disse, pois de contrário eu tê-lo-ia contado. E de modo diferente lhe teria falado quandonos separamos.

— E diferente será agora a minha sentença — disseo Rei.

— Escutai-me! Qualquer culpa que possa ser atri-buída a Túrin agora perdôo, pois considero-o afrontado eprovocado. E como foi de fato, como ele disse, um mem-bro do meu conselho que assim o maltratou, não terá Tú-rin de procurar o este perdão, mas serei eu que lho envia-rei, onde quer que possa ser encontrado; e convidá-lo-ei aregressar com honra aos meus salões.

Mas, quando a sentença foi pronunciada, Nellas su-bitamente chorou.

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— Onde poderá ele ser encontrado? — perguntou.— Deixou a nossa terra e o mundo é vasto.

— Será procurado — respondeu Thingol, levan-tando-se. Então Beleg levou Nellas de Menegroth e disse-lhe:

— Não chores, pois se Túrin está vivo e ainda ca-minha por outras terras, eu o encontrarei, mesmo que to-dos os outros o não consigam.

No dia seguinte, Beleg compareceu perante Thingole Melian e o Rei disse-lhe:

— Aconselhai-me, Beleg, pois sinto-me pesaroso.Acolhi o filho de Húrin como meu filho e assim ele per-manecerá, a não ser que o próprio Húrin regresse dassombras para reclamar o que é seu. Não queria que se dis-sesse que Túrin foi injustamente forçado a ir para as terrasselvagens e de bom grado lhe daria as boas-vindas, se elevoltasse, pois o amei muito.

— Dai-me permissão, Senhor — pediu Beleg —, eem vosso nome repararei esta injustiça, se estiver ao meualcance. Pois uma virilidade como a que ele prometia nãodeveria ser reduzida a nada nas terras selvagens. Doriathprecisa dele, e essa necessidade tornar-se-á ainda maior. Eeu também o amo.

Então Thingol disse a Beleg:— Agora tenho esperança na demanda! Parti com

os meus bons votos e, se o encontrardes, protegei-o e gui-ai-o como puderdes. Beleg Cúthalion, há muito que estaisna vanguarda da defesa de Doriath e por muitos feitos decoragem e sabedoria merecestes os meus agradecimentos.Acima de todos eles colocarei a descoberta de Túrin. Nes-ta despedida pedi o que quiserdes, pois não vos será nega-do.

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— Nesse caso, peço uma espada de valia, pois osOrcs atacam agora em grandes números e demasiado per-to para um arco apenas, e a lâmina de que disponho nãoestá à altura das armaduras deles.

— Escolhei entre todas as que possuo, excetuandoapenas Aranrúth, que é minha.

Então Beleg escolheu Anglachel, que era uma espa-da de grande fama e assim chamada por ter sido feita deferro caído do céu numa estrela incandescente. Fenderiatodo o ferro escavado do solo. Uma única espada a ela seequiparava na Terra Média. Essa espada não entra nestahistória, embora tenha sido feita do mesmo minério e pelomesmo ferreiro; esse ferreiro era Eöl, o Elfo Negro, quetomou como esposa Aredhel, irmã de Turgon. Ele deuAnglachel a Thingol como paga, o que lamentou, por odeixar viver em Nan Elmoth; mas a outra espada, Angui-rel, sua igual, guardou-a para si, até lhe ser roubada porMaeglin, seu filho.

Mas quando Thingol voltou o punho da Anglachelpara Beleg, Melian olhou para a lâmina e disse:

— Há malignidade nessa espada. O coração do fer-reiro ainda habita nela, e esse coração é negro. Ela nãoamará a mão que serve nem permanecerá muito tempoconvosco.

— Apesar disso, empunhá-la-ei enquanto puder —respondeu Beleg; e, agradecendo ao rei, pegou na espada epartiu.

Muito longe de Beleriand e através de muitos peri-gos procurou em vão notícias de Túrin. E esse Invernopassou, e também a Primavera.

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CAPÍTULO VI

TÚRIN ENTRE OS BANDIDOS

Agora a história volta-se de novo para Túrin. Jul-gando-se um proscrito a quem o Rei perseguiria, não vol-tou para junto de Beleg nas marcas setentrionais de Doria-th; partiu antes para oeste e, saindo secretamente do Rei-no Guardado, chegou aos bosques a sul do Teiglin. Aí,antes da Nirnaeth, muitos homens tinham vivido em her-dades dispersas. Pertenciam na sua maioria ao povo deHaleth, mas não tinham nenhum senhor e viviam da caça,da criação de animais e da agricultura, criando porcos nasterras da bolota e amanhando clareiras da floresta, prote-gidas do mato por cercas. Mas agora quase tudo estavadestruído, quase todos tinham fugido para Brethil e a regi-ão vivia sob o medo dos Orcs e de bandidos. Pois, nessetempo de ruína, homens sem teto e desesperados envere-

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davam por maus caminhos: sobreviventes de combates ederrotas, e de terras deixadas ao abandono; e alguns eramhomens impelidos para os matos por atos criminosos. Ca-çavam e colhiam o que podiam para comer, mas muitosdedicaram-se ao roubo e tornaram-se cruéis, quando afome ou outras necessidades os forçaram. No Invernoeram muito de temer, como se fossem lobos, e Gaurwaith,homens-lobos, lhes chamavam aqueles que ainda defendi-am as suas casas. Cerca de sessenta destes homens ti-nham-se reunido num bando e vagueavam pelas florestaspara lá das marcas ocidentais de Doriath. Pouco menosodiados do que os Orcs eram, pois havia entre eles rene-gados de coração empedernido, ressentidos contra a suaprópria espécie.

O mais duro de coração chamava-se Andróg, quefora expulso de Dor-lómin por ter assassinado uma mu-lher, e outros também provinham dessa terra: o idoso Al-gund, o mais velho da irmandade, que fugira da Nirnaeth,e Forweg, como a si mesmo se chamava, um homem decabelo claro e cintilantes olhos inquietos, forte e ousado,mas havia muito arredado dos costumes dos Edain dopovo de Hador. Porém, às vezes ainda conseguia ser sen-sato e generoso e era o capitão da irmandade. Entretanto,tinham ficado reduzidos a cinqüenta homens, em conse-qüência de mortes em atribulações ou rixas, e haviam-setornado cautelosos, rodeando-se de batedores ou de vigi-as, quer estivessem em movimento, quer parados. Por issodepressa tiveram conhecimento da presença de Túrin,quando ele se transviou e foi parar aos seus antros. Segui-ram-no e formaram um círculo à sua volta, de modo que,subitamente, quando ele desembocou numa clareira aolado de um regato, deu consigo rodeado por um círculo de

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homens com arcos retesados e espadas desembainhadas.Túrin parou, mas não mostrou medo.— Quem são vocês? Pensava que só os Orcs em-

boscavam homens, mas verifico que estava enganado.— Podes lamentar o teu engano — respondeu

Forweg —, pois estes são os nossos valhacoutos e osmeus homens não permitem que outros homens por elesandem. Tiramos-lhes a vida como penhor, a não ser quepossam resgatá-la. Então Túrin riu-se tristemente.

— Não obterão nenhum resgate de mim, pois souum proscrito e um fora-da-lei. Podem revistar-me quandoestiver morto, mas arriscam-se a pagar um preço elevadose quiserem verificar as minhas palavras. É provável quemuitos de vocês morram primeiro.

Apesar disso, a sua morte parecia-lhe próxima, poismuitas setas estavam aprontadas, à espera da ordem docapitão, e embora Túrin usasse cota de malha élfica porbaixo da túnica e da capa cinzentas, algumas encontrariamum ponto vulnerável e mortífero. Nenhum dos seus ini-migos estava ao alcance de um salto com espada desemba-inhada. Mas, de súbito, Túrin inclinou-se, pois vira algu-mas pedras na beira do regato, diante dos seus pés. Nessemomento, um bandido, furioso com as suas palavras alti-vas, soltou uma flecha direita ao seu rosto, mas passou-lhepor cima e Túrin voltou a endireitar-se como uma cordade arco desprendida e arremessou a pedra ao frecheiro,com grande força e pontaria certeira, e o homem caiu nochão com o crânio fraturado.

— Poderei ser-lhes mais útil vivo, no lugar daqueleinfortunado homem — disse Túrin; e, voltando-se paraForweg, acrescentou: — Se és o capitão, não devias per-mitir que os teus homens disparassem sem tua ordem.

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— E não permito — respondeu Forweg —, masele foi repreendido bem depressa. Ficarei contigo no lugardele, se acatares melhor as minhas ordens.

— Acatarei, enquanto fores capitão e em tudo oque compete a um capitão. Mas a escolha de um homemnovo para uma irmandade não cabe apenas a ele, julgo.Todas as vozes devem ser ouvidas. Há aqui alguém quenão me aceite de bom grado?

Dois dos bandidos pronunciaram-se contra ele,sendo um deles amigo do homem que caíra. Chamava-seUlrad.

— Matar um dos nossos melhores homens é umaestranha maneira de entrar para uma irmandade!

— Não sem provocação — disse Túrin. — Masvenham! Enfrentarei os dois juntos, com armas ou apenascom a força. Assim verão se sou capaz de substituir umdos vossos melhores homens. Mas se houver arcos nestaprova, então devo também ter um.

Avançou na direção deles, mas Ulrad recuou e nãoquis lutar. O outro largou o arco e caminhou ao encontrode Túrin. Este homem era Andróg, de Dor-lómin. Paroudiante de Túrin e mediu-o de alto a baixo.

— Não — disse por fim, abanando a cabeça. —Não sou um poltrão, como os homens sabem; mas nãoestou à tua altura. Não há aqui ninguém que esteja, pare-ce-me. Por mim, podes juntar-te a nós. Mas há uma estra-nha luz nos teus olhos; és um homem perigoso. Como techamas?

— Neithan, o Ofendido, a mim mesmo chamo —respondeu Túrin, e Neithan passou então a ser chamadopelos bandidos; mas, embora alegasse ter sido vítima deinjustiça (e a quem reclamasse o mesmo ele sempre ofere-

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cesse um ouvido atento), nada mais revelaria a respeito dasua vida ou da sua casa. No entanto, eles perceberam quedescera de alta condição e que, apesar de não ter mais doque as suas armas, estas tinham sido feitas por ferreirosélficos.

Depressa conquistou os seus louvores, pois era for-te e valente e mais hábil nas florestas do que eles, assimcomo mereceu a sua confiança, pois não era ambicioso epouco pensava em si mesmo; temiam-no, porém, devidoàs suas cóleras inopinadas, que raramente compreendiam.

Não podia regressar a Doriath, ou por orgulho nãoo faria, e em Nargothrond, desde a queda de Felagund, aninguém era permitido entrar. Para o povo inferior de Ha-leth, em Brethil, não se dignava a ir e para Dor-lómin nãose atrevia, pois estava densamente sitiada e nenhum ho-mem sozinho poderia, naquele tempo, ter esperança deatravessar os desfiladeiros das Montanhas da Sombra. Porconseguinte, Túrin ficou com os bandidos, pois a compa-nhia de quaisquer homens tornava as atribulações dos er-mos mais fáceis de suportar; e porque queria viver e nãopodia estar sempre em conflito com eles, pouco fazia paraconter as suas más ações. Não tardou, assim, a tornar-seinsensível a uma vida mesquinha e não raro cruel, embora,de vez em quando, a compaixão e a repulsa despertassemnele e então a sua cólera o tornasse perigoso. Deste modoperverso e perigoso viveu até ao fim daquele ano, passan-do pela carência e pela fome do Inverno, até à chegada deuma branda Primavera.

Ora, como foi dito, nas florestas de Teiglin aindahavia algumas terras de Homens, resolutos e cautelosos,embora o seu número fosse agora reduzido. Apesar denão gostarem nada deles e de pouco se compadecerem, no

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pino do Inverno colocavam a comida de que podiam dis-por onde os Gaurwaith a pudessem encontrar, esperandoassim evitar o ataque dos bandos de famintos. Mas issogranjeava-lhes menos gratidão da parte dos bandidos doque a recebida de animais e pássaros, e eles eram maisprotegidos pelos seus cães e pelas suas cercas. Pois cadapropriedade tinha grandes cercas à volta da terra desbra-vada e junto das casas havia um fosso e uma paliçada, etambém havia caminhos de propriedade para propriedadee os homens podiam pedir ajuda servindo-se de toques detrombetas.

Mas, quando a Primavera chegava, tornava-se peri-goso para os Gaurwaith permanecerem tão perto das ca-sas dos homens da floresta, os quais podiam unir-se e per-segui-los. Por isso, Túrin sentia-se intrigado por Forwegos não levar dali. Havia mais comida, e mais caça e menosperigo, para sul, onde não restavam Homens. Até que umdia deu pela falta de Forweg e também de Andróg, seuamigo, e perguntou onde estavam, mas os seus compa-nheiros riram-se.

— Suponho que foram tratar de assuntos pessoais— disse Ulrad. — Não tardarão a voltar e então partire-mos. Apressadamente, talvez, pois teremos sorte se nãotrouxerem as abelhas das colméias atrás deles.

O sol brilhava e as jovens folhas recentes estavamverdes, e Túrin, irritado com o miserável acampamentodos bandidos, afastou-se sozinho e embrenhou-se na flo-resta. Contra a sua vontade, lembrou-se do Reino Escon-dido, e pareceu-lhe ouvir os nomes das flores de Doriathcomo ecos de uma quase esquecida língua antiga. Mas,subitamente, ouviu gritos e viu uma jovem mulher sair acorrer de um bosque de avelaneiras. Tinha o vestuário

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rasgado por espinhos, estava muito amedrontada e, trope-çando, caiu a ofegar no chão. Então Túrin saltou na dire-ção do bosque, com a espada desembainhada, e derrubouum homem que irrompeu das avelaneiras na sua persegui-ção. Só no próprio momento em que desferiu o golpe viuque era Forweg.

Mas, enquanto olhava, espantado, para o sangueque cobria a erva, Andróg apareceu e estacou, também eleespantado.

— Mau trabalho, Neithan! — gritou, e desembai-nhou a espada.

Mas o ímpeto de Túrin esfriou e ele perguntou aAndróg:

— Afinal, onde estão os Orcs? Ultrapassaste-os pa-ra a ajudar?

— Orcs? — repetiu Andróg. — Idiota! Intitulas-tetu bandido, mas os bandidos não conhecem lei alguma anão ser as suas próprias necessidades. Cuida das tuas, Nei-than, e deixa-nos cuidar das nossas.

— Assim farei — disse Túrin. — Mas hoje os nos-sos caminhos cruzaram-se. Ou deixas a mulher comigo,ou vais fazer companhia a Forweg.

Andróg riu-se.— Se assim queres, faz a tua vontade. Sei que, so-

zinho, não estou à tua altura, mas os nossos companheirosnão verão esta morte com bons olhos.

Então a mulher levantou-se e pôs a mão no braçode Túrin. Olhou para o sangue e depois para Túrin, e ha-via deleite nos seus olhos.

— Matai-o, Senhor! Matai-o também. E depois a-companhai-me. Se levardes as cabeças deles, Larnach, meupai, não ficará desagradado. Por duas «cabeças de lobo» já

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deu boas recompensas a homens.Mas Túrin perguntou a Andróg:— É longe, a casa dela?— Uma milha, mais ou menos, numa pequena her-

dade cercada, além. Ela afastou-se para longe.— Ide então, e depressa — disse Túrin, voltando-

se de novo para a mulher. — Dizei ao vosso pai que vosguarde melhor. Mas eu não cortarei as cabeças dos meuscompanheiros para comprar o favor dele, ou qualquer ou-tra coisa.

Depois levantou a espada e disse a Andróg:— Regressemos. Mas, se desejas sepultar o teu ca-

pitão, tu mesmo terás de o fazer. Apressa-te, pois podelevantar-se alarido. Traz as suas armas!

A mulher afastou-se pelo meio do arvoredo e olhoumuitas vezes para trás, antes de as árvores a ocultarem.Túrin seguiu o seu caminho sem mais palavras e Andrógviu-o afastar-se e franziu a testa, como se quisesse deslin-dar um enigma.

Quando voltou ao acampamento dos bandidos, Tú-rin encontrou-os agitados, pois já estavam há muito tem-po no mesmo lugar, perto de propriedades bem guarda-das, e murmuravam contra Forweg.

— Ele corre riscos à nossa custa — diziam. — Eoutros poderão ter de pagar pelos seus prazeres.

— Então escolham um novo capitão — aconse-lhou Túrin, parado diante deles. — Forweg não os podecomandar mais, pois está morto.

— Como sabes isso? — perguntou Ulrad. — Pro-curaste mel na mesma colméia? As abelhas picaram-no?

— Não — respondeu Túrin. — Uma picada bas-tou. Eu matei-o. Mas poupei Andróg, que regressará em

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breve.Depois contou tudo quanto fora feito e repreendeu

aqueles que cometiam tais ações; ainda estava a falarquando Andróg voltou, trazendo as armas de Forweg.

— Olha, Neithan! — exclamou. — Não foi dadoqualquer alarme. Talvez ela espere encontrar-te de novo.

— Se troças de mim — respondeu Túrin —, arre-pender-me-ei de lhe ter negado a tua cabeça. Conta a tuahistória e sê breve.

Então Andróg contou, com veracidade, tudo quan-to acontecera.

— Pergunto-me agora que assunto tinha Neithan atratar ali. Não me parece que estivesse relacionado conos-co, pois quando cheguei já ele matara Forweg. A mulherficou encantada com isso e ofereceu-se para ir com ele,pedindo as nossas cabeças como dote de noiva. Mas elenão a quis e mandou-a embora depressa. Por isso, nãofaço idéia do que tinha ele contra o capitão. Deixou a mi-nha cabeça em cima dos meus ombros e por isso lhe estouagradecido, ainda que intrigado.

— Então nego que venham do povo de Hador,como alegam — declarou Túrin. — A Uldor, o Maldito,antes pertencem e deviam procurar servir a Angband. Masagora escutem-me! — gritou a todos eles. — Dou-lhes aescolher: devem aceitar-me como vosso capitão no lugarde Forweg ou deixar-me partir. Chefiarei esta irmandadeou deixá-la-ei. Mas, se quiserem matar-me, vamos a isso!Contra todos combaterei até morrer... ou morrerem vocês.

Foram muitos os homens que pegaram nas armas,mas Andróg gritou:

— Não! A cabeça que ele poupou não é tola. Se lu-tarmos, mais do que um morrerá escusadamente, antes de

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matarmos o melhor homem de entre nós. — Depois riu-se. — Como foi quando ele se juntou a nós, assim é denovo agora. Ele mata para arranjar espaço. Se deu bomresultado antes também poderá dar agora e talvez ele nosconduza a melhor sorte do que predar o lixo de outroshomens.

E o velho Algund disse:— O melhor homem de entre nós. Tempos houve

em que teríamos feito o mesmo, se ousássemos; mas es-quecemos muitas coisas. No fim, ele poderá conduzir-nosa casa.

Perante estas palavras, acudiu a Túrin o pensamen-to de que, a partir deste reduzido bando, talvez pudesseformar um pequeno senhorio para si próprio. Mas olhoupara Algund e Andróg e disse:

— A casa, dizem? Altas e frias se erguem no cami-nho as Montanhas da Sombra. Atrás delas está o povo deUldor e em volta delas as legiões de Angband. Se tais coi-sas os não intimidam, sete vezes sete homens, então pode-rei conduzi-los a caminho de casa. Mas até onde, antes demorrermos?

Ficaram todos em silêncio. Depois Túrin voltou afalar:

— Aceitam-me como capitão? Se aceitarem, con-duzi-los-ei primeiro para longe, nos ermos, longe das ca-sas dos homens. Aí poderemos encontrar melhor sorte;ou não. Mas pelo menos inspiraremos menos ódio aos danossa própria espécie.

Então, todos quantos pertenciam ao povo de Ha-dor se lhe juntaram e aceitaram-no como comandante; osoutros também concordaram, se bem que com menos boavontade. E, de imediato, ele conduziu-os para longe da-

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quela região.Muitos mensageiros haviam sido enviados por

Thingol para procurarem Túrin no interior de Doriath enas terras próximas das suas fronteiras; mas no ano da suafuga em vão o procuraram, pois ninguém sabia ou poderiaimaginar que se encontrasse com os bandidos e inimigosdos Homens. Chegado o Inverno, regressaram para juntodo Rei, com a única exceção de Beleg. Depois de todos osoutros partirem, ele prosseguiu, sozinho.

Mas em Dimbar e ao longo das fronteiras setentri-onais de Doriath as coisas tinham corrido mal. O Elmodo Dragão não voltara a ser visto por ali em combate e oArco Forte também desaparecera. Os servos de Morgothestavam, por isso, encorajados e cresciam sem parar emnúmero e ousadia. O Inverno chegou e passou e na Pri-mavera o seu ataque foi renovado: Dimbar foi devastada eos Homens de Brethil tiveram medo, pois o mal rondavaagora em todas as suas fronteiras, exceto no sul.

Decorrera quase um ano desde que Túrin partira eBeleg continuava a procurá-lo, cada vez com menos espe-rança. As suas deambulações levaram-no para norte, paraos Vaus do Teiglin, e aí, ouvindo más notícias de uma no-va incursão de Orcs a partir de Taur-nu-Fuin, voltou paratrás e quis o acaso que chegasse às casas dos Homens dasFlorestas pouco depois de Túrin ter deixado essa região.Aí ouviu uma estranha história que corria entre eles. UmHomem alto e imponente, ou um guerreiro elfo, diziamalguns, aparecera nas florestas, matara um dos Gaurwaithe salvara a filha de Larnach, que eles perseguiam.

— Muito altivo ele era — disse a filha de Larnach aBeleg —, com olhos brilhantes que quase não se dignarama olhar para mim. No entanto, chamou companheiros aos

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homens-lobos e não matou outro que se aproximou, econhecia o seu nome. Neithan, chamou-lhe ele.

— Conseguis deslindar este enigma? — perguntouLarnach ao Elfo.

— Infelizmente, consigo — respondeu Beleg. — OHomem de que falais é aquele que procuro. — E nadamais a respeito de Túrin disse aos Homens da Floresta;mas avisou-os a respeito de concentrações perigosas anorte. — Em breve os Orcs virão pilhar esta região, comforças demasiado grandes para que possais resistir-lhes.Este ano deveis, finalmente, renunciar à vossa liberdadeou às vossas vidas. Parti para Brethil enquanto é tempo!

Depois Beleg seguiu apressadamente o seu cami-nho e procurou os esconderijos dos bandidos, bem comosinais que pudessem indicar-lhe para onde tinham ido.Não tardou a encontrá-los, mas Túrin levava agora váriosdias de avanço e movia-se rapidamente, receando a perse-guição dos Homens da Floresta e recorrendo a todas asartes que conhecia para derrotar ou induzir em erro quemquer que tentasse segui-lo. Conduziu os seus homens paraoeste, para longe dos Homens da Floresta e das fronteirasde Doriath, até chegarem ao extremo setentrional dasgrandes terras altas que se erguiam entre os Vales do Siri-on e do Narog. Aí a terra era mais seca e a floresta termi-nava abruptamente na margem de uma cumeeira. Em bai-xo era possível ver a antiga Estrada do Sul, subindo dosVaus do Teiglin para continuar ao longo das bases ociden-tais das charnecas, a caminho de Nargothrond. Ali vive-ram os bandidos com todas as cautelas, durante algumtempo, raramente passando duas noites num acampamen-to e deixando poucos vestígios da sua partida ou da suapermanência. Foi por isso que o próprio Beleg os procu-

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rou em vão. Guiado por sinais que conseguia interpretar,ou por rumores da passagem de Homens por entre as coi-sas selvagens com as quais sabia falar, chegou muitas ve-zes perto, mas o seu covil estava sempre deserto quando oalcançava, pois eles mantinham uma vigilância de dia e denoite e ao mínimo sinal de aproximação partiam rapida-mente. «Ai de mim», lamentava-se Beleg, «bem de maisensinei a este filho de Homens as artes da floresta e doscampos! Quase se poderia pensar que se trata de um ban-do de Elfos.» Mas eles, pelo seu lado, aperceberam-se deque estavam a ser seguidos por algum perseguidor incan-sável que não conseguiam ver e, apesar disso, não podiamdespistar. E foram ficando intranqüilos.

Não muito tempo depois, como Beleg receara, osOrcs atravessaram o Brithiach e, deparando-se com toda aresistência que Handir de Brethil conseguiu opor-lhes,passaram para sul, pelos Vaus do Teiglin, em busca desaque. Muitos dos Homens da Floresta tinham seguido oconselho de Beleg e mandado as mulheres e as criançaspedir refúgio em Brethil. Estas e a sua escolta escaparam,passando pelos Vaus a tempo, mas os homens armadosque vinham atrás foram alcançados pelos Orcs e derrota-dos. Alguns conseguiram, lutando, abrir caminho e chegara Brethil, mas muitos foram mortos ou capturados. E osOrcs chegaram assim às propriedades, que pilharam e in-cendiaram. Depois, de repente, retrocederam para oeste,procurando a Estrada, pois era seu desejo voltarem o maisdepressa que pudessem ao norte com o seu saque e osseus cativos.

Mas os batedores dos bandidos não tardaram a a-perceber-se da sua proximidade e, embora pouco se im-portassem com os cativos, o saque dos Homens da Flo-

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resta aguçou-lhes a cobiça. Túrin considerou perigoso re-velarem-se aos Orcs antes de saberem quantos eram, masos bandidos não lhe deram ouvidos, pois nos ermos preci-savam de muitas coisas e alguns começavam já a lamentara sua chefia. Por isso, levando um chamado Orleg comoúnica companhia, Túrin avançou e foi espiar os Orcs. E,entregando o comando do bando a Andróg, recomendou-lhe que se mantivessem juntos e bem escondidos durantea sua ausência.

Ora, a hoste dos Orcs era muito maior do que aquadrilha de bandidos, mas estavam em terras aonde osOrcs raramente tinham ousado ir, e eles sabiam que, paralá da Estrada, ficava Talath Dirnen, a Planície Guardada,vigiada pelos batedores e espiões de Nargothrond. Teme-rosos do perigo, estavam inquietos e os seus batedoresinsinuaram-se através das árvores de cada lado das linhasem marcha. Foi assim que Túrin e Orleg foram descober-tos, pois três dos batedores tropeçaram neles, quando es-tavam escondidos, e apesar de terem morto dois o terceiroconseguiu escapar, gritando enquanto fugia: Golug! Go-lug! Este era o nome que davam aos Noldor. Ato contí-nuo, a floresta encheu-se de Orcs, que dispersaram silen-ciosamente e atacaram em todas as direções. Vendo que aesperança de escaparem era pequena, Túrin pensou emtentar, pelo menos, enganá-los e afastá-los para longe doesconderijo dos seus homens. Então, percebendo pelogrito de Golug! que eles receavam os espiões de Nargot-hrond, fugiu com Orleg para oeste. A perseguição não sefez esperar até que, por muitas voltas e fintas que tentas-sem, acabaram por ser corridos da floresta. Então foramdescobertos e, quando procuravam atravessar a Estrada,Orleg foi abatido por muitas flechas. Mas a cota de malha

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élfica salvou Túrin, que fugiu sozinho para as terras ermase, graças à sua velocidade e astúcia, enganou os inimigos epenetrou profundamente em terras que lhe eram desco-nhecidas. Depois, temendo que os Elfos de Nargothrondfossem alertados, os Orcs chacinaram os seus prisioneirose dirigiram-se apressadamente para o Norte.

Decorridos três dias sem que Túrin e Orleg tives-sem regressado, alguns dos bandidos quiseram partir dacaverna onde se encontravam escondidos; mas Andrógopôs-se. E enquanto estavam no meio desta discussão,surgiu-lhes de súbito à frente uma figura cinzenta. Belegencontrara-os, finalmente. Avançou sem armas nas mãose com as palmas voltadas para eles. Mas os bandidos salta-ram, assustados, e Andróg, indo por trás dele, atirou-lheum laço e apertou-o, de modo a imobilizar-lhe os braços.

— Se não desejam visitas, deviam ser mais vigilan-tes — lembrou Beleg. — Porque me recebem assim? Ve-nho como amigo e procuro apenas um amigo. Neithan,consta-me que assim o tratam.

— Não está aqui — respondeu Ulrad. — Mas, anão ser que há muito nos espies, como sabes esse nome?

— Há muito que ele nos espia — afirmou Andróg.— Esta é a sombra que nos tem seguido. Agora talvezfiquemos a conhecer o seu verdadeiro intento.

Ordenou-lhes então que amarrassem Beleg a umaárvore ao lado da caverna e, quando o tiveram bem presode pés e mãos, interrogaram-no. Mas a todas as perguntasBeleg deu apenas uma resposta:

— Tenho sido amigo desse Neithan desde que oencontrei pela primeira vez nas florestas, era ele então a-penas uma criança. Procuro-o somente por amizade e tra-go-lhe boas notícias.

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— Matemo-lo e livremo-nos da sua espionagem —disse Andróg, furioso, enquanto olhava para o grande arcode Beleg e o cobiçava, pois era um archeiro. Mas alguns decoração mais brando opuseram-se-lhe, e Algund disse-lhe:

— O capitão ainda pode regressar e, então, arre-pender-se-ão se ele souber que foi roubado, ao mesmotempo, de um amigo e de boas notícias.

— Não acredito na história deste Elfo — rebateuAndróg. — E um espião do Rei de Doriath. Mas se eletem, de fato, algumas notícias, que no-las conte; e nós jul-garemos se nos dão motivo para o deixar viver.

— Esperarei pelo vosso capitão — disse Beleg.— Ficarás aí até falares — decidiu Andróg.Depois, por sugestão de Andróg, deixaram-no a-

marrado à árvore sem comida nem água e sentaram-seperto a comer e a beber, mas ele não lhes disse mais nada.Decorridos dois dias e duas noites nessa situação, ficaramirritados e receosos, e estavam ansiosos por partir, e mui-tos deles sentiam-se agora dispostos a matar o Elfo.Quando a noite caía, estavam todos reunidos à sua volta eUlrad trouxe um tição da pequena fogueira que tinhamacendido à entrada da caverna. Mas nesse momento Túrinregressou. Aproximando-se silenciosamente, como era seucostume, manteve-se nas sombras para lá do anel doshomens e viu o rosto desfigurado de Beleg à luz da brasa.

Então foi como se tivesse sido atingido por umalança e, como que por um súbito degelo, as lágrimas haviamuito contidas encheram-lhe os olhos. Precipitou-se paraa árvore.

— Beleg! Beleg! — gritou. — Como chegaste atéaqui? E porque estás assim amarrado? — Num ápice, cor-tou as cordas que prendiam o amigo e Beleg caiu para a

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frente, nos seus braços.Quando ouviu tudo o que os homens quiseram di-

zer-lhe, ficou furioso e magoado; mas ao princípio a suaatenção concentrou-se apenas em Beleg. Enquanto o tra-tava valendo-se dos poucos conhecimentos que tinha,pensou na sua vida nas florestas e a cólera voltou-se con-tra si mesmo. Pois freqüentemente tinham sido mortosdesconhecidos, quando apanhados na proximidade dosantros dos bandidos, ou por eles emboscados, e não osimpedira; e não raro ele próprio dissera mal do Rei Thin-gol e dos Elfos Cinzentos, para poder partilhar da culpa,se eram tratados como inimigos. Depois voltou-se, comazedume, para os seus homens.

— Foram cruéis — disse-lhes — e cruéis sem ne-cessidade. Nunca até agora atormentamos um prisioneiro,mas a este trabalho de Orcs nos conduziu a vida que le-vamos. Ilegais e infrutíferos têm sido todos os nossos a-tos, servindo-nos apenas a nós e alimentando o ódio nosnossos corações.

Andróg, porém, rebateu:— Mas a quem serviremos, a não ser a nós pró-

prios ? A quem amaremos, se todos nos odeiam?— Pelo menos as minhas mãos não voltarão a er-

guer-se contra Elfos ou Homens — afirmou Túrin. —Angband já tem servos suficientes. Se outros não fizeremeste juramento comigo, partirei só.

Então Beleg abriu os olhos e ergueu a cabeça.— Só, não! — exclamou. — Agora posso final-

mente transmitir as minhas notícias. Não és nenhum ban-dido e Neithan é um nome impróprio. Qualquer falta quetenha sido achada em ti está perdoada. Durante um anofoste procurado, para seres restituído à honra e ao serviço

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do Rei. Há muito tempo que se sente a falta do Elmo doDragão.

Mas Túrin não demonstrou qualquer júbilo por taisnotícias e permaneceu muito tempo em silêncio, pois aspalavras de Beleg tinham feito descer de novo uma som-bra sobre ele.

— Deixemos passar esta noite — disse, por fim. —Então escolherei. Mas, seja qual for a escolha, temos deabandonar este esconderijo amanhã, pois nem todos osque nos procuram nos desejam bem.

— Não, nem todos — concordou Andróg, e lan-çou um olhar maligno a Beleg.

De manhã, Beleg, rapidamente sarado das suas do-res, como acontecia com os Elfos de antigamente, falou asós com Túrin.

— Esperava que as minhas notícias causassem maisalegria. Por certo regressarás agora a Doriath? — E talrogou a Túrin de todos os modos que pôde, mas, quantomais o instigava, mais Túrin hesitava. Apesar disso, inter-rogou insistentemente Beleg acerca da sentença de Thin-gol. Beleg contou-lhe tudo quanto sabia e, por fim, Túrindisse:

— Então Mablung provou ser meu amigo, comoantes parecia?

— Provou, antes, ser amigo da verdade e, no fim,isso foi melhor, embora a sentença tivesse sido menosjusta não fora o testemunho de Nellas. Porquê, Túrin,porquê, porque não contaste a Mablung o ataque de Sae-ros ? De modo muito diferente poderiam as coisas ter cor-rido. E — acrescentou, olhando para os homens estiraça-dos perto da entrada da caverna — poderias ter mantido oteu elmo ainda alto, e não caído a este ponto.

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— Talvez, se caído lhe chamas — respondeu Túrin.— Talvez. Mas aconteceu assim e as palavras ficaram-mepresas na garganta. Havia censura nos olhos dele, sem quequalquer pergunta me tivesse sido feita, por um ato quenão tinha cometido. O meu coração de Homem era orgu-lhoso, como o Rei Elfo disse. E assim continua a ser, Be-leg Cúthalion. Ainda não tolerará que eu regresse a Mene-groth e suporte olhares de piedade e perdão, como se fos-se um rapaz caprichoso que se emendou. Eu devia ter ofe-recido perdão, em vez de o receber. E já não sou um ra-paz, mas sim um homem, conforme a minha espécie. Eum homem endurecido pelo meu destino. Beleg sentiu-seperturbado.

— O que farás, então?— Serei livre — respondeu Túrin. — Tal me dese-

jou Mablung quando nos separamos. Suponho que a graçade Thingol não irá ao ponto de receber estes companhei-ros da minha queda, mas eu não me separarei deles agora,se eles não quiserem separar-se de mim. Amo-os à minhamaneira, até mesmo, um pouco, aos piores. São da minhaespécie e há em cada um algo de bom que poderá frutifi-car. Creio que ficarão do meu lado.

— Vês com olhos diferentes dos meus. Se tentaresdesabituá-los do mal, desiludir-te-ão. Duvido deles, e deum mais do que de todos os outros.

— Como pode um Elfo ser juiz de Homens? —perguntou Túrin.

— Como é juiz de todos os atos, seja quem for queos cometa — respondeu Beleg, mas não mencionou ne-nhum nome nem falou da maldade de Andróg, a quem sedeviam os maus tratos que sofrera. Pois, compreendendoa disposição de Túrin, receava não ser acreditado e preju-

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dicar a antiga amizade de ambos, impelindo Túrin para osseus maus caminhos. — Ser livre, dizes, Túrin, meu amigo— acrescentou. — Que queres dizer com isso?

— Conduzirei os meus próprios homens e travareiguerra à minha maneira — respondeu Túrin. — Mas nu-ma coisa, pelo menos, o meu coração mudou: arrependo-me de todos os golpes que infligi exceto daqueles que ti-veram como alvo o Inimigo dos Homens e dos Elfos. E,acima de tudo, gostaria de te ter ao meu lado. Fica comi-go!

— Se ficasse ao teu lado, seria o sentimento que menortearia, não a sensatez — disse Beleg. — O meu cora-ção diz-me que devíamos regressar a Doriath. Em qual-quer outro lugar, há uma sombra à nossa frente.

— Apesar disso, não irei para lá.— Lamento — disse Beleg. — Mas, como um pai

afetuoso que satisfaz o desejo do seu filho contra o seupróprio discernimento, cedo à tua vontade. A teu pedidoficarei.

— Isso é uma boa notícia! — exclamou Túrin, mas,de repente, ficou silencioso, como se ele próprio tivesseconsciência da sombra, e lutou contra o seu orgulho, quenão o deixava voltar para trás. Ficou ali sentado por ummomento, a matutar nos anos que tinham ficado para trás.

Libertando-se de súbito dos pensamentos, olhoupara Beleg e disse:

— A jovem elfa que referiste, mas de cujo nomenão me recordo: devo-lhe muito pelo seu oportuno teste-munho; no entanto, não consigo lembrar-me dela. Porqueobservava os meus movimentos?

Beleg olhou-o de modo estranho.— Porquê, deveras ? Túrin, viveste sempre com o

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teu coração e metade da tua mente muito distantes ? Emrapaz, Costumavas caminhar com Nellas pelos bosques.

— Deve ter sido há muito tempo. Ou longínquame parece agora a minha infância, envolta numa névoa...excetuando apenas a recordação da casa do meu pai emDor-lómin. Porque caminharia eu com uma jovem elfa?

— Talvez para aprenderes o que ela podia ensinar-te, ainda que não fosse mais do que algumas palavras élfi-cas dos nomes das flores das matas. Os seus nomes, pelomenos, não esqueceste. Ah, filho dos Homens, há outrasmágoas na Terra Média além das tuas e feridas que nãoforam feitas por nenhuma arma.

Em verdade, começo a pensar que Elfos e Homensnão deveriam conhecer-se ou misturar-se.

Túrin não disse nada, mas fitou longamente o rostode Beleg, como se quisesse decifrar nele o enigma das suaspalavras. Nellas de Doriath nunca mais voltou a vê-lo e asombra dele abandonou-a. Beleg e Túrin mudaram de as-sunto e falaram de onde iriam viver.

— Regressemos a Dimbar, nas marcas setentrio-nais, por onde em tempos andamos juntos! — propôs Be-leg, entusiasmado. — Precisam lá de nós. Pois ultimamen-te os Orcs descobriram um caminho que desce da Taur-nu-Fuin e forma uma estrada através do Desfiladeiro deAnach.

— Não me lembro disso — disse Túrin.— Não, nós nunca nos afastamos tanto das frontei-

ras — disse Beleg. — Mas viste os picos das Crissaegrim,muito ao longe, e, a leste, as muralhas escuras de Gorgo-roth. Anach fica no meio, acima das nascentes altas doMindeb. É um caminho difícil e perigoso, mas muitos po-dem vir agora por ele e Dimbar, que costumava estar em

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paz, está a ficar sob o domínio da Mão Negra e os Ho-mens de Brethil estão inquietos. Para Dimbar, desafio-te!

— Não, não andarei para trás na vida. E tão-poucoposso agora ir com facilidade para Dimbar. Sirion fica nomeio, sem ponte e impossível de passar a vau abaixo doBritiach, muito para norte; a travessia é perigosa. A nãoser em Doriath. Mas eu não entrarei em Doriath nem meaproveitarei da autorização nem do perdão de Thingol.

— Disseste-te um homem duro, Túrin. E é verda-de, se com isso queres dizer teimoso. Agora é a minhavez. Irei, com tua licença, assim que puder e despedir-me-ei de ti. Se desejas realmente ter o Arco Forte a teu lado,procura-me em Dimbar.

Túrin não disse mais nada.No dia seguinte, Beleg pôs-se a caminho e Túrin foi

com ele até um disparo de flecha do acampamento, masnada disse.

— E, então, adeus, filho de Húrin? — perguntouBeleg. — Se deveras desejas cumprir a tua palavra e ficar ameu lado — respondeu Túrin —, procura-me no AmonRûdh! — Assim falou, sentindo-se infortunado e incons-ciente do que tinha pela frente. — Caso contrário, esta é anossa última despedida.

— Talvez seja melhor assim — respondeu Beleg, eseguiu o seu caminho.

Consta que Beleg regressou a Menegroth, apresen-tou-se perante Thingol e Melian e contou-lhes tudo o queacontecera, excetuando apenas a maneira cruel como foratratado pelos companheiros de Túrin. Então Thingol sus-pirou, e disse:

— Assumi a paternidade do filho de Húrin e issonão pode ser posto de parte por amor ou ódio, a não ser

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que o próprio Húrin, o Valoroso, regresse. Que mais que-reria ele que fizesse?

Mas Melian declarou:— De mim uma dádiva recebereis agora, Cúthalion,

pela vossa ajuda e pela vossa honra, pois não tenho ne-nhuma mais digna para vos oferecer. — E deu-lhe umaprovisão de lembas, o pão do caminho dos Elfos, embru-lhada em folhas de prata. E os fios que as atavam tinham,nos nós, o sinete da Rainha, um disco de cera branca coma forma de uma única flor da Telperion. De acordo comos costumes dos Eldalië, a guarda e a oferta deste alimen-to pertenciam exclusivamente à Rainha. — Este pão docaminho, Beleg, será o vosso socorro nos ermos e no In-verno, e o socorro também daqueles que escolherdes. Poisvo-lo entrego agora para o partilhardes como vos aprou-ver em meu lugar. — Em nada mostrou Melian maiorgraça para com Túrin do que com esta dádiva; pois os El-dar jamais tinham permitido aos Homens usar este pão docaminho e raramente voltaram a fazê-lo.

Então Beleg partiu de Menegroth e voltou para asmarcas setentrionais, onde tinha a sua residência e muitosamigos; mas, quando o Inverno chegou e a guerra acal-mou, os seus companheiros sentiram, de súbito, a falta deBeleg, o qual nunca mais voltou para eles.

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CAPÍTULO VII

DE MÎM, O ANÃO

Agora a história volta-se para Mîm, o Pequeno A-não. Os Pequenos Anões estão há muito esquecidos, poisMîm foi o último. Pouco se sabia deles, mesmo nos tem-pos antigos. Nibin-no-grim lhes chamavam de há muitoos Elfos de Beleriand, mas não gostavam deles; e, quantoaos Pequenos Anões, esses só gostavam de si mesmos. Seodiavam e temiam os Orcs, também odiavam os Eldar e,acima de todos, odiavam os Exilados, pois, diziam, osNoldor haviam-lhes roubado as terras e as casas. Nargot-hrond foi encontrada, e a sua escavação iniciada, pelosPequenos Anões, muito antes de Finrod Felagund terchegado vindo do Mar.

Eles provinham, diziam alguns, de Anões que ti-nham sido banidos das Cidades dos Anões do leste, em

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tempos antigos. Muito antes do regresso de Morgoth, ti-nham vagueado para ocidente. Sem senhor e pouco nu-merosos, foi-lhes difícil encontrar metais em bruto e a suaarte de ferreiros e provisão de armas enfraqueceram, oque os levou a conduzir vidas furtivas e a tornarem-se umtanto ou quanto mais pequenos de estatura do que os seussemelhantes orientais, caminhando de ombros pendentese com passos rápidos e furtivos. Apesar disso, e como to-da a espécie anã, eram muito mais fortes do que a sua es-tatura aparentava e conseguiam agarrar-se à vida em situa-ções de grande atribulação. Mas agora, por fim, o seu nú-mero tinha diminuído e haviam-se extinguido da TerraMédia, exceto Mîm e os seus dois filhos; e Mîm era velhomesmo pelas contas dos Anões, velho e esquecido.

Após a partida de Beleg (que aconteceu no segundoVerão depois da fuga de Túrin de Doriath), as coisas cor-reram mal para os bandidos. Houve chuvas fora da épocae, em maior número do que antes, vieram Orcs do Nortee pela antiga Estrada do Sul, sobre o Teiglin, perturbandotodas as florestas das fronteiras ocidentais de Doriath.Havia pouca segurança ou sossego e a companhia era maisfreqüentemente perseguida do que perseguidora.

Certa noite, quando estavam à espreita na escuridãosem lume, Túrin meditou na sua vida e pareceu-lhe que elabem poderia ser melhorada. «Tenho de encontrar algumrefúgio seguro», pensou, «e prevenir-me contra o Invernoe a fome.» Mas não sabia para onde se virar.

No dia seguinte, conduziu os seus homens para sul,para mais longe do que alguma vez tinham estado do Tei-glin e das marcas de Doriath; e, decorridos três dias deviagem, pararam na orla ocidental das florestas do Vale doSirion. Aí a terra tornava-se mais seca e mais nua, ao subir

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para as charnecas.Pouco depois, quis o acaso que, à medida que a luz

cinzenta de um dia chuvoso se desvanecia, Túrin e os seushomens estivessem abrigados num bosque cerrado de a-zevinho, para lá do qual havia uma clareira sem árvores ecom muitas pedras grandes, encostadas umas às outras ouamontoadas juntas. Reinava o silêncio, quebrado apenaspelas gotas que caíam das folhas.

De súbito, um vigia deu um sinal e, levantando-sede repente, viram três vultos encapuzados, vestidos decinzento e caminhando furtivamente por entre as pedras.Cada um deles carregava um grande saco, o que não osimpedia de serem velozes. Túrin gritou-lhes que parasseme os homens correram atrás deles como uma matilha; maseles continuaram no seu caminho e, apesar de Andrógdisparar, dois desapareceram no crepúsculo. Um ficoupara trás, por ser mais lento ou estar mais carregado, e nãotardou a ser detido e lançado ao chão, agarrado por muitase duras mãos, apesar de se debater e morder como umanimal. Mas Túrin aproximou-se e repreendeu os seushomens.

— Que têm aí? Que necessidade há de serem tãoviolentos? É velho e pequeno. Que mal há nele?

— Morde — respondeu Andróg, amparando umamão ensangüentada. — É um Orc, ou da raça dos Orcs.Matem-no!

— Nada menos merece, por defraudar a nossa es-perança — disse outro, que se apoderara do saco. — Nãohá aqui nada além de raízes e pequenas pedras.

— Não — opôs-se Túrin —, tem barba. Suponhoque é apenas um Anão. Deixem-no levantar-se e falar.

Foi assim que Mîm entrou na história dos Filhos de

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Húrin. Pois deixou-se cair de joelhos aos pés de Túrin erogou pela sua vida.

— Sou velho — disse — e pobre. Apenas um A-não, como dissestes, e não um Orc. Chamo-me Mîm. Nãopermitais que me matem sem motivo, Senhor, como osOrcs fariam.

O coração de Túrin apiedou-se dele, o que não oimpediu de dizer:

— Pobre pareceis, Mîm, ainda que tal fosse estra-nho num Anão; mas creio que nós somos ainda mais po-bres: Homens sem teto e sem amigos. Se eu dissesse quenão poupamos ninguém apenas por compaixão, pois anossa necessidade é grande, que ofereceríeis como resga-te?

— Não sei o que desejais, Senhor — respondeuMîm, cauto.

— Bem pouco, com este tempo! — respondeu Tú-rin, olhando tristemente em redor e com a chuva a mo-lhar-lhe os olhos. — Um lugar seguro para dormirmos aoabrigo das úmidas florestas. Sem dúvida tendes isso paravós próprio.

— Tenho — admitiu Mîm —, mas não posso dá-locomo resgate. Sou demasiado velho para viver debaixo docéu.

— Não precisas de envelhecer mais — disse An-dróg, avançando com uma faca na mão incólume. — Pos-so poupar-te isso.

— Senhor! — gritou Mîm cheio de medo, agarran-do-se aos joelhos de Túrin. — Se eu perder a minha vida,vós perdereis o vosso abrigo, pois sem Mîm não o encon-trareis. Não posso dá-lo, mas partilhá-lo-ei. Há mais espa-ço do que em tempos houve, tantos foram os que parti-

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ram para sempre. — E começou a chorar.— A vossa vida está poupada, Mîm — respondeu

Túrin.— Pelo menos até chegarmos ao seu covil — a-

crescentou Andróg.Mas Túrin voltou-se para ele e disse-lhe:— Se Mîm nos conduzir a sua casa sem embuste, e

ela for boa, então a sua vida estará resgatada e ele não serámorto por nenhum homem que me siga. Assim o juro.

Então Mîm beijou-lhe os joelhos e disse:— Mîm será vosso amigo, Senhor. Ao princípio,

pensou que fôsseis um Elfo, pela vossa fala e pela vossavoz. Mas, se sois um Homem, é melhor assim. Mîm nãogosta dos Elfos.

— Onde fica essa tua casa? — perguntou Andróg.— Terá de ser muito boa, para a partilharmos com umAnão. Pois Andróg não gosta de Anões. O seu povo trou-xe do Leste poucas boas histórias dessa raça.

— Deixaram piores histórias de si próprios atrás desi. Julga a minha casa quando a vires. Mas precisareis deluz para o caminho, vós, Homens tropeçantes. Regressareicom bom tempo e conduzir-vos-ei. — Depois Mîm levan-tou-se e pegou no saco.

— Não, não! — protestou Andróg. — Por certonão permitirás isto, capitão? Nunca mais voltarias a ver ovelho patife.

— Está a escurecer — respondeu Túrin. — Eleque nos deixe algum penhor. Podemos ficar com o vossosaco e o que ele transporta?

Mas, ao ouvir tais palavras, o Anão caiu de novo dejoelhos, muito aflito.

— Se Mîm não tencionasse regressar, não regressa-

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ria por causa de uma velho saco de raízes. Eu voltarei.Deixai-me partir.

— Não deixarei — respondeu Túrin. — Se não vosseparardes do vosso saco, tereis de ficar aqui com ele.Uma noite debaixo das folhas talvez vos faça compadecer-vos de nós, pelo vosso lado. — Mas apercebeu-se, assimcomo outros além dele, de que Mîm dava mais importân-cia ao saco do que, à primeira vista, ele parecia merecer.

Levaram o velho Anão para o seu miserável acam-pamento e, enquanto os acompanhava, ele resmungavanuma língua que parecia azedada por um ódio antigo; mas,quando lhe amarraram as pernas, calou-se subitamente. Eaqueles que estiveram de sentinela viram-no sentado todaa noite, silencioso e imóvel como uma pedra, com exceçãodos seus olhos insones, que cintilavam ao perscrutar a es-curidão.

A chuva cessou antes da manhã e um vento fez es-tremecer as árvores. O alvorecer chegou mais luminosodo que em muitos dias e aragens ligeiras do Sul desanuvia-ram o céu, que ficou pálido e limpo por altura do nascerdo Sol. Mîm continuava sentado sem se mexer, parecendomorto, pois agora as pálpebras pesadas dos seus olhosestavam descidas e a luz da manhã revelava-o seco e mir-rado pela velhice. Túrin levantou-se e olhou para ele.

— Agora há luz suficiente — disse.Então Mîm abriu os olhos e apontou para as cor-

das, e quando o soltaram falou furiosamente:— Aprendei uma coisa, idiotas! Não amarreis nun-

ca um Anão! Ele não o perdoará. Não desejo morrer, maso meu coração está enfurecido pelo que fizestes. Arrepen-do-me da minha promessa.

— Mas eu não — respondeu Túrin. — Conduzir-

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me-eis a vossa casa. Até lá, não falaremos de morte. Essaé a minha vontade.

Fitou com firmeza os olhos do Anão, que não con-seguiu suportar o seu olhar; em verdade, poucos conse-guiam desafiar o olhar de Túrin, quando decidido na suavontade ou em fúria. Pouco depois, Mîm voltou a cabeçae levantou-se.

— Segui-me, Senhor!— Muito bem — respondeu Túrin. — Mas agora

acrescento o seguinte: compreendo o vosso orgulho. Po-dereis morrer, mas não voltareis a ser amarrado.

— Não voltarei — disse Mîm. — Mas agora vinde!E, ditas estas palavras, conduziu-os ao sítio onde

fora capturado e apontou para oeste.— Ali está a minha casa! Suponho que a tereis visto

muitas vezes, pois é alta. Chamávamos-lhe Sharbhund,antes de os Elfos mudarem todos os nomes. — Viramentão que ele apontava para Amon Rûdh, o monte Careca,cuja cabeça nua observava muitas léguas de deserto.

— Já a tínhamos visto, mas nunca de tão perto —respondeu Andróg. — Que abrigo seguro pode haver ali,ou água, ou qualquer outra coisa de que necessitemos ?Bem me parecia que havia algum truque. Escondem-sehomens no cume de um monte?

— Ver longe pode ser mais seguro do que estar es-condido — comentou Túrin. — Amon Rûdh olha paralonge e em redor. Bem, Mîm, irei ver o que tendes paramostrar. Quanto tempo levaremos nós, Homens trope-çantes, para lá chegarmos?

— Todo este dia até ao anoitecer, se partirmos ago-ra — respondeu Mîm.

Em breve o grupo avançava para oeste, e Túrin se-

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guia à frente com Mîm ao seu lado. Caminharam cautelo-samente quando deixaram as florestas, mas toda a terraparecia deserta e silenciosa. Passaram pelas pedras espa-lhadas e amontoadas e iniciaram a subida, pois o AmonRûdh erguia-se no extremo oriental das charnecas altasque subiam entre os vales do Sirion e do Narog, e acimado matagal pedregoso da sua base a crista alcandorava-se amil pés ou mais. Do lado oriental, uma terra irregular su-bia lentamente para as altas cumeeiras, entre cabeços devidoeiros e sorveiras-bravas e velhíssimas árvores espi-nhosas enraizadas na rocha. Para além, nas charnecas e àvolta das encostas mais baixas do Amon Rûdh, cresciambosques de aeglos, mas a sua íngreme cabeça cinzenta eraescalvada, tirando o manto de seregon vermelha que co-bria a pedra.

À medida que a tarde declinava, os bandidos apro-ximavam-se das raízes do monte. Vinham agora do norte,pois por aí Mîm os conduzira, e a luz do Sol a caminho doocaso incidia na crista do Amon Rûdh e a seregon estavatoda em flor.

— Olhem! Há sangue no cimo do monte! — ex-clamou Andróg.

— Ainda não — respondeu Túrin.O Sol descia e a luz penetrava nas concavidades. O

monte erguia-se agora à frente e acima deles, que se per-guntavam que necessidade poderia haver, afinal, de umguia para um destino tão evidente. Mas, à medida queMîm os guiava e que começaram a subir as últimas encos-tas íngremes, aperceberam-se de que ele seguia um cami-nho qualquer, guiando-se por sinais secretos ou costumeantigo. Agora o trajeto serpenteava de cá para lá e, se o-lhavam em volta, viam que, de cada um dos lados, se abri-

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am escuros vales estreitos e ravinas, ou que a terra desciapara ermos de grandes pedras com declives e buracos en-cobertos por sarças e espinheiros. Sem guia, poderiam terandado e subido por ali durante dias para encontrarem umcaminho.

Por fim, chegaram a um terreno mais íngreme mastambém menos acidentado. Passaram sob a sombra develhíssimas sobreiras-bravas para alas de aeglos de pernasaltas: uma melancolia impregnada de suave odor. De súbi-to, ergueu-se diante deles uma parede de rocha, de faceplana e íngreme, talvez com uns quarenta pés de altura,mas o crepúsculo obscurecia o céu acima deles e era incer-to calcular.

— É esta a porta para a vossa casa? — perguntouTúrin. — Diz-se que os Anões adoram a pedra. — Apro-ximou-se mais de Mîm, não fosse ele pregar-lhes algumapartida no último momento.

— Não é a porta da casa, mas o portão do pátio —respondeu o Anão. Depois virou para a direita ao longoda base do penhasco e, cerca de vinte passos adiante, pa-rou subitamente.

Túrin viu então que, por obra de mãos ou do tem-po, havia uma fresta talhada de tal modo que duas facesda parede se sobrepunham e uma abertura retrocedia paraa esquerda, por entre elas. A sua entrada estava cobertapor compridas plantas trepadeiras enraizadas em fendas,acima, mas no lado de dentro havia um íngreme carreirode pedra que subia para a escuridão. A água escorria porele abaixo e tornava-o úmido.

Um por um, começaram a subir em fila. No cimo,o carreiro que virava para a direita e de novo para sulconduziu-os, através de um maciço de espinheiros, a uma

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superfície verde plana, através da qual um fio de água cor-ria para as sombras. Tinham chegado à casa de Mîm, Bar-en-Nibin-noeg, recordada apenas em histórias antigas deDoriath e Nargothrond e que nenhum Homem ainda vira.Mas a noite caía, o céu oriental estava coalhado de estre-las, e eles não conseguiam ver qual era a forma daqueleestranho lugar.

Amon Rûdh tinha uma coroa: uma grande massasemelhante a um barrete de pedra íngreme, com um topoachatado e nu. No seu lado norte irrompia dele uma sali-ência de pedra, plana e quase quadrada, que não podia servista de baixo, pois atrás dela erguia-se a coroa do monte,como uma parede, e da sua beira desciam escarpas a pi-que. Só do lado norte, de onde tinham vindo, podia seralcançada com facilidade por aqueles que conheciam ocaminho. A partir da «entrada», seguia um caminho que abreve trecho penetrava num bosque de vidoeiros anõesque cresciam em redor de um charco límpido, numa baciaescavada na rocha. Era alimentado por uma nascente nabase da parede da retaguarda e, através de um arroio, fluíacomo um fio branco sobre a margem ocidental da saliên-cia rochosa. Atrás da fileira de árvores, próxima da nas-cente entre dois altos pilares de rocha, havia uma caverna.Não parecia mais do que uma gruta pouco profunda, co-mum arco baixo e irregular, mas mais para o seu interiorfora escavada e furada numa grande extensão, por baixodo monte, pelas mãos lentas dos Pequenos Anões, noslongos anos que ali tinham vivido sem serem incomoda-dos pelos Elfos Cinzentos das florestas.

Através da densa penumbra, Mîm conduziu-os paraalém da bacia, onde agora se espelhavam as tímidas estre-las por entre as sombras dos ramos dos vidoeiros. A en-

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trada da caverna, o Anão voltou-se e fez uma vênia a Tú-rin.

— Entrai, Senhor! Bar-en-Danwedh, a Casa doResgate. Pois assim será chamada.

— Talvez — respondeu Túrin. — Primeiro querovê-la. Depois entrou com Mîm e os outros, vendo-o semmedo, seguiram-nos, até mesmo o próprio Andróg, queera quem mais desconfiava do Anão. Em breve encontra-ram-se num negrume total, mas Mîm bateu com as palmasdas mãos e apareceu uma pequena luz a contornar umcanto, e de um corredor na retaguarda da gruta exteriorsurgiu outro Anão com uma pequena tocha.

— Ah, errei a pontaria, como receava! — exclamouAndróg. Mas Mîm falou rapidamente com o outro, na ás-pera língua de ambos, e, parecendo perturbado ou irritadocom o que ouvia, ele meteu pelo corredor e desapareceu.Agora Andróg queria investir em força. — Há que atacarprimeiro! — gritou. — Pode haver um enxame deles, massão pequenos.

— São apenas três, suponho — respondeu Túrin.Depois seguiu à frente enquanto, atrás dele, os

bandidos tateavam pelo corredor fora, guiando-se pelocontato das paredes ásperas. O corredor guinava muitasvezes, para um lado e para o outro, em ângulos agudos;mas, por fim, uma luz tênue brilhou em frente e chegarama um salão pequeno mas alto, parcamente iluminado porcandeeiros suspensos de correntes finas do telhado-sombra. Mîm não se encontrava ali, mas ouvia-se a suavoz e, guiado por ela, Túrin chegou à porta de uma câma-ra que se abria no fundo do corredor. Olhando para den-tro, viu Mîm ajoelhado no chão. Ao lado dele erguia-se,silencioso, o Anão portador da tocha; mas num leito de

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pedra, junto da parede oposta, jazia outro.— Khîm, Khîm, Khîm! — gemia o velho Anão,

puxando pela barba.— Nem todos os teus disparos falharam — disse

Túrin a Andróg. — Mas o fato de este ter acertado poderevelar-se funesto. Soltas setas com demasiada ligeireza,mas podes não viver o suficiente para aprenderes a sersensato.

Deixando os outros, Túrin entrou silenciosamente,parou atrás de Mîm e falou-lhe:

— Qual é o problema, mestre? Conheço algumasartes de sarar. Posso ajudá-lo?

Mîm voltou a cabeça e havia nos seus olhos umaluz vermelha.

— Só se pudésseis voltar atrás no tempo e deceparas mãos cruéis dos vossos homens. Este é o meu filho.Cravou-se-lhe uma seta no peito e agora nada pode valer-lhe. Morreu ao pôr-do-sol. As vossas cordas impediram-me de sará-lo.

Mais uma vez a compaixão há muito endurecidaencheu o coração de Túrin, como água a brotar de rocha.

— Ai de mim, faria essa seta voltar atrás, se pudes-se. Agora Bar-en-Danwedh, a Casa do Resgate, assim sechamará verdadeiramente. Pois quer vivamos aqui quernão, considerar-me-ei em dívida para convosco e, se al-guma vez possuir alguma fortuna, pagar-vos-ei um dan-wedh de pesado ouro pelo vosso filho, como prova demágoa, mesmo que isso não alegre mais o vosso coração.

Mîm levantou-se e olhou demoradamente para Tú-rin.

— Ouço-vos e falais como um senhor Anão de an-tigamente, e com isso me admiro. Agora o meu coração

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arrefeceu, embora não esteja feliz. O meu próprio resgatepagarei, portanto: podeis morar aqui, se quiserdes. Masuma condição acrescento: aquele que disparou a seta devequebrar o seu arco e as suas flechas e depô-los aos pés domeu filho; e jamais voltará a pegar numa flecha ou a usarum arco. Se o fizer, por tal morrerá. Esta praga lhe rogo.

Andróg ficou com medo quando teve conhecimen-to dessa praga, e, embora o fizesse com grande contrarie-dade, quebrou o arco e as flechas e depositou-os aos pésdo Anão morto. Mas, ao sair da sala, olhou maldosamentepara Mîm e resmungou: «Dizem que a praga de um anãonunca morre; mas a de um Homem também pode sercumprida. Pois que morra com um dardo na garganta!»

Nessa noite deitaram-se na sala e dormiram agita-damente por causa das lamentações de Mîm e de Ibun, oseu outro filho. Quando elas cessaram não faziam idéia,mas quando finalmente acordaram os Anões tinham saídoe uma pedra fechava a câmara. O dia estava de novo boni-to e, ao sol matinal, os bandidos lavaram-se no pequenolago e prepararam a comida de que dispunham; e enquan-to comiam Mîm apareceu diante deles.

Fez uma vênia a Túrin e disse:— Ele foi-se e está tudo feito. Jaz com os seus an-

tepassados. Agora voltamo-nos para a vida que resta, em-bora possam ser breves os dias que temos pela frente. Acasa de Mîm apraz-vos? Está o resgate pago e aceite?

— Está — respondeu Túrin.— Agora é tudo vosso, para governar ou habitar

como quiserdes, com uma exceção: a câmara que está fe-chada ninguém abrirá senão Mîm.

— Ouvimo-vos — respondeu Túrin. — Quanto ànossa vida aqui, estamos seguros, ou assim parece; mas

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precisamos de alimentos e de outras coisas. Como saire-mos ou, mais importante ainda, como regressaremos?

Perante tal inquietação, Mîm riu-se guturalmente.— Temeis ter seguido uma aranha para o centro da

sua teia? Não, Mîm não come Homens. E uma aranhadificilmente poderia haver-se com trinta vespas ao mesmotempo. Reparai, vós estais armados e eu estou aqui semnada. Não, teremos de partilhar, vós e eu: casa, comida elume, e talvez outros ganhos. A casa, suponho, guardareise mantereis secreta para vosso próprio bem, mesmoquando souberdes os modos de entrar e sair. Aprendê-los-eis a seu tempo. Entretanto, porém, Mîm terá de guiar-vos, ou Ibun, seu filho, quando sairdes; e um de nós iráaonde fordes e regressará quando regressardes — ou es-perar-vos-á em algum lugar que conhecerdes ou puderdesencontrar sem guia. Isso será cada vez mais perto de casa,assim creio.

Túrin concordou e agradeceu a Mîm, e a maioriados seus homens ficou contente; pois, sob o sol da ma-nhã, enquanto o Verão ainda estava no apogeu, pareciaum bom lugar para morarem. Andróg, apenas, estava des-contente.

— Quanto mais depressa formos senhores das nos-sas idas e vindas, melhor — declarou. — Nunca antes fi-zemos um prisioneiro com o agravo de se intrometer nasnossas andanças.

Nesse dia descansaram, limparam as armas e con-sertaram o que precisava de conserto; pois ainda tinhamcomida para um dia ou dois e Mîm contribuía para o quetinham. Emprestou-lhes três grandes panelas para cozi-nhar e lenha e um saco.

— Ninharias — disse. — Não vale a pena serem

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roubadas. Trata-se apenas de raízes silvestres.Mas, depois de lavadas, as raízes revelaram-se bran-

cas e carnudas, com a sua pele, e depois de cozidas eramagradáveis de comer, algo semelhantes ao pão. Os bandi-dos sentiram-se gratos por isso, pois havia muito que nãotinham pão, a não ser quando conseguiam roubá-lo.

— Os Elfos Silvestres não as conhecem, os ElfosCinzentos não as encontraram, os orgulhosos do outrolado do Mar são orgulhosos de mais para as desenterrar— explicou Mîm.

— Como se chamam? — perguntou Túrin. Mîmolhou-o de esguelha.

— Não têm nome, a não ser na língua dos Anões,que não ensinamos. E também não ensinamos Homens aencontrá-las, pois os Homens são ávidos e esbanjadores enão teriam comedimento até todas as plantas perecerem;ao passo que, agora, passam por elas sem darem por isso,quando vão fazer disparates no deserto. Não mais ficareisa saber por mim; mas podereis receber o suficiente da mi-nha dádiva desde que faleis com respeito e não espieis ouroubeis. — Depois fez ouvir de novo o seu riso gutural.— São de grande utilidade, valem mais do que ouro noestéril Inverno, pois podem ser armazenadas como as no-zes de um esquilo e nós já estamos a reunir a nossa reser-va com as primeiras que amadureceram. Mas sois tolos, sepensais que não repartiria uma pequena porção mesmoque fosse pela salvação da minha vida.

— Eu ouço-te — disse Ulrad, que espreitara no sa-co quando Mîm fora aprisionado. — No entanto, não qui-seste repartir e as tuas palavras ainda me dão mais quepensar.

Mîm voltou-se e olhou para ele, carrancudo.

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— És um dos tolos que a Primavera não lamentariase perecessem no Inverno — respondeu-lhe. — Eu disse-ra o que tinha a dizer e por isso devia ter regressado, debom ou mau grado, com ou sem o saco, pensasse o quepensasse um homem sem lei e sem fé! Mas não gosto deser privado do que é meu pela força dos perversos, mes-mo que não seja de mais do que um atacador de bota. A-caso não me lembro que as tuas mãos se contavam entreas que me prenderam e assim me impediram de voltar afalar com o meu filho? Sempre que distribuir o pão daterra da minha provisão, tu serás excluído e, se o comeres,será graças à generosidade dos teus companheiros e nãoda minha.

Então Mîm deixou-os, mas Ulrad, a quem a sua iracontivera, falou nas suas costas:

— Belas palavras! No entanto, o velho patife tinhaoutras coisas no saco, do mesmo formato, mas mais durase pesadas. Talvez haja nos ermos outras coisas além dopão da terra que os Elfos não encontraram e de que osHomens não podem saber!

— E possível que sim — admitiu Túrin. — Contu-do, o Anão falou verdade pelo menos num ponto, aochamar-te tolo. Porque há de dar a conhecer os teus pen-samentos ? Se justas palavras se te encravam na garganta,o silêncio serviria melhor todos os nossos desígnios.

O dia passou em paz e nenhum dos bandidos quisir para o exterior. Túrin andou muito pelo relvado verdeda saliência rochosa, de extremo a extremo, e olhou paraleste, oeste e norte, tentando descobrir até onde a vistaalcançava no ar claro. Na direção norte, e parecendo es-tranhamente próxima, conseguia distinguir a floresta deBrethil subindo, verdejante, à volta do Amon Obel. Des-

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cobriu que os seus olhos se desviavam para aí mais fre-qüentemente do que desejaria, embora não soubesse por-quê; pois o seu coração sentia-se mais atraído para noroes-te, onde, légua após légua de distância, na periferia do céu,lhe parecia vislumbrar as Montanhas da Sombra e as fron-teiras da sua terra. Mas, ao anoitecer, Túrin olhou paraoeste, para o pôr-do-sol, enquanto o astro descia, verme-lho, para as névoas acima das costas mais distantes, e oVale de Narog se encontrava profundamente afundadonas sombras de permeio.

Assim começou a permanência de Túrin, filho deHúrin, nas salas de Mîm em Bar-en-Danwedh, a Casa doResgate.

Durante muito tempo a vida dos bandidos decorreude acordo com o seu gosto. A comida não escasseava eestavam bem abrigados, quentes e secos, com espaço quechegava e sobrava; pois descobriram que as cavernas po-deriam albergar uma centena ou mais, se fosse necessário.Mais para o interior havia outro salão que tinha, a um la-do, uma lareira, acima da qual uma chaminé subia atravésda rocha até um respiradouro astuciosamente oculto numaabertura na encosta do monte. Havia também muitas ou-tras câmaras que se abriam a partir das salas ou do corre-dor de permeio, umas para habitação e outras para traba-lhar ou para armazenamento. No capítulo de armazena-mento, Mîm era mais eficiente do que eles e tinha muitasvasilhas e armários de pedra e madeira que pareciam mui-to antigos. Mas a maioria das câmaras encontrava-se agoravazia; nos armeiros estavam pendurados machados e ou-tro equipamento, enferrujado e poeirento, prateleiras erecessos estavam vazios; as forjas abandonadas. Excetouma: uma pequena sala que saía do salão interior e tinha

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uma lareira que partilhava o respiradouro da lareira dosalão. Mîm trabalhava por vezes aí, mas não permitia acompanhia de outros; assim como não falava de uma es-cada secreta oculta que levava da sua casa ao cume planodo Amon Rûdh. Andróg descobriu-a quando, faminto,procurava as reservas de alimentos de Mîm e se perdeunas cavernas. Mas guardou a descoberta para si.

Durante o resto daquele ano não fizeram mais in-cursões e, se saíam para caçar ou colher alimentos, faziam-no a maior parte das vezes em pequenos grupos. Mas du-rante muito tempo tiveram dificuldade em reencontrar ocaminho e, além de Túrin, não mais de seis dos seus ho-mens estavam seguros dele. No entanto, compreendendoque os mais hábeis em tais coisas poderiam chegar ao seuesconderijo sem a ajuda de Mîm, montaram uma guardade dia e de noite perto da fenda da encosta norte. Do sulnão esperavam inimigos nem havia o receio de alguémsubir o Amon Rûdh por esse lado; mas durante o dia ha-via muitas vezes um vigia no topo da crista, de onde podiaver até muito longe, a toda a volta. Apesar de os lados dacrista serem íngremes, era possível alcançar o cume, pois aleste da entrada da caverna tinham sido talhados degraustoscos que conduziam às encostas aonde os homens podi-am subir sem ajuda.

Assim foi correndo o ano sem sobressaltos ou a-larme. Mas, à medida que os dias minguavam e a lagoa setornava cinzenta e fria, os vidoeiros se desnudavam e re-gressavam as grandes chuvadas, tiveram de passar maistempo abrigados. Em breve se tornaram temerosos daescura parte inferior do monte, ou da tênue meia-luz dassalas, e a muitos pareceu que a vida seria melhor se a nãopartilhassem com Mîm.

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Não raro, ele surgia de algum canto sombrio ou so-leira de porta quando pensavam que se encontrava noutrolugar. E, quando Mîm estava presente, descia um cons-trangimento sobre as suas conversas. Passaram a falar unscom os outros sempre em murmúrios.

Todavia, e estranho lhes parecia, com Túrin as coi-sas eram diferentes, e ele tornou-se cada vez mais cordialcom o velho Anão e cada vez mais dava ouvidos aos seusconselhos. No Inverno que se seguiu, passava longas ho-ras sentado com Mîm, escutando os seus saberes e as his-tórias da sua vida; e Túrin também não o repreendia se eledizia mal dos Eldar. Mîm parecia muito satisfeito e, emtroca, mostrava grande preferência por Túrin; só a elepermitia, por vezes, a entrada na sua forja, onde falavamjuntos em voz baixa.

Mas, quando o Outono passou, o Inverno não lhespoupou tormentos. Antes do fim de Dezembro, a nevechegou do norte com mais força do que alguma vez acon-tecera nos vales do rio; nessa altura, e cada vez mais à me-dida que o poder de Angband crescia, os invernos agrava-ram-se em Beleriand. O Amon Rûdh estava profunda-mente coberto de neve e só os mais corajosos se atreviama sair. Alguns adoeceram e todos sofreram o tormento dafome.

No sombrio entardecer de um dia do meio do In-verno, apareceu de súbito entre eles um Homem, ao queparecia, de grande arcabouço e bojo, de capa e capuzbrancos. Eludira os vigilantes e dirigira-se para a sua fo-gueira sem uma palavra. Quando os homens se levanta-ram de rompante, ele desatou a rir e atirou o capuz paratrás, e viram que era Beleg Arco Forte. Debaixo da amplacapa trazia um grande volume em que transportava muitas

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coisas para ajudar os homens.Deste modo voltou Beleg para Túrin, deixando a

amizade levar a melhor sobre a sensatez. Túrin ficou mui-to contente, pois muitas vezes lamentara a sua obstinação.E agora o desejo do seu coração era-lhe concedido semprecisar de se humilhar ou ceder na sua vontade. Mas seTúrin estava contente, o mesmo não se podia dizer deAndróg, nem de alguns outros do seu grupo. Parecia-lhesque houvera entre Beleg e o seu capitão um encontro queele lhes escondera; e Andróg observava-os invejosamente,enquanto se sentavam, à parte, a conversar um com o ou-tro.

Beleg trouxera consigo o Elmo de Hador, na espe-rança de conseguir reerguer o pensamento de Túrin acimada sua vida oculta como chefe de um bando de miseráveisbandidos.

— Isto te pertence e eu trago-o de volta — disse aTúrin, enquanto tirava o elmo. — Foi deixado à minhaguarda nas marcas setentrionais, mas penso que não foiesquecido.

— Quase — respondeu Túrin —, mas não voltaráa sê-lo. — Ficou silencioso, olhando para longe com osolhos do pensamento, e de súbito apercebeu-se do brilhode outra coisa que Beleg segurava. Era o presente de Meli-an, mas as folhas de prata tornaram-se vermelhas à luz dafogueira e, quando Túrin viu o sinete, os seus olhos escu-receram. — Que tens aí?

— A maior dádiva que alguém que te ama aindatem para oferecer — respondeu Beleg. — Aqui estãolembas in Elidh, o pão do caminho dos Eldar que homemalgum jamais provou.

— O elmo de meu pai aceito, grato por o teres

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guardado. Mas não receberei dádivas de Doriath.— Então devolve a tua espada e as tuas armas. De-

volve também os ensinamentos e o amparo da tua juven-tude. E deixa os teus homens que (tu o dizes) têm sidofiéis morrer no deserto para satisfazeres a tua disposição!Todavia, este pão do caminho foi uma dádiva não para ti,mas sim para mim, e com ela posso fazer o que me a-prouver. Não o comas se te causa engulhos na garganta;mas outros podem estar mais famintos e ser menos orgu-lhosos.

Os olhos de Túrin cintilaram, mas quando olhoupara Beleg o fogo que neles ardia apagou-se e tornaram-secinzentos. Então disse, numa voz que mal se podia ouvir:

— Surpreende-me, amigo que ainda te dignes aprocurar de novo um grosseiro como eu. De ti aceitareitudo quanto me deres, até reprimendas. Doravante, acon-selhar-me-ás quanto a todos os caminhos, com a únicaexceção da estrada para Doriath.

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CAPÍTULO VIII

A TERRA DO ARCO E DO ELMO

Nos dias que se seguiram, Beleg labutou muito parao bem do grupo. Tratou dos que estavam feridos e doen-tes e todos sararam depressa. Pois naqueles tempos osElfos Cinzentos ainda eram um povo superior, possuido-res de grande poder e sabedores dos caminhos da vida ede todas as coisas viventes; e, embora ficassem aquém, emofícios e sabedoria, dos Exilados de Valinor, possuíammuitas artes que ultrapassavam o alcance dos Homens.Além disso, Beleg, o Archeiro, era grande entre o povo deDoriath. Era forte, resistente e perspicaz tanto em pensa-mento como em visão e, se necessário, valente em comba-te, confiante não apenas no seu comprido arco, mas tam-bém na sua grande espada, Anglachel. E por tudo issocresceu ainda mais o ódio no coração de Mîm, que odiavatodos os Elfos, como já foi dito, e via com olhos invejo-sos a amizade que Túrin sentia por Beleg.

Quando o Inverno passou, a vida começou a estuare a Primavera chegou, os bandidos não tardaram a ter tra-balho mais duro para fazer. O poderio de Morgoth foi

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posto em movimento e, como os compridos dedos deuma grande mão, as guardas avançadas dos seus exércitostateavam os caminhos para Beleriand.

Quem conhece agora os intentos de Morgoth?Quem pode medir o alcance do seu pensamento, ele quefora Melkor, poderoso entre os Ainur da Grande Música,e se sentava agora, negro senhor, num negro trono noNorte, avaliando na sua perfídia todas as notícias que lhechegavam através de traidor ou espião, vendo nos olhosda sua mente e compreendendo muito melhor os atos epropósitos dos seus inimigos do que até os mais sagazesde entre eles temiam, a não ser Melian, a Rainha? Para elamuitas vezes se dirigia o pensamento dele, e lá era despis-tado.

Neste ano, portanto, concentrou a sua perfídia nadireção das terras a oeste do Sirion, onde havia ainda forçaque se lhe opunha. Gondolin permanecia de pé, mas esta-va oculta. Ele conhecia Doriath, mas ainda lá não podiaentrar. Mais longe, ficava Nargothrond, para a qual ne-nhum dos seus servos descobrira ainda o caminho, umnome que para eles era sinônimo de terror; aí vivia o povode Finrod, em número desconhecido. E muito longe, aoSul, para lá das matas brancas dos vidoeiros de Numbre-thil, da costa do Avernien e das embocaduras do Sirion,chegavam rumores dos Portos dos Navios. Aí não conse-guiria ele chegar enquanto tudo o mais não tivesse caído.

Assim, os Orcs desciam agora do Norte em núme-ro cada vez maior. Pelo Anach vieram e Dimbar foi to-mada e todas as marcas setentrionais de Doriath assoladas.Desceram a antiga estrada que seguia pelo longo desfila-deiro do Sirion, passando pela ilha onde Minas Tirith deFinrod existira e pela terra entre o Malduin e o Sirion, e

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depois prosseguiram pelas florestas de Brethil para osVaus do Teiglin. Aí, de há muito, passava a estrada para aPlanície Guardada que depois, ao longo dos sopés das ter-ras altas vigiadas pelo Amon Rûdh, descia pelo vale deNarog e chegava, finalmente, a Nargothrond. Mas, porenquanto, os Orcs não avançaram muito por essa estrada;pois havia agora nos ermos um terror que estava oculto eno monte vermelho estavam postos olhos vigilantes dosquais não tinham sido avisados.

Nessa Primavera, Túrin voltou a pôr o Elmo deHador e Beleg sentiu-se satisfeito. Ao princípio, o seugrupo contava com menos de cinqüenta homens, mas oconhecimento que Beleg tinha das florestas e a coragemde Túrin faziam com que parecessem uma hoste aos seusinimigos. Os batedores dos Orcs eram perseguidos e osseus campos espiados, e quando se reuniam para marcharem força nalgum lugar estreito fora dos rochedos ou dasombra das árvores, a eles se lançavam o Elmo do Dragãoe os seus homens, altos e violentos. Em breve, o simplessom da sua trombeta nos montes fazia com que os co-mandantes vacilassem e os Orcs desatassem a fugir antesque alguma flecha assobiasse ou espada fosse desembai-nhada.

Foi dito que, quando Mîm cedeu a sua habitaçãoescondida no Amon Rûdh a Túrin e ao seu grupo, exigiuque quem disparara a flecha que lhe matara o filho partisseo arco e as flechas e os depositasse aos pés de Khîm; eAndróg era esse homem. Então, com grande contrarieda-de, Andróg obedeceu à ordem de Mîm. Além disso, Mîmdeclarou que Andróg jamais deveria voltar a usar arco eflecha e rogou-lhe uma praga: se, apesar de tudo, ele o fi-zesse, então encontraria a própria morte por esse meio.

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Ora, na Primavera daquele ano, Andróg ignorou apraga de Mîm e voltou a empunhar um arco numa incur-são a partir da Bar-en-Danwedh; e nessa incursão foi atin-gido por uma flecha orc envenenada e trazido de voltamoribundo e em grande sofrimento. Mas Beleg sarou-odo seu ferimento, o que aumentou mais ainda o ódio deMîm por Beleg, que anulara assim a sua praga. «Mas volta-rá a atuar de novo», disse ele.

Nesse ano, longamente correu o murmúrio em Be-leriand, debaixo de arvoredo, sobre rio e através das gar-gantas dos montes, de que o Arco e o Elmo que tinhamcaído em Dimbar (como se pensava) se haviam erguido denovo, contra toda a esperança. Então, muitos, tanto Elfoscomo Homens, que tinham ficado sem chefes, desvalidosmas intrépidos, sobreviventes de combate, derrota e terrasdeixadas incultas, ganharam de novo ânimo e partiram àprocura dos Dois Capitães, embora ninguém soubesseainda onde ficava a sua fortaleza. Túrin recebia de bomgrado todos quantos o procuravam, mas, a conselho deBeleg, não deixava entrar nenhum desconhecido no seurefúgio no Amon Rûdh (o qual se chamava agora Echad iSedryn, Campo dos Fiéis); o caminho para lá só era co-nhecido pelos membros do Antigo Grupo e mais nenhumeram admitidos. Mas outros acampamentos e fortes guar-dados foram criados em redor: na floresta, a leste, ou nasterras altas, ou nos brejos meridionais de Methed-en-glad(«O Fim da Floresta»), a sul dos Vaus do Teiglin para Bar-erib, algumas léguas a sul do Amon Rûdh na terra outrorafértil entre Narog e os Pântanos do Sirion. De todos esteslugares podiam os homens ver o cume do Amon Rûdh e,por sinais, receber notícias e ordens.

Deste modo, antes de findo o Verão, os seguidores

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de Túrin tinham-se tornado uma grande força e o poderde Angband foi repelido. Notícias disto chegaram mesmoaté Nargothrond, onde muitos ficaram agitados, dizendoque se um bandido podia causar tal dano ao Inimigo, oque não poderia o Senhor de Narog fazer. Mas Orodreth,rei de Nargothrond, recusou modificar os seus intentos.Seguia em tudo Thingol, com quem trocava mensagenspor vias secretas; e era um senhor sensato, de acordo coma sabedoria daqueles que pensavam primeiro no seu pró-prio povo e em quanto tempo poderiam proteger-lhe avida e os bens da cobiça do Norte. Por isso não permitiuque nenhum dos seus fosse juntar-se a Túrin e envioumensageiros dizer-lhe que, em tudo quanto pudesse fazerou planejar na sua guerra, não deveria pôr os pés na terrade Nargothrond nem rechaçar Orcs para lá. Mas oferece-ria outra ajuda, que não em força de homens, aos DoisCapitães, se de tal tivessem necessidade (e nisto, crê-se, foiinspirado por Thingol e Melian).

Então Morgoth refreou a sua mão, embora fizessefreqüentes simulacros de ataque, para que, por vitória fá-cil, a confiança daqueles rebeldes pudesse tornar-se enfa-tuada. Como na realidade veio a verificar-se. Pois Túrindeu o nome de Dor-Cúarthol a toda a terra entre o Teigline a marca ocidental de Doriath; e, reivindicando o seudomínio, atribuiu a si mesmo um novo nome, Gorthol, oElmo do Terror, e o seu coração engrandeceu-se. Mas aBeleg pareceu então que o Elmo exercera em Túrin efeitodiferente do que esperara; e, olhando para os dias que viri-am, sentiu a mente perturbada.

Um dia, quando o Verão ia passando e ele e Túrinestavam sentados no Echad a descansar de uma longa in-cursão e marcha, Túrin perguntou a Beleg:

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— Porque estás tão triste e pensativo? Não temcorrido tudo bem, desde que regressaste para junto demim? O meu objetivo não revelou ser bom?

— Está tudo bem agora — respondeu Beleg. — Osnossos inimigos ainda estão surpreendidos e receosos. Eainda temos pela frente dias bons... por um tempo.

— E depois?— Inverno — disse Beleg. — E a seguir outro ano,

para aqueles que viverem para o ver.— E depois?— A cólera de Angband. Chamuscamos as pontas

dos dedos da Mão Negra, não mais do que isso. Ela nãose afastará.

— Mas não é a cólera de Angband o nosso objetivoe contentamento? — perguntou Túrin. — Que outra coisaquererias que eu fizesse?

— Muito bem o sabes. Mas desse caminho me pro-ibiste de falar. No entanto, escuta-me agora. Um rei ou osenhor de uma grande hoste tem muitas necessidades.Precisa de ter um refúgio seguro, precisa de ter riqueza emuitos cuja missão não seja a guerra. Os números acarre-tam a necessidade de alimentos, mais do que aqueles que afloresta fornecerá aos caçadores. E depois há a guarda dosegredo. Amon Rûdh é um bom lugar para alguns, temolhos e ouvidos. Mas está solitário e é visto de muito lon-ge, e não é necessária uma grande força para o cercar, anão ser que uma hoste o defenda, uma hoste muito maiordo que é a nossa, ainda, ou tem probabilidades de vir aser.

— Apesar disso, eu serei capitão da minha própriahoste — disse Túrin — e, se cair, cairei. Aqui, estou nocaminho de Morgoth e, enquanto assim estiver, ele não

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poderá usar a estrada para sul.Novas da presença do Elmo do Dragão na terra a

oeste do Sirion chegaram depressa aos ouvidos de Morgo-th, e ele riu-se, pois agora Túrin estava-lhe de novo reve-lado, ele que tanto tempo estivera perdido nas sombras esob os véus de Melian. No entanto, começou a recear queTúrin alcançasse um poder tal que a praga que sobre elelançara se tornasse nula e Túrin pudesse escapar ao desti-no que para ele fora concebido, ou então que pudesse reti-rar-se para Doriath e se perdesse de novo da sua vista. Porisso, o seu intento agora era apoderar-se de Túrin e ator-mentá-lo tanto quanto ao seu pai, torturá-lo e escravizá-lo.

Beleg estivera certo quando dissera a Túrin que ti-nham apenas chamuscado os dedos da Mão Negra e queela não se afastaria. Mas Morgoth ocultava os seus desíg-nios e, por enquanto, contentava-se com o envio dos seusbatedores mais hábeis. Assim, o Amon Rûdh não tardou aficar cercado por espiões, que espreitavam, ocultos, nodeserto, e não tomavam qualquer iniciativa contra os gru-pos de homens que entravam e saíam.

Mas Mîm estava consciente da presença de Orcsnas terras que circundavam o Amon Rûdh e o ódio quesentia por Beleg levou o seu entenebrecido coração a to-mar uma decisão perversa. Um dia, no declínio do ano,disse aos homens que estavam em Bar-en-Danwedh que iacom o filho, Ibun, procurar raízes para a reserva do In-verno; mas o seu verdadeiro propósito era procurar osservos de Morgoth e conduzi-los ao esconderijo de Tú-rin1.

1 Outra história reza, porém, que Mîm não foi ao encontro dosOrcs com deliberada intenção. Que foi a captura do seu filho ea ameaça de que o torturariam que conduziu à sua traição.

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No entanto, tentou impor algumas condições aosOrcs, que se riram dele, mas Mîm disse-lhes que poucosabiam, se estavam convencidos de que podiam conseguirqualquer coisa de um Pequeno Anão pela tortura. Pergun-taram-lhe então quais seriam as suas condições e Mîm ex-pôs o que queria: que lhe pagassem o peso em ferro decada homem que capturassem ou matassem, mas, no casode Túrin e Beleg, esse peso seria em ouro; que a casa deMîm, depois de livre de Túrin e do seu grupo, lhe fosseentregue e não o molestassem a ele; que Beleg fosse dei-xado para trás, amarrado, para Mîm se encarregar dele, eque Túrin fosse deixado em liberdade.

Os emissários de Morgoth concordaram pronta-mente com essas condições, sem a mínima intenção decumprirem a primeira nem a segunda. O capitão orc a-chou que o destino de Beleg poderia bem ser deixado nasmãos de Mîm; mas, quanto a deixar Túrin livre, «vivo paraAngband» eram as suas ordens. Embora concordassemcom as condições, insistiram em ficar cora Ibun comorefém. Então Mîm teve medo e tentou desistir do empre-endimento ou então fugir. Mas, como os Orcs tinham oseu filho, viu-se obrigado a guiá-los até Bar-en-Danwedh.Assim foi traída a Casa do Resgate.

Foi dito que a massa de pedra que constituía a co-roa ou o barrete do Amon Rûdh tinha um topo nu ou a-chatado, mas que, íngremes como eram as suas encostas,podia-se chegar ao cume subindo por uma escada talhadana rocha que subia da plataforma ou terraço existente an-tes da entrada da casa de Mîm. Havia vigias no cimo, osquais alertaram para a aproximação de inimigos. Mas es-tes, guiados por Mîm, chegaram à plataforma plana diantedas portas e Túrin e Beleg foram repelidos para a entrada

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de Bar-en-Danwedh. Alguns dos homens que tentaramsubir os degraus talhados na rocha foram abatidos pelasflechas dos Orcs.

Túrin e Beleg retiraram-se para a caverna e rolaramuma grande pedra para tapar a entrada. Neste aperto, An-dróg revelou-lhes a escada oculta que conduzia ao cumeplano do Amon Rûdh, a qual descobrira quando se perde-ra nas cavernas, como foi dito. Então, Túrin e Beleg, commuitos dos seus homens, subiram por essa escada e de-sembocaram no cume, surpreendendo os poucos Orcsque já lá tinham chegado pelo caminho exterior e recha-çando-os para fora da crista. Durante um curto espaço detempo, contiveram os Orcs que subiam pela rocha, mas,sem nenhum abrigo no cume desprotegido, muitos foramatingidos por flechas lançadas de baixo. O mais valentedestes foi Andróg, que caiu ferido de morte por uma fle-cha no cimo da escada exterior.

Então, Túrin e Beleg, com os dez homens que lhesrestavam, recuaram para o centro do cume, onde se erguiauma pedra alta, e, formando um anel à volta dela, defen-deram-se até todos terem sido mortos com exceção deBeleg e Túrin, sobre os quais os Orcs lançaram redes. Tú-rin foi amarrado e levado; Beleg, que estava ferido, foi i-gualmente amarrado, mas deixaram-no no chão, com ospulsos e os tornozelos presos a espigões de ferro cravadosna rocha.

Descobrindo a saída da escada secreta, os Orcs a-bandonaram o cume e entraram na Bar-en-Danweth, queprofanaram e saquearam. Não encontraram Mîm, escon-dido nas suas cavernas, e, quando eles partiram de AmonRûdh, Mîm apareceu no cume e, aproximando-se de ondeBeleg se encontrava, prostrado e imóvel, regozijou-se a

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contemplá-lo enquanto afiava uma faca.Porém, Mîm e Beleg não eram os únicos seres vi-

vos que se encontravam naquele pico rochoso. Andróg,apesar de ferido de morte, rastejou pelo meio dos cadáve-res direito a eles e, pegando numa espada, arremeteu-acontra o Anão. A guinchar de medo, Mîm correu para abeira do penhasco e desapareceu: fugiu por um íngreme edifícil caminho de cabras que conhecia. Mas Andróg,chamando a si as últimas forças, cortou as cordas queprendiam Beleg e libertou-o. Ao morrer, disse: «Os meusferimentos são tão profundos que nem tu conseguiriassará-los.»

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CAPÍTULO IX

A MORTE DE BELEG

Beleg procurou Túrin entre os mortos para o sepul-tar, mas não conseguiu encontrar o seu corpo. Soube as-sim que o filho de Húrin ainda estava vivo e fora levadopara Angband; mas teve de permanecer na Bar-en-Danwedh até as suas feridas sararem. Decidiu então, compouca esperança, tentar descobrir o rasto dos Orcs, e en-controu a sua pista perto dos Vaus do Teiglin. Aí tinham-se dividido, seguindo alguns pelas orlas da Floresta deBrethil, na direção do Vau do Brithiach, enquanto outrosviravam para oeste. Pareceu-lhe, assim, claro que deviaseguir aqueles que tinham ido diretamente, e com a maiorvelocidade, para Angband, a caminho do Desfiladeiro deAnach. Por isso, continuou a viajar por Dimbar, subiu oDesfiladeiro do Anach em Ered Gorgoroth, as Montanhasdo Terror, e daí passou para as terras altas de Taur-nu-Fuin, a Floresta sob a Noite, uma região de pavor e negro

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encantamento, de vagueação e desespero.Surpreendido pela noite naquela terra má, quis o

acaso que Beleg visse uma pequena luz entre as árvores e,indo na sua direção, encontrasse um Elfo deitado a dormirdebaixo de uma grande árvore morta: ao lado da sua cabe-ça estava uma lanterna, da qual caíra a cobertura. EntãoBeleg acordou o adormecido e deu-lhe lembas, e pergun-tou-lhe que destino o levara para aquele terrível lugar. Eledisse-lhe que se chamava Gwindor, filho de Guilin.

Beleg olhou-o, pesaroso, pois Gwindor mais nãoera do que uma sombra curvada e tímida da sua anteriorestatura e disposição, quando, na Batalha das LágrimasInumeráveis, aquele senhor de Nargothrond cavalgara atéàs próprias portas de Angband e aí fora aprisionado. Poispoucos dos Noldor que Morgoth fazia cativos eram mor-tos, devido à sua arte de minerar metais e pedras precio-sas; e por isso, em vez de ser morto, Gwindor foi posto atrabalhar nas minas do Norte. Estes Noldor possuíammuitos dos candeeiros fëanorianos, que eram cristais pen-dentes de uma fina rede de malha, cristais que brilhavamsempre com uma radiância interior azul, maravilhosa paraencontrar o caminho na escuridão da noite ou em túneis; edestes candeeiros nem eles próprios conheciam segredo.Muitos dos Elfos mineiros escapavam assim da escuridãodas minas, pois sabiam abrir o seu caminho para a saída;mas Gwindor recebeu uma pequena espada de um quetrabalhava nas forjas e, quando fazia parte de um grupoque minerava pedras preciosas, atacou subitamente osguardas. Conseguiu fugir, mas com uma das mãos dece-pada; e agora jazia, exausto, sob os grandes pinheiros deTaur-nu-Fuin.

Por Gwindor ficou Beleg a saber que o pequeno

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grupo de Orcs que se encontrava à frente deles, e dosquais se escondera, não levava cativos e seguia a grandevelocidade: uma guarda avançada, talvez, levando notíciasa Angband. Ao ouvir isto, Beleg desesperou: pois supuse-ra que as pistas que vira seguir para oeste, depois dos Vausdo Teiglin, eram as de uma hoste maior que, à maneirados Orcs, fora pilhar nas terras em busca de comida e sa-que, e podia estar agora de regresso a Angband pela «Ter-ra Estreita», o comprido desfiladeiro do Sirion, muito paraoeste. Se assim fosse, a sua única esperança era regressarao Vau do Brithiach e seguir depois para norte, para TolSirion. Mas, mal tomara tal decisão, ouviram o barulho deuma grande hoste que se aproximava através da floresta,vinda do Sul. Escondidos atrás de uma árvore, viram osservos de Morgoth passar, lentamente, carregados de sa-que e cativos e rodeados por lobos. E viram Túrin com asmãos acorrentadas a ser fustigado por chicotes.

Então Beleg falou do que o levava a Taur-nu-Fuin eGwindor tentou dissuadi-lo da sua busca, dizendo-lhe queserviria apenas para se juntar a Túrin no tormento que oesperava. Mas Beleg recusava-se a abandonar Túrin e, es-tando desesperado, acendeu de novo a esperança no cora-ção de Gwindor. Prosseguiram, pois, juntos, seguindo osOrcs até eles saírem da floresta nas encostas altas que des-ciam para as dunas áridas da Anfauglith. Aí, à vista dospicos das Thangorodrim, os Orcs acamparam num pe-queno vale desprotegido, à volta de cuja orla colocaramlobos de sentinela. Depois entregaram-se à pândega e aempanturrarem-se com o seu saque; e, após atormentar osseus prisioneiros, a maior parte deles adormeceu, embria-gada. Por essa altura, o dia findava e estava a ficar muitoescuro. Irrompeu do Oeste uma tempestade e a trovoada

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ribombava ao longe, enquanto Beleg e Gwindor avança-vam cautelosamente para o acampamento.

Quando todos os que lá se encontravam estavam adormir, Beleg pegou no arco e, na escuridão, atingiu qua-tro dos lobos de sentinela do lado sul, um por um e silen-ciosamente. Entraram então, com grande perigo, e encon-traram Túrin agrilhoado de pés e mãos e amarrado a umaárvore. A toda a volta havia, cravadas no tronco, facas quetinham sido arremessadas pelos seus torturadores; ele, po-rém, não estava ferido, mas sim inconsciente, mergulhadonuma letargia induzida por drogas ou num sono de abso-luta fadiga. Então Beleg e Gwindor cortaram as cordasque o prendiam à árvore e levaram-no para fora do acam-pamento. Mas, como era pesado de mais para se afastaremmuito, não foram mais longe do que um denso bosque deárvores espinhosas que se erguia nas encostas sobranceirasao acampamento. Aí deitaram-no, ao mesmo tempo que atempestade se aproximava mais e os relâmpagos dardeja-vam nas Thangorodrim. Beleg desembainhou a sua espa-da, Anglachel, e com ela cortou os grilhões que imobiliza-vam Túrin. Mas, naquele dia, o destino foi mais forte, poisa lâmina de Eöl, o Elfo Negro, escorregou na sua mão epicou o pé de Túrin.

Então ele acordou repentinamente, tomado de fúriae medo, e, vendo um vulto inclinado para si no negrume,com uma espada desembainhada na mão, levantou-se comum grande grito, convencido de que os Orcs voltavampara o atormentar. Debatendo-se com ele no escuro, pe-gou na Anglachel e matou Beleg Cúthalion, julgando queera um inimigo.

Mas, quando se ergueu, descobrindo-se liberto epronto para vender cara a vida contra inimigos imaginá-

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rios, um grande relâmpago brilhou sobre eles e, à sua luz,viu o rosto de Beleg. Imóvel como uma pedra, e silencio-so, fitou aquela terrível morte e teve consciência do quefizera. Tão terrível era a sua face, iluminada pelos relâm-pagos que dardejavam em redor, que Gwindor se assustoue encolheu no chão, sem ousar levantar os olhos.

Mas agora, em baixo, no acampamento, os Orcs ti-nham sido acordados pela tempestade e pelo grito de Tú-rin, de cujo desaparecimento se deram conta. No entanto,não organizaram nenhuma busca para o encontrar, poisestavam aterrorizados pela trovoada que vinha do Oeste,convencidos de que tinha sido enviada contra eles pelosgrandes Inimigos de além do Mar.

Soprou então um vento, e caíram grandes chuvas, edas alturas da Taur-nu-Fuin desceram torrentes revoltas.E embora Gwindor gritasse a Túrin, avisando-o do grandeperigo em que se encontravam, ele não respondeu, masficou sentado, imóvel e sem chorar, ao lado do corpo deBeleg Cúthalion, caído na escura floresta e morto pela suamão, precisamente quando cortava os grilhões de servidãoque o aprisionavam.

Quando a manhã chegou, a tempestade tinha pros-seguido para leste sobre Lothlann e o Sol outonal subiaquente e luminoso; mas os Orcs, odiando isto quase tantocomo a trovoada e convencidos de que Túrin fugira paralonge daquele lugar e todos os vestígios da sua fuga ti-nham sido levados pela chuva, partiram, apressados, ansi-osos por regressar a Angband. Gwindor viu-os marcharmuito ao longe, rumo ao norte, pelas areias fumegantes daAnfauglith. Aconteceu assim que regressaram a Morgothde mãos vazias, deixando atrás de si o filho de Húrin, sen-tado, enlouquecido e inconsciente, nas encostas da Taur-

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nu-Fuin, carregando um peso maior do que o dos seusgrilhões.

Então Gwindor despertou Túrin para que o ajudas-se a sepultar Beleg, e ele levantou-se como um sonâmbu-lo. Juntos depositaram Beleg numa campa pouco funda ecolocaram ao seu lado Belthronding, o seu grande arco,que era feito de madeira de teixo preta. Mas Gwindor to-mou a temível espada Anglachel, alegando ser melhor elacobrar vingança aos servos de Morgoth do que ficar inútilna terra; e ficou também com as lembas de Melian, paraos fortalecerem nos ermos.

Assim terminou Beleg Arco Forte, o mais leal dosamigos, o maior conhecedor de tudo quanto se abrigavanas florestas de Beleriand nos Tempos Antigos, às mãosdaquele a quem mais amava; e essa mágoa ficou marcadano rosto de Túrin e nunca se desvaneceu.

Mas a coragem e a força renovaram-se no Elfo deNargothrond que, saindo de Taur-nu-Fuin, levou Túrinpara muito longe. Nem uma só vez, enquanto vagueavamjuntos pelos longos e penosos caminhos, Túrin falou, ca-minhando como alguém sem vontade ou objetivo enquan-to o ano ia declinando e o Inverno se acercava das terrassetentrionais. Mas Gwindor estava sempre ao lado dele,para o proteger e guiar, e assim passaram para oeste, peloSirion, e chegaram finalmente ao Lago Belo e a Eithel I-vrin, a nascente de onde o Narog rompia sob as Monta-nhas da Sombra. Aí Gwindor falou a Túrin, e disse-lhe:

— Desperta, Túrin, filho de Húrin! No lago de I-vrin há riso infinito. E alimentado pelas inexauríveis nas-centes de cristal e protegido de conspurcação por Ulmo,Senhor das Águas, que esculpiu a sua beleza em temposantigos.

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Então Túrin ajoelhou e bebeu dessa água e, de sú-bito, as lágrimas soltaram-se, finalmente, e foi sarado dasua loucura.

Aí compôs uma canção para Beleg, à qual chamouLaer Cú Beleg, a Canção do Grande Arco, e cantou-a alto,descuidando o perigo. Gwindor depôs a espada Anglachelnas mãos dele e Túrin percebeu que era pesada e forte epossuidora de grande poder; mas a sua lâmina era negra ebaça e os seus gumes cegos. Então Gwindor disse:

— Esta é uma estranha lâmina, diferente de quan-tas vi na Terra Média. Assim como tu, chora por Beleg.Mas conforta-te, pois regresso a Nargothrond da Casa deFinarfin, onde nasci e vivi antes do meu sofrimento. Iráscomigo e serás sarado e renovado.

— Quem és tu?— Um Elfo errante, um cativo fugido a quem Be-

leg encontrou e confortou — respondeu Gwindor. —Contudo, em tempos fui Gwindor, filho de Guilin, umsenhor de Nargothrond, até ir para a Nirnaeth Arnoediade ser escravizado em Angband.

— Então viste Húrin, filho de Galdor, o guerreirode Dor-lómin? — perguntou Túrin.

— Não o vi, mas corre em Angband o boato deque ele ainda desafia Morgoth e que este lhe lançou umapraga, a ele e a todos os seus familiares.

— Acredito que sim — respondeu Túrin.Depois levantaram-se e, partindo de Eithel Ivrin,

viajaram para sul ao longo das margens do Narog, até se-rem capturados por batedores dos Elfos e levados comoprisioneiros para a fortaleza oculta.

Assim chegou Túrin a Nargothrond.

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CAPÍTULO X

TÚRIN EM NARGOTHROND

Ao princípio, nem o seu próprio povo reconheceuGwindor, que partira jovem e forte e regressava parecen-do um idoso de entre os Homens mortais, em virtude dosseus tormentos e labores, além de estar agora mutilado.Mas Finduilas, filha de Orodreth, o rei, reconheceu-o edeu-lhe as boas-vindas, pois amava-o e, na verdade, esta-vam prometidos em casamento antes da Nirnaeth, eGwindor amava tanto a sua beleza que lhe dera o nome deFaelivrin, que significa o brilho do Sol nas águas do Ivrin.

Assim chegou Gwindor a casa e, em consideraçãopor ele, também Túrin foi recebido, pois Gwindor apre-sentou-o como um homem corajoso, amigo querido deBeleg Cúthalion de Doriath. Porém, quando Gwindor iadizer o seu nome, Túrin deteve-o e disse: «Sou Agarwaen,

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filho de Úmarth (que significa o Manchado de Sangue,filho do Infortunado), um caçador das florestas.» Masembora calculassem que ele escolhia estes nomes por termorto o seu amigo (desconhecendo outras razões), os El-fos não o interrogaram mais.

A espada Anglachel foi de novo forjada para ele pe-los hábeis ferreiros de Nargothrond e, apesar de semprenegros, os seus gumes brilhavam com um fogo pálido.Então o próprio Túrin passou a ser conhecido em Nargo-thrond como Mormegil, o Espada Negra, em virtude dosrumores dos seus feitos com aquela arma; ele, porém,chamou à espada Gurthang, Ferro da Morte.

Graças às suas proezas e à sua eficiência na guerracom os Orcs, Túrin mereceu o favor de Orodreth e foiadmitido no seu conselho. Ora, não tendo qualquer sim-patia pela maneira de combater dos Elfos de Nargot-hrond, assente em emboscada, atuação furtiva e flechasecreta, Túrin insistiu para que fosse abandonada e usas-sem a sua força para atacarem os servos do Inimigo, emcombate aberto e perseguição. Mas Gwindor opôs-sesempre a Túrin nesta matéria no conselho do Rei, dizendoque, tendo estado em Angband, tivera um vislumbre dopoder de Morgoth e fazia uma idéia dos seus desígnios.

— Em última análise, pequenas vitórias revelar-se-ão improfícuas — declarou —, pois com elas Morgothficará a saber onde poderá encontrar os seus inimigosmais ousados e reunir forças suficientes para os destruir.Todo o poder conjunto dos Elfos e dos Edain bastou a-penas para o deter e para conquistar a paz de um cerco.Tempo bastante, na verdade, mas apenas enquanto Mor-goth aguardou pelo momento certo para romper o cerco.E nunca mais semelhante união poderá fazer-se de novo.

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Só o segredo oferece esperança de sobrevivência. Até osValar chegarem.

— Os Valar! — exclamou Túrin. — Eles abando-naram-vos e têm desprezo pelos Homens. De que serveolhar para oeste, através do mar sem fim, para um poentemoribundo no Ocidente? Há apenas um Vala com quemtemos de lidar, e esse é Morgoth. E se, no fim, não conse-guirmos derrubá-lo, pelo menos poderemos feri-lo e en-travá-lo. Pois vitória é vitória, por pequena que seja, e oseu valor não está apenas no que a ela se segue. É tambémconveniente. Para além disso, o segredo não é possível: asarmas são a única muralha contra Morgoth. Se não fizer-mos nada para o deter, toda a Beleriand cairá sob a suasombra antes que decorram muitos anos, e então, um porum, ele expulsar-vos-á das vossas terras. E que acontecerá,depois? Um resto insignificante fugirá para sul e oeste, afim de se esconder nas costas do Mar, apanhado entreMorgoth e Ossë. Ê, pois, melhor conquistar um períodode glória, por pouco que dure; pois o fim não será pior.Falas de segredo e dizes que nele reside a única esperança;mas podias emboscar e atacar de surpresa todos os bate-dores e espiões de Morgoth até ao último e mais ínfimo,de modo que nenhum regressasse com notícias a Ang-band, que mesmo assim ele ficaria a saber que vivias e cal-cularia onde. E mais te digo: embora os Homens mortaistenham vida curta comparada com a dos Elfos, preferiri-am consumi-la em combate a fugir ou submeter-se. O de-safio de Húrin Thalion é um grande feito; e mesmo queMorgoth destrua o desafiador, não poderá fazer com queo feito não tenha acontecido. Os próprios Senhores doOeste o honrarão; e não está isso escrito na história deArda, que nem Morgoth nem Manwë podem apagar?

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— Falas de coisas grandiosas — respondeu Gwin-dor — e é evidente que viveste entre os Eldar. Mas hásobre ti um negrume, se juntas Morgoth e Manwë ou falasdos Valar como inimigos de Elfos e Homens; pois os Va-lar não desprezam nada e muito menos os Filhos de Ilúva-tar. Tão pouco conheces todas as esperanças dos Eldar.Há entre nós uma profecia segundo a qual, um dia, ummensageiro da Terra Média virá das sombras para Valinore Manwë ouvirá, e Mandos compadecer-se-á. Para essaaltura não deveremos nós preservar a semente dos Noldore, também, a dos Edain? E Círdan vive agora no Sul e estálá a construir barcos; mas que sabes tu de barcos ou doMar? Pensas em ti e na tua própria glória e mandas-nosfazer o mesmo; mas nós temos de pensar noutros além denós mesmos, pois nem todos podem lutar e cair, e a essescabe-nos protegê-los da guerra e da ruína, enquanto pu-dermos.

— Manda-os então para os teus barcos, enquantoainda há tempo — respondeu Túrin.

— Eles não quereriam separar-se de nós, mesmoque Círdan pudesse mantê-los. Temos de viver juntos,enquanto pudermos, e não cortejar a morte.

— A tudo isso respondi — afirmou Túrin. — De-fesa corajosa das fronteiras e duros golpes antes que oinimigo se reúna; nesse caminho se encontra a melhor es-perança de durante muito tempo viverem juntos. E aque-les de que falas amam mais esses covardes das florestas,perseguindo extraviados como um lobo, do que aqueleque põe o seu elmo e o seu escudo adornado e escorraça oinimigo, mesmo que ele seja muito mais numeroso do quetoda a sua hoste? Pelo menos as mulheres dos Edain nãoo fazem. Elas não tentaram impedir os homens de partir

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para a Nirnaeth Arnoediad.— Sofreram, no entanto, infortúnio maior do que

se tal combate não tivesse sido travado — respondeuGwindor.

Mas Túrin subiu muito mais nas graças de Orodre-th e tornou-se o principal conselheiro do Rei, o qual pediao seu parecer para todas as coisas. Nesse tempo, os Elfosde Nargothrond renunciaram ao seu segredo e foram fa-bricadas grandes quantidades de armas; e, a conselho deTúrin, os Noldor construíram uma grandiosa ponte sobreo Narog, a partir das Portas de Felagund, para a passagemmais rápida dos seus homens, pois a guerra travava-se a-gora principalmente a leste do Narog, na Planície Guarda-da. Como marca setentrional, Nargothrond detinha agoraa «Terra Contestável», perto das nascentes do Ginglith, doNarog e das orlas das Florestas de Núath. Entre o Nen-ning e o Narog nenhum Orc passava; e a leste do Narog oseu reino estendia-se até ao Teiglin e às fronteiras dascharnecas do Nibin-noeg.

Gwindor caiu em desgraça, pois já não se encontra-va na vanguarda das armas e a sua força era reduzida. A-cometia-o com freqüência a dor no seu braço esquerdotrucidado. Mas Túrin era jovem, só recentemente atingiraa plenitude da idade adulta, e, olhando-o, via-se realmenteo filho de Morwen Eledhwen: alto, com cabelo escuro epele clara, olhos cinzentos e um rosto mais belo do que ode qualquer outro entre os homens mortais, nos TemposAntigos. A sua maneira de falar e o seu porte eram os doantigo reino de Doriath e, mesmo entre os Elfos, podiaser tomado, à primeira vista, como pertencendo a uma dasgrandes casas dos Noldor. Túrin era tão corajoso e tãoextraordinariamente eficiente no manejo de armas, sobre-

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tudo com espada e escudo, que os Elfos diziam que nãopoderia ser morto a não ser por fatalidade ou por umaflecha perversa vinda de longe. Por isso, deram-lhe cotade malha de anão para o proteger; e, num terrível estadode espírito, ele encontrou nos armeiros uma máscara deanão toda dourada e pô-la antes da batalha, de tal modoque os seus inimigos fugiram ao ver-lhe o rosto.

Agora que conseguira o que queria, tudo corriabem; fazia aquilo que agradava ao seu coração e encontra-va honra nisso, era cortês com todos e menos carrancudodo que antes, de modo que quase todos os corações sim-patizavam com ele e eram muitos os que lhe chamavamAdanedhel, o Homem Elfo. Mas, mais do que todos, Fin-duilas, a filha de Orodreth, sentia estremecer o coraçãosempre que ele se aproximava ou estava no palácio. Elatinha cabelos dourados, como era costume da casa de Fi-narfin, e Túrin começou a sentir prazer quando a via ecom a sua companhia; pois ela recordava-lhe os seus pa-rentes e as mulheres de Dor-lómin, na casa do seu pai.

Ao princípio, só a encontrava quando Gwindor es-tava perto, mas, ao fim de algum tempo, ela começou aprocurá-lo, de modo que às vezes se encontravam a sós,embora parecesse por acaso. Então ela interrogava-o arespeito dos Edain, dos quais poucos e raramente vira, e arespeito do seu país e da sua família.

Nessas ocasiões, Túrin falava-lhe livremente dessascoisas, embora não referisse o nome da terra do seu nas-cimento nem de nenhum dos seus familiares. E uma vezdisse-lhe:

— Tive uma irmã, Lalaith, ou pelo menos assim eulhe chamava, e dela me recordais. No entanto, Lalaith erauma criança, uma flor amarela na relva verde da Primave-

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ra. Se tivesse vivido, talvez estivesse agora obscurecidapelo sofrimento. Mas vós tendes porte de rainha e soiscomo uma árvore dourada. Quem me dera ter uma irmãtão bela.

— Mas o vosso porte é real, como o dos senhoresdo povo de Fingolfin; quem me dera ter um irmão tãocorajoso. E não penso que o vosso nome seja Agarwaen,nem ele é próprio de vós, Adanedhel. Por isso vos chamoThurin, o Secreto.

As suas palavras fizeram-no estremecer, mas eledisse:

— Esse não é o meu nome e tão-pouco sou um rei,pois os nossos reis são dos Eldar, enquanto eu não sou.

Túrin começou então a notar que a amizade queGwindor lhe devotava arrefecia, e sentiu também que, en-quanto ao princípio o medo e o horror de Angband ti-nham começado a afastar-se dele, o Elfo parecia agoramergulhado de novo em preocupação e tristeza. E pen-sou: «Talvez esteja magoado por eu ter contrariado as suasopiniões e levado a melhor; gostaria que não tivesse sidoassim.» Pois estimava Gwindor como seu guia e sarador esentia grande compaixão por ele. Mas, naqueles dias, aradiância de Finduilas também se esbateu, os seus passostornaram-se lentos, o seu rosto grave e ela empalideceu eemagreceu. Percebendo isso, Túrin imaginou que as pala-vras de Gwindor tinham despertado medo no seu cora-ção, por causa do que poderia acontecer.

Na verdade, a mente de Finduilas estava dividida.Pois reverenciava Gwindor e compadecia-se dele, e nãodesejava acrescentar uma lágrima que fosse ao seu sofri-mento; mas, contra a sua vontade, o seu amor por Túrinaumentava de dia para dia e ela pensava em Beren e Lú-

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thien. Mas Túrin não era como Beren! Não desdenhavadela e sentia-se satisfeito na sua companhia; mas Finduilassabia que não havia nele amor como o que ela desejava. Opensamento e o coração dele estavam noutro lugar, juntode rios em primaveras há muito passadas.

Então Túrin falou com Finduilas, e disse-lhe:— Não deixeis que as palavras de Gwindor vos

perturbem. Ele sofreu nas trevas de Angband e é duropara alguém tão valoroso estar assim mutilado e forçosa-mente diminuído. Precisa de todo o conforto e de maistempo para sarar.

— Bem o sei.— Mas nós conquistaremos esse tempo para ele!

Nargothrond perdurará! Morgoth, o Covarde, jamais vol-tará a avançar de Angband e terá de depositar toda a suaconfiança nos seus servos, assim diz Melian de Doriath.Eles são os dedos das suas mãos, e nós havemos de derro-tá-los, e decepá-los, até que ele recolha as suas garras.Nargothrond perdurará!

— Talvez — admitiu ela. — Perdurará, se vós pu-derdes consegui-lo. Mas cuidai, Thurin, pois o meu cora-ção fica pesado quando partis para o combate, receoso deque Nargothrond fique enlutada.

Depois Túrin procurou Gwindor e disse-lhe:— Gwindor, querido amigo, estás a recair na triste-

za; não o faças! Pois a tua cura virá nas casas dos teus e naluz de Finduilas.

Então Gwindor fitou Túrin, mas não disse nada, eo seu rosto ensombrou-se.

— Porque olhas assim para mim? — perguntouTúrin. — Nos últimos tempos, os teus olhos têm-me fita-do estranhamente. Em que te ofendi? Contrariei as tuas

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opiniões, mas um homem tem de dizer as coisas como asvê e não esconder a verdade em que acredita por qualquermotivo pessoal. Preferiria que pensássemos de igual mo-do, pois tenho uma grande dívida para contigo e não aesquecerei.

— Não? Todavia, os teus atos e as tuas opiniõesmudaram a minha casa e os meus familiares. A tua sombrapaira sobre eles. Porque haveria de estar feliz, eu que tudoperdi a teu favor?

Túrin não compreendeu estas palavras e supôs a-penas que Gwindor invejava o seu lugar no coração e nospareceres do Rei.

Mas Gwindor, quando Túrin o deixou, sentou-sesozinho, entregue a negros pensamentos, e amaldiçoouMorgoth, que podia perseguir assim os seus inimigos, paraonde quer que eles fugissem. «E agora, finalmente», pen-sou, «acredito no boato que corria em Angband e segundoo qual Morgoth amaldiçoou Túrin e toda a sua família.» E,procurando Finduilas, disse-lhe:

— Pairam sobre vós uma tristeza e uma dúvida esão muito freqüentes as vezes em que sinto a vossa falta ecomeço a imaginar que me evitais. Como não me dizeisqual é a causa disso, forçado sou a conjecturá-la. Filha dacasa de Finarfin, não permitais que mágoa alguma se en-treponha entre nós; pois embora Morgoth tenha arruinadoa minha vida, ainda vos amo. Mas ide para onde o amorvos conduz, pois tornei-me incapaz de vos desposar enem os meus feitos nem as minhas opiniões merecem jáqualquer honra.

Então Finduilas chorou.— Não choreis ainda! — pediu-lhe Gwindor. —

Mas cuidai, não venhais a ter motivo para tal. Não é pró-

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prio os Filhos mais Velhos de Ilúvatar desposarem osmais Novos; tão-pouco é sensato, pois a vida deles é bre-ve e depressa passa, deixando-nos na viuvez enquanto omundo durar. Nem o destino o tolerará, a não ser apenasuma ou duas vezes, por alguma causa superior da fatalida-de que não apreendemos. Mas este homem não é Beren,embora seja tão belo e tão valente como ele. Paira sobreele uma condenação, uma negra condenação. Não entreisnela! E, se o fizerdes, o vosso amor trair-vos-á, conduzin-do-vos à amargura e à morte. Pois escutai-me! Embora eleseja de fato Agarwaen, filho de Úmarth, o seu verdadeironome é Túrin, filho de Húrin, que Morgoth detém emAngband e cuja família inteira amaldiçoou. Não duvideisdo poder de Morgoth Bauglir! Não está isso escrito emmim?

Então Finduilas levantou-se, e o seu porte era, de-veras, o de uma rainha.

— Os vossos olhos estão velados, Gwindor. Poisnão enxergais ou compreendeis o que está aqui a passar-se. Terei agora de ser duplamente humilhada para vos re-velar a verdade? Pois eu amo-vos, Gwindor, e envergo-nho-me de não vos amar mais e ter-me deixado arrebatarpor um amor ainda maior, do qual não posso libertar-me.Não o procurei e durante muito tempo o ignorei. Mas, seme compadeço dos vossos sofrimentos, compadecei-vosvós dos meus. Túrin não me ama, nem amará.

— Falais assim para afastar a culpa daquele a quemamais — respondeu Gwindor. — Porque vos procura ele,fica muito tempo convosco e se afasta cada vez mais satis-feito?

— Porque também ele precisa de consolo — disseFinduilas — e está privado da sua família. Ambos tendes

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as vossas carências. E Finduilas? Não basta que tenha deme confessar a vós não amada, tereis também de dizer quefalo assim para disfarçar?

— Não, uma mulher não se engana facilmente emsemelhante caso — respondeu Gwindor. — Nem encon-trareis muitas capazes de negar que são amadas, se é essa averdade.

— Se algum de nós três é infiel, sou eu: mas nãopor minha vontade. E que dizeis do vosso destino e dosrumores de Angband? E de morte e destruição? O Ada-nedhel é poderoso na história do mundo e a sua enverga-dura ainda chegará a Morgoth em algum dia distante quevirá.

— Ele é orgulhoso — disse Gwindor.— Mas também é compassivo — alegou Finduilas.

— Ainda não despertou, mas, apesar disso, a compaixãopode sempre penetrar no seu coração e ele nunca a rene-gará. Talvez a compaixão seja sempre a única entrada. Masele não tem compaixão por mim. Sente por mim grandereverência, como se eu fora ao mesmo tempo sua mãe euma rainha.

Talvez Finduilas falasse verdade, vendo com os o-lhos penetrantes dos Eldar. E agora, sem saber o que sepassara entre Gwindor e Finduilas, Túrin mostrava-se ca-da vez mais afável em relação a ela, pois parecia-lhe maistriste. Mas um dia Finduilas disse-lhe:

— Thurin Adanedhel, porque ocultastes de mim ovosso nome? Se eu soubesse quem éreis, não vos teriarespeitado menos, mas teria compreendido melhor a vossamágoa.

— Que quereis dizer? Quem me julgais?

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— Túrin, filho de Húrin Thalion, capitão do Norte.Ao saber por Finduilas o que se passara, Túrin fi-

cou irado e disse a Gwindor:— Em grande estima te tenho por me teres salvo e

protegido. Mas agora prejudicaste-me, amigo, ao denunci-ar o meu verdadeiro nome e atrair sobre mim a minhacondenação, da qual queria estar escondido.

E Gwindor respondeu-lhe:— A condenação está em ti mesmo, não no teu

nome.Naquele período de pausa e esperança, quando, de-

vido aos feitos de Mormegil, o poder de Morgoth estavacontido a oeste do Sirion e todas as florestas tinham paz,Morwen fugiu finalmente de Dor-lómin com Niënor, asua filha, e aventurou-se a empreender a longa viagem pa-ra os palácios de Thingol. Aí aguardava-a novo tormento,pois soube que Túrin partira e a Doriath não tinham che-gado quaisquer notícias dele desde que o Elmo do Dragãodesaparecera das terras a oeste do Sirion; mas Morwen eNiënor ficaram em Doriath como hóspedes de Thingol eMelian, e aí foram tratadas com respeito.

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CAPÍTULO XI

A QUEDA DE NARGOTHROND

Volvidos cinco anos após a chegada de Túrin aNargothrond, na Primavera, chegaram dois Elfos que seidentificaram como Gelmir e Arminas, do povo de Finar-fin, e disseram que tinham uma mensagem para o Senhorde Nargothrond. Túrin comandava agora todas as forçasde Nargothrond e tinha a seu cargo todas as questões re-lacionadas com a guerra; na verdade, tornara-se severo ealtivo e ordenava tudo conforme o seu desejo ou comojulgava certo. Foram, por isso, conduzidos à presença deTúrin, mas Gelmir esclareceu: «É com Orodreth, filho deFinarfin, que desejamos falar.»

E quando Orodreth apareceu, Gelmir disse-lhe: —Senhor, pertencíamos ao povo de Angrod e desde a Nir-naeth muito caminho temos percorrido; mas ultimamente

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permanecemos entre o séquito de Círdan, junto das Em-bocaduras do Sirion. E certo dia ele chamou-nos e man-dou-nos procurar-vos, pois Ulmo, em pessoa, o Senhordas Águas, aparecera-lhe e advertira-o do grande perigoque se acerca de Nargothrond. Orodreth, porém, foi cau-teloso e perguntou:

— Então porque estais aqui vindos do Norte? Terí-eis, porventura, outras incumbências?

Arminas respondeu-lhe:— Sim, Senhor. Desde a Nirnaeth que em vão pro-

curo o reino oculto de Turgon; e temo que, nessa procura,tenha atrasado a nossa missão aqui. Pois Círdan enviou-nos por barco ao longo da costa, por razões de segredo erapidez, e fomos desembarcados em Drengist. Mas entre agente do mar encontravam-se alguns que viajaram para sulem anos passados, como mensageiros de Turgon, e pare-ceu-me, pelo seu falar cauteloso, que talvez Turgon per-manecesse ainda no Norte, e não no Sul como muitos a-creditam. Mas não encontramos nem vestígios nem rumo-res do que procurávamos.

— Porque procurais Turgon? — indagou Orodre-th.

— Porque se diz que o seu reino resistirá maistempo contra Morgoth — respondeu Arminas, mas estaspalavras pareceram de mau agouro a Orodreth, que ficoudesagradado.

— Nesse caso, não vos demoreis em Nargothrond— respondeu —, pois aqui não encontrareis quaisquernotícias de Turgon. E eu não preciso de que ninguém meavise de que Nargothrond está em perigo.

— Não vos irriteis, Senhor, se respondemos àsvossas perguntas com a verdade — disse Gelmir. — E o

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nosso desvio do caminho direto até aqui não foi infrutífe-ro, pois passamos para além do alcance das vossas senti-nelas mais avançadas; atravessamos Dor-lómin e todas asterras sob as Ered Wethrin e exploramos o Desfiladeirodo Sirion para espiarmos as manobras do Inimigo. Há umgrande ajuntamento de Orcs e criaturas malignas nessasregiões e está a formar-se uma hoste nas proximidades daIlha de Sauron.

— Eu sei — respondeu Túrin. — As vossas notí-cias são retardadas. Se a mensagem de Círdan servisse pa-ra alguma coisa, deveria ter chegado mais cedo.

— Pelo menos, Senhor, ouvireis agora a mensagem— disse Gelmir a Orodreth. — Escutai, pois, as palavrasdo Senhor das Águas, que assim falou a Círdan: «O Maldo Norte conspurcou as nascentes do Sirion e o meu po-der está a afastar-se dos dedos das águas correntes. Masalgo ainda pior está para acontecer. Dizei, portanto, aoSenhor de Nargothrond: Cerrai as portas da fortaleza enão as transponhais. Lançai as pedras do vosso orgulho aorio estrondoso, para que o mal rastejante não logre encon-trar a entrada.»

Estas palavras pareceram sombrias a Orodreth, oqual, como sempre, se voltou para Túrin em busca de a-conselhamento. Este, porém, desconfiava dos mensagei-ros e disse, desdenhoso:

— Que sabe Círdan das nossas guerras, ele que ha-bita perto do Inimigo? Deixai o marinheiro velar pelosseus navios! Mas se, na verdade, o Senhor das Águas nosquer avisar, então que fale mais claramente. Caso contrá-rio, a alguém treinado na guerra continuará a parecer me-lhor, no que nos respeita, reunir a nossa força e ir ousa-damente ao encontro dos nossos inimigos, antes que eles

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se aproximem demasiado.Então Gelmir inclinou-se diante de Orodreth e dis-

se:— Falei como me foi ordenado que falasse, Senhor

— e voltou-se para se afastar.Mas Arminas perguntou a Túrin:— Sois, na verdade, da Casa de Hador, como ouvi

dizer?— Aqui o meu nome é Agarwaen, Espada Negra

de Nargothrond — disse Túrin. — Ao que parece, soisgrande adepto da linguagem cautelosa, amigo Arminas. Ébom que o segredo de

Turgon seja de vós escondido, ou em breve seriaouvido em Angband. O nome de um homem a ele per-tence, e se o filho de Húrin souber que o denunciastesquando ele deveria permanecer oculto, então que Morgothvos aprisione e queime a vossa língua!

Arminas ficou abalado com a fúria negra de Túrin,mas Gelmir disse:

— Ele não será denunciado por nós, Agarwaen.Não estamos a conversar atrás de portas fechadas, onde épossível falar com maior franqueza? E eu creio que Armi-nas vos interrogou por ser do conhecimento de todosquantos habitam junto do Mar que Ulmo tem grande ami-zade pela Casa de Hador e há até quem diga que Húrin eHuor, seu irmão, estiveram uma vez no Reino Escondido.

— Se assim foi, então ele não terá falado disso aninguém, nem aos superiores nem aos inferiores, e menosainda ao seu filho, na infância deste — respondeu Túrin.— Portanto, não acredito que Arminas mo tenha pergun-tado a fim de saber alguma coisa de Turgon. Desconfio detais arautos de desgraças.

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— Poupai a vossa desconfiança! — exclamou Ar-minas, irado. — Gelmir compreendeu-me mal. Eu per-guntei porque duvido do que parece aqui ser acreditado;pois na realidade pouco vos pareceis com a família de Ha-dor, seja o vosso nome qual for.

— E que sabeis vós dela? — perguntou Túrin.— Vi Húrin e, antes dele, os seus antepassados. E

nos ermos de Dor-lómin conheci Tuor, filho de Huor,irmão de Húrin; e ele é como os seus antepassados, o quevós não sois.

— É possível que sim, embora de Tuor nunca an-tes tenha ouvido falar. Mas, se a minha cabeça é negra enão dourada, disso me não envergonho. Pois não sou oprimeiro dos filhos que se parece com a sua mãe e prove-nho de Morwen Eledhwen, da Casa de Beor e parente deBeren Camlost.

— Não falo da diferença entre o negro e o dourado— esclareceu Arminas. — Mas outros da Casa de Huorcomportam-se de modo diverso e, entre eles, Tuor. Poisusam de cortesia e escutam bons conselhos, mantendo osSenhores do Oeste em respeito. Mas vós, ao que parece,aconselhais-vos com o vosso próprio discernimento ouapenas com a vossa espada e falais altivamente. Digo-vos,Agarwaen Mormegil, que, se assim fizerdes, diferente seráo vosso destino daquele que as Casas de Hador e Beorpoderiam esperar.

— Outro sempre foi — respondeu Túrin. — E se,como parece, devo sofrer o ódio de Morgoth por causa davalentia do meu pai, terei também de suportar os sarcas-mos e os maus agouros de um renegado da guerra, aindaque ele se proclame aparentado com reis? Voltai para ascostas seguras do Mar!

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Então Gelmir e Arminas partiram e regressaram aoSul; mas, apesar das provocações de Túrin, de bom gradoteriam aguardado o combate ao lado dos seus parentes, esó partiram porque Círdan os encarregara, por ordem deUlmo, de lhes levarem notícias de Nargothrond e do re-sultado do que lá tinham ido fazer. Orodreth ficou muitoperturbado com as palavras dos mensageiros e a disposi-ção de Túrin tornou-se mais sombria; de modo algum es-cutaria os conselhos deles e menos ainda toleraria que agrande ponte fosse descida. Pois até aí, pelo menos, aspalavras de Ulmo tinham sido bem interpretadas.

Pouco depois da partida dos mensageiros, Handir,Senhor de Brethil, foi morto; pois os Orcs invadiram a suaterra, procurando assegurar assim os Vaus do Teiglin parao seu posterior avanço. Handir deu-lhes luta, mas os Ho-mens de Brethil foram derrotados e rechaçados para assuas florestas. Os Orcs não os perseguiram, porque ti-nham alcançado o que pretendiam, naquele momento; econtinuaram a concentrar a sua força no Canal do Sirion.

No Outono desse ano, Morgoth julgou ter chegadoo momento de lançar contra o povo de Narog a grandehoste que havia muito preparara; e Glaurung, o Pai dosDragões, atravessou a Anfauglith e passou daí para os va-les setentrionais do Sirion, onde causou grande infortúnio.Sob as sombras das Ered Wethrin, conduzindo atrás de sium grande exército de Orcs, poluiu o Eithel Ivrin e de lápassou para o reino de Nargothrond, incendiando TalathDirnen, a Planície Guardada, entre o Narog e o Teiglin.

Então, os guerreiros de Nargothrond avançaram, ealto e terrível pareceu, nesse dia, Túrin, e o coração dahoste animou-se enquanto ele cavalgava à direita de Oro-dreth. Mas a hoste de Morgoth era muito maior do que

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aquilo que qualquer dos batedores dissera, e ninguém, anão ser Túrin, protegido pela sua máscara de anão, conse-guia resistir à aproximação de Glaurung. Os Elfos foramobrigados a recuar e derrotados no campo de Tumhalad,onde todo o orgulho e toda a hoste de Nargothrond fo-ram humilhados. Orodreth, o Rei, foi morto na primeiralinha do combate e Gwindor, filho de Guilin, ferido demorte. Mas Túrin correu em seu socorro e todos fugiramdiante dele. Tirou Gwindor do meio da confusão e fugiupara uma mata, onde o deitou na erva.

Então Gwindor disse-lhe:— Como te transportei assim tu me transportaste!

Mas infortunado foi o meu gesto e vão é o teu, pois omeu corpo está ferido para além de toda a possibilidade decura e tenho de deixar a Terra Média. E, embora te estime,filho de Húrin, lamento o dia em que te salvei dos Orcs.Não fossem as tuas proezas e o teu orgulho, ainda teriaamor e vida, e Nargothrond permaneceria algum tempo.Agora, se me estimas, deixa-me! Apressa-te a regressar aNargothrond e salva Finduilas. E por último te digo: sóela se ergue entre ti e o teu destino. Se falhares perante ela,ele não falhará em encontrar-te. Adeus!

Então Túrin bateu velozmente em retirada paraNargothrond, juntando a si todos os grupos em debanda-da que encontrou pelo caminho; e, enquanto viajavam, asfolhas caíam das árvores sopradas por um grande vento,pois o Outono estava a ceder o lugar a um agreste Inver-no. Mas Glaurung e a sua hoste de Orcs chegaram lá antesdele, por causa do tempo que levara a ajudar Gwindor, esurgiram subitamente, antes que aqueles que tinham fica-do de guarda tivessem conhecimento do que aconteceraem Tumhalad. Nesse dia, a ponte que Túrin mandara

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construir sobre o Narog revelou-se um infortúnio, poispor ser grande e de robusta envergadura não pôde ser des-truída com rapidez; assim, o inimigo passou velozmentesobre o rio profundo e Glaurung lançou-se com todo ofogo e ímpeto contra as Portas de Felagund, derrubou-as,e entrou.

E, no momento em que Túrin chegou, o terrívelsaque de Nargothrond estava quase consumado. Os Orcstinham chacinado ou rechaçado todos os que ainda conti-nuavam armados e estavam nesse momento a pilhar asgrandes salas e mansões, saqueando e destruindo; mas àsmulheres e donzelas que não tinham sido queimadas ouassassinadas haviam-nas reunido no pátio diante das por-tas, como escravas que levariam para Angband. Perante talruína e calamidade, Túrin chegou e ninguém pôde, ou nãoquis, detê-lo, embora ele abatesse tudo quanto encontravapela frente, atravessasse a ponte e abrisse caminho na di-reção das cativas.

Encontrava-se agora sozinho, pois os poucos que ohaviam seguido tinham fugido para se esconderem. Mas,nesse momento, Glaurung, o impiedoso, saiu das derru-badas Portas de Felagund e ficou para trás, entre Túrin e aponte. De súbito, falou através do espírito maligno quehavia nele, e disse:

— Salve, Túrin, filho de Húrin. Feliz encontro!Então Túrin avançou contra ele, com fogo nos o-

lhos e os gumes da Gurthang a brilhar como chamas. MasGlaurung conteve-lhe a investida, arregalou os olhos deserpente e fitou Túrin. Este sustentou aquele olhar semmedo, ao mesmo tempo que levantava a espada; e, instan-taneamente, foi atingido pelo terrível feitiço do dragão eficou como que transformado em pedra. Assim permane-

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ceram muito tempo, imóveis e silenciosos diante dasgrandes Portas de Felagund. Depois Glaurung voltou afalar, provocando Túrin:

— Perversos têm sido todos os teus atos, filho deHúrin. Filho adotivo ingrato, bandido, assassino do teuamigo, ladrão de amor, usurpador de Nargothrond, capi-tão temerário e imprudente, desertor da tua família. Comocativas vivem tua mãe e tua irmã em Dor-lómin, na misé-ria e na privação. Tu vestes como um príncipe, mas elascobrem-se de farrapos. Por ti anseiam, mas isso não teperturba. Feliz se sinta teu pai quando souber que tal filhotem: e sabê-lo-á.

Sob o feitiço de Glaurung, Túrin escutou as suaspalavras, viu-se num espelho deformado por maldade eabominou o que viu.

E, enquanto permanecia dominado pelos olhos deGlaurung, com a mente atormentada e incapaz de se me-xer, a um sinal do Dragão, os Orcs levaram as cativas ar-rebanhadas, que passaram perto de Túrin e seguiram pelaponte. Entre elas ia Finduilas, que estendeu os braços paraTúrin e gritou o seu nome. Mas só depois de os gritos delae os lamentos das cativas se perderem na estrada que se-guia para norte Glaurung libertou Túrin, que não conse-guia tapar os ouvidos para aquela voz que continuava aatormentá-lo.

Nisto, inesperadamente, Glaurung desviou o olhare aguardou; e Túrin estremeceu devagar, como se acordas-se de um sonho horrendo. Depois, recuperando a consci-ência com um grito estrondoso, lançou-se contra o Dra-gão. Mas Glaurung riu-se.

— Se desejas ser morto, de bom grado te matarei.Mas em pouco isso ajudará Morwen e Niënor. Não qui-

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seste saber dos gritos da mulher elfa. Negarás também oslaços do teu sangue?

Mas Túrin, puxando da espada, arremeteu-lha aosolhos e Glaurung, recuando rapidamente, empinou-se a-cima dele, e disse:

— Ah, pelo menos és corajoso, mais do que todosquantos conheci. E mentem os que dizem que nós, pelanossa parte, não honramos a valentia dos nossos inimigos.Agora escuta! Ofereço-te a liberdade. Procura a tua famí-lia, se puderes. Segue o teu caminho! E se Elfo ou Ho-mem sobreviver para contar a história destes dias, segu-ramente referirão o teu nome com desprezo, se recusaresesta dádiva.

Então Túrin, ainda enfeitiçado pelos olhos do Dra-gão, como se estivesse a tratar com um inimigo capaz deconhecer a piedade, acreditou nas palavras de Glaurung e,voltando-se, atravessou velozmente a ponte. Mas Glau-rung gritou atrás dele, numa voz terrível:

— Apressa-te agora, filho de Húrin, para Dor-lómin. Não vá acontecer que os Orcs cheguem antes de ti,uma vez mais. E, se te demorares a procurar Finduilas,então nunca mais voltarás a ver Morwen nem Niënor, eelas te amaldiçoarão.

Mas Túrin seguiu pela estrada que levava para nortee Glaurung voltou a rir-se, pois cumprira aquilo de que oseu Senhor o encarregara. Então, voltou-se para o seupróprio prazer, expeliu o seu sopro e queimou tudo quan-to havia em redor. Mas a todos os Orcs entregues ao sa-que desbaratou e afugentou, e negou-lhes tudo quantotinham pilhado, até à mais insignificante coisa de algumvalor. Destruiu depois a ponte e mergulhou-a na espumado Narog; e, sentindo-se assim seguro, reuniu todo o te-

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souro e todas as riquezas de Felagund, amontoou-os edeitou-se sobre eles no salão mais recôndito, onde repou-sou algum tempo.

Túrin apressava-se pelos caminhos que conduziamao Norte, passando pelas terras agora desoladas entre oNarog e o Teiglin, e o Inverno Terrível avançou ao seuencontro; pois nesse ano a neve caiu antes de passado oOutono e a Primavera chegou tarde e fria. Enquanto a-vançava, tinha sempre a sensação de ouvir a voz de Fin-duilas, gritando o nome dele por florestas e montes, e asua angústia não conhecia limites. Mas, com o coraçãoincendiado pelas mentiras de Glaurung, e vendo semprena sua mente os Orcs incendiando a casa de Húrin ou in-fligindo tormentos a Morwen e Niënor, manteve-se noseu caminho, sem nunca se desviar dele.

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CAPÍTULO XII

O REGRESSO DE TÚRIN A DOR-LÓMIN

Por fim, esgotado pela pressa e pela longa estrada(pois quarenta léguas ou mais percorrera sem descanso),chegou com o primeiro gelo do Inverno às lagoas do I-vrin, onde antes fora sarado. Mas agora estavam trans-formadas num lodaçal gelado e não mais ali pôde beber.

Daí chegou às gargantas de Dor-lómin e a neveveio, agreste, do Norte, tornando os caminhos perigosos egélidos. Embora fossem decorridos vinte e três anos des-de que pisara aquele caminho, ele estava-lhe gravado nocoração, tão grande fora o sofrimento de cada passoquando se separara de Morwen. Assim regressou, final-mente, à terra da sua infância. Estava desolada e vazia e aspessoas que lá se encontravam eram poucas e grosseiras,falavam a língua áspera dos Easterlings e a língua antigatornara-se a linguagem de servos ou de inimigos. Por isso,Túrin caminhou cautelosamente, embuçado e silencioso, e

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encontrou por fim a casa que procurava. Ali estava, vaziae escura, e nenhum ser vivo habitava perto dela, poisMorwen partira e Brodda, o Intruso, (aquele que, pela for-ça, tomara Aerin, parente de Húrin, para mulher) pilhara acasa e apoderara-se de tudo quanto lhe restava em bens oucriadagem. A casa de Brodda era a que ficava mais pertoda de Húrin e para lá se dirigiu Túrin, extenuado pela via-gem e pelo sofrimento, para rogar abrigo; este foi-lhe con-cedido, pois alguns dos costumes mais generosos de anti-gamente ainda ali eram respeitados por Aerin. Foi-lhe da-do um lugar perto do lume, junto dos criados e de algunsvagabundos tão sombrios e esgotados pelo caminho comoele, e Túrin pediu que lhe dessem notícias da terra.

Perante isso, o grupo remeteu-se ao silêncio e al-guns dos presentes afastaram-se, olhando de esguelha parao desconhecido. Mas um velho vagabundo, com uma mu-leta, disse-lhe:

— Se quereis falar a língua antiga, Senhor, falai-abaixo e não peçais notícias. Quereríeis ser espancado co-mo um tratante ou enforcado como um espião? Poisqualquer deles bem podeis ser, julgando pelo vosso aspec-to. O que equivale a dizer — acrescentou, aproximando-se mais e falando ao ouvido de Túrin — uma das bondo-sas pessoas de antigamente que vieram com Hador nostempos dourados, antes de as cabeças usarem pelagem delobo. Alguns daqui são desses, embora estejam agora re-duzidos a mendigos e escravos, e não fora a Senhora Ae-rin não teriam nem este lume nem este caldo. De ondesois e que notícias gostaríeis de saber?

— Havia uma senhora chamada Morwen — res-pondeu Túrin — e há muito tempo vivi na sua casa. Aí,após longa errância, vim procurar acolhimento, mas nem

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lume nem pessoas lá se encontram agora.— Nem se encontraram durante todo este longo

ano e mais tempo ainda — respondeu o velho. — Masescassos foram tanto o lume como as pessoas dessa casadesde a terrível guerra; pois ela pertencia ao povo antigo,como sem dúvida sabeis era viúva do nosso senhor Húrin,filho de Galdor. Não ousaram, porém, tocar-lhe, pois te-miam-na, altiva e bela como uma rainha, antes de o sofri-mento a desfigurar. Bruxa lhe chamavam, e evitavam-na.Bruxa significa apenas «amiga de elfos», na nova lingua-gem. Contudo, roubaram-na. Muitas vezes ela e a filhateriam passado fome, não fora a Senhora Aerin. Diz-seque as ajudava em segredo e por isso era muitas vezes es-pancada pelo rústico Brodda, seu marido por obrigação.

— E nesse longo ano e mais tempo ainda? — per-guntou Túrin. — Morreram ou foram escravizadas? Ouatacaram-na os Orcs?

— Não se sabe ao certo — respondeu o velho. —Mas ela desapareceu com a filha e o tal Brodda saqueou-lhe a casa e levou-lhe o que restava. Nem um cão sobrou,e os poucos que lá trabalhavam foram por ele feitos escra-vos; tirando alguns que se tornaram mendigos, como eu.Durante muitos anos a servi, e antes ao grande senhor.Sador Perneta me chamam, pois assim me tornou um ma-chado maldito nas florestas, há muito tempo; de contrário,no Grande Monte jazeria agora. Bem me lembro ainda dodia em que o filho de Húrin foi mandado para fora, e co-mo nós choramos os dois... e ela, quando ele partiu. Diz-se que foi para o Reino Escondido.

Chegado aqui, o velho travou a língua e olhou, des-confiado, para Túrin.

— Sou velho e falo de mais, Senhor — justificou-

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se. — Não me deis ouvidos! Mas embora seja agradávelfalar a língua antiga com alguém que a fala cortesmente,como em dias passados, os tempos são maus e precisamosde nos acautelar. Nem todos os que falam a língua cortêssão corteses de coração.

— É verdade — respondeu Túrin. — Mas o meucoração está sombrio. Porém, se temes que eu seja umespião do Norte ou do Leste, então pouco mais sabedoriaadquiriste do que tinhas há muito tempo, Sador Labadal.

O velho olhou-o, boquiaberto; depois, trêmulo, fa-lou:

— Vamos lá para fora! Está mais frio, mas é maisseguro. Vós falais muito alto e eu demasiado, para umasala Easterling.

Quando chegaram ao pátio, agarrou a capa de Tú-rin.

— Há muito tempo morastes naquela casa, dizeis.Senhor Túrin, porque voltastes? Finalmente os meus o-lhos estão abertos, assim como os meus ouvidos: tendes avoz do vosso pai. Mas somente o jovem Túrin alguma vezme tratou por esse nome, Labadal. Não o fazia com máintenção; éramos amigos alegres, nesse tempo. Que pro-cura ele agora aqui? Poucos restam e estamos velhos edesarmados. São mais felizes os que se encontram noGrande Monte.

— Não vim a pensar em combater — respondeuTúrin —, embora as tuas palavras me tenham despertado,agora, esse pensamento, Labadal. Mas isso terá de esperar.Vim em busca da Senhora Morwen e de Niënor. Que po-des dizer-me, depressa?

— Pouco, Senhor — confessou Sador. — Elas par-tiram em segredo. Murmurou-se entre nós que tinham

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sido chamadas pelo Senhor Túrin, pois não duvidávamosde que ele se tornara notável com os anos, rei ou fidalgoem algum país do Sul. Mas parece que tal não aconteceu.

— Pois não. Fidalgo fui, num país do sul, ainda queseja agora um vagabundo. Mas não as chamei.

— Assim sendo, não sei o que dizer-vos — confes-sou Sador. — Mas a Senhora Aerin saberá, não duvido.Ela conhecia todas as intenções da vossa mãe.

— Como poderei chegar até ela?— Isso não sei. Muito sofrimento lhe causaria se

fosse surpreendida a segredar a uma porta com um mise-rável vagabundo do povo oprimido, ainda que algumamensagem lograsse fazê-la vir. E um pedinte como vósnão irá longe no palácio, a caminho do conselho superior,sem que os Easterlings o detenham e espanquem, ou piorainda.

Furioso, Túrin gritou:— Não posso entrar no palácio de Brodda porque

eles me espancarão? Vem e verás!Sem mais, entrou no palácio, atirou para trás o ca-

puz e, afastando para o lado todos os que se atravessavamno seu caminho, dirigiu-se para a mesa onde estavam sen-tados o senhor da casa, a sua mulher e outros senhoresEasterlings. Levantaram-se alguns para o deter, mas eleatirou-os ao chão e gritou:

— Alguém governa esta casa ou trata-se de um an-tro de Orcs? Onde está o Senhor?

Brodda levantou-se, furioso.— Eu governo esta casa — afirmou, mas, antes que

pudesse acrescentar mais alguma coisa, Túrin disse:— Então ainda não aprendestes a cortesia que vi-

gorava nesta terra antes de vós. É agora atitude de ho-

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mens consentir que lacaios tratem com rudeza os parentesdas suas mulheres? Isso eu sou, e tenho um recado para aSenhora Aerin. Posso entrar livremente ou terei de o fazercomo quiser?

— Entrai — respondeu Brodda, carrancudo, en-quanto Aerin empalidecia.

Então Túrin dirigiu-se para a mesa alta, parou e in-clinou-se.

— Peço-vos perdão, Senhora Aerin, por aparecerdesta maneira; mas a minha incumbência é urgente e trou-xe-me de longe. Procuro Morwen, Senhora de Dor-lómin,e Niënor, sua filha. Mas encontrei a casa dela deserta epilhada. Que podeis dizer-me?

— Nada — respondeu Aerin com grande medo,pois Brodda observava-a atentamente.

— Em tal não acredito — declarou Túrin.Então Brodda saltou para a frente, com o rosto

vermelho de fúria e embriaguez.— Basta! — gritou. — Como ousais contradizer a

minha mulher na minha presença, vós que sois um men-digo e falais a língua dos servos? Não existe nenhuma Se-nhora de Dor-lómin. Mas, quanto a Morwen, ela pertenciaao povo escravizado e fugiu, como é hábito dos escravos.Fazei o mesmo, e depressa, ou mando-vos enforcar numaárvore!

Então Túrin saltou sobre ele, desembainhou a es-pada negra, agarrou Brodda pelos cabelos e empurrou-lhea cabeça para trás.

— Que ninguém se mexa — avisou —, ou esta ca-beça separar-se-á dos ombros! Senhora Aerin, rogar-vos-iaperdão, uma vez mais, se pensasse que este labrego algu-ma vez vos fez alguma coisa a não ser mal. Mas agora falai

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e não me renegueis! Não sou eu Túrin, Senhor de Dor-lómin? Deverei ordenar-vos?

— Ordenai — disse ela.— Quem pilhou a casa de Morwen?— Brodda — respondeu ela.— Quando fugiu ela, e para onde?— Um ano e três meses são volvidos. Mestre

Brodda e outros dos Intrusos do Leste por aqui a oprimi-ram grandemente. Há muito tempo foi convidada para oReino Escondido e, finalmente, aceitou o convite. Pois asterras intermédias encontravam-se então, por uns tempos,livres do mal, graças às proezas do Espada Negra do paísdo Sul, ao que se diz; mas isso agora acabou. Ela contavaencontrar lá o filho, à sua espera. Mas se vós sois ele, en-tão temo que tudo tenha corrido errado.

Túrin riu-se amargamente.— Errado, errado? — gritou. — Sim, sempre erra-

do, errado e torto como Morgoth!Tomou-o de súbito uma ira negra, pois os seus o-

lhos estavam abertos e o feitiço de Glaurung perdia osseus últimos fios, e ele percebeu as mentiras com que ohaviam burlado.

— Terei sido enganado de tal forma para vir aqui emorrer desonrado, eu que podia, pelo menos, ter caídovalentemente diante das Portas de Nargothrond?

E, vindos da noite que envolvia o palácio, pareceu-lhe ouvir os gritos de Finduilas.

— Mas o primeiro a morrer aqui não serei eu! —gritou. Agarrou Brodda e, com a força da sua enorme an-gústia e fúria, ergueu-o alto e sacudiu-o, como se fosse umcão.

— Morwen do povo escravizado, dizes? Tu, filho

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de poltrões, ladrão, escravo de escravos!E atirou Brodda de cabeça para cima da sua própria

mesa, direito ao rosto de um Easterling que se ergueu paraatacar Túrin. Na queda, Brodda partiu o pescoço e Túrinsaltou atrás dele e abateu mais três que ali estavam enco-lhidos, pois tinham sido apanhados desarmados. Gerou-setumulto no salão. Os Easterlings que lá se encontravamteriam investido contra Túrin, mas muitos outros ali setinham reunido que pertenciam ao povo antigo de Dor-lómin: durante muito tempo tinham sido servos submis-sos, mas agora ergueram-se com gritos de rebeldia. Embreve se travava grande luta no salão e, embora os cativosdispusessem apenas de facas de trinchar carne, e outrosobjetos semelhantes de que puderam apoderar-se, paraenfrentar punhais e espadas, muitos foram rapidamenteabatidos de ambos os lados, antes de Túrin saltar para omeio deles e matar os últimos Easterlings que restavam nosalão.

Depois descansou, encostado a uma coluna, e o fo-go da sua ira assemelhou-se a cinzas. Mas o velho Sadorarrastou-se para ele e agarrou-o pelos joelhos, pois estavaferido de morte.

— Mais do que três vezes sete anos foi muito tem-po para esperar por esta hora — disse-lhe. — Mas agoraide, ide, Senhor! Ide e não volteis, a não ser com uma for-ça maior. Eles levantarão a terra toda contra vós. Muitosfugiram do salão. Ide, ou acabareis aqui. Adeus! — De-pois o seu corpo escorregou e ele morreu.

— Ele fala com a verdade da morte — disse Aerin.— Aprendestes o que havia a aprender. Agora sede céleree parti! Mas procurai primeiro Morwen e confortai-a, ouser-me-á difícil perdoar todo o caos que desencadeastes

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aqui. Pois por má que a minha vida fosse, trouxestes amorte sobre mim com a vossa violência. Os Intrusos vin-garão esta noite tudo quanto aqui se passou. Impetuosossão os vossos atos, filho de Húrin, como se fôsseis ainda acriança que conheci.

— E timorato é o vosso coração, Aerin, filha deIndor, como era quando vos chamava tia e um cão atiçadovos assustava — respondeu Túrin. — Fostes feita paraum mundo mais afável. Mas vinde! Levar-vos-ei a Mor-wen.

— A neve cobre a terra, mas é ainda mais densasobre a minha cabeça. Tão depressa morreria nos ermosconvosco como com os brutais Easterlings. Não podeisemendar o que fizestes. Ide! Ficar tornaria tudo pior e en-lutaria escusadamente Morwen. Ide, rogo-vos!

Túrin fez-lhe uma vênia profunda, voltou-se e saiudo salão de Brodda; mas foi seguido por todos os rebeldescom forças para tal. Fugiram na direção das montanhas,pois alguns de entre eles conheciam bem os caminhos dosermos e abençoaram a neve que caiu atrás deles e lhes co-briu o rasto. Assim, embora a perseguição não tardasse,com muitos homens, cães e relinchos de cavalos, eles fugi-ram para sul, para os montes. Depois, olhando para trás,viram uma luz vermelha muito ao longe, na terra de ondehaviam fugido.

— Deitaram fogo ao palácio — comentou Túrin.— Com que propósito o fariam?

— Eles? Não, Senhor: ela, me parece — disse um,de nome Asgon. — Não poucos homens de armas inter-pretam mal a paciência e a serenidade. Ela fez muito bementre nós, e por alto preço. O seu coração não era timora-to e a paciência acaba por render-se.

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Alguns dos homens mais resistentes, capazes desuportar o Inverno, permaneceram com Túrin e conduzi-ram-no por estranhos caminhos a um refúgio nas monta-nhas, uma caverna conhecida de bandidos e renegados; elá encontraram escondida alguma quantidade de alimen-tos. Aí esperaram que a neve parasse, deram comida a Tú-rin e conduziram-no a um desfiladeiro pouco usado queseguia para sul, para o Vale do Sirion, onde a neve nãochegara. No caminho de descida, despediram-se.

— Passai bem, Senhor de Dor-lómin — desejouAsgon. — Mas não vos esqueçais de nós. Agora seremoshomens perseguidos e a gente do Lobo tornar-se-á aindamais cruel por causa da vossa vinda. Por isso, ide e nãovolteis, a não ser com uma força capaz de nos libertar.Adeus!

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CAPÍTULO XIII

A CHEGADA DE TÚRIN A BRETHIL

Então Túrin desceu na direção do Sirion, mas a suamente estava dividida. Pois parecia-lhe que, enquanto an-tes tivera duas amargas escolhas, tinha agora três, e o seupovo oprimido, sobre o qual lançara apenas atribulações,chamava-o. Apenas um conforto lhe restava: Morwen eNiënor haviam chegado há muito a Doriath e só graças àsproezas do Espada Negra de Nargothrond o seu caminhose tornara seguro. E disse, mentalmente: «Para onde me-lhor poderia eu tê-las conduzido, se tivesse, de fato, che-gado mais cedo? Se a Cerca de Melian for quebrada, entãotudo estará acabado. Não, é melhor assim; pois com a mi-nha ira e os meus atos impetuosos lanço uma sombra on-de quer que me encontre. Que Melian as guarde! E eu dei-xá-las-ei em paz e, por uns tempos, ao abrigo da sombra.»

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Mas tarde de mais procurava Túrin agora Finduilas,percorrendo as florestas sob os beirais das Ered Wethrin,solitário e cauteloso como um animal, e revistou todas asestradas que seguiam para norte, para o desfiladeiro doSirion. Tarde de mais. Pois as chuvas e as neves tinhamapagado todas as pistas. Mas aconteceu que, ao passar aolongo do Teiglin, encontrou algumas pessoas do Povo deHaleth, da Floresta de Brethil. A guerra reduzira-as a umpequeno povo que, na sua maioria, habitava agora secre-tamente no interior de uma cerca no Amon Obel, bem nointerior da floresta. O lugar chamava-se Ephel Brandir,pois Brandir, filho de Handir, era agora o seu senhor, des-de que o seu pai fora morto. E Brandir estava longe de serum homem de guerra, tendo ficado coxo em conseqüênciade ter partido uma perna num desastre, na infância. Alémdisso, era brando de natureza, amando a madeira mais doque o metal, e o conhecimento das coisas que crescem naterra mais do que outros saberes.

Mas alguns dos lenhadores ainda perseguiam osOrcs nas suas fronteiras, e foi deste modo que Túrin láchegou e ouviu o som de uma peleja. Apressou-se a seguirnessa direção e, ao passar sorrateiramente por entre asárvores, viu um pequeno bando de homens cercados porOrcs. Os homens defendiam-se desesperadamente, decostas para um maciço de árvores que se erguia, isolado,numa clareira; mas os Orcs eram numerosos e eles tinhampouca esperança de escapar, a não ser que chegasse algu-ma ajuda. Por isso, fora da vista entre a vegetação rasteira,Túrin fez grande barulho, batendo com os pés no chão eentrechocando as armas, e depois gritou muito alto, comose conduzisse muitos homens:

— Ah, cá estão eles! Sigam-me! Sigam-me já e aba-

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tam-nos!Ouvindo isso, muitos dos Orcs olharam para trás,

assustados, e depois Túrin saltou do esconderijo, como seacenasse a muitos homens que o seguiam, e os gumes daGurthang faiscaram como chamas na sua mão. Conhe-cendo por demais aquela lâmina, antes mesmo de ele seaproximar muitos Orcs dispersaram e fugiram. Então oslenhadores correram ao encontro de Túrin e, juntos, per-seguiram o inimigo até ao rio: poucos o atravessaram. Porfim, detiveram-se na margem e Dorlas, chefe dos lenhado-res, disse:

— Sois veloz na perseguição, Senhor, mas os vos-sos homens são lentos a seguir-vos.

— Não — respondeu Túrin —, nós corremos jun-tos como um só homem e não permitimos que nos sepa-rem.

Então os homens de Brethil riram-se, e disseram:— Bem, um assim vale por muitos e muito gratos

vos estamos. Mas quem sois e o que fazeis aqui?— Faço apenas o meu ofício, que é matar Orcs. E

habito onde o meu ofício me leva. Sou o Homem Selva-gem da Floresta.

— Vinde, então, e habitai conosco, pois vivemosnas florestas e precisamos de tais artífices. Sereis bem-vindo.

Túrin olhou-os de modo estranho e disse:— Quer dizer que ainda resta alguém que me per-

mite ensombrar as suas portas? Mas, amigos, tenho umamissão difícil e dolorosa para cumprir: encontrar Findui-las, filha de Orodreth de Nargothrond, ou pelo menossaber novas dela. Ai de mim, muitas semanas decorreramdesde que foi levada de Nargothrond, mas tenho de con-

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tinuar a minha busca.Olharam-no, compadecidos, e Dorlas disse:— Não procureis mais. Pois uma hoste de Orcs

veio de Nargothrond na direção dos Vaus do Teiglin enós fomos alertados com grande antecedência, por causado número de cativos que levavam. Então pensamos dar onosso pequeno golpe na guerra e montamos uma embos-cada aos Orcs com todos os archeiros que conseguimosreunir, na esperança de salvar alguns dos prisioneiros. In-felizmente, porém, mal foram atacados, os malvados Orcscomeçaram por matar as mulheres que se encontravamentre os seus cativos. E, com uma lança, cravaram a filhade Orodreth numa árvore.

Túrin pareceu atingido de morte.— Como sabeis isso? — perguntou.— Sabemos porque ela falou comigo antes de mor-

rer — respondeu Dorlas. — Olhou-nos como se procu-rasse alguém que esperara, e pediu: «Mormegil. Dizei aMormegil que Finduilas está aqui.» E mais não disse. Mas,por causa das suas últimas palavras, sepultamo-la ondemorreu. Jaz num pequeno monte ao lado do Teiglin. De-corrido é já um mês.

— Levai-me lá — pediu Túrin, e eles conduziram-no a um outeiro próximo dos Vaus do Teiglin.

Aí se deitou Túrin e caiu sobre ele uma escuridãotal que pensaram que estivesse morto. Mas Dorlas olhou-o, assim deitado, e depois voltou-se para os seus homens edisse-lhes:

— Tarde de mais! Triste ocorrência esta. Mas, o-lhai: aqui jaz o próprio Mormegil, o grande capitão deNargothrond. Pela sua espada o devíamos ter conhecido,como fizeram os Orcs. — Pois a fama do Espada Negra

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do Sul chegara muito longe, até mesmo às profundezas dafloresta.

Levantaram-no, por isso, com reverência e trans-portaram-no para Ephel Brandir. Então, indo ao encontrodeles, Brandir estranhou a padiola que carregavam. De-pois, levantando o pano que o cobria, olhou para o rostode Túrin, filho de Húrin, e uma sombra negra velou o seucoração.

— Oh, Homens cruéis de Haleth! — gritou. —Porque afastastes a morte deste homem? Com grande la-bor trouxestes para aqui a última maldição do nosso povo.

Mas os lenhadores responderam:— Não, é o Mormegil de Nargothrond, um prodi-

gioso matador de Orcs, e será de grande ajuda para nós, seviver. E, mesmo que assim não fosse, deveríamos ter dei-xado ao abandono, como carniça, um homem atingidopelo infortúnio?

— Não devíeis, de fato — concordou Brandir. —O Destino não quis que assim fosse. — Depois levou Tú-rin para sua casa e tratou dele com cuidado.

Mas quando, finalmente, Túrin afastou de si a escu-ridão, a Primavera tinha regressado e ele acordou e viu osol nos rebentos verdes. Então a coragem da Casa de Ha-dor despertou também nele, que se levantou e disse, nosegredo do seu coração: «Todos os meus atos e dias pas-sados foram negros e maus. Mas chegou um novo dia.Aqui permanecerei em paz e renunciarei a nome e laços desangue; e assim afastarei a sombra para trás, ou pelo me-nos impedirei que caia sobre aqueles a quem amo.»

Por isso, adotou um novo nome, passando a cha-mar-se Turambar, que na linguagem élfica superior signifi-cava Mestre do Destino; e passou a viver entre os lenha-

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dores, pelos quais foi estimado, e pediu-lhes que esqueces-sem o seu nome antigo e o considerassem como se tivessenascido em Brethil. Todavia, a mudança de nome nãochegava para modificar inteiramente o seu feitio, nem parao fazer esquecer os seus antigos agravos contra os servosde Morgoth; e ia caçar Orcs com alguns com a mesmainclinação, apesar de isso desagradar a Brandir. Pois estepreferia resguardar o seu povo pelo silêncio e pelo segre-do.

— O Mormegil já não existe — declarou —; cuidai,no entanto, não vá a valentia de Turambar dar origem auma vingança semelhante sobre Brethil!

Por isso, Turambar pôs de lado a espada negra enão a levou mais para o combate, substituindo-a pelo arcoe pela lança. Mas não tolerava que os Orcs utilizassem osVaus do Teiglin nem se aproximassem do cabeço ondeFinduilas jazia. Haudh-en-Elleth, assim se chamava, oMonte da Donzela Élfica, e os

Orcs não tardaram a temer esse lugar e a evitá-lo. EDorlas disse a Turambar:

— Haveis renunciado ao nome, mas continuais aser o Espada Negra. E não consta, com veracidade, queele era o filho de Húrin de Dor-lómin, senhor da Casa deHador?

E Turambar respondeu:— Assim ouvi dizer. Mas não o proclameis, rogo-

vos, pois sois meu amigo.

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CAPÍTULO XIV

A VIAGEM DE MORWEN E NIËNOR PARANARGOTHROND

Quando o Inverno Terrível findou, chegaram a Do-riath notícias de Nargothrond. Pois alguns dos que esca-param ao saque e sobreviverem ao Inverno nos ermosprocuraram finalmente refúgio junto de Thingol e osguardas das marcas conduziram-nos ao Rei. Alguns disse-ram que todo o inimigo retirara para norte e outros queGlaurung ainda habitava nos salões de Felagund; e algunsafirmaram que Mormegil fora morto e outros que ele foraatingido por um feitiço do Dragão e ainda lá residia, trans-formado em pedra. Mas todos declararam que fora co-nhecido em Nargothrond, antes do fim, que o EspadaNegra não era outro senão Túrin, filho de Húrin de Dor-lómin.

Grandes foram, então, o receio e o desgosto deMorwen e Niënor, e Morwen disse:

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— Semelhante dúvida é, deveras, obra de Morgoth!Estaremos condenadas a não conhecer a verdade e a sa-ber, com certeza, o pior que podemos suportar?

Ora, o próprio Thingol desejava muito saber mais arespeito do destino de Nargothrond e já andava a pensarno envio de alguns que pudessem lá ir, prudentemente,mas acreditava que Túrin fora de fato morto, ou se encon-trava sem qualquer possibilidade de salvação, e temia ahora em que Morwen ficasse a sabê-lo sem margem paradúvida. Por isso, disse-lhe:

— Este assunto é perigoso, Senhora de Dor-lómin,e deve ser ponderado. Tal dúvida pode, na verdade, serobra de Morgoth, para nos conduzir a alguma imprudên-cia.

Mas, transtornada, Morwen exclamou:— Imprudência, Senhor! Se o meu filho está es-

condido nas florestas, faminto, se está acorrentado ou oseu corpo jaz insepulto, então eu seria imprudente. Nãoperderia um instante e iria procurá-lo.

— Senhora de Dor-lómin — respondeu Thingol—, o filho de Húrin não desejaria por certo isso. Aqui vosconsiderará mais segura do que em qualquer outra terraque reste: à guarda de Melian. Em nome de Húrin e Túrin,não vos deixaria errar lá por fora, no perigo negro quecaiu sobre estes tempos.

— Não defendestes Túrin do perigo, mas a mimimpedir-me-eis de ir ter com ele — chorou Morwen. — Àguarda de Melian! Sim, uma prisioneira da Cerca! Durantemuito tempo resisti, antes de entrar nela, e agora me arre-pendo.

— Se assim falais, Senhora de Dor-lómin — res-pondeu Thingol —, sabei o seguinte: A Cerca está aberta.

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Livre aqui chegastes, livre permanecereis... ou partireis.Então, Melian, que se mantivera calada, falou:— Não queirais ir, Melian. Uma coisa verdadeira

dissestes: esta dúvida é obra de Morgoth. Se partirdes, es-tareis a fazer-lhe a vontade.

— O medo de Morgoth não me impedirá de res-ponder ao apelo da minha família — respondeu Morwen.— Mas, se temeis por mim, Senhor, então cedei-me al-guns dos vossos.

— A vós não dou ordens — respondeu Thingol.— Mas os meus a elas estão sujeitos. Enviá-los-ei de a-cordo com o meu discernimento.

Morwen não disse mais nada, mas chorou; e deixoua presença do Rei. Thingol sentia o coração pesado, poisparecia-lhe que o estado de espírito de Morwen era infor-tunado e, por isso, perguntou a Melian se não a reteriacom o seu poder.

— Contra a vinda do mal, muito posso fazer —respondeu ela. — Mas contra a saída daqueles que queremsair, nada posso. Isso compete-vos a vós. Se ela deve sermantida aqui, tereis de mantê-la pela força. No entanto,talvez assim mudeis a sua intenção.

Morwen foi ter com Niënor e disse-lhe:— Adeus, filha de Húrin. Vou procurar o meu fi-

lho, ou notícias verdadeiras dele, já que ninguém aqui querfazer nada a não ser adiar até ser tarde de mais. Aguardaaqui que eu regresse feliz.

Assustada e aflita, Niënor quis detê-la, mas Morwennão disse mais nada e foi para os seus aposentos. E, quan-do a manhã chegou, montara a cavalo e partira.

Thingol ordenara que ninguém a detivesse ou dessea impressão de querer impedi-la. Mas, assim que ela partiu,

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reuniu um grupo dos seus mais destemidos e eficientesguardas das marcas e colocou-o sob o comando de Ma-blung.

— Segui-a agora céleres — recomendou —, mascuidai para que não se aperceba de vós. No entanto,quando ela entrar nos ermos e, se houver ameaça de peri-go, mostrai-vos; e se ela se recusar a regressar, então pro-tegei-a como puderdes. Mas quereria que alguns de vósavançassem tanto quanto fosse possível e tomassem co-nhecimento do máximo que pudessem.

Foi assim que Thingol enviou um grupo maior doque inicialmente tencionara e do qual faziam parte dezcavaleiros com cavalos de reserva. Seguiram Morwen, quese dirigia para sul pela Region e chegara assim às margensdo Sirion, acima dos Lagos do Crepúsculo; e lá se detivera,pois o Sirion corria largo e rápido e ela não conhecia ocaminho. Foi aí que os guardas tiveram de revelar a suapresença, e Morwen perguntou-lhes:

— Irá Thingol deter-me? Ou tardiamente me enviaa ajuda que me negou?

— Ambas as coisas — respondeu Mablung. —Não regressareis?

— Não.— Nesse caso, terei de vos ajudar, ainda que contra

a minha própria vontade. Largo e fundo é aqui o Sirion, eperigoso para animais ou homens atravessá-lo a nado.

— Conduzi-me, então, por qualquer caminho que opovo élfico esteja habituado a atravessar. Caso contrário,tentarei ir a nado.

Por isso, Mablung conduziu-a aos Lagos do Cre-púsculo. Aí, entre enseadas e juncais, existiam passagensocultas e guardadas na margem oriental; pois por esse ca-

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minho iam e vinham mensageiros entre Thingol e os seusfamiliares em Nargothrond. Esperaram, pois, que a noiteestrelada avançasse e, então, atravessaram para as neblinasbrancas, antes do alvorecer. E quando o Sol nascia, ver-melho, para lá das Montanhas Azuis, e um forte ventomatinal soprava e dispersava as névoas, os guardas subi-ram para a margem ocidental e deixaram para trás a Cercade Melian. Eram Elfos Altos de Doriath, vestidos de cin-zento e com capas sobre as cotas de malha. Do molhe,Morwen viu-os passar silenciosamente e, de súbito, soltouum grito e apontou para o último do grupo que passava.

— De onde veio ele? — perguntou. — Em númerode três dezenas chegastes até mim e três dezenas e maisum desembarcastes!

Então os outros voltaram-se e viram que o sol bri-lhava numa cabeça dourada: pois tratava-se de Niënor,cujo capuz o vento atirara para trás. Ficou assim reveladoque ela seguira o grupo e se lhe juntara no escuro, antes deatravessarem o rio. Sentiram-se consternados, mas ne-nhum mais do que Morwen.

— Voltai para trás! Voltai para trás! Ordeno-vos!— gritou Morwen.

— Se a mulher de Húrin pode agir contra todos osconselhos e obedecendo ao ditame do sangue, então a fi-lha de Húrin também pode fazê-lo — respondeu Niënor.— Luto me chamastes, mas não chorarei sozinha por pai,irmão ou mãe. De todos estes só a vós conheci e acima detodos amo. E nada do que não temeis eu temo.

Na verdade, pouco temor se descortinava no seurosto ou no seu porte. Alta e forte parecia, pois de grandeestatura eram os da Casa de Hador, e assim vestida, detraje élfico, condizia bem com os guardas, sendo mais bai-

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xa apenas do que os maiores de entre eles.— Que quereis fazer? — perguntou Morwen.— Ir aonde fordes — respondeu Niënor. — Uma

escolha ofereço. Levai-me para trás e deixai-me em segu-rança à guarda de Melian, pois não é sensato recusar o seuconselho. Ou sabei que enfrentarei o perigo, se vós o en-frentardes. — Pois a verdade é que Niënor viera mais coma esperança de que, por medo e amor por ela, a sua mãevoltasse para trás; e o espírito de Morwen estava deverasdividido.

— Uma coisa é recusar um conselho — respondeu.— Outra é recusar a ordem de uma mãe. Regressai já!

— Não. Há muito tempo que não sou uma criança.Tenho vontade e discernimento próprios, ainda que atéagora não tenham contrariado os vossos. Irei convosco.De preferência para Doriath, por respeito para com aque-les que a governam; caso contrário, seguirei para ocidente.Na realidade, se alguma de nós deve prosseguir, serei eu,que estou na plenitude da minha força.

Morwen viu nos olhos cinzentos de Niënor a fir-meza de Húrin. Hesitou, mas, incapaz de vencer o seuorgulho, e não querendo (apesar das agradáveis palavras)parecer que era assim levada para trás pela filha, comoalguém idoso e senil, propôs:

— Prosseguirei, como decidi. Podeis vir também,mas contra a minha vontade o fareis.

— Que assim seja — concordou Niënor. Então,Mablung disse aos seus homens:

— Na verdade, é por falta de siso, e não de cora-gem, que a família de Húrin traz atribulações a outros! Omesmo acontece com Túrin; ainda que não com os seusantepassados. Mas agora mostram-se fatalistas, e isso não

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me agrada. Temo mais este encargo do Rei do que do quea perseguição ao Lobo. Que devemos fazer?

Mas Morwen, que se aproximara, ouviu as últimaspalavras.

— Fazei aquilo de que o Rei vos incumbiu — dis-se-lhe. — Procurai notícias de Nargothrond e de Túrin.Com esse fim estamos todos reunidos.

— E um caminho longo e perigoso — avisou Ma-blung. — Se fordes mais além, devereis ambas ir a cavaloe entre os cavaleiros, dos quais não vos devereis afastar.

Foi assim que, em pleno dia, se puseram a caminho,saíram lenta e cautelosamente da região de juncais e sal-gueiros baixos e chegaram às florestas cinzentas que co-briam grande parte da planície meridional, antes de Nar-gothrond. O dia inteiro seguiram para oeste e nada maisviram do que desolação, e também nada ouviram; pois asterras estavam silenciosas e parecia a Mablung que ummedo presente pairava sobre eles. Aquele mesmo caminhotrilhara Beren anos antes, e então as florestas estavamcheias com os olhos ocultos dos caçadores; mas agora to-do o povo de Narog partira e, ao que parecia, os Orcs a-inda não tinham chegado tanto a sul. Nessa noite acampa-ram na floresta cinzenta, sem lume nem luz.

Prosseguiram nos dois dias seguintes e, ao anoitecerdo terceiro dia após a partida do Sirion, tinham atravessa-do a planície e aproximavam-se das margens orientais doNarog. Depois apoderou-se de Mablung um desassossegotão grande que ele rogou a Morwen que não fosse maislonge. Mas ela riu-se e respondeu:

— Em breve vos sentireis grato por estardes livrede nós, como é muito provável que suceda. Mas tereis deaturar-nos um pouco mais. Chegamos já demasiado perto

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para que o medo nos faça voltar para trás.Então Mablung gritou:— Fatalistas sois ambas, e imprudentes. Não aju-

dais nada e só dificultais qualquer recolha de notícias. Ou-vi-me, agora! Foi-me ordenado que não vos sustivessepela força, mas foi-me igualmente ordenado que vos pro-tegesse como pudesse. Nesta conjuntura, só uma dessascoisas posso fazer. E proteger-vos-ei. Amanhã conduzir-vos-ei a Amon Ethir, o Monte Espião, que fica perto, e lápermanecereis sob guarda e não prosseguireis mais en-quanto eu aqui mandar.

Amon Ethir era um cabeço tão grande como ummonte, que há muito tempo Felagund mandara construircom grande labor na planície que antecedia as suas Portas,uma légua a leste do Narog. Estava arborizado, exceto nocume, de onde se podia abarcar uma grande distância emtodos os sentidos das estradas circundantes. A esse cabeçochegaram manhã alta e subiram do lado leste. Então, o-lhando na direção do Alto Faroth, castanho e desnudopara lá do rio, Mablung viu, com visão élfica, os socalcosde Nargothrond na íngreme margem ocidental e, comoum pequeno buraco negro na encosta do monte, as escan-caradas Portas de Felagund. Mas não ouviu qualquer somnem vislumbrou sinal algum de qualquer inimigo, e tão-pouco qualquer indício do Dragão, a não ser os sinais defogo perto das Portas que ele forjara no dia da pilhagem.Reinava um silêncio total sob o Sol pálido.

Por isso, como dissera, ordenou aos seus dez cava-leiros que guardassem Morwen e Niënor no cume do ca-beço e de lá não saíssem até ele regressar, a não ser quesurgisse algum grande perigo: se tal acontecesse, os cava-leiros deveriam colocar Morwen e Niënor no meio deles e

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fugir o mais rapidamente que pudessem para leste, na di-reção de Doriath, enviando um à frente para levar notíciase procurar ajuda.

Então Mablung reuniu os restantes vinte homensdo grupo e desceram com cuidado do cabeço. Depois,passando para os campos a oeste, onde as árvores erampoucas, dispersaram e seguiu cada qual pelo seu caminho,ousada mas furtivamente, para as margens do Narog. Ma-blung meteu pelo caminho do meio, na direção da ponte,e chegou assim ao seu extremo mais próximo, encontran-do-a toda arrasada; e o rio profundamente escavado, cor-rendo alteroso depois das chuvas muito para norte, espu-mava e rugia entre as pedras caídas.

Mas Glaurung encontrava-se lá, na sombra dagrande passagem que conduzia das Portas arruinadas parao interior, e havia muito dera pela presença dos espiões,embora poucos outros olhos da Terra Média fossem ca-pazes de os discernir. Mas o olhar dos seus terríveis olhosera mais penetrante do que o das águias e ultrapassava alonga visão dos Elfos. E, na verdade, ele também sabiaque alguns tinham ficado para trás, no cume desnudo doAmon Ethir.

Assim, precisamente quando Mablung se movia si-lenciosamente entre as rochas, à procura de um ponto deonde pudesse vadear o rio alteroso sobre as pedras caídasda ponte, Glaurung avançou com um grande clarão defogo e rastejou para a corrente. No mesmo instante, ou-viu-se um silvo imenso e ergueram-se enormes vapores, eMablung e os seus companheiros, que espreitavam perto,foram engolidos por um vapor cegante e um fedor imun-do; e quase todos fugiram, o melhor que conseguiram, nosentido do Monte Espião. Mas, quando Glaurung passava

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sobre o Narog, Mablung desviou-se para o lado, escon-deu-se debaixo de um rochedo e aí ficou; pois achava queainda tinha uma incumbência para cumprir. Agora sabiaque Glaurung se encontrava, de fato, em Nargothrond,mas também fora encarregado de descobrir a verdade a-cerca do filho de Húrin, se tal fosse possível. Por isso, naintrepidez do seu coração, resolveu atravessar o rio assimque Glaurung desaparecesse e revistar os salões de Fela-gund. Pois pensava que tudo fora feito para resguardarMorwen e Niënor: a aproximação de Glaurung seria nota-da e, naquele momento, os cavaleiros deviam seguir ve-lozmente na direção de Doriath.

Por isso, Glaurung ultrapassou Mablung, uma i-mensa forma na névoa; e avançou rapidamente, pois eraum poderoso Verme, mas ágil, apesar disso. Mablung va-deou então o Narog atrás dele, com grande perigo; mas osvigias que estavam no Amon Ethir observaram o apare-cimento do Dragão e ficaram temerosos. De imediato,ordenaram a Morwen e Niënor que montassem, sem dis-cutir, e prepararam-se para fugir para leste, como lhes foradito. Mas, no momento em que desciam do cabeço para aplanície, um vento maléfico soprou para eles os grandesvapores, com um cheiro tão fétido que cavalo algum su-portaria. Então, cegos pela névoa e loucamente aterroriza-dos pelo fedor nauseabundo do dragão, os cavalos nãotardaram a ficar ingovernáveis e correram desesperada-mente de um lado para o outro. Dispersados, os guardaseram lançados contra as árvores, com grande sofrimento,ou procuravam-se em vão uns aos outros. O relinchar doscavalos e os gritos dos cavaleiros chegaram aos ouvidos deGlaurung, que se sentiu muito satisfeito.

Um dos cavaleiros élficos, debatendo-se com o seu

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cavalo no nevoeiro, viu de súbito a Senhora Morwen pas-sar perto, um vulto cinzento num corcel desenfreado, masela desapareceu na névoa, gritando Niënor!, e não volta-ram a vê-la.

Quando o terror cego se apoderou dos cavaleiros, ocavalo de Niënor, num galope assustado, tropeçou e elafoi derrubada. Caindo suavemente na erva, ficou ilesa,mas, quando se levantou, encontrava-se sozinha: perdidana neblina, sem cavalo nem companhia.

Sem perder a coragem, pensou na sua situação. Pa-receu-lhe inútil ir na direção deste ou daquele grito, poissoavam gritos em toda a sua volta, embora cada vez maistênues. Em semelhante caso, pareceu-lhe melhor procurarde novo o cabeço: com certeza Mablung não deixaria de lávoltar antes de partir, quanto mais não fosse para se certi-ficar de que nenhum dos seus homens lá ficara.

Por isso, caminhando ao acaso, encontrou o cabe-ço, que na realidade estava bastante perto, junto do terre-no que subia à frente dos seus pés. E subiu devagar o car-reiro que partia do lado leste. À medida que subia, o ne-voeiro foi-se tornando menos denso, até ela chegar final-mente à claridade do sol no cume deserto. Prosseguiu,então, e olhou para oeste. E ali, mesmo diante dela, estavaa grande cabeça de Glaurung, que acabara de subir pelooutro lado. Antes que disso tivesse consciência, os olhosdela tinham fitado o espírito maléfico dos dele, que eramterríveis e estavam impregnados pelo espírito maléfico deMorgoth, o seu senhor.

Fortes eram a vontade e a coragem de Niënor, quese debateu contra Glaurung; mas ele exerceu sobre ela osseus poderes.

— Que procurais aqui? — perguntou-lhe. Forçada

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a responder, ela disse:— Procuro apenas alguém chamado Túrin, que vi-

veu aqui algum tempo. Mas talvez tenha morrido.— Ignoro. Ele foi deixado aqui para defender as

mulheres e os fracos, mas, quando eu vim, abandonou-ose fugiu. Fanfarrão mas covarde, ao que parece. Porqueprocurais tal pessoa?

— Mentis — respondeu Niënor. — Pelo menos osfilhos de Húrin não são covardes. Não vos tememos.

Glaurung riu-se, pois a filha de Húrin acabava derevelar-se à sua perfídia.

— Então sois tolos, vós e vosso irmão. E a vossajactância será vã. Pois eu sou Glaurung!

Depois atraiu os olhos dela para os seus e a vontadede Niënor enfraqueceu. Pareceu-lhe que o Sol empalideciae tudo se tornava esbatido à sua volta. Lentamente, umagrande escuridão desceu sobre ela e nessa escuridão sóhavia vazio; não tinha conhecimento de nada, não ouvianada, não se lembrava de nada.

Demoradamente explorou Mablung os salões deNargothrond, o melhor que lhe era possível devido à es-curidão e ao fedor; mas não encontrou lá nenhum ser vi-vo: nada mexia entre os ossos e ninguém respondia aosseus chamamentos. Por fim, oprimido pelo horror do lu-gar e temendo o regresso de Glaurung, voltou para asPortas. O Sol descia no ocidente e, atrás, as sombras doFaroth estendiam-se, escuras, pelos socalcos e pelo rioenfurecido, em baixo. Mas ao longe, sob o Amon Ethir,pareceu-lhe distinguir a forma maligna do Dragão. Maisdifícil e perigoso foi o regresso, sobre o Narog, com talpressa e medo; e, mal chegara à margem oriental e se ocul-tara sob o talude, Glaurung aproximou-se. Mas agora tor-

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nara-se lento e furtivo, pois todos os fogos que ardiamnele estavam amodorrados: grande força se esvaíra dele,que ia agora descansar e dormir nas trevas. Assim serpen-teou pela água e se esgueirou para as Portas como umaenorme serpente cor de cinza, deixando viscoso o solosob a sua barriga.

Mas, antes de entrar, olhou para trás, para leste, eirrompeu dele o riso de Morgoth, esbatido mas horrível,como um eco de malvadez vindo de distantes e negrasprofundezas. Seguiu-se-lhe a voz fria e baixa: «Aí vos es-condeis como uma ratazana sob a margem, Mablung, opoderoso! Far-vos-ei moço de recados de Thingol. Apres-sai-vos agora para o cabeço e vede o que aconteceu aquem vos foi confiado!»

Depois Glaurung entrou no seu covil e o Sol des-ceu, e o anoitecer cinzento abateu-se, gélido, sobre a terra.Mas Mablung estugou o passo de volta a Amon Ethir e,enquanto subia para o cume, as estrelas começaram a bri-lhar no oriente. Contra elas viu, de pé, escura e imóvel,uma figura que dir-se-ia ser uma imagem de pedra. Assimse encontrava Niënor, que não ouvia nada do que ele dizianem lhe dava qualquer resposta. Mas quando, por fim,Mablung lhe pegou na mão, ela estremeceu e deixou-selevar por ele. E enquanto Mablung a segurava, Niënorseguia-o, mas, se a largava, ficava parada e imóvel.

Grande era o sofrimento e o espanto de Mablung;mas nada mais podia fazer senão conduzi-la assim no lon-go caminho para leste, sem auxílio ou companhia. Destemodo se afastaram, caminhando como se sonhassem, eentraram na planície envolta na sombra da noite. E, quan-do a manhã voltou, Niënor tropeçou, caiu e ficou imóvel,e Mablung sentou-se, cheio de desespero, ao seu lado.

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— Não foi em vão que temi este encargo — disse.— Pois ao que parece será o meu último. Com esta infor-tunada filha de Homens perecerei no mato e o meu nomeserá escarnecido em Doriath: se, acaso, algumas notíciasdo nosso destino forem conhecidas. Todos os outros fo-ram sem dúvida chacinados e apenas ela poupada, masnão por misericórdia.

Assim foram encontrados por três do grupo quefugira de Narog à chegada de Glaurung e, depois de muitovaguearem e de a névoa se dissipar, regressaram ao cabe-ço. Encontrando-o deserto, tinham começado a procuraro caminho para casa. A esperança voltou então a Mablunge, juntos, prosseguiram para norte e leste, pois não havianenhuma estrada de regresso a Doriath, no sul, e, desde aqueda de Nargothrond, os barqueiros estavam proibidosde transportar alguém, a não ser os que vinham do interi-or.

Lenta foi a viagem, como seria para quem transpor-tasse uma criança fatigada. Mas, à medida que se iam afas-tando de Nargothrond e aproximando de Doriath, as for-ças foram regressando a pouco e pouco a Niënor, quecaminhava obedientemente, hora atrás de hora, conduzidapela mão. No entanto, os seus grandes olhos não viamnada, nem os seus ouvidos ouviam quaisquer palavras ouos seus lábios as pronunciavam.

Finalmente, decorridos muitos dias, aproximaram-se da fronteira ocidental de Doriath, algures a sul do Tei-glin; pois tencionavam transpor as cercas da pequena terrade Thingol para lá do Sirion e chegar assim à ponte guar-dada próxima do afluxo do Esgalduin. Pararam aí algumtempo, deitaram Niënor numa cama de erva e ela fechouos olhos, como ainda não fizera até então, e pareceu dor-

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mir. Os Elfos também descansaram e, por pura exaustão,foram imprudentes. Por isso foram assaltados, despreve-nidos, por um bando de caçadores orcs, os quais deambu-lavam agora muito naquela região, o mais perto das cercasde Doriath que se atreviam a chegar. No meio da refrega,Niënor saltou de repente da cama improvisada, como seum alarme na noite a tivesse despertado, e, com um grito,fugiu para a floresta. Então os Orcs deram a volta e per-seguiram-na, e os Elfos foram atrás deles. Mas operara-seem Niënor uma estranha mudança e, agora, ela corria maisvelozmente do que todos, voando como um gamo entreas árvores, com os cabelos caídos ao vento desencadeadopela sua velocidade. Mablung e os seus companheiros de-pressa alcançaram os Orcs e a todos mataram um por um,apressando-se depois a continuar. Mas, entretanto, Niënordesaparecera como um fantasma e não conseguiram avis-tá-la nem encontrar rasto dela, embora a procurassemmuito para norte e durante muitos dias.

Por fim, Mablung regressou a Doriath, vergado pe-la mágoa e pela vergonha.

— Procurai um novo mestre para os vossos perse-guidores, Senhor — disse ao Rei. — Pois eu estou deson-rado.

Mas Melian respondeu-lhe:— Não é assim, Mablung. Fizestes tudo quanto es-

tava ao vosso alcance e nenhum outro, entre os servidoresdo Rei, teria feito tanto. Mas quis a má sorte que vos de-frontásseis com um poder demasiado grande para vós,demasiado grande, na verdade, para todos quantos vivemagora na Terra Média.

— Mandei-vos para recolherdes notícias, e isso fi-zestes — disse Thingol. — Não é vossa culpa que aquelas

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a quem as vossas notícias mais de perto respeitavam nãopossam agora ouvi-las. Lamentável é, deveras, este fim detoda a família de Húrin, mas vós não contribuístes paraele.

Pois agora não apenas Niënor desaparecera, desati-nada, nos ermos, como também Morwen estava perdida.Nem então nem depois chegaram novas fiáveis do seudestino a Doriath ou a Dor-lómin. Apesar disso, Mablungnão descansava e, com um pequeno grupo, partiu para osermos e durante três anos vagueou por longe, das EredWethrin até as Bocas do Sirion, procurando sinais ou no-tícias das desaparecidas.

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CAPÍTULO XV

NIËNOR EM BRETHIL

Mas, quanto a Niënor, continuou a correr pela flo-resta, ouvindo os gritos de perseguição atrás de si; e arran-cou o vestuário, deitando-o fora peça por peça enquantofugia, até ficar nua; e durante todo esse dia continuou afugir, como um animal perseguido, até rebentar o coração,e não ousou deter-se ou recuperar o fôlego. Mas ao anoi-tecer, subitamente, a loucura passou-lhe. Estacou ummomento, como que pasmada, e depois, num desfaleci-mento de pura fadiga, caiu como se a tivessem abatidonum fundo matagal de fetos. E aí, entre os fetos secos e asvigorosas frondes primaveris, se deitou e dormiu, alheia atudo.

Quando acordou, de manhã, exultou com a luz,como se acabasse de despertar para a vida; e todas as coi-sas que via lhe pareciam novas e estranhas e não sabia os

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nomes delas. Atrás de si havia apenas uma escuridão vazia,através da qual lhe não chegava qualquer recordação dealguma coisa que jamais tivesse conhecido, nem qualquereco ou qualquer palavra. Lembrava-se apenas de umasombra de medo, o que a fazia ser cautelosa e procurarsempre esconderijos: trepava a árvores ou escondia-se emmatagais cerrados, veloz como um esquilo ou uma raposa,se algum som ou sombra a assustavam. E daí espreitava,demoradamente, através das folhas, com olhos desconfia-dos, antes de se aventurar a prosseguir.

Assim, seguindo o mesmo caminho por onde pri-meiro correra, chegou ao rio Teiglin e saciou a sede; masnão encontrou qualquer alimento, nem soube como pro-curá-lo, e estava faminta e com frio. Como as árvores dooutro lado da água pareciam mais cerradas e mais escuras(e de fato eram, pois tratava-se da orla da floresta de Bre-thil), acabou por atravessar e chegar, finalmente, a um ca-beço verde, onde se deitou — pois estava extenuada e ti-nha a sensação de que o negrume que deixara para trás aestava a alcançar de novo e de que o sol escurecia.

Na realidade, tratava-se de uma negra tempestadeque vinha do Sul, acompanhada de relâmpagos e chuvaforte. Ficou encolhida, aterrorizada com a trovoada, e achuva negra fustigou-lhe a nudez enquanto ela observava,emudecida, como um ser selvagem apanhado numa arma-dilha.

Quis o acaso que alguns dos lenhadores de Brethilpassassem naquela hora, vindos de uma incursão contra osOrcs e dirigindo-se, apressados, pelos Vaus do Teiglin,para um abrigo próximo. Um grande relâmpago iluminouo Haudh-en-Elleth como uma flama branca. Então Tu-rambar, que vinha à frente dos homens, recuou, cobriu os

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olhos e estremeceu, pois parecera-lhe ter visto o espectrode uma donzela morta, deitada na sepultura de Finduilas.

Mas um dos homens correu para o cabeço e gritou:«Aqui, Senhor! Está aqui deitada uma jovem, e está viva!»Turambar acercou-se e levantou-a. A água escorria-lhe doscabelos encharcados, mas ela fechou os olhos, tremeu defrio e não se debateu mais. Então, estupefato por a encon-trar assim nua, Turambar envolveu-a na sua capa e levou-apara o pavilhão dos caçadores, na floresta. Aí acenderamuma fogueira e envolveram-na em mantas, e ela abriu osolhos e olhou para eles. Quando o seu olhar se deteve emTurambar, uma luz iluminou-lhe o rosto e ela estendeu amão para ele, pois parecia-lhe que encontrara, finalmente,algo que procurara na floresta, e sentia-se reconfortada.Mas Turambar pegou-lhe na mão, sorrindo, e perguntou-lhe: «Então, Senhora, não quereis dizer-nos o vosso nome,de que família sois e que infortúnio se abateu sobre vós?»Niënor abanou a cabeça e não disse nada, mas começou achorar. Não insistiram mais, até ela ter comido sofrega-mente dos alimentos que podiam dar-lhe. Depois de co-mer, suspirou e voltou a colocar a mão sobre a de Turam-bar, que disse:

— Conosco estais em segurança. Podeis repousaraqui esta noite e de manhã conduzir-vos-emos para nossascasas, lá em cima, na floresta. Mas desejaríamos saber ovosso nome e qual é a vossa família, para podermos en-contrá-la, porventura, e dar-lhe notícias vossas. Não nosquereis dizer?

Mas, uma vez mais, ela não respondeu. E chorou.— Não vos inquieteis! — pediu Turambar. — Tal-

vez a história seja demasiado triste para ser contada já.Mas vou dar-vos um nome e chamar-vos-ei Níniel, a

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Donzela das Lágrimas.Ao ouvir este nome, ela ergueu o olhar e abanou a

cabeça, mas repetiu: «Níniel». E essa foi a primeira palavraque pronunciou depois das suas trevas e, desde então,passou a ser o seu nome entre os lenhadores.

De manhã conduziram Níniel na direção da EphelBrandir. A estrada subia acentuadamente até chegar a umlugar onde tinha de atravessar a corrente tumultuosa doCelebros. Fora aí construída uma ponte de madeira, porbaixo da qual a corrente passava sobre uma saliência depedra desgastada e se despenhava, depois, por muitos so-calcos espumejantes, numa bacia rochosa, muito ao fundo.O ar estava todo impregnado de gotículas, como chuva.Havia um grande relvado verde no cimo das quedas deágua, à volta do qual cresciam vidoeiros, mas da pontedesfrutava-se de uma extensa vista na direção das ravinasdo Teiglin, cerca de duas milhas a oeste. Aí o ar era sem-pre frio e os viajantes de Verão descansavam e desseden-tavam-se com a água fresca. Dimrost, a Escada Chuvosa,era o nome das quedas de água, mas depois daquele diapassaram a chamar-se Nen Girith, a Água Trêmula, poisTurambar e os seus homens pararam lá, mas, assim queNíniel chegou, encheu-se de frio e tremeu, e não conse-guiram fazer nada que a aquecesse ou confortasse. Apres-saram-se, por isso, no caminho, mas, antes de chegarem aEphel Brandir, Níniel estava a delirar de febre.

Demorada foi a sua doença. Brandir recorreu a to-do o seu saber para a sarar e as mulheres dos lenhadoresvelaram por ela de noite e de dia. Mas só quando Turam-bar estava perto descansava em paz ou dormia sem gemer.E de uma coisa todos quantos velavam por ela se aperce-beram: durante toda a febre, apesar de muito agitada, ja-

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mais murmurou uma palavra em qualquer língua de Elfosou de Homens. E quando a saúde regressou lentamente eela despertou e recomeçou a comer, as mulheres de Bre-thil tiveram de a ensinar a falar, palavra por palavra, comose fosse uma criança. Mas foi célere a aprender, e fê-locom grande satisfação, como alguém que reencontra te-souros, grandes e pequenos, que se tinham extraviado; equando, finalmente, aprendera o suficiente para falar comos amigos, dizia-lhes: «Como se chama esta coisa? Pois naminha escuridão esqueci-lhe o nome.» E quando pôdemovimentar-se de novo procurava a casa de

Brandir, porque estava ansiosa por aprender osnomes de todas as coisas vivas e ele era muito entendidonesses assuntos. E caminhavam juntos, nos jardins e nasclareiras das florestas.

Então Brandir passou a amá-la; e, quando ela setornou forte, oferecia-lhe o braço, para o ajudar na suaclaudicação, e chamava-lhe seu irmão. Mas o coração, es-se, deu-o a Turambar e só quando ele vinha ela sorria, e sóquando ele falava alegremente ela se ria.

Num anoitecer do dourado Outono, estavam sen-tados juntos. O sol afogueava a encosta do monte e ascasas de Ephel Brandir e reinava uma profunda quietude.Então Níniel disse-lhe:

— De todas as coisas perguntei já o nome, menoso teu. Como te chamas?

— Turambar — respondeu ele.Ficou uns momentos calada, como se escutasse al-

gum eco, e depois disse:— E o que quer isso dizer? Ou trata-se de um no-

me apenas para ti?— Quer dizer Mestre da Sombra Negra, pois tam-

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bém eu, Níniel, tive a minha escuridão, na qual coisas que-ridas se perderam; mas agora creio ter ultrapassado isso.

— E também fugiste dela, correndo, até chegares aestas belas florestas? E quando te libertaste, Turambar?

— Sim. Fugi durante muitos anos. E libertei-mequando tu te libertaste. Pois estava escuro quando chegas-te, Níniel, mas desde então houve luz. É como se tivessevindo a mim aquilo que durante muito tempo em vãoprocurei.

E enquanto regressava a casa, ao crepúsculo, eledisse para consigo: «Haudh-en-Elleth! Do cabeço verdeveio ela. Trata-se de um sinal, e como devo interpretá-lo?»

Aquele ano dourado ensombreceu, deu lugar a umbrando Inverno e depois chegou outro ano luminoso. Ha-via paz em Brethil e os lenhadores mantinham-se tranqüi-los e não se afastavam, de modo que não tinham notíciasdas terras que os cercavam. Pois os Orcs, que naqueletempo desciam para sul, para o reino negro de Glaurung,ou eram mandados espiar as fronteiras de Doriath, evita-vam os Vaus do Teiglin e rumavam para oeste, muito paraalém do rio.

Níniel estava agora completamente curada e torna-ra-se bela e forte, e Turambar não se conteve mais e pe-diu-a em casamento. Níniel ficou feliz, mas, quando Bran-dir soube a notícia, o coração doeu-lhe no peito e ele dis-se-lhe:

— Não te apresses! Não me julgues indelicado, sete aconselho a esperar.

— Nada do que fazes é feito com indelicadeza. Noentanto, porque me dás semelhante conselho, sensato ir-mão?

— Sensato irmão? Diz antes irmão aleijado, não

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amado e sem atrativos. Francamente, mal sei porque odisse. No entanto, paira uma sombra sobre esse homem eeu tenho receio.

— Pairou uma sombra — respondeu Níniel —,pois tal ele me disse. Mas libertou-se dela, assim como euda minha. E não é ele digno de ser amado? Embora semantenha agora em paz, não foi, em tempos, o maior ca-pitão, do qual todos os nossos inimigos fugiam, quando oviam?

— Quem te disse isso? — perguntou Brandir.— Dorlas. Não falou verdade?— Falou, sim — confirmou Brandir, mas estava

desagradado, pois Dorlas era o cabecilha do grupo quedesejava a guerra contra os Orcs.

Apesar disso, continuava a procurar razões para de-ter Níniel, o que o levou a acrescentar:

— É verdade, mas não toda a verdade; pois ele foicapitão de Nargothrond e antes disso veio do Norte e,diz-se, era filho de Húrin de Dor-lómin, da aguerrida Casade Hador.

Vendo a sombra que passou pelo rosto dela ao ou-vir tal nome, Brandir interpretou-a mal e mais disse:

— Na verdade, Níniel, bem podes pensar que umapessoa assim será capaz de voltar para a guerra antes demuito tempo, talvez para longe desta terra. E, se assimfor, quanto tempo suportarás? Tem cuidado, pois prevejoque, se Turambar voltar para o combate, então não seráele, mas sim a Sombra, que dominará.

— Eu suportá-lo-ia, mas não melhor solteira doque casada. E uma esposa talvez pudesse detê-lo commais facilidade e afastar a sombra.

No entanto, as palavras de Brandir tinham-na per-

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turbado e ela pediu a Turambar que esperasse um poucomais. Ele admirou-se e ficou abalado. Mas ao saber, porNíniel, que fora Brandir quem a aconselhara a esperar,sentiu-se desagradado.

Quando a Primavera seguinte chegou, disse a Ní-niel:

— O tempo passa. Esperámos e agora eu não espe-rarei mais. Faz o que o coração te mandar, Níniel, minhamuito amada, mas pensa nisto: esta é a escolha que tenhode fazer. Ou volto para a guerra nos ermos ou caso conti-go e nunca mais irei para a guerra. A não ser para te de-fender, se alguma calamidade se abater sobre a nossa casa.

Ela ficou muito satisfeita e deu a sua palavra, e emmeados do Verão casaram. Os lenhadores fizeram umgrande banquete e deram-lhes uma bonita casa que tinhamconstruído para eles no Amon Obel. Aí viveram felizes,mas Brandir estava inquieto e a sombra no seu coraçãoadensava-se.

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CAPÍTULO XVI

A CHEGADA DE GLAURUNG

O poder e a maldade de Glaurung cresciam rapi-damente, ele engordava, atraía Orcs para si, governavacomo um rei-dragão e tudo quanto fora o reino de Nargo-thrond estava sob o seu domínio. Antes de terminar o a-no, o terceiro de Turambar entre os lenhadores, começoua atacar-lhes a terra que durante algum tempo tivera paz;pois, na verdade, Glaurung e o seu amo sabiam muitobem que em Brethil habitava um remanescente de homenslivres, os derradeiros das Três Casas a desafiar o poder doNorte. Ora isso era algo que não tolerariam, pois era in-tenção de Morgoth dominar Beleriand inteira e revistartodos os seus cantos, para que em nenhum buraco ou es-conderijo vivesse alguém que não fosse seu escravo. Porisso, quer Glaurung imaginasse onde Túrin estava escon-dido, quer (como alguns acreditavam) ele tivesse, de fato,

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escapado por enquanto do olhar do Mal que o perseguia,pouco importava. Pois no fim os conselhos de Brandirrevelar-se-iam vãos e só restavam a Turambar duas esco-lhas: manter-se inativo onde estava até ser descoberto eacossado como uma ratazana, ou partir em breve para ocombate e ser revelado.

Mas quando as primeiras notícias da vinda dosOrcs chegaram à Ephel Brandir, ele não avançou e cedeuaos rogos de Níniel. Que disse: «As nossas casas ainda nãoforam atacadas, como prometeste. Diz-se que os Orcs nãosão muitos. E Dorlas contou-me que, antes de tu chega-res, tais incursões não eram raras e os lenhadores conti-nham-nas.»

Mas os lenhadores não levaram a melhor, pois estesOrcs eram de uma raça terrível, violentos e astutos, e vi-nham, na realidade, com o objetivo de invadir a Florestade Brethil e não, como anteriormente, de passar pelas suasmargens a caminho de outras missões ou para caçar empequenos bandos. Por isso, Dorlas e os seus homens fo-ram repelidos com baixas e os Orcs atravessaram o Tei-glin e penetraram fundo nas florestas. Dorlas foi ter comTurambar, mostrou-lhe os ferimentos e disse: «Reparai,Senhor, chegou o momento da nossa desgraça, depois deuma falsa paz, tal como eu previra. Não pedistes vós quevos contássemos como um dos nossos e não como umestranho? Não é este perigo também vosso? Pois as nos-sas casas não permanecerão ocultas se os Orcs penetraremmais fundo na nossa terra.»

Por isso, Turambar ergueu-se, empunhou de novoa sua espada, Gurthang, e foi combater. Quando tal sou-beram, os lenhadores ficaram muito encorajados e junta-ram-se a ele, até formarem uma força de muitas centenas.

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Depois embrenharam-se pela floresta e mataram todos osOrcs que lá se tinham infiltrado e dependuraram-nos nasárvores próximas dos Vaus do Teiglin. E quando uma no-va hoste avançou contra eles, encurralaram-na e, surpre-endidos com o número dos lenhadores e com o terror doEspada Negra, que regressara, os atacantes foram destro-çados e chacinados em grande número. Depois os lenha-dores ergueram grandes piras e queimaram os corpos a-montoados dos soldados de Morgoth, e o fumo da suavingança subiu, negro, no céu e o vento soprou-o paraoeste. Mas os poucos que sobreviveram regressaram aNargothrond com essas notícias.

Então Glaurung ficou deveras irado. No entanto,durante algum tempo, permaneceu imóvel e refletiu noque ouvira. O Inverno passou, assim, em paz e os homensdisseram: «Poderoso é o Espada Negra de Brethil, poistodos os nossos inimigos foram subjugados.» E Nínielsentiu-se reconfortada e jubilosa como renome de Tu-rambar. Ele, porém, andava pensativo e dizia, no segredodo seu coração: «Os dados estão lançados. Agora virá aprova, na qual a minha glória será confirmada ou parasempre derrotada. Não mais fugirei. Turambar serei, deve-ras, e por minha própria vontade e valor superarei o meudestino ou cairei. Mas, caindo ou cavalgando, a Glaurung,pelo menos, matarei.»

Apesar disso, sentia-se intranqüilo e enviou homensdestemidos como observadores, para muito longe. Pois averdade é que, embora nenhuma palavra fosse dita, eleagora dirigia as coisas como entendia, como se fosse se-nhor de Brethil, e nenhum homem dava ouvidos a Bran-dir.

A Primavera chegou, esperançosa, e os homens

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cantavam enquanto trabalhavam. Mas nessa PrimaveraNíniel concebeu, e tornou-se pálida e lânguida, e toda asua felicidade se ofuscou. E, pouco depois disso, chega-ram estranhas novas dos homens que tinham partido paraalém do Teiglin, segundo as quais havia um grande fogomuito longe, nas florestas da planície que conduzia a Nar-gothrond, e os homens inquietavam-se sem saber do quepoderia tratar-se.

Em breve chegaram, no entanto, mais novas: queos fogos avançavam sempre rumo ao norte e, na verdade,era o próprio

Glaurung que os atiçava. Pois deixara Nargothronde encontrava-se de novo no exterior, com qualquer inten-to. Então os mais tolos, ou mais esperançosos, disseram:«O seu exército está destruído e agora, finalmente, tornou-se sensato e está a regressar para o lugar onde veio.» Eoutros desejavam: «Esperemos que passe por nós sem nosincomodar.» Mas Turambar não acalentava tal esperança esabia que Glaurung vinha à sua procura. Por isso, emboradisfarçasse o que pensava por causa de Níniel, meditavadia e noite na atitude que devia tomar. E à Primavera su-cedeu o Verão.

Um dia chegou em que dois homens regressaramaterrorizados à Ephel Brandir, pois tinham visto o próprioGrande Verme.

— Na verdade, Senhor — disseram —, ele está a-gora a aproximar-se do Teiglin e não se desvia do cami-nho. Encontra-se no meio de um grande fogo e as árvoresfumegam à sua volta. O fedor que emana é quase insupor-tável. E, ao longo das muitas léguas de regresso a Nargot-hrond, o seu rasto pestilencial prossegue, parece-nos, nu-ma linha que não muda de direção e aponta diretamente

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para nós. Que podemos fazer?— Pouco — respondeu Turambar —, mas nesse

pouco já pensei. As notícias que me trazeis, mais do quemedo, dão-me esperança; pois se na verdade, como dizeis,ele vem a direito, e não se desvia, então tenho alguns con-selhos para corações destemidos.

Os homens ficaram intrigados, pois ele não acres-centou mais nada nesse momento; mas a sua atitude firmedeu-lhes alento.

O rio Teiglin corria agora assim: descia da EredWethrin rápido como o Narog, mas ao princípio entremargens baixas, até que, depois dos Vaus, recebendo forçade outras correntes, abria caminho pelo meio dos sopésdas terras altas sobre as quais se erguia a Floresta de Bre-thil. Daí em diante, seguia por ravinas fundas, cujas gran-des encostas eram como paredes de rocha, mas, contidasno fundo, as águas fluíam com grande força e barulho. Eprecisamente no caminho de Glaurung havia agora umadessas gargantas, de modo algum a mais profunda, massim a mais estreita, logo a norte da foz do Celebros. Porisso, Turambar mandou três homens corajosos vigiar, apartir da margem, os movimentos do Dragão; mas ele,pessoalmente, galopou para as quedas altas da Nen Girith,onde as notícias lhe podiam chegar céleres e de onde po-dia ver as terras até muito longe.

Mas primeiro reuniu os lenhadores na Ephel Bran-dir e falou-lhes, dizendo:

— Homens de Brethil, um perigo terrível avançapara nós e só pode ser desviado com grande intrepidez.Mas, neste caso, os números pouco contarão, pois tere-mos de usar de astúcia e esperar que tenhamos sorte. Senos levantarmos contra o Dragão com toda a nossa força,

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como um exército de Orcs, estaremos somente a oferecer-nos todos à morte, deixando assim as nossas mulheres eas nossas famílias indefesas. Por isso vos digo que fiqueisaqui e vos prepareis para fugir. Pois, se Glaurung vier, de-veis abandonar este lugar e espalhar-vos por grandes dis-tâncias, e assim alguns poderão escapar e viver. Porque, sepuder, ele destruirá este lugar e tudo quanto espiar, masdepois não permanecerá aqui. Todo o seu tesouro se en-contra em Nargothrond e aí estão os antros profundosonde pode viver em segurança e crescer.

Os homens ficaram assustados e completamenteabatidos, pois confiavam em Turambar e tinham esperadopalavras mais esperançosas. Mas ele disse:

— Atentai, isso é o pior. E não acontecerá se omeu raciocínio e a minha sorte forem bons. Pois não a-credito que este Dragão seja invencível, embora cresça emforça e maldade com o passar dos anos. Sei alguma coisa aseu respeito. O seu poder reside mais no espírito maléficoque habita dentro dele do que na força do seu corpo, porgrande que ela seja. Ouvi agora esta história que me con-taram alguns que combateram no ano da Nirnaeth, quan-do eu e a maioria dos que me ouvem éramos crianças.Nessa batalha, os Anões resistiram-lhe e Azaghâl de Bele-gost picou-o tão profundamente que ele fugiu para Ang-band. Mas aqui há um espinho mais aguçado e mais com-prido do que a faca de Azaghâl.

E Turambar desembainhou a Gurthang e manejou-a acima da cabeça, dando a impressão, àqueles que assisti-am, de que uma chama lhe saltava da mão e subia muitospés no ar. Soltaram então um grande grito:

— O Espinho Negro de Brethil!— Bem pode ele temer o Espinho Negro de Brethil

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— disse Turambar. — Pois sabei o seguinte: é destinodeste Dragão (e, diz-se, de toda a sua prole) que, por mui-to grande que alguma vez possa ser a sua carapaça de chi-fre, mais dura do que ferro, por baixo ele tem de se arras-tar com a barriga de uma cobra. Por isso, Homens de Bre-thil, vou agora procurar a barriga de Glaurung por todosos meios possíveis. Quem quer acompanhar-me? De pou-cos preciso, mas devem ter braços fortes e coração maisforte ainda.

Então Dorlas avançou e disse:— Irei convosco, Senhor: pois prefiro sempre se-

guir em frente a esperar por um inimigo.Mas nenhum dos outros foi tão lesto a responder

ao apelo, pois tomava-os o pavor de Glaurung e a históriados batedores que o tinham visto difundira-se e crescera acada vez que era repetida. Então Dorlas gritou:

— Escutai, Homens de Brethil, pois é agora claroque, para o mal dos nossos tempos, os conselhos deBrandir foram vãos. Ninguém escapa escondendo-se. Ne-nhum de vós toma o lugar do filho de Handir, para que acasa de Haleth não seja humilhada?

Deste modo, Brandir, que estava sentado no altolugar do senhor da reunião, mas despercebido, foi humi-lhado e sentiu o coração amargurado; pois Turambar nãorepreendeu Dorlas. Mas um tal Hunthor, parente deBrandir, levantou-se e disse:

— Mal procedeis, Dorlas, falando assim em detri-mento do vosso Senhor, cujos membros, por má sorte,não podem agir como o seu coração agiria. Acautelai-vos,não vá o contrário ser visto em vós em qualquer momen-to! E como pode dizer-se que os seus conselhos foramvãos, se nunca foram aceites? E vós, seu vassalo, sempre

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os reduzistes a nada. Digo-vos que Glaurung vem agoraaté nós, como antes a Nargothrond, porque os nossosatos nos atraiçoaram, como ele receava. Mas, como estadesgraça aí vem agora, eu, com vossa licença, filho deHandir, irei em nome da casa de Haleth.

Então Turambar disse:— Três são suficientes! A vós dois levarei. Mas, Se-

nhor, não vos desdenho. Entendei! Temos de ir comgrande celeridade e a nossa missão exigirá membros for-tes. Parece-me que o vosso lugar é com o vosso povo.Pois sois sagaz e um sarador, e pode acontecer que, den-tro de pouco tempo, haja aqui grande necessidade de sa-geza e cura.

Estas palavras, porém, embora gentilmente ditas,serviram apenas para amargurar mais Brandir, que disse aHunthor:

— Ide então, mas não com consentimento meu,pois paira sobre esse homem uma sombra que vos condu-zirá ao infortúnio.

Turambar estava com pressa de partir, mas, quandoprocurou Níniel para se despedir, ela agarrou-se a ele, achorar dolorosamente.

— Não vás, Turambar, suplico-te! Não desafies asombra de que escapaste! Foge antes, foge e leva-me con-tigo para muito longe!

— Minha muito amada Níniel, não podemos fugirmais, tu e eu. Estamos cercados nesta terra. E, mesmo queo fizesse, abandonando as pessoas que nos acolheramcom amizade, só poderia levar-te para os ermos desabita-dos, para a tua morte e para a morte do nosso filho. Cemléguas nos separam de qualquer terra que se encontre ain-da fora do alcance da Sombra. Mas tem coragem, Níniel,

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pois digo-te: nem tu nem eu seremos chacinados por esteDragão, nem por quaisquer inimigos do Norte.

Níniel deixou de chorar e ficou silenciosa, mas oseu beijo foi frio, quando se despediram.

Então Turambar, juntamente com Dorlas e Hun-thor, partiram, céleres, para Nen Girith e, quando lá che-garam, o Sol punha-se e as sombras eram longas, e os doisbatedores que restavam esperavam-nos.

— Ainda bem que não tardastes mais, Senhor —disseram. — Pois o Dragão avançou e, quando partimos,já ele chegara à margem do Teiglin e o seu olhar feroz es-tendia-se para lá da água. Desloca-se sempre durante anoite e por isso podemos contar com algum ataque antesdo alvorecer de amanhã.

Turambar olhou, ao longe, as quedas do Celebros eviu o Sol afundar-se para o seu poente e colunas de fumonegro subirem junto das margens do no.

— Não há tempo a perder — declarou. — No en-tanto, essas notícias são boas, pois temia que ele andassepor aí à procura e, nesse caso, se seguisse para norte echegasse aos Vaus, e assim à estrada antiga das terras bai-xas, a esperança estaria perdida. Mas agora algum freneside orgulho e maldade está a impeli-lo a avançar precipita-damente.

Mas, ao mesmo tempo que dizia estas palavras,meditava e perguntava a si mesmo: «Ou dar-se-á o caso deum ser tão diabólico e cruel evitar os Vaus, como osOrcs? Haudh-en-Elleth? Encontrar-se-á ainda Finduilasentre mim e o meu destino?»

Voltou-se então para os seus companheiros e disse-lhes:

— Esta tarefa nos espera agora. Temos de aguardar

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ainda um pouco, pois demasiado cedo seria, neste caso,tão perigoso como demasiado tarde. Quando o crepúsculocair, devemos dirigir-nos o mais furtivamente possível pa-ra o Teiglin. Mas acautelai-vos! Pois os ouvidos de Glau-rung são tão apurados quanto os seus olhos, e terríveis. Sealcançarmos o rio sem sermos notados, então devemosdescer para a ravina e atravessar a água, e assim chegare-mos ao caminho que ele tomará quando despertar.

— Mas como pode ele avançar assim? — pergun-tou Dorlas. — Apesar de ágil, é também um grande dra-gão, e como descerá por uma ravina e subirá por outraquando uma parte deve estar ainda a subir antes de a reta-guarda ter descido? E, se ele puder fazê-lo, de que nosvalerá estarmos na água revolta, em baixo?

— Talvez consiga fazê-lo — admitiu Turambar —e, se tal acontecer, as coisas correrão mal para nós. Mas,pelo que soubemos dele, e pelo lugar onde agora se en-contra, tenho esperança de que os seus desígnios sejamoutros. Chegou à beira da Cabed-en-Aras, sobre a qual,como dizeis, um gamo saltou, uma vez, e escapou aos ca-çadores de Haleth. Tão grande se tornou agora que, pen-so, procurará atravessar por aí. Nisso consiste toda a nos-sa esperança e nela devemos confiar.

Estas palavras desanimaram o coração de Dorlas,pois conhecia melhor do que ninguém toda a terra de Bre-thil e Cabed-en-Aras era, deveras, um lugar terrível. Nolado leste, havia uma falésia abrupta com alguns quarentapés de altura, desnuda mas com árvores na crista; no ou-tro lado, havia um talude um tanto ou quanto íngreme,mas menos alto, envolto por árvores e arbustos penden-tes, mas, entre eles, a água corria furiosamente pelo meiode rochas e, embora um homem ousado e de passo firme

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pudesse vadeá-la durante o dia, era perigoso arriscar-se aisso de noite. No entanto, essa era a decisão de Turambare seria inútil contradizê-lo.

Puseram-se, pois, a caminho ao lusco-fusco, masnão seguiram diretamente ao encontro do Dragão e enve-redaram primeiro pelo caminho que conduzia aos Vaus.Depois, antes de lá chegarem, viraram para sul, por umcarreiro estreito, e penetraram no crepúsculo das florestassobranceiras ao Teiglin. E, ao aproximarem-se, passo apasso, de Cabed-en-Aras, detendo-se amiúde para escuta-rem, chegou até eles o horrível cheiro a queimado e umfedor que os nauseou. Mas reinava em tudo um silêncioprofundo e nem o ar bulia. As primeiras estrelas brilha-vam a oriente, à frente deles, e tênues espirais de fumosubiam a direito e sem vacilar para a última claridade doocidente.

Quando Turambar partira, Níniel ficara silenciosacomo uma pedra; mas Brandir procurou-a e disse-lhe:

— Níniel, não temas o pior enquanto não tiver deser. Mas não te aconselhei eu que esperasses?

— É verdade, aconselhaste. Contudo, de que mevaleria isso agora? Pois o amor pode existir e sofrer semsermos casados.

— Bem o sei. No entanto, o casamento não é emvão.

— Não, pois agora estou grávida de dois meses.Não creio, porém, que o meu medo da perda seja o maiscustoso de suportar. Não te compreendo.

— Eu tão-pouco. E, no entanto, tenho medo.— Que grande reconfortador me saíste! — excla-

mou ela. — Mas Brandir, meu amigo: casada ou solteira,mãe ou donzela, o meu medo transcende o suportável. O

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Senhor do Destino foi desafiar a sua sorte muito longe, ecomo poderei eu ficar aqui e esperar pela demorada vindade notícias, boas ou más? Esta noite, quem sabe, ele pode-rá encontrar-se com o Dragão, e como poderei ficar quie-ta ou sossegada, ou passar as terríveis horas?

— Não sei, mas de alguma maneira as horas passa-rão, para ti e para as esposas daqueles que com ele foram.

— Elas que procedam como os seus corações lhesmandarem! — gritou. — Eu, porém, partirei. As milhasnão se interporão entre mim e o perigo do meu senhor.Irei ao encontro das notícias!

As suas palavras aumentaram os receios de Brandir,que gritou:

— Tal não farás, se eu puder evitá-lo. Pois assimporás em risco toda a razão. As milhas que estão de per-meio poderão dar tempo para te salvares, se as coisas cor-rerem mal.

— Se as coisas correrem mal, não desejarei salvar-me — replicou ela. — E agora os teus conselhos são vãose não me impedirás.

Avançou para as pessoas que ainda estavam reuni-das no espaço aberto da Ephel e gritou:

— Homens de Brethil! Eu não esperarei aqui. Se omeu senhor for derrotado, então toda a esperança seráfalsa. A vossa terra e as vossas florestas arderão totalmen-te, todas as vossas casas serão reduzidas a cinzas e nada,mas nada, escapará. Por isso, para quê permanecer aqui?Por mim, vou ao encontro de notícias e seja do que forque o destino possa enviar. Que todos os que pensamcomo eu venham comigo!

Muitos se mostraram, então, dispostos a ir com ela:as mulheres de Dorlas e Hunthor porque aqueles a quem

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amavam tinham ido com Turambar; outros, por pena deNíniel e desejo de a protegerem, e muitos mais atraídospela própria idéia do Dragão, pensando, na sua intrepidezou na sua insânia (por pouco saberem do mal), que iamtestemunhar grandes e gloriosos feitos. Pois, em verdade,o Espada Negra tornara-se tão grande na sua imaginaçãoque poucos conseguiam acreditar que até mesmo Glau-rung o derrotasse. Por isso, partiram sem perda de tempoe apressados, num grande grupo, ao encontro de um peri-go que não compreendiam. E, pouco tendo repousado,estavam exaustos quando chegaram, finalmente, mesmoao cair da noite, a Nen Girith, mas pouco tempo depoisde Turambar ter partido. A noite, porém, é severa conse-lheira e muitos se sentiram então estupefactos com a pró-pria temeridade; e quando souberam, pelos batedores queali permaneciam, quão perto Glaurung já chegara, e dadesesperada decisão de Turambar, os seus corações gela-ram e eles não se atreveram a ir mais longe. Alguns olha-ram, com olhos ansiosos, na direção de Cabed-en-Aras,mas nada conseguiram ver e nada ouviram além da vozfria das quedas de água. E Níniel afastou-se, sacudida porgrande tremor.

Quando Níniel e o seu grupo tinham partido,Brandir disse aos que ficaram:

— Vede como sou escarnecido e todas as minhasopiniões são desdenhadas! Escolhei outro para vos guiar,pois aqui renuncio tanto a senhorio como a povo. QueTurambar seja o vosso senhor de fato, já que se apoderoude toda a minha autoridade. Que nenhum volte jamais apedir-me conselho ou cura!

E quebrou o seu bordão, enquanto pensava: «Agoranada me resta a não ser apenas o meu amor por Níniel.

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Por isso, para onde ela for, levada pela sensatez ou pelainsensatez, assim irei eu também. Nesta hora negra nadapode ser previsto; mas é possível acontecer que até euconsiga afastar dela qualquer perigo, se me encontrar per-to.»

Muniu-se, por isso, de uma espada curta, como ra-ramente antes fizera, apoiou-se na sua muleta e, com arapidez de que foi capaz, transpôs a porta da Ephel, coxe-ando atrás dos outros pelo longo caminho que conduzia àmarca ocidental de Brethil.

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CAPÍTULO XVII

A MORTE DE GLAURUNG

Finalmente, mesmo quando a noite se cerrava so-bre a terra, Turambar e os seus companheiros chegaram aCabed-en-Aras e ficaram felizes com o grande barulho daágua; pois embora pressagiasse perigo lá em baixo, abafa-va todos os outros sons. Então Dorlas desviou-os umpouco para sul e desceram por uma fissura para o sopé dorochedo; mas aí desfaleceu-lhe a coragem, pois havia norio muitas rochas e grandes pedras, à volta das quais a á-gua corria, enfurecida, rangendo os dentes.

— Este é um caminho certo para a morte — disseDorlas.

— É o único caminho, para a morte ou para a vida— respondeu Turambar. — E protelar não o tornará maisauspicioso. Sigam-me, pois!

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Avançou à frente deles e, por perícia e temeridade,ou por vontade do destino, atravessou e, na densa escuri-dão, voltou-se para ver quem o seguia. Erguia-se a seulado uma forma escura.

— Dorlas? — perguntou.— Não. Sou eu — respondeu Hunthor. — Creio

que Dorlas não conseguiu atravessar, pois um homempode amar a guerra e, no entanto, temer muitas coisas.Suponho que ficou sentado a tremer na margem. Que avergonha o castigue pelas palavras que proferiu contra osmeus familiares.

Turambar e Hunthor descansaram um pouco, masa noite não tardou a enregelá-los, pois estavam ambos en-charcados, e começaram a procurar um caminho ao longodo rio, para norte, na direção da morada de Glaurung. Aío abismo tornou-se mais negro e mais estreito e, enquantotateavam o caminho, viram um tremeluzir acima deles,como de um fogo lento, e ouviram o rosnar do GrandeVerme no seu sono vigilante. Então procuraram um ca-minho a subir, para se aproximarem da beira do precipí-cio, pois nisso residia toda a sua esperança de chegarem aoinimigo sem que ele desse conta. Mas o fedor era agoratão repulsivo que sentiam a cabeça à roda e escorregavamenquanto se arrastavam, tinham de se agarrar aos ramosdas árvores e sentiam vômitos, esquecendo, na sua aflição,todo o medo além do de caírem nos dentes do Teiglin.

Então Turambar disse a Hunthor:— Em vão consumimos as nossas fracas forças.

Pois enquanto não soubermos com certeza por onde oDragão passará, será inútil subirmos.

— Mas, quando soubermos — lembrou Hunthor—, não teremos tempo de procurar um caminho para sa-

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irmos do precipício.— Tens razão. Mas quando tudo depende do aca-

so, no acaso temos de confiar.Por isso, pararam e esperaram e, da ravina escura,

observaram uma estrela branca, lá muito no alto, moven-do-se pela tênue nesga de céu; e então Turambar mergu-lhou pouco a pouco num sonho, no qual toda a sua von-tade se concentrava em agarrar-se, embora uma maré ne-gra puxasse e atormentasse as suas pernas.

De súbito, soou um grande barulho e as paredes doprecipício estremeceram e ecoaram. Turambar despertou edisse a Hunthor:

— Ele está a mexer-se. É chegada a nossa hora. A-taca fundo, pois dois têm de atacar por três!

E assim iniciou Glaurung o seu ataque a Brethil, etudo decorreu em grande medida como Turambar espera-ra. Pois agora o Dragão rastejava lentamente para a beirado penhasco e, em vez de se desviar, preparava-se parasaltar por cima do abismo com as grandes patas dianteirase depois arrastar todo o seu peso atrás. Trazia consigo oterror, porque não iniciou a passagem mesmo por cima,mas sim inclinando-se um pouco para norte, e os obser-vadores em baixo puderam ver a enorme sombra da suacabeça recortada contra as estrelas, e viram também quetinha a bocarra aberta e sete línguas de fogo. Soprou entãouma baforada de tal força que toda a ravina se encheu deuma luz vermelha e de sombras voando entre os roche-dos; mas as árvores à sua frente secaram e desfizeram-seem fumo e grandes pedras caíram estrondosamente norio. E arremessou-se para diante e agarrou-se ao rochedofronteiro com as possantes garras, e começou a impelir-separa o outro lado.

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Impunha-se serem destemidos e rápidos, pois em-bora tivessem escapado à baforada, visto não se encontra-rem diretamente no caminho de Glaurung, Turambar eHunthor tinham de atacá-lo antes que ele conseguisse a-travessar, caso contrário toda a esperança estava perdida.Alheio ao perigo, Turambar trepou ao longo do penhascopara se colocar por baixo dele; mas o calor e o mau cheiroeram aí tão horríveis que ele cambaleou e teria caído seHunthor, que o seguia arrojadamente, não lhe tivesse a-garrado o braço e o houvesse sustido.

— Indômito coração! — exclamou Turambar. —Feliz foi a escolha que fez de ti meu salvador!

Mas, no mesmo momento em que falava, umagrande pedra arremessada de cima atingiu Hunthor nacabeça e ele caiu na água e assim acabou: valente entre osmais valentes da Casa de Haleth.

— Ai de mim! — gritou Turambar. — É perigosocaminhar na minha sombra! Porque procurei eu auxílio?Pois agora estás só, Mestre do Destino, como deverias tersabido que estarias. Vence, pois, sozinho!

Chamou a si toda a sua vontade e todo o seu ódiopelo Dragão e pelo seu Senhor e pareceu-lhe, de súbito,ter encontrado uma força de ânimo e de corpo que nãoconhecera antes. E subiu o penhasco, de pedra em pedra eraiz em raiz, até se agarrar, por fim, a uma pequena árvoreque se erguia sob o rebordo do abismo e, embora a suacopa estivesse destroçada, ainda se encontrava bem segurapelas raízes. Precisamente quando se firmava numa bifur-cação dos seus ramos, o meio do corpo do Dragão che-gou acima dele e oscilou, bambo, com o seu peso quasesobre a cabeça de Túrin, antes que Glaurung tivesse tem-po de o subir e esticar. Pálido e enrugado era o seu ventre,

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e todo molhado de viscoso muco cinzento ao qual se a-garrava toda a espécie de imundície gotejante; e o fedorera de morte. Então Turambar desembainhou a EspadaNegra de Beleg e deu uma estocada para cima com toda aforça do seu braço e do seu ódio, e a lâmina mortífera,comprida e ávida, penetrou na barriga do monstro até aospunhos.

Sentindo a angústia da morte, Glaurung soltou umgrito que fez estremecer todas as florestas e apavorou osvigilantes em Nen Girith. Turambar cambaleou, como setivesse sido atingido por um golpe, escorregou e a espadasoltou-se-lhe da mão e ficou cravada na barriga do Dra-gão. Glaurung, num grande espasmo, retesou todo o cor-po tremente e lançou-o sobre a ravina onde, na margemoposta, se contorceu, gritando, escoicinhando e enroscan-do-se em agonia, até ter destruído um grande espaço atoda a sua volta e, finalmente, destroçado e fumegante,ficar imóvel.

Turambar estava agarrado às raízes da árvore, ator-doado e quase vencido. Mas lutou contra si mesmo e, obs-tinadamente, meio a escorregar, meio a trepar, desceu atéao rio e ousou de novo a perigosa travessia, arrastando-seapoiado nas mãos e nos pés, agarrando-se, cego pela es-puma, até conseguir, por fim, subir cautelosamente pelafenda por onde tinham descido. Assim chegou, finalmen-te, ao lugar onde se encontrava o Dragão moribundo. O-lhou sem piedade para o inimigo abatido e sentiu-se satis-feito.

Ali jazia agora Glaurung, de mandíbulas escancara-das; mas todos os seus fogos estavam extintos e os seusolhos demoníacos fechados. Estava estendido ao compri-do e rebolara sobre um lado, e os punhos da Gurthang

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sobressaíam do seu ventre. O coração de Turambar ale-grou-se dentro dele e, embora o Dragão ainda respirasse,decidiu recuperar a sua espada, a qual, se já antes prezara,considerava agora digna de todos os tesouros de Nargot-hrond. Verdadeiras se provavam as palavras ditas quandofora forjada, segundo as quais coisa alguma, grande oupequena, sobreviveria se por ela fosse mordida.

Por isso, aproximando-se do inimigo, apoiou o péna sua barriga e, segurando s punhos da Gurthang, recor-reu a todas as suas forças para a retirar. E, troçando daspalavras de Glaurung em Nargothrond, gritou: «Salve,Verme de Morgoth! Alegra-me voltar a encontrar-te! Ago-ra morre e que as trevas te engulam! Assim fica vingadoTúrin, filho de Húrin.» Puxou então a espada e, no mesmomomento, irrompeu um jorro de sangue negro que caiusobre a sua mão e cujo veneno lhe queimou a carne, fa-zendo-o gritar alto, de dor. Glaurung estremeceu, abriu osolhos sinistros e olhou para Turambar com tanta malva-dez que ele teve a sensação de ter sido atingido por umaflecha. E, por via disso, e pela dor na sua mão, apoderou-se dele um desfalecimento e caiu como morto ao lado doDragão, com a espada debaixo dele.

Os gritos de Glaurung foram ouvidos pelas pessoasem Nen Girith, que ficaram aterrorizadas. E quando osvigias distinguiram, de longe, os destroços e o fogo que oDragão fizera na sua agonia, convenceram-se de que esta-va a espezinhar e a destruir aqueles que o tinham atacado.Desejaram então que fossem mais as milhas que ficavamde permeio. Mas não ousaram abandonar o ponto altoonde se tinham reunido, pois lembravam-se das palavrasde Turambar, segundo as quais, se Glaurung vencesse, iriaprimeiro para a Ephel Brandir. Por isso, ficaram atentos a

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qualquer sinal dos movimentos dele, mas nenhum se sen-tiu destemido ao ponto de descer e ir procurar notícias nolocal do combate. Níniel estava sentada, sem se podermexer, embora tremesse e não conseguisse imobilizar aspernas, pois, quando ouviu a voz de Glaurung, o coraçãomorreu dentro dela e sentiu a escuridão invadi-la de novo.

Assim a encontrou Brandir, que chegara por fim àponte sobre o Celebros, lenta e cautelosamente. Percorre-ra toda a longa distância sozinho e a coxear, apoiado namuleta: cinco léguas, pelo menos, a partir da sua casa. Otemor por Níniel dera-lhe forças e, agora, as notícias queouvia não eram piores do que receara.

— O Dragão atravessou o rio — disseram-lhe oshomens — e o Espada Negra está por certo morto e, comele, aqueles que o acompanharam.

Brandir parou junto de Níniel, imaginou o seu so-frimento e compadeceu-se dela, mas isso não o impediude pensar: «O Espada Negra está morto e Níniel vive.»Estremeceu, pois pareceu-lhe subitamente que estava friojunto das águas de Nen Girith. Envolveu Níniel na suacapa. Mas não encontrou palavras para dizer e ela tambémnão falou.

O tempo foi passando e Brandir continuou silen-cioso ao lado dela, de olhos fixos na noite e ouvidos aten-tos; mas não conseguia ver nada nem ouvir qualquer somalém do das queda das águas da Nen Girith, e pensou:«Certamente Glaurung já partiu e entrou em Brethil.» Masjá deixara de se compadecer do seu povo, tolos que ti-nham menosprezado os seus conselhos e escarnecido de-le. «Esperemos que o Dragão vá para o Amon Obel e,então, haverá tempo para fugir e levar Níniel daqui.» Paraonde, porém, mal sabia, pois nunca viajara para além de

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Brethil.Por fim, inclinou-se, tocou no braço e Níniel e dis-

se-lhe:— O tempo passa, Níniel! Vem. Chegou o momen-

to de partir. Se mo permitires, conduzir-te-ei.Ela levantou-se, silenciosamente, deu-lhe a mão e

atravessaram a ponte e desceram o caminho que conduziaaos Vaus do Teiglin. Mas quem os via avançar comosombras na escuridão não sabia quem eram, e tão-poucose importava. E quando tinham percorrido alguma distân-cia, pouca, entre as árvores silenciosas, a Lua subiu para ládo Amon Obel e uma luz cinzenta pairou sobre as clarei-ras da floresta. Então Níniel parou e perguntou a Brandir:

— É este o caminho? E ele respondeu:— Quem sabe qual é o caminho? Pois toda a nossa

esperança em Brethil morreu. Não nos resta nenhum ca-minho a não ser o de escapar ao Dragão e fugir para longedele enquanto é tempo.

Níniel olhou-o, surpreendida, e disse:— Não te ofereceste para me conduzir até ele? Ou

querer ás iludir-me? O Espada Negra era o meu amado eo meu marido, e só para o encontrar parti. Que outra coi-sa podias ter pensado? Agora procede como entenderes,mas eu tenho de apressar-me.

E, enquanto Brandir estacava um momento, sur-preso, ela afastou-se apressadamente, e ele gritou-lhe:

— Espera, Níniel! Não partas sozinha! Não sabes oque encontrarás. Irei contigo!

Mas ela não lhe deu ouvidos e prosseguiu como seo seu sangue a incendiasse, sangue que antes estivera frio.E, embora ele a seguisse o melhor que podia, não tardou aperdê-la de vista. Amaldiçoou então o seu destino e a sua

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fraqueza, mas não voltou para trás.A Lua subia, branca, no céu, e quase no plenilúnio

e, enquanto Níniel descia das terras altas na direção daterra próxima do rio, pareceu-lhe que se recordava dela etemeu-a. Pois chegara aos Vaus do Teiglin e o Haudh-en-Elleth erguia-se à sua frente, pálido sob o luar e com umasombra negra projetada nele em diagonal. E do monteemanava um grande pavor.

Voltou-se, então, com um grito e correu para sul,ao longo do rio. Enquanto corria, largou a capa, sob a qualestava toda vestida de branco, e o seu vulto brilhou aoluar, por entre as árvores. Foi assim que Brandir, que seencontrava em cima, na encosta do monte, a viu e se vol-tou para se atravessar no caminho dela, se pudesse. E en-contrando, por acaso, o caminho estreito que Turambarutilizara, pois deixava para trás a estrada mais batida e des-cia acentuadamente na direção do sul, para o rio, voltoude novo a aproximar-se de Níniel. Mas, embora a chamas-se, ela não fez caso, ou não ouviu, e em breve aumentoude novo a distância. Assim se aproximaram das florestasao lado da Cabed-en-Aras e do lugar da agonia de Glau-rung.

A Lua seguia agora para sul, descoberta, e a luz erafria e clara. Ao chegar à beira das ruínas que Glaurungcausara, Níniel viu o seu corpo caído e a sua barriga cin-zenta na luminosidade lunar. Mas ao lado dele jazia umhomem. Ignorando o medo, correu por entre os destroçosfumegantes e chegou junto de Turambar. Estava caído delado, com a espada debaixo dele, mas o seu rosto tinha alividez da morte, à luz branca. Lançou-se para o chão, aolado dele, chorando e beijando-o. Pareceu-lhe que respira-va, mas julgou tratar-se de uma partida da falsa esperança,

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pois estava frio e imóvel, além de não lhe responder.Quando o acariciava, descobriu que a mão dele estava e-negrecida, como se tivesse sido queimada, e lavou-a comas suas lágrimas. Rasgou uma tira do vestido e ligou-lhacom ela. Mas ele continuou sem reagir ao seu contato e elatornou a beijá-lo e disse, alto: «Turambar, Turambar, vol-ta! Ouve-me! Acorda! E a Níniel. O Dragão está morto,morto, e encontro-me aqui sozinha ao teu lado.» Mas elenão respondeu. Brandir, porém, ouviu o seu grito, poischegara ao início dos destroços. Mas, no momento emque avançava, deteve-se e ficou imóvel. Pois, ouvindo osgritos de Níniel, Glaurung agitara-se pela última vez e umestremecimento percorreu-lhe o corpo todo. Os seus o-lhos sinistros entreabriram-se numa pequena fresta, naqual o luar brilhou, enquanto falava, ofegante:

— Salve, Níniel, filha de Húrin. Voltamos a encon-trar-nos antes do fim. Dou-te a alegria de teres encontra-do, finalmente, o teu irmão. E agora conhecê-lo-ás: umhomem que apunhala no escuro, traiçoeiro para com osseus inimigos, infiel aos seus amigos e uma maldição paraos do seu sangue, Túrin, filho de Húrin! Mas o pior detodos os seus atos senti-lo-ás em ti mesma.

Niënor ficou como que atordoada, mas Glaurungmorreu. E, com a sua morte, o véu da sua perversidadeabandonou-a e toda a sua memória surgiu, mais nítida, aosolhos dela, de dia para dia, e tão-pouco esqueceu nenhu-ma das coisas que lhe tinham acontecido desde que estive-ra no Haudh-en-Elleth. Todo o seu corpo estremeceu dehorror e angústia. Mas Brandir, que tudo ouvira, ficou a-balado e encostou-se a uma árvore.

De súbito, Niënor levantou-se de um salto, pálidacomo um espectro ao luar, olhou para Túrin e gritou:

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— Adeus, ó duas vezes amado! A Túrin Turambarturún’am-bartanen: senhor do destino pelo destino domi-nado! Ó feliz por estares morto!

Depois, transtornada pela desgraça e pelo horrorque a avassalavam, afastou-se desvairadamente dali, eBrandir correu a tropeçar atrás dela, gritando:

— Espera! Espera, Níniel!Ela parou um momento e olhou para trás com o-

lhos fixos.— Esperar? — gritou. — Esperar? Esse foi sempre

o teu conselho. Quem me dera tê-lo seguido! Mas agora édemasiado tarde e mais não esperarei sobre a Terra Média.— E desatou a correr à frente dele.

Chegou velozmente à beira de Cabed-en-Aras e aíparou e olhou para as águas tumultuosas, gritando:

— Água, água! Recebe agora Níniel Niënor, filha deHúrin; Luto, filha enlutada de Morwen! Recebe-me e leva-me para o Mar!

E, com tais palavras, lançou-se sobre a beira: um re-lâmpago branco engolido pelo escuro abismo, um gritoperdido no estridor do rio.

As águas do Teiglin continuaram a correr, mas Ca-bed-en-Aras deixou de existir: Cabed Naeramarth, o Saltodo Terrível Destino, passou a ser chamado pelos homens,pois nenhum gamo por ali voltaria jamais a saltar, todas ascoisas vivas o evitariam e nenhum homem jamais cami-nharia pela sua margem. O último dos homens a olhar oseu negrume foi Brandir, filho de Handir; e ele afastou-sehorrorizado, pois o seu coração vacilava e, embora detes-tasse agora a sua vida, não era capaz de aceitar a morteque desejava. Então os seus pensamentos voltaram-se pa-ra Túrin Turambar, e gritou:

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— Detesto-te ou compadeço-me de ti? Mas estásmorto. Não te devo agradecimento algum, usurpador detudo o que eu tinha ou deveria ter. Mas o meu povo temuma dívida para contigo e é justo que por mim fique asabê-lo.

E assim começou a manquejar de regresso a NenGirith, evitando, com um calafrio, o lugar onde o Dragãojazia. Quando voltava a subir o caminho íngreme, encon-trou um homem que espreitava entre as árvores e, ao vê-lo, recuou. Mas Brandir vira-lhe o rosto no brilho da Lua aempalidecer.

— Dorlas! — gritou. — Que notícias me podesdar? Como sobreviveste? E o que aconteceu ao meu fami-liar?

— Não sei — respondeu Dorlas, brusco.— Então isso é estranho — comentou Brandir.— Se queres saber — continuou Dorlas —, o Es-

pada Negra mandou-nos vadear as correntes do Teiglin,na escuridão. Achas estranho que eu não tenha podidofazê-lo ? Com um machado, sou melhor homem do quealguns, mas não tenho pés de cabra.

— Queres dizer que eles prosseguiram sem ti aoencontro do Dragão? Mas o que aconteceu, quando eleatravessou? Pelo menos devias estar perto e ter visto oque se passou.

Mas Dorlas não respondeu e limitou-se a fitarBrandir com os olhos cheios de ódio. Então Brandircompreendeu, percebeu de súbito que aquele homem ti-nha abandonado os seus companheiros e, desmoralizadopela desonra, escondera-se nas florestas.

— Que vergonha, Dorlas! És o causador das nossasdesgraças: incitaste o Espada Negra, trouxeste o Dragão

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ao nosso encontro, escarneceste de mim, arrastaste Hun-thor para a morte e depois fugiste e ficaste amuado nasflorestas! — Enquanto falava, acudiu-lhe outro pensamen-to e acrescentou, muito irado: — Porque não trouxestenotícias? Era a mínima penitência que poderias fazer. Se otivesses feito, a Senhora Níniel não teria tido necessidadede ir procurá-las pessoalmente. Não precisaria, nunca, deter visto o Dragão. Poderia ter vivido. Odeio-te, Dorlas!

— Fica com o teu ódio! E tão fraco como todas astuas decisões. Se não fosse eu, os Orcs teriam vindo e ter-te-iam dependurado como um espantalho no teu jardim.Guarda para ti o apodo de poltrão!

E com essas palavras, e sendo, para vergonha sua, omais rápido a enfurecer-se, desferiu com o grande punhoum murro em Brandir e terminou assim a sua vida, antesque a expressão de espanto se apagasse dos seus olhos:pois Brandir desembainhou a espada e deu-lhe um golpede morte. Brandir ficou um momento a tremer, agoniadocom a visão do sangue, e depois largou a espada, voltou-see seguiu o seu caminho, curvado sobre a muleta.

Quando chegou a Nen Girith, a pálida Lua afunda-ra-se e a noite desvanecia; a manhã despontava no oriente.As pessoas que ainda ali estavam, assustadas, junto daponte, viram-no aproximar-se como uma sombra cinzentana alvorada, e algumas perguntaram-lhe, surpresas:

— Onde estiveste? Viste-a? Pois a Senhora Nínieldesapareceu.

— Sim — respondeu Brandir —, desapareceu. De-sapareceu para nunca mais voltar! Mas eu vim para vostrazer notícias. Escutai agora, povo de Brethil, e dizei-mese jamais houve alguma história como a que vos trago! ODragão está morto, mas morto está igualmente Turambar,

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ao seu lado. E isto são boas notícias: sim, são ambas boasnotícias.

Então as pessoas murmuraram, surpreendidas comas suas palavras, e algumas disseram que tinha enlouque-cido; mas Brandir gritou:

— Ouvi-me até ao fim! Níniel também está morta,Níniel, a bela a quem amastes e a quem eu amava mais doque a ninguém. Atirou-se do rebordo do Salto do Gamo eos dentes do Teiglin fecharam-se sobre ela. Partiu, odian-do a luz do dia. Pois isto ficou a saber antes de fugir: fi-lhos de Húrin ambos eram, irmã e irmão. Mormegil lhechamavam a ele, Turambar a si mesmo se chamava, ocul-tando o seu passado: Túrin, filho de Húrin. Níniel lhechamávamos a ela, desconhecendo o seu passado: Niënorera, filha de Húrin. Para Brethil trouxeram a sombra doseu negro destino. Aqui o seu destino se cumpriu e damágoa jamais esta terra voltará a libertar-se. Deixai dechamar-lhe Brethil, pois não é a terra dos Halethrim, massim Sarch nia Chîn Húrin, Sepultura dos Filhos de Húrin!

Então, embora ainda não soubessem como tal tra-gédia pudera acontecer, as pessoas choraram, ali paradas, ealgumas disseram:

— Uma sepultura há no Teiglin para Níniel, a ado-rada, uma sepultura deverá haver para Turambar, o maiscorajoso dos homens. O nosso libertador não deve serabandonado debaixo do céu. Vamos buscá-lo.

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CAPÍTULO XVIII

A MORTE DE TÚRIN

No mesmo momento em que Níniel fugia, Túrinestremeceu e, na profunda escuridão que o envolvia, pare-ceu-lhe ouvi-la chamá-lo, de muito longe; no entanto,quando Glaurung morreu, o desfalecimento negro em quemergulhara abandonou-o e ele pôde, de novo, respirarfundo. Suspirando, caiu numa sonolência de grande fadi-ga. Mas antes de alvorecer o frio tornou-se cortante, elevirou-se, dormindo, e os punhos da Gurthang cravaram-se-lhe no flanco e acordaram-no subitamente. A noite fin-dava e havia um sopro matinal no ar. Levantou-se, derompante, e lembrou-se da sua vitória e do veneno quelhe queimara a mão. Ergueu a mão, olhou-a e pasmou.Pois ela estava ligada com uma tira de tecido branco, aindaúmido, e não o atormentava. Perguntou a si mesmo:«Porque haveria alguém de cuidar de mim assim e, aomesmo tempo, deixar-me aqui a morrer de frio no meio

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dos destroços e da pestilência do dragão? Que estranhascoisas aconteceram?»

Depois gritou alto, mas não obteve qualquer res-posta. À sua volta só havia escuridão e pavor, de misturacom uma fetidez de morte. Inclinou-se, levantou a espadae verificou que estava intacta e que o brilho dos seus gu-mes luzia como sempre. «Imundo era o veneno de Glau-rung», disse, «mas tu és mais forte do que eu, Gurthang.Todo o sangue beberás. A vitória é tua. Mas vem, poistenho de ir em busca de socorro. O meu corpo está fati-gado e há frio nos meus ossos.»

Depois voltou as costas a Glaurung e deixou-o aapodrecer. Mas, enquanto se afastava daquele lugar, cadapasso lhe parecia mais pesado, e pensou: «Talvez encontreem Nen Girith um dos batedores à minha espera. Quemme dera, porém, chegar em breve a minha casa e sentir asmãos suaves de Níniel e a boa competência de Brandir!» Eassim, caminhando fatigadamente, apoiado na Gurthang eguiado pela luz cinzenta do início do dia, chegou enfim aNen Girith e, no próprio momento em que os homens sepreparavam para ir em busca do seu corpo morto, ele pa-rava diante do seu povo.

Eles recuaram, aterrorizados, julgando-se na pre-sença do seu espírito perturbado, e as mulheres soltaramqueixumes e cobriram os olhos. Mas ele disse:

— Não choreis, alegrai-vos antes! Vede, não estouvivo? E não matei eu o Dragão que temíeis?

Depois eles voltaram-se para Brandir e gritaram:— Tolo, tu e as tuas falsas histórias, dizendo que

ele jazia morto. Não dissemos nós que estavas louco?Horrorizado, Brandir fitou Túrin com os olhos

cheios de medo e não disse nada.

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Mas Túrin disse-lhe:— Foste, então, tu que lá estiveste e Cuidaste da

minha mão? Agradeço-te. Mas a tua arte está a declinar, senão sabes distinguir um desmaio da morte. — Depois vol-tou-se para as pessoas e disse-lhes: — Não lhe faleis as-sim, porque tolos sois todos vós. Qual teria feito melhor?Ele, pelo menos, teve a coragem de descer ao campo debatalha, enquanto vós aqui ficastes, lamuriando!

«Mas agora, filho de Handir, vem! Gostaria de sabermais coisas. Porque estás aqui com toda esta gente, quedeixei na Ephel? Se posso correr perigo de morte para vosdefender, não poderei ser obedecido quando parto ? Eonde está Níniel? Posso pelo menos ter esperança de quenão a trouxeram para cá e a deixaram onde a deixei, emminha casa, com homens leais para a protegerem?

Como ninguém lhe respondesse, gritou:— Falem! Onde está Níniel? Pois a ela primeiro

quereria ver e a ela primeiro contarei a história dos feitosque cometi durante a noite.

Mas eles desviaram o rosto e, finalmente, Brandirdisse:

— Níniel não está aqui.— Está bem. Nesse caso, vou para minha casa. Há

um cavalo que me transporte? Uma padiola talvez fossemelhor. Os meus labores deixaram-me desfalecido.

— Não, não! — exclamou Brandir, com o coraçãoangustiado. — A tua casa está deserta. Níniel não se en-contra lá. Morreu.

Mas uma das mulheres, a esposa de Dorlas, quepouca simpatia tinha por Brandir, gritou esganiçadamente:

— Não lhe deis ouvidos, Senhor! Pois ele está lou-co. Chegou aqui gritando que estáveis morto e disse que

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eram boas notícias. Mas estais vivo. Porque haveriam deser verdadeiras as suas palavras a respeito de Níniel, deque ela está morta ou pior ainda?

Túrin avançou então para Brandir:— A minha morte era, então, uma boa notícia? —

gritou. — Que sempre ma invejaste, já eu sabia. Agoradizes que está morta. Ou pior ainda? Que mentira engen-draste na tua maldade, Coxo? Chacinar-nos-ias com pala-vras hediondas, tu que não és capaz de manejar nenhumaoutra arma?

Então a cólera expulsou a compaixão do peito deBrandir, que gritou:

— Louco? Não, louco estás tu, Espada Negra denegro destino! Tu e toda esta gente tonta. Eu não minto!Níniel está morta, morta, morta! Procura-a no Teiglin!

Túrin estacou, gelado.— Como o sabes? — perguntou, baixinho. — Co-

mo o maquinastes?— Sei porque a vi saltar — respondeu Brandir. —

Mas a maquinação foi tua. Ela fugiu de ti, Túrin, filho deHúrin, e da Cabed-en-Aras se atirou para nunca mais vol-tar a ver-te. Níniel! Níniel! Não, Niënor, filha de Húrin.

Então Túrin agarrou-o e sacudiu-o, pois naquelaspalavras ouvira os passos da sua condenação a alcançá-lo,mas no horror e na fúria que lhe tomavam o coração nãoqueria aceitá-las, como um animal ferido de morte que,antes de morrer, quer destruir tudo quanto lhe está pró-ximo.

— Sim, sou Túrin, filho de Húrin! — gritou. — Hámuito tempo o adivinhaste. Mas de Niënor, minha irmã,nada sabes. Nada! Ela vive no Reino Escondido e está emsegurança. O que dizes é uma mentira da tua mente torpe,

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para enlouqueceres a minha mulher e me enlouqueceresagora a mim. Demônio manco, queres empurrar-nos aambos para a morte?

Mas Brandir soltou-se.— Não me toques! Contém a tua fúria. Aquela a

que chamas mulher foi ao teu encontro e cuidou da tuaferida, e tu não respondeste ao seu chamamento. Mashouve quem respondesse por ti.

Glaurung, o Dragão, que suponho vos conduziu aambos para o vosso destino. Assim falou, antes de morrer:«Niënor, filha de Húrin, eis aqui o teu irmão: traiçoeiropara com os seus inimigos, infiel aos seus amigos e umamaldição para os do seu sangue, Túrin, filho de Húrin.» —De súbito, uma gargalhada cruel sacudiu Brandir. — Cos-tuma dizer-se que, na hora da morte, os homens dizem averdade. E, ao que parece, também um Dragão a diz. Tú-rin, filho de Húrin, uma maldição para os do teu sangue epara tudo quanto te acolhe!

Então Túrin empunhou a Gurthang e havia um bri-lho feroz nos seus olhos.

— E o que deverá ser dito de ti, Coxo? — pergun-tou, devagar. — Quem lhe disse a ela, em segredo e nasminhas costas, o meu verdadeiro nome? Quem a conduziuà malvadez do Dragão? Quem ficou parado e a deixoumorrer? Quem veio para aqui a fim de divulgar esse hor-ror o mais rapidamente possível? Quem se regozijaria ago-ra perante mim? Os homens dizem a verdade antes demorrer? Pois di-la agora, e depressa.

Então, Brandir, vendo a sua morte no rosto de Tú-rin, ficou imóvel e não se acovardou, embora não dispu-sesse de nenhuma arma além da sua muleta, e disse:

— Tudo quanto aconteceu é uma longa história e

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eu estou cansado de ti. Mas calunias-me, filho de Húrin.Glaurung caluniou-te? Se me matares, então todos saberãoque não. No entanto, não temo a morte, pois, morrendo,irei em busca de Níniel, a quem amava, e talvez consigareencontrá-la para além do Mar.

— Em busca de Níniel! — gritou Túrin. — Não,Glaurung encontrarás e, juntos, congeminareis mentiras.Dormirás com o Verme, teu companheiro de alma, e apo-drecerão numa só negritude!

Depois ergueu a Gurthang e atacou Brandir, ma-tando-o. Mas as pessoas desviaram o olhar de tal ato e,quando Túrin se voltou e partiu de Nen Girith, fugiramdele, aterrorizadas.

Então Túrin andou como um demente pelas flores-tas selvagens, ora amaldiçoando a Terra Média e toda avida dos Homens, ora gritando por Níniel. Mas quando,finalmente, a insanidade do seu sofrimento lhe deu tré-guas, sentou-se e meditou em todos os seus atos e ouviu-se a si mesmo gritar: «Ela vive no Reino Escondido e estáem segurança!» E pensou que, apesar de agora toda a suavida estar arruinada, para lá devia dirigir-se; pois todas asmentiras de Glaurung o tinham sempre desencaminhado.Levantou-se, pois, e dirigiu-se para os Vaus do Teiglin e,ao passar pelo Haudh-en-Elleth gritou: «Amargamentepaguei, ó Finduilas, por sempre ter dado ouvidos ao Dra-gão. Aconselha-me agora!

Mas, no próprio momento em que gritava, viu dozecaçadores bem armados virem pelos Vaus e percebeu queeram Elfos. Quando se aproximaram, reconheceu um de-les, pois era Mablung, caçador-mor de Thingol. E Ma-blung saudou-o, exclamando:

— Túrin! Feliz encontro, finalmente. Procurava-te

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e alegra-me ver-te vivo, embora os anos tenham pesadosobre ti.

— Pesado! — repetiu Túrin. — É verdade, pesadocomo os pés de Morgoth. Mas se te alegra ver-me vivo,então és o último da Terra Média a sentir assim. Porquê?

— Porque foste tido em alta conta e honrado entrenós — respondeu Mablung. — E, embora tenhas sobre-vivido a muitos perigos, acabei, por fim, por temer por ti.Observei o aparecimento de Glaurung e pensei que cum-prira o seu pérfido desígnio e regressava para junto do seuSenhor. Mas ele seguiu na direção de Brethil e, ao mesmotempo, fiquei a saber, por caminhantes da terra, que o Es-pada Negra de Nargothrond ali aparecera de novo e osOrcs evitavam as suas fronteiras como se fugissem damorte. Pensei, então: «Sorte cruel! Glaurung vai aonde osseus Orcs não ousam, em busca de Túrin.» Por isso vim,com toda a celeridade possível, para te avisar e ajudar.

— Célere, mas não o suficiente — disse Túrin. —Glaurung está morto.

Então os Elfos olharam-no, cheios de pasmo, e dis-seram:

— Mataste o Grande Verme! Enaltecido será parasempre o teu nome entre Elfos e Homens!

— Pouco me importa. Pois morto está também omeu coração. Mas, como vindes de Doriath, dai-me notí-cias da minha família. Pois disseram-me em Dor-lóminque elas tinham fugido para o Reino Escondido.

Os Elfos não responderam, mas, por fim, Mablungdisse:

— Fugiram, de fato, no ano que antecedeu a vindado Dragão. Infelizmente, porém, agora não estão lá!

O coração de Túrin ficou paralisado, ouvindo os

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passos da condenação que o perseguiriam até ao fim.— Fala! — gritou. — E depressa!— Partiram para os ermos à tua procura — res-

pondeu Mablung. — Contrariando todos os conselhos,teimaram em ir para Nargothrond quando se soube queeras o Espada Negra. E Glaurung avançou e todos quan-tos as guardavam foram dispersos. A Morwen ninguémvoltou a vê-la desde esse dia; mas sobre Niënor abateu-seum feitiço de mudez e ela fugiu para norte e embrenhou-se nas florestas como uma corça selvagem, e perdeu-se.

Então, para pasmo dos Elfos, Túrin soltou umagargalhada alta e estridente, e disse:

— Não é isso uma brincadeira? Oh, a loura Niënor!Fugiu então de Doriath para o Dragão e do Dragão paramim. Que ditosa graça do destino! Morena como umabaga silvestre era, escuros eram os seus cabelos e pequenae esbelta como uma criança élfica, ninguém poderia con-fundi-la!

Surpreendido, Mablung respondeu:— Há nisso algum erro. A tua irmã não era assim.

Era alta, os seus olhos eram azuis, o seu cabelo finos fiosde ouro, o próprio retrato, em forma de mulher, de Húrin,seu pai. Não podes tê-la visto!

— Não posso, Mablung, não posso? Mas porquenão? Pois repara, sou cego! Não sabias? Cego, cego, tateiodesde a infância numa névoa escura de Morgoth! Deixa-me, pois! Vai, vai! Regressa a Doriath e que possa o In-verno envelhecê-la! Que uma maldição se abata sobreMenegroth! E outra sobre a tua incumbência! Apenas issofaltava. Agora chega a noite!

Depois fugiu deles, como o vento, deixando-oscheios de espanto e medo. Mas Mablung disse:

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— Alguma coisa estranha e terrível aconteceu, daqual nada sabemos. Sigamo-lo e ajudemo-lo, se pudermos:pois agora ele está condenado e fora de si.

Mas Túrin afastou-se velozmente, chegou à Cabed-en-Aras e imobilizou-se. Ouviu o estrondear da água e viuque todas as árvore próximas e distantes tinham definha-do e as suas folhas secas caíam desoladamente, como se oInverno houvesse chegado nos primeiros dias do Verão.

— Cabed-en-Aras, Cabed Naeramarth! — gritou.— Não macularei as tuas águas, que receberam Níniel.Pois todos os meus atos foram maus e o último pior doque todos.

Depois desembainhou a espada e disse:— Salve, Gurthang, ferro da morte, só tu agora res-

tas! Mas que senhor ou lealdade conheces, além da mãoque te empunha ? De sangue algum desdenharás. Recebe-rás Túrin Turambar? Matar-me-ás rapidamente?

E da lâmina ressoou uma voz fria, em resposta:— Sim, beberei o teu sangue, para assim esquecer o

sangue de Beleg, meu dono, e o sangue de Brandir, injus-tamente chacinado. Matar-te-ei rapidamente.

Então Túrin apoiou os punhos da espada no chão,lançou-se sobre a ponta da Gurthang e a lâmina negra to-mou-lhe a vida.

Mas Mablung chegou e olhou a forma hedionda deGlaurung, caído morto; olhou também para Túrin e sen-tiu-se pesaroso, pensando em Húrin como o vira na Nir-naeth Arnoediad, e no trágico destino da sua família. En-quanto os Elfos ali estavam parados, vieram homens deNen Girith para verem o Dragão e, quando viram qualfora o fim da vida de Túrin, choraram; e os Elfos, com-preendendo finalmente a razão das palavras que tinham

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ouvido de Túrin, sentiram-se horrorizados. Então Ma-blung disse, amargamente:

— Também eu estive envolvido no destino dos Fi-lhos de Húrin e por isso, com palavras, matei um a quemamava.

Levantaram então Túrin e viram que a sua espadaestava partida. Assim acabara tudo quanto ele possuíra.

Com o labor de muitas mãos, juntaram lenha, fize-ram com ela um monte alto e atearam uma grande foguei-ra onde o corpo do Dragão foi destruído, até nada restardele além de cinzas negras e de os seus ossos ficarem re-duzidos a pó, e o lugar onde foi acesa a fogueira tornou-separa sempre estéril e desnudo. Mas a Túrin depositaram-no num cabeço alto onde caíra, e colocaram a seu lado osfragmentos da Gurthang. E quando tudo ficou feito, e osmenestréis de Elfos e Homens tinham proferido os seuslamentos, falando da coragem de Turambar e da beleza deNíniel, foi trazida e colocada sobre o cabeço uma grandepedra cinzenta, na qual os Elfos esculpiram nas runas deDoriath:

TÚRIN TURAMBAR DAGNIR GLAURUNGA

E por baixo escreveram também:

NIËNOR NÍNIEL

Mas ela não se encontrava ali, nem jamais se soubepara onde as frias águas do Teiglin a tinham levado.

Aqui termina a História dos Filhos de Húrin, a maislonga de todas as baladas de Beleriand.

Após as mortes de Túrin e Niënor, Morgoth liber-

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tou Húrin da sua escravidão, como corolário dos seusperversos intentos. No decurso das suas deambulações,ele chegou à Floresta de Brethil e, ao anoitecer, subiu dosVaus do Teiglin ao lugar onde Glaurung fora queimado eà grande pedra que se erguia na beira de Cabed Naeramar-th. Do que ali aconteceu isto está dito.

Mas Húrin não olhou para a pedra, pois sabia o quelá fora escrito, e os seus olhos tinham visto que não seencontrava sozinho. Sentado à sombra da pedra estava umvulto dobrado sobre os joelhos. Parecia tratar-se de algumvagabundo sem teto e vergado pela idade, demasiado e-xausto pelo caminho para dar pela chegada dele; mas osandrajos que o cobriam eram restos de um vestuário demulher. Por fim, enquanto Húrin permanecia imóvel esilencioso, ela atirou para trás o capuz remendado e er-gueu devagar o rosto, desfigurado e faminto como o deum lobo há muito acossado. Era cinzenta, tinha nariz a-quilino e dentes partidos, e agarrava com uma das mãosdescarnadas a capa que lhe cobria o seio. Mas, de súbito,os seus olhos mergulharam nos dele e Húrin reconheceu-a; pois embora estivessem agora desvairados e cheios demedo, ainda brilhava neles uma luz difícil de suportar: aluz élfica que, havia muito tempo, lhe valera o nome deEledhwen, a mais altiva das mulheres mortais de antiga-mente.

— Eledwhen! Eledwhen! — gritou Húrin, e ela le-vantou-se, cambaleou para a frente e os braços dele segu-raram-na.

— Vieste, finalmente — disse a mulher. — Dema-siado tempo esperei.

— Foi uma negra estrada. Vim como pude.— Mas chegas atrasado, por demais atrasado. Eles

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estão perdidos.— Eu sei. Mas tu não estás.— Por pouco — respondeu a mulher. — Sinto-me

totalmente esgotada. Partirei com o Sol. Eles estão perdi-dos. — Agarrou-se à capa dele. — Pouco tempo resta. Sesabes, diz-me! Como o encontrou ela?

Mas Húrin não respondeu e sentou-se ao lado dapedra com Morwen nos braços. E não voltaram a falar. OSol pôs-se e Morwen suspirou, apertou a mão dele e ficouimóvel. E Húrin soube que tinha morrido.

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GENEALOGIAS

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APÊNDICES

(I)A EVOLUÇÃO DOS GRANDES CONTOS

Estes contos, interrelacionados mas independentes,há muito que estavam separados da longa e complexa his-tória dos Valar, Elfos e Homens de Valinor e das GrandesTerras. E nos anos que se seguiram ao seu abandono dosLost Tales antes de estarem terminados, o meu pai desis-tiu da composição em prosa e começou a trabalhar numextenso poema com o título Túrin filho de Húrin e Gló-rund o Dragão, mudado posteriormente para uma versãorevista de Os Filhos de Húrin. Isto passou-se no início dadécada de 1920, quando ele exercia funções na Universi-dade de Leeds. Para esse poema usou a antiga métrica ali-terativa (a forma de verso de Beowulf e outra poesia an-glo-saxônica) que impunha ao Inglês moderno os exigen-tes padrões de ênfase e «rima inicial» observados pelospoetas antigos: uma técnica em que alcançou grande mes-tria de modos muito diferentes, desde o diálogo dramáticode The Homecoming of Beorhnoth à elegia pelos homensque morreram na batalha dos «Campos de Pelennor». Oaliterativo Filhos de Húrin foi, de longe, o mais extensodos seus poemas com essa métrica, atingindo bem mais deduas mil linhas. No entanto, quando a abandonou, nãochegara mais longe, na narrativa, do que ao ataque doDragão a Nargothrond. Com tanto mais do Lost Tale ain-da para vir, teria precisado, nesta escala, de muitos maismilhares de linhas; enquanto uma segunda versão, aban-donada num ponto anterior da narrativa, tem mais ou

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menos o dobro do tamanho da primeira versão até essemesmo ponto.

Naquela parte da lenda de os Filhos de Húrin que omeu pai atingiu no poema aliterativo, a antiga história deThe Book of Lost Tales foi substancialmente alongada eelaborada. De realçar, sobretudo, que foi então que agrande cidade-fortaleza subterrânea de Nargothrond sur-giu, bem como as vastas terras do seu domínio (elementofulcral não apenas da lenda de Túrin e Niënor, mas tam-bém da história dos Tempos Antigos da Terra Média),com uma descrição de terras de cultivo dos Elfos de Nar-gothrond que proporciona uma excepcional sugestão das«artes da paz» no mundo antigo, vislumbres que são pou-cos e espaçados. Vindo para sul ao longo do rio Narog,Túrin e o seu companheiro (Gwindor, no texto deste li-vro) encontraram as terras próximas da entrada para Nar-gothrond aparentemente desertas:

... chegaram a uma região ternamente cuidada;

através de sebes floridas e belas terras

viajaram, e encontraram vazios de gente

os prados, as campinas e os relvados do Narog,

a terra fecunda por árvores envolta

entre montes e rio. As ociosas enxadas

aos campos arrojadas e escadas caídas

na alta erva de viçosos vergéis;

cada árvore ali voltava a cabeça desgrenhada

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e olhava-os a socapa, e das ervas ondulantes

as espigas escutavam; embora o meio-dia luzisse

em terra e folha, as suas pernas estavam geladas.

E assim os dois viajantes chegaram às portas deNargothrond, na garganta do Narog:

Ali, íngremes, erguiam-se as fortes espaldas dos mon-tes, sobranceiras a célere água; ali, envolto em árvores, umíngreme socalco largo e sinuoso, pelo uso alisado, rasgava-seno rosto da encosta a prumo. Gigantescas portas, sombria-mente esbatidas, estavam talhadas na encosta; enormes, assuas vigas, e de ponderosa pedra as suas padieiras e ombrei-ras.

Apanhados pelos Elfos, foram puxados pelo portal,que se fechou atrás deles:

Rangendo e chiando nos grandes gonzos a portentosaporta; com estridor estrepitoso atroou e fechou-se como o ri-bombo de um trovão e ecos terríveis em corredores desertos re-petiram-se e ressoaram sob invisíveis telhados; a luz perdeu-se. Depois conduziram-nos por longas e sinuosas veredas deescuridão, os guardas guiando-lhes os hesitantes pés, até o tê-nue tremular de ígneos archotes flamejar diante deles; mur-múrio incerto como de muitas vozes em reunião aglomeradasouviram quando se apressavam. Alto se alçava o teto. Umainesperada curva viraram, assombrados, e viram um solene esilencioso conclave, onde centenas se comprimiam num imensocrepúsculo sob distantes cúpulas sombriamente abobadadas

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mudamente os esperavam.

Mas no texto de Os Filhos de Húrin apresentadoneste livro não mais nos é dito do que (p. 153):

Depois levantaram-se e, partindo de Eithel Ivrin, vi-ajaram para sul ao longo das margens do Narog, até seremcapturados por batedores dos Elfos e levados como prisionei-ros para a fortaleza oculta.

Assim chegou Túrin a Nargothrond.

Como aconteceu isso? Tentarei, a seguir respondera esta pergunta.

Parece praticamente certo que tudo quanto o meupai escreveu deste poema aliterativo sobre Túrin foi con-seguido em Leeds, que ele o abandonou no fim de 1924ou no início de 1925. Mas o motivo por que o fez tem depermanecer desconhecido. No entanto, aquilo a que de-pois se dedicou não é misterioso: no Verão de 1925 ini-ciou um novo poema com uma métrica completamentediferente: cópias rimadas octossilábicas intituladas A Bala-da de Leithian, «Libertação do Cativeiro». Iniciou assimoutro dos contos que, anos mais tarde, em 1951, descre-veu, como já mencionei, como plenos em tratamento, in-dependentes e, apesar disso, ligados à «história geral», poiso tema de A Balada de Leithian é a lenda de Beren e Lú-thien. Ele trabalhou seis anos neste segundo extenso po-ema e abandonou-o, por sua vez, em Setembro de 1931,após ter escrito mais de 4000 versos. Como o aliterativoOs Filhos de Húrin, que lhe sucedeu e o suplantou, estepoema representa um progresso substancial na evoluçãoda lenda do original Lost Tale de Beren e Lúthien.

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Enquanto trabalhava em A Balada de Leithian, em1926, escreveu um «Esboço da Mitologia», expressamentedestinado a R.W. Reynolds, que fora seu professor naKing Edward’s School, de Birmingham, a fim de «explicaros antecedentes da versão aliterativa de Túrin e o Dragão».Este curto manuscrito, que daria cerca de vinte páginasimpressas, foi reconhecidamente escrito como uma sinop-se, no presente do indicativo e num estilo sucinto. Nãoobstante, constituiu o ponto de partida das versões subse-qüentes de O Silmarillion (embora esse nome ainda lhenão tivesse sido dado). Mas, embora toda a concepçãomitológica se encontrasse delineada neste texto, a históriade Túrin tem, muito claramente, a primazia — e, na ver-dade, o título constante do manuscrito é «Esboço da mito-logia com especial referência aos ‘Filhos de Húrin’», emconsonância com o seu objetivo ao escrevê-lo.

Em 1930 seguiu-se uma obra muito mais substanci-al, a Quenta Noldorinwa (a História dos Noldor: pois ahistória dos Elfos Noldorin é o tema central de «O Silma-rillion»). Derivou diretamente do «Esboço» e, embora am-pliando muito o texto inicial e escrevendo de uma maneiramais aperfeiçoada, o meu pai continuava, em grande parte,a considerar a Quenta uma obra sumário, um epítome deconcepções narrativas muito mais ricas: como, de resto,demonstra claramente o subtítulo que lhe deu, no qualdeclarou tratar-se de «uma breve história [dos Noldor]extraída do Book of Lost Tales».

Há que ter em conta que, nesse tempo, a Quentarepresentava (ainda que apenas numa estrutura um tantoou quanto incipiente) toda a amplitude do «mundo imagi-nado» do meu pai. Ainda não era a história da PrimeiraEra, como depois se tornou, pois ainda não havia nenhu-

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ma Segunda Era ou Terceira Era; não havia Númenor,nem hobbits, nem, é claro, nenhum Anel. A história ter-minava com a Grande Batalha, na qual Morgoth era fi-nalmente derrotado pelos outros deuses (os Valar) e poreles «atirado pela Porta da Noite Eterna para o Vazio, paralá das muralhas do Mundo». E, no final da Quenta, o meupai escreveu: «Este é o fim das histórias dos dias antes dosdias nas regiões setentrionais do mundo ocidental.»

Parecerá, assim, realmente estranho que a Quentade 1930 seja, apesar disso, o único texto completo (depoisdo «Esboço») de O Silmarillion que ele alguma vez escre-veu. Mas, como aconteceu com freqüência, pressões exte-riores determinaram a evolução da sua obra. À Quentaseguiu-se, mais adiante na década de 30, uma nova versão,num belo manuscrito, tendo finalmente o título de QuentaSilmarillion, História dos Silmarilli. Esta era, ou era paraser, muito mais extensa do que a Quenta Noldorinwa pre-cedente, mas o conceito da obra, como sendo essencial-mente um sumarização de mitos e lendas (estes mesmosde uma natureza e um alcance completamente diferente sefossem narrados na totalidade), não se perdeu, e é de novodefinido no título: «A Quenta Silmarillion ... é uma históriaresumida extraída de muitas histórias mais antigas, poistodos os assuntos que contém vieram de antigamente eainda se encontram entre os Eldar do Ocidente, reconta-dos com mais minúcia noutras histórias e canções.»

Parece pelo menos provável que a visão do meu paide O Silmarillion decorreu, na verdade, do fato de aquilo aque podemos chamar a «fase Quenta» do seu trabalho nadécada de 1930 tenha começado numa sinopse condensa-da destinada a determinado objetivo, mas que posterior-mente passou por uma expansão e um apuramento, em

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fases sucessivas, até perder a aparência de uma sinopse,mas retendo, não obstante, da forma da sua origem, umauniformidade característica de estilo. Escrevi algures que«a forma e o modo compendiosos e sintetizadores de OSilmarillion, com a sua sugestão de terem atrás deles erasde poesia e «tradição», evoca fortemente uma sensação de«histórias não contadas», até mesmo na maneira de as con-tar. A «distância» nunca se perde. Não existe qualquerpremência narrativa, a pressão e o medo do acontecimen-to imediato e desconhecido. Na realidade, não vemos osSilmarils como vemos o Anel.

No entanto, a Quenta Silmarillion neste formatochegou a um fim abrupto e, como veio a verificar-se, deci-sivo, em 1937. O Hobbit foi publicado pela George Allenand Unwin no dia 21 de Setembro desse ano e, não muitotempo depois, por convite do editor, o meu pai envioudiversos manuscritos seus, que foram entregues em Lon-dres no dia 15 de Novembro de 1937. Entre eles encon-trava-se a Quenta Silmarillion, no estado em que entãoexistia e terminando no meio de uma frase, no fim de umapágina. Mas, entretanto, ele continuou a narrativa, emforma de rascunho, até à fuga de Túrin de Doriath e aoinício da sua vida como bandido:

transpondo as fronteiras do reino, ele juntou a sium grupo de indivíduos sem casa e desesperadosque naqueles miseráveis dias podiam ser encontra-dos, escondidos, à espreita nos ermos, e cujas mãosse voltavam contra todos aqueles que se atravessa-vam no seu caminho, Elfos, Homens ou Orcs.

Este trecho foi o precursor da passagem, na p. 95

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do texto deste livro, no início de Túrin Entre os Bandidos.O meu pai chegara a estas palavras quando a Quen-

ta Silmarillion e os outros manuscritos lhe foram devolvi-dos. Três dias depois, em 19 de Dezembro de 1937, es-creveu à Allen Unwind, dizendo: «Escrevi o primeiro capí-tulo de uma nova história sobre Hobbits — ‘Uma festamuito esperada’.»

Foi neste ponto que a continuada e crescente tradi-ção de O Silmarillion no sintético estilo Quenta chegou aofim, derrubada em pleno voo, aquando da partida de Tú-rin de Doriath. A partir desse ponto, a história posteriorpermaneceu, durante os anos que se seguiram, na formasimples, resumida e estacionária da Quenta de 1930, comoque congelada, enquanto as grandes estruturas da Segundae da Terceira Eras se erguiam com a escrita de O Senhordos Anéis. Mas a continuação dessa história era de pri-mordial importância para as lendas antigas, pois as histó-rias que as concluíam (derivadas do Book of Lost Talesoriginal) falavam da desastrosa história de Húrin, pai deTúrin, depois de Morgoth o libertar, e da ruína dos reinosélficos de Nargothrond, Doriath e Gondolin, das quaisGimli cantou nas minas de Moria, muitos milhares de a-nos volvidos.

O mundo era claro, altas as montanhas,Nos Antigos Tempos antes da quedaDe poderosos reis em NargothrondE Gondolin, reis que passaram agoraPara além dos Mares Ocidentais...

E este seria o corolário e a conclusão do todo: odestino dos Elfos Noldorin na sua longa luta contra o po-

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der de Morgoth e os papéis que Húrin e Túrin desempe-nharam nessa história, terminando com a de Earendil, quese salvou da ruína ardente de Gondolin.

Quando, muitos anos mais tarde, no início de 1950,O Senhor dos Anéis ficou concluído, o meu pai dedicou-se com energia e confiança a «O Assunto dos TemposAntigos», que passaram a ser «A Primeira Era», e nos anosimediatamente a seguir retirou muitos manuscritos antigosde onde se encontravam havia muito tempo. Voltando-separa O Silmarillion, encheu nesse período o belo manus-crito da Quenta Silmarillion de correções e desenvolvi-mentos. Essa revisão terminou, porém, em 1951, antes deele ter chegado à história de Túrin, onde a Quenta Silma-rillion fora abandonada em 1937 com o advento da «novahistória sobre Hobbits».

Iniciou uma revisão da Balada de Leithian (o poemaem verso rimado em que era contada a história de Beren eLúthien, abandonado em 1931), a qual se tornou em brevequase um novo poema, de muito maior envergadura; maseste trabalho acabou por se extinguir aos poucos e, porfim, foi abandonado. Dedicou-se então ao que iria seruma longa saga de Beren e Lúthien, em prosa, estreita-mente baseada na forma reescrita da Balada; mas tambémela foi abandonada. Assim, o seu desejo, demonstrado emtentativas sucessivas, de conduzir o primeiro dos «longoscontos» à escala que ambicionava nunca se concretizou.

Nessa altura, dedicou-se também, de novo e final-mente, ao «grande conto» da Queda de Gondolin, aindaexistente apenas no Lost Tale de cerca de trinta e cincoanos antes e nas poucas páginas que lhe foram dedicadas

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na Quenta Noldorinwa de 1930. Destinava-se a ser a apre-sentação, quando ele estava no apogeu das suas capacida-des, em narrativa cerrada e em todos os seus significados,do extraordinário conto que ele lera na Essay Society dasua faculdade em Oxford, no ano de 1920, e que se man-teve, ao longo de toda a sua vida, como um elemento fun-damental da sua imaginação no tocante aos Tempos Anti-gos. A ligação especial com o conto de Túrin encontra-senos irmãos Húrin, pai de Túrin, e Huor, pai de Tuor. Nasua juventude, Húrin e Huor entraram na cidade élfica deGondolin, oculta no interior de um círculo de altas mon-tanhas, como é dito em Os Filhos de Húrin (p. 33). E de-pois, na Batalha das Lágrimas Inumeráveis, voltaram aencontrar-se com Turgon, Rei de Gondolin, que lhes disse(p. 54): «Agora Gondolin não pode permanecer oculta pormuito tempo e, se for descoberta, cairá.» E Huor replicou:«No entanto, se resistir durante um pouco mais, da vossacasa virá a esperança para Elfos e Homens. Uma coisa vosdigo, Senhor, com os olhos da morte: embora nos sepa-remos aqui para sempre, e eu não volte a ver as vossasmuralhas brancas, de vós e de mim uma nova estrela nas-cerá.»

Esta profecia concretizou-se quando Tuor, primodireito de Túrin, foi para Gondolin e desposou Idril, filhade Turgon, pois o filho deles foi Earendil: a «nova estrela»,«esperança de Elfos e Homens», que fugiu de Gondolin.Na futura saga em prosa de A Queda de Gondolin, inicia-da provavelmente em 1951, o meu pai voltou a contar aviagem de Tuor e do seu companheiro elfo, Voronwë, queo guiou; e no caminho, sozinhos nos ermos, ouviram umgrito nas florestas:

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E enquanto esperavam veio alguém atravésdas árvores e viram que era um Homem alto, arma-do, vestido de negro, com uma comprida espadadesembainhada. Sentiram-se admirados, pois a lâ-mina da espada também era negra, mas os seus gu-mes luziam, brilhantes e frios.

Era Túrin, que regressava, apressado, do saque deNargothrond (pp. 175-176).MasTuor e Voronwë não lhefalaram, quando passou, e «não sabiam que Nargothrondcaíra nem que aquele era Túrin, filho de Húrin, o EspadaNegra. Foi assim que, apenas por um momento que nãovoltaria a repetir-se, os caminhos daqueles homens damesma família, Túrin e Tuor, se cruzaram».

Na nova história de Gondolin, o meu pai levouTuor para o lugar alto das Montanhas Circundantes deonde os olhos podiam espraiar-se através da planície até àCidade Escondida. E aí, lamentavelmente, parou e nãovoltou a avançar. E, assim, também A Queda de Gondolindesapareceu dos seus propósitos e nós não vemos nemNargothrond nem Gondolin com a sua visão posterior.

Disse algures que «com a conclusão da grande ‘in-trusão’ e o afastamento de O Senhor dos Anéis, ele pareceter regressado aos Tempos Antigos com o desejo de reatara escala muito mais ampla com que começara muito tem-po antes, em The Book of the Lost Tales. A conclusão daQuenta Silmarillion manteve-se como um objetivo, mas os«grandes contos», muitíssimo desenvolvidos em relação àssuas formas originais, das quais os seus capítulos posterio-res deveriam derivar, nunca foram concluídos.» Estas ob-servações também se aplicam ao «grande conto» de OsFilhos de Húrin, embora, neste caso, o meu pai tenha ido

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muito mais longe, apesar de nunca ter conseguido levaruma parte substancial da última e enormemente alargadaversão a uma forma final e concluída.

Ao mesmo tempo que se dedicava de novo à Bala-da de Leithian e a A Queda de Gondolin, começou o seunovo trabalho sobre Os Filhos de Húrin, não com a in-fância de Túrin, mas com a parte posterior do conto, ocorolário da sua desastrosa história depois da destruiçãode Nargothrond.

Este é, neste livro, o texto que vai de O Regressode Túrin a Dor-lómin (p. 177) até à sua morte. Não seiexplicar o que levou o meu pai a proceder deste modo, tãodiverso do seu hábito de recomeçar do princípio. Mas,neste caso, ele também deixou entre os seus papéis umacervo de escritos posteriores, mas não datados, relacio-nados com a história desde o nascimento de Túrin até aosaque de Nargothrond, nos quais elaborou muito as anti-gas versões e as expandiu em narrativa anteriormente des-conhecida.

A maior parte desta obra, se não toda, pertence aotempo que se seguiu à efetiva publicação de O Senhor dosAnéis. Nesses anos, Os Filhos de Húrin tornaram-se, paraele, a história dominante do fim dos Tempos Antigos e,durante muito tempo, dedicou-lhe todo o seu pensamen-to. Mas teve, então, dificuldade em impor uma estruturanarrativa firme, à medida que o conto crescia em comple-xidade de caráter e ocorrência. Na verdade, numa longapassagem, a história está contida numa manta de retalhosde rascunhos e esboços de enredo.

No entanto, na sua forma mais recente, Os Filhosde Húrin é a principal narrativa ficcional da Terra Médiadepois da conclusão de O Senhor dos Anéis. E a vida e a

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morte de Túrin são retratadas com uma força convincentee uma premência raramente encontradas noutras obrasrelacionadas com os povos da Terra Média. Por esse mo-tivo, e após longo estudo do manuscrito, tentei comporneste livro um texto que proporcionasse uma narrativacontínua do princípio ao fim. Sem a introdução de quais-quer elementos que não sejam autênticos na sua concep-ção.

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(II)A COMPOSIÇÃO DO TEXTO

Em Os Contos Inacabados, publicados há mais deum quarto de século, apresentei um texto parcial da versãolonga desta história, conhecida por o Narn, do título élficoNarn i Chîn Húrin, A História dos Filhos de Húrin. Mastratava-se apenas de um elemento num grande livro deconteúdo variado e o texto estava muito incompleto, deacordo com o objetivo e a natureza gerais do livro: poisomiti diversas passagens substanciais (uma delas muitoextensa) onde o texto Narn e o da versão muito mais re-duzida presente em O Silmarillion são muito similares ouonde considerei que não podia usar-se nenhum texto«longo» característico.

Conseqüentemente, a forma do Narn neste livro di-fere em vários aspectos da de Contos Inacabados, algunsdeles resultantes do estudo muito mais meticuloso doformidável complexo de manuscritos que fiz depois deesse livro ser publicado. Isso conduziu-me a conclusõesdiferentes a respeito das relações e da seqüência de algunsdos textos, sobretudo na evolução extremamente confusada lenda no período de «Túrin Entre os Bandidos». Segue-se uma descrição e uma explicação da composição destenovo texto de Os Filhos de Húrin.

* * *

Um elemento importante em tudo isto é o estatutopeculiar de O Silmarillion publicado, pois, como referi naprimeira parte deste Apêndice, o meu pai abandonou a

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Quenta Silmarillion no ponto a que chegara (a transfor-mação de Túrin num bandido depois da fuga de Doriath)quando iniciou O Senhor dos Anéis em 1937. Na elabora-ção de uma narrativa para a obra publicada, recorri muitoa The Annals of Beleriand, originalmente um «Conto deAnos», mas que, em versões sucessivas, cresceu e se ex-pandiu em narrativa analítica, em paralelo com os sucessi-vos manuscritos de «Silmarillion», até chegar à libertaçãode Húrin por Morgoth após as mortes de Túrin e Niënor.

Portanto, a primeira passagem que omiti na versãodo Narn i Chîn Húrin em Contos Inacabados (p. 73 e no-ta 1) é o relato da estadia de Húrin e Huor em Gondolin,na sua juventude, e procedi assim, simplesmente, porque ahistória é contada em O Silmarillion (pp. 169-171). Mas,na realidade, o meu pai escreveu duas versões: uma delasexpressamente destinada ao início do Narn, mas nitida-mente baseada numa passagem de The Annals of Beleri-and e da qual, na sua maior parte, pouco difere. Em OSilmarillion usei ambos os textos, mas aqui segui a versãodo Narn.

A segunda parte do Narn que omiti, em Contos I-nacabados (p. 81 e nota 2) foi o relato da Batalha das Lá-grimas Inumeráveis, uma omissão feita pelo mesmo moti-vo. E também neste caso o meu pai escreveu duas ver-sões, uma em Annals e uma segunda, muito mais tarde,mas com o texto dos Annals à sua frente e, na sua maiorparte, idêntica. A segunda narrativa da grande batalha era,uma vez mais, expressamente destinada a ser um elementocomponente do Narn (o texto intitula-se Narn II, ou seja,o segundo capítulo do Narn, e declara no início (p. 49) dotexto deste livro: «Aqui serão, portanto, recontados apenasos feitos que se relacionam com o destino da Casa de Ha-

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dor e dos filhos de Húrin, o Firme.» Guiado por esse ob-jetivo, o meu pai manteve apenas, da narrativa dos Annals,a descrição da «batalha ocidental» e a destruição da hostede Fingol e, com esta simplificação e esta redução da nar-rativa, modificou o decurso da batalha tal como é relatadonos Annals. Em O Silmarillion segui, evidentemente, osAnnals, embora com alguns traços retirados da versãoNarn. Mas neste livro servi-me do texto que o meu paiconsiderou apropriado para o Narn como um todo.

No respeitante a Túrin em Doriath, o novo textoestá muito modificado em relação ao que aparece emContos Inacabados. Há aqui um percurso de escrita, emgrande parte muito em bruto, no que toca aos mesmoselementos narrativos em diferentes fases de evolução e,em casos assim, é obviamente possível ter diferentes pon-tos de vista quanto a como o material original deve sertratado. Cheguei à conclusão de que, quando compus otexto dos Contos Inacabados, me permiti maior liberdadeeditorial do que era necessário. Neste livro reconsiderei osmanuscritos originais e reconstituí o texto e, em muitospontos (geralmente insignificantes), recuperei as palavrasoriginais, introduzindo frases ou breves passagens que nãodeviam ter sido omitidas, corrigindo alguns erros e ado-tando opções diferentes entre as revisões originais.

No que diz respeito à estrutura da narrativa nesteperíodo da vida de Túrin, desde a fuga de Doriath até aocovil dos bandidos no Amon Rûdh, o meu pai tinha emmente certos «elementos» narrativos: o julgamento de Tú-rin perante Thingol; as dádivas de Thingol e Melian a Be-leg; os maus-tratos infligidos pelos bandidos a Beleg naausência de Túrin e os encontros de Túrin e Beleg. Elemovimentava estes «elementos» em relação uns aos outros

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e colocava passagens de diálogo em contextos diferentes,mas tinha dificuldade em compô-los num «enredo» fixo— «para descobrir o que realmente acontecia». No entan-to, após muito e aprofundado estudo, parece-me agoraclaro que o meu pai alcançou uma estrutura e uma se-qüência satisfatórias para esta parte da história antes de aabandonar. Assim como também me parece que a narrati-va na forma muito mais reduzida que compus para a pu-blicação de O Silmarillion se coaduna com isso — mascom uma diferença.

Nos Contos Inacabados há uma terceira lacuna nanarrativa na p. 113: a história interrompe-se no ponto emque Beleg, depois de, finalmente, encontrar Túrin entre osbandidos, não consegue persuadi-lo a regressar a Doriath(pp. 111-115 do novo texto), e só volta a ser reatadaquando os bandidos encontram os Pequenos Anões. Aquirecorri de novo a O Silmarillion para preencher a lacuna,mencionando que na história se segue o adeus de Beleg aTúrin e o seu regresso a Menegroth «onde recebeu deThingol a espada Anglachel e lembas de Melian». Mas éum fato demonstrável que o meu pai rejeitou isso, pois «oque realmente aconteceu» foi que Thingol deu a Anglachela Beleg depois do julgamento de Túrin, quando Beleg par-tiu pela primeira vez para o encontrar. Por isso, no pre-sente texto, a dádiva da espada situa-se nessa ocasião (p.92) e não existe aí qualquer menção a uma dádiva de lem-bas. Na passagem posterior, quando Beleg regressou aMenegroth depois de encontrar Túrin, não há, evidente-mente, qualquer alusão à Anglachel no novo texto, massim, apenas, à dádiva de Melian.

Este momento é adequado para dizer que omiti dotexto duas passagens que incluí nos Contos Inacabados,

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mas que estão relacionadas com a narrativa: são elas a his-tória de como o Elmo do Dragão passou para a posse deHador de Dor-lómin (Contos Inacabados, p. 91), e a ori-gem de Saeros (Contos Inacabados, pp. 92,93). Diga-se depassagem que parece certo, graças a uma compreensãomais aprofundada das relações entre os manuscritos, queo meu pai rejeitou o nome de Saeros e o substituiu porOrgol, que, mercê de «acidente lingüístico», coincide comas palavras do Inglês Antigo orgol, orgel: «orgulho». Pare-ce-me, no entanto, demasiado tarde para remover Saeros.

A principal lacuna da narrativa apresentada emContos Inacabados (p. 122) é preenchida no novo textonas páginas desde o fim do capítulo De Mîm, o Anão e aolongo de A Terra do Arco e do Elmo, A Morte de Beleg,Túrin em Nargothrond e A Queda de Nargothrond.

Nesta parte da «saga de Túrin» há uma relaçãocomplexa entre os manuscritos originais, a história tal co-mo é contada no apêndice a Narn nos Contos Inacabadose o novo texto deste livro. Sempre supus ser intenção domeu pai, na plenitude do tempo, quando terminasse, demodo que o satisfizesse, o «grande conto» de Túrin, base-ar nele uma forma muito mais reduzida da história naquiloa que podemos chamar «o modo Silmarillion». Mas, evi-dentemente, isso não aconteceu. Por isso empreendi, há jámais de trinta anos, a estranha tarefa de tentar simular oque ele não fez: a escrita de uma versão «Silmarillion» daforma mais tardia da história, mas derivando dos hetero-gêneos materiais da «longa versão», o Narn. É o CapítuloXXI de O Silmarillion publicado. Assim, o texto destelivro que preenche a extensa lacuna na história de ContosInacabados deriva dos mesmos materiais originais da pas-

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sagem correspondente em O Silmarillion, mas usados compropósitos diferentes em cada caso e, no novo texto, comuma melhor compreensão do labirinto de rascunhos e a-pontamentos e a sua seqüência. Muito do que consta dosmanuscritos originais e que foi omitido ou comprimidoem O Silmarillion continua disponível; mas onde não ha-via nada para acrescentar à versão de O Silmarillion (comono conto da morte de Beleg, derivado dos Annals of Bele-riand) essa versão foi simplesmente repetida.

No resultado, embora eu tenha tido de introduzirpassagens-ponte aqui e ali na reunião de rascunhos dife-rentes, não existe elemento nenhum de «invenção» extrín-seca de qualquer espécie, por leve que seja, no texto maislongo aqui apresentado. No entanto, como não poderiadeixar de ser, o texto é artificial: sobretudo porque estegrande corpo de manuscrito representa uma evoluçãocontinuada da verdadeira história. Rascunhos que são es-senciais para a formação de uma narrativa ininterruptapodem, de fato, pertencer a uma fase mais antiga. Assim,para dar um exemplo a partir de um ponto anterior, umtexto essencial para a história da ida do bando de Túrinpara o monte de Amon Rûdh, a morada que encontraramnele e a sua vida lá, como também o êxito efêmero da ter-ra de Dor-Cúart-hol, foi escrito antes de haver algumasugestão dos Pequenos Anões e, na verdade, uma descri-ção completamente desenvolvida da casa de Mîm por bai-xo do cume aparece antes do próprio Mîm.

No resto da história, a partir do regresso de Túrin aDor-lómin, a que o meu pai deu uma forma definitiva, há,naturalmente, muito poucas diferenças em relação ao tex-to dos Contos Inacabados. Há, no entanto, dois pormeno-

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res no relato do ataque a Glaurung em Cabed-en-Aras emque emendei as palavras originais e que devem ser expli-cados.

O primeiro diz respeito à geografia. Diz-se (p. 151)que quando Túrin e os seus companheiros partiram deNen Girith no fatídico anoitecer, não foram logo direitosao Dragão, deitado do lado oposto da ravina, mas envere-daram pelo primeiro caminho na direção dos Vaus doTeiglin; e «depois, antes de lá chegarem, viraram para sulpor um carreiro estreito» e seguiram através das florestaspor cima do rio na direção de Cabed-en-Aras. Quando seaproximavam, no texto original da passagem, «as primeirasestrelas tremeluziram a oriente, atrás deles».

Quando preparei o texto para os Contos Inacaba-dos não reparei que isso não podia estar certo, visto elesnão estarem, de modo algum, a seguir para oeste, mas simna direção leste ou sudeste, afastando-se dos Vaus do Tei-glin, e as primeiras estrelas no leste deviam estar à suafrente e não atrás deles. Quando discuti isto em The Warof the Jewels (1994, p. 157) aceitei a sugestão de que «ocarreiro estreito» que seguia para sul virava de novo paraoeste a fim de chegar ao Teiglin. Mas tal parece-me agoraimprovável, sem qualquer utilidade para a narrativa, e asolução mais simples pareceu-me ser emendar «atrás de-les» para «à frente deles», como fiz no novo texto.

O esboço de mapa que tracei nos Contos Inacaba-dos (p. 171) a fim de ilustrar a disposição do terreno nãoestá, na verdade, bem orientado. Vê-se no mapa que omeu pai fez de Beleriand, e é assim reproduzido no meumapa para O Silmarillion, que Amon Obel se encontravaquase na direção leste dos Vaus do Teiglin («a Lua subiapara lá do Amon Obel», p. 238) e o Teiglin fluía para su-

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deste ou sul-sudeste nas ravinas. Voltei agora a desenhar oesboço do mapa e introduzi também a localização apro-ximada da Cabed-en-Aras (diz-se no texto que «precisa-mente no caminho de Glaurung havia agora uma dessasgargantas, de modo algum a mais profunda, mas sim amais estreita, logo a norte da foz do Celebros»).

A segunda questão diz respeito à história da mortede Glaurung ao atravessar a ravina. Há aqui um esboço euma versão final. No esboço, Túrin e os seus companhei-ros subiram pelo lado mais distante do abismo até se en-contrarem quase abaixo da beira; mantiveram-se aí agarra-dos, enquanto a noite passava, e Túrin «debateu-se comsonhos negros de terror em que toda a sua vontade seconcentrava em agarrar-se e resistir». Quando o dia che-gou, Glaurung preparou-se para atravessar num ponto«muitos passos para norte» e, por isso, Túrin teve de des-

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cer para o leito do rio e depois de subir de novo o pe-nhasco para chegar debaixo da barriga do Dragão.

Na versão final (p. 232) Túrin e Hunthor estavamapenas a meio caminho da beira quando Túrin disse queem vão consumiam as suas forças ao subirem agora, antesde saberem onde Glaurung atravessaria; «por isso, para-ram e esperaram». Não é dito que desceram de onde esta-vam quando pararam de subir, e a passagem respeitante aosonho de Túrin «em que toda a sua vontade se concentra-va em agarrar-se e resistir» é recuperada do texto em ras-cunho. Mas na história revista não houve necessidade dese agarrarem: podiam, e certamente o teriam feito, desceraté ao fundo e esperar aí. Na verdade, foi isso que fizeram:é dito no texto final (Contos Inacabados, p. 155) que nãoestavam parados no caminho de Glaurung e que Túrin«avançou ao longo da água para se colocar debaixo dele».Parece, pois, que a história final mantém uma característi-ca desnecessária do rascunho anterior. Por uma questãode coerência, emendei «visto não se encontrarem paradosdiretamente no caminho de Glaurung» para «visto não seencontrarem diretamente no caminho de Glaurung» e «a-vançou ao longo da água» para «trepou ao longo do pe-nhasco».

São, em si mesmos, pequenos pormenores, mas cla-rificam aquelas que são talvez as passagens mais nitida-mente visualizadas nas lendas dos Tempos Antigos, bemcomo um dos acontecimentos mais importantes.

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NOTA SOBRE O MAPA

Este mapa baseia-se de muito perto no que foi pu-blicado em O Silmarillion, o qual, por sua vez, derivava domapa que o meu pai fez na década de 1930 e que nuncasubstituiu, mas usou em toda a sua obra subseqüente. Asrepresentações convencionais e, obviamente, muito seleti-vas, das montanhas, montes e florestas foram imitadas apartir do estilo dele.

Neste novo desenho introduzi algumas diferençasdestinadas a simplificá-lo e a torná-lo mais expressamenteaplicável à história de Os Filhos de Húrin. Por isso não seprolonga para leste, para incluir Ossiriand e as MontanhasAzuis, e foram omitidas algumas características geográfi-cas. Por outro lado (com poucas exceções) somente osnomes que aparecem, de fato, no texto estão assinalados.

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